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Aula 1
Como vocês sabem, o título desse curso é “Falar de sexo: clínica, política,
estética”. E como vocês sabem, estamos no Brasil, no ano de 2021. Nã o faria
sentido começar esse curso sem levar em conta as coordenadas histó ricas que
envolvem sua enunciaçã o. Até agora, em quase vinte anos de docência nessa
universidade, sempre insisti na importâ ncia de nunca tematizar diretamente as
vicissitudes do contexto só cio-histó rico que nos envolve. Parecia-me
fundamental criar uma certa barreira entre as discussõ es políticas fora da sala de
aula e o espaço de reflexã o e debate que aqui deve imperar. Em larga medida,
acho que esse princípio deve continuar a ser respeitado como condiçã o de
respeito a vocês, ou seja, respeito a capacidade que vocês tem de estabelecer, por
vocês mesmos, relaçõ es com situaçõ es atuais e definir regimes pró prios de
instrumentalizaçã o de saberes. Nã o creio realmente que caiba a um professor
fazer isso no lugar de vocês, muito menos de forma direta.
Mas como vocês viram, eu usei um condicionante na frase anterior e nã o
pude evitar de falar “em larga medida”. Porque acredito que vale a pena, nesse
momento atual com toda sua carga dramá tica, ao menos contextualizar as razõ es
da decisã o que me levou a discutir nossas formas de “falar de sexo”. Pois seria
impossível nã o lembrar de algo que todos tem percebido de forma cada vez mais
explícita nos ú ltimos anos, a saber, que um dos eixos fundamentais do poder é a
tentativa de controlar as formas de falar de sexo. Nã o há projeto autoritá rio que
nã o tenha, como espaço fundamental de sua expressã o, a regulagem dos corpos,
de seus regimes de visibilidade, a definiçã o das formas de aliança, os circuitos de
afetos e desejos. Sexo sempre foi, e sempre será uma das questõ es centrais da
vida social e da esfera do político. Pois poder é mobilizaçã o de libido, é
constituiçã o de adesã o a partir de processos de identificaçã o. Embora use
continuamente a força e a violência, nenhum poder se sustenta apenas sob a
força e violência. Ele se sustenta a partir do desejo. Ele precisa do desejo para
impulsionar os processos de reproduçã o material da vida social. Nossa servidã o
é libidinalmente construída e investida.
Por isso, nã o se trata de afirmar que a ascensã o de regimes autoritá rios
seja acompanhada de discursos repressivos sobre o sexual. Isso nunca ocorreu
dessa forma. Todo poder fala de sexo, de forma insistente e compulsiva, com a
esperança de que essa fala defina uma partilha entre as formas da experiência
libidinal que podem circular, que devem ser visíveis e aquelas que nã o podem.
Pois falar de sexo é nã o apenas constituir socialmente objetos de desejo, mas
principalmente falar de instituiçõ es, de hierarquias, de normas sociais, de
sujeiçõ es. Lembrem por exemplo de alguém como Margareth Thatcher a dizer:
“Nã o existe esse negó cio de sociedade. Existem indivíduos e famílias”. Alguém
poderia se perguntar: “mas o que a família está fazendo nessa frase?”. Pois há
certa ló gica em dizer que nã o existiria a sociedade como corpo anterior aos
indivíduos, existiriam apenas indivíduos em associaçã o e julgamento de açõ es a
partir de seus sistemas particulares de interesse. Essa é a fantasia liberal por
excelência. A fantasia de que a sociedade é, na verdade, o sistema de relaçõ es
entre elementos sem relaçõ es imanentes entre si.
Mas por que entã o associar a “família”? Por que associá -la a nã o ser para
naturaliza formas de hierarquia de gênero, de transmissã o e filiaçã o, de
autoridade, de divisã o social de trabalho, de individualizaçã o? Formas que
deverã o ser desejá veis, que deveremos querer reproduzir, que deveremos ser
capazes de investir libidinalmente, organizar nossas fantasias e desejos a partir
de seu nú cleo. Margareth poderia nã o saber, mas ela estava falando de sexo, de
como sexo deve ser feito e, principalmente, contra quem ele deve ser feito. Pois
quando se fala de sexo, essa é uma questã o fundamental que definirá o sentido
de tais falas: contra quem tais proposiçõ es sã o enunciadas? Contra quem é
enunciada a afirmaçã o de que existiria apenas indivíduos e famílias, contra que
potencialidades, contra que criaçã o possível, o que se quer parar dizendo isto?
No campo do sexual, nenhum enunciado é meramente descritivo. Todo
enunciado é agonístico.
Entã o, nã o será surpresa para ninguém que, neste exato momento
histó rico que é o nosso, o poder fale tanto de sexo. Fale todos os dias, de forma
jocosa, sarcá stica, ameaçadora, apocalíptica. Ou seja, talvez nã o seja estranho que
ele fale de uma maneira muito similar à quela que os alemã es ouviam, na década
de trinta do século passado, quando eram exortados a desenvolver aversõ es
contra o que se chamava à época de “bolchevismo sexual” e suas perversõ es.
Aversõ es produzidas através de textos que afirmavam, por exemplo:
Sexo e poder
2
FOUCAULT, Histoire de la sexualité I, p. 16
uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciaçõ es e
ao segredo magistral: trata-se da confissã o3.
3
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-78
4
KRAFFT-EBING, Psychopatologia sexualis, p. 1
5
Idem, p. 29
dispêndio e o gozo), uma forma de hierarquia e sujeiçã o (patriarcal). Por isso,
longe de acreditar que a liberaçã o da fala sobre o sexual pudesse expressar a
consolidaçã o de processos de emancipaçã o social, longe de defender a existência
de uma espécie de substâ ncia natural reprimida que devesse vir a tona, tratava-
se de denunciar a sujeiçã o da experiência do sexual a um discurso
eminentemente clínico. Daí afirmaçõ es como:
8
WITTIG, La pensée straight, p. 48
9
Idem, p. 60
10
Idem, p. 70
que ela teve um impacto cultural maior em nossa forma de falar de sexo. Há algo
da sensibilidade psicanalítica que moldou, de forma extremamente visível, nossa
cultura. Por isso, será o caso de, em vá rios momentos de nosso curso, voltar à
psicaná lise mais uma vez a fim de medir a natureza dispersa e muitas vezes
divergente de tal impacto.
Acusada muitas vezes de alimentar o primado da figura patriarcal do
nome, da reduçã o do desejo ao horizonte familiarista com suas hierarquias e
figuras de autoridade, de sustentar um falocentrismo inapto a se relacionar com
a plasticidade imanente do desejo, de um discurso indiferente aos marcadores
raciais do sofrimento psíquico, a psicaná lise também foi historicamente o eixo da
constituiçã o do programa de uma “revoluçã o sexual”, nos anos trinta. Nela,
desenvolveu-se o trabalho coma explicitaçã o das figuras do desejo insubmisso,
dos vínculos libidinais que explodem ordens sociais, da dimensã o política do
gozo e de sua forma de fazer desabar a linguagem. A partir dela, foi possível
constituir uma decisiva reflexã o libidinal sobre as bases psíquicas da sujeiçã o
racial. Ou seja, há uma complexidade que é pró pria à psicaná lise e que explicita
uma dimensã o clínica conflitual, contraditó ria e, por isso, politicamente rica.
Gostaria de explorar tais contradiçõ es com vocês a fim de pensar a questã o
sobre o que pode ser uma clínica do sexual em um momento histó rico com o
nosso.
Mas há ainda um quarto regime de discurso sobre o sexual que será objeto de
nossa reflexã o. Se para além de uma clínica do sexual e de um discurso do sexo
como campo de lutas sociais, há nã o apenas esse ponto de falência de nossa
sociedade e que seria dado por uma ars eró tica. Há também algo que poderíamos
chamar de uma eró tica da arte. Há uma forma da arte falar de sexo que nã o é
exatamente a transcriçã o de prá ticas e cuidados que se transmite diante do
cuidado dos corpos, mesmo que em vá rios momentos isso possa ser encontrado.
No entanto, eu gostaria de me dedicar, no interior de nosso curso, há um outro
regime de discurso que existe nessa eró tica da arte que nos é pró pria. Um regime
bem específico que, a meu ver, é o politicamente mais desustruturador e a-
normativo. Ele vai ser encontrado na literatura (Ballard, Duras), no cinema
(Cronenberg) e mesmo na ó pera (Berg). Deixe-me tentar fornecer um exemplo
do que tenho em mente:
Na sua visã o de um acidente de carro com a atriz, Vaughan estava
obcecado pelas mú ltiplas feridas e impactos – pelo cromo morrendo e
pelos anteparos em colapso dos dois carros encontrando-se de frente em
um complexo de colisõ es repetidas sem fim em filmes de câ mera lenta,
pelas feridas idênticas infligidas em seus corpos, pela imagem de névoa de
vidro de parabrisa em volta de sua face tal qual ela quebrara sua
superfície tingida como uma Afrodite morta-viva, pela fraturas expostas
de suas coxas impactadas contra os suportes do freio de mã o, e sobretudo
pelas feridas em suas genitá lias, o ú tero dela perfurado pelo bico
herá ldico da marca do produtor, o sêmen dele despejado através do sinais
luminosos que registraram para sempre a ú ltima temperatura e o nível
pleno de gasolina da má quina11.
11
BALLARD, James; Crash, Londres; Fourth Estate, 2009, p. 2
Este é o trecho de um romance intitulado Crash, de James Ballard. Creio
que a maioria de vocês deve conhecer esta histó ria de sua versã o
cinematográ fica, filmada por David Cronenberg nos anos noventa. Como vocês
verã o, nosso curso será atravessado pela aná lise de textos que nã o sã o nem
explicitamente clínicos nem explicitamente ligado à s dinâ micas concretas de
lutas sociais vinculadas a questõ es de sexo. Eu procurei privilegiar textos que
levam a literatura para uma espécie de erotismo do limite. No caso desse texto,
de um erotismo que se dá entre sujeitos e má quinas em decomposiçã o.
Eu gostaria de insistir nesse ponto por acreditar que há algo de decisivo
na experiência do sexual que se dá nessas formas de descriçõ es libidinais de
acidentes que se desenrola nesse espaço singular que é o espaço literá rio. Algo
que tanto a clínica quanto as dimensõ es das lutas sociais nã o poderiam esquecer,
pois é algo que as habita como um horizonte fundamental. Há certa experiência
que se dá no campo do sexual e que coloca questõ es que aparecem inicialmente
como sofrimento psíquico e sofrimento social para acabarem por serem
acolhidas em um esforço de decomposiçã o de mundos que, entre tantas outras
figuras possíveis, acabou por chegar a nó s como a experiência de uma colisã o de
carros.
Eu gostaria de discutir isso partindo de uma literatura que fala de sexo,
mas que nã o pode ser descrita como eró tica, pois nã o fala de uma “ars erotica”,
nã o fala de prá ticas e disposiçõ es que podem ser integradas à vida na sua
procura em cultivar e criar prazeres. Ela fala de sexo como se estivesse diante de
algo insubmisso aos có digos do erotismo, mas também avesso ao regime de
segurança da pornografia, porque a pornografia é uma forma de segurança, a
segurança de que o gozo estará totalmente integrado à imagens que saberíamos
como manipular, que poderíamos classificar em uma miríade de lugares
ordenados, com seus acrô nimos que muitas vezes mais parecem siglas de
empresas e megacorporaçõ es (BDSM, MILF, BBW, AMWF, BBC, CBT, CFMN,
CMNF, DAP, FFFM etc.).
Essa escolha se justifica porque creio que tal literatura explicita algo que
pulsa como um dos motores da clínica e das lutas sociais capazes de operar
transformaçõ es no campo do sexual. Mas que pulsa muitas vezes como um motor
mudo e a respeito do qual talvez devamos recuperar seu som específico, suas
palavras possíveis. Por isso, esse curso foi composto através dos deslocamentos
entre os campos da clínica, das lutas sociais e das artes.
Voltemos entã o ao texto com o qual iniciei. Notemos o ritmo da descriçã o,
sem pausas, uma ú nica frase ocupando todo o pará grafo. Como se fosse questã o
de criar um fluxo contínuo de imagens que passam dos corpos mortos ao carro
reduzido à condiçã o de ferragem. Como se fosse questã o de um tempo parado
pró prio à s colisõ es, essas mesmas colisõ es que parecem paralisar os fluxos,
quebrar os movimentos e produzir uma nova forma, construída a partir de
feridas e impactos. Percebamos essa escrita que procura fazer do acidente
alguma forma possível de encontro entre má quina e humano, entre técnica e
pulsã o. Nã o mais o encontro da má quina como extensã o das habilidades do
humanos, como promessa iluminista de desenvolvimento e progresso técnico
através do fortalecimento da capacidade humana em intervir em um mundo
desencantado a partir das exigências da produçã o. O que temos é a “colisã o”, o
crash que é o crash do choque entre carros, mas é também o crash da bolsa de
valores e do colapso da economia.
Mas tentemos levar em conta que crash é exatamente este e porque esse
crash é uma forma possível de abertura. Em um texto para a revista
automobilística Drive (Autopia, 1971), Ballard afirma que a imagem
fundamental do século XX nã o é o homem na Lua ou Churchill fazendo o V de
vitó ria apó s o fim da Segunda Guerra, mas “um homem em um carro motorizado,
dirigindo em uma auto-estrada de concreto para algum destino desconhecido” 12.
A auto-estrada como a pura expressã o do século XX, com toda sua velocidade e
violência. O que nã o poderia ser diferente, já que se trata de compreender que o
ponto fundamental de uma sociedade é dado pela maneira com que ela organiza
os fluxos e movimentos, a maneira com que ela opera a circulaçã o. Ou seja, mais
importante do que saber o que sociedades trocam, é saber como elas trocam, em
que velocidade, em qual ritmo e intensidade. E o ritmo automotivo é o ritmo da
fricçã o e da velocidade, da aproximaçã o dos pontos no espaço através de um
fluxo aparentemente desimpedido que, em vá rios pontos, produz colisõ es.
Dessa forma, através do automó vel, Ballard forneceu uma bela metá fora
de uma sociedade fascinada pelo universo da circulaçã o. Tal como os
automó veis, as coisas no interior da vida social, os objetos de nosso desejo, as
pessoas que encontramos e com as quais transamos circulam de maneira cada
vez mais rá pida até se chocarem. Eles vã o se equivalendo e criando uma estranha
zona de indiferença, de des-identidade, até que o choque aparece com a força das
crises redentoras. Como se o choque fosse a ú nica coisa capaz de quebrar a
indiferença da circulaçã o. Eu gostaria de mostrar, nesse curso, como tais
choques, presentes em vá rios regimes de discursos sociais, sempre foram uma
das mais astutas formas de luta contra uma forma fascista de vida. Essa mesma
forma que nos assombra atualmente.
12
Idem, p. 245