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Falar de sexo:

Aula 1

Como vocês sabem, o título desse curso é “Falar de sexo: clínica, política,
estética”. E como vocês sabem, estamos no Brasil, no ano de 2021. Nã o faria
sentido começar esse curso sem levar em conta as coordenadas histó ricas que
envolvem sua enunciaçã o. Até agora, em quase vinte anos de docência nessa
universidade, sempre insisti na importâ ncia de nunca tematizar diretamente as
vicissitudes do contexto só cio-histó rico que nos envolve. Parecia-me
fundamental criar uma certa barreira entre as discussõ es políticas fora da sala de
aula e o espaço de reflexã o e debate que aqui deve imperar. Em larga medida,
acho que esse princípio deve continuar a ser respeitado como condiçã o de
respeito a vocês, ou seja, respeito a capacidade que vocês tem de estabelecer, por
vocês mesmos, relaçõ es com situaçõ es atuais e definir regimes pró prios de
instrumentalizaçã o de saberes. Nã o creio realmente que caiba a um professor
fazer isso no lugar de vocês, muito menos de forma direta.
Mas como vocês viram, eu usei um condicionante na frase anterior e nã o
pude evitar de falar “em larga medida”. Porque acredito que vale a pena, nesse
momento atual com toda sua carga dramá tica, ao menos contextualizar as razõ es
da decisã o que me levou a discutir nossas formas de “falar de sexo”. Pois seria
impossível nã o lembrar de algo que todos tem percebido de forma cada vez mais
explícita nos ú ltimos anos, a saber, que um dos eixos fundamentais do poder é a
tentativa de controlar as formas de falar de sexo. Nã o há projeto autoritá rio que
nã o tenha, como espaço fundamental de sua expressã o, a regulagem dos corpos,
de seus regimes de visibilidade, a definiçã o das formas de aliança, os circuitos de
afetos e desejos. Sexo sempre foi, e sempre será uma das questõ es centrais da
vida social e da esfera do político. Pois poder é mobilizaçã o de libido, é
constituiçã o de adesã o a partir de processos de identificaçã o. Embora use
continuamente a força e a violência, nenhum poder se sustenta apenas sob a
força e violência. Ele se sustenta a partir do desejo. Ele precisa do desejo para
impulsionar os processos de reproduçã o material da vida social. Nossa servidã o
é libidinalmente construída e investida.
Por isso, nã o se trata de afirmar que a ascensã o de regimes autoritá rios
seja acompanhada de discursos repressivos sobre o sexual. Isso nunca ocorreu
dessa forma. Todo poder fala de sexo, de forma insistente e compulsiva, com a
esperança de que essa fala defina uma partilha entre as formas da experiência
libidinal que podem circular, que devem ser visíveis e aquelas que nã o podem.
Pois falar de sexo é nã o apenas constituir socialmente objetos de desejo, mas
principalmente falar de instituiçõ es, de hierarquias, de normas sociais, de
sujeiçõ es. Lembrem por exemplo de alguém como Margareth Thatcher a dizer:
“Nã o existe esse negó cio de sociedade. Existem indivíduos e famílias”. Alguém
poderia se perguntar: “mas o que a família está fazendo nessa frase?”. Pois há
certa ló gica em dizer que nã o existiria a sociedade como corpo anterior aos
indivíduos, existiriam apenas indivíduos em associaçã o e julgamento de açõ es a
partir de seus sistemas particulares de interesse. Essa é a fantasia liberal por
excelência. A fantasia de que a sociedade é, na verdade, o sistema de relaçõ es
entre elementos sem relaçõ es imanentes entre si.
Mas por que entã o associar a “família”? Por que associá -la a nã o ser para
naturaliza formas de hierarquia de gênero, de transmissã o e filiaçã o, de
autoridade, de divisã o social de trabalho, de individualizaçã o? Formas que
deverã o ser desejá veis, que deveremos querer reproduzir, que deveremos ser
capazes de investir libidinalmente, organizar nossas fantasias e desejos a partir
de seu nú cleo. Margareth poderia nã o saber, mas ela estava falando de sexo, de
como sexo deve ser feito e, principalmente, contra quem ele deve ser feito. Pois
quando se fala de sexo, essa é uma questã o fundamental que definirá o sentido
de tais falas: contra quem tais proposiçõ es sã o enunciadas? Contra quem é
enunciada a afirmaçã o de que existiria apenas indivíduos e famílias, contra que
potencialidades, contra que criaçã o possível, o que se quer parar dizendo isto?
No campo do sexual, nenhum enunciado é meramente descritivo. Todo
enunciado é agonístico.
Entã o, nã o será surpresa para ninguém que, neste exato momento
histó rico que é o nosso, o poder fale tanto de sexo. Fale todos os dias, de forma
jocosa, sarcá stica, ameaçadora, apocalíptica. Ou seja, talvez nã o seja estranho que
ele fale de uma maneira muito similar à quela que os alemã es ouviam, na década
de trinta do século passado, quando eram exortados a desenvolver aversõ es
contra o que se chamava à época de “bolchevismo sexual” e suas perversõ es.
Aversõ es produzidas através de textos que afirmavam, por exemplo:

Nossa mais alta tarefa consistirá em facilitar a formaçã o de uma família


aos dois companheiros ligados pela vida. Sua destruiçã o definitiva
equivalerá a supressã o de toda humanidade superior. Mesmo concedendo
à mulher um vasto campo de atividade , nunca deveremos perder de vista
que o objetivo ú ltimo de uma evoluçã o verdadeiramente orgâ nica e ló gica
é a formaçã o da família. Ela é a menor unidade mas também a mais
importante de toda estrutura do Estado (...)Como o bolchevismo quer
aniquilar toda individualidade, ele destró i a família, que imprime ao
homem sempre uma marca individual. É por isto que ele detesta todas as
aspiraçõ es nacionais. Ele quer uniformizar os povos tornando-os dó ceis ...
Mas todas as tentativas de aniquilar a vida pessoal serã o reduzidas a nada
enquanto restar no coraçã o do homem uma centelha de religiã o, pois é na
religiã o que sempre se manifesta a liberdade pessoal em relaçã o ao
mundo ambiente1.

Esse era um texto do Partido Nazista alemã o que concorria à eleiçã o de


1932. Religiã o, família, liberdade individual, luta contra a homogeneizaçã o.: tudo
isso em nome de uma sexualidade que assuma “lugares naturais”, que nã o
perverta as formas sociais orgâ nicas da evoluçã o, a ló gica do existente, em suma,
toda humanidade superior. Essa era, como dizia o panfleto, “nossa mais alta
tarefa”. Uma tarefa feita contra um bolchevismo que, de fato, ao menos entre
1917 e 1924, tinha procurado questionar os sistema de trabalhos e exploraçã o
no interior da família burguesa, fazendo de tarefas privadas tarefas que
deveriam ser de responsabilidade do poder pú blico, que tinha lutado para
modificar a estrutura das relaçõ es de gênero, compreendendo que a igualdade
social exige fortalecimento do reconhecimento da plasticidade libidinal dos
sujeitos, facilitado os divó rcios, legalizando o aborto, descriminalizando relaçõ es
1
Idem, p. 192
homoafetivas, criando pensõ es mesmo para os ditos filhos ilegítimos. Alexandra
Kollontai, por exemplo, era uma daquelas que lutavam para que, no comunismo:
“o ato sexual seja algo tã o simples quanto beber um copo d’á gua”.
Tenhamos isso em mente quando nos perguntarmos porque, nesse
momento, talvez uma das melhores coisas que a universidade pode fazer é falar
de sexo, porque nessa momento, uma das mais importantes formas de luta passe,
exatamente, por falar de sexo. Mas falar de uma forma bastante específica, na
esperança de que exista ao menos uma forma de falar que faça do sexual um
motor de emancipaçã o social.

Sexo e poder

No entanto, antes de começar esse trajeto, talvez seja o caso de lembrar de um


certo paradoxo. Pois há um livro sobre a histó ria da sexualidade que começa por
nos lembrar do paradoxo de uma sociedade (no caso, a nossa) que, mesmo
acreditando ser marcada por inú meros interditos, censuras e repressõ es, nã o
cansa de falar de sexo. Esse livro marcou época, entre outras coisas, por insistir
que nã o deveríamos partir de uma aná lise de como reprimimos o que é da
ordem do sexual, mas como falamos, de forma reiterada e insistente, daquilo que
dizemos reprimido. “Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde
mais de um século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com
prolixidade de seu pró prio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela nã o diz,
denuncia os poderes que ela exerce e promete liberar-se de leis que a fazem
funcionar”2.
Essa questã o de método partia de um princípio maior que consistia em
compreender como sociedades organizavam suas relaçõ es entre sujeitos,
definiam o uso e circulaçã o dos corpos, perpetuavam estruturas de poder,
legitimavam prá ticas de intervençã o a partir de determinaçã o das formas
possíveis de falar de sexo, e nã o exatamente através de seu silenciamento
compulsivo. Com isto em vista, tratava-se de lembrar como, a partir de meados
do século XIX, as ditas sociedades ocidentais conhecerã o uma modificaçã o
estrutural nas formas de falar de sexo. Uma modificaçã o da qual ainda seríamos
legatá rios, que se desdobrou de forma lenta e tensa. Tratava-se do advento de
um discurso clínico sobre o sexual. Lembremos mais uma vez dessa passagem
arquiconhecida:

Há historicamente dois procedimentos para produzir a verdade do sexo.


De um lado, as sociedades (e elas sã o numerosas: a China, o Japã o, a índia,
Roma, as sociedades á rabo-muçulmanas) que se dotaram de uma ars
erótica. Na arte eró tica, a verdade é extraída do pró prio prazer, tomado
como prá tico e recolhido como experiência. Nã o é em relaçã o a uma lei
absoluta do permitido e do proibido, nã o é em absoluto por um critério de
utilidade que o prazer é levado em conta (...) Nossa civilizaçã o, ao menos
sob um primeiro ponto de vista, nã o tem uma ars erótica. No entanto, ele é
a ú nica a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, ao ter desenvolvido no
decorrer dos séculos procedimentos que se ordenam essencialmente a

2
FOUCAULT, Histoire de la sexualité I, p. 16
uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciaçõ es e
ao segredo magistral: trata-se da confissã o3.

A colocaçã o é clara. Em sociedade outras que as ocidentais haveria um


falar sobre sexo marcado pela singularizaçã o de prá ticas e experiências que
deveríamos chamar de “ars erotica”. Essa singularizaçã o nã o se regularia a partir
da conformidade a uma legislaçã o de cará ter homogêneo e universalizante. Tal
inexistência de uma ars erotica entre nó s pode ser explicada pela presença de um
elemento no conjunto descrito por Foucault que destoa, a saber, Roma. A
estratégia é clara: o cristianismo, com sua procura singular pela transcendência,
com seu dualismo e posterior problematizaçã o moral do corpo, com sua junçã o
entre sexual e confissã o, marcou entre nó s nossas formas de falar de sexo. A
Roma pagã , assim como a Grécia, ainda estaria no interior de um regime
discursivo que continuaria a resistir por mais tempo em sociedades ainda nã o
completamente submetida ao colonialismo ocidental.
Mas se o ocidente nã o conheceria uma ars erotica, ele conheceria uma
ciência da sexualidade, ou seja, ele teria visto a emergência de um discurso
clínico sobre o sexual. Esse discurso, e afinal sua origem nã o poderia nos
enganar, se construçã o no interior de um campo no qual se articulavam medicina
e moral. Como dirá Krafft-Ebing em um tratado de grande influência no século
XIX sobre as perversõ es: “o sentimento sexual é a raiz de toda ética e, sem
dú vida, do esteticismo e religiã o”4. Até porque:

A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um


outro, tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos
prazeres, sensaçõ es e pensamentos inumerá veis que, através da alma e do
corpo, tem alguma afinidade com o sexo. Este projeto de uma “colocaçã o
em discurso” do sexo foi formado, há muito tempo, no interior de uma
tradiçã o ascética e moná stica. O século XVII fez dele uma regra para
todos5.

Ou seja, essa vontade de saber, de classificaçã o, de medida que parece


animar a clínica do sexual teria uma origem indelével. Ela está lá na tradiçã o
ascética e moná stica, lá nas prá ticas tendo em vista uma forma muito peculiar de
ascese religiosa. E tudo isto ainda estaria entre nó s através, principalmente, de
nossa clínica. Uma clínica que, no fundo, seria a continuaçã o da religiã o por
outros meios. E quanto mais falaríamos de sexo em termo clínicos, com suas
classificaçõ es, suas categoriais, suas patologias, mais perpetuaríamos a sombra
da moralidade teoló gica sobre nossos corpos, a normatividade de sua estrutura
sobre nossos desejos.
Dessa forma, a projeçã o, para dentro do campo do sexual, de distinçõ es
entre normal e patoló gico, entre saú de e doença implicaria uma transformaçã o
final na nossa forma de falar de sexo. Transformaçã o essa que aprofundaria os
mecanismos de disciplina e gestã o social pró prios ao poder nas sociedades
ocidentais. Pois essa moralidade nã o era apenas teoló gica, ela fundava uma
economia, uma política, ou seja, uma dinâ mica de trabalho e disciplina (contra o

3
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-78
4
KRAFFT-EBING, Psychopatologia sexualis, p. 1
5
Idem, p. 29
dispêndio e o gozo), uma forma de hierarquia e sujeiçã o (patriarcal). Por isso,
longe de acreditar que a liberaçã o da fala sobre o sexual pudesse expressar a
consolidaçã o de processos de emancipaçã o social, longe de defender a existência
de uma espécie de substâ ncia natural reprimida que devesse vir a tona, tratava-
se de denunciar a sujeiçã o da experiência do sexual a um discurso
eminentemente clínico. Daí afirmaçõ es como:

O ponto importante nã o consistirá em determinar se tais produçõ es


discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrá rio, a formular mentiras destinadas a ocultá -lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento6.

Ou seja, tratava-se de mostrar quais efeitos de poder seriam derivados de certas


modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento
silencioso de “técnicas polimó rficas de poder”. Nã o se tratava assim de negar a
repressã o, mas de negar que sua temá tica pudesse dar conta da maneira com que
o poder sobre a vida age e produz. Ou seja, nã o apenas um discurso clínico, mas
também um discurso político
Daí vinha a importâ ncia de sublinhar como esta técnica permaneceria
ligada ao destino da espiritualidade cristã ou da economia dos prazeres
individuais se ela nã o tivesse sido integrada, a partir do século XVIII, a um
verdadeiro mecanismo de: “incitaçã o política, econô mica, técnica” sobre o sexo.
Nã o um mecanismo ligado diretamente à moralidade, mas um mecanismo
técnico, portador de um discurso que nã o é simplesmente aquele da tolerâ ncia
ou da condenaçã o, mas da gestã o, do fortalecimento da saú de pú blica:

O sexo, isso nã o se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o


sexo advém questã o de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava
entã o a esta palavra – nã o apenas repressã o da desordem, mas majoraçã o
ordenada das forças coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja,
nã o o rigor de uma proibiçã o, mas a necessidade de regular o sexo através
de discursos pú blicos e ú teis7.

Este era o ponto central. A modernidade conheceria, entre outras coisas,


um discurso sobre o sexo enquanto setor de uma administraçã o pú blica. Assim,
se era verdade que apenas o ocidente conhecerá esta ideia do sexo como objeto
de uma ciência, há de se lembrar que tal ciência nã o visava apenas “curar”
desvios, mas encontrar as formas mais produtivas de gerir as populaçõ es já que,
no coraçã o do problema político das populaçõ es encontra-se o sexo. Se um país
rico e forte era um país populoso, entã o algumas questõ es centrais de
administraçã o pú blica serã o: a aná lise da taxa de natalidade, a idade do
casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência
das relaçõ es sexuais, o efeito do celibato e das interdiçõ es, a incidência de
prá ticas contraceptivas, entre outros. Pela primeira vez, uma sociedade
reconhece que seu futuro e fortuna está ligado à maneira com que cada um faz
uso de seu sexo.
6
Idem, p. 20
7
Idem, p. 35
Mas essa administraçã o também se dava no sentido de definir uma
normatividade explícita, reprodutiva e heteronormativa, e empurrar todo o resto
para o campo das patologias, das perversõ es. Será assim que, a partir de meados
do século XIX, encontraremos esses tratados de perversõ es que desejavam
catalogar todos os “desvios” possíveis. Krafft-Ebing, responsá vel pelo tratado
talvez o mais influente à época falar de quatro perversõ es fundamentais:
inversõ es, fetichismo, sadismo e masoquismo. Nã o deixa de ser extremamente
sintomá tico que, dessas quatros perversõ es fundamentais, duas sejam invençõ es
literá rias (sadismo e masoquismo) e uma seja uma apropriaçã o de um
dispositivo colonial de sujeiçã o (fetichismo).

Clínica e lutas sociais

Eu gostaria de partir desse livro que tanto influenciou nossos estudos


para expressar certa discordâ ncia de fundo. Pois nã o é difícil compreender a
consequência mais clara dessa perspectiva colocada em circulaçã o por Foucault.
Ela consiste em abandonar a possibilidade de um discurso clínico do sexual que
nã o fosse expressã o de modalidades de disciplina e sujeiçã o. Ou seja, tudo se
passava como se fosse questã o de dissociar toda possibilidade de pensar
conjuntamente clínica e crítica. Nesse horizonte o discurso clínico sobre sexo só
poderia ser uma estrutura de poder baseada nas dinâ micas de classificaçã o e
patologizaçã o de sujeitos. Nesse sentido, haveria uma caracterizaçã o subsidiá ria
da clínica do sexual. Subsidiá ria porque completamente dependente da
adequaçã o de prá ticas que se desdobram no campo da ascese religiosa (como a
confissã o, a contençã o, a descriçã o exaustiva, a exploraçã o da relaçã o entre
prazer e culpa, entre tantos outros). Daí porque, consequente com seu pró prio
projeto, caberá a Foucault procurar recuperar modalidades possíveis dessa ars
erotica soterrada em definitivo entre nó s pelo advento da clínica do sexual.
Tratava-se de retornar ao cultivo dos prazeres que uniriam gregos e romanos a
prá ticas que se desenvolveriam em subculturas que procuram restabelecer
fortes laços comunitá rios a partir de sexualidades dissidentes.
Um dos resultados interessantes desse processo foi uma espécie de
deslocamento através do qual falar de sexo tende a se tornar algo imediatamente
traduzível em um espectro concreto de lutas sociais. Ninguém precisou esperar
Foucault para isto, mas é certo que a crítica da clínica deu força subsidiá ria a
uma relaçã o entre clínica e luta social na qual a segunda parece anular ou
submeter imediatamente a primeira. Haveria vá rios exemplos a trazer nesse
contexto, mas eu gostaria de lembrar de um vindo, nã o de Foucault, mas de certo
espectro do feminismo. Por exemplo, a maneira que falamos de sexo
preservando uma certa ilusã o ontoló gica da diferença sexual será vista, ao
mesmo tempo, como resultado de uma naturalizaçã o de pressupostos clínicos e
objeto de uma luta social contra formas institucionalizadas de opressã o ligadas a
gênero. Exemplo ilustrativo nesse sentido é Monique Wittig.
Wittig afirmará que a construçã o da noçã o de diferença sexual e seu uso
clínico mascaram o fato de que estamos a falar, na verdade, de uma luta de
classes entre homens e mulheres que só pode ser abolida politicamente. Daí
afirmaçõ es como:
a categoria de sexo é uma categoria política que funda a sociedade
enquanto heterossexual. Nisso, ela nã o é uma questã o de ser, mas de
relaçõ es (pois as ‘mulheres’ e os ‘homens’ sã o o resultado de relaçõ es). A
categoria de sexo é a categoria que estabelece como ‘natural’ a relaçã o que
está na base da sociedade (heterossexual) e através da qual a metade da
populaçã o – as mulheres – sã o ‘heterossexualizadas’ (a fabricaçã o das
mulheres é semelhante à fabricaçã o dos eunucos, ao adestramento dos
escravos e animais) e submetidas a uma economia heterossexual8.

Nesse sentido, o combate consiste em “suprimir os homens enquanto classe, no


curso de uma luta política de classe, nã o de um genocídio”. E desaparecendo a
classe dos homens, desaparecerá também a classe das mulheres, “pois nã o há
escravos sem senhores”9. Notemos essa assunçã o explícita e consequente de um
esvaziamento da clínica em prol da transferência da fala sobre o sexual para o
campo político das lutas de classe, da crítica de dinâ micas de espoliaçã o através
da problematizaçã o das ló gicas de sujeiçã o no interior de instituiçõ es sociais
como família, casamento e divisã o sexual do trabalho E, para que tal
deslocamento possa ser completo, faz-se necessá rio que Wittig recuse
claramente a possibilidade de um discurso clínico que fale sobre diferença sexual
e que nã o seja outra coisa que a continuaçã o da dominaçã o por outros meios:

Pois na experiência analítica há um oprimido, é o psicanalisando de quem


se explora sua necessidade de comunicar e que, da mesma forma que
anteriormente as feiticeiras só podiam repetir, sob tortura, a linguagem
que os inquisidores queriam ouvir, nã o há outra opçã o, se ele nã o quiser
romper o contrato implícito que lhe permite comunicar e do qual ele
necessita, do que de tentar dizer o que querem que ele diga10.

Essa é uma forma de transposiçã o da fala do sexual para o quadro


imediato das lutas sociais. Ela nos mostra como nossas sociedades conheceriam
ao menos duas formas de se falar de sexo. Formas essas que tecem entre si
relaçõ es complexas. E insistiria nessa complexidade porque conheceremos
momentos histó ricos nos quais clínica e lutas sociais caminharã o pró ximas, como
nos anos vinte e trinta do século XX, quando o termo “revoluçã o sexual”
aparecerá . Haverá outros, e talvez esse seja nosso caso atual, no qual um divó rcio
entre os dois parece se estabelecer, levando-nos a pensar se um discurso nã o
deveria afinal submeter o outro, se faz ainda algum sentido preservar uma clínica
do sexual, ao menos uma clínica que nã o seja orientada pela configuraçã o tá tica e
estratégica das lutas sociais vinculadas a gênero e opressã o feminina, que nã o
seja um setor retardatá rio dessas lutas.
Isto nos levará a problematizar essa visã o completamente subsidiá ria da
clínica do sexual. E creio que, como nã o poderia deixar de ser, seremos obrigados
a discutir o caso mais complexo dessas modalidades de discurso clínico, a saber,
a psicaná lise. Insistiria nesse lugar privilegiado da psicaná lise porque nenhum
discurso clínico sobre o sexual teve tanto impacto na cultura ocidental quanto
ela. Independente do que pensemos sobre a psicaná lise enquanto clínica, é certo

8
WITTIG, La pensée straight, p. 48
9
Idem, p. 60
10
Idem, p. 70
que ela teve um impacto cultural maior em nossa forma de falar de sexo. Há algo
da sensibilidade psicanalítica que moldou, de forma extremamente visível, nossa
cultura. Por isso, será o caso de, em vá rios momentos de nosso curso, voltar à
psicaná lise mais uma vez a fim de medir a natureza dispersa e muitas vezes
divergente de tal impacto.
Acusada muitas vezes de alimentar o primado da figura patriarcal do
nome, da reduçã o do desejo ao horizonte familiarista com suas hierarquias e
figuras de autoridade, de sustentar um falocentrismo inapto a se relacionar com
a plasticidade imanente do desejo, de um discurso indiferente aos marcadores
raciais do sofrimento psíquico, a psicaná lise também foi historicamente o eixo da
constituiçã o do programa de uma “revoluçã o sexual”, nos anos trinta. Nela,
desenvolveu-se o trabalho coma explicitaçã o das figuras do desejo insubmisso,
dos vínculos libidinais que explodem ordens sociais, da dimensã o política do
gozo e de sua forma de fazer desabar a linguagem. A partir dela, foi possível
constituir uma decisiva reflexã o libidinal sobre as bases psíquicas da sujeiçã o
racial. Ou seja, há uma complexidade que é pró pria à psicaná lise e que explicita
uma dimensã o clínica conflitual, contraditó ria e, por isso, politicamente rica.
Gostaria de explorar tais contradiçõ es com vocês a fim de pensar a questã o
sobre o que pode ser uma clínica do sexual em um momento histó rico com o
nosso.

Uma erótica da arte

Mas há ainda um quarto regime de discurso sobre o sexual que será objeto de
nossa reflexã o. Se para além de uma clínica do sexual e de um discurso do sexo
como campo de lutas sociais, há nã o apenas esse ponto de falência de nossa
sociedade e que seria dado por uma ars eró tica. Há também algo que poderíamos
chamar de uma eró tica da arte. Há uma forma da arte falar de sexo que nã o é
exatamente a transcriçã o de prá ticas e cuidados que se transmite diante do
cuidado dos corpos, mesmo que em vá rios momentos isso possa ser encontrado.
No entanto, eu gostaria de me dedicar, no interior de nosso curso, há um outro
regime de discurso que existe nessa eró tica da arte que nos é pró pria. Um regime
bem específico que, a meu ver, é o politicamente mais desustruturador e a-
normativo. Ele vai ser encontrado na literatura (Ballard, Duras), no cinema
(Cronenberg) e mesmo na ó pera (Berg). Deixe-me tentar fornecer um exemplo
do que tenho em mente:
Na sua visã o de um acidente de carro com a atriz, Vaughan estava
obcecado pelas mú ltiplas feridas e impactos – pelo cromo morrendo e
pelos anteparos em colapso dos dois carros encontrando-se de frente em
um complexo de colisõ es repetidas sem fim em filmes de câ mera lenta,
pelas feridas idênticas infligidas em seus corpos, pela imagem de névoa de
vidro de parabrisa em volta de sua face tal qual ela quebrara sua
superfície tingida como uma Afrodite morta-viva, pela fraturas expostas
de suas coxas impactadas contra os suportes do freio de mã o, e sobretudo
pelas feridas em suas genitá lias, o ú tero dela perfurado pelo bico
herá ldico da marca do produtor, o sêmen dele despejado através do sinais
luminosos que registraram para sempre a ú ltima temperatura e o nível
pleno de gasolina da má quina11.
11
BALLARD, James; Crash, Londres; Fourth Estate, 2009, p. 2
Este é o trecho de um romance intitulado Crash, de James Ballard. Creio
que a maioria de vocês deve conhecer esta histó ria de sua versã o
cinematográ fica, filmada por David Cronenberg nos anos noventa. Como vocês
verã o, nosso curso será atravessado pela aná lise de textos que nã o sã o nem
explicitamente clínicos nem explicitamente ligado à s dinâ micas concretas de
lutas sociais vinculadas a questõ es de sexo. Eu procurei privilegiar textos que
levam a literatura para uma espécie de erotismo do limite. No caso desse texto,
de um erotismo que se dá entre sujeitos e má quinas em decomposiçã o.
Eu gostaria de insistir nesse ponto por acreditar que há algo de decisivo
na experiência do sexual que se dá nessas formas de descriçõ es libidinais de
acidentes que se desenrola nesse espaço singular que é o espaço literá rio. Algo
que tanto a clínica quanto as dimensõ es das lutas sociais nã o poderiam esquecer,
pois é algo que as habita como um horizonte fundamental. Há certa experiência
que se dá no campo do sexual e que coloca questõ es que aparecem inicialmente
como sofrimento psíquico e sofrimento social para acabarem por serem
acolhidas em um esforço de decomposiçã o de mundos que, entre tantas outras
figuras possíveis, acabou por chegar a nó s como a experiência de uma colisã o de
carros.
Eu gostaria de discutir isso partindo de uma literatura que fala de sexo,
mas que nã o pode ser descrita como eró tica, pois nã o fala de uma “ars erotica”,
nã o fala de prá ticas e disposiçõ es que podem ser integradas à vida na sua
procura em cultivar e criar prazeres. Ela fala de sexo como se estivesse diante de
algo insubmisso aos có digos do erotismo, mas também avesso ao regime de
segurança da pornografia, porque a pornografia é uma forma de segurança, a
segurança de que o gozo estará totalmente integrado à imagens que saberíamos
como manipular, que poderíamos classificar em uma miríade de lugares
ordenados, com seus acrô nimos que muitas vezes mais parecem siglas de
empresas e megacorporaçõ es (BDSM, MILF, BBW, AMWF, BBC, CBT, CFMN,
CMNF, DAP, FFFM etc.).
Essa escolha se justifica porque creio que tal literatura explicita algo que
pulsa como um dos motores da clínica e das lutas sociais capazes de operar
transformaçõ es no campo do sexual. Mas que pulsa muitas vezes como um motor
mudo e a respeito do qual talvez devamos recuperar seu som específico, suas
palavras possíveis. Por isso, esse curso foi composto através dos deslocamentos
entre os campos da clínica, das lutas sociais e das artes.
Voltemos entã o ao texto com o qual iniciei. Notemos o ritmo da descriçã o,
sem pausas, uma ú nica frase ocupando todo o pará grafo. Como se fosse questã o
de criar um fluxo contínuo de imagens que passam dos corpos mortos ao carro
reduzido à condiçã o de ferragem. Como se fosse questã o de um tempo parado
pró prio à s colisõ es, essas mesmas colisõ es que parecem paralisar os fluxos,
quebrar os movimentos e produzir uma nova forma, construída a partir de
feridas e impactos. Percebamos essa escrita que procura fazer do acidente
alguma forma possível de encontro entre má quina e humano, entre técnica e
pulsã o. Nã o mais o encontro da má quina como extensã o das habilidades do
humanos, como promessa iluminista de desenvolvimento e progresso técnico
através do fortalecimento da capacidade humana em intervir em um mundo
desencantado a partir das exigências da produçã o. O que temos é a “colisã o”, o
crash que é o crash do choque entre carros, mas é também o crash da bolsa de
valores e do colapso da economia.
Mas tentemos levar em conta que crash é exatamente este e porque esse
crash é uma forma possível de abertura. Em um texto para a revista
automobilística Drive (Autopia, 1971), Ballard afirma que a imagem
fundamental do século XX nã o é o homem na Lua ou Churchill fazendo o V de
vitó ria apó s o fim da Segunda Guerra, mas “um homem em um carro motorizado,
dirigindo em uma auto-estrada de concreto para algum destino desconhecido” 12.
A auto-estrada como a pura expressã o do século XX, com toda sua velocidade e
violência. O que nã o poderia ser diferente, já que se trata de compreender que o
ponto fundamental de uma sociedade é dado pela maneira com que ela organiza
os fluxos e movimentos, a maneira com que ela opera a circulaçã o. Ou seja, mais
importante do que saber o que sociedades trocam, é saber como elas trocam, em
que velocidade, em qual ritmo e intensidade. E o ritmo automotivo é o ritmo da
fricçã o e da velocidade, da aproximaçã o dos pontos no espaço através de um
fluxo aparentemente desimpedido que, em vá rios pontos, produz colisõ es.
Dessa forma, através do automó vel, Ballard forneceu uma bela metá fora
de uma sociedade fascinada pelo universo da circulaçã o. Tal como os
automó veis, as coisas no interior da vida social, os objetos de nosso desejo, as
pessoas que encontramos e com as quais transamos circulam de maneira cada
vez mais rá pida até se chocarem. Eles vã o se equivalendo e criando uma estranha
zona de indiferença, de des-identidade, até que o choque aparece com a força das
crises redentoras. Como se o choque fosse a ú nica coisa capaz de quebrar a
indiferença da circulaçã o. Eu gostaria de mostrar, nesse curso, como tais
choques, presentes em vá rios regimes de discursos sociais, sempre foram uma
das mais astutas formas de luta contra uma forma fascista de vida. Essa mesma
forma que nos assombra atualmente.

12
Idem, p. 245

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