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FRANCA CASAMENTO . (.-) Nao obstante, as condigées do casamento nao implicavam a satisfagéo da amizade e ainda menos do desejo. Havia tantos imperatives a respeitar para se fazer um bom casamento, que amizade ¢ ternura nio intervinham, por assim dizer, na escolha do cénjuge. Quase sempre ausente no dia do contrato, nao se podia esperar a aparicio do amor senao 20 sabor do acaso em conseqiiéncia dos hébitos conjugais. Entre as regras que condicionam o bom casamento figura, ‘em primeiro lugar, a da homogamia, que determina a escolha de alguém do mesmo nivel social. © dote nfo tem menos valor do que esse imperativo. Impossivel para uma moca casar-se sem 0 precioso peciilio. Nada mais elogiiente a esse respeito que o texto célebre, Les caquets de Vaccouckée, que xelata a conversa de trés comadres no reinado de Lufs XIII: uma dama de posicéo, mulher de um financista, sua criada de quarto € outra empregada. Ougamo-las, gueixam-se todas da inflagio do montante de seus respectivos dotes. A senhora: “Julguei que nés (as altas finangas) pagarfa- mos por esses casamentos (com jovens nobres) uns 50.000 ou {60.000 escudos. Mas agora, que um dos nossos confrades ca- sou sua filha com um conde com um dote de 500.000 bras. . toda a nobreza quer a mesma quantia... E. isso nos abala muito, vejo que para casar uma filha, doravante, sera preciso que meu matido continue no posto dois ou trés anos além do que pretendia.”” Sua ctiada de quarto respondehe com humor: “Meu pai, ptocurador, que tem recursos bastante setisfatérios, casou as primeiras filhas com 2.000 escudos, e encontrou bons preten- dentes. Agora, mesmo que oferecesse 12.000 libras em dinheiro, 47 nfo conseguitia encontrar um partido para mim... Foi isso que levou minha mie a me preparar para servir como criada, € tet a supetintendéncia do penico de mijar...”, Intervém entdo a outra empregada, que é sem diivida entre as trés a mais digna de pena: “Antigamente, depois de servir oito ou nove anos, ¢ ter economizado 100 escudos em dinheiro, encon- trdvamos um bom ‘sargento para casar, ou um comerciante merceeiro. Hoje, com esse dinheiro, nio conseguimos senio um cocheito ou mogo de estrebaria, que nos faz trés ou quatro filhos em seguida, e depois, no podendo sustentélos, somos obrigadas a trabalhar como criadas novamente.” Sem dote, no restava mesmo A mais doce € bela moga outra alternativa sen permanecer sob 0 teto patemo, set ctiada em casa alheia ox mofar num convento. ‘A-esses imperativos acrescentavam-se outros costumes que no facilitavam a escolha do cOnjuge. Entre eles, 08 direitos ¢ deveres do primogénito,” herdeiro de toda a fortuna paterna. Para no ter de amputar os bens familiares, 0 pai desejava casar seu primogénito com uma moga que trouxesse um dote suficiente para lhe permitir dotar por sua vez as préptias filhas Era proibido ao mais velho, portanto, desposar uma pobretona. Quanto 20s filhos mais novos, que nfo herdavam, s6 Ihes res- tava cagat uma herdeira, Se por acaso a sorte Ihes sorria, mos- travam se indiferentes quanto ao resto: beleza, inteligéncia ou encanto da parceira Mas podemos dizer, de modo mais geral, que a atragio fisica nfo sé nfo constitula um motivo de casamento, como era quase temida, Estudando os provérbios ¢ cangées populates da época, Flandrin énumera os diferentes argumentos contra a beleza da parceira. Em primeiro lugar, nao é duradoura (“Da bela rosa ficam apenas os espinhos”), em segundo, de nada serve (“Beleza nfo poe mesa”), finalmente, s6 provoca inimi- zades (“Quem tem mulher bonita vive numa guerra”). % Flandrin, Les amours paysannes, p. 63 69. Esse costume era ainda muito comum no Béarn, no século XIX, 48 Moral: para fazer um bom casamento, era preciso encon- ‘rar uma noiva que tivesse uma idade adequada do preten- dente, um bom dote segundo seu nivel social, e que fosse vir tuosa. Quanto mais se descia na escala social, mais a aptidao para o trabalho se tornava necesséria. Se todos esses critérios estivesse satisfeitos, passava-se imediatamente da assinatura do contrato a0 casamento. Nao havia necessidade de noivados pro- Tongados.” Casado(a) com uma) desconhecido(a) a quem jamais se dirigira a palavra até algumas horas antes, imagina-se facil- mente que amizade se podia ter por essa pessoa. Unidos assim durante séculos, nossos ancestrais certamente ignotavam muitas vezes tudo sobre o amor no dia de set casemento.” Romeu € Julieta esto necessariamente destinados a mor- rer, pois nio se podiam perdoar os germes da desordem. Cer- tamente nada proibia que 0 amor hascesse entre esposos, com © passar dos meses ¢ anos. Mas nada também predispunha a isso. A prova: a atitude muito difundida de auséncia de softi- ‘mento quando da morte do cénjuge. Isso € mais evidente entre ©s camponeses ¢ a gente humilde do que entre as pessoas das classes supetiores, mais sensiveis as conveniéncias sociais ¢ 4 moda. E, Shorter Jembrou muito bem a indiferenga dos meios pobres a essa situacio, e cita numerosos testemunhos, mos- trando que 0 mesmo camponés disposto a cobrit de ouro o veterindtio que lhe salvasse a vaca, hesitava, por vezes até 0 ‘iltimo momento, em pagar o prego da visita do médico para atender sua esposa agonizante no leito. Em fins do século XIX, Zola nio descteve outra coisa em seu romance A terra, Nume. ros0s ditados € provérbios ilustram esse reduzido apego & vida 0 noivado podia durar alguns dias, por vezes algumes horas, % Flandrin. pensa que os trabalhadores menos sujeitos aos impera- tivos do dote tinham maior oportunidade de fazer um casamento por amor. Nao tendo quaisquer bens, no esperavam mais nada da futura ‘mulher, MNoaissance de la famille moderne, Pais, Le Seuil, 1977, 49 humana e, em particular, & vida do cénjuge: “Morte da mulher ¢ vida do cavalo, fazem rico o homem”, ou entio: “Luto da morta dura até a porta”, ou ainda: “O homem tem dois belos dias na vida: quando se casa ¢ quando enterra a mulher”. Pela azo simples de que, com uma nova esposa, recebia-se um novo dote. As mulheres, por sua vez, nfo ficavam mais abeladas com a morte do cénjuge. Com 0 corpo ainda quente em casa, © vitive ou vitiva j4 pensavam em novo casamento. Flandrin® registrou essa rapidez dos novos casamentos em toda a Franca, nos séculos XVII e XVIII. As estatisticas que apresenta pro- vam a secura afetiva que reinava entio nas relagdes conjugais. Naquela época, contavam-se, segundo as regides, entre 45,3% € 90% de novos casamentos de vitvos antes de decorride tum ano de viuvez, Se comparamos esses percentuais com 0 telativo a 1950, ou seja, 15% de novos casamentos nas mes- mas condigSes, temos a medida da transformacao radical das mentalidades e das atitudes para com a vida conjugal. Tudo isso, nao significa, porém, que ninguém sofresse com a morte do cénjuge, mas sim que a separa¢ao provocada pela morte nio transtornava os espititos como hoje. Em parte, sem diivida, porque a f€ religiosa era maior € a morte estava mais préxima da vida, mas em grande parte também porque 0 Bnjuge nao fora escolhido com 0 coracio Seré preciso esperar o século XIX para que se modifique essa atitude para com a morte do cénjuge. Tornar-se-é entio decente chorar, as légrimas simbolizando 0 amor pelo morto. Nesse intervalo de tempo, ter-se-4 pasado do casamento de conveniéncia para 0 casamento de amor. De tudo isso, atentemos para a auséncia do amor como valor familiar ¢ social no perfodo de nossa histéria que antecede a metade do século XVITI. Nao se trata, porém, de negar a existéncia do amor antes de determinada época, 0 que seria absutdo. Mas é preciso admitir que esse sentimento no tinha % Familles..., p. 115, 50 4 posigfo nem a importancia que hoje Ihe so conferidas. Pos- sufa mesmo uma dupla conotagio negativa, De um lado, nossos antepassados tinham uma aguda consciéncia da contingéncia do amor € se recusavam a construir qualquer coisa sobre uma base to frdgil. Por outzo lado, associavam 0 amor mais A idéia de passividade (perda da razao), de enfraquecimento e efemeri- dade do que a idéia, mais atual, de compreensio do outro Para nés, nio hé amor sento no poder de identificacéo com outro, que nos permite sofrer ou ser feliz com cle. Temos, Pottanto, uma concepsio mais ativa do amor, que deixa de lado © aspecto debilitante © contingente revelado no passado. No fundo de més mesmos, permanecemos convencidos de que quando se ama, & pata toda a vida. Ao contritio, na época de que nos ocupamos, a imagem negativa do amor impede que ele constitua priotitariamente 0 lago que une os membros da familia, O interesse ¢ a sacrossanta autoridade do pai e do marido relegam a segundo plano o sentimento que hoje apre- ciamos. Em lugar da ternura, é 0 medo que domina no amago de todas as relagdes familiares. A menor desobediéncia filial, © pai, ou aquele que o substitui, recorre ao agoite. Luis XIII,” como sabemos, nao foi menos espancado do que o filho do severo camponés Pierre Rétif.* Durante muito tempo, a esposa faltosa foi passivel da mesma sancio. E certo que tal costume foi progressivamente banido nas classes superiores, chegando a parecer cada vez mais bérbaro no século XVIT. Mas por muito tempo ainda a prética foi comum nas classes populares e mes- mo entre os burgueses, a aereditarmos em certas gravuras do inicio do século XVII. Até 0 século XIX, e por diferentes motives, a clissica surra era corrente no campo, mesmo que, % Sentimento préximo da simpatia grega "Ch, Le journal d’Héroard, preceptor de Lufs XIII. Ele observa ‘que o Delfim tinha pesadelos & noite quando sabia que seria espancado no dia seguiate. MCF Rétif de La Bretonne, La vie de mon pere, cap. 7 € 8 em teoria, a condicio da esposa fosse superior a do filho ¢ do servidor. E em tal clima que temos de situar a antiga atitude ma- terna. Violéncia e severidade eram 0 quinhao da esposa e do filho. A miie nao escapava a esses costumes. Antes, porém, de observar as atitudes maternas, ¢ para melhor compreendé-las, é preciso lembrar a condigéo da crianca © a imagem que dela fazia a sociedade como um todo. A CONDICAO DA CRIANCA ANTES DE 1760 Por que 1760? Pode suspreender a indicagio de uma data tio precisa para a modificagio das mentalidades. Como se de um ano para outro tudo se tivesse modificado. Nao foi esse © caso, ¢ Philippe Ariés mostrou que foi necessdria uma longa evolugfo para que o sentimento da inféncia realmente se arraigasse nas mentalidades. Estudando_muito_cuidadosa- mente a iconografia relacionada com o assunto, a pedagogia € os jogos infantis, Ariés c que, a partir do inicio do século XVII, os adultos modi e lhe concedem uma atencio nova, que nao Ihe 1 antes. Essa atengio dada a crianga, porém, no significa ainda due se Ihe reconheca um lugar tio privilegiado na familia que faca dela 0 seu centro. Aris teve 0 cuidado de observar que a familia do século XVII, embora diferente da medieval, ainda nio € 0 que ele chama de familia moderna,’ caracterizada pela ternura ¢ a inti- *B, Ariés, Lienfant et la vie familiale sous Ancien Régime, Patis, Le Seuil, 1973, p. 457. (Ed. brasileira: Hiztéria social da crianca e de familia, Rio de’ Janciro, Zabar, 1978.) 33 midade que ligam os pais aos filhos. No século XVII, a socie- dade monarquista ainda no reconheceu o reinado do Menino- Rei, centro do universo familiar. Ora, é esse reinado da crianga que comega a ser ruidosamente celebrado nas classes ascendentes do século XVIII, por volta dos anos 1760-1770. Data dessa época aparecimento de uma floracio de obras que concitam os pais a novos sentimentos particularmente a mie ao amor materno. F cetto que 0 médico parteiro Philippe Hecquet, desde 1708, Crousaz, em 1722, € outros, jé havia feito a lista dos deveres da boa mie. Mas nfo foram ouvidos pelos contemporéneos. Foi Rousseau, com a publicasio de Emile, em 1762, que cristalizou as novas idéias ¢ dew um verdadeiro impulso inicial a familia moderna, isto é, a familia fundada no amor materno. Veremos que depois do Emile, du- rante dois séculos, todos os pensadores que se ocupam da infancia retornam ao pensamento rousseauniano para levar cada vez mais longe as suas implicagdes. Antes daquela data, 2 ideologia familiar do século XVI, «em descengo nas classes dominantes, ainda sobrevivia nos demais estratos sociais. A acreditar nfo s6 na literatura, na filosofia € na teologia da época, mas também nas préticas educativas € nnas estatisticas de que hoje dispomos, constatamos que, na realidade, a crianca tem pouca importincia na familia, consti- tuindo muitas vezes para ela um verdadeiro transtorno, Na melhor das hipéteses, ela tem uma posigio insignificante. Na pior, amedronta A CRIANCAESTORVO, A imagem trégica da infancia, como a coneebiam te6logos, pedagogos e filésofos, nao era provavelmente a mais fixada pelo ovo em geral. Embora no devamos negligenciar a influéncia dos idestogos e dos intelectuais nas classes dominantes ¢ cultas, essa influéncia era claramente limitada nos outros meios sociais. Considerando-se os comportamentos reais de uns ¢ de outros, temos a impressio de que a crianga € considerada mais como um estorve, ou mesmo como uma desgraca, do que como 63 © mal ou pecado. Por motives diferentes © até opostes, a crianca, ¢ particularmente o lactente, parece constituir um fardo insuportével para o pai, a quem toma a mulher e, indiretamente, para a mie, Os euidedos, a atengio e a fadiga que um bebé representa ‘no Jar nem sempre parecem agradar aos pais. E. estes, em diver- 0s meios sociais, nfo tém éxito, segundo a expressio de Shorter, “no teste do sactificio”™, 0 mais claro simbolo do que enten- demos hoje por amor dos pais e, mais precisamente, por amor materno. Como muitos desses pais nfo podem — e também alguns, mais numerosos do que habitualmente se pensa, nfo querem — fazer 0 necessério sactificio econémico ou o de seu egoismo, nio foram poucos os que pretenderam se desembaracar desse fardo. Existia e ainda existe uma gama de solugdes para esse problema, que vai do abandono fisico a0 abandono moral da crianga, Do infanticidio a indiferenga. Entre os dois extremos, possibilidades diversas e bastardas, cujos critérios de adogio sto essencialmente econdmicos. Q primeito sinal da rejeigio do filho esté na recusa ma- terna isso sobretudo numa época em que esse gesto significava uma possibilidade muito maior de sobre- vivencia para a crianga, como veremos em detalhe. Essa recusa podia ter motivos diferentes, mas culminava numa mesma neces- sidade: 0 recurso a uma ama mercenéria, com a dupla possibili- dade, segundo os recursos financeiros, de instalé-la na residéncia da familia, ou de The mandar a crianga © hébito de contratar amas-deleite € muito antigo na Franca, jf que a abertura da primeira agéncia de amas, em Paris, data do século XIII. Sabemos também que naquela época © fenémeno se limitava quase exclusivamente as familias aristo- cxéticas. Fenémeno interessante, de que voltaremos a falar. Sabemos, finalmente, que 0 hibito de contratar_amas-dedeite. para os filhos generalizou-se no século XVIIT, quando chegou a ocorter uma escassez de amas Segundo aumerosos testemunhos, foi no século XVII que © uso de deixar a crianca na casa da ama-de-leite se generalizou enize a burguesia.” Foi a vez das mulheres dessa classe pensa- rem que tinham coisas melhores a fazer, ¢ o disseram, Um estudo de Jean Ganiage® sobre os lactentes patisienses confiados a amas-de-leite em Beauvaisis confirma esse fato. Mas € no século XVIII que o envio das eriangas para a casa_de amas se estende por todas as camadas da sociedade urbana, Dos mais pobres aos mais ricos, nas pequenas ou grandes cidades, a enirega dos filhos aos exclusivos cuidados de uma ama é um fendmeno generalizado. 7 Extrato do didvio da familia Froissard. Entrer dans le vie, p. 155. 2 Entrer dans la vie, p. 156-158. ®“Nouttissons parisiens en Beauvaisis”, in Hommage a Marcel Reinbard, p, 271-275: "Os primeiros felecimentos de lactentes confiados 8 amas, que podemos identifcar, remontam a cerca de 1660, mas, 15 ‘ou 20 anos antes, o aparecimento de sobrenomes incomuns nos registros de sepultamento trai a presenga de criangas estranhss na Paréquia.” 67 Sem diivida o filho constitui uma dificuldade consideravel para todas as mulheres que séo obrigadas a trabalhar para viver. Basta ler 0 estudo de Maurice Garden” sobre a cidade de Lyon para nos convencermos disso. Ele mostra que as mulheres de operdrios e artesdos, grandes fornecedores de crian- gas para as amas, nao tinham na verdade alternativa. Enos oficios em que a mulher esti diretamente associada ao trabalho do marido que Ihe é mais dificil conservar e criar os filhos. Assim ocorre com as mulheres dos operdrios da seda, cujas imensas dificuldades no século XVIII sao conhecidas. A mulher trabalha 20 lado do matido. Para que o trabalho seja um pouco rentével, ndo é possivel tolerar os atrasos consecutivos provo- cados pelos cuidados com os filhos. O filho desses trabalha- dores seré necessariamente excluido da familia, Compreende- mos entio por que encontramos nessa categotia sécio-ptofis- sional o maior mimero de criangas mortas em casa de uma ama. Assim também, nos oficios ligados & alimentacao, a mulher cuida tradicionalmente da padaria ou do agougue. Se a mae amamenta, 0 marido seré obrigado a contratar um empregado para ocupar o lugar vago na loja, Essa atitude revela um dado econémico nao desprezivel: custava menos caro a esses casais enviar o filho para ser criado por uma ama do que empregar uum trabalhador de pouca qualificagio. Isso prova que muitas amas recebiam um salitio miserdvel,* ¢ explica em grande parte a condigdo das criangas que Ihes eram confiadas Mais miseréveis ainda eram as mulheres dos chapeleitos © dos trabalhadores bragais em Lyon. Néo trabalhando com © marido, elas tinham pequenos oficios que praticavam em casa, ou em horétio parcial, como as fiandeiras de seda, as bordadeiras ou vendedoras de frutas ¢ legumes nos mercados. Nesses casais, os ganhos eram tio pequenos que os pais tinham interesse em conservar os filhos consigo, incapazes de pagar a uma ama, por mais barata que fosse. E isso que explica, segundo Garden, que nessas categorias sociais mais desfavore. cidas se registrasse © menor mimero de criangas mortas em casa de amas. Para os casais mais pobres da sociedade, o filho chega 4 ser uma ameaca & propria sobrevivéncia dos pais. Nao Ihes esta, portanto, outra escotha seno livraremse dele. Seja abandonando-o num orfanato, © que, como veremos, no The dé grandes possibilidades de sobrevivéncia, seja entregando-o ama menos exigente possivel,” o que também nao Ihe aumenta muito a probabilidade de viver; ou seja, finalmente por uma série de comportamentos mais ou menos tolerados, que levavam 4 crianga rapidamente para o cemitério. Donde a tentagio, para a ama pobre, de aceiter vitios bebés 80 mesmo tempo, © que coloca sinda mais em isco a vida de cade um deles. Ver também A. Chamoux, op. cit, p, 275. *Muitas vezes os pais, néo dando mais nenhum sinal de vida a ama, a ela abandonavam totalmente os filhos. 74 UM NOVO VALOR: O AMOR MATERNO E no iiltimo tergo do século XVIII gue se opera uma espécie de revolugio das mentalidades. A imagem da mae, de seu papel e de sua importancia, modifica-se radicalmente, ainda que, na pritica, os comportamentos tardassem a se alterar. ‘Apés 1760, abundam as publicacées que recomendam as mies cuidar pessoalmente dos filhos ¢ Ihes “ordenam” ama- menté-los. Elas imp6em, & mulher, a obrigagio de ser me antes de tudo, ¢ engendram 0 mito que continuaré bem vivo duzen- tos anos mais tarde: o do instinto materno, ou do amor espon- tineo de toda mie pelo filho. No fim do século XVIII, 0 amor materno parece wm con- ceito novo. Nao se ignora que esse sentimento existiu em todos (68 tempos, se no todo o tempo e em toda parte. Alis, evo- ca-se com prazer sua existéncia nos tempos antigos, ¢ nés mes- mos constatamos que o tedlogo J.L. Vives se queixava da exces- siva ternura das mics em meados do século XVI. Mas 0 que € novo, em relasio aos dois séculos precedentes, & a exalta- so do amor materno como um valor ao mesmo tempo natural € social, favorivel & espécie e & sociedade. Alguns, mais cinicos, verio nele, a longo prazo, um valor mercanti Tgualmente nova ¢ a associacéo das duas palavtas, “amor” ¢ “materno”, que significa nfo s6 a promogio do sentimento, como também a da mulher enquanto mae. Deslocando-se insen- sivelmente da autoridade para 0 amor, o foco ideol6gico ilumina cada vez mais a mae, em detrimento do pai, que entraré pro- gressivamente na obscuridade Se outrora insistiase tanto no valor da autoridade pater- nna, € que importava antes de tudo formar stiditos déceis para Sua Majestade. Nesse fim do século XVIII, o essencial, pare alguns, € menos educar siditos déceis do que pessoas, simples- mente: produzir seres humanos que serio a riqueza do Estado Para isso, é preciso impedir a qualquer prego a hemorragia hu- mana que catacteriza o Antigo Regime O novo imperative é portanto a sobrevivéncia das crian- gas. E essa nova preocupacao passa agora 2 frente da antiga, ado adestramento daquelas que restavam apds a eliminacao ddas mais fracas. As perdas passam a interessar 0 Estado, que procura salvar da morte as ctiangas. Assim, 0 importante jé no 6 tanto o segundo periodo da infaincia (depois do desmame), mas a primeira etapa da vida, que os pais se haviam habituado a negligenciar, e que era, néo obstante, 0 momento da maior mortalidade. Para operar esse salvamento, era preciso convencet as males ase aplicarem as tarefas esquecidas. Moralistas, administradores, médicos puseram-se em cam- po € expuseram seus argumentos mais sutis para persuadilas @ retomnar a melhores sentimentos ¢ a “dar novamente 0 scio”. Parte das mulheres foi sensivel essa nova exigéncia. Néo por- que obedecessem as motivagdes econdmicas € sociais dos ho- mens, mas porque um outro discurso, mais sedutor aos seus ouvidos, esbogava'se atrés desse primeiro, Era o discurso da felicidade e da igualdade que as atingia acima de tudo, Durante quase dois séculos, todos os ideslogos Ihes prometeram mun dos ¢ fundos se assumissem suas tarefas maternas: ‘Sede boas mies, ¢ sereis felizes ¢ respeitadas, Torai-vos indispensaveis na familia, ¢ obtereis o direito de cidadania.” ~ _Inconscientemente, algumas delas perceberam que a0 pro- duzir esse trabalho familiar necessério & sociedade, adquiriam uma importincia considervel, que a maioria delas jamais tive. 1a, Acreditaram nas promessas e julgaram conquistar 0 direito ao respeito dos homens, 0 reconhecimento de sua utilidade e de sua especificidade. Finalmente, uma tarefa necesséria e “no- bre”, que o homem nao podia, ou no queria, realizar. Dever que, ademais, devia ser a fonte da felicidade humana ~ — Contudo, por diferentes razdes, nem todas as mulheres fo- ram igualmente sensiveis a esses argumentos. Rousseau, embo- 1a tenha sido ouvide por um punhado delas, que néo eram sem influéncia, foi apenas o precursor de uma corrente de pensa- mento, Durante todo o século XIX ¢ até na Franca petainista, 68 ideélogos voltario incansavelmente a este ou aqucle aspecto da teoria rousseauniana da mae, Para que essa repeti¢ao moné- tona dos mesmos argumentos, se todos os efeitos desejados jé tivessem sido obtidos? Nao seria isso a prova de que nem todas as mulheres haviam sido definitivamente convencidas? Se mui- tas se submeteram alegremente aos novos valores, grande nit mero delas apenas simulatam acaté-los e puderam ficar em paz. Outras resistiram ¢ foram combatidas ‘Mas, embora a condigao da mulher no se tenha modifica- do notavelmente no século XVIII, nem mesmo com a Revolu- cio Francesa, a da esposa-mae progrediu, No final do século, © comportamento do marido para com a mulher parece modifi- carse na teoria ena pritica, nfo s6 nas classes abastadas, ‘como também entre os burgueses mais modestos. Hé duas ra- 2Ges principais para essa modificagio. Por um lado, a nova moda do casamento por amor, que transforma a esposa em companheira querida. Por outro, os homens responséveis que- em que as mulheres desempenhem um papel mais importante na familia, ¢ notadamente junto dos filhos. A Encyclopédie, como vimos, afirmava que o poder dito paterno é, na realidade, partilhado com a mie. Torna-se portanto cada vez mais dificil considerar a autoridade do marido sobre a esposa como 0 poder absoluto do soberano sobre o sidito, e tratar a propria mulher como outrora se tratava o filho. Opera-se, portanto, no século XVIII, uma transformasio dos costumes que, pela primeira vez, nio vem da aristocracia, mas da nova classe ascendente. Desde 0 inicio do século, as prescrigées da moral eclesidstica fazem-se 0 eco dessa mudanca Elas confirmam que, na vida cotidiana do casal, a mulher emancipou-se pouco a pouco e parcialmente da tutela do ma- tido. Flandrin observa a esse respeito que a subordinagio 20 marido explicitamente enfatizada no inicio do século XVII por Benedicti ¢ Toledo, nio 0 é mais no século XVIII no manual de Antoine Blanchard. Os provétbios ¢ canes populares mudam de tom e che- gam a inverter os temas tradicionais, Assim, jé nfo se reco- menda bater na mulher. A imagem do castigo infligido pelo marido j4 nao tem nenhuma acolhida, pelo menos entre os burgueses. Ao contrério, tal atitude € considerada um ato bér- baro, E preciso, como se diz agora, “ser 0 companheiro de sua mulher ¢ 0 dono de seu cavalo”. “A mulher no € mais identificada A serpente do Génesis, ou a uma criatura astuta e diabélica que € preciso por na linha. Ela se transforma numa pessoa dace e sensata, de quem se espeta comedimento e indulgéncia. Eva cede lugar, doce- mente, a Maria. A curiosa, a ambiciosa, a audaciosa metamor- “Toseia-se criatura modesta e ponderada, cujas ambigdes ‘no ultrapassam os limites do lar. A. transformacio dos costumes observa-se também no nivel do vocabulétio. No século XVIII, 0 amot-amizade parece compreender 0 carinho © mesmo uma certa busca do prazer. Isso s6 se explica se levamos em conta 0 aparecimento de uma nova concepgio do casamento. Em fins do século XVIII, 0 casamento concebido como uum atranjo de duas familias parece cada vez mais chocante, pois despreza os gostos inclinagées dos individuos. Semelhante casamento, que no leva em conta os sentimentos humanos, € compatado, diz Flandrin, a uma espécie de rapto. Imposta em nome de critérios sécio-econémicos, essa unido parece desafiar 0 duplo novo dircito: 0 diteito a felicidade ¢ a liber- dade individual. Nao chegariamos @ dizer que 0 combate das preciosas ao velho casamento fora ganho! Mas procura-se com maior empenho conciliar interesses e felicidade. Aparenta-se, mesmo, no atribuir demasiada importéncia as condigdes ma. teriais do casamento. Como em Le contrat de mariage de Balzac, tem-se o cuidado de discutir 0 essencial por meio de notérios interpostos. Madame Evangelista vende sua filha por uma quantia exotbitante porque 0 noivo, Paul de Maner. ville, esté apaixonado por ela. Todas as questies de interesse sero portanto solucionadas, pelo menos em aparéncia, em fungio dos sentimentos em jogo. 10 Nesse novo casamento, a liberdade de escolha do cénjuge pertence tanto ao rapaz como & mosa. Jé em 1749, Voltaire escreve uma pega, Nanine, em que nio receia proclamar a liberdade de sua hetoina nessa questo. Ele Ihe coloca na boca as seguintes palavras: “Minha mie julgoume capaz de penser por mim mesma e de escolher por mim mesma um esposo.”* E no preficio do Casamento de Figaro, Beaumar- chais demuncia o velho casamento tradicional, “onde os grandes casavam seus filhos aos doze anos e sacrificavam a natureza, a decéncia e 0 gosto as mais sérdidas convengées... ninguém pensava na felicidade dos noivos”, ~ Para as mulheres, esse novo direito a0 amor abalou o autoritarismo que 2s mantinha durante toda a vida na sub- missfo. Pois, concedendo-lhes esse simples direito, reconhecia se a necessidade de educéslas de tal modo que se tornassem mais aptas a melhor julgar. Torna-se preciso, agora, tomar a moga capaz de “pensar por si mesma”. Para tanto, é neces. sério, dizia Voltaire, tiré-la do convento, que ele considerava um verdadeiro local de embrutecimento, que dava a moa vontade de deixélo no importava com quem: “Vés s6 sais de vossa prisio para serdes prometida a um desconhecido que vem espiar pela grade: seja ele quem for, vés 0 considerais como um libertador, e, fosse ele um macaco, vés vos consi- derarieis demasiado feliz: a ele vos entregais sem amor, E um negécio que se faz sem a vossa participacio, e do qual as duas partes logo depois se arrependem.”” Em conseqiiéncia, aconselha-se cada vez mais a educacio das filhas em casa, em condigées bastante satisfatérias, para que no tenham vontade de escapar a sua situaglo a qualquer prego, Esse direito a0 amor fundado na liberdade recfproca foi a melhor introdugio possivel a igualdade entre os cénjuges. Quando A nova Heloisa proclama solenemente que 0 casa- mento € a unigo de dois seres que se escolheram ¢ se uniram livremente, como poderia 0 novo esposo continuar a tratar @ esposa como uma inferior? ‘A liberdade expressa na escolha do outro deve logica- mente sobreviver na vide em comum. A igualdade inicial néo pode deixar de dar outra coloracéo a vida conjugal. Se uma mulher teve bastante discernimento para escolher seu com: panheito, poderse-ia traté-la em seguida como se nio tivesse nenhum? Fundado na liberdade, © novo casamento seré o lugar ptivilegiado da felicidade, da alegria e da terura. Seu ponto culminante: a procriagéo. No verbete que a Encyclopédie de- dica a Locke, lé-se: “Desejo que 0 pai ¢ a mie sejam sadios, que estejam contentes, que tenham serenidade, e que 0 mo. mento em que se disponham a dar a vida a um filho seja aqnele em que se sintam mais satisfeitos com a sua propria vida.” Nao temos aqui o mais nitido elogio do amor tomado fem sua totalidade? Pois tratase no apenas de uma home- rnagem a ternura, mas também a0 desejo ¢ & sensualidade, aos quais se outorga finalmente direito de cidadania na famflia 1 A procriago & uma das doguras do casamento: ¢ que seria mais natural que amar em seguida os seus frutos? Quando 6 esposos se escolheram livremente, o amor que sentem um pelo outro se concretizard naturalmente em sua prole, Os pais amario mais os filhos © as mies, dizem, retornatio livre ¢ espontaneamente a eles. Pelo menos, € essa a nova ideologia de que Rousseau foi um dos melhores representantes Desse ponto de vista, exaltam-se interminavelmente as doguras da maternidade, que deixa de ser um dever imposto para se converter na atividade mais invejével e mais doce que uma mulher possa esperar. Afirma-se, como fato incontestavel, que a nova mie amamentaré o filho pelo seu proprio prazer € que receberé como prenda uma ternura infinita, Progressi- vamente, os pais se considerario cada vez mais responsdveis pela felicidade e a infelicidade dos filhos. Essa nova responsa- bilidade parental, que j4 encontravamos entre os reformadores catélicos ¢ protestantes do século XVII, nao cessaré de se acentuar ao longo de todo 0 século XIX. No século XX, ela alcangard seu apogeu gracas & teoria psicanalitica, Podemos dizer desde jf que se o século XVIII a confirmou, acentuando a responsabilidade da mie, 0 século XX transformou o conceito de responsabilidade materna no de culpa materna “"E, Shorter retratou muito bem a nova familia ao falar de uma “unidade sentimental” ou de um “ninho afetivo” que cengloba marido, esposa ¢ filhos. Eo nascimento da moderna familia nuclear que constr6i pouco a pouco o muro de sua vida privada para se proteger contra toda intrusio possivel da grande sociedade: “O Amor isola 0 casal da coletividade e do controle (que esta exercia outrora. O amor materno esté na origem da ctiagio do ninho afetivo em cujo interior a familia vem se refugiar.”™* A familia se fecha e se volta para si mesma. E a hora da intimidade, das pequenas residéncias particulares confortéveis de pecas independentes com entradas particulares, mais ade- quadas a vida intima, Ao abrigo dos importunos, pais ¢ filhos partilham a mesma sala de refeigdes e se mantém juntos diante da lareira doméstica E essa pelo menos a imagem da familia proporcionada pela literatura ea pintura do fim do século. Moreau le Jeune, Chardin, Vernet e outros s2 comprazem em representar os interiores e 0s atores desses lares unidos. Por toda parte se louva a doce intimidade que ali zeina e anuncia-se que a revo- ucao familiar esté consumada. Testemunha, 0 doutor Louis ih Lepecq de la Cloture fala de sua cidadezinha de Elbeuf em 1770: “Vé-se reinar ali a unido das familias ¢ essa verdadeira solicitude que faz partilhar igualmente os sofrimentos como os prazeres do lar, fidelidade entre esposos, ternuras dos pais, respeito filial ¢ intimidade doméstica.”* Testemunhas sio tam- bém os prefeitos napoleénicos citados por Shorter. O prefeito do Indre, Dalphonse, declara que em seu departamento “o himeneu nao é um jugo; é uma doce troca de previdéncia, de ternura...”, Na Savéia, Verneilh afirma que em sua terta ““o esposo aproximou-se da esposa, a mie de seus filhos; todos sentiram a necessidade de recorrer a0 apoio miituo e de se proporcionar consolos... dedicando-se a cuidados domésticos que outrora teriam desdenhado” * Na realidade, esse quadro idilico da nova familia nos pa- rece muito otimista. Apesar dos pintores e das comovidas mani- festagdes literdtias, pais e mies apenas comecam a se interessar — que diré se sacrificar — pelos filhos. A longa batalha em favor da amamentagio materna mal comegara, ¢ seus adeptos ainda estio Jonge de ganhar a partida. Eles desdobram seus argumentos, ¢ as mulheres, que fazem ares de ouviclos com intetesse, relutam em ser essas maes admindveis que lhes supli- ccam que sejam. A filosofia da felicidede e da igualdade desempenhava por certo um papel nada desprezivel na evolugio dos espititos, mas 86 atingia um ptblico limitado e parecia considerar assegurado © que ainda estava por ser feito. Seu discurso era mais sedutor na medida em que prometia e sugeria sem jamais forgat, Ora, a sobrevivéncia das criangas tornara-se aos olhos da classe diri- gente um problema prioritério que os discursos mais ou menos lenitivos sobre a felicidade ¢ 0 amor néo bastavam para re- solver. O INTERESSE DA MATERNIDADE jo foi certamente por acaso que as primeiras mulheres a escutar os discursos masculinos sobre a maternidade foram bburguesas. Nem pobre, nem particularmente rica ou brilhante, a mulher das classes médias viu nessa nova fungio a oportuni- dade de uma promogio ¢ de uma emancipacio que a aristo crata néo buscava Ao aceitar incumbir-se da educacio dos filhos, a burguesa melhorava sua posi¢zo pessoal, ¢ isso de duas maneiras. Ao poder das chaves, que detinha hé muito tempo (poder sobre os bens materiais da familia), acrescentava o poder sobre os seres hhumanos que so os filhos. Tornavase, em conseqiéncia, 0 eixo da familia. Responstvel pela casa, por seus bens © suas almas, a mae é sagrada a “rainha do lar” Testemunham essa mudanga de mentalidade, que amplia © poderio materno em detrimento da autoridade paterna, as

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