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A vontade de poténcia e a naturalizacao da moral Clademir Luis Araldi Resumo: Procuramos mostrar neste artigo que a naturalizagao da moral em Nietzsche possui um vinculo forte com 0 coneeito e com os projetos da Vontade de poténcia. \ partir das interpretagies de W. Maller-Lauter e de M. Montinati, investigaremos de que modo essa naluralizagdo apoia-se numa versio “humanizada” de yontade, nos eseritos preparatérios e na obra Para além de bem e mal. Palayras-chave: naturalizagao ~ moral - vontade de poteneia - valor Nietzsche elaborou com determinagao 0 conceito e varios pro- jetos da Vontade de poléncia no mesmo perfodo da preparagao € publicacao da obra Para além de bem e mal (1885-1886). Procu- raremos mostrar que a vontade de poténcia passa a assumir nesse contexto um vinculo forte com a investigagao da moral. A diferenga da apresentagao em Assim falava Zaratustra, esse conceito € cs- tendido agora ao mundo inorganico, e, por fim, ao carater geral do mundo, a saber, 2 multiplicidade de forgas em perene antagonismo. E preciso, desse modo, confrontar a obra publicada com os frag- mentos péstumos de 1885 e 1886 para compreender a posigiio, 0 contexto de surgimento do conceito e do desenvolvimento do pro- jeto da Vontade de poténcia. * Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Rio Grande do Sul, Brasil. F clademir.araldi@ gmail.com. cadernos Nietzsche 30.2012 | 101 Araldi, ( Antes de nos atermos a esse momento da obra tardia de Niet- zsche, abordaremos brevemente os resultados da i interpretacao de Miiller-Lauter, a partir de seu confronto com Heidegger. Hei gger entende que “A vontade de poténcia” é a denominacao do “caréter fundamental do ente” em sua totalidade. Apesar de ad- milir em certa medida o cardter plural € perspectivista da vontade le- de poténcia, o filésofo da floresta negra entende que ela acarreta a absolutizagao da perspectiva humana, a saber, da subjetividade incondicional que poe valores no todo do mundo.! A vontade de po- téncia, nesse sentido, poderia ser vista como 0 critério (metafisico) nietzschiano para a naturalizagéio da moral. Mesmocontrapondo-se &compreensao metafisica heideggeriana da vontade de poténcia, Miiller-Lauter reafirma a fecundidade desse conceito, entendido como antagonismos de forgas, para compreender os principais temas do pensamento de Nietzsche: A medida que cle pergunta sobre a constituigao dos antagonismos “efetivos”, passa pela destruigao de convicgdes metaffsicas e por pre- tensées a validade légiea, para chegar & sua doutrina das vontades de poténcia, que se referem a si mesmas no jogo de foreas. A medida que persegue a procedéneia das oposigdes de valores que esto vivas em seu século, é compelido a elaborar suas representagées filosofico-histe- ricas, orientadas, de preferéncia, ao fendmeno da moral. A medida que questiona as vontades de poténcia, que desmoronam em si mesmas na luta das contradigdes, abre-se para ele o problema do niilismo. (...) A medida que tenta pensar 0 homem que poderia sobrepujar os antago- nismos, constréi a figura do além-do-homen. TCE HEIDE bem p. 22 ss. 2MULLER-LAUTER, W. Nictzsche. Sua filosofia dos antagonismos c os antagonismos de sua filosofia. Trad. de GER, M. Nieusche. Berlin: Ganther Neske Verlag, 1961, v1, p. 1-3. CF. tame 102 | cadernos Nietesche 30, 2012 A vontade de poténcia ¢ a naturalizagio da. moral Apoiado na edigao critica das obras de Nietzsche, organizada por Colli e Montinari, W. Miiller-Lauter critica 0 uso da “Vontade de poléncia” como obra principal de Nietzsche. Esses projetos, fragmentos ¢ textos preparatorios de Nietzsche nao constituem um livro, mas devem ser investigados criticamente no contexto cro- nolégico de sua elaborag%o, em comparag4o com as obras filosé- ficas publicadas em vida pelo filésofo, como Para além de bem e male A genealogia da moral.’ Confrontando-se com Heidegger, W. Miiller-Lauter esforga-se para afaslar a suspeila de que a vonlade de poténcia nietzschiana seria um principio metafisico ou um fun damento tltimo. Decisivo é 0 cardter plural da vontade de potén- cia, tanto no aspecto quantilalivo assim como no qualitalivo. Ela possui sempre um carater relacional, a saber, expressa-se sempre no confronto, no jogo ou no arranjo com outras vontades de po- téncia. Se hd somente processos de agregacdo e desagregagaio das vontades de poténcia, 6 se pode falar de uma unidade enquanto organizagao dos impulsos plurais em incessante luta por poténcia.* Apesar de nao reconhecer Nietzsche como autor dessa obra, Miil- ler-Lauter coloca a vontade de poténcia no centro da filosofia de Nietzsche (como filosofia dos antagonismos), a partir da qual a mo- ral, a natureza, a histéria, a posigao ¢ a desvalorizagao dos valores podem ser interpretados. F nesse sentido que podemos vincular os apontamentos e projetos da “Vontade de poténcia” com a tentativa de naturalizagaio da moral. cr apontou varias falsifieagies f rster-Nietasche, na edigao da “Vontade de pot LAUTER, W., op. cit, p. 63 ss. 4.Cf, MULLER-LAUTE (2000), Matt q@es de Nietzsche, desde a obra de 1971. E: téneia como unidade metafisica, a jas por Peter Gast e pela irma de Nietzsche, de 1906. Cf. MOLI . p. 69-73. No volume dedicado a He iaou a cent ager © Ni ule da vontade de poténeia em suas texpretagao da vontade de po. c plural da mesma iria muito na mera critica a Heidegger. Cf, MOLLER-LAUTER, W, Heidegger und Nietzsche. .e- Interpretationen III. Berlim: de Gruyter, 2000, p. VIII s. allém de Nietzss cadernos Nietzsche 30.2012 | 103 Araldi, C.1L. A andlise de Mazzino Montinari acerca da conexao entre a ela- boracdio de Para além de bem e mal € a intengao de Nietzsche, de escrever um livro como titulo Der Wille zur Macht (A vontade de po- téncia) também é de grande valia para a elucidacao desse vinculo: Nietzsche anunciou a Vontade de poténcia na quarla pagina do vo- lume de Para além de bem e mal. Prelidio a uma filosofia do futuro, publicado no verao de 1886. Somente desde entao pode-se falar legiti- mamente da intengao de publicar um livro em quatro partes com o titulo Der Wille zur Macht. Versuch einer Umwerthung aller Werthe (A vontade de poténcia. Ensaio de uma transvaloragao de todos os valores)’. Do ponto de vista filolégico, Montinari afirmou a centralidade do pensamento da vontade de poténcia na obra tardia de Nietzs- che. Ele distingue 0 conceito do projeto literario, com o intuito de simplificar a apresentacdo, mas ressalta que em ambos est4 pre- sente uma atmosfera de experimentago. Desde a época de Assim Salava Zaratusira, o filésofo solitario ensaia compreender a vontade de poténcia nas fungées organicas especializadas, estendendo-a ao mundo inorganico. Assim, antes de mais nada, o filésofo en- saiou compreender 0 mundo com esse nove conceilo; os projetos dos anos seguintes sao decorréncia desses ensaios de pensamento. No projeto de 1886, a questao dos valores ocupa um lugar central. A tansvalo. dos valores passa a ser o subcapftulo da maioria dos projetos posteriores a esta obra’. E nossa intengao investigar a relevancia filosdfica desse projeto e conceito para 0 pensamento experimental da naturalizagao da moral’. Esse é 0 projeto do livro em quatro partes, datado do verao de 1886: SCE, MONTINARI, M. Friedrich Nietzsche 109. 61d,, ibid, p. 100-10: 7A expresso “Die Vernatiirlichung der Moral” (“A naturalizagio da moral”) aparece num plano de 1887, enquanto tentativa de substituir valores morais por valores naturalistas. Cf. Nachlass/FP 1887, 98}, KSA 12.342, c Kinfidhrung. Berlim: de Gruyter, 1991, p. 104 | cadernos Nietzsche 30, 2012 A vontade de poténcia ¢ a naturalizagio da. moral A vontade de poténcia. Ensaio de uma transvaloragaio de todos os valores. Em quatro livros. Livro I: O perigo dos perigos (Apresentagao do Niilismo) (como a conse- quéncia necessaria das estimativas de valor até agora) Livro II: Critica dos valores (da légica ete.) Livro IIL: O problema do legislador (incluida ali a histéria da solidao) Como devem ser constitufdos os homens que avaliam de modo inverso? Homens, que possuam todas as propricdades da alma moderna, mas que sejam fortes o bastante para transmulé-las em satide. Livro IV: O martelo Meio para sua tarefa Sils-Maria, verao de 1886 (Nachlass/FP 1886, 2[100], KSA 12.109). Podemos encontrar em Para além de bem e mal uma apresen- tagdo do niilismo, como critica da modernidade, de seus valores morais, politicos € cullurais. Além disso, encontramos a tarefa dos novos fildsofos, dos legisladores do futuro, a saber, a tarefa desco- munal da transvaloragao dos valores. O pardgrafo 203, do final do capftulo Contribuigdo a histéria natural da moral concentra bem o perigo do niilismo (da “degeneragao global do homem”), assim como a nova tarefa dos homens-legisladores do futuro. O livro Para além de bem e mal pode ser considerado como um ‘preltidio’ a filosofia afirmadora-negadora do futuro, a saber, da vontade de poténcia enquanto base para a naturalizagao da moral e, por fim, para a transvaloragao dos valores? Investigaremos alé que ponto nesta obra (e nos escritos preparatérios a ela) o experimento de naturalizagao da moral depende da compreensao da vontade de poténcia, tanto em seus aspectos fisiopsicolégicos quanto cos- molégicos. Apesar da importancia desse projeto de naturalizacao, cadernos Nietzsche 30,2012 | 105 Araldi, ( autor dedica de modo mais dircto ¢ enfatico o capitulo V para a investigagao histérico-natural. O capitulo IX, “O que é nobre?”. desenvolve ainda alguns aspectos dessa pesquisa, que acabam abrindo espaco para a filosofia afirmativa de Dioniso. Como o proprio Nietzsche reconhece, Para além de bem e mal é uma crilica abarcante da modernidade®. Seguindo a mesma estru- tura formal de Humano, demasiado humano, 0 filésofo solitario vin- cula no primeiro capitulo a erftica da metaffsica & critica da moral, que adquire uma maior amplitude, ao propor um questionamento radical da moral e da vontade de verdade a ela subjacente. Para levar a cabo o que seria a tinica critica radical da moralidade, Niet- zsche necessila primeiro oferecer argumentos consislenles para mostrar que a moral, em sua histéria € tipos ba: figuragao singular da constitui¢ao volitiva do mundo. Ele critica, nesse sentido, a pretensao dos estdicos de viver “conforme a natu- reza” (JGB/BM 9, KSA 5.22) por suas pretensé 08, € uma con- morais ocultas. Assim como todo filésofo, também o estéico é parte da natureza; no fundo, so os impulsos de sua natureza (a vontade de poténcia mais “espiritual”) que o move a tiranizar, ou melhor, a impor uma interpretagdo moral ao mundo da natureza. Entretanto, o alvo principal da critica é 0 simplismo de Scho- penhauer na formulacao da esséncia una da vontade. Em contra- posigao a ela, Nietzsche aponta para a complexidade da “vontade”: em todo querer ha uma mulliplicidade de sensagdes e um pensa- mento que comanda. Nesse sentido, “a vontade nao é apenas um complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um afeto: aquele afeto do comando” (JGB/BM 19, KSA 5.32). A unidade relativa homem, ao querer, “comanda algo dentro de si que obedece”. O critico de Schopenhauer reduz todo querer a relagdes de mando e obedién- cla, num mundo constituido por vontades que agem sobre vonta- des. Para nosso texto, importa investigar o que Nietzsche pretende, CF. El UEH, Para além de bem e mal, 2. KS 106 | cadernos Nietesche 30, 2012 A vontade de poténcia ¢ a naturalizagio da. moral ao compreender a moral como “teoria das relagdes de dominagao sob as quais se origina 0 fendmeno ‘vida””. Nesse ensaio, é preciso abandonar 0 conceilo sintético de eu, para compreender o homem como dividuum, na medida em que ele é a parte que comanda e a parte que obedece. O corpo, “uma estrutura social de muitas almas”, ou seja, de muilas vontades, € 0 ponto de partida para a construgao desse projeto de naturalizacao da moral. QO passo se- guinte é compreender o mandar e o obedecer como 0 essencial de todo o querer, tanto no plano fisiopsicolégico ‘subjetive’ quanto no plano social; depois, 0 filésofo Nietzsche se arroga o direito de inserir o querer no ambito da moral. No inicio da obra, o erftico da metafis orientagao metodolégica na fisiologia. E da natureza de cada im- pulso querer dominar, de modo que cada ser vivo quer sobretudo “dar vazdo a sua forga” (JGB/BM 13, KSA 5.27). Ele parece jd estar ica buscou sua nova assegurado nesse ponto da argumentag4o, de que “a prépria vida € vontade de poténcia”. Ao aliar a psicologia a fisiologia no final do capitulo I, € reforgada a pretensao de dar conta dos problemas fun- damentais da filosofia do futuro. Essa fisiopsicologia, vista como morfologia e teoria da evolugao da vontade de poténcia” (IGB/BM 23, KSA 5.38) seria 0 caminho promissor para a naturalizagao da moral. Para além dos preconccitos morais, 0 fisiopsicélogo poderia agora compreender a natureza valorativa e dominadora dos impul- sos humanos. O pardgrafo 36 de Bem e mal expressa de forma breve um longo caminho de investigagao, em que a vontade de poténcia 6 estendida ao mundo inorganico, ou melhor, opera como impulso constitutivo de todo acontecer no mundo. I Essa pretensiosa extensao da vontade necessita de mais es- clarecimentos. Entendemos que € preciso antes reconstruir 0 con- texto complexo da elaboragao de JGB/BM, considerando os planos cadernos Nietzsche 30,2012 | 107 Araldi, ( iniciais da “Vontade de poténcia”, para compreender a ligagao da “histéria natural” da moral com a dindmica desse “apetite fundamental”. Um dos primeiros projetos da “Vontade de poténcia”, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade, é um ensaio de “uma nova inlerprelagao de todo acontecer” (Nachlass/FP 1885, 39[1], KSA 11.619). Fa tentativa de suprimir a oposigao entre aparéncia e re- alidade no mundo da vontade de poténcia, tal como é exposta num apontamento anterior: Aparéncia (Schein), como eu a entendo, € a realidade (Realitat) efe- tiva e Gniea das coisas, (...). Eu ndo coloco, portanto, “aparéncia” em oposigao a realidade que se contrapde a transformacao num “mundo-verdade” imaginério, Um nome determinado para esta realidade seria “a vontade “tealidade”, mas, ao contrrio, tomo a aparéncia como a de poténcia”, isto é, designada de dentro ¢ no de sua natureza ina- bareavel ¢ fluida de Proteu (Nachlass/FP 1885, 40[53], KSA 11.654). Nas anotacoes ¢ andlises seguintes, ¢ na obra Para além de bem e mal, Nietzsche consolida o pensamento de que visto de dentro, da perspectiva avaliadora humana, “o mundo € vontade de poténcia, ¢ nada além disso”. 0 fragmento péstumo de 1885 (Nachlass/FP 1885, 38[12], KSA 11.610), que foi de modo surpre- endente colocado como conclusao na edigao de 1906 de P. Gast & E. Forster-Nietzsche, figura no contexto inicial dos experimentos de interpretagaio do mundo como jogo de forgas, articulade com © elerno retorno do mesmo e com o dionisfaco criar e destruir a si mesmo. Mas, nas reflexdes posteriores, € abandonado esse viés poético. A pergunta, “o que é ‘o mundo” para mim?” Nietzsche nao busca mais nos momentos iniciais de seu grandioso projelo o cami- nho do dionisfaco ou do eterno retorno, mas busca uma formulagao teérica da vontade de poténcia, no ensaio de ver e interpretar 0 mundo “a partir de dentro”. Como ele chega a essa afirmagao? O plano de agosto-setembro de 1885 é elucidativo em relacao a isso: 108 | cadernos Nietesche 30, 2012 A vontade de poténcia ¢ a naturalizagio da. moral Nosso intelecto, nossa vontade, até mesmo nossas sensagées, depen- dem de nossas estimativas de valor: estas correspondem a nossos im- pulsos e suas condigdes de existéncia. Nossos impulsos sao redutfveis a rontade de poténcia A vontade de poténcia é 0 tiltimo Factum a que podemos chegar. (Nachlass/FP 1885, 40[61], KSA 11.661). A nova interpretagao visa a abarcar todo acontecer mundano. Antes de uma oposig4o, haveria uma transigdo entre 0 mundo inor- ganico eo mundo organico. Nesta interpretagao dinamica do mundo haveria apenas transmutagdes e especializagdes dessa vontade fundamental (Grundwille), que € sempre lensional, ao pressupor antagonismos, relacoes ¢ graus de poder. O autor de Bem e mal de- tém-se no acontecer interno, na qualidade volitiva interna de todos os eventos do mundo. No mundo inorgdnico reina “a grande sintese de forgas”; 0 organico seria a especializacao, a limitacao perspecti- vista dessa unidade poderosa’. Como é possivel, no entanto, afirmar que “todos os movimentos s&o signos de um acontecer interno”? O carater incondicional da vontade de poténcia nao residiria ape- nas nas formas de vida especializadas"’. mas em todo o mundo. Nao podemos ocultar aqui a dificuldade consideravel presente nos textos nietzschianos, a saber, de afirmar a partir de perspectivas psicolégicas ¢ fisiolégicas que o mundo é vontade de poténcia. E preciso, assim, questionar o que leva Niesche a atribuir um valor superior a certas perspectivas valorativas humanas. Se © mundo da vontade de poténcia nao possui nenhum valor in- Urfnseco, restaria a Nietzsche o ensaio de impor novas valoragdes humanas. Por sua limitagao perspectivista, 0 ser humano nao con- segue aprender o “fluxo absoluto”, a “verdade tiltima do fluxo das coisas”, ou seja, o fluxo do vir-a-ser". A vida humana, desse modo, 9 Gf. nesse sentido, Nachlass/FP 1[105}, KSA 12.36 ¢ Nachlass/FP 1124], KSA 12.40. 10. Como consta em Nachlass/FP 157, 58), KSA 12.24. 11 CE. Nachlass/FP 1881, 11[162], KSA 9.504. cadernos Nietzsche 30.2012 | 109 Araldi, ( transcorre no erro & nas aparéncias perspectivistas. Ao apontar para a falsidade das interpretagdes até agora vigentes, o erftico da moral depara-se com 0 “absurdo do acontecer”. O valor do mundo, no entanto, reside “em nossa (grifo nosso) interpretagao”. Mas o Nietzsche “terapéutico”, preocupado em superar a auséncia de sentido, propde uma verlente afirmativa, segundo a qual as ava- liagdes perspectivistas humanas sao fixadas na vida, a saber, no mundo da vontade de poténeia, para além da verdade e mentira das interpretagGes anteriores. Em JGB/BM 36, 0 ponto de partida € a realidade dos impulsos vivos humanos (desejos, afetos, paixdes). Para confirmar a transi- go do mundo inorganico para o organico, Nietzsche recorre a uma duvidosa “moral do método”, que consiste em reconhecer somente a vontade como atuante, em ‘acreditar’ que somente a causalidade da vontade é efetiva, irrestrilamente. Toda forga atuante do mundo é “efeito de vontade”, ou seja, da vontade de poténcia. Assim, toda vida instintiva e afetiva seria “ramificagao dessa forma basica de vontade” (JGB/BM 36, KSA 5.36s.). Nos escritos preparalérios a Bem e mal encontramos a mesma estrutura argumentativa desse pardgrafo, no sentido de que o mundo é€ vontade de poténcia — a partir de dentro, ou seja, das perspectivas humanas. Partindo de consideragoes psicolégicas, é feito 0 experimento de remeter todos os pensamentos, sentimentos e desejos humanos a poss(vel circunsere- ver o mundo humano ao carater incondicional da vontade e, num segundo momento, reduzir todas as fungées organicas a ela (cf. Na- chlass/FP 1[30], KSA 12.17). Por fim, mesmo que coloque como hipotese se a vontade de poténcia nao impera também no mundo inorganico, ele opera como se esse “apetite fundamental” e “von- tade basica” fossem “dados”, 4 medida que os considera um factum ultimo. Em seu carater dinamico e irrestrito, as relagées de poder, ou seja, de vontade sobre vontade sao vistas como imposigdes de interpretagdo: “a vontade de poténcia interpreta” (Nachlass/FP 2{148], KSA 12.139 s.). Todas as interpretagées (inclusive as do essa forma basica de vontade. Com isso, seri 110 | cadernos Nietzsche 30, 2012 A vontade de poténcia ¢ a naturalizagio da. moral ‘processo organico’) sao, portanto, meios que uma vontade dispoe para assenhorear-se de outra vontade. O campo da moralidade humana também €¢ uma ramificagao da vontade de poténcia, de seu carater causal incondicional. Por isso, € preciso investigar que tipo ou configuragéio complexa da vontade de poténcia a moral apresenta. No final do aforismo 36 de Para além de bem e mal, ele reafirma o resultado a que chegou nos escritos preparatérios: é da perspectiva interior, do “mundo visto de dentro (...), definido e designado conforme o seu ‘caraler intel givel””, que o mundo é vontade de poténcia. A vida dos impulsos e paixdes humanas é 0 ponto de partida para interpretar 0 mundo, na tolalidade de seus fendmenos, como vontade de poténcia, de actimulo, suhsuncao ¢ hierarquizacao de forgas. Nietzsche nao fornece provas suficientes ou conclusivas de que em todo o mundo inorganico, em cada centro de forga do mundo natural, ha um impulso para se tornar mais forte, na luta contra os demais. Também a moral faz parte do mundo natural, motivo pelo qual ela deve ser compreendida a partir da natureza da vontade de poténcia. Na obra Para além de bem e mal e nos escritos da época, prevalece a interpretacaio da vontade de poténcia como vida, particularmente nas relagdes de mando e obediéncia que perfazem as relacgées human: ter irrestrito e amplo, é segundo a configuragao de certos impul- sos humanos — do tipo de homem nobre — que ele intenta aplicé-la ao conjunto do mundo. Assim, na construgao da “Histéria natural da moral”, no antagonismo dos tipos nobre ¢ fraco, a vontade de poténcia revela-se como um componente normativo, impl{cito no conceito de vida!®. E significativo que no paragrafo 186, que abre 0 capitulo quinto, a tipologia da moral, que Nietzsche contrapde Apesar de propor como hipétese 0 seu caré- 12. Aesse respeito, confira SCHRODER, W. Moraliseher Nihilismus. Stuttgart: Reelam, 2005, 0-51. cadernos Nietzsche 30,2012 | 111 Araldi, ( a fundamentagao da moral, opera j4 num mundo “cuja esséncia vontade de poténcia” (JGB/BM 186, KSA 5.106). I Na époea em que Nietzsche procedia a redugao de todas as fun- ges orgdnicas — e de todos os movimentos — & vontade de poténcia, de uma “humani: aparece a breve mas esclarecedora preten: cao da natureza” (Vermenschlichung der Natur), na qual 0 processo de interpretacao é conduzido e direcionado & perspectiva humana (cf. Nachlass/FP 1[29], KSA 12.17", A nosso ver, 0 que importa propriamente nas concepgoes da vontade de poténcia dessa época de preparagaio a Para além de bem e mal, com apoio numa inei- piente psicologia dos impulsos, é 0 estabelecimento de relagdes de poder préprias do mundo moral humano. 0 que conta propriamente sao as interpretagdes humanas, as avaliagdes perspectivistas desse ser que necessila e quer conferir valor ao mundo. A naturalizagao da moral, desse modo, depende de uma prévia ‘humanizagao’ da natureza, a partir de certas configuragdes de impulsos, paixdes e afetos humanos ao longo da historia. Apesar de todas as crilicas as consequéncias nefastas da ‘humanizagao’ do mundo na metafi- sica, na politica e na moral, 0 filésofo que quer naturalizar a moral do da também parece refugiar-se num certo projeto de humaniza natureza, de natureza perspectivista € interpretativa. Se Nietzsche articula seu conceito de vontade de poténcia com a erftica da metaffsica e com a investigagao da moral ao longo de JGB/BM, como alguém poder dizer que ele é dispensvel para © projeto de naturalizagao da moral? Causa surpresa que em um 13 Gi. também o fragmento péstumo Nachlass/FP 1884, 26(35). KSA. 11.157. Ni interpreta os movimentos visiveis da vida organica como signos de uma acontecer interno, ‘espiritual’: “um ser orgnieo 6 a expressao visfvel de um espirito”. Ea fisiopsicologia dos impulzos humanos que forncce o modelo para a comproensio desse acontecer interno. 112 | cadernos Nietzsche 30, 2012 A vontade de poténcia ¢ a naturalizagio da. moral texto recente, B. Leiter defende que s6 se pode salvar a vontade de poténcia enquanto hipétese psicolégica, a partir de uma des- senlimento de poder, visto como “uma motivacgao significativa para os seres humanos”". Pretende- mos mostrar que ndo se pode simplesmente reduzir a vontade de poléncia a uma mera questao metodoldégica acesséria, se quisermos crig&o concreta € conceitual do compreender o projeto de naturalizagao da moral em toda a sua en- vergadura. Além disso, néio vemos em JGB/BM apenas “argumen- tos ruins” para a elaboragao da “doutrina metaffsica da vontade de poténcia”, como aponta Leiter!®. Ao discutir a interpretacao de C. Janaway acerea da importancia da vontade de poténcia em GM/CM II 12, KSA 5.313-6, ele afi Neste contexto, talvez valha a pena lembrar 0 quao irrelevante pro- prio Nietzsche considerou a ideia de vontade de poténcia, no final das contas. Nos dois principais momentos de aulorreflexdo presentes no corpus nictzschiano - Ecec homo, onde Nietzsche revé e avalia sua vida e seu trabalho, incluindo af especificamente todos os seus principais livros, ¢ a série de novos prefacios sinéticos que ele escreveu, em 1886, para todos os seus livros anteriores & Assim falava Zaratustra - em mo- mento algum Nietzsche defende a centralidade da vontade de poténcia - ou de uma metafisica da vontade de poténcia - para o seu 0 trabalho'”. A nosso ver, nao h4 elementos suficientes para negar, a partir dos prefacios de 1886 (as obras anteriores ao Zaratustra), e no Ecce homo (quando 0 projeto ja havia sido abandonado), a importancia da vontade de poténcia no pensamento tardio de Nietzsche. A partir dos escritos preparatérios a Bem e mal podemos reconstruir a cen- tralidade desse projeto, que se estende até o verdo de 1888. ER, B. O naturalismo de Niet 2011, p. 114. ibid., p. 115. MLE cadernos Nietzsche 30.2012 | 113 Araldi, C.1L. Na lista de titulos incluida na primeira edigao de Para além de bem e mal, apés listar seus escritos conforme o ano de surgimento, Nietzsche anuncia a “Vontade de poténcia. Ensaio de uma trans- valoracao de todos os valores. Fm quatro livros”. Do mesmo modo, esse seria 0 segundo titulo, de uma série de dez novos livros, previs- los na primavera de 1886 (Nachlass/FP 1886, 2[73], KSA 12.94). Ao investigar as “especializacdes ¢ metamorfoses” da ‘vontade fun- damental’, o filésofo tem em vista “o homem como uma multiplic: dade de ‘vontades de poléncia’, cada uma com uma pluralidade de meios ¢ formas de expressao” (Nachlass/FP 1[58], KSA 12.25). Es- sas menges aparecem mescladas com varios projetos para o livro que leve como titulo definitive Para além de bem e mal. Preludio a uma filosofia do futuro. Algumas variagoes do titulo ¢ subtitulo sao significativas para nosso problema, por sua énfase na superagéio da moral até agora reinante, em dirego a uma nova moral, de um tipo ‘forte’ de homem!". A superacao da moral € a tarefa dos filésofos legisladores do futuro, por sua vez, aparecem intimamente ligadas A compreensdo do mundo como vontade de poténcia™. Apesar dos varios projetos ¢ ensaios de interpretagao, nao po- demos negar o cardter incipiente do projeto de naturalizagaio da moral, alé mesmo em Para além de bem e mal. Nao ha uma defini- ¢40 nos escritos posteriores do que é a “filosofia do futuro”, se ela estaria concentrada no grande projeto da “Vontade de poténcia ou em outra obra. A obra Para além de bem e mal foi concluida no inicio de abril de 1886 (a impressao ficou pronta em 21 de ju- Tho desse ano), na época em que Nietzsche reitera a intengao de 17. Como os titulos: “Para além de bem ¢ mal. Ensaio de uma superagie da moral” (Nachlass) FP 1[82], KSA 12.31) ¢ “Para além de bem mal, Indicagdes para uma moral dos mais fortes” (Nachlass/FP 2[38), KSA 12.82). Antes da definigdo final do titulo da obra aparcee também a sugestio: “A vontade de pot@ncia. Prentineio (Vorzeichen) de uma filosofia do futuro” (Nachlass/FP 1886, 3[4], KSA 12.171), 18 Como oeorre, a titulo de exempl

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