Você está na página 1de 21
Sobre a génese da consciéncia moral em Nietzsche e Freud André Luis Mota Itaparica” Resumo: Siio muitas as relagées entre as obras de Nietzsche e de Freud. Mais importante que I filiago é observar os temas ue os aproximam, assim como apontar em que medida eles se afastam. F isso que este artigo procura fazer partir da temtien do stg Jentificar uma event da consci@ncia moral, tal como essa questio é discutida em Para a gene- alogia da moral ¢ em O mal-estar na civilizagdo. Para isso, neste artigo iremos: (1) Introduzir a questo, (2) apontar as semelhangas e as diferen- ‘gas de suas concepgies, para enfim concluir que (3) a aproximagao em {questo repousa quase exelusivamente na semelhanga do mecanismo de interiorizagao da agressividade. Palayras-chave: consciéncia moral — impulsos ~ cultura - ci iragio 1. Introdugao As relagies entre as obras de Nietzsche e de Freud sao muitas e desde muito conhecidas. FE. possivel listar pelo menos seis temas que aproximam os dois autores: a énfase nos aspectos inconscien- tes da vida psfquica, a ideia de que esses aspectos inconscientes se manifestam nos sonhos, a discussao de relagdes dinamicas e eco- némicas entre impulsos psicossomiaticos, 0 uso metaférico do termo quimico “sublimagao” para deserever uma forma redirecionamento desses impulsos, a dinamica da resisténcia e da repressao e enfim a descrigdo da génese da consciéncia moral, tema deste artigo. do Recéneavo da Bahia (UFRB), Bahia, Brasil. E. * Professor da Universidade Fed itapa71@smail.com cadernos Nietzsche 30,2012 | 13 Maparica, AL. M. Diante da proximidade na abordagem desses temas, vé-se que as recorrentes afirmagoes de Freud de desconhecimento da obra de Nietzsche sao exageradas. Ha varios indicios mostrando que Freud teve alguma familiaridade com textos nietzschianos, parti- cularmente Para a genealogia da moral e 0 Ecce homo, que foram discutidos em encontros de quarta-feira da Sociedade Psicanalitica de Viena. Sabe-se também que as ideias de Nietzsche eram bas- tante difundidas nos cfrculos vienenses, desde a publicagao das Consideragées extempordneas € sobretudo apés 0 seu colapso psi- quico. Além disso, Freud teve contato préximo com pessoas que conheceram Nietzsche pessoalmente, como Siegfried Lipiner, Jo- seph Paneth e Lou Andreas-Salomé, ¢ seus maiores disefpulos (e dissidentes), tais como Carl Jung, Otto Rank ¢ Alfred Adler, tinham grande interesse no filésofo alemao, sendo de inspiragao nietzs- chiana as leorias psicanaliticas por eles desenvolvidas. Por fim, a esses indicios somam-se as referéncias explicitas de Freud a algu- mas passagens de Nietzsche'. Essas discus es sobre originalidade ¢ influéncia no devem, contudo, ser superestimadas. Se observarmos a questao do ponto de vista de similaridades, veremos que ambos tiveram um ambiente cul- tural € cientifico préximos, seja em suas fontes romanticas, seja em sua adogao de concepgoes dinamicas do funcionamento da mente, 0 que se refletiu, por exemplo, em suas Trieblehren. Se observarmos do ponto de vista das diferengas, os dois autores, tendo objetivos e dreas de reflexao distintas, desenvolveram obras de carater diverso: Niet- zsche nao estabeleceu uma teoria psicolégica tendo em vista uma aplicagdio clfnica, embora tenha reservado um lugar especial a ques- tées psicolégicas em suas obras, e muitas vezes se tenha apresen- tado como um “médico da cultura” e como um “psicélogo”; Freud, por sua vez, nfo desenvolveu uma obra eminentemente filosdfica, 1 Para um apanhado abrangente desses indicios, ver a Introdugo ¢ a Primeira Parte do livro dle Pau psche e Freud. Sto Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 9-87). 14: | cadernos Nietzsche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nietzsche e Freud embora seus temas possam ser encontrados na histéria da filosofia, particularmente nas obras de Schopenhauer e do préprio Nietzsche, e tenham posteriormente motivado reflexdes de cardler filoséfico. Entretanto, mais importante que identificar uma filiagao entre esses autores é observar os temas que os aproximam, procurando indicar as possiveis causas dessas proximidades, assim como seu lugar na economia geral da totalidade de suas obras, 0 que pode indicar também elementos de distanciamento. Isso foi feito, com resultados bastante desiguais, em obras relalivamente recentes, como Nietzsche e Freud, de Paul-Laurent Assoun®, Nietzsche's pre- sence in Freud’ life and thought, de Ronald Lehrer’ e Freud und Nietzsche, de Reinhard Gasser‘. 2 Assoun, P-L. Op Cit. O livro de Assoun, como um todo, apresenta-se como uma leitura alobal dos temas que estabeleccm didlogo entre Nietzsche ¢ Freud. Rico em insights sobre os dois autores, ele peca pela passagem breve sobre alg. tulagaio na miriade de temas que enfrenta. Além disso, Assoun parece ja ter uma ideia previa da filosofia de Nietzsche como um rompimente radical da tradigo da filosofia moral, voltando sua ateneo mais para as fontcs romanticas do que as ci do Nietzsche maduro. Isso olevou a uma visio da Trieblehre nietzschiana apenas do lado das influéncias romanticas, 0 a falta de que acaba por influenciar sua compreensdo da superagao da moral em Nietzsche. Quanto 20 tema deste artigo, Assoun nao tem olhos para uma compreensio mais detida da dinamiea da da transformagao da matéria-prima da ma eonsciéncia), ao negar uma aproximagao bastante explicita entre conseiéncia moral e super-cu. 3 Lehres, R. Nietesche’s presence in Freud life andl thought. Alla York Press, 1995. O Livro de Ronald Lehrer, a esse respeito, limita-se a apontar a similaridade entre o surgimento da consciéncia moral em Nietzsche e Freud, assim como a relacio entre mé consciéneia nictzschiana ¢ super-cu freudiane, mencionando diversos autores que ob- Fritz Wittels, Hans Loewald, Alexander Nehamas, Richard Simon, Mareia Cavell e Lorin Anderson. Ele nao ultrapassa, contudo, 0 nivel da mera constatago, sem tecer maiores comentérios ou andlises, toda essa obra, Leer faz um apanhado compet obra de Freud, mas nfo avanga na andlise apro! lada dos temas. Desse modo, embo um livro integralmente dedicado a relagao entre Nietzsche ¢ Freud, ele deixa muito a desejar, inclusive em comparacao ao livro de Assoun, que Ihe é anterior ¢ nio the é desconhecido. 4 Reinhard Gasser. Nietzsche und Freud. Berlin/New York: Walter de Gruyt 1997. Nesta obra monumental, Gasser esmitiga os aspectos historic ticos da relagso entre Nictasche ¢ Freud. No seu torceiro capitulo, ele trata da questio da conseiéncia moral Gasser apresenta uma leitura muito mais detalhada © aprofundada sobre a questio de que Assoun e Lehrer. Posteriormente faremos referéncia a essa obra quanto a esse respeito. servaram essa similaridade, tais como Ernest J cadernos Nietzsche 30,2012 | 15 Napariea, AL. M. A questao da génese da consciéncia moral (Gewissen), em sua relagaio com o desenvolvimento cultural, tal como essa questao é discutida em Para a genealogia da moral ¢ em O mal-estar na civilizag@o, nao passou desperecbida por esses comentadores. O propésito deste artigo é discutir os diversos aspectos desse tema, tanto em suas semelhangas quanto em suas diferengas, em um did- logo constante com os comentarios a seu respeito. 2. Consciéncia moral em Nietzsche e Freud De infcio, citarei as passagens centrais da génese da conscién- cia moral segundo Nietzsche ¢ Freud: Todos os instintos que ndo se descarregam para fora voliam-se para dentro — isto € 0 que chamo interiorizagéo do homem: & assim que no homem cresee 0 que dept Ima”. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que comprimido entre duas membranas, foi se expandindo ¢ se estendendo, adquirindo pro- se denomina sua “ fundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. Aqueles terriveis bastides com que a organizagao do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade — 0s castigos, sobretudo, esto entre esses bastiées — fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trés, contra o préprio homem* (GM/GM II 16, KSA 1322-323). De que meio se vale a cultura para inibir, tornar inofensiva, talvez climinar a agressividade que a defronta? (...) 0 que sucede nele [o in- dividuo], que toma inofensivo o seu prazer na agressdo? (...) A agres- sividade é introjetada, internalizada, mas é propriamente mandada de Friedrich. Genealogia da moral. ‘Trae Paulo César Souza. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2003. O asterisco indicar algum tipo de modificagao da tradugao. 16 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nieizsche e Freud volta para o lugar de onde veio, ou seja, ou seja, é dirigida para o pro- prio Eu. La é acolhida por uma parte do Eu que se contrapde ao resto como Super-eu e que, como “consciéneia”, dispde-se a exercer contra o Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em outros individuos estranhos. A tensao entre o rigoroso Super-eu e 0 Eu a ele submetido chamamos consciéncia de culpa; ela se manifesta como necessidade de punigao”* (Freud 4, 2, p. 92/250) Pelo texto de Nietzsche, vemos que a consciéncia moral surge da introjegao de impulsos agressivos. Essa exteriorizagao é impe- dida em nome da preservacao de um grupo j4 organizado, que es- tabelece regras inlernas, punindo aqueles que n&o as respeilam, por se constituir como uma ameaga para a coesao € perpetuacao do grupo. Sob a pressdio dessa forma primitiva de “Estado”, a violéncia a ser interna- que antes seria externada contra o semelhante pas: lizada, formando assim a consciéncia (Gewissen). Esta nasce, assim, como uma violéncia contra o proprio individuo, jé que sua exterio- rizagdo pode resulltar em punig&o, por quebrar as regras impostas pelo grupo, tendo ele de pagar com sofrimento o desvio de conduta. Deve-se enfatizar que 0 processo até aqui deserito faz parte do proprio processo de hominizagao. Quando Nietzsche fala na passagem citada de organizacao estatal, ele se apressa em informar, em uma passagem posterior, que ele entende por Estado um “bando de feras loiras (blonder Raubliere), uma raga de conquistadores e senhores”*, Foi esse Estado que, a ferro e fogo, moldou uma “matéria-prima de gente e semi-animélia”* (Rohstoff von Volk und Halthtier) que alé entao era o homem (GM/GM IL17, KSA 5.324). Esse processo de interiorizagio € a consequéncia de “uma violenta separagaio do homem de seu passado animal” e com ele 6 Freud, Sigmund. O mal-estar na civilisacao. Traduga0: Paulo César Souza. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2010. 0 asteriseo indicard algum tipo de modificagao da traduc Oss miimeros das p: 1m a pagina da tradugae ¢ do original (atilizanos a edi estudos alema: Freud, S. Studienausgabe, Vol. IX. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1982) cadernos Nietzsche 30,2012 | 17 Napariea, AL. M. assistimos ao incrivel espetéculo de uma “alma animal que se volta contra si mesma” (GM/GM II 16, KSA 5.323). Mais ainda, Nietzsche depois acrescentara (GM/GM III 20, KSA 5.389) que o que esta sendo descrito aqui faz parte de um estudo de “psicologia animal” (Tierpsychologie), e seu resultado, a “ma consciéncia”, deve ser entendido como o sentimento de culpa em “estado bruto” (Rohzustand), ¢ por isso nao se deve entender essa consciéncia ainda como “consciéncia moral”, mas como uma forma primitiva dela, Trata-se aqui, enfim, de uma “ma consciéncia animal” (tierisches schlechtes Gewissen) (idem). Assim, a constituicao da m4 consciéneia (interiorizagao dos impulsos agressivos) revela-se como um capitulo central no processo de hominizagae. Por se traltar de uma violéncia contra si mesmo, 0 homem emerge como um animal doente: “Com ela [a ma conseiéncia], porém, foi introduzida is sinistra doenga, da qual até hoje ndo se curou a humanidade, 0 adoecimento do homem com o préprio homem”* (GM/GM II 16, KSA.323). Diante do exposto, deve-se também nolar que ha um uso ambiguo em Nietzsche do termo schlechtes Gewissen. Ela é uma “ma consciéncia” inicialmente animal, sem cardter consciente ou moral, uma matéria-prima que sé ao fim de um longo processo adquiriré 0 aspecto moral de uma consciéncia de culpa, depois de entendida religiosamente como pecado' A génese da consciéncia moral como indissociavel de um senti- mento de culpa (Schuld) é deserita no infcio da segunda dissertagaio de Para a genealogia da moral. Ela faz parte de um processo que foi descrito anteriormente por Nietzsche em Aurora como a morali- dade do costume. Segundo essa concep¢ tuida através da obediéncia a normas impostas pelos costumes de uma comunidade, que pune aqueles de delas se desviam (M/A 9). a maior e ma ‘Jo, a moralidade € consti- 7 Tanto Nietzsche quanto Freud utilizam indi “sentimento de culpa”. Mas assim como Nictzs tamente os termos “consciéncia de culpa” ¢ insinua uma “consciéncia de culpa ani- mal” sem earster conseiente, Freud se referiré a um “se ke culpa inconseiente” ou uma “inconsciente necessidade de castigo” (Freud 4,2, p. 107/261). 18 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nietzsche e Freud O processo da moralidade do costume, segundo Nietzsche, é muito anterior daquilo que chamamos histéria universal (M/A 18), indi- cando, com isso, suas raizes imemoriais, das quais sé podemos nos acercar hipoteticamente. Foi nessa pré-histéria da humanidade que consciéncia moral teve origem, no Ambito de uma “forma mais rudimentar” do direilo pessoal, ou seja, uma relag3o “contratual” de reciprocidade entre credor ¢ devedor (Schuldner). Para Nietzs- che, essa foi a “tarefa paradoxal” que a natureza reservou ao “bicho homem”: a de ser capaz de prometer, contra a forga bestial do es- quecimento, ¢ tornar-se um animal responsdvel, um animal provido de uma consciéncia moral. O processo da moralidade do costume significou porlanto a forjadura de uma memoria duradoura, 0 que para Nietzsche foi resultado de uma mnemotécnica da crueldade. 0 devedor empenha sua palavra garantindo que, no futuro, manteré a promessa ¢ restiluird ao credor a dfvida. Caso nao faga 0 prometido, permitira que o credor possa substituir o cumprimento da promessa pelo castigo fisico. A restituigao se dara, assim, como possibilidade do exercicio de crueldade por parte do credor. Note-se que aqui nao hé ainda a nogao moral de culpa (Schuld), mas de uma divida (Schuld), de uma obrigagao pessoal entre dois individuos, que em comum acordo abrem a possibilidade do exercicio exteriorizado da crueldade que estava interiorizada na forma da ma consciéncia animal. Essa crueldade é uma heranga do nosso passado bestial: “Ver-sofrer faz bem, fazer sofrer mais bem ainda — eis uma frase dura, mas um velho e sélido axioma, humano, demasiado humano, que talvez até os simios subscrevessem: conta-se que na invengiio de crueldades bizarras eles j4 anunciam e como que ‘preludiam’ o homem” (GM/GM II 6, KSA 5.302). O castigo como exteriorizagao da crueldade interiorizada nao pressupde uma ideia de vontade livre e de responsabilidade. Nao se castiga pelo fato de o infrator ter sido considerado livre em sua escolha e por isso responsavel por seus atos. O que conta 6 sim- plesmente o descumprimento da promessa, independentemente dos motivos que 0 causou. A tinica norma que vale aqui é a da cadernos Nietzsche 30,2012 | 19 Napariea, AL. M. equivaléncia entre dano ¢ dor. Quando falamos de justiga e pena criminal, diz Nietzsche, o desenvolvimento cultural ja esta bastante adiantado, sendo o direito constituido institucionalmente apenas 0 resultado desse direito primitivo. Nao que o castigo em si crie a ma consciéncia enquanto consciéncia de culpa; esta é resultado dos efeitos do castigo sobre aqueles que se arrependem de seus alos e se veem como responsdveis por terem sido punidos, 0 que ja se confi- gura em um momento posterior da histéria da consciéncia moral: A mA consciéneia, a mais sinistra e a mais interessante planta de nossa vegetagao terrestre nao cresceu nesse terreno [da pena criminal] —de fato, por muilfssimo tempo, os que julgavam e puniam ngo revela- ram consciéncia de estar lidando com um “culpado”. Mas sim com um causador de danos, com um irresponsavel pedago de fatalidade. E este, sobre o qual 0 castigo se abatia, também como um pedago de fatalida- de, nfo experimentava oulra “afligo interior” que nfo a Lrazida pelo surgimento stibito de algo imprevisto, como um terrivel evento natural, a queda de um bloco de granito contra 0 qual nao hé luta* (CM/CM IL 14, KSA 5.320). A relagdo “jurfdica” primordial entre credor ¢ devedor sera a matriz de trés remanejamentos posteriores. Em um primeiro mo- mento, ela é transferida para a relagdo entre individuo e a prépria comunidade, que pune aqueles que dela se desviam. Depois, en- tre os membros de uma comunidade constituida e seus antepassa- dos fundadores. Os descendentes de sentem em divida para com aqueles que propiciaram as vantagens da seguranga e comodidade que a sociedade oferece: dai a pratica de ritos em homenagem aos antepassados. Em um terceiro momento, os antepassados e 0 sentimento de divida para com eles tomam tal dimensao que eles sao divinizados: a divida deve ser constantemente retribuida pelos mais diversos rituais religiosos. Em relagdio a essas transposigodes, é necessdrio lembrar mais uma vez que no estamos ainda no ter- reno da nogao moral de culpa. Esta s6 surge quando uma forma 20 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nietzsche e Freud especifica de religiosidade fomentada pelo sacerdote ascético vem a lume, recebendo posteriormente sua configurag4o mais extrema no crisanismo. O sacerdole ascélico aproveila-se da matéria-prima da mA consciéncia animal, a agressividade interiorizada, utilizando a violéncia que os ressentidos dirigem contra si mesmos como uma explicagao para seu sofrimento. O homem passa a se sentir culpado pelo préprio sofrimento ¢ passar a considerar suas agdes © pensa- mentos como passfveis de punic¢ao: ele se torna um pecador. Um trecho j4 mencionado anteriormente é fundamental para a compreensao desse aspecto intricado da argumentacao da segunda dissertagao: “O grande estratagema de que se utilizou o sacerdote ascélico para fazer res: pungente ¢ arrebatada, consistiu — todos sabem — em aproveitar-se do sentimento de culpa. (...) O ‘pecado’ — pois assim se chama a interpretagao sacerdotal da ‘md consciéncia’ animal (da crueldade voltada para tras) — foi até agora o maior acontecimento na histéria da alma enferma” (GM/GM IIT 20, KSA 5.387). Esse importante aspecto foi enfatizado por Gasser: “O sacerdole faz um uso genial daquela situagao, na qual, pela causa de seu sofrimento, qualquer pretexto serve para descar- regar os afetos. Seu re! veita daquela ‘ma consciéncia’ que esta sempre pres sociedade e oferece ao sofredor o ‘primeiro aceno” sobre a causa de seu sofrimento (que tem na realidade uma origem fisiolégica)” (Gasser 5, p. 586). Essa interpretagio ajuda-nos a articular duas narrativas que aparecem em momentos distintos no texto da Genealogia: a narra- tiva do processo de interiorizagao da crueldade com a narrativa da relagdo jurfdiea entre credor e devedor. Ambas as narrativas fa- zem parte de uma mesmo processo, que Nietzsche entende como oar na alma humana toda espécie de misica para o sofredor, em sua busca instintiva 0 processo da moralidade do costume. A narrativa da interiori- zagao da crueldade, que aparece posteriormente na genealogia, é cronologicamente anterior, Ela é 0 produto de uma forma primi- tiva de sociabilidade, que nao produz nenhum tipo de moralidade, cadernos Nietzsche 30,2012 | 21 Napariea, AL. M. mas a matéria-prima de toda forma de moralidade. O trecho em questo é importante pois esclarece algo que na segunda disser- lag&o ainda nao esta explicito. Na segunda dissertagao, de fato, a “ma consciéncia”, no sentido moral de um sentimento de culpa, nasce entre os ressentidos; mas o que é caracterfstico no homem enquanto animal social, e é anterior 4 ma consciéncia moral, é a mé consciéncia primitiva (a interiorizagao da agressividade). Ora, para a argumentagaio de Nietzsche ser mais plausfvel e coerente, & preciso entender que a doenga é inerente ao homem, e que mesmo a superacao da moralidade do costume — se isso for possivel, como ele parece considerar, em um texto extremamente ambfguo e con- troverso sobre o “individuo soberano” (GM/GM II 2)* — tera como ponto de partida essa ma consciéncia. O que ocorre é que nao se costuma dar a devida atengdo ao fato de que Nietzsche é literal quando fala de uma naturalizagéao da moral e do processo de hominizagao. A genealogia fala de uma pré-histéria da espécie humana e daquilo que herdamos e compar- tilhamos com outros animais. Ha um sentido cultural ¢ social no processo de moralizagao dos sentimentos, mas que sao desenvolvi- mentos dessa pré-historia que Nietzsche nao deixa de lembrar que esl4 sempre presente (Cf. GM/GM II 9). Nietzsche nao se cansa de lembrar que os impulsos violentos ¢ agressivos do “bicho homem” nunca deixaram de atuar; eles apenas passam a ser sublimados, 8 Recentemente Dovavan Miyasaki publicou um artigo & radical entre as nogoes de consci identificou exclusivamente consciéncia € sentimento de culpa (mé conse qque procura provar uma oposigze etzsehe ¢ Freud. Para cle, apenas Freud nicia). Nietzsche ies de culpa © debate com Miyasaki, leria entrevisto a possibilidade de uma conseiéncia afirmativa, livre das pecado. Contuco, como lembram Ginter Gide Michael Buchhol “os atributos [da consciéneia moral afirmativa] mencionados por Miyasaki —a capacidade de realizar ¢ manter promessas, a ‘meméria da vontade’ (GM/GM IL 1, KSA 5.292), a soberania » de orgulho e poder — todas eles provém de GM/GM IL 1-2), onde mica patolégica da ‘ma conseiéncia™ (Gadde, Giinter! Michael. Zur Konzeptualisierng des Gewissen: rwiderung auf Donavan Miyasakis Beitrag “Nietzsche contra Freud on bad conscienc Nietasche-Studien (AO), 2011, p. 275). 22 | cadernos Nietesche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nietzsche e Freud espiritualizados, de tal modo que a cultura superior nada mais é sendo esse processo de espiritualizagéio da crueldade, como Niet- asche ja havia mencionado em Para além de bem e mal (Cf. JGB/ BM 229) e posteriormente ratifica em Ecce Homo: “A segunda dis- sertacao [da Genealogia da moral] oferece a psicologia da cons- ciéncia: esta ndo €, como se cré, ‘a voz de Deus no homen’ — é 0 instinto de crueldade que se volta para tras, quando ja nao pode se descarregar para fora. A crueldade pela primeira vez revelada como um dos mais anligos e indeléveis fundamentos da cultura”* (FH/FH, Para a genealogia da moral, KSA 6.352)”. 0 homem per- manece como 0 animal doente, pois a interiorizagdo e sublimagao dos impulsos destrutives apresentam-se como uma rentinc’ satisfacao instintual direta e plena. aa sua, Em Freud, como vimos na passagem citada incialmente, en- contramos uma andlise semelhante. Sua explicagao de como surge aconsciéncia moral é, alias, paralela & de Nietzsche. A consciéncia moral surge aqui, também, como um processo de interiorizagao de impulsos agressivos, por meio do qual a violéncia que seria di- rigida ao outro € dirigida para o préprio cu, ¢ sentida como uma culpa sujeita a punicao. Em O mal-estar na civilizagao, a cultura dé seus primeiros passos a parlir da repressao e inleriorizagao desses impulsos agres ivos, que, por nao serem climinados, mas apenas desviados e interiorizados, provocam a insatisfagio do individuo. Essa insalisfagéio, por sua vez, pode expressar-se como um 6dio & cultura, sendo a possibilidade de esses impulsos se ext um perigo permanente para a civilizagao. Assim como Nietzsche, a andlise de Freud parece fornecer duas géneses para a consciéncia moral, compreendida como uma fungao do super-eu (a execucdo da tarefa de vigiar e julgar o eu), origem do sentimento de culpa (a percepgao, por parte do eu, da vigilancia riorizarem, <, Friedrich, Kece homo. Tradugao: Paulo César Sour. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 97. O asterisco indica algum tipo de modificagao da tradugao. cadernos Nietzsche 30,2012 | 23 Napariea, AL. M. do supereu), que por sua vez se traduz em uma necessidade de castigo (masoquismo do eu)!°. A consciéncia moral surge no homem, para Freud, de um duplo passo: primeiro, da formagao da culpa a partir do receio de sofrer uma punicao, executada por uma autoridade externa, como retaliagao pela realizagaio de um ato proibido; depois, da inleriorizagao dessa culpa pelo super-eu, como uma instancia psiquica que vigia nao apenas os atos realizados mas também os pensados ou desejados: “Conhecemos, entdo, duas origens para o sentimento de culpa; 0 medo da autoridade e, depois, o medo ante o Super-eu. O primeiro nos obriga a renunciar a satisfagdes instintuais, 0 segundo nos leva também, ao castigo, dado que néo se pode ocullar ao Super-eu a continuagao dos desejos proibidos” (Freud, 4, 2, p. 97/253-254). Enquanto a nao realizacao de um ato significa o sacrificio instintual, este ndo impede a agao agressiva do super-eu, j4 que mesmo com a nao realizagao do ato proibido permanece o préprio desejo (de realiza-lo). O super-eu, desse modo, canaliza os impulsos agressivos e destrutivos — os impulsos de morte — contra o proprio eu, vigiando-o, culpando-o & fazendo nascer nele uma necessidade de punigdo, que nada mais é sendo o sadismo do super-eu transformado em masoquismo do eu. Temos, temporalmente, dois movimentos: o da rentincia instintual e do estabelecimento da autoridade interna. Apenas o segundo pode ser rigorosamente chamado de consciéncia; 0 primeiro é apenas o medo da autoridade externa, da perda de seu amor e do consequente castigo pela realizacao do ato proibide: “Chamamos a esse estado [o primeiro] ‘ma consciéncia’, mas na realidade ele nao merece esse nome, pois nesse estdgio a consciéncia nao passa claramente de medo de perda do amor, de medo ‘social” (Freud 4. 2, p. 94/251). $6 no ultimo caso “se deveria falar de consciéncia € sentimento de culpa” (Freud 4, 2, p. 94-95/252). Ha uma dinamica complexa nesse processo: a rentincia instintual produz a 10 10 Encontramos: 1s definigées precisas dos termos em Freud 4.2, pp. 109-110/p. 262). 24 | cadernos Nietesche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nietzsche e Freud consciéncia, que, como fungao do super-eu, produz mais rentincia instintual. A origem do super-eu, por sua vez, remonta ao mito do parricfdio na horda pr 0 de Eros e do impulso de morte nos sentimentos de amor ¢ édio experimentados pelos parricidas em relagdo ao genitor, segundo a narrativa apresentada anteriormente em Toiem e tabu. O super-eu é um produto Va, Como express filogenético que remonta 4 horda primitiva e que na ontogénese se atualiza na internalizacao, pelo indivfduo quando crianga, da agressividade que seria exteriorizada em diregao da autoridade paterna!!, F nessa relagao com 0 mito da horda primitiva que Freud encontrara o surgimento do culto aos antepassados e & criagdo de divindades. Ma: io sera, como em Nietzsche, formas de transposicées da relagao juridica entre credor e devedor, mas de transposigées do conflito edipiano. Se essas andlises de Nietzsche e Freud sobre a génese da consci: éncia moral aproximam-se em diversos aspectos, devemos observar, em contrapartida, que elas se diferenciam por conta do ponto de vista se de uma hipdtese genealé- gica, que se configura como um tratado de psicologia moral; no outro, aanillise recebe um vocabulario psicanalitico e um arranjo dentro do modelo do aparato ps{quico desenvolvido por Freud. Mas ao mesmo . neste caso, tomado por cada um: em um caso, tral tempo a andlise psicolégica de Nietzsche se estende pelo terreno proprio da psicanilise, que é 0 inconsciente, enquanto a explicagao 11 Nessas anilises, Freud parece air duas contradigdes, apontadas por ele m mo: na pri- meira contradi no rea- lizadas, ora ¢ horda prim super-cu é ora continuagao da agi 0 sentimento de culpa é visto ora como resultado de agi produto de uma agressio efelivamente realizada, quando do parrieidio na va (CE. Freud 4,2, p. 110/262-263); na segunda contradigao, a agressividade do dade da autoridade externa, ora resultado da propria ssolvido a segunda . iorizagao da agressividade, independentemente de suas fontes, ¢ em termos elinicos, pela constatagao de fontes externas ¢ intemas da agressividade. Quanto a segunda contradigao, cle considera pais importante do que a possivel verdacle histériea do parricidio, é 0 lato psicolégico da existéncia da consciéncia de culpa, seja ela produto filogenético de um arrependimento real de um ato perpetrado ou de um sentiment por um ato meramente intencionado. cadernos Nietzsche 30,2012 | 25 Mapariea, ALL. M do sentimento de culpa pela psicandlise é uma andlise genética. Em ambos os casos, hd uma preocupacdo tanto com uma anélise antropo- légica e cultural quanto com o seu substrato biolégico. Em ambas as andlises, os dois autores se baseiam numa teoria dos impulsos (“rieblehre) e em hipéteses genéticas que tam como objetivo constituir uma psicologia da consciéncia moral em sua re- lacao com a cultura. Nesse aspecto, a andlise da cultura realizada pelos dois pensadores tem um tom indubitavelmente pessimista. Devido as caracterislicas agressivas € violentas de certos impulsos humanos, o surgimento da consciéncia moral ¢ a ascensao da cul- tura sé puderam ocorrer por meio de uma repressao desses instin- los, que so redirecionados ¢ se revestem do mando da civilidade, embora possam ser liberados a qualquer momento e se expressarem de formas pungentes como na violéncia fisiea e na guerra. Nesse sentido, encontramos em ambos os autores um estudo genético das origens dos conceitos morais a partir de suas motiv: agoes psicold- gicas, uma concepgdo similar do surgimento da consciéncia moral e uma derivagao dos produtos a partir da economia pulsional. O que transparece em ambas as anilises, enfim, é que a cultura s6 péde surgir por meio da insatisfagao instintual e do sofrimento psf- quico, manlém-se por causa dele e podera extinguir-se devido a sua propria crueldade. Um forte indicio que essa interpretacao é uma descrigao apropriada dessas teorias é 0 fato de que tanto Niet- zsche quanto Freud veem a consciéncia exclusivamente como ma consciéncia, ou seja, como uma instancia que faz seus julgamentos morais apenas negativamente, pela recriminagdo e pela culpa. Em- bora Nietzsche defenda alusivamente a uma consciéncia afirmativa que haveria, por exemplo, entre os fortes ¢ ndo-ressentidos, o que € profundamente desenvolvido em sua genealogia é a ideia de que qualquer moral (afirmativa ou negaliva, superior ou inferior) ja é produto de um tratamento da ma consciéncia animal primitiva. Apesar de podermos identificar o carater pessimista das and- lises da cultura em Nietzsche ¢ Freud, nao devemos esquecer que eles colocaram-se de maneiras diferentes diante de suas visées 26 | cadernos Nietesche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nietzsche e Freud pessimistas da cultura. Nietzsche procurara superar esse pe: mismo, enquanto Freud aquiescerd & sua inelutabilidade. Para Nietzsche, o homem é um animal doente por nao poder externar seus impulsos agressivos, que sao interiorizados ¢ transformados em culpa e consciéncia moral. Assim, a civilizagdio representa, para Nietzsche, antes de tudo o amansamento e domesticagao do homem, ao prego de seu erescente adoecimento, o que pode levar até a prépria negagdio da vontade no homem. Nao hd como negar nessa descrigaio uma interprelagdo pessimista da cultura, embora o empreendimento de Nietzsche consista justamente em uma tentativa de superacao. Ao contrapor-se a Schopenhauer, Nietzsche matizara 0 pessimismo de suas afirmagoes. A consciéncia moral € uma doenga, diz ele, mas como a gravidez é uma doenga, 0 que indica que dela se pode espe- rar aleumas consequéncias mais positivas no futuro, ja que foi com ela que o homem se tornou um animal interessante, pois, ndo sendo determinado ou fixado (“das noch nicht fesigestellte Tier”. Cf. JGB/ BM 62, KSA 5.81), 6 ao mesmo tempo matéria e artista, podendo, desse modo, se recriar em uma forma superior. Quanto a essa pro- posta afirmativa, podemos lembrar que, sem negar a riqueza ¢ a sutileza da face positiva da filosofia nietzschiana, que se apresenta io do homem com como uma elaboragio refinada de uma nova relag 9 corpo, com a cultura ¢ com os impulsos que unem ambas tancias, as propostas do eterno retorno e do Ubermensch expres- sam antes de tudo uma posic&o inconformista diante do avango de um processo desagregador da cultura, que ele chama de niilismo, no qual, em linguagem freudiana, os impulsos de morte acabam por exercer predominio sobre os impulsos de vida. Também para Nietzsche, o impasse virtualmente insoltivel entre individuo € cul- tura provoca, no apogeu da Modemidade, um cansaco de vida que poderia significar um anseio em direg&o ao inorganico, estigmati- zado por Nietzsche como o de um “budismo europeu”. Nietzsche, alids, nunca deixou de sublinhar 0 carater explorador e também destrutivo de tudo o que vive, o “instinto de liberdade” animal (uma manifestagao da vontade de poténcia), que poderia, se nao viesse is ins- cadernos Nietzsche 30,2012 | 27 Napariea, AL. M. a ser corretamente canalizado, controlado ¢ dominado, voltar-se ferozmente contra o préprio homem e contra a prépria vida. Para Freud, por sua vez. a cultura representa o resultado de uma luta entre Eros, impulsos gregdrios, sociais ¢ construtivos, ¢ os impulsos de morte, desagregadores, antissociais e destrutivos. Como Freud recapitula em O mal-estar na civilizagdo, a adogao da hipétese de um impulso de morte foi um resultado tardio, depois de seu estudo sobre o narcisismo (que o fez abandonar sua primeira Trieblehre) ¢ da observagio clinica da compulsao & repeligao (Wie- derholungszwang). Fm sua descrigao, 0 impulso de morte possui um inequivoco cardter pessimista. Se atentarmos a seus prinefpios, veremos que a vida se apresentaria para Freud como um desvio em diregao 4 morte natural, que apareceria como meta do organico. Se atentarmos para suas consequéncias, veremos que uma das ra- mificagdes mais evidentes desse impulso é seu cardter destrutivo, que entretanto seria reprimido para fins civilizatérios, mas também interiorizado no homem. Isso significa, também para Freud, uma Go € amansamento da agressividade natural do homem: “A civilizagao controla entao o perigoso prazer em agre- dir que tem o individuo, ao enfraquecé-lo, desarmé-lo e fazer com que seja vigiado por uma inslancia no seu interior” (Freud 4, 2, p- 92/250). Por isso, a tensao entre individuo ¢ cultura seria tanto maior quanto maior fosse 0 desenvolvimento da tiltima. Nessa 16- gica cruel, os maiores avangos da civilizago corresponderiam ao aumento de sacrificio instintual e 4 decorrente infelicidade do in- dividuo. Além de ser virtualmente insoltivel, essa tensio provoca muilas vezes uma exteriorizagdo dessa agressividade. Se podemos comparar e em muitos sentidos aproximar as con- cepgoes de Freud e Nietzsche, particularmente na sua base ins- intual e em sua reverberagao no plano da cultura, € necessdrio apontar para a existéncia de diferengas mais profundas entre os dois. Elas se concentram em elementos centrais de andlise, como os proprios conceitos envolvidos em suas teorias dos impulsos, no contetido das hipdteses genéticas aventadas, na relacao de cada forma de domesticag 28 | cadernos Nietesche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nietzsche e Freud um com a tradicao cientifica ¢ filosofica herdada e no préprio con- ceito de psicologia. E o que apontaremos, mesmo que parcial e provisoriamente, na conclusio. 3. Concluséo Em primeiro lugar, deve-se sempre ter em vista que, convivendo em um ambiente cultural quase contemporaneo ¢ tendo tido inte- resse em biologia ¢ psicologia, Nietzsche ¢ Freud compartilhavam concepgées préximas do funcionamento do aparato psfquico. Ambos se baseiam numa concepgao dinamica da mente, descrevendo os fendmenos psiquicos a partir de uma economia pulsional. Ha, no entanto, uma diferenca marcante, que ird repercutir em suas andli- ses da consciéncia moral e da cultura: é 0 fato de que Freud é deci- didamente dualista, enquanto Nietzsche, embora haja discordancia entre comentadores se ele deve ser considerado um monista ou um pluralista, € certamente um critico de toda ¢ qualquer concepgao dualista'?. Assim, ao modificar sua teoria dos impulsos, Freud a man- teve dualista: a propria postulagao dos impulsos de morte serviu-lhe para que nao caisse em um monismo da libido. Nietzsche, por sua vez, adota o conceito de vontade de poténcia em sua manifestagao organica em um registro similar ao de Freud, como um ponto de intersecgdo entre o f{isico € 0 psfquico, utilizando 0 mesmo termo para descrevé-lo (Trieb), como uma expressao que resulta da redugaio de todas as manifestagdes humanas motoras e psiquicas. Contudo, independentemente da questao metaffsica se a vontade de poténcia € una ou miiltipla, o que encontramos no nticleo da ideia da von- tade de poténcia uma forga ao mesmo tempo plastica e agonfstica, que traz em si lanto elementos agregalivos quanto desagregadores. 12. Do pontode vista dos comentarios cléssicos, entre os que consideram Nietz ager ¢ Kaufinen podemos destacar Deleuze e Miller-Lauter. is pluralistas da vontade de poténeia cadernos Nietzsche 30,2012 | 29 Napariea, AL. M. Assim, enquanto Freud fara diferenga entre 0 redirecionamento dos impulsos eréticos, que resultard em produtos culturais superiores, como a arte € ciéncia (e também nos sintomas neurélicos), € a inlerio- rizagao dos impulsos agressivos, que produzira a consciéncia moral (com o sentimento de culpa), considerando os dois tipos de impulsos como de natureza distintas, Nietzsche compreenderd tanto o redire- cionamento instintual quanto a interiorizagao da agressividade como formas distintas de um mesmo processo de efetivagaio da vontade de poléncia, que recebera os nomes de sublimag&o, aprofundamento, espiritual impulsos em combate entre si, sempre relativos e compondo formas de duragio v: de poténcia construtiva ¢ outra destrutiva: tudo depende do lugar ocupado em uma relacao de foreas. Alids, a oposigao de conceitos dicot6micos sempre foi para Nietzsche a caracterfstica basica da metafisica, € por isso ele no compartilharia a crenga de Freud na necessidade de impulsos essencialmente antag6nicos para compre- ender a dindmica do aparelho mental. Outro ponto fundamental para discussao diz respeito A prépria caracterizagao da atividade pulsional. Freud é levado a estabelecer o novo dualismo entre impulso de vida e impulso de morte, man- ‘acao, divinizacao, j4 que a vontade de poténcia significa vel. Por isso, ndo ha essencialmente uma vontade tendo sua concepgao central de que toda a vida instintiva tende a climinagao completa de qualquer excitagiio ou & sua conservagao em limites mfnimos; no caso do impulso de morte, essa hipétese se confir nar ao inorganico. Nietzsche, ao contrario, nao adota um principio de estabilidade: a atividade da vontade de poder nao se apresenta como tendo por meta a conservagao, € muito menos a morte. En- quanto Freud admite a existéneia de um “prinefpio de Nirvana” (CL. Freud 3, p. 264), tal ideia seria para Nietzsche a culminagao aria na tendéncia de que todo ser organico teria de retor- de uma vontade que nega a si mesma. No caso de Nietzsche, em- bora nao encontremos no filésofo alemao algo parecido como um impulso de morte, nada impede que no decorrer do processo nii- lista as forgas destrutivas ganhem tal predominio que a vontade de 30 | cadernos Nietesche 30, 2012 Sobre a génese da consciéncia moral em Nieizsche e Freud nada se torne “i stinto” © acabe por dominar as expressdes criado- ras, plisticas e vitais da vontade de poténcia, chegando, ao fim, a uma negagao da propria vontade. Mas isso nao signific vez, que haja determinados impulsos com determinadas proprie- dades essenciais, mas sempre, no sentido amplo que Nietzsche dé ao termo, sublimagées, transformagdes que os impulsos sofrem em mais uma suas relagdes miituas. Muito menos quer dizer que o objetivo da vida, em tiltima instAncia, seja a morte. A vida, como vontade de poléncia, quer sempre seu préprio incremento, ¢ mesmo a vontade de nada ainda é uma vontade. Essas duas diferengas na teoria dos impulsos de Nietzsche e de Freud, que repousam no estatuto dos impulses, no que diz res- peito a sua constituigao ¢ atividade, nao sao de pequena monta, nem sdo meras questées metaffsicas e nao-significativas, como se elas fossem desimportantes por no interferirem, no resultado, nas descrigdes dos fendmenos oferecidas pelos dois pensadores. Na re- alidade, ao comparar, mesmo que parcial e provisoriamente suas es do surgi- mento da conseiéncia moral em Nietzsche e Freud sustentam-se em bases bastante distintas. Elas esto de acordo quase exclusiva- mente em um mecanismo similar: 0 processo de inleriorizagao dos teorias, vemos que as semelhangas entre as des impulsos agressivos. Mas a génese ¢ natureza dess impulsos sao bastante distintas, assim como 0 arcabougo teérico que os organiza. Abstract: Many relations can be drawn between the works of Nietzsche and Freud. Its more important to examine the themes of approximation as well as their points of divergence than lo Ly to identify an eventual filia- lion. This paper purposes to do it by analyzing the question of the emer- gence of conscience in Towards a genealogy of morals and Civilization and iis discontents. In order to achieve this objective, | will (1) introduce: the question, (2) point out the similitudes and differenees of the concep- tions of the authors, to finally conclude that (3) the appro almost exclusively in a similarity of a mechanism (the internalization of aggres ). Keywords: conse mation li ene: drives ~ culture — civilization cadernos Nietzsche 30,2012 | 31 Mapariea, A. L. M. referéncias bibliografieas 1. ASSOUN, P. ielzsche e Freud. Sao Paulo: Brasiliense, 1991. 2. PREUD, 8. Das Unbehagen in der Kultur. In: Studienausgabe, Vol. IX. Frankfurt am Ma fischer Verlag, 1982. Jenseits des Lustprinzips, In: Studienausgabe, Vol. II. Frankfurt am Main: er Verlag, 1982. 4. 0 mal-estar na civilizagdo. ‘Traduedo: Paulo César Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2010. 5, GASSER, RR. Nietzsche nnd Freud. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1997, 5. GODDE, Ge BUCHHOLTZ, Mo Zur Konzeptualisiening des Gewissens. Eine Enwiderung auf Donavan Miyasakis Beitrag ‘Nieusche contra Freud on bad con- science’, Nietasche-Studien (10), 2011, . LEHRER, R. Nietzsche’ presence in Freud’ life and thought, Albany: State University of New York Press, 1995. 8 MIYASAKI, D. Nietzsche contra Freud on bad conscience. Nietzsche-Studien, 1.39, Walter de Gruyter, 2011 9. ‘eee homo. Trad. Paulo César Souza, Sao Paulo: Companhia das Letras, 1995, 10. Cenealogia da moral. Trad. Paulo César Souza, Sto Paulo: Companhia das Letras, 2003. u. . Stimiliche Werke. Kritische Studienausgabe. Berlin/Manchen: Walter de Gruyterfdty, 1988. Antigo reeebido em 10/02/2012. Antigo aceito para a publicagao em 20/02/2012. 32 | cadernos Nietzsche 30, 2012

Você também pode gostar