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Notas sobre a recepcao de Nietzsche no Brasil Lebrun e os operadores teéricos Ivo da Silva Junior* Resumo: Visa-se nest rpretagio de Lebrun do pensamento de Nietzsche. Para uma primeira abordagem, trabalha-se critieamente o texto “Além-do-homem e homem total”, que bem deixa ver os contornes que Lebrun deu 2 filosol Palavras-chave: Nietzsche — recepedo — além-do-homem — socialismo artigo a examina - Lebrun A recepeao da filosofia de Nietzsche no Brasil é ainda um capt- tulo que precisa ser devidamente estudado. Um primeiro € grande passo nesta direcao foi o texto “Nietzsche ¢ a cena brasileira”, de Scarlett Marton, que traz intimeras pegas desse mosaico a cons- uuir!. Um dos capftulos dessa recepgao — embora periférico do ponto de vista da pesquisa Nietzsche, mas de monta quanto ao seu ¥ Professor da Universidade Federal de Sio Paulo (UNIFES! P), Sdo Paulo, Brasil. E-mail: 1 Ver MARTON, S. “Nietsehe the. Sio Paulo: Di: saios sobre a filoso- 2605 “Nictzsche 9-376, Nesta cadernos Nietzsche 30,2012 | 121 Silva Jr, I. da alvo - gira em torno da figura de Gérard Lebrun que, na trilha do que ocorrera na Franga nos anos setenta, fez ndo um comentario, mas um “uso” suis generis do pensamento de Nietzsche aqui no Brasil’, A mancira lebrumiana de trabalhar a filosofia de Nietzsche, de algum modo, flertava com a caixa de ferramentas de Foucault, embora nao se confundisse com ela. Nao se walava de pensar a partir de Nietzsche ou com ele as questées da contemporaneidade. ‘Tratava-se de avaliar os tempos atuais por meio da Histéria da f losofia, Nada mais indicado ent&o que a [ilosofia de Nietzsche para fornecer os “instrumentos” para esse trabalho avaliativo, embora Lebrun afirmasse no final do prefacio de O avesso da dialética — Hegel a luz de Nietzsche, que linha se dado conta ao finalizar este livro que outros filésofos também teriam sido “titeis” para uma em- preitada avaliativa da filosofia de Hegel e, por extensdio, dando a entender, de qualquer outro sistema filos6fico*. De certa maneira préximo, pelo menos na forma, do procedi- mento weberiano, Lebrun tinha os principais conceitos da filosofia nietzschiana (aqueles elencados por Heidegger como trais, diga-se de passagem) como operadores ou analisadores te6- ricos, que o permitiriam fazer a justa avaliagdio dos mais diversos discursos filos6ficos, em particular — conforme a sua preferéncia ~ os de esquerda. ndo os cen- 2 Os trabalhos de Gérard Lebrun em que Nietsche & 0 pensador estudado 0 A dialética pacificadora” (In: Almanaque, n.3, Sao Paulo: Brasiliense, 197 irhomme ct homme total” (In: Manuscrito, v. M nel, p.31-58, ou na trad homem ¢ homem total” (Trad. Maria Lacia M. O. Cacciola, In: A filesofia e sua histéria, Paulo: Cosaenaily, 2006, p.169-198); Por que ler Nietzsche, hoje? (Ins Passeios ao Renato Janine Ribeiro, Sao Paulo: Brasiliense, 1983, p. 32-40), “Quem era Dior Heloisa Noronha Barros. In: A filosofia ¢ sua historia. Sio Paulo: Gosaenaify, 2006, 878), “A grande suspeila”. In: O avesso da dialética, Trad. Renato Janine Ribeiv : Cia das Letras, 1988, p.113-116 ¢ 0 livro Passeios ao [éu (Trad. Renato Janine Sao Paulo: Brasiliense, 1983), que 6, de uma forma ampla, um bom exemplo de como anélises, as mais diversas, sio feitas & luz de Nietzsch: 3 LEBRUN, G. 0 avesso da dialética- Hegel da luz de Nietzsche, p.A7 122 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Notas sobre a recepetio de Nietzsche no Brasil - Lebrun e os operadores reéricos Antes de tudo, faz-se mister deter-se nesta fungao “operador” que os conceitos podem ser revestidos segundo Lebrun. 0 operador ou analisador teérico caminhava em mao tinica, permitindo apenas a “critica”, jamais indicando uma direcao a ser seguida. Qualquer proposicao jd levaria a uma doutrinagao, que deve ser evitada a todo custo. Noutros termos, o operador deveria isto sim neutralizar qualquer “lastro doutrinario de um sistema — como se exigia na escola do método estrutural -, transformando o sistema assim ex- purgado numa ‘grade hermenéutica’ destinada a comentar™, Fora de um tempo ¢ espago determinados, 0 operador — também neutro —era uma ferramenta isenta de qualquer contaminagdo ideoldgica, no podendo, por razdes ébvias, ser analisado. Dai nao haver risco algum em utilizé-lo; daf a sua eficdcia. “Ora, € por este viés [o da andlise|”, diz Lebrun, “que a abordagem nietzschiana das repre- senlagdes ideolégicas pode revelar-se vantajosa p: ¢ uma hist6- ria ‘técnica’ da filosofia”®. Ora, poder-se-ia acrescenlar que esse procedimento acompanhava perfeitamente os métodos de leitura estrutural, embora ousasse dar um passo além ao operar avalia- ces. Ainda mais, estava em perfeita sintonia com as filosofias pés-estrutralistas que nao faziam ceriménia na desconstrugao de discursos progressistas. Em suma, metodologia de trabalho que funcionava em duas diregies, com um tinico resultado, agora com 0 consentimento © assentimento involuntario da filosofia nietzs- chiana. Eis o engenhoso procedimento de Lebrun. Retomando: fazer os conceitos operarem com o fito de se ana- lisar um discurso ou estado de coisas era 0 que caracterizou esta etapa da recepgdio da filosofia nievschiana que se inaugura com Lebrun. Mais ainda: esse “uso” passou a autorizar outra maneira 4 ARANTES, P. Ideias ao léu, Uma digeessio a propsisito de “0 avesso da dialétiea™ Novas estudas CEBRAP, no. 25, 1989, p. 71. 0 autor nao deixa de observar como Lebrun foi ousado, pois teria extrapolade o que “mesmo 0 método prudentemente inibia” (idem, ibidern), avaliando © Sule: 5 LEBRUN, C. 0 avesso da dialetica — Hegel & luz de Nietssche, p.166. cadernos Nietzsche 30,2012 | 123 de trabalhar a Histéria da filosofia - embora para poucos, dada a complexidade e os ricos — calcada na tiltima moda intelectual fran- cesa, devidamente respaldada no recém realinhamento ideolégico © econémico com os americanos®. O melhor exemplo dessa ordem de trabalho de Lebrun, porque explicilo, tanto no que lange ao assunto — a ideologia marxiana € 9 socialismo em sentido amplo em contraposigao a um mundo sem nenhuma amarra totalizante ou a uma vida segura -, quanto no que diz respeilo & aplicago — 0 operador teérico em pleno alo -, € 0 texto “Além-do-homem e homem total”?. Que se acompanhe em certa medida a argumentagao do autor, sempre tirando as conse- quéncias ou as inconsequéncias, com o objetivo de bem delimitar esse Nietzsche lebruniano que em parte fez escola no Brasil. Ainda mais: para yer, em pleno ato, os desdobramentos “ideolégicos” do procedimento de Lebrun. Em “Além-do-homem c homem total”, Lebrun se propée a ana- lisar a partir do conceito de além-do-homem aquilo que Nietzsche designava como as “ideias modernas”, ou seja, aquelas ideias que cram tidas pelo campo do pensamento de esquerda, mas nao s6, como as ideias progressistas do século XIX, que, em parte, tiveram como proveniéncia os ingleses. Ao realizar esta andlise, 0 conceilo de além-do-homem poria em evidéncia a decadéncia do mundo contemporaneo a Nietzsche, patrocinada em grande parte pelo so- cialismo. Note-se que, o liberalismo em curso, que 0 filésofo en- tendia também contribuir para o estado decadencial de sua época 6 Atespeito da “ideologis francesa”, ver ARANTES, P. “Tentativa de idemtificagio da ideolo- gia francesa”. In: Novos Estudos, n.28, BRAP, 1990, p. 74-98. 7 LEBRUN, G, Surhomme ¢t homme total, ibidem; na traduge que se utiliza aqui: “Além-do- » Tbidem. Ca adelos para geragbes, 0s i608” que Lebrun fazia da filosofia de Nietzsche poderia indicar que muitos de seus textos visavam apenas a mostrar o arriére fonds de outras filosofias ou scr provocador. No primeiro caso, daria um passo além do mero comentario, 4 bem de perto; no segundo, contribuiria para trazer outro ponto de vista, uma nova perspectiva. 10 Paulo, ne homem total” 1 trabalhos que servicam de 124 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Notas sobre a recepetio de Nietzsche no Brasil - Lebrun e os operadores reéricos (cf. CVGD, KSA 6.139-140, O meu conceito de liberdade, 38), nao entrava em linha de conta nesse processo avaliativo do operador além-do-homem que Lebrun procurava levar a bom termo. Na questao presente, nao ha nada mais indicado (nenhuma op- cdo de Lebrun é inocente), como se pode verificar, que recorrer ao além-do-homem como operador teérico, pois, segundo o autor, ele nao devia ser colocado numa chave ideolégica preendido como uma “parabola” (como, alias, Nietzsche mesmo 0 havia caracterizado)*. Langando mio desse conceito protegido por um fosso circundante, o operador ou analisador teérico ja trazia a primeira indicagdo que colocaria no devido lugar o homem total marxisla e, por exlensdo, 0 marxi Fiea claro no texto, ¢ de imediato, que, se a perspectiva do além- -do-homem € a civilizacional, a do homem total é 0 da sociedade mais comezinha, Nao por outra r: ” de Lebrun, a tnica possibilidade de surgimento do além-do-homem é o adestramento de “uma ‘raga’ cujos espécimes, até 0 presente, surgiram de maneira dispersa”’. Esse adestramento, corporal espiritual, deveria assentar-se sobre a Bildung. Sistematico ¢ de- sejado, o adestramento - de uma “raga” mais potente permitiria o surgimento de grandes homens nao mais de forma episédica como ocorria. Ou seja, a humanidade devia buscar meios para que este novo homem surjisse no mais ao acaso; a humanidade devia contribuir — embora nao se soubesse como e por quais razées — para o aparecimento daqueles que poderiam redimi-la™. E isso s6 ocor- reria se uma disciplina, um verdadeiro adestramento, fosse prati- cado. Ainda mais, a elevacao a um Lipo superior dependeria de todo mas deve ser com- smo. 0, segundo os “comentirio 8 Idem, Além-do-homem ¢ homem total, p.170. 9 Ibidem. 0 importante trabalho de selecionar trechos das obras completas para a publicagao volume das obras incompletas para a colego “Os Pensadores” foi apenas umn priteiro o feita nao deixava de ser o mater passo do Nietzsche lebruniano. A se I com © qual Lebrun alinhavaria a sua interpretagio de Nietzsche, ou melhor, nao deixava de trazcr 03 textos com os quais 0 “uso” se Faria. 10 Idem, ibidem, p.171 cadernos Nietzsche 30,2012 | 125 © capital de forcas acumulado, nao bastando os sacrificios de um homem para se tornar grande. Para tanto, seria preciso que tivesse havide a transferéncia de forga do sacrificio de seus ascendentes para que, com todo esse actimulo, um homem pudesse ser grande. Formagao esta que, como fica evidente, nao ocorreria de forma mi- raculosa ou acometeria ocasionalmente um homem". Como se vé, 0 além-do-homem ganhava seus contornos nao a partir de um local e tempo determinados, mas de uma hipotética civilizagao. Afinal, assim devem ser todos os operadores, uma mera possibilidade. Daf, alids, a importancia da perspectiva civilizacio- nal, isto é, de se localizar espacial e temporalmente alhures. Nao deixa, no entanto, de ser curioso notar que Lebrun ressaltava ser fundamental a Bildung desse homem. A “curiosidade” vem do fato de que esse termo se refere a um contexto muito preciso no qual Nietzsche desejava estar inserido. E se nao estava era justamente porque historicamente o momento havia praticamente se encerrado por conta dos acontecimentos revolucionarios, que, como se sabe, no lem grande imporlaneia para Lebrun, néio porque aprofunda- riam a decadéncia, mas porque sao os discursos que contam. Apés estabelecer os seus objetivos e a expor a maneira pela qual sua empreitada seria levada a bom termo por meio do opera- dor teérico, o texto de Lebrun comeca propriamente dito a andlise das “ideias modernas” a partir do conceito de além-do-homem. Ou melhor, o socialismo passa a ser o alvo a ser analisado. De infcio, © autor lembra que organizagao ou gestao das forgas nao é prépria a Nietzsche, ou seja, tanto o grande homem pode gerir as forgas capitalizadas pela ascese advinda nos processos civilizatérios, as- sim como o seu crescimento, como o homem socialista pode gerir © erescimento econdmico, o “desenvolvimento das riquezas”, das “forgas produlivas””. Prope enldo que se [aga um paralelo entre a 1 Mhidem, p-170-3 12 Ibidem. 126 | cadernos Nietesche 30, 2012 Notas sobre a recepetio de Nietzsche no Brasil - Lebrun e os operadores reéricos “economia nictzschiana da poténcia” ¢ a “economia marxista das, cas produtivas”. Se ambos tém as mesmas condigdes de gerir a forca, de um lado, os socialistas, contribuem malgrado suas intengdes para a desagregacao das forgas, pois cles colocam o crescimento sob a égide do universal"; de outro, o além-do-homem, que se coloca como o “contramovimento” ao socialismo real, bem organizaria as forgas. Tudo aparece ser apenas um problema de gestao intrinseca de forgas, pois os alvos a atingir sao diversos: para um o progresso © o desenvolvimento econémico so essenciais; para o outro nao. Nietzsche caminharia na diregao oposta da de Marx. Ao defender a Bildung para um extrato cultivado que se considerava preju- dicado com a presenga das “ideias modernas”, alacava o des! volvimento econémico na Alemanha. Nao é por outra razao que Nietzsche era critico também do liberalismo. Que Lebrun utilize ao operar com o além-do-homem causa es- tranheza, pois 0 alvo dele nao era o socialismo/liberalismo como em Nietzsche, mas apenas 0 socialismo. Mais ainda: se Nietzsche falava a partir de certa aristocracia, Lebrun, longe disso, tem como referéncia o liberalismo. O contexto, no entanto, é © que menos importa para Lebrun, como ja se observou; estar fora de contexto no é nenhum problema para ele. O que tem interesse € a proveni- éncia das ideias, pois a partir delas a ideologia ¢ as interpretagoes ou grades de leitura do mundo se fazem. A este respeilo vale a pena escutar o que Lebrun tem a dizer sobre o lugar da infraestrutura na formagao das ideias: esla mesma avers: .) 6 de pouco interesse notar que também Nietzsche afirmou a de- pendéncia das “ideias” frente as condigdes de existéncia (...). Porque certamente nao é isso o importante; 0 que importa é o fato de analisar, ele, essa dependéncia de modo a excluir todo esquema de produgao do ideolégico por uma “infraestrutura”. Seguindo Nietzsche em sua 3 Ibidem, p. 178. cadernos Nietzsche 30,2012 | 127 Silva Jr, Le da determinagaio do ideolégic xaminar a primazia — inegavel, mas metodologicamente perigosa — das infraestruturas; a excluir toda tentagao de uma derivagao imediata das praticas ou das “ideias”, a partir da praxis (....). Nietzsche nunca se cansa de repetir que as ideias religiosas ou metafisicas se enraizam na vida (na fisiologia, na higiene... somos levados em primeiro lugar a ree- ; mas observaremos que ele nunca dé, a esse enraizamento, a forma de uma derivagao ou causagao!". Nao é & loa que Lebrun se detenha neste ponto, que ele te- nha como um dos seus alvos a critica de Marx a ideologia. Se por um lado ele queria combater a ideia de que os pensamentos sao determinados pelas condigées materiais de existéncia, pretendia, por outro, fazer desacreditar que estas determinagdes materiai irao conduzir, como acreditavam os socialistas, a outra civilizagdo, mais justa ¢ livre (civilizagao aqui, bem entendido, na acepgao francesa). Nao poupava ent&o aqui o socialismo real, ou melhor, 0 totalitarismo que se instaurou nos pases do leste europeu'®. “Tomo aqui o leitor por testemunha: ele nao deixou de ouvir narralivas de viagem de ‘simpatizantes’ que voltam dos paises socialistas”!. Mais ainda: o homem total, que seria total justamente por poder salisfazer todas as necessidades advindas do desenvolvimento do capital, era questionado do ponto de vista cultural. Esta critica de Lebrun passa a ser colocada na boca de Niet- zsche, quando se refere a “maquinizagao do Shomem termos, do rebaixamento do ser humano decorrente do progresso econémico". Fica aqui subtendido que Lebrun tem outra concep- cao de progresso e desenvolvimento econdmico, embora néio seja explicitado. Isto nao impede que se observe — contrariamente do ou, noutros 14 Idem, O aresso da dialética, p. 165. Utiliza-se aqui uma passagem do Avesso da dialética, pois esta questo, também exposta explicitamente no texto “Além-co-homem e homem total”, (0 eatd lo esmiugada. 15, Idem, Alénalo-hom 16 Ibidem. p.177 17. bidem, p.179. 1.¢ homem total, p.174 128 | cadernos Nietesche 30, 2012 Notas sobre a recepetio de Nietzsche no Brasil - Lebrun e os operadores reéricos que ele afirma - que nas sociedades capitalistas mais bem desen- volvidas se encontre uma cultura (no sentido amplo do termo, ou melhor, no sentido que passou a ter no século XVIII no momento em que foi vinculado ao de civilizacao) mais refinada. Nao im- pede igualmente que se note a presenga desta cultura nos pafses socialislas, mesmo que em menor grau. Para quem escrevia a par- tir de uma sociedade, como se chama atualmente, em desenvolvi- mento como a brasileira, isto deveria ser evidente. Como se percebe, situar de outro modo a infraestrutura é es- sencial para Lebrun no seu desmonte do pensamento socialista. Ele afasta numa sé penada o que considerava ser um engodo, o que seja, a crenga de que a ideologia oculta uma face verdadeira do real (que se aceite, diz Lebrun, que ela engana os homens, “mas sob a condigao de se acrescentar que ela os engana segunda os anseios deles — que ela os engana na medida em que sabe con- forta-los”"); e afastava outrossim neste mesmo movimento o que considerava ser 0 motor revolucionario que iria transformar esta civil 40 numa outra — o progresso econdmico. Se alguma mudanga fosse possivel, Lebrun acreditava, esta s6 poderia ocorrer em termos valorativos. As ideias nao seriam molda- das a partir de uma base terrestre, mas a parlir do modo pelo qual as sao avaliadas: “As ‘ideias’ nao sao determinadas pelas condi- goes de existéncia, mas pela modelagem prévia que as avaliagdes fazem destas”". Que assim seja. Fica, no enlanto, a questo: estas ideias que recebem avaliagées divergentes tem qual procedéncia? Tal questao se coloca, pois parece que, para Lebrun, as ideias ja 18 Idem, O anesso da dialética — Hegel luz de Nit 19 Idem, Além-do-homem e homem total, p.166. afirmago se respalda cm parte em Lévi- seloagem. Qi the, p.165. extremamente interessante ver que essa rauss, quando o autor se remete ao Pensamenio se est em ver como as eartas se embaralham, iste, em parte uma com preensao da maneira pela qual a filosofia deve ser estudada ou feita esta em jogo. A impor: aneia de Lebun neste capitulo nio é nada negligenciavel, muito pelo contrat as esclarecedoras paginas do artigo “O essencial de uma Arantes, onde Lebrun tem um lugar essencial. cadernos Nietzsche 30,2012 | 129 estao dadas, bastando que sejam interpretadas a partir de siste- mas de avaliagdio que ndo devem ser passfveis de serem avalia- dos. “Pois, entre as condigdes materiais € as ‘ideias’, sempre esta o mediador interpretativo, ou, se preferirmos, 0 fato de que ‘com as mesma distribuigao de cartas os jogadores diferentes nao fazem a mesma partida’ Lévi-Strauss)". Que se insista ainda uma vez: a procedéncia dessas cartas é que devem ser postas em causa. Apés estas erfticas cujo foco girava em torno da infraestrutura, Lebrun, em seu texto, volta a direcionar-se no mais ao marxismo € seus desdobramentos no século XX, ¢ traz Marx novamente para 0 primeiro plano afirmando que Nietzsche teria sido melhor profeta?!, pois Marx nao ter prazo, ou, como se queira, nao teria levado o ser humano a sério. Para na sequéncia fazer uma mea culpa e reestabelecer 0 aleance, mesmo que imediato, do pensamento de Marx, embora afirmasse que nao se devesse esperar da obra marxiana uma “relativizagaio levado em conta uma perspectiva de longo la cultura ocidental ou mesmo uma investigagao critica de seus da cult dental t ftica d », Noutras palavras, Lebrun, seguindo de perto Nietzsche, dizia que Marx atacava 0 carater falso da liberdade tendo como 1 parametros a sociedade capitalista e no o valor a partir de uma perspecliva civilizacional. Marx visaria ao aqui € agora - seria um profeta do imediato, do curto prazo; Nietzsche, ao porvir — seria um profeta com um olhar agudo e profundo. Com isso, ao analisar a desmistificacdo marxiana, Lebrun acre- ditava mostrar que Marx teria mantido 0 “velho ideal” do “universo q racionalista-burgués” da liberdade, igualdade ete.* Contra esse “velho ideal”, ou seja, contra as o melhor ana- lisador é 0 além-do-homem. Mas, como jé assinalado, a perspectiva j persp le Lebrun — seguindo Nietzsche — é outra. O além-do-homem é um de Leb: cuindo Nietzsche — é outra. O além-do-h é ideais ‘ideias modernas”, 20 Ibidem. 21 thiddem, p.179. 22 thiddem, p.180. 23° Ibidem, p.184. 130 | cadernos Nietesche 30, 2012 Notas sobre a recepetio de Nietzsche no Brasil - Lebrun e os operadores reéricos tipo de homem e nao de humanidade. A pergunta nao é mais por um alvo para a existéncia, mas um “para que fim?”*, Nesta direciio, Lebrun lembrava ainda que, para Nietzsche, na Gaia ciéncia, era 0 socialismo que se coloca como alvo para a existéncia, como espe- ranga de futuro. Mais ainda, era o socialismo que acreditava chegar ao apaziguamento da humanidade, embora, como fazia questo de lembrar, o percurso seguido no processo histérico até se chegar nos dias atuais com esta perspectiva de paz tenha exigido, para lembrar apenas o inicio, uma série de “males”, como a escravidao grega”. O passo seguinte de Lebrun, talvez o mais importante, era o de fazer com que seu operador tedrico lancasse luz sobre os equivocos dos socialistas, que consideram que todos pertencemos a uma es- pécie genérica, a uma humanidade. Lembrava ainda que entre os socialistas, a libertagdo sempre estava associada & sua realizagao dentro da espécie ou do capital e que o além-do-homem teria como “alvo” o homem ¢ nao a humanidade. Nao € por outra razao que © autor considerava que as “ideias modernas” trabalhavam para domesticar 0 homem e que o homem total viria atribuir um sentido, abstrato evidentemente, respaldado na nogao de homem genérico/ humanidade2*. Na espécie — Lebrun poderia concluir - se concen- taria toda a domesticagao, ¢ no no individuo; com a espécie a decadéncia se perpetuaria. Algo diferente ocorreria com o além- -do-homem, que, segundo o autor, 0 “sucesso seria medido pela amplitude do instintivo que o individuo seria capaz de dominar por sua conta, sem ser obrigado a reprimi-lo (enquanto ser genérico). Nietzsche nomeia além-do-homem o resultado desta formagio pedagégica...””7, Por esta razao, 0 além-do-homem teria se afastado de toda “tradigao dissimulada”, expressa pelo socialismo. 24 Mbidem, p.187. 25 Ibidem, p.189. 26 bide, p. 192. 27 Bbidem, p.193. cadernos Nietzsche 30,2012 | 131 Silva Jr, Le da Nisto que foi posto, fica clara a distingao entre domesticacgao ¢ adestramento. A primeira é 0 modo de operar perpetrado por aque- Jes que sucumbiram as “ideias modernas” - os socialistas seriam exemplares neste ponto; o segundo é a maneira pela qual a Bildung dos homens raros se concretizaria®. E por esta razdo que Lebrun, sempre na esleira de Nietzsche, considerava que subverter a ordem atual como 0s socialistas desejavam em nada mudaria; mais aind: se recairia no mesmo estado decadencial. Que se observe entre pa- réntese que, em cerlos pontos, extrema direila ¢ extrema esquerda se aproximam. Em relagao a este tiltimo ponto, o marxismo seria rifado por ambas. Feche-se 0 paréntese. A saida desta siluagao exigiria o redirecionamento da humani- dade para uma nova civilizagao. FE, como fazer isto? Neste ponto, Le- brun promovia um inerfvel paralelo entre a crenga marxista de que o desenvolvimento do capitalismo levaria as siltuagdes ideais para a chegada do socialismo ¢ a crenga nietzschiana de que o socia- lismo levaria a uma situagéao extrema — com um excesso de forgas mal direcionadas — que contribuiria para, neste ponto limite, o sur- gimento de uma nova civilizagao. A gestagao das forgas excedent estariam aqui sob a égide do novo homem endo da humanidade”. desmonte estruturado do sociali Em sume mo, aqui repre- sentado pelas acao de uma ferra- menta, no caso, 0 operador teérico além-do-homem, muito bem manipulado. Tarefa realizada com perfeigdo técnica e com maxima habilidade, haja vista Lebrun manipular com maestria a Historia da filosofia. Mais ainda: trabalho sem viés ideolégico, como ele préprio insistia em dizer, salvo se, como ja se assinalou, 0 método for devidamente atrelado, ou melhor, caracterizado, como uma das faces de uma “ideologia” conservadora. Desta perspectiva, em plena consonancia e plenamente justificado com a sua leitura de ‘ideias modernas”, com a util 28 Cl. fhidem, nota 53, p.193. 29° “Vee que a utopia aparente transforma-se em enigma para quem quiser adivinhar qual cra o ideal de Nietzsche” (ibidem, p.196). 132 | cadernos Nietesche 30, 2012 Notas sobre a recepetio de Nietzsche no Brasil - Lebrun e os operadores reéricos ant®’ da maneira como compreender e trabalhar a filosofia que Kant d preender ¢ trabalhar a filosofia q via se instalado no Brasil, 0 Nietzsche lebruniano poderia fu- hi talado no Brasil, 0 Nietzsche lebi leria fi gir de qualquer doutrinagao, ou ainda, poderia ser algado como ‘0 se a desvelamento de seu nosso segundo Aristételes”!. Tudo procedimento nao o colocasse no devido lugar, isto é, como mais uma estralégia conservadora de suas posigdes politicas brilhante- mente escamoteadas. Eis, pois, a face deste Nietzsche lebruniano — uma maquina de titurar doutrinas - neste capitulo da recepgao de seu pensa- mento entre nds, que, alias, nao diferiria, se a sua filosofia rece- besse um tratamento dogmatico (pensa-se aqui em Goldschmidt) da forma consagrada de se tabalhar a Historia da filosofia no Brasil. Ressalte-se que, dado o tamanho da ousadia, esse Nietzsche lebru- niano nao fez muita escola. Certamente nao por falha de Lebrun, mas por falta de {6lego dos seus simpatizantes. Abstract: ‘This article aims at examining the reception of Lebrun’ terpretation of Nietzsche'thought in Brazil. For a first approach, we will analyze the text “Overman and whole man’ Keywords: Nietzsche — reception - overman — socialism — Lebrun referéncias bibliograficas 1. ARANTES, P. Ideias ao léu, Uma digressio a propésito de “O avesso da dialética”, Nonos estudos CEBRAP, no. 1989, p. 61-74 2 - 0 essenc ccerta estrutura. In: Um departamento frances de ultramar, Sa0 Paulo: Pax e Terra, 1994, p.111-135. ‘Tentativa de identificagaio da ideologia francesa. In: Novos Estudos, n.28, Sa0 Paulo, CEBRAP, 1990, p, 74-98. 30 CE ARANTES, P.O esseneial de uma filosofia é uma certa estn franeés de ultramar. Sao Paulo: Paz ¢ Terra, 1994, p.111-135. 31 LEBRUN, G. Por que ler Nietzsche, hoje? In: Passeios ao léu, p40. ct In: Um departamente cadernos Nietzsche 30.2012 | 133 Silva Jr, I. da 4. LEBRUN, G. Surhomme et homme total. In: Manuscrito, v. IL, n.1, p.31-58. Além-do-homem e homem total. Trad. Maria Laicia M. 0, Cacciola. In: A sacnaify, 2006. filosofia e sua histori. Sio Paul 6. Por que ler Nievsche, hoje? In: Passeios ao léu, Trad. Renato Janine Ribeiro. ‘Sao Paulo: Brasiliense, 1983, p. 32-40. 7. - O aresso da dialética. Hegel a luz de Nietzsche. Trad. Renato Janine Ribeiro. ‘Sao Paulo: Cia das Letras, 1988, p.169-198. ‘Trad. Maria Helofsa Noronha Barros. In: A filosofia ¢ sua - Quem era Dioni hist6ria. 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