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Lyotard e Nietzsche a condicgao pés-moderna Vania Dutra de Azeredo* Resumo: Neste artigo, vamos apresentar a tese de Lyotard acer da condigo pés-moderna nas sociedades ¢ culluras mais desenvolvi- das desde a crise dos relatos especulativos © de emancipacao que ge- ram, a partir de si 2s, 0 problema da deslegitimagio do saber. Acompanharemos Lyotard em sua posigio sobre a impossibilidade do consenso e a exist@ncia de novas regras que desestabilizam o saber em tum proceso continuo, cujo reconhecimento da heterogeneidade dos jo- gos de linguagem aponta para uma possivel legilimagio pela paralogia. Todavia, inseriremos discurso filos6fico de Nietzsche como ruptura com a tradigo a partir da recusa do fato e do afirmagao de que s6 cxistem interpretagées. Apresentaremos a neces- sidade da hierarquia como ponto ehave para determinagio do lugar da filosofia, da literatura, da arte e da eiéncia. Palayras-chave: condic&o pés-moderna — jogos de linguagem — paralo- gia hierarquia — valores, went através da A Pe ‘spectiva de Lyotard Lyotard, em seu livro A condigdo pés-moderna, analisa “a po- sigao do saber nas sociedades mais desenvolvidas™!, uma vez que elas passaram a ser denominadas pés-modernas devido as transfor- mages que se processaram na ciéncia, na literatura e na arte, mo- dificando o estatuto da cultura como um todo. Todavia, 0 autor nao * Prof PUC-Cai Brasil. E-mail: vd.azeredo@uol.com.br. TLYOTARD, LF. A Condigao pés-Modema. Trad. Ricardo Corréa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, p.15 idade de Filosofia no Centro de Ciéneias Humanas e $ ciais Aplicadas da cadernos Nietzsche 30,2012 | 33 Azeredo, V.D. de se detém em anali: ir as préprias transformagées operadas ni sociedades, mas faz um recorte tematico que prioriza as transfor- magoes em sua relagao direta com o que nomeia “crise dos relatos”. Notadamente na Modernidade — entendida de Descartes ao final dos anos 50 — a filosofia constitui-se como o metadiscurso legitimador da ciéncia, haja vista que a crise da ciéncia, com seus proprios relatos, demandou uma necessidade de legitimagao das re- gras de seu jogo. Esse discurso de legitimagao que, enquanto recorre a “dialética do espirito, a hermenéutica do sentido, a emancipagio do sujeito racional ou trabalhador, 0 desenvolvimento da riqueza, decide chamar-se “moderna” a ciéncia que a isso se refere para se legitimar”?. Lyotard enfatiza a importancia da legitimagao do saber através do metarrelato, j4 que nos conduz a questionar nao s6 a verdade do discurso, mas a validade das instituigdes, mostrando 0 vinculo existente entre justiga e verdade com o grande relato. Ape- idera ““pos-modema’ a incredulidade em relagao aos metarrelatos”*. Daf a crise da filosofia metafisica e da Universidade, enquanto instancias legitimadoras do discurso: “nasce uma sociedade que se baseia menos numa antro- pologia newtoniana (como o estruturalismo ou a teoria dos sistemas) © mais numa pragmatica das particulas da linguagem’”*. Nessas sociedades, estao presentes muitos jogos de linguagem diversificados que remetem a heterogeneidade de elementos, cuujos decisores, na visio de Lyotard remetem & legitimagao social e a verdade cientifica ao critério de eficdcia, reduzindo a vida ao au- mento de poder. Considerando esse critério inconsistente sob mui- los aspectos, noladamente, ao Ambito socioecondmico, e gerador de terror, mesmo que em graus diferenciados, uma vez que produz a maxima: “sede operatorio ou desaparecerei”, Lyotard propde-se a as sar de considerar simplificador, Lyotard cor 2 Idem, Ibidem. 3 Idem, Ibidem. A Ider, Ibidem. 34 | cadernos Nietasche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna seguinte questao para o livro: “uma legitimacao do vinculo social, uma sociedade justa, serd praticdvel segundo um paradoxo andlogo ao da atividade cientifica? Em que consisliria esse paradoxo? Uma vez aminciada a problematica que leva Lyotard a inves tigar a condi¢aio pés-moderna, particularmente no que se refere ao saber ou aos saberes; lencionames apresentar as principais conclu- sdes ou questionamentos do autor que nos permitirao, posterior- mente, situar a questo da legitimidade desde a necessidade de uma hierarquia dos valores conforme Nietzsche, enquanto prevalente ao estabelecimento de seja qual for o jogo de linguagem proposto em termos de discurso. Assim como, um diferencial prioritario alusivo ao estatuto do poder como constituigao ou como representagao re- ferente A possibilidade da nossa vida ser “reduzida ao aumento de poder”? , consoante aos “decisores” anteriormente mencionados. Considerando como marco da denominada pés-modernidade a década de 50 do século XX, Lyotard parte da hipstese de que ha uma mudanga do estatuto do saber paralela ao ingresso da socie- dade na fase pés-industrial ¢ no advento da cultura pés-moderna. Como 0 conhecimento passa a ser traduzido em quantidades e com © que se constata como sendo a hegemonia da informatica impoe- -se outra Iégica que requer prescrigdes definidoras dos enunciados admitidos como sendo, efetivamente, “saber”. O saber deixa de ser um fim em si enquanto formagao e converte-se em mereadoria, dado que ao perder seu valor de uso, converte-se em mercadoria de troca que assume a forma de valor enquanto tal. Ha fornecedores e usud- rios do conhecimento, uma vez que, enquanto mercadoria, é produ- zido para ser vendido. Lyotard menciona que diversos fatores como a “reabertura do mereado mundial, a retomada de uma competicao econdémica ativa, 0 desaparecimento da hegemonia exclusiva do ca- pitalismo americano, o declinio da alternativa socialista, a abertura Sllem, Mbidem. 6 Idem, p. 16. cadernos Nietzsche 30,2012 | 35 Azeredo, V.D. de do mereado chinés as trocas € outros fatores” levaram os Estados a reverem seu papel enquanto agente de planificagao, tendo em vista que a alleragdo na natureza do saber tem reflexos diretos sobre os poderes ptiblicos em sua relacdo com a sociedade civil. A questo, justamente, do estatuto do saber vem a ser, a partir do problema da legitimagao que se impée, a hipdtese de trabalho de Lyotard. Convém mencionar, nesse sentido, que 0 saber cien- tifico nao resume todo saber, haja vista que 0 mesmo tem ligado ao seu conceilo o saber narralivo, enquanto mais relacionado as idéias de equilibrio interior ¢ con: do que ao exerefeio de superioridade do narrativo sobre o cienti- . O problema da legitimagdo pode ser visto desde a perspec- tiva da lei, que tem como enunciado a necessidade de os cidadaos desempenharem tal ou qual acao. Em termos de um enunciado cientifico, ele deve apresentar determinado conjunto de condigées que nos levam a considerd-lo como cientifico. Em ambos os ca- sos, ha um legislador, mas no primeito, ele promulga a lei, en- quanto no segundo, um “legislador” prescreve as condigdes para um enunciado ser integrado ao discurso cientifico ¢ accito pela co- munidade cientifica. Na ética de Lyotrad, a decisao acerea do que é verdadeiro nao é completamente independente do que é justo. E isso desde Platao, pois ha uma relacao de entrosamento no gé- nero de linguagem que se denomina ciéncia, ética e politica. Mas partindo-se da admissfio que poder e saber so duas faces de uma mesma questo: “quem decide o que € saber, e quem sabe o que convém decidir? O problema do saber na idade da informatica é mais do que nunca o problema do governo”®, A andlise dessa problematica requereu de Lyotard a adogao de um procedimento. ‘Trata-se de investigar a questo considerando 0 que denomina de fatos de linguagem em seu aspecto pragmalico. ialidade, termos de Lyotard, 7 Idem, p. 6. 8 Idem, p. M4. 36 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna Tal procedimento ¢ tributario dos jogos de linguagem de Wittgens- tein enquanto centra sua atengao nos efeitos dos discursos. Com referéncia aos jogos de linguagem, faz lés observagdes candni- cas: 1) as regras constituem um objeto de contrato explicito entre os jogadores ao invés de legitimarem-se nelas mesmas; 2) 0 jogo 56 existe na presenga de regras; 3) cada enunciado é considerado lance em um jogo. Nesse sentido, Lyotard introduz 0 conceito de agonistica geral que faz com que o jogo dela provenha e com que jogar seja combaler. Enquanto o vinculo social, como segundo prinefpio, é feito a partir de lances da linguagem, ha uma agonis- tica da linguagem que nao pode oculté-los. F através desses dois al a natureza do vinculo social na alterna- principios que ele p a moderna e€ na perspectiva pés-moderna. Lyotard vincula a reflexao acerca do saber na sociedade con- temporanea mais desenvolvida a certa representagao que dela se faz. Em vista disso ¢, grosso modo, apresenta dois modelos, quais sejam, a sociedade como um todo funcional ¢ a sociedade dividida em duas partes, cujos autores mais destacados sao Parsons ¢ Marx. Denominando essa dupla representagao da sociedade de “clivagem metodolégica”, cuja proveniéncia remonta ao século XIX, Lyotard mostra que se produzem dois d situam ou na homogeneidade ou na dualidade inerente ao social, tursos sobre a sociedade que se entre 0 funcionalismo e o criticismo do saber. Daf haver um saber positivista e um crftico ou reflexive ou hermenéutico. Ao primeiro cumpre responder ao sistema enquanto sua forga produtiva indis- pensavel, ao segundo cabe a interrogagao acerea de valores e fins. Todavia, o pensador francés n&io compartilha essa solucao de divi- sao. Ao contrario, apresenta tal alternativa como nao fazendo outra coisa a no ser reproduzir e nao tendo, por isso, pertinéncia para a relag&io com as sociedades pés-modernas ¢ seu saber, nas quis desereve mudangas radicais como as expostas na sequéncia. Digamos sumariamente que as fungoes de regulagem e, porianto. de repro- ducdo, so e serio cada vez mais retiradas dos administradores e confiadas cadernos Nietzsche 30,2012 | 37 Azeredo, V.D. de a aulématos. A grande questdo vem a ser e serd a de dispor das informagées que estes deverao ter na meméria a fim de que boas decisoes sejam tomadas. 0 acesso as informagoes & ¢ serd da alada dos experts de todos os tipos. A classe dos dirigentes é e serd dos decisores. Ela jd ndo é mais constituida pela classe politica tradicional, mas por uma camada formada por dirigen- tes de empresas, altos funciondrios, dirigentes de grandes drgdos profissio- nuis, sindicais, politicos, confessionais? As transformagdes enumeradas por Lyotard na cilag&o acima determinam outra metodologia de andlise da sociedade. Consi- derando o cardter fundante da linguagem desde o naseimento da crianga, cujos referentes histéricos narrados e seus futuros des- locamentos a pressupdem, os jogos de linguagem passam a cons- tituir-se como método geral de enfoque dessa sociedade, ja que ainda que nem toda relacdo seja um jogo de linguagem. A questao central é que 0 vinculo social é um jogo de linguagem para Lyotard e, em vista disso, € requerido para uma possivel abordagem das instituigdes é uma relagdo exigida para que haja sociedade, contemporaneas do saber. Dai a proposta lyotariana de compreen- der as relagdes sociais como uma teoria dos jogos que tenha pre- senle o elemento agonislico como pressuposlo necessario, ao invés de entendé-las como uma teoria da comunicacao. Ao tratar do saber nas sociedades mais desenvolvidas, Lyotard considera como sendo conhecimento “o conjunto dos enunciados que denotam ou descrevem objetos (...) suscetiveis de serem ver- dadeiros ou falsos””. Ora, essa especificagao é importante & me- dida que o autor toma a ciéncia como um subconjunto do saber ao invés de expresso da sua totalidade ou identidade, ja que o saber envolve outras competéncias além da denotagaio, como a enuncia- go © a avaliagdo. Uma das questées centrais referentes ao saber 9 Idem, p. 10 Idem, p.3 38 | cadernos Nietesche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna € concernente & legitimidade dele. Apontando uma incomensu- rabilidade entre a pragmatica narrativa popular, enquanto por si mesma legitimidade e a questo da legitimidade como jogo de lin- guagem do Ocidente, mostra como os relatos, ao mesmo tempo, apresentam critérios de competéncia e sua aplicacgao. Em termos de cultura, determinam o direito de dizer ¢ fazer € esto legitima- dos por ser parte dela. Lyotard examina duas versdes dos relatos de legitimagaio do saber, uma politica e outra filoséfica. “Uma é que tem por sujeito a humanidade como heréi da liberdade. Todos os povos tém direito a ciéncia”!. Nesse caso, 0 sujeito social deve ser o sujeito do sa- ber cientifico, que busca sempre reconquistar o direito & ciéncia quando esse lhe é usurpado. Esse tipo de relato tem sua orienta- cao maior sobre o ensino primario, enquanto no ensino superior aparece o relato das liberdades & medida que o Estado assume o papel de formar o povo ¢ direciond-lo ao progresso sob a égide da nagao. O outro relato de legitimagao faz um tipo diferente de elaboragao ao relacionar a ciéncia, a nagao € o Estado. Datado, em certo sentido, da fundacao da Universidade de Berlin, influenciara a organizagdio dos cursos superiores nos séculos XIX e XX, nota- damente nos pafses jovens. Sintetizado por Humboldt, 0 relato especulativo considera a singularidade da ciéncia, enquanto obedecendo a leis proprias, mas, ao mesmo tempo, ressalta que a Universidade deve estar vol- tada & formacao da nagao em termos morais ¢ espirituais. E o que Lyotard considera de conflito entre jogos de linguagem diferentes, porque um é feito de denotagdes que emanam do critério de verdade c outro de enunciados que devem ser justos. Todavia, os dois dis- cursos so imprescindfveis & Bildung do projeto humboltiano que visa, simullaneamente, a aquisigao de conhecimentos e a formagao de um sujeito legitimado do saber e da sociedade. “... assegurando 11 Idem, p.58. cadernos Nietzsche 30,2012 | 39 Azeredo, V.D. de que a pesquisa das verdadeiras causas na ciéncia nao pode deixar de coincidir com a persecucio de justos fins na vida moral e polf- tica. O sujeito legitimo constitui-se desta tillima sintese””. Na se- qiiéncia, ele acrescenta: “As escolas sao funcionais; a universidade é especulativa, isto é, filoséfica”™ . Observe-se que essa caraclerizagao da legilimagao do discurso cientifico através da especulacao ¢, portanto da Filosofia remonta ao discurso sintetizador moderno que retine os conhecimentos dispersos em uma unidade. Dai Lyotard apontar para a nogdo de S ‘0 momento, € para a Enciclopédia hegeliana em um segundo, enquanto metanarracao racional no devir do espirito. Nesse caso, a narrago da historia do que 0 filésofo francés denomina sujeito vida termina por formular a legitimidade dos discursos, tanto no 4mbito das ciéncias empfricas quanto da cultura popular. Para ele, o lugar desse metassujeito le- gitimador € a universidade especulativa. Em sintese, “O idealismo alemao recorre a um metaprincipio que simultaneamente funda- menta o desenvolvimento ao mesmo tempo do conhecimento, da sociedade ¢ do Estado na realizacao da ‘vida’ de um Sujeito que Fichte chama ‘Vida divina’ e Hegel “Vida do espfrito™". Nas regras do jogo de linguagem especulativo, os enunciados devem engen- tema em Ficthe e Shelling, num prim drar uns aos outros ¢ a instituigao exclusiva deles é a Universidade. Mas, Lyotard, visando resgatar os germens da deslegitimagao do saber no que denomina condigao pés-moderna, aponta também para 0 outro modo do sujeito de legitimagao como sujeito pratico. Ainda tributario da modernidade, esse sujeito, diverso daquele que atualiza suas possibilidades do conhecimento, é a prépria huma- nidade. Nesse sentido, ele afirma: “O principio do movimento que anima o povo nao € o saber em sua autolegitimagao, mas a liberdade 12 Idem, p. 60. 13. Idem, p.61 14. Idem, p. 62. 40 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna em sua autofundagao ou, se se prefere, em sua autogestao”!. FE um modo de legitimagao que remete a Kant na afirmagdo da autono- mia da vontade. Trata-se do jogo de linguagem que Kant chamaria imperative enquanto na atualidade é denominado prescritivo. Em ambos os casos, a legitimacao nao é direcionada pela verdade de enunciados denolativos, mas pela justiga dos enunciados prescri- tivos a medida que prescrevem o que se deve fazer. Dai Lyotard afirmar: “O saber nao é mais 0 sujeito, ele esta ao seu servico; sua nica legitimidade (mas ela é considerdvel), € permitir que a mo- ralidade venha a ser realidade!®. Nesse caso, 0 saber subordina-se completamente ao sujeito pratico, pois sua legitimidade final esta determinada pelos fins visados por esse sujeilo que, enquanlo co- letividade autonoma, faz 0 saber servir aos seus fins. so que o filésofo francés denomina reencontro da fungdo erftica do saber. HA um privilégio conferido aos enunciados preseritivos que os torna independente dos enunciados da ciéncia, uma vez que esses tilti- mos convertem-se em informagao para 0 sujeito pratico. Tal ponto, Lyotard considera interessante por negar a totalizagao dos jogos de linguagem num metadiscurso. A andlise de Lyotard acerca da legitimacao do saber torna-se instigante por assinalar as mudangas que se processaram com re- feréncia A prépria legitimagao na cultura pés-moderna, enquanto datada da segunda Guerra Mundial, no sentido de se processar a partir desse momento; um deslocamento da énfase sobre os fins para a énfase sobre os meios, assinalando o fim da credibilidade no relato seja ele especulativo ou de emancipagao. Todavia, aponta que a crise dos relatos remonta ao século XIX e, portanto & moder- nidade enquanto geradora da crise de legitimagao ou processo de “deslegitimagaio” e niilismo presentes nos grandes relatos da mo- deridade como seus germens. E isso que se processa, apesar das 15, Idem, p.O4. 16 Idem, Ibidem. cadernos Nietzsche 30,2012 | 41 Azeredo, V.D. de mudangas capitalistas ¢ do avango tecnolégico, que tém reflexos no estatuto do saber, a ciéncia contemporanea, na visdo de Lyotard, j4 senlia esses impactos anleriormente ao seu aconlecimento. Lyotard mostra como os relatos especulativo ¢ o de emancipa- Ao precipitam, desde as conexées internas que os define, a crise da legitimagdo. Ao considerar que a ciéncia posiliva nao é um saber, o relato especulativo hegeliano “contém nele mesmo (...) um ceti- cismo com relacao ao conhecimento positivo””. Ora, a decorréncia necesséria desse celicismo embrionario é a desqualificagao da ci- éncia como verdadeira, j4 que, ao nao encontrar sua legitimidade, ela é colocada no nivel da ideologia. De outra parte, em consi- derando um sentido mais préximo da cultura pés-moderna, Lyo- tard apresenta as conseqiiéncias de se accitar o saber das cién positivas como modo geral da linguagem. Essa linguagem implica pressuposigdes axiométicas que devem sempre ser explicitadas. Nesse caso, “tem-se um processo de deslegitimacao cujo motor € a exigéncia de legitimagao”™. Assim o filsofo francés aponta para um problema interno do relato especulalive quanto ao principio jas de legitimagao do saber, cuja decorréncia é a emancipagao das ci- éncias ao mesmo tempo em que se processa um afrouxar da trama enciclopédica. A crise do saber cientifico encontra na erosao do principio de legitimagao do saber sua proveniéncia. A hierarquia especulativa dos conhecimentos da lugar a uma rede imanente e, por assim dizer “rasa”, de investigagdes cujas fronteiras nao ces smembram-se_ sam de sc deslocar. As antigas “faculdades” d em institutos e fundagdes de todo tipo, as universidades perdem sua fungao de legilimagao especulativa. Privadas da responsabilidade da pesquisa que o relato especulativo abafa, elas se limitam a transmitir 17 Tem, p. 70. 18 Idem, p. 71. 4: | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna os saberes julgados estabelecidos ¢ asseguram, pela didatica, mais a reproducao dos professores que a dos cientistas'”. Quanto ao procedimento de legitimagao advindo do relato de emancipagao, Lyotard o analisa e apresenta, igualmente, seu ponto interno de erosao. Nesse caso, trata-se do estabelecimento de uma implicagao entre um cnunciado descritivo © um prescritivo. A medida que o dispositivo de emancipagao fundamenta a legitimi- dade da ciéncia através dos interlocutores da pratica élica, social ¢ politica, isto é, da prépria autonomia dos interlocutores, gera um problema de pertinéncia; pois a verdade do enunciado descritivo nao implica a jus a do enunciado prescrilivo, quer dizer, mesmo que a descrigao da realidade seja verdadeira, is so nao acarreta que o enunciado que viria a transforma-la seja justo. Daf Lyotard afir- mar a impossibilidade de a ciéncia legitimar outros jogos que nao do est4 para além do seu dominio, o seu, uma vez que a prescri mas ela nao legitima a si mesma. Isto abre 0 caminho para uma corrente da pés-modernidade. Ainda assim, situa 0 percurso de ‘ataque”, mesmo que indireto, a legitimidade do discurso da cién- cia & divisdo da razao em pura e pratica por remeter a enunciados de regras aul6nomas € perlinéncias diversas. Ha uma proliferagao de jogos de linguagem que parecem dissolver o sujeito social, pois 0 vinculo é de linguagem dando-se através de varios jogos obede- cendo a regras distintas. Pode fala todas as linguas, clas nao possuem uma metalingua-universal, 0 ¢ tirar dessa explosdo uma impressao pessimista: ninguém processo dos sistema-sujeilo é um fracasso, o da emancipagao nada tem a yer com a ciéncia, esta-sc mergulhado no positivismo de tal ou qual conhecimento particular, os sabios tornaram-se cientistas, as reduzi- das larefas de pesquisa tormaram-se tarefas fragmentérias que ninguém 19 Idem, p.72. cadernos Nietzsche 30,2012 | 43 Azeredo, V.D. de domina; e, do seu lado, a filosofia especulativa ou humanista nada mais tem a fazer senao romper com as fungoes de legitimidade, o que explica acrise que ela sofre onde ainda pretende assumi-las, ou sua redugao a0 estudo das légicas ou das histérias das idéias, quando conformando-se com a realidade, renunciou aquelas funcoes™. A andlise de Lyotard acerca do processo de deslegitimagao dos relatos permite vislumbrar a crise do saber, tanto em termos da fi- losofia quanto da ciéneia. Em ambos os casos, houve uma perda da hegemonia discursiva que remete a filosofia ao Ambito de si mesma ea ciéncia beirando a aplicagao e o desempenho enquanto critério definidor. Todavia, na visdo do autor francés, 0 que caracteriza as culturas pés-modernas é a compreensao de que a legitimacao s6 pode advir da pratica da linguagem e da interagdio comunicacional. Novamente tributaria de Wittgenstein, essa legitimagdo remete aos jogos de linguagem como outra possihilidade que nao a do desem- penho. 0 determinismo é a hipstese da legitimagao pelo desempe- nho, mas o saber cientifico contemporaneo est4 em busca de uma superagao do determinismo enquanto foco de sua crise. Consoante Lyotard, hd pouca afinidade entre a busca de desempenho e a prag- matica do saber cientifico pés-moderno. Dai ele afirmar: “o trago surpreendente do saber pés-moderno 6 a imanéncia a si mesmo, mas explicita, do discurso sobre as regras que o legitima™*'. Mas outro trago importante da ciéncia pés-moderna é transformar a le- oria de sua prépria evolucdo em algo descontinuo e paradoxal, o que remeteu Lyotard a pensar em uma legitimagio pela paralogia, haja vista que considera o prinefpio do consenso, enquanto crilério de validagao, como insuficiente e considera excluidos os relatos da dialética do espfrito e da emancipagao. 20° Idem, p. 72. 21 Idem, p.100. 4A. | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna A paralogia é apresentada pelo pensador francés como um lance, cuja relevancia de imediato nao é reconhecida, feito na prag- matica dos saberes”. Colocando a énfase da pragmialica cientifica no dissentimento, Lyotard apresenta o consenso como um horizonte que jamais sera atingido, enquanto o paradigma posto no dominio cientifico é alravessado por alguma afirmagao que desor ganiza a ordem em que esta posto. Sao novas regras de linguagem que deter- minardio o campo do saber & medida que ele é desestabilizado cons- tantemente. Em vista disso, ele afirmar: “Transposta & discussio cientifica e colocada numa perspectiva de tempo, esta propriedade implica a imprevisibilidades das ‘descobertas””2’ . Embora a prag- mat cientifica esteja envolla em enunciados descrilivos, a sua diferenga pés-modera consiste na exigéncia de regras no plano prescritivo, denominados por Lyotard metaprescritivos, jd que de- lerminam os lances que serdo aceitos nos jogos de linguagem. A paralogia revela os enunciados metaprescritivos e a legitimacao do saber se da mediante a proposigéio de novos enunciados. 0 con- senso 1 io € um valor, mas a justiga o é, tornando necessario buscar outra pratica da justica que nao a do consenso. Encontramos, en- tdo, a seguinte afirmagaio: “O reconhecimento da heterogeneidade dos jogos de linguagem é um primeiro passo nesta dirego”?'. Nao é nossa questao, aqui, recusar a paralogia ou mesmo aderir ao consenso habermasiano, mas voltar a0 momento anterior & crise dos relatos e colocar o problema em novas bases a partir de Niet- zsche. Tencionamos situar o problema desde a investigacao dos va- lores e mostrar que a manutengao de uma posigaio indiferente com referéncia a essa questo é objeto da critica do fildsofo alemao & modernidade, de sua inserg3o como extemporaneo e, por fim, da 22 Mem, p12 23 Idem, Ibidem. 24 Idem, p. 118. cadernos Nietzsche 30,2012 | 45 Azeredo, V.D. de crise gradativa dos valores que a ela se segue ¢, a nosso ver, langa © homem contemporaneo no niilismo e inaugura o que se pode de- nominar de culturas € sociedades pés-modernas A leitura de Nietzsche Nao foi fortuitamente que Nietzsche escreveu em nota & Para a genealogia da moral que havia uma necessidade de todas as ci- éncias se unirem para resolver o problema do valor ¢ da hierarquia dos valores. Vislumbrava o deserto & frente e denunciou os proces- sos que o lornariam avassalador do notadamente, em termos de hierarquia, cuja decorréncia é a ausén- cia de organizacio desde os organismos menores até as sociedades mais complexas, embora seja também produto de sua ausén ntido e do valor na cultura, ia. Efetivamente, Nietzsche teve um papel fundamental na Histéria da Filosofia ao mostrar que toda produgao humana é interpretagao, ao es de fato e de fundamento. Todavia, solapar por completo as nog com a perda de vigéncia do ideal ascético nos ambitos da filosofia ¢ da ciéncia, 0 homem contemporaneo nao sabe como agir. Nao assi- milou 0 eriar € o destruir heraclitianos como rumo e, assim, perdeu o rumo. Vemos a condicao pés-moderna como dificuldade de lidar com a perda do fundamento, uma condigéio que se inicia quando Nietzsche solapa completamente os fundamentos argumentativos da tradicao, em termos filoséficos, e que se manifesta hoje nas mais variadas esferas da cultura. Ao afirmar que existe verdade, uma vez que o valor do mundo reside em nossa avaliagao perspectiva e € ta0-somente uma interpre- tagaio proviséria, como uma falsidade em constante deslocamento, Nietzsche introduziu a interpretagdo nos dominios do mundo a par- tir de uma interpretacao e aniquilou, por completo, as nogées de fato e de fundamento. Ha de se entender com rigor essa procedimento enquanto rejeita a qualquer instancia a detengao da resposta defi- nitiva. Isso inclui o conhecimento, a moral a politica € a estética. 46 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna Efetivamente, a partir de Nietzsche ¢ com ele, nao ha dominio fun- dacionista, porque s6 existem interpretagdes, perspectivas estrita- mente provisérias que vem a ser, momentaneamente, o que é. Nao se trata de uma critica especial a antiguidade grega, A época medieval ou, ainda de forma contumaz, & modemidade, mas de entender a filosofia de Plato a Hegel como tradigao e de dirigir a critica ao secu conjunto. Ao mesmo tempo em que Nietzsche ani- quila os referenciais semanticos, introduz uma exigéncia em termos da revisao dos discursos filoséficos quando propoe oulra compre- ensao de andlise ¢ de expressao. Revisando o sentido do conceito, 0 filésofo redimensiona 0 texto ¢ o pensamento filoséfico no Amago da sua produgao e significagao. Eis o sentido nietzschiano da re- cusa do fundamento enquanto rejeicao de significados prévios ¢ afirmagdo de que existem tio-somente postulagdes. Ao conside- rar a Histéria da Filosofia em seu conjunto como alvo de erflica, Nietzsche esta criticando um procedimento, na sua visdo, recor- rente na histéria das construgées explicativas do ser, do conhecer e do agir. E esse procedimento que aproxima Platao, Descartes, Kant ¢ Hegel, por exemplo. Forma de proceder que o filésofo ge- nealogista visa a dissolver ao introduzir uma interpretagao a partir io da nogiio de uma interpretago. De outra parte, com a aniquilag de fato, Nietzsche dirige-se especificamente ao positiv o qual manteve uma estreita proximidade especialmente na época da redagao de Humano, demasiado humano. Se nesse momento ele acreditava que a ciéncia poderia ultrapassar o dominio das crengas metaffsicas; no perfodo subseqiiente, constata que a vigéncia do fato é seu tltimo refiigio, & medida que mantém o sens{vel como verdadeiro, acreditando, por conseguinte, num dominio em que a resposta definitiva possa ser encontrada. Certamente, esse procedimento filoséfico implica, para alguns, em recusar critérios para avaliar, precipitando o homem no absurdo, no sem sentido, no nada. O pensador alemao, entretanto, diria que quaisquer critérios j4 decorreriam de um avaliar, mesmo o sen- tido ou a sua recusa constituem a imposi¢ao de uma perspectiva, mo, com cadernos Nietzsche 30,2012 | 47 Azeredo, V.D. de o introduzir de uma interpretacao. A dificuldade em formular uma resposta conclusiva acerea da producio de significagées é remetida & inexisténcia de um dominio obscure no qual elas estariam guar- dadas ¢ a afirmacao de uma condi¢ao a partir da qual elas sao esta- belecidas. Ora, se houvesse uma natureza humana apta a dar conta da significagao, da verdade e da realidade, entio ela forneceria todas as explicagoes. Nada obstante, para Nietzsche, nao formula- mos nem mesmo explicagdes, jd que elas pressupdem uma fixagao do ser que s6 abstratamente se pode atingir. E porque o valor do mundo esté em nossa interpretacao que nao podemos explica-lo, mas apenas adentré-lo a partir de varios angulos, vé-lo sob diver- sos enfoques. Se sé temos um ver perspective, nosso conhecer sera perspectivo, ¢ o mundo, “que em algo nos importa”, nao podera jamais ser verdadeiro, mas 0 resultado de nossa avaliagdio e, por- tanto, a imposigao de uma interpretagao. Isso promove uma ruplura com 0 discurso filoséfico da tradigao ¢ requer que se reorganizem as esferas da cultura desde a hierarquia das interpretagoes. io um inacabamento e uma infinitude Conferir & interpretag transforma a propria filosofia, por que o que tem de ser desven- dado € 0 proceso que introduz a significacao. Dizemos proceso, porque é 0 lermo que melhor se aplica ao dinamismo presente nas configuragdes expressivas que historicamente se objetivaram em sistemas semanticos. Ainda assim, esses sistemas nao refletem fatos, ou pelo menos, nao necessariamente. E esse justamente o ponto da contenda em Nietzsche, j4 que, para ele, por tras desses sistemas se encontram avaliagées. A filosofia é apresentada como uma sintomatologia, uma semiologia, uma lipologia e uma genealo- gia, fazendo-se mister, entao, determinar o sentido e 0 aleance de um sintoma, de um signo, de um tipo e de um valor em sua relagao direta com o instituir da interpretag3o. O efetivo encontra-se no ambito do sentido e de valor, pois em nao havendo fatos, mas somente interpretagdes, sao elas que constituem a efetividade. Restringindo, nesse momento, 0 campo de andlise As produgdes humanas tem-se que para Nietzsche elas 4B | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna sao valores. Conceitos, idéias, ideais, ou mesmo signos, enquanto produgées, sao desde sempre resultante de avaliagdes e, portanto, valores. “Valores foi somente 0 homem que pds nas coisas, para se conservar — foi ele somente que criou sentidos para as coisas, um sentido de homem! Por isso ele se chama de ‘homem’, isto é: o estimador” (Za/ZA I, Dos mil € um alvos, KSA 4.75). O homem € apresentado como o estimador porque em sua relagao com as coisas dota-as de sentido, de valor em vista de sua conservagio. Afirmar isso implica que o valor nfo se encontra dado, mas que mado sendo, portanto, instituido. Todavia, essa posicao nao pode ser compreendida como a instauragao de um prinefpio para o estabelecimento de uma dada filosofia que centre o valor em uma perspectiva antropocéntrica ou subjetiva, uma vez que sua tuigdo remete a uma outra instancia que determina as produgoes. Nietzsche compreende o alo de nomear como um expli do jogo instintual presente nos dominantes, uma vez que ha uma relagdo direta entre a instituigdo do signo e 0 sentimento de do- minagdo expresso pelo direito do senhor de dar nomes. Cada acon- tecimento recehe tanto o estatuto de designado, quanto um nome, propriamente um som, cuja procedéncia em ambos remete a agio do senhor de designar, de nomear. Essas nogdes ja se configuram como uma apropriagao, j4 que o ato de nomear implica a posse do nome e, de certo modo, do acontecimento ou objeto nomeado, dat a institui¢ao do signo e do designado. A remessa de um ao outro se deve ao ato instituidor que em Nietzsche cabe ao senhor. Em vista disso, a mengao quanto a possibilidade de a linguagem ser reme- lida & “exteriorizagdo da poténcia dos dominantes: eles dizem ‘isto é isto’, eles selam cada acontecimento com um som e, com isso, como que tomam posse dele” (GM/GM I 2, KSA 5.247). A institui- ¢ao do signo, assim como do significado é desde sempre resultante, uma vez que 0 nomear, o significar ja decorrem do avaliar. Mas ha uma questao que se impée: quem interpreta? Em Niet- zsche, vollaremos a isso em outros capftulos, sdo nossos impulsos. Desse modo qualquer pergunta nesse ambito remete A fisiologia, ées cadernos Nietzsche 30,2012 | 49 Azeredo, V.D. de uma vez que Nietzsche entende 0s organismos como campos de batalha em luta continua. Os impulsos compéem os existentes € lutam permanentemente. O resultado da luta € uma interpreta- cao”. E toda interpretagao um signo, um sintoma de que ou o organismo ascende ou descende. No limite, é sempre crescimento ou declinio de condigées fisiolégicas. Mas ha de se acrescenlar que a prépria fisiologia expressa a interpretagao de Nietzsche, nao conduzindo ao termo do processo, mas ao seu proceder infinito. Podemos apenas falar de um dinamismo dos impulsos que pro- poem e impoem interpretacdes. 25 A nogao de luta (Kampf) tem uma posigao privilegiada na filosofia de Niewsche, desde A disputa de Homero ¢ O nascimento da tragédia até Assim falava Zaratusira cas demais obras do tereciro periodo. Presente em todos os momentos do discurso de Nictzsche, expressa bora com aeréseimos ¢ contornos difereneiados ao longo da elabo- ragao da obra do filésofo, Em A dispuia de Homero, a luta aparece como disputa (Wetkamp/), resgatando o sentido do agon grego que aparece na Iliada quando do combate entre os herdis, helenos, da disputa que, vista como qualidade, atua estimulando os homens a ac: wo como Hesfodo, que aponta uma Eris como ma, a saber, aquela que eonduz os homens a uta aniquiladora e hostil entre si, e depois enaltece uma outra como boa, aquela como citime, rancor, invcja, estimula os homens para a acdo, mas no para a luta ani~ quiladora, e sim para a aga da disputa” (CP Prefécio). Em A dialddica passificadora, Gératd Lebrun aponta para a retomada, no conceito de vontade de poténcia, do agon presente ja em A disputa de Homero, em que a disputa ¢ no 0 aniquilamento do adversario 6 valorizado: “Esse lransparecer um lrago caracteristice da ‘vontade de po de um jogo que da guerra total, a luta é sempre pela dominag0, nunea pelo aniquilamento do adversério”. (LEBRUN, G. A dialética pacificadora. Almanaque. Sio Paulo: Brasiliense, n. 3, p.33, 1977). Em O nascimento da tragédia, a luta aparece desde a ago de dois impulsos an- tagénicos, o apoline pais proxime o dionisfaco, respectivame criagao depende da dualidade dos sexos, em que a luta 6 incessante e onde intervém periodos de reconciliagao”. (NT § 1). Quando da clabora¢io de Humano, demasiado humano, a luta relomna mas, nesse e com a vida enquanto prazer, estando vinculada & busca de prazer: “Nao existe vida sem prazer; a luta pelo prazer 6 a luta pela vida” (MA 1 104, KSA, 2.100). No terceiro periodo, a luta passa a ter um cariter mais abrangente wanto entendida como trago da vida. Todo 0 existente é visto como um campo de batalha, ido, assim, desde a luta omento, rel 50 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna bilitam, de um Os impulsos sao elementos centrais que pos lado, determinar o estatuto € 0 alcance da interpretagdo em Niet- zsche e, de outro, apreender o sentido, em sua acepgao, de um sintoma, de um signo, de um tipo ¢ de um valor, j4 que, na sua argumentagao: “Por trés de toda légica e de sua aparente soberania de movimentos existem valoragdes, ou, falando mais claramente, exigéncias fisioldgicas para a preservacao de uma determinada es- pécie de vida” (CM/GM 13, KSA 5.247). As exigéncias fisiolégicas referem-se direlamente as condigdes manifestas pelos impulsos em termos de uma agregacao hierarquizada que promove o seu cresci- mento ou a desagregacaio completa deles que determina seu de! nhamento. Devido a uma ou outra condigao processa-se o eslimar, o avaliar e, por conseguinte, o introduzir de interpretagoes. A genealogia, na stica nietzschiana, cumpre justamente perscrular os sucessos ou fracassos fisiolégicos que se expressam nos valores. Por isso, detém-se no conhecimento da criacdo das condigées de criagtio dos valores perguntando pelo préprio valor deles. O valor, para a genealogia, apresenta dois aspectos: por um lado, é 0 ponto de partida para a avaliagao, por outro, é estabelecido a partir de uma dada avaliagdo. A questo da avaliagao € 0 ponto principal para o estabelecimento do valor de um valor em sua referéncia & promocao ou obstrugao da vida. Para Nietzsche, toda e qualquer atividade humana se apresenta como avaliagéio, mas essa avaliagdo é desde sempre o introduzir de uma interpretacdo. Quem interpreta nado é um existente movido pela cognigao, mas as lutas entre 0s diversos impulsos. Hé uma correspondéncia entre nossos impulsos e nossas avaliagdes, uma vez que estas tltimas decorrem de um crescer ou de um declinar que se expressa em estimativas de valor. Eis 0 porque do esta- belecimento de uma tipologia, j4 que o caraler agonistico pre- sente no instituir do valor remete a perspectivas divergentes que em termos de suas manifestagdes no homem remontam a tipos disjuntivos denominadas pelo filésofo senhor/nobre e escravo/vil. Remetem a constituigdes dispares que, no limite, expressam a cadernos Nietzsche 30,2012 | 51 Azeredo, V.D. de condigao de uma vida, os seus sucessos ou fracassos fisiolégicos. Compreende-se, a partir disso, a conhecida estratificagao nietzs- chiana que, tendo por pano de fundo a questo fisiolégica aplic: ao organismo, estabelece a disjungao forte/fraco. Assim, a genca- logia cumpre papel decisivo, pois, ao identifiear o duplo aspecto existente no valor, refere-o ao lipo que o instilui, ao determinar 0 a tipo remete-o & sua condicao de vida e ao conferir a vida seu card- ter agonistico a compreende enquanto jogo permanente de nossos impulsos; cujo resultado obtido em termos de fracasso ou éxito na obtencao de mais poténcia constitui a prépria interpretagao. Convém mencionar que em Para além de bem e mal. pardgrafo 22, Nietzsche admite que toda sua filosofia ¢ uma interpretagao ao afirmar: “Mas como se comenta, isso é interpretagao, nao texto” (IGB/BM 22, KSA 5.37). Em que pese o julgamento do autor dis- linguir e privilegiar sua interpretagao por conta do alargamento de perspectivas que ela introduz, nao faz da prépria leitura O texto, mas mais um texto inserto no devir das lutas entre impulsos que configuram inlerpretagdes. Nesse sentido, entendemos que duas palavras fornecem a tonica, j4 que circunscrevem um tipo de procedimento: ou bem se tata de tornar algo inteligivel ou de interpretar algo. Em Nietzsche, com certeza, nao se tem um mesmo procedimento No primeiro caso, pode-se dizer, busca-se eliminar pontos ambiguos e obscuros, precisar conceilos, apresentar razGes que digam porque ‘q’ é 0 caso. No segundo, procur enquanto o postular de uma interpretagao, 0 impor de uma pers- pectiva. Ha pressupostos diferentes que subjazem aos dois modos de proceder, pois no primeiro deles acredita-se na possibilidade de atingir a verdade, ja que ela é condicionante de clareza, preciso e justificagao. No outro, a propria verdade ja € imposta perspectiva- elaborar ficgdes, formular “explicagdes” mente, pois a verdade seria uma ficgado. A competéncia dos érgaos aptos para o conhecimento de algo diferira em uma e outra forma de abordagem separando diametralmente o explicar do interpretar. 52 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna Essa formulagao, mais presente nos Fragmentos pdstumos, da continuidade ao problema do valor, pois valorar é interpretar e isso define o humano em Nietzsche. Assim, 0 problema central da mo- dernidade foi nao ter colocado a questao em termos de valores ¢ de interpretagao, tanto em Kant quanto em Hegel. Isso, a nosso ver, precipitou o homem em uma condigao de auséncia de hierar quia devido a perda do fundamento que se seguiu a modernidade, entendida de Descartes a Hegel, e que inaugurou o que Lyotard denomina de condig%o pés-moderna. Em nossa avaliagdio, essa condigao se manifesta pela auséneia de hicrarquia decorrente da perda do fundamento, remontando a proposigao nietzschiana dos conceilos de sentido € valor. de sentido ¢ Ora, foi a introducao na filosofia dos conccitos de valor, por Nietzsche, que promoyeu uma inversao critica, jus- tamente por ndo tomar o valor como algo estabelecido, pergun- tando, entretanto, pelo valor desse valor. Os valores, de um lado, norteiam uma avaliagao e, de outro, procedem de uma avaliagao. Se o problema critico é problema da criagao, enlao a questo cen- tral seria: de onde procede esta avaliagao? Essa pergunta nao foi feita por Kant e Hegel que Nietzsche denomina de trabalhado- res filosdficos. Eles postularam o absoluto seja como “eu penso”, que acompanha todas as representagoes, ou como imperativo que determina as agdes, em Kant, seja como “espfrito absolute” que se desenvolve em Hegel. Nao foi introduzida a questo acerca do valor do valor e nem a percepeao minima de que s6 existem ava- liages. Mas Nietzsche néo queria precipitar o homem no absurdo, no sem sentido, no nada, mas apenas relirar seu véu de maia e mostrar que se cria pelo prazer de criar e se destréi pelo prazer de destruir em um ritmo heraclitiano. Nessa perspectiva, principalmente Kant ¢ Hegel obstruem no- vamente a questo fundamental: ‘Quem?’ Quem toma como critério de avaliagao a utilidade? O que quer aquele que faz da utilidade critério de avaliagao? E na nogao de fildsofos propriamente ditos, ou filésofos do futuro, que se encontra a chave nietzschiana para cadernos Nietzsche 30,2012 | 53 Azeredo, V.D. de proceder & transvaloracao dos valores da tradigao. Gragas A sua fortaleza, suportariam um grau maximo de verdade no sentido de criagdo, isto é, leriam compeléncia para compreender o limite no qual se processa a doacao de valores, qual seja, a imposicao de uma interpretagao. Eis 0 porqué da transformacao que faz do seu conhecer um criar e do seu eriar uma legislagao. Em tais filésofos, a vontade de verdade é entendida como vontade de poténcia ¢ toda afirmagdo é vista como 0 expressar de uma avaliag%o. Consoante Nietzsche, amaram também suas verdades esses filésofos, embora nao queiram que outros as amem, pois que sua verdade jamais sera verdade para todos sem deixar de ser sua. A tansvaloragao € uma larefa que Nietzsche reclama para si € para os “novos filésofos”, cuja denominagao de novos encontra apoio na prerrogativa de poderem transvalorar valores eternos. Essa é a condiga&o apontada por Nietzsche para executarem-na: possuir, simultaneamente, forca € ousadia, isto é, uma constituicado fisiolégica bem lograda que exija a destruigao dos antigos valores e a criagdo de novos. Em Para além de beme mal afirm: filosofos. nao ha escolha; para espiritos fortes ¢ originais o bastante para estimular valorizagoes opostas e transvalorar e transtornar ‘va- lores eternos” (JGB/BM 203, KSA 5.126), em termos da necessi- dade presente, nesses filésofos, para a tarefa da transvaloragao, ¢ acrescenta, na seqiiéncia, acerca de seu ensinamento: “Ensinar ao homem o futuro do homem como sua voniade, dependente de uma vontade humana, e preparar grandes empresas ¢ tentativas globais de disciplinagao e cultivo...” (JGB/BM 203, KSA 5.126). Diversas questes estdo implicadas na nogao nietzschiana de novos filésofos ou filésofos do futuro. Ha uma diferenga marcante entre eles e os filésofos que cultuam os valores em curso, denomi- nados também de trabalhadores filoséficos, qual seja, a condigéio de um e de outro. Trata-se aqui de uma prerrogativa do discurso nietzschiano que encontra apoio na sua nogao de tipologia. Fa distingdo entre um tipo forte, cuja condigao fisioldgica, que se manifesta através de suas avaliagdes, expressa um bom sistema “Para novos 5A | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna de vassalagem entre os impulsos ¢ uma condigao fraca que ex- prime, ao contrario, uma desagregacdo hierdrquica. Consoante o pensador, o filsofo legislador € 0 filésofo do futuro, aquele a quem cabe 0 manejo do martelo visando a destruir ideias ¢ ideais. Nao Ihe cumpre a manutengéio do dado. Isso foi tarefa dos livres-pen- sadores, que, ao acreditarem na incondicionalidade da verdade, acaharam por empreender uma defesa do estabelecido. 0 filésofo do futuro é apresentado como médico, artista e legislador, cujas tarefas precipuas eslariam determinadas pela interpretagao dos sintomas, pela moldagem dos tipos e pela determinagao do nivel. A interpretagdo dos sintomas remete & compreensdo do sentido da forga. Na configuragao dos tipos, identificam-se as dissimetrias que configuram interpretacoes. Mediante a determinagao do nivel, chega-se a hierarquia dos valores e & possibilidade da transvalora- cao. Essa trfade, proposta para o fildsofo, estabelece certa unidade entre a filosofia e a ciéncia, que fornece as condigdes necessdrias para a tarefa fundamental do filésofo, o estabelecimento de uma hierarquia dos valores: 0s filosofos propriamente ditos, porém, sao comandantes e legisladores: eles dizem ‘Assim deve ser!”; sao eles que determinam o Para-onde? ¢ 0 Para-qué? do homem e para isso tém a seu dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosificos, de todos os dominadores do passado - estendem suas matos criadoras em diregdo ao futuro, ¢ tudo 0 que 6 foi se torna para eles meio, instrumento, martelo. Seu ‘conhecer’ é criar, seu eriar é uma legis- lagao, sua voniade de verdade é vontade de poténcia - Hi hoje tais filésofos? Houve ja tais fil6sofos? Nao é preciso haver tais filésofos?...” (JCB/BM 203, KSA 5.126). Em nossa avaliagao, Nietzsche rompe com o discurso filoséfico moderno ao introduzir a interpretacdo nos dominios do mundo € 0 procedimento genealégico como método possivel de compreensio do sentido e do valor inscritos no devir da histéria. Se a crise dos re- latos langou ao problema da legitimacao em Lyotard, em Nietzsche cadernos Nietzsche 30,2012 | 55 Azeredo, V.D. de encontramos a ciéneia atrelada ao ideal aseético na moderni- dade e, com a supresstio desse ideal a precipitagao no niilismo. Em a Gaia ciéncia, no paragrafo intitulado ‘Em que medida ainda somos devotos’, cle afirma com relagao a postulagao de outro mundo, que “a fé na ciéncia pressupée, afirma outro mundo que nao o da vida, da natureza e da histéria; e na medida em que afirma esse ‘outro mundo’ - nao precisa negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo?” e acrescenta, no final do texto, que a pressuposigaio presente na afirmagao de outro mundo é a devogao & metaffsica: a nossa fé na ciéncia repousa ainda numa crenca metafisica - que também nés, que hoje buscamos o conhecimento, nés, ateus e an- nelafisicos, ainda Uramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crenga crista, que era também de Platao, de que Deus € a verdade, de que a verdade é divina...” (FW/GC 344 KSA, 3. 574). Assim, vemos que o problema, conforme nossa compreensio desde Nietzsche, remete a tradigao, por um lado, e ao discurso de Nietzsche, por outro, como efetiva ruptura com o diseurs © com os pressupostos da modernidade e da tradigao. Todavia, con- forme afirmagao anterior, Nietzsche é extemporaneo, uma vez que nao se seguiu a ele os filésofos do fuluro e no se passou a entender como problema central da filosofia ¢ das ciéncias a hierarquia dos valores, enquanto permissao possivel do estabelecimento do lugar da filosofia, da ciéncia, da literatura e da arte na cultura. Nietzs- che nao abandona os critérios, embora rejeite o fundamento. O que propoe como critério para avaliar as interpretagdes 6 0 aumento de poténcia e a ampliagdo de perspectivas. Quanto mais perspectivas uma interpretag4o puder incorporar, maior seu estatuto de legitimi- dade. Nesse sentido, poderiamos dizer que a legitimidade pode ser pensada a partir de Nietzsche desde a incorporagao de perspecti- vas nas esferas do saber. Nao se trata de um problema de verdade ou de justiga, que sao valores, mas da avaliagao que determina seu valor e instaura uma perspectiva acerca do mundo. filoséfico 56 | cadernos Nietzsche 30, 2012 Iyotard ¢ Nietesche: a.condigito pés-moderna Por fim, falta-nos efetivar a analisa da questao do aumento de poder desde a ética nietzschiana que compartimos. Na caracte- rizagdo dos tempos pds Lyotard faz mengao a atitude dos decisores de tentar gerir a socia- bilidade a partir da “comensurabilidade dos elementos € a deter- minabilidade do todo”? modernos, na parte introdul6ria do livro, °, Trata-se do que se denominam matrizes input/output que acarreta a legitimagao através de performances do sistema. F nessa perspectiva que a vida se reduz ao aumento de poder. Mas € preciso estabelecer uma diferenga nielzschiana muito pertinente com relacao ao préprio estatuto do poder. O po- der aparece de dois modos, quais sejam, como constituigao e como representagao. No p: iduo em questao sabe-se detentor de um poder e, por isso, nao precisa dominar ou extermi- nar o adversdrio. O estatuto da constituigaio requer 0 agon grego. Cada participante mantém-se no jogo ou na batalha e o resultado de cada disputa lhe confere a legitimidade. No segundo caso, 0 da representagéio, 0 individuo precisa negar 0 outro, elimina-lo da disputa porque se trata de criar para si uma representagao dele neiro caso, 0 indi mesmo como detentor de um poder que nao lhe constitui. Nesse caso nao ha processo de legitimagaio. Em nossa avaliagao, a legiti- magao através da efi nesse sentido, a legitimagao nao é procedente. cia expressa o poder como represenlacao e, Abstract: In this article, we will introduce Lyotard thesis about the post~ -modem condition in the socicties and cultures more developed since the crisis of speculative and emancipation reports which generate, from themselves, the problem of the delegitimation of knowing, We will follow Lyotard in his position about the impossibility of consensus and the existence of new rules which destabilize the knowing, in a conti process, which the recognition of the heterogeneity of language games nts to a possible legitimation by paralogy. However, we shall insert 26 LYOTARD, J.-F.A Condigaio Pais-Moderna. José Olympio, 2011. p. 16. rad. Ricardo Corréa Barbosa, Rio de Janeiro: cadernos Nietzsche 30,2012 | ST Azeredo, V.D. de the philosophical speech of Nietas the refusal of Fac eas the rupture with tradi through the are only interpretations. We shall introduce the necessity of hierarchy asa ke to the determination of the place of philosophy, literature and science Key-worde: post-modem condition — language games — paralogy ~ hie- rarehy — values 1 of the foun flirmation thal there referéncias bibliograficas 1. LYOTARD, J.-B. A condigao pés-Moderna. ‘Trad. Ricardo Corréa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. 2. MARTON. S. Nietzsche, das forcas césmicas aos valores humanos. Sao Paulo: Brasilicnse, 1990. CHE, F. Stimtliche Werke - Kritische Studienansgabe, edigao organi- zada por Giorgio Collie Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1967/1978. 15 vol. Oeuvres philosophiques completes. Edigao organizada por Giorgio Collie Mazzino Montinari. Paris: Gallimard, 1971/1997. 18 vol. Para além de bem ¢ mal. Trad. Paulo César Souza. Sao Paulo: ‘ompanhia das Letras, 1992. Genealogia da Moral, Trad, Paulo César Souza. Sao Paulo: Brasiliense, 1987. 6. Gaia Ciencia. Trad, Paulo César Souza. Sio Paulo: Companhia das Letras, 2001. 3. Artigo recebido em 12/11/2011. Artigo accito para a publicagio em 10/12/2011. 5B | cadernos Nietzsche 30, 2012

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