Você está na página 1de 5

6/26/2021 A sra. Dalloway e o sr.

Bloom vão às compras

A sra. Dalloway e o sr. Bloom vão às compras


Vitor Alevato do Amaral
22 de janeiro de 2021

24

Mestres do romance, James Joyce e Virginia Woolf têm semelhanças biográficas e convergências literárias (Fotos: Reprodução)

Quando James Joyce nasceu, em 2 de fevereiro de 1882, em Dublin, Virginia Woolf (então Virginia


Stephen), nascida em 25 de janeiro do mesmo ano, em Londres, tinha apenas oito dias de vida. Ambos eram
súditos da rainha Vitória, já que a independência da Irlanda só ocorreria no século 20. Essas não são as
únicas coincidências nas suas biografias. Woolf e Joyce escreveram obras reconhecidas como pontos
máximos da literatura modernista.

Ambos escreveram romances, contos e ensaios, além de terem se aventurado no teatro: Woolf
com Freshwater (1923) e Joyce com Exilados (Exiles, 1918). Entre os dez romances escritos por Woolf,
de A viagem (The Voyage Out, 1915) a Entre os atos(Between the Acts, 1941), destacamos aqui Sra.
Dalloway (Mrs Dalloway, 1925) e Passeio ao farol (To the Lighthouse, 1927). Da lavra de Joyce,
sobressaem quatro obras: Dublinenses (Dubliners, 1914), Um retrato do artista quando jovem (A Portrait of
the Artist as a Young Man, 1916), Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Todas essas obras já foram
traduzidas para o português.

James Joyce estudou em colégios jesuítas e se formou em Letras Modernas pela University College Dublin
em 1902. Sua infância foi marcada pela decadência financeira da família, que obrigou os Joyces a diversas
mudanças de endereço. Quando seu pai não pôde mais arcar com os preços de Clongowes Wood, reputado
colégio interno jesuíta, ele passou por um interlúdio na Christian Brothers School antes que lhe fosse
conseguida uma vaga como bolsista em Belvedere. Como essa escola, também dirigida por jesuítas, não o
mantinha ocupado por tempo integral, Joyce teve a oportunidade de explorar a cidade.

https://revistacult.uol.com.br/home/sra-dalloway-e-o-sr-bloom-vao-as-compras/ 1/5
6/26/2021 A sra. Dalloway e o sr. Bloom vão às compras

Sua obra é marcada por elementos biográficos, que Joyce soube utilizar com maestria, pelo
experimentalismo formal e temático, e pela rebeldia. Joyce não se deixou vencer pela censura e lutou para
que suas obras fossem impressas como ele queria. Foram precisos dez anos para que um editor, na
Inglaterra, aceitasse publicar Dublinenses. Quanto a Ulysses, teve que ser publicado na França e chegou a
ter cópias queimadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. Contra as duas obras, pesava a força da censura,
que fazia o medo de processos judiciais vencer o ímpeto de publicar. Mas Joyce, como seu alter
ego Stephen Dedalus, de Um retrato, estava disposto a romper com tudo em que não acreditava:

Não servirei àquilo em que não mais acredito, chame-se minha casa, minha pátria ou minha igreja: e
tentarei me expressar por alguma forma de vida ou arte tão livremente quanto possa e tão completamente
quanto possa, usando para minha defesa as únicas armas que me permito usar –silêncio, exílio e astúcia.

Nascida na capital do Império Britânico, Virginia Woolf teve percurso de vida diferente do de Joyce,
contudo não mais fácil. Ela escreveu em seu diário que era “a única mulher na Inglaterra livre para escrever
o que quisesse”. É preciso pôr essa afirmação em perspectiva. De fato, ninguém, principalmente uma
mulher, era livre para escrever o que quisesse sem temer consequências em 1925, data da anotação no diário
de Woolf, a menos que o que se quisesse expressar estivesse de acordo com as normas morais estabelecidas.

Ampliando ainda mais a perspectiva, compreendemos melhor a afirmação da escritora. Woolf, na condição
de “mulher” e “livre” que ela mesma ressaltou, teve circunstâncias de vida favoráveis do ponto de vista
econômico e intelectual. Em uma sociedade resistente à educação das mulheres, seu pai, Leslie Stephen,
deu-lhe a liberdade fundamental: a jovem Virginia pôde ler à vontade! Ainda que seu acesso à universidade
tenha sido limitado, a criação de Woolf lhe permitiu ter a autoconsciência necessária para entender a
condição geral da mulher em seu tempo e sua condição de mulher, escritora e livre. Woolf atuou como
voluntária na campanha pelo voto feminino e recusou-se a receber títulos honorários das Universidades de
Manchester e Liverpool.

Ela viajou para países como França, Irlanda, Itália, Grécia e Turquia, mas, como Joyce, não saiu da Europa.
Em 1904, publicou seu primeiro texto, uma resenha no Guardian. Aqui, outra coincidência, os primeiros
contos de Joyce foram publicados no mesmo ano. E, claro, 1904, foi tão importante para ele que o dia 16 de
junho daquele ano foi homenageado em Ulysses.

No ensaio “Ficção moderna” (“Modern Fiction”, cuja primeira versão é de 1919), ao elogiar Um
retrato e Ulysses, reconhecendo que Joyce estava “preocupado em revelar a todo custo as centelhas daquela
chama interior que cintila suas mensagens através do cérebro” e que era capaz de escrever algo em que se
pode encontrar “a vida”, Woolf identificava uma das principais qualidades da literatura modernista: o
interesse pelo tempo. O pensamento de Henri Bergson e William James penetrava a literatura; a vivência do
tempo importava tanto ou mais do que a sua passagem. O que ocorria em um minuto não era percebido
pelos escritores apenas objetivamente, pela exterioridade, mas também subjetivamente, pela interioridade
de quem vivia aquele minuto. A literatura de Woolf e Joyce fazia parte dessa mudança de olhar sobre a vida
e sobre o tempo que implicou mudanças na construção de enredos e personagens.

Leopold Bloom, de Ulysses,


e Clarissa Dalloway, de Sra.

Dalloway, são as personagens

mais conhecidas de Joyce e

https://revistacult.uol.com.br/home/sra-dalloway-e-o-sr-bloom-vao-as-compras/ 2/5
6/26/2021 A sra. Dalloway e o sr. Bloom vão às compras

Woolf e, não seria exagero


afirmar, das mais emblemáticas
da literatura do século 20.
 

No dia 16 de junho de 1904, o sr. Leopold Bloom sai de sua casa na Rua Eccles, n. 7, em Dublim, para
comprar rim para o café da manhã seu e da mulher, Molly. Ele prepara o café, vai ao banheiro (alguma
personagem da literatura “séria” já tinha sido antes flagrada no banheiro pensando nas hemorroidas?), sai de
casa e só volta na madrugada do dia 17, proporcionando à esposa uma tarde com seu amante. É verão,
Bloom precisa de um banho. Ele, que trabalha captando clientes para anunciar nos jornais, passa pela
redação. Bloom também precisa comer, fazer as contas, escrever para a amante por correspondência. Mais
para o fim do livro, ele se encontra com Stephen Dedalus na zona da luz vermelha. Ulisses e Telêmaco, pai
e filho, finalmente juntos. Antonio Houaiss, tradutor do romance no Brasil, estava certo quando disse que
Joyce escreveu um romance que ressalta o heroísmo do homem comum, demonstrando que “somos todos,
de Ulisses a João da Silva, feitos da mesma argamassa”.

Certa manhã de junho de 1923, a sra. Dalloway decide que vai “comprar as flores ela mesma”. A guerra
tinha terminado e o rei e a rainha estavam no palácio. Reina a paz naquela manhã de junho e a sra.
Dalloway vai organizar uma festa em casa, à noite. Nada mais banal e, no entanto, todo o romance de Woolf
tem na festa o seu grande motivo. Ao sair de casa, naquela manhã, Clarissa Dalloway, casada com Richard
Dalloway, político e membro do parlamento inglês, encara Londres, com suas pessoas, movimentos e
ruídos. Até mesmo um avião faz com que as pessoas olhem para o alto. Septimus, veterano de guerra
traumatizado, está na cidade com sua mulher para uma consulta como o dr. Bradshaw. Mais tarde, ele vai
cometer suicídio e o médico, presente à festa, vai comentar o ocorrido, levando o mundo de Septimus e o de
Clarissa a se encontrarem durante a festa.

Da manhã à noite, acompanhamos a sra. Dalloway e suas lembranças. Como em Ulysses, tudo se passa em
menos de vinte e quatro horas, preenchidas da vida das personagens, principalmente da vida da
protagonista. Não é o tempo objetivo dos ponteiros do relógio que mais importa, mas aquela “chama
interior” à qual Woolf tinha se referido com relação a Joyce; a chama que trabalha na mente e que não pode
ser medida em minutos; a chama vivida. Em Ulysses e em Sra. Dalloway, essas chamas interiores, ou
consciências, fluem, e Joyce e Woolf sabem nos dar acesso a elas, cada um à sua maneira, com sua técnica.

Que Ulysses é o grande romance do século 20, não é preciso ter dúvida em afirmar. Mas o que significa
“grande”? Para alguns, o melhor. Mas isso é discutível. Afinal, o que é “melhor”? Fiquemos, então, com
“mais influente”. Ulysses, o romance que vem à mente quando se pensa nos limites do romance (Finnegans
Wake já ultrapassa qualquer limite). Mas teve Ulysses alguma força sobre a escrita de Sra. Dalloway?

Com essa pergunta em mente, é ao menos intrigante sabermos que, depois de ler Ulysses, Woolf cogitou
chamar Sra. Dalloway de As horas (The Hours). (E se você pensou no romance de Michael Cunningham,
adaptado para o cinema com Nicole Kidman no papel de Virginia Woolf, acertou na mosca!) Teria ela
cogitado dar destaque ao tempo já no título de seu romance pensando nas horas de Ulysses?

https://revistacult.uol.com.br/home/sra-dalloway-e-o-sr-bloom-vao-as-compras/ 3/5
6/26/2021 A sra. Dalloway e o sr. Bloom vão às compras

As vidas de Woolf e Joyce


quase se cruzaram quando
a Hogarth Press, editora do
casal Leonard e Virginia
Woolf (Virginia recebeu o
sobrenome Woolf ao casar-se
com Leonard), aberta em
1917, considerou publicar
o romance de Joyce.
 

Em uma carta a Harriet Shaw Weaver, amiga e benfeitora de Joyce, de julho de 1918, Joyce acusava o
recebimento de A viagem, romance de Woolf que ele pretendia começar a ler sem demora, e pedia que
Weaver agradecesse à escritora pelo interesse em seu Ulysses. À altura, Woolf tinha lido apenas os quatro
primeiros episódios do livro publicados pela revista Little Review.

Apesar do interesse genuíno do casal na publicação do romance, os Woolfs se recusaram a publicar o livro
de Joyce. A desculpa foi polida: com as prensas manuais de que dispunham, um livro tão grande levaria ao
menos dois anos para ser impresso. Se essa questão prática foi ou não preponderante, é fato que Virginia e
Leonard temiam ser processados pela publicação de tal conteúdo. Leonard chegou a conversar com outros
editores, que o desencorajaram, alegando que nenhuma editora que zelasse por sua reputação poderia
endossar aquele material.

Mesmo a editora da mulher inglesa livre para escrever o que bem entendesse não deixou de temer pagar
algum preço pelas liberdades de Joyce. Talvez a história tivesse sido outra se ela tivesse apreciado o
romance sem reservas. Mas, o fato é que Ulysses, mesmo em seu promissor início, era para ela a obra de
um escritor cuja liberdade criativa foi possivelmente vencida pelo rigor do método. Ao avançar na leitura,
passou a considerar o livro “de baixa qualidade, vulgar”. Mas acrescentou: “pode ser que eu revise essa
impressão mais tarde”.

Em setembro de 1922, ao terminar de ler Ulysses, ela anotou:

Acabei Ulysses e acho um fracasso. Até que tem gênio, acho; mas de estirpe inferior. O livro é prolixo. É
repugnante. É pretensioso. É vulgar, não apenas no sentido óbvio, mas no sentido literário. Um escritor de
primeira linha respeita demais a escrita para ser traiçoeiro; exagerado; querer aparecer. Penso o tempo todo
em algum estudante convencido, cheio de qualidades, mas tão autocentrado e egoísta que perde a cabeça, se
torna extravagante, amaneirado, barulhento, inquieto, que faz as pessoas bondosas sentirem pena dele e as
mais severas apenas se aborrecerem; só se pode esperar que ele supere isso; mas como Joyce já tem 40
anos, é bem pouco provável que consiga.

Mas ela também confessou ao diário que não leu o livro com atenção e que ele podia ter mais qualidades do
que ela fora capaz de captar em uma leitura. Ainda em setembro, depois de ler uma resenha do livro, ela
reconheceu que a obra talvez tivesse mais valor do que ela julgara de início, mas não quis anular as suas

https://revistacult.uol.com.br/home/sra-dalloway-e-o-sr-bloom-vao-as-compras/ 4/5
6/26/2021 A sra. Dalloway e o sr. Bloom vão às compras

“primeiras impressões”: “Tenho que reler alguns capítulos. Provavelmente a beleza última da escrita jamais
seja sentida pelos contemporâneos; mas eles devem, eu acho, ao menos ficar desconcertados; e isso eu não
fiquei”.

T.S. Eliot perguntou a Woolf como alguém poderia escrever novamente depois do prodígio que era o último
capítulo de Ulysses. Quase vinte anos depois, em 1941, ela se lembrava da conversa com Eliot sem ainda
compreender o entusiasmo do amigo com o livro. Mas, ela também se perguntava: “Devotaríamos nossas
vidas a imprimi-lo?” E nós nos perguntamos: reside nessa indagação um sentimento de que a Hogarth Press
perdera a oportunidade de publicar uma das principais obras do século 20?

O sr. Bloom e a sra. Dalloway são personagens exemplares da literatura ocidental. Profundas, redondas e
surpreendentes sem, no entanto, ofuscarem o cenário dos romances em que aparecem. Antes, integram-se a
eles e às demais personagens. Bloom não seria o mesmo sem Dedalus e Dublim; Clarissa não seria a mesma
sem Septimus e Londres. Nos dois romances, aprendemos que as pessoas, como as personagens de Sra.
Dalloway, estão “ligadas [umas às outras] por um tênue fio que se esticaria mais e mais, se tornaria mais e
mais tênue.”

Joyce e Woolf, mestres do romance, souberam criar narrativas tão primorosas do ponto de vista técnico que
suas grandes personagens, em vez de imperiosos centros de órbita desinteressados do mundo ao redor, são
parte dele e revelam para nós a sua – e a nossa – humanidade.

Nascidos ambos em 1882, Joyce e Woolf morreriam em 1941. Joyce morreu em 13 de janeiro, em um
hospital de Zurique, após ter passado por cirurgia em razão de uma úlcera duodenal perfurada. Dois dias
depois, Woolf anotou em seu diário: “Então Joyce está morto: Joyce, cerca de duas semanas mais novo do
que eu”. Woolf, que já enfrentara diversos colapsos nervosos, matou-se, atirando-se no rio Ouse, em 28 de
março.

Vitor Alevato do Amaral leciona Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal Fluminense. Está
atualmente trabalhando na tradução dos poemas de ocasião e poemas da juventude de James Joyce. Entre
01 e 03 de fevereiro de 2021, vai ministrar o curso online “Introdução à obra de James Joyce” pelo Espaço
Cult.

https://revistacult.uol.com.br/home/sra-dalloway-e-o-sr-bloom-vao-as-compras/ 5/5

Você também pode gostar