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DOI: 10.22199/S07187475.2018.0001.00003
IARA FALLEIROS BRAGA 1 ; MANOEL ANTÔNIO DOS SANTOS 2 ; MARILURDES SILVA FARIAS 3 ;
MARIA DAS GRAÇAS CARVALHO FERRIANI 3 ; MARTA ANGÉLICA IOSSI SILVA 3
1. UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA, Departamento de Terapia Ocupacional, João Pessoa - Paraíba, Brasil;
2. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Departamento de
Psicologia e Educação, Ribeirão Preto - São Paulo, Brasil;
3. ESCOLA DE ENFERMAGEM DE RIBEIRÃO PRETO - EERP/USP DEMISP - Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e
Saúde Pública, Ribeirão Preto - São Paulo, Brasil.
RESUMO
INTRODUÇÃO: A violência e preconceito contra a população LGBT tem ganhado destaque na produção acadêmica mundial,
evidenciando um número crescente de adolescentes e jovens vitimizados. OBJETIVO: compreender as experiências de violência
vivenciadas por adolescentes e jovens que se autodefinem como homossexuais, sob a perspectiva analítica Queer. METODO:
Trata-se de um estudo qualitativo, realizado em um município do interior paulista. Participaram 12 adolescentes e jovens, cujo
interesse erótico e/ou práticas afetivo-sexuais se voltavam para pessoas do mesmo sexo. A coleta de dados foi realizada por meio
de entrevista semiestruturada e os dados foram analisados de acordo com pressupostos do método de interpretação de sentidos,
com apoio em conceitos da Teoria Queer. RESULTADOS: a perpetuação de uma cultura heteronormativa e violenta sanciona
punições aos dissidentes da norma heterossexual e que adolescentes e jovens que não seguem a suposta linearidade entre sexo,
gênero, desejo e práticas sexuais são subalternizados, tornando-se vulneráveis a diversos tipos de violências e preconceitos, tanto
em espaços públicos como privados. CONCLUSÕES: O estudo sugere a necessidade de construir uma agenda de pesquisas para
melhor compreensão desse fenômeno e delineamento de políticas públicas para sensibilizar e habilitar profissionais na prática do
cuidado.
PALAVRAS-CHAVE: Violência; Homossexualidade; Adolescência.
ABSTRACT
INTRODUCTION: Violence and prejudice against the LGBT population have gained prominence in the academic world, showing an
increasing number of victimized adolescents and youths. OBJECTIVE: To understand the experiences of violence lived by
homosexual adolescents and young people, from the Queer's analytical perspective. METHOD: This is a qualitative study, carried
out in county of São Paulo, Brazil. Twelve adolescents and young people, whose erotic interest and/or affective-sexual practices
turned to people of the same sex, participated. Data was collected through a semi-structured interview and analyzed according to
assumptions of the method of interpretation of meanings, with support in concepts of Queer Theory. RESULTS: Results show that
the perpetuation of a heteronormative and violent culture sanctions punishments against dissidents of the heterosexual norm.
Adolescents and young people who do not follow the supposed linearity between sex, gender, desire and sexual practices are
considered inferior, becoming vulnerable to several types of violence and prejudices, both in public and private spaces.
CONCLUSION: The study suggests the need to build a research agenda to better understand this phenomenon and a plan of public
policies to sensitize and enable professionals in the practice of assistance.
KEY WORDS: Violence; Homosexuality; Adolescence.
* Agradecimentos: Ao apoio recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo número 2014/00701-1.
Endereço para correspondência com o Editor: Iara Falleiros Braga. E-mail: iarafalleiros@gmail.com
| SALUD & SOCIEDAD | V. 9 | No. 1 | PP. 052 – 067 | ENERO - ABRIL | 2018 | ISSN 0718-7475 |
As múltiplas faces e máscaras da heteronormatividade: Violências contra adolescentes e jovens homossexuais brasileiros
Para a análise dos dados, foi utilizado o Em todas as etapas do estudo foram
método de interpretação dos sentidos seguidas as recomendações e orientações
(Gomes, Souza, Minayo, Malaquias, & Silva, da Resolução 466/12 sobre os aspectos
2005). Esse método é fundamentado nos éticos que regulamentam as pesquisas com
princípios hermenêutico-dialéticos, que seres humanos. O projeto foi aprovado pelo
buscam interpretar o contexto, as razões e as Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de
lógicas de falas, ações e inter-relações entre Enfermagem de Ribeirão Preto da
grupos e instituições. Esse método responde Universidade de São Paulo (EERP/USP),
às necessidades da presente pesquisa, uma parecer 013/2015.
vez que busca, por meio dos princípios da
RESULTADOS E DISCUSSÃO
TABELA 1.
Dados sociodemográficos dos participantes da pesquisa.
Idade
Participante Sexo Escolaridade Cor da pele / raça
(anos)
Lipe 18 Feminino Ensino médio completo Branca
Duda 20 Feminino Ensino médio completo Branca
Dakota 19 Masculino Ensino médio completo Preto
Afrodite 21 Masculino Ensino médio incompleto Pardo
Normal 20 Masculino Ensino médio incompleto Branco
Sam 20 Feminino Ensino médio completo Branca
Potter 22 Masculino Ensino médio completo Branco
Cálculos 17 Masculino Ensino superior incompleto Branco
Deturpado 14 Masculino Ensino fundamental incompleto Branco
Chanel 18 Masculino Ensino médio completo Pardo
Biologia 19 Masculino Ensino superior incompleto Branco
Paulo Gustavo 24 Masculino Ensino médio completo Branco
Fonte: Dados coletados pela pesquisadora.
razão, tem sofrido violência física na escola É possível pensar que, no imaginário da
e na família. Em seu relato descreve que, família da ex-namorada, perpassa a noção
enquanto o irmão a agredia, por ela ter de que a homossexualidade de Duda é
flertado com uma mulher por quem ele imoral, antinatural e inaceitável, capaz de
estava interessado, ele dizia: contaminar e “corromper” a pureza de sua
filha. Os atos crescentes de violência podem
“Se você quer ser homem, você vai ser vistos como respostas no sentido de
apanhar como um homem. E apanhei manter o controle e dominação sobre a
feio dele, foi bem complicado” (Lipe). sexualidade da filha, impedindo que ela seja
“desvirtuada” pela má influência exercida
Quando o adolescente rompe com a pela proximidade com a “amiga”, de modo a
linearidade entre o sexo, gênero, desejo e se reestabelecer o padrão de normalidade. O
práticas sexuais esperada pela sociedade, a choque familiar é provocado pelo
violência pode ser uma resposta ao rompimento da matriz heterossexual pela
incômodo moral provocado pela quebra dos adolescente, o que a colocou em uma zona
padrões estabelecidos. A transgressão ao de abjeção, retirando a legitimidade de sua
desejo e às apresentações de gênero que existência.
são tidas como adequadas e naturais é uma
das fontes mais contundentes da violência O dispositivo da sexualidade visa
perpetrada contra o transgressor (Borrillo, controlar, dominar e manter a lógica da
2000). normalidade, delimitando a verdade e
totalizando os sujeitos (Foucault, 1976).
Outra situação identificada de violência Nessa concepção, todos os elementos
física contra uma adolescente lésbica negativos que se articulam para a interdição
transcorreu no contexto doméstico e foi do sexo, tais como as proibições, violências
praticada pela família de sua namorada, por e censuras, são somente algumas peças,
não aceitar o relacionamento afetivo. De entre outras, que têm uma função local e
acordo com a entrevistada: tática em uma produção discursiva que dá
materialidade a uma técnica de poder.
[...] já sofri violência, duas vezes e era
da família da minha ex-namorada. A Os participantes do sexo masculino
mãe dela ficou sabendo do nosso também relataram ter sofrido episódios de
relacionamento e, no começo, fingia violências físicas recorrentes, que
que gostava, deixava de boa a gente. ocorreram, principalmente, nos espaços
Aí, não sei o que aconteceu, ela pegou públicos.
raiva, o padrasto dela também, aí a
mãe dela veio e me bateu a primeira Já fui agredido, porque tentaram me
vez. Eu fiquei quieta, não quis tomar assaltar, eu não tinha nada para ser
nenhuma providência, aí a gente assaltado, e aí ele [o assaltante] falou
continuou junto, eu não quis separar assim, que eu era um veado e eu
dela. Aí ela falava que queria ficar merecia morrer, por causa disso ele ia
comigo, ela também apanhou por ser me bater. E me bateu, me agrediu [...]
lésbica e, aí, na segunda vez, eles fiquei com hematomas no rosto.
foram até o apartamento onde eu (Potter)
moro, foram cinco mulheres lá e me
bateram, e aí foi quando eu chamei a A gente estava, assim, numa praça,
polícia e fiz o boletim de ocorrência. eu e meus amigos, e tinha um grupo
[...] “eu vou te matar, você que está de amigos também mais distante. E aí
corrompendo minha filha”, a mãe dela era noite, o povo estava bebendo,
dizia. (Duda) fumando, zoando e brincando e, no
Esse tipo de violência é caracterizado que vinham em casa e até então eles
como autoinfligida, ou seja, aquela em que o chegavam aqui para perguntar, tudo
próprio indivíduo se autoagride ou tem da mesma idade, vizinhos de 13, 14,
pensamentos, ideações e tentativas de 15 anos, que eles procuravam a gente
suicídio (Minayo, 2007). No caso do com a desculpa de chamar para jogar
participante deste estudo, a ideação e videogame e essas coisas, e chegava
tentativa de suicídio se deu, segundo seu na hora o menino pegava e começava
relato, devido ao impacto em sua saúde a fazer outras coisas, entendeu?
mental das violências sofridas. Segundo (Potter)
dados de 2012 da Organização das Nações
Unidas (ONU), mais de 800 mil pessoas De acordo com dados do relatório de
morrem por suicídio todos os anos no violência contra a população LGBT no Brasil
mundo, sendo a segunda principal causa de (Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
morte entre jovens com idade entre 15 e 29 2013) foram notificadas 74 denúncias de
anos, sendo que 75% dos suicídios ocorrem violência sexual contra a população LGBT
em países de baixa e média renda (World brasileira. Desses registros, 43,2% eram de
Health Organization [WHO], 2010). A abuso sexual, seguidos por estupro (36,5%),
Organização Mundial de Saúde (OMS) exploração sexual (9,5%) e exploração
reconhece que as taxas de suicídio são mais sexual no turismo (1,4%) (Ministério das
elevadas em grupos vulneráveis que sofrem Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos
discriminação, tais como os refugiados, Humanos, 2016). Esse tipo de violência é
migrantes, indígenas, LGBT e pessoas favorecido pela construção da imagem social
privadas de liberdade (WHO, 2014). do homem homossexual como indivíduo
promíscuo, somado ao estigma da
Corpos abjetos e objetos: a violência sexual ilegitimidade de sua sexualidade, que não é
como punição pelo desvio da heterossexualidade inteligível na matriz heterossexual. A
violência sexual também pode ter um
A violência sexual também foi relatada pelo significado de “correção”, isto é, ser aplicada
mesmo participante, que sofreu abusos por como punição pelo desvio da
parte do pai, dos amigos e vizinhos. heterossexualidade (Ministério das
Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos
[...] fui molestado por meu pai, não Humanos, 2016).
abusado em si, não teve penetração
nem nada, mas meu pai chegou a me A homossexualidade, desde a sua
molestar, ele tirava a roupa, ficava criação como uma categoria médica
mostrando o órgão sexual, passava a relacionada à perversão sexual, foi
mão... (Potter) entendida como uma manifestação fundada
em uma sexualidade desviante,
Eu tinha amigos que me xingavam, me descontrolada e associal, e como tal, volúvel.
discriminavam na escola e, ao mesmo A sexualidade de homens gays e mulheres
tempo, eles pegavam e gostavam de lésbicas é estigmatizada e condenada por
ficar passando a mão, me alisando, romper com a associação entre sexo e
todas essas coisas. (Potter) reprodução, o que leva à suspeita de que não
está sujeita ao controle racional, nem pode
[...] com 12 anos eu já mantinha ser exercida de um modo socialmente
relação sexual, não uma relação, responsável. Faz parte do imaginário social
assim, que tivesse tanto contato com a crença de que os homossexuais são seres
penetração, essas coisas, mas eu lúbricos, devassos e mentalmente
tinha bastante relação, assim, oral. Os perturbados, dotados de uma sexualidade
meninos, por exemplo, na época que exuberante e insaciável, que os deixaria
eu tinha 13, 14 anos, eu tinha vizinhos
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