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A CRÍTICA CONTEMPORÂNEA AO IMPERIALISMO

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Prefácio ao livro de Ha-Joon Chang (2008) Maus


Samaritanos. São Paulo: Editora Campus-
Elsevier.

Abstract. A central concern of contemporary imperialism besides taking advantages in an


asymmetric relation is to neutralize the competitive capacity of middle income countries
that industrialized and now are major competitors in the global economic arena. Trade
liberalization is not anymore an effective policy to achieve this objective, and is
complemented with the recommendation macroeconomic policies and neo-liberal reforms.

Em Maus Samaritanos, Ha-Joon Chang faz uma crítica devastadora da teoria econômica
ortodoxa ou neoclássica ao mostrar que suas propostas de políticas econômica são para uso
externo, não sendo utilizadas pelos países ricos que a propagam. Desde a Revolução
Industrial a teoria econômica tem sido um instrumento para justificar internamente o
capitalismo e para evitar que os demais países que ficaram atrasados no seu processo de
industrialização também cresçam e lhes façam concorrência. Para isto, os economistas
neoliberais, ao invés de verificarem empiricamente como os mercados coordenavam os
sistemas econômicos, como fizeram Adam Smith e Malthus, adotaram um método
hipotético-dedutivo e, do conforto de suas poltronas, “deduziram” sua capacidade de
mantê-los equilibrados. Dessa forma, embora a teoria econômica fosse elegantemente
matematizada graças ao método hipotético-dedutivo utilizado, deixava de explicar a
realidade para se transformar em fundamentalismo de mercado. As críticas não tardaram.
Todas acentuando que a história desmentia essa capacidade, que o mercado é um excelente
instrumento de coordenação econômica, mas sem os poderes miraculosos que lhe
atribuíam. Alguns acrescentando que essa teoria econômica neoliberal era também utilizada
como um instrumento imperialista – como uma forma ideológica de neutralizar a
capacidade competitiva dos países que vem atrás. O primeiro economista que fez essa
crítica foi Friedrich List. Em 1846, em seu clássico tratado de economia, ele percebeu que a
Inglaterra usava a teoria liberal de então para “chutar a escada” dos demais países e
particularmente de seu próprio país, a Alemanha, que era um país rico e culto mas ainda
não realizara sua Revolução Industrial. Para fazer o catching up, a Alemanha precisava de
políticas ativas de proteção à indústria infante, mas a teoria econômica inglesa de então
condenava essa prática como se a Inglaterra jamais tivesse protegido e promovido sua
indústria.

Mais de 150 anos depois, agora em um quadro de grande hegemonia ideológica neoliberal
comandada pelos Estados Unidos, Ha-Joon Chang retomou essa idéia e publicou em 2002
um notável livro com o título provocativo, Chutando a Escada. Em um momento em que
os países ricos, em nome da cooperação internacional, impunham políticas econômicas
equivocadas aos países em desenvolvimento fragilizados por se haverem endividado, Ha-
Joon mostrou de forma clara e bem documentada que não havia cooperação alguma. Na
verdade, o Norte rico, através de suas três instituições internacionais (o Fundo Monetário
Internacional, o Banco Mundial, e a Organização Mundial do Comércio) buscava
neutralizar a concorrência representada pelos países de renda média, primeiro
convencendo-os a crescer com poupança externa, ou seja, com endividamento, e, em
seguida, quando se tornavam fragilizados financeiramente devido a essa política, impondo
reformas e políticas econômicas que neutralizavam sua capacidade de crescer e competir
internacionalmente.

A crítica de Ha-Joon não era absolutamente nova, já que ele próprio assinalara que havia se
inspirado em List, mas era uma idéia relativamente esquecida, porque os críticos do
imperialismo pensavam em termos de países pobres sem capacidade de competir com os
países desenvolvidos. Críticos como Hobson e Lenin procuraram mostrar a exploração dos
povos colonizados; outros, como Prebisch e Furtado, a incompatibilidade da teoria
econômica neoliberal com a industrialização. Após a Segunda Guerra Mundial, porém,
ocorreu um fato novo, além da descolonização, que mudou o quadro histórico. Um número
crescente de países em desenvolvimento cuja exploração fora parcialmente interrompida
pela independência nacional, logrou autonomia suficiente para ignorar as recomendações
neoliberais vindas do Norte, e adotar suas próprias estratégias nacionais de
desenvolvimento. Em conseqüência, já nos anos 1970 eles começaram a exportar bens
manufaturados, fazendo, assim, direta concorrência aos países ricos. Era uma ameaça, e,
por isso mesmo, a partir dessa década o Norte usará a teoria econômica neoliberal para
neutralizar essa concorrência. A onda ideológica neoliberal que tem início nos anos 1970
tem como uma de suas motivações essa neutralização, como objetivo nunca confessado, e
jamais plenamente consciente. No início da década seguinte, a Grande Crise da Dívida
Externa dos países em desenvolvimento, e, no seu final, o colapso da União Soviética
levam ao auge nos anos 1990 a hegemonia ideológica dos Estados Unidos. A globalização
não era apenas o novo estágio do desenvolvimento capitalista, mas uma ideologia
celebrando sua vitória, e seus intelectuais orgânicos, como o jornalista Thomas Friedman
do New York Times, sentiam-se seguros o suficiente para anunciar que havia um caminho
único para o desenvolvimento econômico, e para denominá-lo “camisa de força dourada”
do desenvolvimento.

A partir desse momento, o foco da crítica ao imperialismo econômico precisava mudar.


Não podia continuar a ser a crítica à exploração, porque essa diminuíra, ou à oposição à
industrialização, porque esta ocorrera. Era preciso mostrar que essa camisa de força
neoliberal era equivocada, era mero instrumento de dominação. Esta tarefa era facilitada
porque, na prática, os países asiáticos dinâmicos haviam conservado ciosamente a sua
autonomia e cresciam a taxas extraordinárias de acordo com suas próprias estratégias
nacionais. Mas seu catching up ocorria em low profile, sem que explicitassem suas críticas
à ortodoxia convencional ou ao consenso de Washington então dominante. Por isso, quando
, em 2002, com seu livro Chutando a Escada, Ha-Joon mostrou de forma convincente
como o Norte estava pressionando os países em desenvolvimento a adotar políticas e
instituições que eles próprios não adotaram no correspondente estágio de desenvolvimento
econômico, este livro se tornou um marco da literatura sobre o desenvolvimento
econômico.

Agora, com Maus Samaritanos, Ha-Joon retoma a idéia com mais vigor, adiciona novos
argumentos, e adota um estilo ainda mais pessoal e agradável de ler. Para realizar essa
tarefa de desmontagem da teoria neoliberal, ele reúne duas qualidades importantes: ele é
coreano, e, portanto, originário de um país que foi incrivelmente bem sucedido em
desenvolver uma estratégia nacional de desenvolvimento, e ele é professor da Universidade
de Cambridge – o que garante que ele conhece teoria econômica. Homem de uma
extraordinária energia, jovem, brilhante, ele encara sua profissão de economista como uma
missão. Não apenas a missão de buscar a verdade científica, mas principalmente a de
superar o subdesenvolvimento e a pobreza. Ele sabe que a teoria econômica e as políticas
econômicas podem ter uma enorme influência positiva ou negativa no desenvolvimento
econômico; sabe também que a teoria econômica está sempre misturada com interesses e
ideologias. E nesta selva ele abre seu próprio caminho usando como instrumento a história
real. E não hesitando em criticar os “maus samaritanos” – os agentes dos países ricos e do
neoliberalismo que aconselham mal os países em desenvolvimento, que afirmam estarem
ajudando-os quando, de fato, estão criando obstáculos a seu desenvolvimento.

O livro começa com um fascinante relato de como sua vida pessoal e de como sua família
foi afetada pelo extraordinário desenvolvimento econômico que experimentou a Coréia
após a Segunda Guerra Mundial. Como rapidamente mudaram as condições de habitação,
de consumo, de acesso à informação. Se alguém tiver ainda dúvida da importância do
desenvolvimento econômico para tirar os povos da pobreza e abrir novos horizontes para os
demais grandes objetivos políticos das sociedades modernas – a liberdade, a justiça social e
a proteção do ambiente – a leitura dessas páginas as eliminará. De forma simples, Ha-Joon
faz um hino ao desenvolvimento econômico.

Por que a Coréia, e, mais amplamente, os país asiáticos dinâmicos foram tão bem
sucedidos? Fundamentalmente porque não aceitaram as recomendações de políticas
econômicas e de instituições vindas do Norte e adotaram estratégias nacionais
desenvolvimentistas. O que esses países fizeram, argumenta ele, foi (1) selecionar
determinados setores industrias e os protegerem e apoiarem; (2) tendo a propriedade dos
bancos, dirigir o crédito para aqueles setores; (3) estabelecer empresas estatais nos setores
onde o setor privado não revelava inicialmente capacidade para ocupar; (4) garantir e
manter absoluto controle sobre os recursos externos e sobre a taxa de câmbio; (5) controlar
o capital estrangeiro, recebendo-o calorosamente em alguns setores enquanto que em outros
o proibia; e (6) incentivar as empresas nacionais a fazerem a ‘engenharia reversa’ enquanto
faziam vista grossa para a cópia de tecnologias. Apoiados nesses princípios, os países
asiáticos dinâmicos orientaram seu esforço decididamente para a exportação, aproveitando
sua mão-de-obra barata e a possibilidade de copiar tecnologia, e experimentaram incrível
crescimento e melhoria de padrões de vida. O fato de que esses países tenham tido grande
êxito em exportar levou muitos a afirmar que seu desenvolvimento ocorria no quadro do
livre comércio, mas, como lembra Ha-Joon, a Inglaterra, os Estados Unidos e o Japão
demonstraram sucessivamente que o desenvolvimento econômico baseado nas exportações
não requer comércio livre.

A argumentação de Ha-Joon está sempre baseada em fatos históricos. Ele compara, por
exemplo, a história ideológica da globalização (um conto de fadas do neoliberalismo) com
a verdadeira história; ou então a história idílica do desenvolvimento dos países ricos
baseada no liberalismo econômico com o protecionismo e os subsídios que de fato a
caracterizaram. Ele mostra muitos países, inclusive a Finlândia, que não hesitaram em
estabelecer fortes restrições a determinados investimentos externos, ao mesmo tempo em
que recebiam de braços abertos outros; afinal, não há razão para entregar o mercado interno
do país a empresas estrangeiras a troco de nada. E rejeita com vigor explicações culturais
para o atraso: não há culturas intrinsecamente contrárias ao desenvolvimento econômico,
porque culturas não são imutáveis.

Ha-Joon termina seu livro com um exercício de ficção econômica do qual participa uma
empresa de São Paulo de nanotecnologia. Nesta ficção, o fato principal é a decisão da
China de liberalizar prematuramente suas contas financeiras externas e seu mercado de
capitais nos anos 2021, o que causará uma Segunda Grande Depressão. Com isso, ele está
lembrando que as estratégias de desenvolvimento econômico variam de acordo com os
estágios de desenvolvimento.

Sendo tão crítico de um liberalismo econômico radical como é a ideologia neoliberal, está
Ha-Joon em Maus Samaritanos propondo que os países de renda média voltem à política de
proteção à indústria infante? Não há proposta de política alternativa no livro, embora esteja
claro que apóia a estratégia de desenvolvimento dos países asiáticos dinâmicos – a
estratégia que venho denominando “novo desenvolvimentismo”. Esta estratégia não está
baseada apenas na demonstração de que a industrialização é necessária ao
desenvolvimento, e que, para isto, uma ação decisiva do Estado é necessária, como era o
caso do antigo desenvolvimentismo. No estágio em que se encontram hoje os países de
renda média, a intervenção direta do Estado na economia – sua proteção à indústria
nacional, a criação de empresas estatais – perdeu importância relativa, enquanto aumentou
decisivamente a importância da estabilidade macroeconômica baseada em taxa de juros
baixa e em uma taxa de câmbio competitiva. Hoje, ao invés de imporem tarifas
alfandegárias elevadas às importações, os países asiáticos dinâmicos administram sua taxa
de câmbio para que esta se mantenha competitiva não obstante a existência, nos países em
desenvolvimento, de uma tendência à sua sobreapreciação. Fazem isto porque sabem que
assegurado o nível competitivo da taxa de câmbio, não terão dificuldade em serem
competitivos internacionalmente. Ha-Joon assinala a importância de uma taxa de câmbio
competitiva, ao mesmo tempo em que argumenta com fatos que mercados não regulados e
não orientados não promovem o desenvolvimento econômico. O argumento dos maus
samaritanos naturalmente é o oposto – o que não é surpreendente porque sua prática é a do
“faça o que eu digo, não o que eu faço (ou o que eu fiz)”. Ha-Joon Chang é impiedoso com
este imperialismo econômico e com sua teoria econômica neoliberal que se mostra cada vez
menos capaz de convencer os países em desenvolvimento, na medida em que o êxito
econômico dos países asiáticos dinâmicos está transferindo o centro de gravidade da
economia mundial para a Ásia. Se ele houvesse escrito este livro antes da grande crise
financeira que se desencadeou nos Estados Unidos em agosto de 2007 e se aprofundou em
2008, provavelmente seria ainda mais impiedoso, porque esta crise novamente mostrou
quão precários são os mercados quando não são regulados pelo Estado. Apesar do cuidado
dos países ricos em não adotar práticas neoliberais recomendadas aos países em
desenvolvimento, eles foram afinal delas vítimas porque seus bancos acreditaram na
existência ilusória de mercados auto-regulados, e só não quebraram em maior número
porque seus respectivos Estados vieram em seu socorro.

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