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IRVING WALLACE

O DOCUMENTO R

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Círculo de Leitores, Lisboa, 1978, 1ª Edição.
Tradução de: ÁLVARO SILVA
Revisão de: NUNO SANTOS
EDIÇÃO INTEGRAL
COPYRIGHT (c), 1976. BY IRVING WALLACE
IMPRESSO E ENCADERNADO POR
PRINTER PORTUGUESA. LDA.
NO MÊS DE AGOSTO DE 1978
PRIMEIRA EDIÇÃO: 25.000 EXEMPLARES
DOCUMENTO R, O
Autor: WALLACE, IRVING
Editora: RECORD
ISBN : 8501009954
ISBN-13: 9788501009951
Livro em português
Brochura
1ª Edição
Para SYLVIA, com amor.

Em 1787, depois dos delegados reunidos em Filadélfia terem assinado a nova


Constituição dos Estados Unidos, uma mulher chegou junto de Benjamim Franklin e
perguntou: "Bem, Doutor, conseguimos uma república ou uma monarquia?"
Franklin respondeu: "Uma república, se a conseguirmos manter.''
''Aqueles que desistirem das liberdades essenciais para adquirirem uma
segurança temporária não merecem nem a liberdade nem a segurança.''
BENJAMIN FRANKLIN
Capítulo primeiro
A visita fora completamente inesperada - tinha esquecido aquele
compromisso e tinha esquecido de o cancelar, depois de ter prometido ir jantar com
o Presidente- e agora estava a tentar descartar-se o mais rápida e amavelmente
possível.
Na verdade, Christopher Collins não queria magoar o homem que estava
sentado em frente dele, porque aparentemente era uma excelente pessoa, sensível,
delicada e amável, e noutras circunstâncias Collins teria até apreciado conversar
com ele. Mas não agora, nunca nessa noite, com uma pilha de papéis ainda por ler e
com um
longo e tenso serão na Casa Branca à sua frente.
Tinha de tratar do assunto cuidadosamente, decidiu Collins. Não apenas
porque não queria magoar os sentimentos do homem, mas também porque não
queria ofender o diretor do F.B.I, Tynan. Era óbvio que o diretor tinha encorajado o
homem, ou talvez lhe tivesse mesmo dito diretamente para entrevistar Collins para a
autobiografia que estavam a escrever em conjunto. Ninguém era suficientemente
tolo para ofender Tynan, e muito menos Collins, recém-chegado ao seu cargo.
Os olhos de Collins deslizaram para o gravador portátil que o visitante
colocara à beira da secretária há dez minutos. Continuava a gravar, embora nada de
importante ainda se tivesse dito. Os olhos de Collins voltaram a enquadrar aquele
homem maduro, talvez já bem entrado nos cinqüenta, que estudava a lista de
perguntas, consciente de que o tempo urgia e procurando selecionar as mais
pertinentes e reveladoras.
Estudando o visitante, Collins percebeu subitamente da incongruência da
aparência do homem e do seu nome. Um nome totalmente deslocado: Ishmael
Young, o "jovem" Ishmael. Collins esperou ter tempo para lhe perguntar onde fora
arranjar tal nome. Ishmael Young era um indivíduo baixo e atarracado,
provavelmente da Nova Inglaterra, talvez presbiteriano e escocês (com um leve
toque judaico), que transbordava no seu amarrotado terno cinzento. A calva na parte
superior da cabeça era ladeada por dois tufos de cabelo invulgares que ele penteava
lamentavelmente para cima, fazendo parecer que tinha queimaduras na cabeça.
Também tinha dois queixos e prenúncios de um terceiro. O seu corpo protuberante
enchia a cadeira, parecendo apoiar-se apenas nos rebordos. Assemelhava-se a uma
baleia arrastada para a praia. Collins concluiu que, no final das contas, talvez
Ishmael fosse o nome certo.
Não tinha a menor aparência de escritor, pensou Collins. Exceto pelos óculos
de armação de chifre, que bem precisavam de limpeza, e pelo cachimbo castanho de
urze queimada, nada nele indicava o escritor. Mas ele próprio dissera logo de início
que era um escritor-fantasma. E Collins nunca encontrara nenhum dessa espécie.
Certamente um escritor-fantasma dos bem sucedidos - daqueles que escrevem
livros para atrizes depravadas, olímpicos heróis negros, gênios militares. Collins
tentou lembrar-se se tinha lido algum dos seus livros. Sabia que não, mas talvez
Karen tivesse. Não se esqueceria de lhe perguntar.
Percebeu que Ishmael tinha erguido a cabeça, procurando timidamente a sua
atenção, e que já lhe punha a pergunta seguinte.
Ao ouvi-la, descobriu imediatamente uma saída, uma maneira de terminar
esta entrevista tão depressa e airosamente quanto possível. Tinha apenas de ser
honesto.
- O que penso de Vernon T. Tynan? - repetiu Collins.
- Sim. Quero dizer, que opinião tem dele?
Collins pensou imediatamente no aspecto físico de Tynan: um gigantesco e
tonitroante homem de Brobdingnag, quase tão legendário como qualquer deles, com
pequenos olhos de lince numa cabecita redonda pregada ao largo e curto pescoço
que encimava uma peitaça musculosa, um homem quase tão alto como ele próprio, e
de voz áspera.
Essa imagem era bem clara. Mas do Tynan interior não sabia praticamente
nada. Bastava-lhe dizer isso, honestamente, e a conversa acabaria, Ishmael iria bater
a outra porta.
- Francamente, não conheço o diretor Tynan muito bem. Ainda não tive
tempo para isso. Estou neste lugar há apenas uma semana.
- É Procurador-Geral há apenas uma semana - retificou Ishmael
delicadamente-, mas, segundo as minhas notas, esteve no Departamento de Justiça,
ou melhor, esteve aqui, quase dezoito meses. Pelo que sei, foi Adjunto do
Procurador-Geral anterior, o coronel Noah Baxter, durante treze meses.
- É verdade - admitiu Collins. - Mas como Adjunto do Procurador tive muito
poucos contatos com o diretor Tynan. Ele lhe confirmará, se lhe perguntar. Era o
coronel Baxter que contatava com ele, de resto com grande freqüência. Eram
amigos.
As sobrancelhas de Ishmael Young ergueram-se.
- Não sabia que o diretor Tynan tinha amigos. Pelo menos foi isso que deduzi
das conversas com ele. Pensei que o único íntimo era o assistente Harry Adcock,
mas encarei essa situação como uma relação de trabalho.
- Não -insistiu Collins -, ele também era amigo íntimo do coronel Baxter,
mais do que de qualquer outro. Embora me pareça que de certo modo tem razão. Na
verdade, o diretor Tynan é um solitário. Mas se olhar para o passado, encontrará
outros diretores do FBI que também foram solitários. É da própria natureza do
trabalho. Seja como for, a verdade é que nunca contatei muito com ele nem o
conheci bem.
O escritor não se dava por vencido. Retirou o velho cachimbo da boca e
chupou os lábios.
- Mas, senhor Collins... - fez uma pausa. - Basta o senhor, ou devo tratá-lo
por Procurador-Geral Collins, ou talvez só Geral?
Collins sorriu.
- Basta o senhor Collins.
- Muito bem. O que eu ia dizer é que depois de o coronel Baxter ter sofrido o
ataque, há já cinco meses, o senhor dirigiu temporariamente este departamento, foi
oficiosamente o chefe da Justiça, até chegar a confirmação oficial há uma semana. E
como se sabe, o FBI está a um nível inferior da hierarquia. O diretor do FBI, Tynan,
é seu subordinado, portanto devem ter de contatar...
- O diretor Tynan meu subordinado? Senhor Young, ainda tem muito a
aprender.
- É para isso que aqui estou, senhor Collins - disse Young rispidamente -;
estou aqui para aprender. Não posso ser o escritor-fantasma de uma autobiografia do
diretor do FBI sem conhecer com precisão as suas relações com o Procurador-Geral,
com o Presidente, com a CIA, com todos os membros do governo. Pode pensar que
devo então dirigir-me ao diretor. Já o fiz, creia-me. Mas ele é estranhamente vago
quanto ao processo governativo e ao papel que nele desempenha. Há certas coisas
que não posso esclarecer com ele.
Não que se recuse a contar - mas, só que não está interessado e fica impaciente. O
que lhe interessa é contar os seus feitos no FBI dirigido por J. Edgar Hoover, a sua
posterior demissão e o regresso. Também eu estou interessado nisso. É uma parte do
livro. Mas estou igualmente interessado em saber que posição ocupa na estrutura
global do poder em relação aos outros elementos.
Collins decidiu ser prestável, esclarecê-lo, mesmo que isso lhe levasse mais
alguns minutos.
- Pois bem, senhor Young, vamos assentar idéias. Diz o Manual do Governo
que o diretor do FBI depende do Procurador-Geral. Segundo o livro, é isso que se
passa. Mas a realidade é bem diferente. De acordo com a Lei Pública número 90-
351, a nomeação do diretor do FBI não incumbe ao Procurador-Geral, mas sim ao
Presidente, com o parecer e o consentimento do Senado. Apesar de o diretor do FBI
me consultar e trabalhar comigo, não tenho autoridade suprema sobre ele. Só o
Presidente o pode afastar sem a aprovação do Senado. Assim, o diretor Tynan só é
meu subordinado no papel. Um homem como Tynan, como já deve ter percebido,
nunca é subordinado. Estou certo de que ele, como todos os outros diretores do FBI,
considera o seu cargo como vitalício se o quiser, e vê os procuradores-gerais como
transitórios. Portanto, voltando à sua pergunta inicial, ele não tem trabalhado para
mim e eu pouco contatei com ele. Não, nem sequer como Adjunto do Procurador-
Geral, quando fiquei encarregado do departamento depois de o coronel Baxter ter
ido para o Centro Médico da Armada em Bethesda. Lamento não lhe poder ser útil.
De fato, não sei o que terá levado o diretor Tynan a mandá-lo aqui.
Young endireitou-se ligeiramente.
- Ah, não foi ele. Era eu que queria ter este contato.
Collins também moveu o seu corpo seco na cadeira giratória de couro e
espaldar alto, típica do executivo.
- Então está tudo explicado.
Sentiu-se aliviado. Nada devia ao diretor Tynan. Podia acabar imediatamente
a entrevista sem ofender Tynan. Contudo, continuava a querer ser educado com
Young. Queria atirar-lhe um osso, mesmo que pequeno, e despedi-lo feliz.
- Mas, voltando ao assunto, o que queria saber era a minha opinião sobre o
diretor, para o seu livro...
- Para o meu livro, não - cortou Young -, para o livro de Tynan. Terá o nome
dele. Tenho estado apenas a tentar compreender a estrutura que o rodeia a partir dos
que trabalham com ele. Embora não o conheça bem, esperei que me pudesse ajudar.
- Pois bem, deixe-me apresentar-lhe a idéia que tenho dele nestes instantes
que nos restam, procurando algo simples e seguro. A minha opinião é que o diretor é
um típico homem de ação, um prático, um indivíduo de resposta pronta. Talvez
esteja perfeitamente adequado ao trabalho que realiza.
- Em que sentido?
- O seu trabalho é investigar o crime, investigar as contravenções federais. O
seu trabalho é desenterrar fatos e comunicá-los. Não tira conclusões das descobertas,
nem sequer apresenta recomendações. O meu trabalho é fazer o resto, as diligências
processuais baseadas nas suas descobertas.
- Então é você o homem de ação.
Collins atentou no entrevistador ainda com mais respeito.
- Não é assim na realidade - disse.- Pode parecer, mas não é isso que se passa.
Eu sou apenas um dos muitos advogados da Justiça. Nós seguimos a via lenta e
cuidadosa, Tynan e os seus agentes fazem o trabalho direto e perigoso. Mas,
voltando ao que nos interessa, uma outra opinião que tenho sobre ele é que... Bem,
quando ele se envolve em qualquer coisa, qualquer coisa em que acredita realmente,
não abandona a luta. É muito obstinado, no bom sentido. É o caso da 35.a emenda à
Constituição que espera a ratificação. Uma vez lançada pelo Presidente, logo Tynan
a apoiou...
Ishmael Young interrompeu:
- Senhor Collins, não foi o Presidente quem lançou a emenda, foi o diretor
Tynan.
Espantado, Collins fixou o escritor.
- Onde é que foi buscar essa idéia?
- Ao próprio diretor. Ele fala da emenda como de um filho.
- Pense ele o que pensar, não é verdade. Mas o que disse vem apenas dar-me
razão. Quando ele acredita apaixonadamente em qualquer coisa, torna-a sua. E
efetivamente, agora é ele o principal sustentáculo da emenda. É tão responsável
como qualquer outro, talvez mais que qualquer outro, pela sua aprovação.
- Ainda não foi aprovada - disse Young calmamente. Desculpe-me, mas ainda
não foi ratificada por três quartos dos Estados.
- Bem, mas será - atalhou Collins um tanto impaciente pela digressão. - Já só
falta a aprovação demais dois Estados.
- E já só restam três para votar.
- Dois deles votam hoje à noite e creio que hoje mesmo a emenda fará parte
da Constituição. Contudo, ela só está onde está devido ao papel do diretor Tynan. -
Olhou
para o relógio. - Bem, parece-me que é tudo.
- Senhor Collins, só mais uma coisa, se me permite...
Collins ergueu o olhar e observou a expressão séria do rosto do visitante.
Esperou.
- Sei... sei que isto nada tem a ver com a entrevista - continuou Young -, mas
gostaria de conhecer a resposta. - Hesitou. Agrada-lhe essa 35.a emenda, senhor
Collins?
Pestanejando, Collins ficou em silêncio por alguns instantes. A pergunta fora
inesperada. Além disso, nunca a tinha respondido claramente a ninguém, nem sequer
à
sua mulher Karen ou a si próprio.
- Se me agrada? - repetiu lentamente. - Não particularmente. Realmente, não.
Para lhe dizer a verdade, não tenho pensado muito nisso. Tenho estado ocupado na
reorganização. Confiei no Presidente e... e no diretor...
- Mas é um assunto que lhe diz respeito, a si e ao seu departamento.
- Bem sei - resmungou Collins. - Todavia, parece-me que o Presidente se
pode encarregar perfeitamente disso. Talvez eu faça algumas reservas, mas não
consigo sugerir nada melhor.
Notou que o simpático Sr. Young se tornava menos simpático. Ficou tentado
a perguntar-lhe, e perguntou-lhe mesmo:
- E a si, senhor Young? Agrada-lhe a emenda?
- Fica rigorosamente entre nós?
- Rigorosamente.
- Odeio-a - respondeu Young peremptoriamente. - Odeio tudo o que afeta a
Declaração de Direitos.
- Parece-me que exagera. A emenda vem alterar e sobrepor-se à Declaração
de Direitos, mas só em certas condições, só perante um acontecimento de máxima
emergência interna que possa paralisar ou ameace destruir o país. É bem evidente
que é para aí que caminhamos e assim a emenda será uma base para fazermos nascer
a ordem nesse caos...
- Irá trazer-nos a repressão. Irá sacrificar as liberdades em troca da paz.
Collins começou a sentir-se aborrecido e decidiu pôr termo à discussão. Toda
a gente julgava ter a solução para tudo, para todos os problemas, até se ter a
oportunidade de tentar realmente.
- Muito bem, senhor Young. Sabe o que se passa nas ruas. É a pior crise de
crime e violência da nossa história. Veja o ataque à Casa Branca feito por aquele
bando organizado de bandidos, há dois meses. Lembre-se das bombas, das
metralhadoras... da morte dos treze guardas e agentes secretos, do assassínio de sete
turistas indefesos, da destruição da Sala Este... ninguém atentou de tal maneira
contra a Casa Branca desde o ataque dos marinheiros ingleses em 1814. Mas os
Ingleses eram nossos inimigos nessa época e estávamos em guerra. O ataque de há
dois meses foi perpetrado por americanos... por americanos. Nada está a salvo.
Ninguém está a salvo. Viu o noticiário da televisão hoje de manhã?
Young disse que não com a cabeça.
- Então deixe-me contar-lhe - prosseguiu Collins. - Peoria, Illinois.
Departamento da polícia. O turno da manhã apresentou-se ao serviço, recebeu
ordens e os agentes começavam a dirigir-se para as motorizadas e para os carros,
quando sofreram uma emboscada de um bando que os esperava. Foram dizimados,
um verdadeiro banho de sangue. Pelo menos um terço da força morta ou ferida. Que
me diz a isto? Ou ao fato (apresentado hoje por um matemático) de que uma em
cada nove pessoas nascidas este ano em Atlanta, caso ficassem na cidade, acabariam
assassinadas? Repito, nunca tivemos uma crise de crime como esta na nossa história.
O que proporia para a resolver? Que faria?
Era evidente que Ishmael Young já tinha discutido o assunto, pois a resposta
foi pronta.
- Poria a nossa casa em ordem reconstruindo-a. Dos pés à cabeça. Como dizia
George Bernard Shaw: "O mal a atacar não é o pecado, o sofrimento, a voracidade,
o abuso de poder, a demagogia, a monopolização, a bebida, a guerra, a doença, nem
nenhuma das outras conseqüências da pobreza, mas a própria pobreza." Tomaria
medidas drásticas para acabar com a pobreza, para pôr fim à opressão econômica, à
desigualdade, à injustiça, para pôr fim ao crime...
- Já não estamos a tempo da alteração radical. Veja que eu não discordo de si
quanto ao que há que fazer basicamente. Tudo isso virá no devido tempo.
- Nunca virá se a emenda passar.
Collins não estava com disposição para prosseguir o debate.
- Desperta-me a curiosidade, senhor Young. Fala assim quando trabalha com
o diretor Tynan?
Young abanou os ombros.
- Não estaria aqui neste momento se o fizesse. Falo-lhe assim porque...
porque me parece uma pessoa honesta.
- Sou uma pessoa honesta.
- E... Espero que não se importe que lhe diga... Não consigo compreender o
que faz no meio dessa gente.
Young atingira um ponto nevrálgico. Karen fizera-lhe a mesma pergunta há
um mês, quando decidira aceitar o cargo de Procurador-Geral. Nessa altura
conseguira dar-lhe algumas respostas, mas não ia incomodar-se a repeti-las a um
estranho. Em vez disso, disse:
- Gostaria de ver outra pessoa neste lugar? Alguém recomendado pelo diretor
Tynan? Porque pensa que o aceitei? Porque acredito que as pessoas honestas acabam
sempre por vencer. - Olhou novamente para o relógio e levantou-se. - Lamento,
senhor Young. Esgotamos o tempo. Disse-lhe assim que entrou que tenho uma pilha
de casos para rever. A seguir tenho de ir para a Casa Branca. Ouça, daqui a uns
meses já saberei muito mais e talvez lhe possa dar uma ajuda maior. Porque não
contata comigo nessa altura?
Ishmael Young já estava de pé, afastando o bloco de notas, pegando no
gravador e desligando-o.
- Contatarei consigo. Se ainda aqui estiver, e espero que esteja.
- Estarei.
- Então cá me terá. Muito obrigado.
Chris Collins aproximou-se, apertou a mão do escritor e ficou a vê-lo
bambolear-se a caminho da sala de conferências que levava à sala da recepção e ao
átrio do elevador.
Subitamente desejou fazer uma última pergunta ao escritor:
- Já agora, senhor Young, há quanto tempo trabalha com o diretor Tynan?
Ishmael Young parou no limiar da porta.
- Há quase seis meses. Uma vez por semana... desde há seis meses.
- Mas acabou por não me dizer o que pensa dele... Young apresentou um
sorriso forçado.
- Senhor Collins - disse ele - eu estaria a infringir o artigo quinto. Ainda
existe esse quinto, não é verdade? - resmungou.- Este trabalho é o meu ganha-pão.
Nunca arrisco isso. Além disso, fui de certa forma pressionado para aceitar esta
incumbência. Mais uma vez, obrigado.
Saiu.
Estático, Collins ficou a pensar na conversa, na crise do país, na nova emenda
que a solucionaria, no próprio diretor Tynan, meditando no que pensava sobre tudo
isso. Mas compreendeu que era um "inventário demasiado longo e que havia muito
trabalho para fazer. Sentou-se, fez a cadeira rolar para junto da secretária e começou
a examinar os papéis jacentes.
Pouco tardou que esquecesse completamente o visitante. Ficou
profundamente absorvido nos casos que requeriam atenção imediata: um rapto
interestatal, uma violação da lei da Energia Atômica, uma queixa sobre terras de
índios, uma ação antitrusts, um terrível caso de narcóticos, uma informação de um
juiz federal, uma conspiração subversiva contra o Congresso, uma deportação, uma
série de problemas relativos a tumultos, algumas pistas sobre cinco conjuras
tendentes a aniquilar ou derrubar o governo.
Embora absorvido, Collins mantinha-se extremamente sensível aos ruídos.
Nesse preciso instante, na quietude do seu amplo gabinete de vinte e muitos metros,
percebeu do deslizar dos passos dela sobre o espesso tapete oriental. Levantou o
olhar por sobre os dois montes de papelada para ver Marion Rice, a sua secretária,
aproximar-se apressadamente vinda do gabinete adjacente. Trazia um grande
sobrescrito.
- Acaba de chegar, por mão própria, do outro lado da rua - disse ela.
Do outro lado da rua da Avenida Pensilvania, era o edifício J. Edgar Hoover,
o FBI, e o diretor Tynan.
- Tem carimbado Confidencial e Importante - acrescentou. Deve ser do
diretor.
- É estranho - disse Collins -, geralmente a correspondência chega cedo.
Ela estendeu-lhe o sobrescrito por cima da mesa e hesitou por instantes.
- Se não tem mais nada para mim, vou-me embora. Collins ficou surpreso.
- Que horas são?
- Seis e vinte.
- Meu Deus! Ainda nem cheguei a meio. Não devia ter deixado o tal escritor
roubar-me tanto tempo. - Recordou a conversa. - Bem, talvez tenha sido útil. Era
uma pessoa interessante. - Olhou tristemente para um dos montes de papéis. -
Parece-me que tenho de levar grande parte para casa. Muito bem, Marion, pode
fechar as portas e sair.
- Não vai ter tempo para trabalhar mais. Não se esqueça que tem um jantar às
sete e um quarto na Casa Branca.
Collins fez um trejeito.
- Isso também vai ser trabalho.
Ela continuava a hesitar, depois um sorriso reticente aflorou-lhe o rosto liso e
alongado.
- Eu... queria ainda dar-lhe os parabéns pela sua primeira semana como
Procurador-Geral. Estamos todos muito contentes. Boa noite.
- Boa noite, Marion. Agradeço-lhe.
Depois de ela sair, quando ficou só, fitou o grande sobrescrito. Nos dias que
corriam, raramente vinham boas notícias do FBI, por isso foi com relutância que
abriu o sobrescrito.
Retirou o que parecia ser meia dúzia de páginas de estatísticas datilografadas.
Por cima delas vinha uma nota manuscrita. Pela intrincada letra que já lhe era
familiar, pela pontuação errada (muitos travessões), pelas abreviaturas impacientes,
soube que a nota fora escrita pelo diretor Vernon T. Tynan, antes mesmo de ler a
assinatura.
Despertada a curiosidade, Collins começou a ler a nota.
Caro Chris.
Aqui tem os números mais recentes dos últimos meses referentes às
estatísticas do crime - de longe os piores até agora, os piores da nossa história -
envio uma cópia para a Imprensa e outra para si a fim de que possa vê-los antes de
nos encontrarmos com a Imprensa logo à noite. Note a subida vertical em
assassínios, tumultos, roubos à mão armada, raptos de Estado para Estado. Veja o
meu P. S. sobre pistas quanto a conspirações prováveis e revolucionários
organizados- estamos numa camisa de onze varas e acabaremos por cair - a única
coisa que nos pode safar é a aprovação definitiva da 35.a emenda - reze por isso
hoje à noite.
Já comuniquei pelo telefone estas estatísticas para os legisladores de Albany
e Columbus, para que eles conheçam a verdadeira situação antes de votarem logo.
Lamento ter de lhe dar um relatório tão terrível, mas parece-me vital que se atualize
antes de se encontrar com a Imprensa. Ainda está em esboço verifico com atenção
antes de tornar público amanhã. Vejo-o no jantar.
Atenciosamente, Vernon.
Enquanto dobrava a nota de Tynan, Collins deu uma vista de olhos pelos
relatórios criminais, voltando vagarosamente as páginas. Comparando o número de
crimes violentos incluindo assassínio, no último mês com os do mês precedente,
notava-se uma subida de 18 %; os estupros tinham aumentado 15%, os roubos e
assaltos com agravantes, 30%; os tumultos, 20%.
Pousou as páginas de Tynan. Recordou outras estatísticas. Devido a esse
aumento de criminalidade as prisões estavam repletas. Cinco anos antes, a média
anual de pessoas temporária ou permanentemente detidas nas 250 principais prisões
ou reformatórios era de dois milhões de pessoas. Apesar de um grande esforço para
dominar os infratores da lei, apesar dos 45 000 advogados e agentes do FBI a
trabalharem para o Departamento de Justiça, apesar das três divisões especiais de
tropas do Exército destinadas ao controle interno pelo Pentágono, apesar dos 22
bilhões de dólares a gastar no reforço da lei durante o corrente ano (tinham sido
apenas 3 1/2 bilhões em 1960), a média de crimes continuava a subir em espiral. O
cancro já não podia ser mantido em respeito pela força, segundo parecia. Mais um
ano e poderia ser o fim, a proclamação da morte da sociedade organizada.
Recostou-se na cadeira, com as mãos juntas no peito, como se rezasse. Estava
certo que era o período mais negro da história americana desde a guerra civil. A
anarquia e o terror dominavam cada novo dia. Quando se acordava de manhã, não se
sabia se se veria a noite. Quando se adormecia, não se sabia se se veria a manhã.
Quando dava diariamente o beijo de despedida a Karen antes de sair para o trabalho,
sentia a terrível incerteza de poder não a encontrar (e ao filho que ela trazia no
ventre) quando chegasse a casa.
Sentiu a mão invisível do medo apertar-lhe o estômago. Não era a primeira
vez. Por instantes, os seus pensamentos afastaram-se do caos das ruas para a
compaixão por si próprio. Na verdade, ele, ele e Tynan, tinham o pior, o mais difícil
trabalho da terra. A compaixão por si próprio levou-o a uma mórbida
autofascinação. Mas então porque teria ele, Christopher Collins -previdente, nada
vaidoso, ponderado, por vezes egoísta (também sabia ser objetivo) -, tomado a seu
cargo este trabalho impossível de agente número um da lei e de cabeça da mais
importante firma de leis da nação? Teria chegado a essa posição sem convicções
apaixonadas (exceto, como Ishmael Young dissera, a de que a sociedade
democrática tinha de ser reestruturada), nem soluções, apenas pelo desejo de poder?
Ou teria sido para cumprir um dever patriótico? Ou por um sentimento cavaleiresco
de que podia fazer algum bem? Ou teria sido afinal a vítima de uma deformação
masoquista ou até suicida da sua personalidade? Não sabia. Pelo menos nessa noite.
Ouviu então o telefone tocar. Voltou-se para a esquerda, encarando o móvel
de carvalho em que estava instalado o P.B.X., e viu que a sua linha pessoal (para
Karen, para os amigos, diferente das outras linhas para o Presidente, para o diretor,
para o seu adjunto, Ed Schrader) tinha o botão iluminado.
Levantou o auscultador.
- Fala Collins.
- Querido, espero não te interromper... - Era a voz de Karen.
- Não, não. Estava a tratar de uns assuntos de última hora. Como estás, amor?
Ela não respondeu diretamente. Limitou-se a dizer:
- Sei que vamos jantar fora hoje à noite. Queria saber a hora a que o teu
motorista me vem buscar. É às sete?
- Um quarto para as sete. Encontramo-nos às sete. Somos esperados na Casa
Branca quinze minutos depois. O Presidente quer que cheguemos a horas. Ficaremos
a ver a reportagem especial da televisão de Nova Iorque e Ohio. Já estás vestida?
- Ainda só tenho a roupa interior, mas já estou maquiada. Agora é só vestir
qualquer coisa por cima. Que tipo de recepção é? Posso levar o vestido vermelho de
malha?
- Veste o que achares melhor. A secretária do Presidente disse que seria
muito informal.
- Então acho que o vermelho serve. Deve ser a última vez que o posso usar
antes de a barriga se começar a conhecer.
- Algum movimento hoje?
- Onde? Ah, sim, lá dentro. Algumas tentativas de pontapés.
- Ótimo. Os Redskins precisam de um avançado. Mas ainda não me disseste
como te sentes.
- Parece-me que estou muito bem. Atendendo às circunstâncias.
- Quais circunstâncias? - ele sabia, mas mesmo assim tinha de perguntar.
- Sabes bem o que penso de todos esses protocolos. Só estive uma vez
contigo na Casa Branca, na altura em que fomos com os Baxter à Sala de Jantar do
Estado. E foi terrível. Mas agora dizes que se trata de uma coisa restrita, íntima, e
isso é duplamente assustador. Não saberei que dizer.
- Não terás de dizer absolutamente nada. Ficamos todos a ver televisão.
- Porque tens de lá ir? Há alguma coisa tão importante para teres de estar
presente?
- Já não te lembras? Contei-te de manhã.
- Desculpa...
- Não tem importância. Eu repito. Primeiro, o Presidente quer que vá. Isso é
quanto basta. Depois, eu sou o Procurador-Geral, a 35.a emenda passa por uma
votação crucial esta noite e isso cai na minha esfera. Todos me julgam um dos
principais interessados. Há reportagens especiais à noite sobre as sessões das
Câmaras baixas de Nova Iorque e Ohio, feitas em direto. Como dois dos três Estados
que ainda não votaram vão fazê-lo hoje, faltando apenas dois para a 35.a emenda se
tornar parte integrante da Constituição, é uma grande noite. Compreendeste?
- Sim, percebi. Não te zangues comigo, Chris. É que não percebia bem o que
se ia passar. - Fez uma pausa. - Queres que seja aprovada? Li algumas coisas duras a
respeito dela.
- Também eu, amor. Não sei. Realmente não sei o que será melhor. A emenda
pode ser boa se forem boas as pessoas que dirigem o país. Mas pode ser má, se essas
pessoas forem más. Só posso dizer que, se passar, o meu trabalho se tornará mais
fácil. - Então espero que passe - mas a sua voz não tinha convicção.
- Bem, como dizem no misterioso Médio Oriente: será o que tiver de ser.
Limitemo-nos a comer o jantar do Presidente, a ver e a ouvir. - Viu as horas. - É
bom ires vestir-te. O motorista deve estar a chegar. Amo-te. Até já.
Depois de desligar, de colocar um monte de papéis no tabuleiro dos
DESPACHADOS, de meter o resto na pasta, ficou sentado a pensar em Karen.
Lamentava ter sido um pouco rude para com ela. Ela merecia mais, o seu melhor.
Sabia que essa noite iria ser uma provação para ela. Karen opusera-se desde início à
mudança, ao seu cargo de Adjunto do Procurador-Geral, à saída da advocacia
privada em Los Angeles em troca do cargo público em Washington, e ainda com
maior veemência, ao cargo governamental de Procurador-Geral.
Embora ela geralmente não se manifestasse e se pretendesse apolítica, ele
sabia qual era a sua posição. Tudo ficara claro quando ele entrara para o
Departamento de Justiça. Ela não gostava nem confiava nas pessoas com quem ele
trabalhava, desde o Presidente Wadsworth ao diretor Tynan. Além disso, tentara
explicar-lhe que era um cargo de bode expiatório. O país afundava-se rapidamente e
ele seria o primeiro a cair. E também não gostava do trabalho que se fazia no
gabinete. Acima de tudo, Karen não queria viver numa roda-viva, não desejava as
amizades forçadas, nem a sociabilidade imposta, nem a nudez perante os mass
media exigida pela sua posição. Nessa altura eram recém-casados - ambos pela
segunda vez -, agora eram-no há dois anos, ela estava já no quarto mês de gravidez e
só desejava recato, intimidade, tranqüilidade, e não queria compartilhá-lo.
Collins levantou-se da cadeira, decidido a ficar junto dela durante toda a
noite, por mais difícil que isso pudesse ser, e a ser meigo. Ergueu-se a toda a altura
do seu 1,83 m, até ouvir os ossos rangerem. Fitou por instantes o seu rosto
cadavérico, mas não deselegante, penteou o cabelo negro ao espelho e viu que tinha
doze minutos até à
chegada do carro. Encaminhou-se para a sala de estar privativa, por trás do gabinete
da secretária, para se lavar e mudar de roupa, perguntando-se se seria realmente uma
noite histórica e memorável.
Quando o Cadillac passou pelo portão de ferro negro, hoje aberto, do
gradeamento que corria ao longo da Avenida da Pensilvania, e entrou na sinuosa rua
que levava à Casa Branca, Collins notou de imediato a presença de um grande
número de jornalistas em frente da fachada norte, esperando com o equipamento de
iluminação ligado.
Mike Hogan, o agente do FBI que desempenhava as funções de seu guarda-
costas, voltou-se no lugar da frente e perguntou-lhe:
- Quer falar-lhes, senhor Collins?
Collins apertou a mão de Karen e respondeu:
- Não, se o puder evitar. Vamos diretamente para dentro.
Depois de saírem do carro no Pórtico Norte, Collins esquivou-se
delicadamente à imprensa. Pegando no braço de Karen, seguiu apressado atrás de
Hogan em direção à entrada da Casa Branca. Respondeu apenas a uma pergunta
antes de entrarem. Um repórter da televisão chamou-o:
- Senhor Collins, soubemos que vem assistir ao programa da televisão. O que
lhe parece que vai acontecer?
Collins respondeu de passagem:
- Vamos assistir à reposição de E o vento levou. Suponho que é o Norte quem
vence.
Lá dentro, esperavam-no duas surpresas.
Julgara que a reunião se realizaria na Sala Vermelha, ou numa das outras
salinhas menores do primeiro andar, mas em vez disso ele e Karen foram
acompanhados ao gabinete de trabalho, na ala Oeste. Julgara que estariam presentes
umas trinta ou quarenta pessoas, mas eram apenas umas doze além de Karen e dele
próprio.
Na parede fronteira às tapeçarias verdes que cobriam as portas francesas que
levavam aos roseirais da Casa Branca, junto das prateleiras de livros, tinha sido
instalado um grande móvel de televisão a cores. Várias pessoas viam de pé o filme,
embora o som tivesse sido desligado. Metade das cadeiras de couro que rodeavam a
comprida e resplandecente mesa escura (que fazia lembrar a Collins um esquife para
o gigante de Cardiff) tinham sido viradas de frente para a televisão. Do lado oposto
da mesa, por baixo do brasão pendurado na parede de este e entre as bandeiras
americana e presidencial, o Presidente Wadsworth mantinha animada conversa com
os dirigentes da maioria do Senado e da Câmara dos Representantes, acompanhados
pelas mulheres.
Embora Collins já tivesse estado no gabinete de trabalho uma meia dúzia de
vezes - cinco delas como Adjunto do Procurador-Geral em substituição do coronel
Baxter, e no princípio desta mesma semana já como Procurador - a sala pareceu-lhe
estranha. Isso porque toda ela tinha sido reformulada. Muitas cadeiras tinham sido
aproximadas da televisão; no extremo da mesa, em frente do retrato de Washington
pintado por Gilbert Stuart que pendia por cima do fogão de sala, os hors d'oeuvres
eram conservados quentes em brilhantes travessas de cobre aquecidas, dispostas
sobre a toalha verde e sob a vigilância de um chefe de cozinha de alto barreto
branco. O sóbrio gabinete tinha sido transformado, devido à confusão informal,
numa sala de estar confortável e mais ampla.
Enquanto Collins, de braço dado com Karen, examinava a cena, o adjunto
principal do Presidente, McKnight, aproximou-se sem detença para lhes dar as boas-
vindas. Circundaram o gabinete, cumprimentando sucessivamente, pela primeira vez
ou de novo, o Vice-Presidente Frank Loomis e a mulher; Miss Ledger, a secretária
particular do Presidente; Ronald Steedman, o consultor particular do presidente da
Universidade de Chicago; o Secretário do Interior, Martin; os dirigentes do
Congresso e as respectivas mulheres, e, por fim, o próprio Presidente Wadsworth.
O Presidente, um homem simples, delicado e urbano, quase galanteador, de
cabelo preto a acinzentar nas têmporas, nariz pontiagudo, queixo retraído, pegou na
mão de Karen, apertou a de Collins, e começou quase de imediato a desculpar-se.
- Marta - referia-se à Primeira Dama - tem muita pena de não poder estar
presente para os conhecer melhor, mas está de cama com um princípio de gripe. Ah,
mas vai curar-se e haverá outras ocasiões... Bem, Chris, parece que vamos ter uma
noite feliz.
- Assim o espero, senhor Presidente - disse Collins. - Há alguma novidade?
- Como sabe, os Senados estaduais de Nova Iorque e Ohio ratificaram ontem
a 35.a emenda. Agora estamos nas mãos da Assembléia de Nova Iorque e da Câmara
de Ohio. Logo a seguir às votações de ontem, Steedman pôs os seus grupos de
conselheiros a formigarem em Albany e Columbus, falando com os legisladores
estaduais. Ohio parece garantido. Steedman tem os números e são convincentes.
Nova Iorque é um pouco mais duvidosa. Pode cair para qualquer dos lados. A
maioria dos deputados contatados estavam indecisos ou não queriam fazer
comentários, mas entre os que responderam houve um ganho apreciável em relação
às últimas sondagens. A situação parece ser-nos favorável. Além disso julgo que as
últimas estatísticas do FBI... Boa noite, Vernon.
O diretor Vernon T. Tynan acabava de se juntar a eles, ocupando todo o
espaço vazio com a sua presença imponente. Apertou a mão do Presidente, a mão de
Collins, cumprimentou Karen pelo seu ótimo aspecto.
- Estava precisamente a dizer, Vernon - prosseguiu o Presidente com a sua
voz vibrante -, que os números que me mandou há uma hora devem ter grande
impacto em Albany. Ainda bem que os conseguiu a tempo.
- Não foi fácil - disse Tynan. - Foi uma grande luta. Mas tem razão. Devem
ajudar. Ronald Steedman parece menos certo. Acabo de falar com ele. Pelas suas
previsões, Ohio deve estar do nosso lado, mas Nova Iorque anda a vogar. Não
parece muito confiante nesta votação.
- Pois eu estou confiante - disse o Presidente. - Daqui a duas horas já teremos
trinta e oito dos cinqüenta Estados, e uma nova emenda à Constituição. E teremos
finalmente meios para preservar este país, se tanto for necessário.
Collins acenou com a cabeça na direção da televisão colocada do outro lado
da mesa.
- Quando começa, senhor Presidente?
- Daqui a dez ou quinze minutos. Estão a preparar o terreno com alguns
comentários.
- Bem, nós vamos dar uma olhadela - disse Collins. - E tomar uma bebida.
Enquanto conduzia Karen, notou que Tynan continuava ao seu lado.
- Parece-me que também vou tomar uma bebida - disse Tynan. Caminharam
em silêncio para a mesa onde o criado do Presidente Charles, servia as bebidas por
entre filas de copos e garrafas, baldes de gelo e um refrigerador de champanhe.
Adiantando-se, Tynan espreitou para Karen e perguntou-lhe:
- Como se sente, senhora Collins? Tem passado bem?
Surpreendida, Karen alisou o curto cabelo castanho, baixando a mão logo de
seguida, num gesto automático, para o cinto folgado.
- Nunca me senti melhor, obrigado.
- Ainda bem, ainda bem que a ouço dizer isso - volveu Tynan. Collins, depois
de ter pegado numa taça de champanhe e uma tosta de caviar para Karen, e de ter
retirado um Scotch com água para si, quando se dirigiam para duas cadeiras vazias
em frente da televisão, sentiu que a mulher lhe puxava a manga. Inclinou a cabeça.
- Ouviste-o - murmurou ela.
- Quem?
- Tynan. A súbita preocupação com a minha saúde... se me sentia bem.
Estava praticamente a dizer-nos, à sua maneira, que sabe perfeitamente da minha
gravidez.
Collins parecia confuso.
- Não pode saber. Ninguém sabe.
- Ele sabe - sussurrou Karen.
- Mas mesmo que tenha descoberto, que importa?
- Quer recordar-te que é omnisciente. Para te manter na linha, a ti e a todos os
outros.
- Acho que estás a exagerar. Ele não é assim tão sutil. Estava apenas a ser
mundano, foi uma observação inocente.
- Claro, como o lobo do Chapeuzinho Vermelho.
- Chiu, baixa a voz.
Tinham chegado às cadeiras quase em frente do grande aparelho de televisão
e sentaram-se.
Beberricando, Collins tentou concentrar-se no programa. O conhecido
comentador dizia que seriam consagrados alguns minutos a recordar o processo
seguido para realizar novas emendas na Constituição, e mais especificamente a
rememorar o trajeto da 35.a emenda, desde o seu nascimento até a este momento em
que estava à beira da ratificação.
"Há duas maneiras de iniciar o processo de emendas à Constituição dos
Estados Unidos"-começou o comentador.
Collins pousou o copo, acendeu um cigarro a Karen e outro para si, e
recostou-se, prestando uma vaga atenção.
"Um dos meios para iniciar o processo tendente a realizar uma emenda, é
propô-la no Congresso. O outro meio é vê-la apresentada numa convenção nacional
convocada pelo Congresso a pedido de dois terços dos Estados. Até hoje, nenhuma
emenda partiu de tal convenção. Todas elas tiveram início no Congresso, em
Washington. Uma vez apresentada uma resolução propondo uma nova emenda, quer
no Senado quer na Câmara dos Representantes, são ouvidos os Comitês de Leis e os
Judiciários. Depois de ser aprovada por esses comitês, a emenda segue para o
plenário do Senado e da Câmara dos Representantes. Para ser aprovada, são
necessários dois terços dos votos de cada um desses corpos legislativos. Uma vez
aprovada, não carece da assinatura do Presidente dos Estados Unidos. Em vez disso,
são enviadas cópias aos Serviços Gerais de Administração, que por sua vez
distribuem a emenda pelos governadores dos cinqüenta Estados. Os governadores
limitam-se a encaminhar a emenda para as legislaturas dos seus Estados, para aí ser
debatida e votada. Se três quartos das legislaturas estaduais - isto é, 38 dos 50
Estados - ratificarem a emenda, esta torna-se oficialmente parte da Constituição."
Collins deitou o cigarro para o cinzeiro, pegou novamente no copo e
continuou a ver o programa.
O comentador continuava a falar:
"Desde que as primeiras dez emendas foram integradas na Constituição, ou
melhor, desde 1789, foram apresentadas cinco mil e setecentas resoluções no
Congresso para emendar a Constituição num ou noutro ponto. Foram sugeridas
emendas de todos os tipos: para substituir a Presidência por um conselho
governativo composto por três pessoas, para abolir a Vice-Presidência, para mudar o
nome de Estados Unidos da América para Estados Unidos da Terra, para alterar o
sistema de votação em colégio eleitoral, para erradicar o sistema de livre iniciativa
de modo a que nenhum indivíduo possuísse mais de dez milhões de dólares. Desse
aglomerado de cinco mil e setecentas propostas de emendas, das que não morreram
logo no Congresso, das que foram enviadas aos Estados, só trinta e quatro foram
ratificadas pelos dois terços dos Estados necessários. Em geral, até agora não houve
limitação do tempo que os Estados têm para ratificar ou rejeitar. A emenda mais
rapidamente aprovada da nossa história foi a 26.a, concedendo o direito de voto aos
dezoito anos. E assim chegamos à mais recente emenda, a 35.a, que poderemos ver
morrer ou tornar-se lei desta terra hoje à noite.''
Collins ouviu o movimento dos corpos, o arrastar das cadeiras e viu os
convidados amontoarem-se pouco a pouco em frente da televisão. Depois
concentrou-se totalmente no aparelho.
"A controversa 35.a emenda, destinada a substituir as dez primeiras emendas,
ou a Declaração de Direitos, em certas situações de emergência, nasceu do desejo
dos dirigentes do Congresso e do Presidente Wadsworth de forjar uma arma para
impor a lei e a ordem na nação, se tanto for necessário."
- Arma? - interrompeu o Presidente, que acabava de se sentar junto de
Collins. - Que quer ele dizer com arma? Se é verdade que a linguagem pode ser
prejudicial, aqui está um exemplo. Quem me dera ver uma emenda aprovada para
poder tratar de comentadores destes.
- Estamos a aprovar uma - bramou o diretor Tynan da sua cadeira no lado
oposto. - A 35.a tratará destes perturbadores.
Collins entreviu o olhar cortante de Karen. Incomodado, voltou a prestar
atenção à televisão.
" ...e assim, depois de ter saído dos comitês e de ter sido apresentada sob a
forma de resolução - prosseguia o comentador -, passou ao plenário do Senado e da
Câmara para a votação final. Apesar da oposição oral, mas reduzida, dos blocos
liberais, ambos os corpos do Congresso deram à emenda ampla aprovação, que
excedeu em muito os dois terços de votos necessários. Em seguida, a nova emenda
foi enviada para os cinqüenta Estados. Isso passou-se há quatro meses e dois dias.
Após uma aprovação relativamente fácil nos primeiros Estados que votaram, a
viagem da 35.a emenda tornou-se cada vez mais tempestuosa, à medida que a
oposição se organizava contra ela. Até à data, já a votaram quarenta e sete dos
cinqüenta Estados. Onze rejeitaram-na. Trinta e seis deram-lhe a sua aprovação. Mas
como a emenda precisa de ser aprovada por trinta e oito, ainda faltam dois Estados.
Ora, neste momento, apenas três Estados ainda não votaram: Nova Iorque, Ohio e
Califórnia. Nova Iorque e Ohio realizam a votação hoje mesmo, acontecimento
histórico que presenciaremos daqui a pouco, enquanto a Califórnia marcou a votação
para daqui a um mês. Mas será necessária a Califórnia? Se Nova Iorque e Ohio
rejeitarem hoje a emenda, ela ficará imediatamente posta de lado. Se, pelo contrário,
ambos os Estados a ratificarem, tornar-se-á de imediato parte da Constituição, e o
Presidente Wadsworth terá o seu arsenal para combater a crescente criminalidade e a
desordem que pouco a pouco vão sufocando a nação. A votação desta noite em
Nova Iorque e Ohio poderá ser histórica, poderá mudar o rumo da história americana
para o próximo século. Dentro de momentos, após um breve intervalo para
publicidade, iremos levá-los até à Assembléia estadual de Albany, Nova Iorque,
onde o debate no plenário está a chegar ao fim, precedendo a realização da votação
final nominal."
O anúncio de uma grande companhia de petróleo, que declarava estar
finalmente ao dispor do público, uma companhia que pretendia apenas ser um
serviço público destinado a tornar a vida mais fácil e feliz ao povo, foi rapidamente
abafado pela elevação das vozes que conversavam na sala.
Collins levantou-se, aproveitando para ir encher de novo o copo. Karen tinha
tapado o seu com a mão, indicando que não beberia mais champanhe. Ele deixou-a e
abriu caminho por entre os convidados em direção ao bar improvisado na mesa. Viu
o Presidente acompanhado pelo seu consultor, Steedman, por Tynan e McKnight, e
supôs que estivessem uma vez mais a rever as informações de última hora sobre as
intenções da Assembléia de Nova Iorque.
Quando Collins voltou para a cadeira, com um Scotch gelado na mão, viu que
a televisão focava um grande plano da Assembléia.
- O que é que se vai seguir? - perguntou a Karen.
- Está mesmo a começar - respondeu ela. - O debate no plenário está a chegar
ao fim. O último orador está a concluir o discurso a favor da emenda.
Collins bebeu um grande gole de Scotch e atentou no grande plano de um
indivíduo, identificado como o deputado Lyman Smith, que perorava. Collins ouviu-
o.
"...e embora a Constituição dos Estados Unidos, tal como foi escrita pelos
nossos antepassados, seja um nobre instrumento legal dizia o orador -, repito-vos
que não é sacrossanta. Não foi feita para petrificar com o correr dos anos. Pretendeu-
se que fosse flexível (e por isso se estabeleceram provisões para ser alterada),
suficientemente flexível e mutável para ir ao encontro das necessidades de cada
nova geração e para acompanhar o progresso humano. Lembrem-se, meus amigos,
que esta nossa Constituição foi escrita por um grupo composto na sua maioria por
jovens radicais, homens que vieram à sessão de assinatura em carruagens puxadas
por cavalos, homens que usavam perucas, homens que se serviam de penas para
escrever. Esses homens nunca ouviram falar de canetas, máquinas de escrever,
calculadoras eletrônicas. Não conheciam a televisão, os aviões a jato, as bombas
atômicas nem os satélites espaciais. E certamente nunca ouviram falar do Sábado
Especial. Mas introduziram na sua Constituição o instrumento que permitiria ajustar
as nossas leis federais ao que o futuro pudesse trazer. Esse futuro somos nós, a
mudança bate-nos à porta e chegou o momento de alterar a nossa lei suprema de
acordo com as necessidades da nossa presente cidadania. A velha declaração de
Direitos, tal como foi estabelecida por esses fundadores de perucas, é demasiado
ambígua, demasiado geral, demasiado branda para enfrentar a vaga dos
acontecimentos que conspiram para destruir o funcionamento da nossa sociedade e a
estrutura da nossa democracia. Só a aprovação da 35.a emenda pode dar aos nossos
dirigentes uma mão mais firme. Só a 35.a emenda nos pode salvar. Por favor, caros
amigos e colegas, votai pela ratificação!"
Enquanto o orador retomava o seu lugar, a câmara da televisão girou pela
Assembléia, mostrando uma trovoada de aplausos.
No gabinete, à volta de Collins, também se ouviam aplausos calorosos.
- Bravo! - exclamou o Presidente, pousando o charuto Upperman para bater
palmas. Olhou para trás por cima do ombro. McKnight, quem é o deputado que
acaba de falar? Qualquer coisa... Smith? Há de ver quem é. Pode ser-nos útil na
Casa Branca uma pessoa que pensa tão corretamente e, além disso, é eloquente. - O
seu olhar regressou à televisão. - Tomem todos atenção. A chamada vai começar.
Já estava a começar, e Collins ouvia os nomes dos deputados e os seus sins e
nãos. Dentro da sala, ouvia o diretor Tynan prever que seria uma corrida de cavalos.
Atrás de si, ouvia a voz sussurrante de Steedman afirmar que o veredicto ainda ia
demorar, pois a Assembléia tinha 150 membros.
Porque ia demorar e porque estava cansado, Collins deixou a sua atenção
deslizar da televisão. Concentrou-a em Tynan, de pé, com o rosto de bulldog
afogueado pela ansiedade, os olhos enevoados, seguindo a votação. Olhou para trás,
para o Presidente, cuja atitude era granítica, impassível, estática, como se estivesse a
posar para uma escultura talhada no Monte Rushmore, absorvido pela televisão.
Homens honestos e dedicados, pensou Collins. Pouco interessava o que os
outros diziam - críticos como Ishmael Young, ou até reticentes como Karen. Estas
pessoas eram seres humanos responsáveis. Sentiu-se bem dentro deste círculo de
poder. Sentiu que lhe pertencia. Era uma sensação maravilhosa. Desejou poder
agradecer à pessoa que ali o colocara: o coronel Baxter, que ali faltava, que jazia em
coma no leito de um hospital em Bethesda.
Collins tinha acreditado que devia tudo ao coronel Baxter, mas agora,
pensando bem, viu que tinha sido uma série de acasos e de equívocos a elevá-lo à
posição de Procurador-Geral. Era o filho mais novo e o coronel Baxter tinha sido
companheiro de quarto em Stanfor e amigo íntimo do seu pai nos primeiros anos de
luta pós-graduação. O pai de Collins, que sempre tinha desejado praticar advocacia,
acabara por se lançar nos negócios, chegando a ser um abastado fabricante de
acessórios eletrônicos. Collins lembrava-se do grande orgulho que o pai tinha por
ele: o seu advogado. Tinha sempre mantido o coronel Baxter e outros amigos ao
corrente dos progressos do filho e da sua crescente reputação na advocacia.
Dois acontecimentos distintos, há já alguns anos, tinham atraído ainda mais a
atenção do coronel Baxter para ele. Um foi a sua breve mas bem publicitada
atividade como advogado da União das Liberdades Civis, em São Francisco. Tinha
defendido com êxito os direitos civis de uma organização claramente fascista,
porque acreditava na liberdade de expressão para todos. Tinha sido uma questão de
princípios e não uma concordância de opiniões. Mas o coronel Baxter, um
conservador, tinha ficado impressionado por razões enganosas. Pouco depois,
quando servia como Procurador do distrito de Oakland, Collins tinha chamado a
atenção nacional ao fazer condenar três assassinos negros que tinham cometido
crimes particularmente horrendos. Isso tinha impressionado ainda mais o coronel,
mostrando que ele não era um homem de coração fraco que procurava uma justiça
mais compassiva para os negros que para os brancos. Só que a imprensa nunca tinha
dito quais eram as verdadeiras opiniões de Collins: que esses negros criados na
doença, na pobreza e no desemprego tinham sido as verdadeiras vítimas, vítimas da
sociedade. Infelizmente, a lei não tinha disposições mitigadoras que contemplassem
a infelicidade de possuir aqueles genes malfadados.
Sim, foram esses fatos de primeira página que impressionaram o coronel
Baxter. O fato de Collins, na advocacia privada em Los Angeles, ter também
defendido com êxito os direitos e a vida de diversas organizações de negros e
mexicanos, ter conseguido salvar o pescoço a dezenas de dissidentes brancos, tinha
sido visto por Baxter como uma aberração da juventude ou uma ilusão da
consciência de um jovem advogado em ascensão. Assim, apoiado nessas credenciais
e na velha amizade do seu pai, Collins tinha sido chamado a Washington para se
tornar Adjunto do Procurador-Geral Baxter e, devido às circunstâncias, devido ao
mal arterial do coronel, acabara por ser Procurador-Geral dos Estados Unidos e parte
deste grupo de elite. Os pensamentos que lhe dominavam o espírito pareceram-lhe
estranhamente ruidosos e percebeu então que isso se devia ao estranho silêncio que
reinava na sala. Começou a olhar à sua volta, quando viu subitamente o Presidente
pular da cadeira e ouviu rebentarem aplausos calorosos em uníssono. Espantado,
olhou para a televisão e para Karen, que não aplaudia e lhe sussurrou:
- Acaba de passar. A Assembléia de Nova Iorque ratificou a 35.a emenda.
Consegues ouvir o locutor? Está a dizer que agora já só falta um Estado para a
emenda entrar em vigor. Ligarão para Columbus depois de um intervalo e de um
breve resumo.
Estavam todos de pé, jubilosos. Steedman encobriu momentaneamente a
televisão enquanto dizia:
- Parabéns, senhor Presidente. Temos de admitir que foi uma viragem, uma
surpresa. As percentagens eram-nos favoráveis, mas não haviam nenhuma indicação
para um resultado destes.
O diretor Tynan apertou o ombro de Collins até lhe fazer doer.
- Grande notícia, meu amigo, não acha? Grande notícia!
- Vernon... - chamou o Presidente.
- Sim, senhor Presidente.
- Sabe o que nos deu a vitória? Sabe o que trouxe Nova Iorque para o nosso
lado? Foi o último discurso feito por aquele deputado, o tal Smith. Aquele discurso
foi
perfeito. Era como se tivesse sido escrito por você.
Tynan sorriu ironicamente.
- Talvez eu o tenha escrito.
Todos os que o ouviam, riram como se disfrutassem um segredo
compartilhado. Collins também riu, porque não percebeu mas queria continuar a
pertencer ao grupo.
Uma voz aguda interrompeu-os:
- O jantar volante está pronto - informava Miss Ledger, secretária particular
do Presidente, dirigindo os convidados para o extremo oposto da mesa. - Está tudo
preparado de maneira a poderem ficar com os pratos em cima dos joelhos. Não há
facas, só garfos. É melhor servirem-se, antes que comece a votação de Ohio.
Collins pegou no braço de Karen e levantaram-se. Podia ver a parte da mesa
que tinha sido transformada em bufê. Ele e Karen eram quase os últimos da fila –
quando chegou a altura de se servirem já os outros voltavam aos seus lugares. A
votação do Ohio devia estar a começar na transmissão a cores.
Pouco depois, com o prato repleto de febras de frango, salmão frio com
molho de pepino, salada variada e fruta fresca - mas sem pão -, seguia Karen para
junto do semicírculo de convidados que rodeavam o aparelho de televisão. Viu que o
Presidente tinha tomado o seu lugar, por isso guiou Karen para as cadeiras de trás.
Espreitou por entre os convidados que estavam à sua frente. Na tribuna da Câmara
dos Representantes do Estado de Ohio, estava alguém a ler uma resolução. Collins
desistiu de tentar ver e recostou-se para prestar atenção, enquanto comia as febras de
frango.
A voz no aparelho de televisão atroava:
"Proposta de emenda à Constituição dos Estados Unidos para salvaguarda da
segurança interna. Foi resolvido pelo Senado e pela Câmara dos Representantes dos
Estados Unidos da América, reunidos no Congresso, concorrendo para tanto dois
terços de cada órgão, propor uma emenda à Constituição dos Estados Unidos, que
será válida para todos os fins e efeitos como parte da Constituição se for ratificada
por três quartos das legislaturas dos diversos Estados. A referida emenda será a
seguinte: As emendas à Constituição números 1 a 10 serão substituídas em caso de
emergência nacional interna pela seguinte emenda: Secção 1. Número 1. Nenhum
dos direitos ou liberdades garantidos pela Constituição podem ser tomados como
permissão para pôr em perigo a segurança nacional. Número 2. Na eventualidade de
perigo claro e imediato, uma Comissão de Segurança Nacional, nomeada pelo
Presidente, deverá reunir-se em sessão conjunta com o Conselho de Segurança
Nacional. Número 3. Considerando-se que a segurança nacional está em perigo, a
Comissão de Segurança Nacional proclamará o estado de emergência e assumirá
poderes plenipotenciários, sobrepondo-se à autoridade constitucional até o perigo
em causa ter sido controlado e/ou eliminado. Número 4. O presidente da Comissão
será o diretor do FBI. Número 5. A proclamação manter-se-á apenas durante o
período em que se considerar que a emergência continua a existir, e terminará
automaticamente com a declaração formal do fim da emergência. Secção 2. Número
1. Durante o período da suspensão, os restantes direitos e privilégios garantidos pela
Constituição continuarão a ser invioláveis. Número 2. Todas as ações da Comissão
deverão ser decididas por unanimidade."
Collins já tinha lido várias vezes tudo aquilo, mas agora que o ouvia em voz
alta soava-lhe mal. Aborrecido, recostou-se a petiscar.
- Vão fazer a chamada na Câmara - disse o Presidente. - Está a começar a
chamada nominal. Bem, são favas contadas. É certo. A emenda está no saco. Cá
está, já começou. Estão a chamar os nomes dos noventa e nove deputados.
Collins pousou o prato, e prestou novamente atenção. Podia ver os grandes
planos dos diversos deputados da Câmara dos Representantes do Ohio premindo os
botões das suas carteiras. Podia ver os votos a serem registados num dos dois
grandes quadros das duas extremidades da Câmara. Sins e nãos a par e passo, muito
próximos. A sala estava em silêncio, cortado apenas pelas interrupções
momentâneas da voz do repórter da televisão que repetia as marcações. Os minutos
corriam compassados. A votação prosseguia ininterrupta. O grande quadro indicava
os votos. Sim. Não. Não. Não. Sim. Não. Sim. Não. Não.
A voz do locutor sobrepôs-se à votação:
''Os nãos acabam de passar à frente. É uma surpresa. A ratificação parece
estar comprometida. Apesar da propaganda e das sondagens, parece estar a dar-se
uma viragem."
Mais minutos. Mais votos. Tão subitamente como começara, tudo acabou. A
35.a emenda tinha sido posta de lado, rejeitada pela Câmara dos Representantes de
Ohio.
Houve resmungos e desabafos de desapontamento e desgosto por parte dos
que estavam na sala. Inesperadamente, Collins sentiu o coração a bater mais
depressa. Lançou um longo olhar de soslaio a Karen. Estava impassível, mas tentava
esconder um sorriso. Collins franziu os sobrolhos e desviou o olhar.
Começaram todos a levantar-se. Quase todos estavam de cara fechada.
Confusos, muitos dos convidados reuniram-se à volta do Presidente.
Encolhendo os ombros, o Presidente olhava para o conselheiro.
- Pensei que eram favas contadas, Ronald. O que foi que correu mal?
- Pelas sondagens tínhamos previsto uma vitória por margem confortável -
respondeu Steedman. - Mas a última amostragem dos deputados foi feita há trinta e
seis horas. Quem poderá dizer que variáveis entraram em jogo ou o que aconteceu
entre os deputados durante as últimas trinta e seis horas?
O ajudante do Presidente, McKnight, agitava o braço.
- Senhor Presidente, o locutor... parece que ele vai dar uma explicação...
O Presidente e os convidados, incluindo Collins, voltaram-se de novo para a
televisão. De fato, o comentador parecia ter uma resposta.
"...e acaba de chegar agora mesmo à nossa cabina esta informação. Ainda não
a pudemos confirmar, mas vários deputados indicaram ao nosso repórter presente no
plenário que na noite passada e hoje de manhã houve uma campanha intensiva, um
esforço relâmpago de Anthony Pierce, ou Tony Pierce, o dirigente do DDD, o grupo
nacional conhecido como Defensores da Declaração de Direitos, que só há cerca de
um mês iniciou a campanha entre os legisladores dos últimos Estados a votarem a
emenda e que acaba de obter um êxito retumbante em Ohio. Dizem-nos que às onze
horas, Pierce encontrou-se com muitos indecisos e até com defensores da emenda,
apresentando-lhes documentação demonstrativa de que a emenda causaria danos
irreparáveis ao país, e parece ter sido coroado de êxito na tentativa de arrastar
consigo um número suficiente para rejeitar a emenda, a qual, ainda há uma hora,
parecia imbatível em Ohio. Tony Pierce, como muitos espectadores devem recordar-
se, é um antigo agente do FBI que se tornou famoso como escritor, advogado e
defensor dos direitos civis. A sua história..."
Uma voz rouca baixou o som da televisão:
- Já conhecemos a sua história!-rosnou o diretor Tynan, pulando para a frente
da televisão, apontando-lhe o punho. - Sabemos tudo sobre esse filho de uma cadela!
Deu meia-volta, com o rosto afogueado, observando os outros e fixando
depois o Presidente.
- Desculpe a minha linguagem, mas conhecemos demasiado bem o pulha
desse Pierce. Sabemos que encabeçou um grupo de ativistas radicais na
Universidade de Wisconsin. Sabemos como ganhou uma medalha que não merecia
em Vietnã. Sabemos como conseguiu furar até ao FBI, fingindo-se herói de guerra,
mentindo até ao nosso grande diretor Hoover que o tentou ajudar. Sabemos que era
negligente no cumprimento do dever: soltando criminosos que devia prender,
intelectualizando os relatórios, tentando valorizar-se, insubordinando. Foi por isso
que corri com ele do FBI. Sabemos os nomes dos quatro grupos radicais a que a
mulher pertence. Sabemos que um dos seus filhos teve um filho fora das relações
matrimoniais. Sabemos de pelo menos nove organizações subversivas que a sua
firma legal representou. Conhecemos Tony Pierce por dentro e por fora, e sabíamos
que ele nada valia antes de tudo isto começar. Devíamos ter acabado com ele assim
que encabeçou o DDD. Mas não o fizemos porque não queríamos dar a um antigo
agente do FBI tão más referências, porque não queríamos prejudicar a imagem do
Serviço, e além disso nunca pensamos que alguém pudesse tomar a sério um
mistificador tão desprezível.
- Não se importe, Vernon, os cães ladram e a caravana passa disse o
Presidente, tentando acalmá-lo. - O mal que ele tinha a fazer já está feito, se é que é
ele realmente o responsável. Agora o que é preciso é não deixarmos isto acontecer
outra vez.
Observando a cena, Chris Collins descobriu-se embaraçado e confundido.
Tinha ficado surpreso com a explosão inicial de Tynan. Esta tinha sido venenosa e
revelara uma faceta inquisitorial do diretor do FBI que Collins ainda não conhecia.
Collins tinha pegado no braço de Karen, como se quisesse compartilhar com
ela a sua perturbação, quando viu o Presidente dirigir-se-lhe. Largando a mão de
Karen, abriu caminho por entre McKnight e o dirigente da maioria do Senado para
se juntar ao Presidente, que já estava acompanhado por Tynan.
Por instantes, o Presidente ficou a friccionar o queixo pensativamente.
- Bem, meus senhores, ganhamos uma inesperadamente e perdemos outra
também inesperadamente. Isto mostra-lhes como o país é volúvel. Mas não podemos
deixar que isto aconteça de novo. Já só falta um Estado. Todas as nossas esperanças
se jogam na Califórnia. Daqui a um mês. - Fez uma pausa. - Não tenho prestado
muita atenção às sondagens dessa costa. Ronald diz-me que vamos à frente na
sondagem do Estado Dourado. Isso não me chega. A Califórnia deve preocupar-nos.
Sabem bem como eles são imprevisíveis. É a nossa última oportunidade e jogo tudo
nela. Quero que você, Vernon, e você, Chris, dêem tudo o que puderem neste caso.
Temos de ganhar.
Collins e Tynan assentiram energicamente com a cabeça. O Presidente puxou
outro charuto e esperou que Tynan lhe acendesse. Soprando o fumo, virou-se para
Collins.
- Tenho uma idéia para começar, Chris. Você veio da Califórnia, não é
verdade?
- Sim, é verdade. Sou da região da Baía, mas também exerci advocacia em
Los Angeles.
- Ótimo. Penso que será útil voltar lá daqui a uma ou duas semanas. Pode
fazer um trabalho sutil e efetivo para a causa.
- Bem - disse Collins perturbado -, não sei se terei assim tanta influência. O
único filho da terra realmente popular (é praticamente um ídolo na Califórnia) é o
Presidente do Supremo Tribunal Maynard.
O Presidente abanou negativamente a cabeça.
- Não, Maynard não serve. Soube de fontes seguras que ele não está do nosso
lado. Além disso, não é ativo. Mas mesmo que assim não fosse, não ficaria bem o
Presidente do Supremo pronunciar-se numa questão política como esta.
- Graças a Deus que assim é - interrompeu Tynan. - Eu não confiaria nele
num verdadeiro problema legal como o da 35.a emenda.
- Não precisamos de Maynard - continuou o Presidente, dirigindo-se a
Collins. - Mas talvez precisemos de si. E não se deve subestimar, Chris. Você é o
Procurador-Geral, e isso ainda tem algum valor. As pessoas de bem ouvi-lo-ão. Sim,
agrada-me a idéia de o mandar para a Califórnia. Podemos arranjar um motivo para
a sua ida. Deixe-me pensar nisso.
Embora a idéia lhe desagradasse, Collins sabia que não se atreveria a resistir.
- Farei o que desejar. Se achar que é importante...
- Terrivelmente importante - intrometeu-se Tynan. - Não há nada mais
importante. Já o disse mil vezes e continuo a repeti-lo. Trata-se da peça legislativa
mais importante que jamais foi votada pelos Estados. Sem ela, teremos... ou melhor,
deixaremos de ter um país.
- Vernon tem razão - disse o Presidente. - Precisamos de alguém na
Califórnia. Ou você ou... talvez uma outra figura de peso que esteja na
Administração há mais tempo. - Fez uma pausa, depois acrescentou com ênfase: -
Não vamos perder neste Estado. Não o permitirei. Não deixarei que as coisas corram
como até agora. Hoje de manhã fui à Sala Este para ver o andamento dos trabalhos
que lá estão a fazer. Que destruição, que vergonha! Quando já nem a casa do
Presidente está a salvo, estamos muito mal. E pode acontecer novamente. Sabem dos
pastores alemães e dos Doberman que me fizeram soltar nos jardins? Medidas de
segurança, disseram-me. Pois na noite passada perdemos o sexto por causa dos
atiradores emboscados. Agora até já me aconselham a deixar instalar uma rede
elétrica à volta da Casa Branca, isolando-me, tornando-me prisioneiro dentro da
minha própria casa, tal como os cidadãos honestos deste país que foram forçados a
confinar-se atrás de fechaduras elétricas e alarmes. Pois bem, meus senhores, não
permitirei isso. Vamos fazer regressar a civilização a esta nossa terra com a 35.a
emenda. E vamos consegui-lo ganhando na Califórnia.
- Amém - disse Tynan.
Nesse momento surgiu miss Ledger.
- Desculpe-me, senhor Presidente... Senhor Collins, o seu guarda-costas está
à porta. Tem de lhe falar. Diz que é urgente.
- Obrigado - disse Collins. Voltou-se para o Presidente. - Estou pronto a fazer
o que for preciso.
- Dir-lhe-ei na próxima semana. Agora é melhor ir tratar dos seus assuntos.
Depois de ter ido buscar Karen para agradecerem o serão ao Presidente,
Collins despediu-se formalmente dos convidados que estavam mais perto.
Precedendo Karen, atravessou apressadamente a sala em direção à porta,
onde o guarda-costas, o agente Mike Hogan, o esperava.
- Que se passa - perguntou Collins quando chegou junto dele.
- É por causa do coronel Noah Baxter - respondeu Hogan em surdina. - Saiu
do estado de coma. Está consciente, mas à beira da morte.
- Diabos, é terrível. Tem certeza?
- Absoluta. Não restam dúvidas. A chamada foi feita pela própria senhora
Baxter para o Departamento de Justiça, de onde me ligaram para o carro. As
primeiras palavras do coronel Baxter, assim que recobrou a consciência, foram para
dizer que o queria ver. Que tinha de o ver. Deve ser qualquer coisa urgente. Quer
dizer-lhe qualquer coisa importante. A senhora Baxter pediu-me veementemente que
o levasse até junto dele antes que fosse demasiado tarde.
Collins pegou no braço de Karen e dirigiu-a para o corredor.
- Bem, vamos então para Bethesda. É melhor não perdermos tempo. - Olhou
para Karen. - Não tenho a menor idéia do que será.
O Cadillac tinha seguido a uma velocidade estonteante para norte, pela
Avenida Wisconsin, cruzou a linha Maryland, deixou para trás o campo de golfe de
Chevy Chase, abrandou no movimentado centro de Bethesda, entrou pela sinuosa
rua de acesso ao hospital, e estacou em frente da entrada principal da torre branca
que era o edifício central do complexo formado pelo Centro Médico Naval Nacional
de Bethesda.
Pedindo a Karen que ficasse no carro com Hogan e Pagano, o condutor, Chris
Collins apressou-se a entrar no edifício. A entrada, foi interceptado por um oficial da
marinha que usava dois galões na camisa aberta.
- Procurador-Geral Collins?
- Sim.
- Siga-me, por favor. É no quarto andar.
Enquanto subiam no elevador, Collins perguntou:
- Como está o coronel Baxter?
- Quando desci, há vinte minutos, estava preso por um fio, lamento dizê-lo.
- Espero chegar a tempo. Quem está a acompanhá-lo?
- A esposa, é claro. E o pequenito neto, Rick Baxter. Ficou com os avós
enquanto os pais estão no Quênia em serviço oficial do Governo. Tentamos contatar
com eles hoje à noite, mas não conseguimos. Estão também presentes dois médicos
e uma enfermeira de serviço. Ah, quase me esquecia... está lá também o padre
Dubinski. É da igreja da Santíssima Trindade de Georgetown, a igreja que os
Kennedy frequentavam... Cá estamos.
Enquanto percorriam rapidamente o corredor, passaram por vários oficiais
médicos de uniforme. Para Collins, Bethesda assemelhava-se mais a uma instituição
militar que a um hospital.
Quando chegaram a um quarto privativo que tinha a porta aberta, o guia de
Collins apontou-lhe a entrada.
- É aqui. O coronel tem dois quartos adjacentes: este serve de sala de estar,
ele está no outro.
Ao entrar na sala de estar temporária, que estava vazia, Collins ouviu um leve
soluçar, virou-se e viu que a porta do outro quarto estava entreaberta. Conseguia ver
apenas uma parte da cama, mas a sua atenção centrou-se no quadro que se lhe
deparava num canto obscuro. Lá estava a encanecida Hannah Baxter, por quem tinha
o maior respeito, sentada numa cadeira, de lenço nos olhos, soluçando
inconsolavelmente. Lá estava também o rapaz, o neto, Rick (que tinha doze anos,
recordou-se Collins), agarrando-lhe o pulso, de ar pálido, atônito, choroso.
Observando-os estava um padre vestido de negro.
- Espere aqui, por favor - pediu o oficial que o escoltara. - vou dizer-lhes que
já chegou.
Desapareceu no quarto contíguo, fechando a porta atrás de si.
Collins procurou um cigarro, acendeu-o com o isqueiro e vagueou
nervosamente pelo quartinho sombrio. Pôs-se a pensar, pela décima vez, no que teria
de tão urgente o coronel Baxter para lhe dizer na sua última noite na terra. Embora
Collins conhecesse relativamente bem o coronel e a mulher de convites sociais
fortuitos, nunca tinha sido um amigo íntimo e grande parte da sua relação com o
coronel tivera apenas um caráter de trabalho. Que poderia o coronel ter para lhe
dizer num momento fatal como aquele?
A porta do quarto abriu-se, Collins deitou fora automaticamente o cigarro e
esperou, rígido. O oficial, que não voltou a encará-lo, saiu, seguido pela enfermeira
e pelo rapazito. Passaram por Collins sem se lhe dirigirem e saíram para o corredor.
Segundos depois, a porta do quarto foi preenchida por uma figura de indumentária
negra. Era obviamente o padre Dubinski, da igreja da Santíssima Trindade.
Enquanto fechava a porta cuidadosamente mas com firmeza, o padre acenou
em silêncio para Collins, e atravessou o quarto para fechar a porta do corredor.
Collins observou-o: um homem pequeno, entroncado, tranqüilo, o clérigo, com
cabelo negro espetado, olhos azuis espantosamente brilhantes, maçãs do rosto
cavadas, boca bem desenhada; um homem talvez de quarenta e tal anos.
- Senhor Collins? Sou o padre Dubinski - tinha chegado junto de Collins e
olhava para o chão.
- Sim, eu sei - disse Collins. - Estava na Casa Branca quando recebi a
mensagem de Hannah... da senhora Baxter, dizendo que o coronel estava
moribundo, que me queria ver urgentemente, que tinha qualquer coisa importante
para me dizer. Vim o mais depressa que pude. Ele está consciente? Posso vê-lo?
O padre pigarreou.
- Receio bem que não. Lamento ter de lhe dizer que é tarde demais. O coronel
Baxter morreu ainda não há dez minutos. - Fez uma pausa. - Que a sua alma
descanse em paz por toda a eternidade.
Collins não sabia o que dizer.
- É... é uma tragédia - disse finalmente. - Morreu há dez minutos? Nem posso
crer.
- Infelizmente, é verdade. Noah Baxter era um bom homem. Sei o que sente,
porque também é isso que sinto. Mas, mais uma vez, foi feita a vontade de Deus.
- Sim - concordou Collins.
Não sabia se seria próprio, neste momento de luto, tentar descobrir porque
teria o coronel solicitado a sua presença. Mas próprio ou não, ele sabia que tinha de
perguntar.
- Ah, padre, o coronel estava lúcido antes de morrer? Era capaz de falar?
- Falou um pouco.
- Disse a alguém, a si ou à senhora Baxter, para que me queria ver?
- Não, não o fez. Limitou-se a informar a esposa que era urgente vê-lo, falar-
lhe.
- E não disse mais nada?
O padre mexeu nervosamente no rosário.
- Bem, depois disso falou por instantes comigo. Avisei-o de que estava
presente para lhe administrar os sacramentos da Reconciliação, Extrema Unção e
Viático se ele o desejasse. Ele pediu-me que lhe desse esses sacramentos e pude
fazê-lo a tempo de o reconciliar com Deus Todo Poderoso, como bom católico.
Instantes depois, fechava os olhos para sempre.
Collins decidiu interromper a dissertação espiritual.
- Padre, quer dizer que ele fez uma confissão final?
- Sim, ouvi-o em confissão final.
- E havia alguma coisa nessa confissão que me possa dar uma pista, uma
idéia sobre o que ele me queria dizer com tanta urgência?
O padre Dubinski cerrou os lábios.
- Senhor Collins - replicou amavelmente -, a confissão é confidencial.
- Mas se ele lhe disse qualquer coisa que queria que eu soubesse...
- Não posso permitir-me um juízo sobre o que seria para si e o que seria para
Deus. Repito: a confissão do coronel Baxter terá de permanecer confidencial. Não
posso revelar nenhuma parte dela. Agora tenho de voltar para junto da senhora
Baxter. - Fez uma pausa. - Desculpe-me mais uma vez, senhor Collins.
O padre encaminhou-se para a porta do quarto contíguo e Collins saiu
lentamente para o corredor.
Minutos depois já abandonara o hospital e sentava-se ao lado de uma Karen
ansiosa. Ordenou ao condutor que os levasse para casa, para McLean.
Quando o automóvel começou a andar, virou a cabeça para Karen.
- Cheguei demasiado tarde. Já estava morto.
- É terrível. Soubeste... descobriste o que ele te queria dizer?
- Não, não faço a menor idéia. - Afundou-se mais no assento, preocupado e
pensativo. - Mas tenciono descobrir... seja como for. Para que quereria ele
desperdiçar as últimas palavras comigo? Eu nem sequer era um amigo íntimo.
- Mas és o Procurador-Geral. Sucedeste-lhe no cargo.
- Era precisamente nisso que eu estava a pensar - disse Collins quase de si
para si. - Devia ser qualquer coisa desse tipo. Devia ser relativo ao cargo. Ou a um
assunto nacional. Ou uma coisa ou outra. Qualquer coisa que devia ser importante
para todos nós. Ele disse que era importante quando me mandou chamar. Não posso
deixar o caso em aberto. Ainda não sei como, mas hei de saber o que ele me queria
dizer.
Sentiu a mão de Karen apertar-lhe o braço.
- Não, Chris, não te deixes envolver mais. Não te consigo explicar, mas isso
assusta-me. Não gosto de viver assustada.
Ele olhou para a noite através da janela.
- E eu não gosto de viver com mistérios - retorquiu.
1

Capítulo segundo

Enterraram o coronel Noah Baxter, anterior Procurador-Geral dos Estados


Unidos, numa fria manhã de Maio num dos poucos espaços livres do cemitério
Nacional de Arlington, do outro lado do rio Potomac, em Washington. Parentes,
amigos, membros do governo, o próprio Presidente Wadsworth, estiveram junto da
sepultura enquanto o padre Dubinski entoou a oração final.
A cerimônia já acabara, e os vivos, cheios de tristeza, empreenderam o
caminho de regresso para os trabalhos da vida.
O diretor Vernon T. Tynan, o seu vigoroso e atarracado assistente, o diretor-
adjunto Harry Adcock, e o Procurador-Geral Christopher Collins, que tinham vindo
juntos para a cerimônia, saíam agora também juntos. Caminharam em silêncio pela
Avenida Sheridan, passando pelos jazigos de Pierre Charles L'Enfant e do general
Philip H. Sheridan, pela chama eterna que arde sobre a sepultura de John F.
Kennedy, em direção ao carro oficial à prova de bala de Tynan.
O silêncio só foi quebrado uma vez, por Tynan, quando passaram por um
grupo de lápides da Guerra Civil.
- Vêem estas lápides de unionistas e confederados? - perguntou Tynan,
apontando. - Sabem como se podem distinguir as da União e as da Confederação?
Os mortos da União têm lápides com a parte superior arredondada. Os mortos
confederados têm lápides com a parte superior pontiaguda... Afiada, diziam eles,
"para evitar que o diabo dos ianques se sentem sobre elas". Sabem quem me contou
isto? Noah Baxter. O velho Noah Baxter contou-me um dia que por aqui
1
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passávamos como hoje, vindos do funeral de um qualquer general de três estrelas. -
Resfolegou. - Suponho que Noah Baxter nunca imaginou que estaria aqui tão cedo. -
Virou o rosto para o céu. Parece-me que temos chuva para todo o dia. Bem, o
melhor é voltarmos ao trabalho.
Tinham chegado ao carro de Tynan, onde um agente mantinha a porta de trás
aberta. Harry Adcock entrou, seguido por Tynan e Collins.
Instantes depois já tinham saído pelo grande portão do cemitério à memória de
Arlington, seguindo pela ponte dos mortos da Guerra Civil, passando pelas estátuas
dos cavalos que ladeavam o extremo da ponte e seguindo para a cidade.
Tynan foi o primeiro a reatar a conversa.
- Vou sentir a falta do velho Noah. Não fazem idéia de como éramos íntimos.
Eu gostava do pobre velho.
- Era boa pessoa - concordou Adcock, que em público era geralmente um eco
do seu superior.
- Também sentirei a sua falta - acrescentou Collins para não ficar atrás. - No
fundo é por causa dele que hoje estou onde estou.
- Sim - disse Tynan. - Só tenho pena que ele não tenha aguentado por cá o
suficiente para ver os frutos do seu trabalho para criar a 35.a emenda. Toda a gente
julga que ela partiu do Presidente, mas, na verdade, foi Noah o responsável pela sua
criação. Acreditava nela como numa religião que nos podia salvar. Devemos-lhe a
aprovação na Califórnia.
- Tentarei - disse Collins.
- Temos de fazer mais do que tentar, temos de ter certeza de ganhar - lançou a
Collins um olhar calculador. - Sei que o velho Noah contaria consigo, Chris, para
lhe dar um empurrão na ponta final como ele próprio faria se cá estivesse. Digo-lhe,
Chris, que o coronel Noah Baxter considerava a aprovação da emenda como o
assunto de maior prioridade e urgência.
Sentado no banco traseiro do automóvel, apertado contra a chapa de aço pelo
corpo transvazante de Tynan, Collins apanhou a palavra urgência. O seu espírito
recordou instantaneamente a cena noturna no hospital, quando o padre lhe
confirmara que o coronel Baxter lhe tinha querido falar sobre qualquer coisa
urgente. Seria a respeito da 35.a emenda? Posteriormente, Collins tinha dito à
mulher que não gostava de mistérios, que tencionava solucionar este. Nessa altura
não tinha a menor idéia sobre
por onde começar. Agora, parecia já ter um ponto de partida. Talvez Tynan, que
tinha sido amigo íntimo do coronel, pudesse auxiliá-lo, dar-lhe uma pista.
- Veron - disse Collins-, a propósito das prioridades do coronel, sei de uma
coisa que talvez tenha interesse e que se passou na noite em que estivemos na Casa
Branca. Foi muito estranho. Lembra-se que tive de sair à pressa? Bem, foi porque
recebi uma mensagem de Bethesda dizendo que o coronel estava moribundo e que
me queria falar sobre um assunto urgente, para me dizer qualquer coisa de
importância vital. Corri para o hospital e fui ao quarto dele. Mas já era demasiado
tarde. Ele tinha morrido poucos minutos antes.
- Ah, sim? - disse Tynan. - É realmente estranho. E descobriu o que é que ele
tinha de tão importante para lhe dizer?
- Aí é que está o problema. Não soube. As últimas palavras, pouco antes de
morrer, não foram para mim mas para o padre. Confessou-se ao padre, aquele que
estava hoje em Arlington, o padre Dubinski. Quando o padre me disse isso, pensei
que talvez nos últimos momentos o coronel tivesse contado qualquer coisa do que
me queria dizer. Mas o padre não conta. Limitou-se a dizer que o ouvira em
confissão e que as confissões são confidenciais.
- E são - intrometeu-se Adcock.
- O que eu gostava de saber - continuou Collins -, é se tem alguma idéia sobre
a informação que o coronel me queria comunicar: algum assunto por terminar no
Departamento que possa ter discutido consigo, algum programa de trabalho que eu
devesse conhecer. Estou deveras intrigado.
Tynan fixou os olhos nas costas do motorista por uns instantes.
- Lamento, mas a mim também me intriga. Não faço idéia do que Noah
pretenderia. Não estou a ver nada importante que tenhamos discutido antes do
ataque de há cinco meses. Só lhe posso repetir o que ele achava mais importante.
Das milhares de coisas em que estava envolvido, uma dominava todas as outras: era
ver a 35.a emenda ratificada e fazer dela lei. Talvez o que ele lhe queria dizer tivesse
a ver com isso.
- Talvez. Mas exatamente o quê sobre a 35.a emenda? Tinha de ser qualquer
coisa de especial para me chamar ao seu leito de morte.
- É claro que ele não sabia que estava a morrer. Portanto, talvez não fosse
nada de especial.
- Ele disse que era urgente - insistiu Collins. - Eu até estava a pensar em
voltar a falar com o padre e fazer outra tentativa.
Adcock inclinou-se por cima de Tynan. O seu rosto, marcado pelo acne,
estava solene.
- Se conhecesse os padres tão bem como eu, saberia que é tempo perdido. Só
Deus pode tirar alguma coisa deles.
- Harry tem razão - concordou Tynan. Inclinou-se e espreitou pela janela. -
Ora, cá estamos no Departamento de Justiça. De novo em casa.
Collins olhou para o exterior.
- Sim. São horas de trabalhar. Obrigado pela carona.
Abriu a porta e saiu para a Avenida da Pensilvania, em frente do
Departamento.
- Chris - chamou Tynan -, é melhor ir preparando as malas. O Presidente
ainda está a pensar em mandá-lo para a Califórnia na próxima semana. Está apenas a
tentar decidir-se.
- Assim que ele me disser para ir, eu parto.
Tynan e Adcock observaram Collins a entrar no edifício enquanto o
automóvel os conduzia às traseiras do edifício J. Edgar Hoover e ao estacionamento
privativo do diretor no segundo dos três andares do subsolo.
Enquanto o veículo rodeava o prédio e entrava na Rua E, os olhos de Tynan
encontraram os de Adcock.
- Ouviu bem o que ele disse, não ouviu, Harry?
- De ponta a ponta, chefe.
- Que lhe parece que o velho Noah lhe queria dizer de tão urgente para ter de
ser comunicado antes de morrer?
- Não tenho idéia, chefe - respondeu Adcock. - Ou talvez até saiba, mas não
quero saber.
- Talvez eu também saiba. Parece-lhe que Noah Baxter foi apanhado pela
religião no último minuto e quis despejar o saco?
- Pode ter sido isso. Não posso ter certeza. Quem sabe... Graças a Deus que
não teve tempo de dar à língua.
- Mas fê-lo, Harry. Você bem ouviu. Ele confessou qualquer coisa ao padre.
- Apre, chefe, mas isso era uma confissão. Um moribundo que se confessa
não fala de... de negócios.
Tynan ficou carrancudo.
- Não podemos estar tão certos. Chame-lhe o que quiser, uma confissão ou
seja lá o que for, mas o fato é que Noah falou a alguém sobre o que o preocupava
quando estava a passar desta para melhor. Falou, percebeu? Queria falar a alguém
sobre qualquer coisa urgente e acabou por falar. Não me agrada. Quero saber sobre
que falou Noah e quanto falou. Tenho o maior interesse em saber.
O Cadillac mergulhou na rampa que levava às caves do edifício. Adcock
pegou num lenço, tossiu e expectorou para dentro dele.
- É um caso complicado, chefe - disse finalmente.
- Todos eles são complicados, Harry. Passado algum tempo já não são tanto.
Sejamos honestos, Harry: os casos complicados são o pão nosso de cada dia. Era o
patrão, Edgar Hoover, que costumava dizer isso. Existimos por causa deles. São eles
que nos sustentam. A função do FBI é fazer as pessoas falarem. Especialmente
quando estão na posse de informações que põem em perigo a segurança do governo.
Não há razão para que esse padre... chame-se lá como se chamar...
- Padre Dubinski, da Santíssima Trindade de Georgetown. É onde vão todos
os católicos do governo.
- Pois bem, é aí mesmo que eu quero que vá, Harry. O FBI faz as pessoas
falarem, e não vejo porque haveria esse Dubinski de ser uma exceção. Acho que é
altura de ir a essa igreja. Faça uma visita amigável ao bom padre. Descubra quais
foram as últimas palavras que Noah Baxter lhe disse. Descubra o que Dubinski sabe.
Se ele souber alguma coisa que não deve, arranjaremos maneira de o calar. Harry,
quero que trate já disso.
- Chefe, sabe que eu faço tudo o que for preciso. Mas neste caso, não me
parece que tenhamos hipóteses.
- Ah, não? Pois eu digo-lhe que temos todas as hipóteses. De fato, até lhe
digo que não pode falhar se tratar corretamente do caso. Pelo amor de Deus, Harry,
não lhe estou a pedir que lá vá desarmado. Primeiro ponha o Departamento a fazer
uma investigação rigorosa sobre o padre. Esses amantes de Deus não são diferentes
dos outros homens. Você conhece o nosso axioma. Todas as pessoas têm qualquer
coisa a esconder. O padre está nessa situação. Ele é humano. Deve ter vícios. Ou
teve-os. Talvez se embriague às escondidas. Talvez tenha abusado de um menino de
coro. Talvez se meta na casa de banho com a criada de dezoito anos para a maltratar.
Talvez a sua mãe fosse comuna. Há sempre qualquer coisa. Vá ter com esse amante
de Deus e leve-lhe aquilo que ele não confessou, atire-lhe à cara. Verá que ele fala.
Nem vai ser capaz de o calar. Ele dará qualquer coisa em troca do nosso silêncio.
O Cadillac tinha chegado à segunda cave, parando no lugar reservado.
Tynan ficou por instantes a olhar em frente, estático.
- Estou a falar muito a sério, Harry. Estamos demasiado perto da meta para
permitir obstáculos. Apague a sua ardósia. Isto tem prioridade absoluta. Certo,
Harry?
- Certo, chefe. Está entendido.
Vernon T. Tynan trabalhou à secretária até duas horas depois do funeral.
Depois, precisamente ao meio-dia e quarenta e cinco, levantou-se da cadeira, foi ao
banheiro privativa arranjar-se, retirou do arquivo ultra-secreto uma pasta do ficheiro
Oficial e Confidencial, e caminhou apressado para o elevador.
Lá embaixo, no segundo piso subterrâneo, entre a secção de balística e o
ginásio, encontrou o motorista e o carro ainda à espera.
- Alexandria - disse Tynan ao motorista.
- Sim, chefe - respondeu o condutor automaticamente, e segundos depois
estavam a caminho.
Era sábado. E todos os sábados a essa hora, como sempre fizera desde que se
tornara diretor do FBI, Tynan respeitou o ritual sagrado de ir almoçar com a mãe ao
bairro dos Cidadãos dos Anos Dourados.
Soubera, alguns anos depois da morte de J. Edgar Hoover, que o Velhote
tinha vivido com a mãe até esta morrer em 1938. Hoover tinha tratado a mãe com
carinho e respeito, exemplo que Tynan tomou a sério. Os grandes homens - sabia-o
bem - sempre tiveram um grande lugar no coração para as suas mães. Não só
Hoover. Veja-se também Napoleão. O mal do país era já não haver jovens, nem
mesmo adultos, em número suficiente a prestar o devido respeito às mães. Haveria
menos criminalidade no país se os jovens irrequietos começassem a visitar
regularmente as mães, em vez de se ocuparem das armas, todos os sábados à noite.
Quando chegaram ao bairro, Tynan apeou-se em frente do edifício em que
comprara um confortável apartamento de quatro divisões para a mãe, e lembrou ao
motorista:
- Uma hora.
- Uma hora, chefe.
Tynan entrou no edifício e dirigiu-se para a porta do apartamento, à esquerda.
Tinha uma chave normal e uma chave do alarme. Premiu o botão vermelho do
alarme para ver se estava a funcionar. Não estava. Teria de lembrar-lhe novamente
que deixasse o alarme ligado mesmo estando em casa. Nenhuma precaução era
demais, especialmente nesta época de bandidos, assassinos e terroristas esquerdistas.
Não estava fora de causa que conspiradores revolucionários tentassem apoderar-se
da mãe do diretor do FBI para pedirem um resgate inadmissível, como a exigência
de libertação das centenas de esquerdistas atualmente encarcerados nas
penitenciárias federais (que era onde deviam estar). Sim, tinha de alertar a mãe
peremptoriamente.
Meteu a chave na porta, abriu-a e entrou. Encontrou-a no lugar do costume: a
cadeira almofadada em frente da televisão a cores.
- Olá, mamã - disse.
Ela agitou a mão raiada de veias, sem sequer o olhar, profundamente
concentrada nas palhaçadas que a televisão transmitia. Apesar de ela estar
embrenhada no seu concurso favorito, Tynan aproximou-se e deu-lhe um beijo leve
na testa coberta de pós. Ela correspondeu com um sorriso rápido e levou o indicador
aos lábios, dizendo:
- O almoço já está pronto. Isto está quase a acabar. Despe o casaco.
Voltou a prestar atenção ao programa, levou as mãos às ancas e riu à
gargalhada. Tynan pousou a pasta, tirou o casaco e colocou-o cuidadosamente nas
costas de uma cadeira. Retirou um charuto do bolso do peito, desembrulhou-o,
cortou-lhe a ponta e acendeu o isqueiro sem deixar a chama tocar no tabaco (como o
Presidente fazia sempre), inalando e saboreando o aroma.
Ficou ao lado da mãe, a fumar e a ver o programa totalmente oco. Depois
contemplou a mãe com orgulho.
Tinha feito muito por ela. Se J. Edgar Hoover o pudesse ver neste momento,
tê-lo-ia louvado. Aos oitenta e quatro anos, Rose Tynan ainda estava sã como uma
abcassiana - não, nada de lugares comuns -, sã como uma camponesa vilcambana -
sim, isso sim. Era uma irlandesa dos pés à cabeça: ombros largos, forte, com o
aspecto nutrido de uma batata irlandesa. Atendendo à idade, estava bem conservada,
excetuando um ligeiro encurvar das costas, o coxear artrítico e ocasionais falhas de
memória.
Por fim, o concurso acabou. Rose Tynan levantou-se, gemendo, apagou a
televisão, pegou no filho pelo braço, conduziu-o para a pequena casa de jantar e
sentou-o à cabeceira da mesa.
- O almoço já aí vem - disse ela.
- Mamã, o alarme estava desligado quando eu entrei. Devia tê-lo sempre a
funcionar. Para minha tranqüilidade.
- Às vezes esqueço-me. Vou tentar tomar mais atenção.
- Nunca se esqueça.
- Como vão as coisas lá pelo serviço?
- Como de costume. Muito que fazer.
- Não te vou prender por muito tempo.
- Mamã, eu estou aqui porque quero. Gosto de a visitar.
- Então passemos a almoçar juntos duas vezes por semana.
Desapareceu na cozinha e voltou com uma travessa de carne de conserva com
couves. O almoço habitual - que também tinha sido o do Velhote - era canja de
galinha e queijo caseiro. Mas hoje era sábado.
- Cheira tão bem, mamã.
- Há pão na mesa. Pão integral. Come um bocado. Tens certeza que não
queres uma fatia maior? Ah, lá me esqueci da cerveja.
Foi à cozinha e voltou com uma caneca de cerveja cheia de espuma. Colocou
a cerveja diante dele e deixou-se cair ruidosamente na cadeira.
- Então, Vern, que tal foi a manhã?
- Não foi das mais alegres. Acompanhei o funeral de Noah Baxter.
- O funeral foi hoje? Sim, é verdade.
- Foi hoje de manhã.
- Pobre Hannah Baxter. Bem, pelo menos tem o filho e o neto. Tenho de a
convidar.
- Deve, mamã.
- Falo com ela amanhã. Como está a carne? Tem muita gordura?
- Está ótima, mamã.
- Ainda bem. Então, conta-me novidades.
- Comece a mamã.
Caíram na imutável rotina de sábado.
Rose Tynan começou. Contou as últimas intrigas sobre os vizinhos do bairro.
A meio da semana tinha havido um filme sobre um homem, um órfão e um cão. Ela
fez uma extensa sinopse do argumento. Depois falou das cartas que tinha escrito e
das que recebera.
Chegou a vez de Vernon T. Tynan. Falou de Harry Adcock.
- Como está ele?
- Manda cumprimentos.
- É um bom rapaz.
Falou de Christopher Collins, o novo Procurador-Geral.
- É boa pessoa, Vern?
- Ainda não sei, mamã. Veremos.
Falou do Presidente Wadsworth. Contou a história de dois assassinos da lista
dos dez mais procurados que tinham sido presos em Minneapolis e Kansas City.
Chegou à 35.a emenda quando comia a última garfada da escassa carne.
- Não te preocupes, Vern. Vais ganhar.
- Precisamos demais um Estado e já só resta um.
- Vais ganhar.
O almoço acabou à hora do costume. Sobravam dez minutos até à chegada do
motorista.
- Está pronta para o ficheiro confidencial, mamã?
- Estou sempre pronta - respondeu ela com um largo sorriso. Ele levantou-se
da mesa, foi à sala de estar e trouxe o ficheiro ultra-secreto Oficial e Confidencial.
Esse ficheiro era, nos dez minutos seguintes, a sua prenda dos sábados para a mãe. O
ficheiro continha as informações semanais do FBI, em grande parte assuntos sexuais
e potencialmente escandalosos, relativos a celebridades do teatro, do cinema e do
mundo do desporto, com um sumarento acepipe adicional sobre uma série de
políticos, industriais e espiões da indústria famosos. Rose Tynan, que lia todas as
revistas sobre estrelas do mundo do espetáculo e todos os semanários nacionais,
deliciava-se com o lavar da roupa suja.
Tynan sentiu novamente que se J. Edgar Hoover ali estivesse teria aprovado.
Afinal de contas, fora Hoover quem recolhera informações sobre a vida sexual e o
alcoolismo de americanos proeminentes, entregando regularmente esse material
secreto ao Presidente Lyndon B. Johnson, para que o chefe do executivo tivesse
umas horas de leitura deleitada ao deitar.
Tynan abriu a pasta e retirou um a um os memorandos confidenciais.
- Para começar, um verdadeiro regalo, mamã. A sua estrela de cinema
preferida. - Ele leu o nome do simpático ator liberal que a sua mãe adorava e ela
cacarejou antecipadamente. - Na semana passada foi a um salão de massagens de
Las Vegas , despiu-se todo, e duas raparigas também nuas amarraram-no e
chicotearam-no.
- É tudo!? - disse, desapontada, Rose Tynan, profunda conhecedora de todos
os escândalos.
- Bem, há quem pense que esta é das fortes - disse Tynan.
- Mas eu tenho melhor. Conhece aquela congressista que faz discursos contra
o Pentágono? - Disse o nome à mãe. - Ninguém sabe disto, mas descobrimos que é
lésbica. Anda com a secretária de imprensa, uma rapariga de Radcliff, de vinte e
dois anos...
Atrás deste caso veio outro e mais outro, preenchendo os dez minutos e
provocando o deleite de Rose Tynan. Quando ele acabou e fechou a pasta, a mãe
disse-lhe:
- Obrigado, Vern. És um bom rapaz. Pensas sempre na tua mãe.
- Obrigado, mamã.
À porta, ela estudou-lhe o rosto.
- Estás cheio de preocupações. Vê-se bem.
- O país está a passar por maus momentos, mamã. Há muito que fazer. Se não
conseguirmos a 35.a emenda, não sei o que acontecerá.
- Tu sabes o que é melhor para todos. Ainda outro dia disse à senhora
Grossman (aquela que mora no apartamento aqui em cima) que tu saberias bem o
que fazer se fosses Presidente. E acredito nisso. Devias ser Presidente.
Ele piscou-lhe o olho enquanto abria a porta.
- Talvez venha a ser mais do que isso - retorquiu Tynan. Veremos.
***
Tinha sido um longo dia para Chris Collins. Tentando recuperar o tempo que
perdera durante a manhã no funeral do coronel Baxter, tinha trabalhado sem parar,
sacrificando a hora habitual para o almoço. Agora, sentado com a mulher e dois dos
amigos mais íntimos junto da lareira de mármore pário da sala de jantar do
restaurante 1789 na 36.a Rua em Georgetown, Collins começava a satisfazer a fome.
Dois scotches, uma almoçadeira de sopa de alhos franceses e a salada César
que partilhara com Karen, tinham-lhe proporcionado os primeiros momentos de
descanso do dia. Enquanto trinchava e comia o pato com molho de laranja, tentava
ver se Ruth e
Paul Hilliard estavam a gostar das entradas que tinham pedido. Era evidente que
sim. Collins observou Hilliard com afeto (era difícil pensar nele como o senador
mais novo da Califórnia). Tinha conhecido Hilliard quando estavam ambos no início
das suas carreiras: Hilliard era então vereador em São Francisco e ele procurador da
ACLU. Nesses primeiros anos jogavam handebol três vezes por semana no Clube Y
e Collins acabara por ser padrinho de casamento de Hilliard. Agora, passados alguns
anos, aqui estavam ambos em Washington, o Procurador-Geral Collins e o seu
amigo Senador Paul Hilliard. Tinham rejubilado com o encontro.
Hilliard era um homem agradável, enterrado nos seus óculos, de tipo erudito,
moderado, de fala suave, um companheiro perfeito para uma noite como esta. Como
de costume, a conversa era simples: tagarelices sobre os Kennedy, as perspectivas
do decadente grupo de futebol dos Washington Redskins, mais um filme de Lizzie
Borden que todos queriam ver.
Hilliard acabou o filet mignon, arrumou o garfo e a faca no prato vazio e
começou a encher o seu novo cachimbo dinamarquês.
- Que me dizes do vinho, Paul? - perguntou Collins. - É da Califórnia, sabias?
- Olha para o meu copo - respondeu, apontando para o copo vazio. - É o
melhor testemunho para as nossas parreiras.
- Queres mais?
- Já me chega de vinho da Califórnia - disse Hilliard acendendo o cachimbo. -
Mas não da Califórnia. Queria discutir esse assunto contigo. Parece-me que é aí que
tudo se joga a partir de agora.
- Tudo se joga? Ah, referes-te à 35.a emenda.
- Desde a votação de Ohio que tenho estado a receber telefonemas constantes
da Califórnia. Todo o Estado está em efervescência.
- Qual é a tendência? - Hilliard soprou um anel de fumo. - Pelo que sei, a
ratificação tem mais probabilidades. O governador vai anunciar o seu apoio ainda
esta semana.
- Isso vai agradar ao Presidente - disse Collins.
- Aqui para nós, trata-se de um contrato - continuou Hilliard.
- O governador vai concorrer ao Senado no termo do mandato. Quer o apoio
do Presidente, mas Wadsworth nunca lhe deu esperanças.
Assim, fizeram um negócio. O governador apoiará a 35.a emenda se o Presidente o
apoiar. - Fez uma pausa. - É lastimável.
Collins, que mastigava a última garfada de pato, parou de comer.
- Que quer isso dizer, Paul. - Engoliu a comida. - O que... o que é que te
parece lastimável?
- Que os grandes trunfos estejam a alinhar pela 35.a emenda na Califórnia.
- Julguei que eras a favor.
- Não era a favor nem contra. Fiz o papel de observador inocente. Limitei-me
a observar e esperei para ver o que acontecia. Suponho que foi assim que pensaste
em particular. Mas agora que a decisão nos bate à porta, tenho de agir, tenho de
tomar posição.
- De que lado? Contra a emenda?
- Contra.
- Não te precipites, Paul - disse Ruth Hilliard nervosamente. Porque não
esperas para veres o que o povo pensa?
- Nunca saberemos o que o povo pensa até ele saber o que nós pensamos. O
povo espera que os seus dirigentes lhe digam o que é melhor. No fundo...
- Estás certo do que é melhor? - interrompeu Collins.
- Estou cada vez mais certo - disse Hilliard calmamente. Baseado naquilo que
vou sabendo gradualmente sobre a situação lá na terra, posso afirmar que as medidas
da emenda são excessivas. Essa lei está sobrecarregada com um armamento
demasiado pesado para um inimigo tão pequeno. É isto que Tony Pierce também
pensa. Vai agora para a Califórnia para combater a emenda.
- Pierce não merece crédito - disse Collins, lembrando-se da tirada do diretor
Tynan contra o defensor dos direitos civis, na noite em que estivera na Casa Branca.
- Os motivos de Pierce são suspeitos. Ele fez da emenda uma vingança
pessoal. Está a combater Tynan através da emenda, porque ele o expulsou do FBI.
- Tens provas disso? - perguntou Hilliard.
- Bem, foi o que ouvi dizer, mas não verifiquei.
- Pois tenta verificar, porque a versão que conheço é muito diferente. Pierce
ficou desiludido com o FBI quando lhe pertencia. Retirou o apoio a alguns agentes
especiais que Tynan manipulava. Como retaliação, Tynan decidiu exilá-lo para
longe, Montana ou Ohio ou outro lugar igualmente distante, e isso levou Pierce a
demitir-se para combater pelas suas reformas a partir do exterior. Disseram-me que
Tynan tinha posto a correr a história da expulsão.
- Não importa - disse Collins, mostrando sinais de impaciência. - O que
importa é que tu disseste que decidiste colocar-te do lado dos que se opõem à
emenda.
- Porque essa lei me preocupa, Chris. Eu sei qual é a intenção subjacente, mas
é demasiado violenta e cada vez mais me parece que as suas medidas podem ser
ultrapassadas ou usadas indevidamente. Francamente, a única coisa que me dá
alguma confiança no caso de ser aprovada, é o fato de John Maynard ocupar o lugar
de Presidente do Supremo Tribunal. Ele velaria pela sua aplicação honesta. Mesmo
assim, a possibilidade dessa aprovação preocupa-me.
- Mas há um aspecto positivo, Paul. Ela evitará que o crime nos venha a
submergir. A criminalidade na Califórnia, por exemplo, atingiu níveis
inadmissíveis...
- Sim? - retorquiu Hilliard.
- Porque duvidas, se tens ao teu dispor as estatísticas do FBI ?
- Estatísticas, números. Quem foi que disse que os números não mentem, mas
as mentiras contabilizam-se? -Hilliard mexeu-se incomodado na cadeira. Pousou o
cachimbo e olhou penetrantemente para Collins. - Há muito que as desejava discutir
contigo. Refiro-me às estatísticas. Estive um pouco hesitante em levantar a questão
porque se trata do teu departamento e receei melindrar-te.
- Porque haveria de me melindrar? Raios, somos amigos, Paul. Fala à
vontade.
- Está bem. - Hesitou ainda, mas acabou por se decidir. - Recebi ontem um
telefonema inquietante. De Olin Keefe.
O nome não era conhecido de Collins.
- É um legislador novo eleito por São Francisco - explicou Hilliard. - É boa
pessoa. Havias de gostar dele. O caso é que pertence a uma comissão que o
encarregou de falar com um certo número de chefes de polícia da área da Baía. Dois
deles, dois desses chefes da polícia, queixaram-se que o FBI estava a tentar colocá-
los mal. Afirmaram que o número de crimes que apresentaram ao diretor Tynan e
que apuraram com todo o cuidado não tinham a menor semelhança com os números
elevadíssimos que tu tornaste públicos.
- Eu não tenho nada a ver com esses números, exceto tecnicamente- disse
Collins, levemente irritado. - É Tynan que os reúne quando chegam das diversas
comunidades locais e os computa. Depois, o meu departamento publica-lhes. Mas
isso pouco importa. Que me querias dizer mais, Paul?
- Estava a tentar dizer-te que o jovem Keefe, o deputado à Assembléia Keefe,
suspeita que o diretor Tynan tem alterado essas estatísticas nacionais da
criminalidade, que as tem adulterado, especialmente no que se refere à Califórnia.
Está a apresentar-nos uma onda de criminalidade maior do que a que existe
realmente.
- Porque haveria de fazer uma coisa dessas? Isso não faz sentido.
- Até faz muito sentido. Tynan está a proceder assim (se é que está
efetivamente a fazê-lo) para amedrontar os nossos legisladores de modo a
aprovarem a 35.a emenda.
- Bem, eu sei que Tynan dá tudo por tudo para ver a emenda aprovada. Sei
que o FBI tem sempre as estatísticas mais convenientes. Mas porque é que havia de
se dar ao trabalho de fazer uma coisa arriscada como falsificar números? O que é
que ganhava com isso?
- Poder.
- Ele já tem poder - disse Collins terminantemente.
- Mas não a espécie de poder que teria como chefe do comitê de Segurança
Nacional se a disposição de emergência prevista na emenda viesse a ser invocada.
Então seria Vernon T. Tynan úber Alies, o chefe supremo.
Collins abanou a cabeça.
- Não acredito nisso. Nem um pouco. Paul, eu vivo no meio da Justiça. Já
faço parte dela há dezoito meses, num cargo ou noutro. Sei o que se passa no
departamento. Tu estás afastado. E esse jovem deputado, o teu amigo Keefe,
também está do lado de fora. Não pode fazer a menor idéia do que se passa.
Hilliard não se deu por vencido. Empurrou os óculos sem armação para a
ponta do nariz e disse firmemente:
- Pela nossa conversa telefônica, parece que sabe bastante. Há outras coisas
que ele sabe e que também não são nada agradáveis. Não tens de as conhecer por
meu intermédio. Começa por informar-te pessoalmente. Há pouco disseste que
devias ir em breve à Califórnia. Ótimo. Porque não me deixas marcar-te um
encontro com Olin Keefe? Ficas a saber de tudo diretamente. - Fez uma pausa. - A
menos que, por qualquer razão, não o queiras fazer.
- Acaba com isso, Paul. Conheces-me demasiado bem para dizeres isso. Não
há nenhuma razão para que eu não queira tomar conhecimento dos fatos - se forem
fatos. Não estou enfeudado a nenhum grupo. Estou interessado na verdade, como tu.
- Então queres falar com Keefe?
- Combina o encontro, que eu não faltarei.
- De espírito aberto, espero. A sorte de toda esta República pode depender do
que se passar na Califórnia. Não me agradam certas coisas que por lá acontecem.
Peço-te que ouças tudo o que ele tiver para te dizer e forma então a tua opinião.
- Ouvirei - disse Collins com firmeza. Pegou na ementa. - Este molho de
laranja que acompanhava o pato estava um pouco ácido. Agora, para variar, vamos
comer qualquer coisa doce.
***
No dia seguinte, exatamente ao meio-dia, como fazia uma vez por semana
desde há seis meses, Ishmael Young chegou à cave do edifício J. Edgar Hoover,
vindo do seu apartamento alugado de Fredericksburg, na Virgínia. Embora fosse
domingo, ele sabia que nos tempos críticos que corriam, a semana tinha sete dias
para todos os funcionários da Justiça ou do FBI. Tynan estaria à sua espera. Young
estacionou o seu automóvel de desporto comprado em segunda mão, saiu a custo e
encontrou o agente especial O'Dea em frente do elevador privativo do diretor. Às
vezes era o diretor-adjunto Adcock que o aguardava. Hoje era O'Dea, a antiga
vedeta do desporto. Subiram no elevador até ao sétimo andar, separaram-se, Young
seguiu sozinho -levando consigo o gravador e uma pasta- pelo corredor ladeado por
duas filas de gabinetes e, instantes depois, entrava nos aposentos do diretor Tynan.
Já no espaçoso gabinete de Tynan lá no alto da Avenida Pensilvania, Ishmael
Young arrastou uma pesada poltrona para junto da mesa baixa e circular onde se
servia o café, ficando de frente para o sofá onde dentro em pouco o diretor se
sentaria, pegou nos seus papéis e preparou-se. Ao meio-dia e quinze, a secretária do
diretor, Beth, já tinha colocado na mesa uma cerveja para Tynan e uma Pepsi-Cola
para o escritor. A seguir trouxe dois almoços embalados, fornecidos por uma
pastelaria próxima da Rua 9. Deixou uma canja de galinha e queijo caseiro para o
diretor e uma salada de batata, pickles e ovo, comprimida no embrulho de papel
fino, para o escritor. Depois saiu. Por fim, Tynan levantou-se da cadeira por trás da
pavorosa secretária, depois de ter dito a alguém pelo telefone que só recebia
chamadas do Presidente, e fechou o gabinete, trancando as duas portas. Passou por
Young, atravessou o quarto de vestir e entrou na casa de banho. Um minuto depois,
reapareceu refrescado, esfregando as mãos para as secar, e afundou-se no sofá para
beber a cerveja.
Vernon T. Tynan gostava destas sessões autobiográficas. Naturalmente,
porque lhe diziam respeito. Ishmael Young odiava-as.
Young gostava do FBI, mas detestava o diretor Tynan. Gostava do FBI não
pela sua razão de ser, mas porque era extremamente eficiente, o que Young não era.
Apreciava todas as grandes organizações que funcionavam bem: a IBM, o partido
comunista russo, o Vaticano, a Máfia, o FBI, independentemente dos seus objetivos.
Desagradava-lhe a maneira como essas máquinas gigantescas manobravam e
exploravam o povo, mas apreciava a eficiência dessas máquinas - maiores que a vida
- que funcionavam impavidamente.
Ele trabalhava com um lápis, uma máquina de escrever, um maço de papéis e
sob tensão nervosa, mas isso não era maneira de viver.
Tinha apreciado e respeitado o FBI até à primeira sessão com o diretor
Tynan, há seis meses, quando o diretor adjunto Adcock o tinha levado a dar uma
volta pelo serviço para lhe dar uma "sensação". Tinha havido a parte turística do
passeio. Mais de meio milhão de turistas vinham ver anualmente as exposições: o
átrio dos criminosos famosos, onde eram mostradas as armas de John Dillinger, o
seu terno à prova de bala e uma máscara do seu rosto no momento da morte; "O
Crime do Século - O caso dos Espiões da Bomba Atômica", exibindo Julius e Ethel
Rosenberg; a lista dos dez fugitivos mais procurados; a exposição do caso do roubo
de Brink; "A Mão Sinistra da Espionagem Soviética", com o coronel Abel como
vedeta; a carreira de tiro, onde de nove em nove minutos um agente especial fazia
uma demonstração do poder mortífero da destruição humana, usando um revólver de
serviço de calibre 38 ou uma metralhadora automática de calibre 45 sobre um alvo
de cartão com uma figura humana.
Acima de tudo - já para além dos limites facultados aos turistas Ishmael
Young tinha ficado apaixonado pelos arquivos do FBI. Neste gigantesco arquivo
para a detenção de criminosos, havia impressões digitais demais de 250 milhões de
pessoas. Se Deus tivesse mãos, pensara Young, o FBI teria as suas impressões
digitais. Entre as 8 700 caixas de ficheiros cinzentas, havia um ficheiro das escritas
de máquinas, com a reprodução do tipo de letra de todas as máquinas de escrever,
normais ou de brinquedo, fabricadas até à data (nunca mais pensaria em escrever à
máquina uma carta anônima). Tinha visto também o arquivo das marcas de água, o
arquivo das notas de banco falsas, o arquivo de roubos a bancos. Mas havia muito
mais para ver: a secção de serologia, onde eram analisados o soro sangüíneo e o
sangue; a secção de química, onde os órgãos humanos eram vaporizados; a sala do
espectógrafo, onde eram examinadas partículas de tinta. Tinha sido difícil decidir-se
a sair da secção de pêlos e fibras. "Quando as pessoas lutam", explicara-lhe Adcock,
"as fibras do vestuário podem aderir ao do opositor. Raspamos todas as fibras da
roupa e examinamo-las para saber se pertencem ao assaltante ou à vítima." E
Adcock acrescentara ainda: "O laboratório é a nossa arma secreta silenciosa. É
invencível. J. Edgar Hoover montou-o em 1932. Como ele disse certa vez: 'A
mancha de sangue minúscula, o documento falsificado, a carteira de fósforos
encontrada na cena do roubo, a marca de um calcanhar ou a mancha de poeira
podem ser a prova essencial para associar o criminoso ao crime ou para ilibar uma
pessoa inocente'."
Quando teve de sair, no seu espírito agitavam-se centenas de idéias. Era o
paraíso para um escritor. Tinha perguntado a si próprio se seria possível um
criminoso escapar ao FBI. Mas não tinha posto a questão a Adcock, porque a nação
estava receosa do crime e não eram poucos os criminosos que conseguiam
prosseguir a sua ação.
Depois, tinha sido levado para a primeira sessão oficial com o diretor Vernon
T. Tynan, para começar a escrever o livro.
Supusera que parte da sua admiração pelo FBI recairia sobre o diretor. Mas
não, e não tinha ficado surpreso. Odiara Tynan desde o princípio, mesmo antes de
lhe pôr os olhos em cima. Tynan tinha desejado uma autobiografia e Young fora
recomendado. Tynan tinha lido dois dos livros fantasmas de Young e aprovara.
Young tinha resistido. Conhecia a reputação de Tynan, a sua egomania, e tinha
rejeitado o convite de colaboração. Por pouco tempo. Tynan tinha feito chantagem,
forçando a escrever o livro.
Nunca pôde esquecer o primeiro encontro com Tynan neste mesmo gabinete. Lá
estava o diretor -uns olhos de gato num focinho de bulldog - dizendo: "Até que
enfim, Sr. Young. Prazer em conhecê-lo, Sr. Young." Ele tinha respondido
friamente: "Pode chamar-me Ishmael." O diretor olhara-o inexpressivamente. Só
então Young pôde perceber como ele era e qual o caminho a seguir. O diretor nunca
o chamava Ishmael. Talvez tivesse pensado que era um nome estrangeiro. Decidiu
tratá-lo por Young ou apenas ''você''.
Agora já tinham passado seis meses, e estavam sentados frente a frente mais
uma vez: Ishmael Young bebendo a sua Pepsi e Vernon T. Tynan engolindo o resto
da sua cerveja. Quando Tynan pôs de lado a caneca de cerveja e começou a comer a
sopa, Young percebeu que era o sinal de partida. Inclinou-se, premiu o botão de
gravação do gravador portátil, deu uma garfada na salada de ovo e reviu as notas do
bloco. O diretor tinha-lhe comunicado o tema desta sessão uma semana antes e
Young tinha-se preparado em casa. Não ia ser fácil. Lembrou-se que se devia
mostrar coibido.
- Vamos falar sobre J. Edgar Hoover - começou Tynan, tirando uma
colherada de queijo -, sobre a maneira como me iniciou e fez de mim o que sou.
Quando ele morreu, em 1972, não quis trabalhar com Gray, nem Ruckelhaus, nem
Kelley, nem com nenhum dos que se seguiram. Eram bons homens, mas depois de
se trabalhar com o Velhote - era assim que nós nos costumávamos referir a Hoover,
o Velhote-, depois de se ter trabalhado com ele, nenhum outro interessava. Foi por
isso que resolvi demitir-me depois de ele morrer, montando a minha própria agência
de investigações. Só mesmo o Presidente me podia fazer abandonar a minha agência
particular para vir chefiar o Serviço. Creio que já lhe tinha dito tudo isto.
- Sim, tudo isso está transcrito e redigido.
- Com as coisas a deteriorarem-se da maneira que estavam, o Presidente
precisava outra vez do Velhote. Uma vez que já não o podia ter - refiro-me ao
Presidente -, decidiu que precisava de um autêntico homem feito do estofo de
Hoover. Assim, fez-me regressar. Nunca se arrependeu. Antes pelo contrário. Já lhe
contei, não é verdade?, que ele me chamou há um mês e me disse: "Vernon, nem
mesmo J. Edgar Hoover podia ter feito o que você está a fazer." Foram as suas
palavras textuais.
- Lembro-me - disse Young. - Foi uma verdadeira homenagem.
- Bem, Young, não quero que esta parte do livro seja uma homenagem à
minha pessoa. Que o seja antes ao Velhote, para que os leitores saibam que o
respeito e quanto aprendi com ele.
- Sim, andei a ler bastante sobre Hoover durante a semana.
- Esqueça as suas leituras. Essa gente viciosa da imprensa nunca foi justa para
com o Velhote, sobretudo nos seus últimos tempos. Ouça o que eu tenho para lhe
dizer e ficará elucidado.
- Com certeza.
- Transcreva com o maior cuidado o que lhe vou dizer a seguir, para ter
certeza de que não surgiram equívocos.
- Tenho o gravador ligado, não há necessidade de escrever.
- É verdade, já me esquecia. Agora ouça. Foi J. Edgar Hoover quem
introduziu o profissionalismo na defesa da lei. Pôs de lado a imagem do chui brutal -
isto já não foi nada mau, e você explore bem este fato - e fez o público respeitar-nos.
O FBI surgiu com Teddy Roosevelt, quando o Procurador-Geral era Charles
Bonaparte. Bonaparte nasceu nos Estados Unidos, mas era neto do irmão mais novo
de Napoleão. Depois houve uma série de diretores, mas todos eles foram medíocres
ou francamente maus. O último antes do Velhote foi William J. Burns, que era
terrivelmente mau. Segundo Harlan Foske Stone, no tempo de Burns o FBI tornou-
se um serviço secreto privado que apoiava forças corruptas dentro do governo.
Assim, um ano antes de ir para o Supremo Tribunal, Stone arranjou um rapaz de
vinte e nove anos chamado J. Edgar Hoover e colocou-o à frente do FBI. Hoover já
tinha trabalhado como bibliotecário do governo. Tomou conta do FBI quando este
tinha 657 funcionários. Quando morreu, os funcionários já eram 20000. Foi ele que
montou o laboratório criminal, o arquivo de impressões digitais, a escola de
formação de quântico, o Centro Nacional de Informação criminal com os seus
computadores e quase três milhões de fichas. Foi o Velhote que fez tudo isto, e no
tempo dele - como no meu - nenhum agente do FBI cometeu um ato criminoso ou
corrupto. Isto tem que ser dito.
- Com certeza - concordou Young.
- Pense bem no que J. Edgar Hoover fez - prosseguiu Tynan, acabando o seu
queijo caseiro. - Foi ele que caçou John Dillinger, Pretty Boy Floyd, Alvin Karpis,
Kelly Machine Gun, Baby Face Nelson, Ma Barker, Bruno Hauptmann, os oito
sabotadores
nazis que desembarcaram em submarinos, Julius e Ethel Rosenberg, Klaus Fuchs, os
ladrões de Brink, James Earl Ray... A lista é de quilômetros.
Muitos, muitos quilômetros, pensou Ishmael Young, lembrando-se dos
triunfos que Tynan não tinha mencionado por conveniência. Durante a maior parte
da sua carreira, Hoover tinha ignorado a Máfia, recusando-se a dar crédito à sua
existência. Só em 1963, quando Valachi se decidiu a falar, é que Hoover reconheceu
o crime organizado. Impossibilitado de recusar a evidência, Hoover nunca se lhe
referiu com o nome de Máfia, mas sim através do eufemismo de La Cosa Nostra.
Alguns apologistas pretendem que o Velhote ignorou a Máfia porque tinha receio
que o mundo subterrâneo subornasse e corrompesse os seus agentes, como já tinha
acontecido à polícia comum, arruinando assim o seu registro de escândalos. Os
cínicos afirmam que ele evitou o sindicato do crime porque as investigações seriam
tão demoradas que podiam fazer baixar o número impressionante das suas
estatísticas criminais. Ishmael Young pensou ainda noutros feitos de Hoover sobre
os quais Tynan passara por cima candidamente. Hoover tinha apodado o Dr. Martin
Luther King Júnior de acabado mentiroso e tinha mantido sob escuta o seu telefone
para gravar pormenores da sua vida sexual; Hoover tinha apodado de medusa o
antigo Procurador-Geral Ramsey Clark. Hoover tinha acusado o padre Berrigan e
outros católicos romanos pacifistas de raptores e conspiradores antes dos seus casos
terem sido apresentados em tribunal. Hoover tinha desprezado os Porto-Riquenhos e
os Mexicanos, afirmando que as gentes dessas duas nacionalidades não podiam
comportar-se corretamente. Hoover tinha insultado congressistas, partidários dos
direitos civis e da não-violência, e antimilitaristas. Tinha chegado ao ponto de fazer
investigações sobre um rapaz de catorze anos que queria ir passar as férias do Verão
na Alemanha Oriental e sobre um instrutor de escuteiros do Idaho que pretendia
levar o seu grupo à Rússia.
Ishmael Young recordava-se de um artigo de Pete Hamill que tinha lido:
"Nos últimos trinta anos, não houve pior subversivo neste país que J. Edgar Hoover.
Este homem subverteu a fé que tínhamos em nós próprios, a nossa crença numa
sociedade aberta, a nossa esperança de que homens e mulheres pudessem viver num
país livre de
polícia secreta, da vigilância encoberta, da perseguição pelas idéias políticas." Havia
tudo isso para discutir, mas Young conteve-se.
- E vou contar-lhe um pequeno fato pessoal que poucas pessoas conhecem
sobre J. Edgar Hoover - prosseguiu Tynan. - Eu sempre disse que se pode ficar a
saber muito sobre um indivíduo pela maneira como trata os pais. Pois, Hoover viveu
com a mãe, Anna Marie, até aos quarenta e três anos. Um homem que procedeu
assim, tinha de ser um homem decente.
Ou pelo menos um ótimo caso para Freud analisar, pensou Young.
- Mas deixe-me contar-lhe uma outra história que lhe dará uma idéia de como
o Velhote era respeitado e de como eu, particularmente, o respeitava. Quando J.
Edgar Hoover tinha setenta anos, exerceram-se grandes pressões sobre o Presidente
Lyndon Johnson para o reformar. O Presidente, para mérito seu, respondeu: "Prefiro
tê-lo dentro de casa a mijar para fora, do que fora a mijar para dentro!" Tynan deu
uma palmada na coxa e pôs-se a rir roucamente. - Esta é das boas!
- Sem dúvida - disse Young para comprazer. - Não sei se devo usar esta
história no meu livro.
- Ah, mas é claro! -disse Young rapidamente. - É uma história engraçada.
Temos de utilizar todas as anedotas que pudermos.
- Talvez você possa escrever que o Presidente disse aquilo a mim - sugeriu
Tynan piscando o olho. - Ninguém saberá a verdade. Johnson está morto. Quem nos
poderá desmentir?
- Ou que o Presidente Johnson lhe podia ter dito - corrigiu Young. - Acho que
podemos apresentar o caso assim. Dá mais força à anedota.
- Sim, ponha o caso assim. Você é que sabe como isso se faz. E pode
acrescentar mais uma coisa. Foi um sonho que tive há talvez uma semana. Sonhei
que J. Edgar lá em cima estava roído de inveja por mim. Tinha inveja por eu estar a
chegar à grande solução para a criminalidade na América - a 35.a emenda -, por isso
ficar a ser o meu monumento e ele sempre ter desejado ter essa oportunidade. Então
eu disse-lhe que, de certo modo, ele era tão responsável como eu pela emenda, pois
se não fosse ele eu não seria diretor do FBI neste momento. - Sorriu para Young. -
Foi este o sonho que tive. Que me diz desta?
Antes que Ishmael Young pudesse dizer qualquer coisa, o intercomunicador
zumbiu na secretária de Tynan.
O diretor pareceu surpreso, levantou-se rapidamente e dirigiu-se para a
secretária.
- Que será agora? Espero que Beth me diga que é o Presidente. Levantou o
auscultador.
- Sim, Beth? - e pôs-se a escutar. - Harry Adcock? Bem, pergunte-lhe se não
pode esperar. Será assim tão importante? - Continuou de pé a ouvir com atenção. -
Baxter o quê? O caso da Santíssima Trindade? Ah, sim, claro, o assunto de Collins.
Bem, diga a Harry que estarei pronto a recebê-lo dentro de instantes.
Colocou o auscultador no descanso, perdido em cogitações. Por fim, voltou-
se vagarosamente, reparou na presença de Ishmael Young e ficou pasmado.
- Você... Esqueci-me que ainda cá estava. Ouviu a conversa?
- O quê? - disse Young, fingindo não ter ouvido.
- Nada - disse Tynan satisfeito. - Lamento terem surgido assuntos urgentes.
Continuamos a dirigir o país, bem vê. Lastimo ter de encurtar a conversa desta vez,
Young, mas dar-lhe-ei mais meia hora na próxima semana. De acordo?
- Certamente. Como quiser.
Enquanto desligava obedientemente o gravador e metia rapidamente os
papéis na pasta, Young pensava que não se poderia esquecer de ouvir em casa o
final da fita, pois desejava saber o que o diretor não queria que ele ouvisse. Pelo que
pôde entender, Harry Adcock pretendia falar-lhe imediatamente por causa de Baxter
(era certamente o anterior Procurador-Geral que tinha sido enterrado na véspera, de
um caso da Santíssima Trindade (que devia ser um nome de código, ou talvez a
igreja da Santíssima Trindade em Georgetown) e do assunto de Collins. Este devia
ser com certeza Christopher Collins. Mas que haveria por trás de tudo isso?
Resolveu fixar cuidadosamente essas peças do que poderia ser um interessante
quebra-cabeças. Talvez acrescentando-as a outras lhe pudessem dar uma idéia mais
precisa das atividades de Tynan.
Como ele gostaria de saber mais a respeito de Tynan! -pensou, enquanto
pegava na pasta. Qualquer coisa que contrabalançasse e extirpasse o que Tynan
tinha contra ele. Qualquer coisa que lhe permitisse abandonar este projeto podre.
Com um suspiro, levantou-se e atravessou o gabinete enquanto Tynan abria a
segunda porta. Tynan esperava-o, segurando a porta, para dar passagem ao seu
escritor fantasma.
- Acho que não foi uma má sessão - disse Tynan amavelmente. - Na próxima
semana talvez ainda seja melhor. Vamos entrar no que aprendi com o Velhote e
falaremos do contributo pessoal de Vernon T. Tynan para o FBI. Que tal?
- É formidável - disse Ishmael Young. - Deixa-me ansioso. Mas, matutava
Young, que teriam que ver um Procurador-Geral morto, uma igreja católica em
Georgetown e o assunto Collins com o governo de um país? Talvez se falasse com
Collins ele o esclarecesse. Ou, decidiu Young, talvez fosse melhor, por amor à pele,
esquecer que tinha ouvido fosse o que fosse.
***
- Não ligue para aqui -ordenou Tynan pelo intercomunicador - a menos que
seja da Casa Branca. - Desligou e voltou-se para Harry Adcock que se sentara na
cadeira em frente da secretária.- Muito bem, Harry, então o que temos?
- Fizemos a investigação sobre o padre Dubinski da igreja da Santíssima
Trindade. Não havia muita coisa. Só um ponto, há já muito tempo. Esteve uma vez
envolvido num caso de droga em Trenton, mas a polícia ilibou-o. Mesmo assim,
nós...
Tynan endireitou-se na cadeira giratória.
- É mais do que suficiente. Vá lá, atire-lhe com isso e então havemos de ver...
- Já lá fui, chefe - disse Adcock rapidamente. - Fui visitá-lo ao fim da manhã.
Acabo de chegar.
- Bem, diabos o levem, o que lhe disse ele? Revelou a confissão de Noah?
Harry Adcock era ordenado e cronológico em todas as suas narrativas. Nunca
dava respostas fora da devida ordem, ao jeito dos jornalistas quando escrevem
notícias, porque pensava que isso levava a omissões, distorções e equívocos. Tynan
habituara-se a aceitar esse hábito, por isso deixou-o prosseguir.
- Hoje de manhã cedo, telefonei ao padre Dubinski, identifiquei-me e disse-
lhe que tinha de fazer uma investigação sobre um assunto de segurança do governo -
começou Adcock. - Encontrei-o na reitoria às onze e cinco em ponto. Mostrei-lhe a
minha identificação, o distintivo, e ele deu-se por satisfeito. A meu pedido, ficamos
sozinhos, apenas nós os dois.
- Que tipo de homem é ele? - perguntou Tynan.
- Cabelo negro ondulado, rosto esguio, moreno, como já sabe. Um metro e
oitenta. Quarenta e quatro anos. Está na Santíssima Trindade há cerca de doze anos.
Um homem extremamente calmo e frio.
- Prossiga, Harry.
- Não perdi tempo. Disse-lhe que sabíamos que tinha sido o confessor do
coronel Noah Baxter na noite em que ele expirou. Disse-lhe que Baxter não tinha
falado com mais ninguém senão com ele, isto é, com o padre Dubinski, antes de
morrer. Perguntei-lhe se confirmava tudo isso. Ele disse que era verdade. - Adcock
procurou no bolso do casaco e retirou um sobrescrito dobrado com apontamentos
anotados. - Tomei notas da conversa enquanto vinha para aqui. Deu-lhes uma vista
de olhos. - Ah, sim. Então ele, o padre Dubinski, perguntou se eu tinha obtido essas
informações através do Procurador-Geral Christopher Collins e respondi-lhe que
não.
- Muito bem.
- Depois disse-lhe: ''Como deve saber, o coronel Baxter estava de posse de
alguns dos mais altos segredos do governo. Qualquer coisa que ele tenha dito a
alguém estranho ao governo, quando estava mal ou sem domínio completo das suas
faculdades, pode ser do maior interesse para o FBI. Temos estado a tentar descobrir
uma fuga num assunto da maior confidencialidade e seria útil sabermos se o coronel
Baxter lhe falou nisso.'' A seguir acrescentei: ''Gostaríamos de saber quais foram as
suas últimas palavras, as palavras que lhe confiou." Adcock levantou os olhos. - O
padre Dubinski respondeu: "Lamento muito. As suas últimas palavras foram em
confissão. A confissão é sagrada. Como confessor do coronel Baxter, não posso
revelar as suas últimas palavras a ninguém."
- O filho de uma cadela - murmurou Tynan. - O que é que lhe respondeu?
- Disse-lhe que já sabíamos que não revelaria o conteúdo da confissão a
ninguém. Mas esta informação era pedida pelo governo. Ele retorquiu
imediatamente que a Igreja não estava subordinada ao governo. Recordou-me a
separação da Igreja e do Estado. Disse-me que eu representava o Estado e ele a
Igreja. Um não podia sobrepor-se ao outro. Vi que estava a ir demasiado depressa,
por isso abrandei.
- Ótimo, Harry. Foi melhor.
- Disse-lhe que... Não me lembro das palavras exatas. Disse-lhe que apesar do
colarinho clerical, ele não estava acima da lei. Na realidade, disse-lhe, tínhamos
conhecimento que ele já tinha estado envolvido com a lei.
- Puseste o assunto nesse pé? Bem, bem. Como é que ele reagiu?
- Primeiro não disse nada. Deixou-me prosseguir. Eu expus-lhe a evidência
de que tínhamos acusações contra ele por possível posse de drogas em Trenton, há
quinze anos. Não o negou; para dizer a verdade, nem sequer respondeu. Disse-lhe
que embora ele não tivesse cadastro, esta informação, caso fosse publicada, colocá-
lo-ia em maus lençóis. Reparei que ficou furioso, e não foi pouco. Uma cólera fria.
Só disse uma coisa. Foi: "Senhor Adcock, está a ameaçar-me?" Respondi-lhe que o
FBI não ameaçava ninguém. Disse que o FBI se limitava a coligir fatos. O
Departamento de Justiça é que agia com base neles. Fui muito cuidadoso. Se bem
que não temos nenhuma acusação real contra ele. Só lhe podemos causar problemas
com os paroquianos.
- Todos os padres são vulneráveis no campo das relações públicas - disse
Tynan doutoralmente.
Adcock continuou:
- Era com isso que eu contava; era por aí que tinha de pegar. Mas tentei fazer
mais do que isso. Disse-lhe que, devido à sua posição, podia ter tomado
conhecimento, sem o pretender, de alguma informação vital para a segurança. Disse-
lhe que se a encobrisse, então seria inevitável o seu nome e o seu passado virem a
lume quando a quebra de segurança fosse provada. "Mas se cooperar desde já com o
nosso governo", disse-lhe eu, "nesse caso o seu passado não se tornará público".
Avisei-o violentamente de que devia cooperar. Recusou redondamente.
Tynan deu um murro na secretária.
- Filho da puta.
- Chefe, quando lidamos com padres, não estamos a tratar com homens
comuns. Não reagem como seres humanos vulgares. Têm aquela lábia toda do Deus
que está por trás. Depois de se ter recusado a cooperar, pôs-se de pé para me
despedir e disse qualquer coisa deste gênero: ''Já me ouviu. Agora pode fazer o que
quiser, mas eu tenho de cumprir o meu voto, feito a uma autoridade mais alta que a
sua, uma autoridade que considera a confissão sagrada e inviolável." Sim, foi isto
exatamente que ele disse. Quando já estava a retirar-me, pensei que lhe devia deixar
um último aviso. Disse-lhe que reconsiderasse, pois se não quisesse cooperar a bem
do país, teríamos de falar dele e do seu comportamento passado aos seus superiores
eclesiásticos.
- E mesmo assim não rachou?
- Nicles.
- Acha que ainda o fará?
- Receio que não, chefe. Pelo que pude avaliar, não há nada que o faça falar.
Mesmo se trouxermos a público o seu lado sujo, penso que preferirá o martírio a
falar traindo os seus votos. - Adcock estava ofegante. Tornou a meter o sobrescrito
dobrado no bolso. - Que vamos fazer a seguir, chefe?
Tynan levantou-se, enfiou as mãos nos bolsos das calças e ficou a pensar
durante uns momentos.
- Nada - disse por fim -, não fazemos nada. O que julgo é o seguinte: se o
padre Dubinski não lhe disse nem uma palavra, apesar do que lhe podia acontecer,
não falará
a ninguém. - Tynan suspirou. - Pouco importa o que ele sabe. Estamos safos.
- Ainda posso ir junto dos seus superiores, apertá-los e pode ser que...
A campainha do telefone retiniu. Tynan acercou-se.
- Não pense nisso por agora, Harry. Fez um bom trabalho. Dê uns toques em
Dubinski de vez em quando, só para ele andar na linha. É o suficiente. Obrigado.
Quando Adcock saiu da sala, Tynan pegou no telefone. Levantou o
auscultador.
- Sim, Beth?... Então pode ligar. - Esperou. - Olá, miss Ledger. - Ficou a
ouvir.- Ótimo, com certeza. Diga ao Presidente que eu vou imediatamente.
Vernon T. Tynan não sabia línguas estrangeiras e conhecia apenas umas
poucas palavras dispersas que tinha apanhado ao sabor do acaso. Duas dessas
palavras eram francesas:
déjà vu. Sabia-as porque um agente especial as tinha usado num relatório de uma
missão, provocando-lhe uma tal fúria que escreveu ao agente dizendo-lhe que no
FBI só se falava e escrevia em inglês e que utilizasse esta língua se não queria ser
transferido para Butte, em Montana. Contudo, tinha ficado com uma vaga idéia do
que essas palavras queriam dizer. Sempre que visitava o Gabinete Oval da Casa
Branca (o que era cada vez mais freqüente), quando entrava tinha a mesma sensação
de déjà vu, de reviver uma experiência anterior. O Presidente Wadsworth, grande
admirador do Presidente John F. Kennedy, senão da sua política pelo menos da sua
imagem, tinha restaurado o Gabinete Oval exatamente como ele era quando
Kennedy dirigia o executivo. O diretor Tynan, na altura um jovem agente do FBI,
tinha em várias ocasiões acompanhado J. Edgar Hoover ao Gabinete Oval, quando o
diretor era chamado por Kennedy para presenciar a assinatura de qualquer lei
criminal. Nessa época, havia a secretária Buchanan trabalhada, com um candeeiro
verde pálido de que pendia uma lâmpada fluorescente. Havia, por trás da secretária,
os reposteiros verdes, que escondiam os jardins da Casa Branca, e as seis bandeiras:
a americana, a presidencial, a do exército, a da marinha, a da aviação, e também a
dos corpos especiais. Havia duas lanternas quadradas, como as dos coches, na
parede e, no parapeito da lareira, dois modelos de navios. As paredes curvas estavam
pintadas de branco marfim, e o teto, com o selo presidencial impresso, olhava
sobranceiro para o tapete verde acinzentado com a águia americana entretecida.
Havia a lareira, com os sofás em frente, e a cadeira de balanço entre eles. E na alta e
negra cadeira giratória, por trás da secretária castanha, estava o presidente John F.
Kennedy. Agora, enquanto o secretário encarregado dos encontros, Nichols, o
introduzia no Gabinete Oval, Vernon T. Tynan tinha novamente a sensação de déjà
vu. Por instantes, pareceu-lhe ver o Presidente Kennedy sentado à secretária, falando
a alguém, e o diretor Hoover ao seu lado, junto dele outra vez, jovem. Mas no
momento em que foi anunciado, o passado dissipou-se. O homem que estava ao seu
lado, que recuava e saía, era Nichols e não Hoover. O homem que estava por trás da
secretária era o Presidente Wadsworth e não Kennedy. E a pessoa com quem falava
não era um ajudante de Kennedy, mas Ronald Steedman, o conselheiro pessoal do
Presidente para a sondagem da opinião pública.
- Ainda bem que pôde vir, Vernon - disse o presidente Wadsworth. - Puxe
uma cadeira. Pode tirar esses jornais da cadeira, até os pode deitar fora, é no lixo que
eles estão bem. Já leu algum deles?
Tynan tirou os jornais da cadeira. Deu-lhes uma vista de olhos The New York
Times, Sun-Times de Chicago, Post de Denver e Chronicle de São Francisco- antes
de os atirar para o cesto dos papéis.
Sem esperar por resposta, o Presidente continuou.
- Estão a pressionar-nos de costa a costa. Como um bando de lobos uivando
pelo nosso sangue. Estamos a tentar amordaçar o país, sabia, Vernon? Deve ler o
editorial do New York Times. Dizem que a assembléia do seu Estado se desonrou por
ter ratificado a 35.a emenda. Publicam uma carta aberta aos legisladores da
Califórnia dizendo-lhes que o destino da liberdade está nas mãos deles, implorando
que derrotem a emenda. E já nos informaram que as próximas edições do Times e da
Newsweek irão exprimir os mesmos sentimentos derrotistas.
- São interesses particulares - disse Steedman. - A imprensa está preocupada
com o seu futuro.
- E têm razões para isso - grunhiu Tynan. - O tom inflamado que propalam
dia após dia e a desaprovação manifesta são tão responsáveis pela criminalidade e
pela violência como qualquer outra coisa. - Aproximou-se do Presidente. - Mas, pelo
que sei, eles não estão todos do mesmo lado, senhor Presidente. Ternos tantos
aliados como inimigos.
- Não sei - disse o Presidente com ar de dúvida.
- O Daily News de Nova Iorque e o Tribune de Chicago - citou Tynan. E
acrescentou - O U.S. News and World Report também é a favor da emenda, está do
nosso lado. Dois dos canais de televisão têm-se mantido neutrais, mas soube que
apoiarão a emenda antes da votação da Califórnia.
- Espero que isso seja verdade - disse o Presidente. - Afinal, caberá ao povo a
decisão, conforme a pressão que exercer sobre os seus representantes. Ronald e eu
estávamos justamente a discutir isso. E voltamos ao assunto. De fato, foi por causa
dessa conversa que quis vê-lo. Preciso que me aconselhe.
- Estou sempre pronto para ajudar no que puder, senhor Presidente - disse
Tynan, puxando a cadeira para a imitação da secretária de Kennedy.
O Presidente girou a cadeira, voltando-se para Steedman.
- Para esses últimos números que tem da Califórnia, Steedman, qual foi a
extensão da sondagem?
- Foram contactadas exatamente 2455 pessoas. Foi-lhes feita uma única
pergunta dividida em três partes. Concorda que o órgão legislativo da Califórnia
aprove a 35.a emenda? Ou é contra a ratificação? Ou está indeciso?
- Repita novamente os resultados para que Vernon os fique a conhecer.
- Com certeza - disse Steedman. Pegou numa folha de computador
preenchida e começou a ler. - Os resultados do nosso inquérito à opinião pública,
relativo a 2455 votantes da Califórnia, datam de dois dias após a aprovação da
emenda em Nova Iorque e da rejeição de Ohio, e são os seguintes - com o dedo
apontava para os números da página: - Há 41 % a favor da aprovação, 27 % contra e
32% de indecisos.
- Há imensos indecisos - disse o Presidente. - Agora leia a sondagem no
Senado e na Assembléia da Califórnia.
Steedman acenou com a cabeça, procurando nos papéis, e pegou noutra folha
de computador.
- Estes são menos satisfatórios. Os legisladores estão a ser naturalmente
cautelosos, esperando ouvir a opinião clara dos eleitores. Temos 40% de indecisões
ou de recusas em responder ao inquérito. Depois, dos 60% que se exprimiram, 52%
foram a favor da passagem e 48% contra.
O Presidente abanou a cabeça, mal humorado.
- Há muitos que se põem de fora, na expectativa. Isso não me agrada.
Foi a vez de Tynan se pronunciar.
- Senhor Presidente, a nossa tarefa é tirá-los dessa expectativa que os põe de
fora e fazê-los inclinarem-se para o nosso lado.
- Foi por isso que quis que viesse cá, Vernon. Quero discutir a estratégia...
Obrigado, Ronald. Quando é que o volto a ver?
Steedman levantou-se.
- De acordo com as suas instruções, senhor Presidente, estamos a fazer
inquéritos semanais na Califórnia. Devo ter os resultados desta semana na próxima
segunda-feira.
- Telefone a miss Ledger e marque uma entrevista assim que tiver mais
alguma informação.
Depois de ter reunido os papéis, Steedman saiu, deixando o Presidente e
Tynan sozinhos no Gabinete Oval.
- Bem, aí tem, Vernon - disse o Presidente. -O nosso destino está inteiramente
nas mãos das pessoas que ainda não se decidiram. Portanto, sabemos o que há a
fazer. Temos de os instigar por meio de todos os estratagemas, exercendo todas as
pressões possíveis para os fazer ver as coisas à nossa maneira... para seu próprio
bem. A sobrevivência da nossa última esperança está comprometida, Vernon.
- Estou confiante na vitória, senhor Presidente.
O Presidente estava menos confiante.
- Não podemos deixar o assunto ao Deus dará. O futuro está nas nossas mãos.
- Tem toda a razão - concordou Tynan. - Já tomei várias disposições. Estou a
dar a maior urgência ao relatório do FBI sobre crimes comuns. Notifiquei todos os
oficiais da polícia da Califórnia para que passem a enviar estatísticas de
criminalidade todas as semanas, e já não todos os meses. Recebemos os relatórios
todos os sábados e são publicados aos domingos. Já temos o relatório de ontem,
mostrando o aumento da taxa de criminalidade.
- Excelente - disse o Presidente. - O problema é que o povo habitua-se à
repartição dos números. Só as estatísticas não basta para dramatizar a situação. -
Alcançou por cima do mata-borrão verde o bloco de notas e escreveu alguns
apontamentos. - Muitas vezes, um discurso bem feito pode dramatizar melhor uma
situação. E consegue maior difusão. Estava a pensar em encarregar um certo número
de membros da Administração - elementos do gabinete, chefes de serviço - para
falarem em reuniões ou convenções já marcadas nas maiores cidades da Califórnia.
Tinha aqui uma lista com alguns nomes. Contudo, é difícil saber quais serão os mais
eficientes.
Tynan empurrou a cadeira para a frente.
- Só uma pessoa pode ser realmente eficaz. - Estendeu o dedo. O senhor
Presidente. Pode reagrupar o povo à volta da 35.a emenda e pedir-lhe que, para sua
própria segurança futura, faça pressão sobre os seus representantes em Sacramento.
O Presidente Wadsworth considerou a sugestão, mas a resposta pouco tardou.
Abanou negativamente a cabeça.
- Não, Vernon. Receio não poder fazer isso. Na verdade, o efeito poderia ser
o oposto - um efeito negativo. Os legisladores e os cidadãos comuns poderiam
considerar
que uma diretiva que parta de mim, um discurso consagrado a uma decisão que lhes
pertence, é uma intromissão federal. Poderiam ficar ressentidos com um presidente
que lhes diz o que têm a fazer. Parece-me que temos de ser mais sutis.
- Bem - disse Tynan-, então e se fosse eu ? Podia ir à Califórnia e afastar as
indecisões, fazendo-os votar a emenda.
- Não, você é a imagem da lei. Não o considerariam objetivo e razoável. Toda
a gente diria que está a preparar o cutelo. Qualquer pessoa do FBI seria suspeita.
Como já lhe disse, tenho estado a pensar em Collins. Prefiro mandar alguém como
ele. Não usa uniforme, por assim dizer. Um Procurador-Geral é geralmente
considerado como um civil.
- Hum, Collins... Também tenho pensado nele... Mas não estou muito seguro
a respeito dele. Não sei se tem influência ou a convicção necessária...
- Por isso mesmo. A sua fraqueza pode ser benéfica neste caso. Dá maior
credibilidade. Vernon, não tenho a menor dúvida a respeito dele. Está claramente do
nosso lado. Ele sabe porque ocupa esse cargo. Não satisfaz plenamente, o que na
atual circunstância é bom, mas tem atrás dele toda a autoridade do seu
departamento. Na semana passada, falamos em enviá-lo à Califórnia. Mas agora
acho que deve desempenhar um papel mais importante.
- O que é que tem em mente? Incumbi-lo de discursar por todo o Estado?
- Não, isso pareceria demasiado preparado, uma propaganda programada - o
Presidente refletiu. - Algo menos evidente - estalou os dedos. - Agora me lembro.
Tive ontem uma idéia. Sim, talvez resulte. Pedi a miss Ledger para se ocupar do
assunto. Veja, Vernon: ocorreu-me que se Collins tivesse de estar na Califórnia, por
precisar de tratar de qualquer assunto, tudo seria mais natural. Espere um momento.
Tocou, chamando miss Ledger.
Quase instantaneamente, a porta do lado oposto da sala abriu-se e ela
apareceu.
- Miss Ledger, ontem quando eu estava de saída pedi-lhe para ver que
convenções estão marcadas para a Califórnia, nas próximas duas semanas... Um
local em que seja normal o Procurador-Geral falar...
- Sim - disse ela -, recebi uma resposta há cerca de uma hora, mas não o quis
incomodar.
- Então, há alguma coisa?
- Está com sorte, senhor Presidente. A Associação Americana do Foro realiza
a sua reunião anual em Los Angeles de segunda a sexta-feira.
O Presidente pôs-se de pé, sorridente.
- Perfeito. Magnífico. Pegue já no telefone e ligue para o presidente da
Associação. É um velho amigo meu. Diga-lhe que eu gostaria muito se ele pudesse
convidar o Procurador-Geral Collins para orador principal no último dia da
Convenção.
Miss Ledger parecia confusa.
- Não vai ser fácil, senhor Presidente. Soube que já têm a lista de todos os
oradores convidados. E o programa indica que na sexta-feira, às três da tarde, o
orador convidado é o Presidente do Supremo Tribunal, John G. Maynard.
- Mas qual é o problema? - disse o Presidente. - Passam a ter dois oradores
principais. O Procurador-Geral Collins pode preceder ou seguir-se ao Presidente do
Supremo. Diga-lhe que considero a sua anuência como um favor pessoal.
- Vou telefonar imediatamente, senhor Presidente.
Depois de miss Ledger ter saído para o seu gabinete, o Presidente continuou
de pé.
- Bem, já está tratado. Informarei Collins. Vou instruí-lo para fazer um
discurso muito geral sobre a mudança que se avizinha para a justiça criminal. Poderá
aludir à 35.a emenda como a esperança do futuro e ao papel histórico que a
Califórnia desempenhará quando a ratificar. Penso que estará no auditório um
grande número de deputados estaduais. Pode ser que Collins consiga oferecer-lhes
um cocktail informal, aproveitando a ocasião para fazer a nossa campanha. Espero
bem que isto chegue...
Olhava para os memorandos espalhados pela secretária. De repente, pegou
numa folha.
- Quase me esquecia, Vernon. Há outro assunto. Um programa na televisão.
Já lhe falei disso?
- Não, senhor Presidente.
- Há um programa na rede de televisão nacional com base num assunto em
foco no noticiário da semana. Uma tal... - procurou no memorando - Monica Evans,
a produtora deste programa de meia hora, telefonou a McKnight. Parece que são
velhos amigos. No final da próxima semana pretende gravar um debate em Los
Angeles sobre as possibilidades de ratificação da emenda na Califórnia. O programa
chama-se A procura da verdade. Tem dois convidados, cada um com uma versão
diferente do tema. Já viu alguma vez?
- Receio que sim - disse Tynan, fazendo um trejeito.
- Bem, eles querem-no no próximo programa, Vernon. Querem que apresente
os argumentos a favor da emenda. Seria no mesmo dia em que Chris fala na
Associação. Podiam seguir juntos de avião. Penso que a sua exposição poderia ser
importante para nós.
- E quem estará do outro lado? - perguntou Tynan. - Quem é o outro
convidado?
O Presidente consultou uma vez mais o memorando.
- Tony Pierce.
Tynan deu um salto na cadeira.
- Senhor Presidente, perdoe-me, mas parece-me que será um erro o diretor do
FBI aparecer no mesmo programa com um antigo agente que traiu o seu serviço.
Penso que não devo dar cobertura a um porco comuna como Pierce, participando no
programa com ele.
O Presidente encolheu os ombros.
- Se você lhe tem um tal ódio, não o forçarei. Mas parece-me que a exposição
dos nossos pontos de vista é importante, é mesmo de extrema importância num
programa nacional de televisão como este. Tem de estar lá uma pessoa do nosso
lado.
- E porque não Collins? - sugeriu Tynan. - Ele tem de ir a Los Angeles de
qualquer maneira nessa ocasião. Podia entrar no programa além de fazer o discurso.
Como Procurador-Geral os produtores recebê-lo-iam bem.
O Presidente Wadsworth pareceu satisfeito.
- Boa idéia - disse. - É muito boa idéia. Falarei a McKnight para ele telefonar
a essa tal Monica Evans confirmando Collins como substituto. - Balançou a cabeça
pensativamente. - Bem, Collins vai ter muito que fazer pela nossa causa. E terá de
dar resultado.
Estendeu a mão e Tynan levantou-se para a apertar.
- Obrigado por tudo, Vernon - murmurou. - Bem, Califórnia, cá vamos nós. -
Alcançou o telefone. - Procurador-Geral Collins, agora é consigo.
***
No seu gabinete do Departamento de Justiça, com o auscultador seguro entre
o ouvido e o ombro, Chris Collins escrevia os pontos principais das instruções do
Presidente na folha de papel que tinha à frente. Embora fosse pronunciando palavras
amáveis enquanto ouvia as propostas do Presidente, Collins não gostava do que
estava a ouvir. Não se importava de ir à Califórnia. Seria uma ocasião para recordar
a sua velha casa, uma oportunidade para rever o filho já crescido, para se reunir com
amigos e para apanhar sol. O que não lhe agradava era ser forçado a defender a 35.a
emenda publicamente, a debatê-la com uma personalidade como Tony Pierce
perante todo o auditório nacional da televisão. Já tinha visto várias vezes o programa
À procura da verdade e tinha gostado, mas sabia que o convidado não podia
equivocar-se nem dar um passo em falso nesse programa. Os debates levavam
muitas vezes a tremendas altercações, a posições exageradas, e o seu lugar no
programa podia ser um lugar escaldante. Sentia igualmente desagrado pela idéia de
aparecer na mesma tribuna que o Presidente do Supremo Maynard, um homem cujo
apego à liberdade respeitava e cujas decisões a respeito dos direitos civis admirava,
sendo forçado a defender perante ele uma posição favorável à 35.a emenda. Até
então, Collins tinha evitado tudo o que fosse além de um leve comprometimento
com a política da Administração. Agora tinha de alinhar, de desempenhar o papel de
adepto do Presidente. Fazê-lo perante Maynard seria embaraçoso. Contudo, não
tinha por onde escolher.
- Pois é assim, Chris - ouviu o Presidente dizer-lhe. - Tomou nota de tudo
como deve ser?
- Julgo que sim, senhor Presidente. Na próxima sexta-feira em Los Angeles.
À uma hora da tarde, À procura da verdade, nos estúdios da televisão. Às três horas,
Associação Americana do Foro, no hotel Century Plaza.
- Não se poupe a esforços em ambos os casos. Não deixe Pierce pisá-lo na
discussão da emenda. Aperte-o o mais que puder.
Collins assentiu sem convicção.
- Farei o melhor que puder, senhor Presidente.
- Quanto à Associação, prepare um discurso firme, Chris. Terá um auditório
diferente do da televisão. A sala estará cheia de profissionais. Não lhes atire com a
emenda demasiado cedo. Tente guardá-la para um final bem forte. Mostre que os
destinos da nação dependem do discernimento da Califórnia.
- Tentarei.
- Dependemos totalmente de si. Gostaria de o ver antes de partir.
Depois de desligar, Collins deixou-se ficar melancolicamente à janela.
Passados alguns instantes, afastando a folha com os apontamentos, voltou ao
trabalho. Pouco tardou que estivesse novamente mergulhado nos assuntos legais. O
telefone tocava incessantemente, mas não queria ser interrompido. Marion devia ser
capaz de tratar dos telefonemas pessoalmente. Quando voltou a desviar o olhar para
se descontrair, para espreitar a rua, a noite já tinha caído. Viu o relógio. Eram horas
de parar o trabalho no Departamento de Justiça. Se ele também o desse por
terminado neste momento, seria a primeira vez há muitos meses que chegaria a casa
a horas para jantar. Decidiu fazer uma surpresa a Karen, regressando a casa a uma
hora conveniente.
Levantou-se de pasta na mão e começou a enchê-la com os papéis que faltava
analisar.
O telefone tocou. Ignorou-o. Ouviu então o som do intercomunicador e a voz
de Marion:
- Senhor Collins, é uma chamada do padre Dubinski. Não conheço o nome.
Ele diz que se deve lembrar. Não me quis dar o recado. Diz que é importante falar-
lhe pessoalmente.
Collins reconheceu imediatamente o nome e a curiosidade invadiu-o.
- Eu atendo, obrigado. Até amanhã de manhã.
Sentou-se, levantou o auscultador e carregou no botão de ligação.
- Padre Dubinski? Daqui fala Christopher Collins.
- Não sabia se conseguiria falar consigo. - A voz do padre parecia vir de
muito longe. - Não sei se se lembra. Encontrámo-nos na noite em que o coronel
Baxter faleceu em Bethesda.
- Claro que me lembro de si, padre. Até pensei em procurá-lo pessoalmente.
Desejava falar-lhe...
- Foi exatamente por isso que telefonei - disse o padre. Gostava de me
encontrar consigo. O mais depressa possível. Se pudesse, gostaria de o ver ainda esta
noite. É um assunto que deve interessar-lhe. Mas não é coisa que possa dizer pelo
telefone. Se não puder esta noite, talvez amanhã de manhã...
Collins estava excitado, com a curiosidade totalmente desperta.
- Posso ir esta noite. Daqui a meia hora.
- Ainda bem - disse o padre, parecendo aliviado. - Será demasiado pedir-lhe
que venha ter comigo à igreja? É que, bem... seria um tanto despropositado ser eu a
visitá-lo.
- Com certeza que vou ter consigo. Igreja da Santíssima Trindade, não é?
- É na Rua 36, entre as ruas N e O em Georgetown. A entrada principal é na
Rua 36, mas acho melhor não a utilizar. Prefiro que venha à reitoria, onde lhe
poderei falar em particular. Na Rua 35 volta à esquerda, ou seja para a Rua O, e é o
primeiro edifício da igreja do lado esquerdo. - Fez uma pausa, como se hesitasse
dizer mais. Depois acrescentou: - Acho que lhe devo uma explicação. A entrada
principal está a ser vigiada. Será melhor para ambos que a sua visita não seja
conhecida. Compreenderá quando tivermos ocasião de falar. Então, dentro de meia
hora?
- Ou antes - respondeu Collins.
Durante todo o percurso para Georgetown, no assento de trás do carro oficial,
Chris Collins perguntava a si próprio o que levaria o padre a querer vê-lo com tanta
pressa. Não encontrava explicação. Da última vez que lhe falara, em Bethesda, o
padre tinha recusado firmemente revelar a confissão do coronel Baxter. Não havia
razão para pensar que fosse agora desprezar os seus votos de segredo. Talvez tivesse
obtido qualquer outra informação que achasse que Collins devia conhecer. Mas que
tipo de informação? Mais desconcertante tinha sido o aviso de que a entrada
principal da igreja da Santíssima Trindade estava a ser vigiada. Se isso não era
sintoma de loucura, mas um fato, vigiada por quem e por que motivo? Era
estranhíssimo. Collins estava tentado a falar no enigma aos dois homens que se
sentavam no banco da frente: Pagano, um ex-combatente de rosto arrasado que ele
tinha trazido da Califórnia como seu motorista. Tinha-se em tempos travado de
amizade com Pagano, quando o defendera num processo crime em Oakland, e ele
ficara-lhe grato para sempre. Era da maior confiança. Ao lado estava o agente
especial Hogan, seu guarda-costas do FBI, cuidadosamente escolhido e também de
confiança. Collins viu que não precisava de pedir opiniões. Um padre tinha-o
chamado por causa de um assunto importante, mas nem sequer se fizera alusão ao
tema. Na verdade, não havia nada para discutir, a não ser a sua sensação
inexplicável de mau presságio. Notou então que já estavam na Rua 35 e que se
aproximavam da Rua O. Inclinou-se para a frente.
- Pagano, pára na esquina da Rua 35 com a O. Não quero que ninguém veja o
carro.
Quando chegaram à esquina, Collins abriu a porta rapidamente. Ao sair disse
para trás:
- Leva o carro pela Rua 35, anda um ou dois quarteirões e estaciona onde
puderes. Eu vou lá ter. Não tenho idéia do tempo que demorarei. Talvez quinze ou
vinte minutos.
Fechou a porta e afastou-se com Hogan ao lado. Ficaram a ver o carro subir a
rua. Collins fixou o guarda-costas.
- Bem, podes vir comigo até à reitoria da igreja. Depois entro sozinho. Ficas à
espera cá fora, mas não dês nas vistas.
Atravessaram a rua e percorreram uns metros. Collins apontou para a
esquerda.
- Cá estamos.
A reitoria era um edifício de tijolo vermelho pintado de branco.
- Deixo-o aqui.
Quando Collins chegou à porta, esta foi aberta inesperadamente por uma mão
invisível. Ouviu e reconheceu a voz.
- Entre, senhor Collins.
Penetrou num pequeno vestíbulo fracamente iluminado e encontrou-se
perante a figura escura do padre - indumentária e cabelos negros, pele morena.
Depois de um rápido aperto de mão, o padre Dubinski convidou Collins a segui-lo.
Passaram por uma porta que dava para um átrio. A meio deste havia outra porta. O
padre abriu-a.
- A nossa maior sala da reitoria - disse o padre, acrescentando : - É à prova de
som.
Na sala de estar, Collins inventariou de relance todo o mobiliário: à direita
havia uma secretária com duas cadeiras; do outro lado da sala, na parede oposta à
porta, havia uma credencia sobre a qual estava pendurada uma pintura moderna de
Jesus Cristo a ser retirado da cruz. O padre Dubinski pegou no cotovelo de Collins e
levou-o para o sofá junto da mesa de café, à esquerda.
- Ninguém me viu entrar - disse Collins. - Quem é que está a vigiar a porta da
entrada principal?
- O FBI.
- O FBI ? - disse Collins, incrédulo. - A vigiá-lo? Por que motivo?
- Vou explicar-lhe - disse o padre Dubinski. - Sente-se, por favor. Prefere chá
ou café?
Collins recusou ambos e sentou-se na beira do sofá junto de uma mesinha-
candeeiro.
O padre Dubinski instalou-se noutro sofá a curta distância dele. Não perdeu
tempo:
- Tive uma visita ao fim da manhã. Um tal senhor Harry Adcock, cujo cartão
de identificação indicava delegado, ou seria adjunto?, do diretor do FBI.
- É o adjunto do diretor Tynan. Que veio ele cá fazer?
- Queria saber o que o coronel Noah Baxter me confessou na noite em que
morreu. Disse-me que isso podia estar relacionado com um assunto de segurança
nacional. Eu poderia ter considerado o inquérito bem intencionado, embora um tanto
deslocado, mas um fato não me permitiu. Quando me recusei a repetir a confissão do
coronel Baxter, Adcock ameaçou-me.
- Ameaçou-o? - repetiu Collins, descrente.
- Sim. Mas antes de passarmos a isso, há uma coisa que me intriga. Como
podia ele saber que o coronel Baxter teve tempo para me falar, para se confessar,
antes de morrer? Contou-lhe?
Collins manteve-se calado, tentando lembrar-se. Por fim, recordou-se com
exatidão.
- De fato, falei nisso. Quando regressávamos, Tynan, Adcock e eu, do funeral
de Baxter e falávamos dele, da sua morte. Com a maior inocência (porque era nisso
que estava a pensar), contei que tinha sido chamado ao hospital na noite em que
morreu. Contei que ele me tinha querido ver com urgência, mas que eu chegara
demasiado tarde. Ele já estava morto. Depois devo ter falado... sim, estou certo que
fiz, do encontro consigo. Que as últimas palavras do coronel foram a confissão que
lhe fez, mas que um padre não podia repetir o que lhe é dito em confissão. - As
sobrancelhas de Collins franziram-se. - Falei nisso a Tynan e a Adcock, porque
pensei que eles me podiam dar uma pista sobre o que Baxter me queria dizer. É que
eu sabia que Tynan era amigo íntimo de Baxter. Infelizmente, eles não me puderam
ajudar. - Fez uma pausa.- Então Tynan mandou Adcock vir aqui (é sempre Adcock
quem faz os trabalhos sujos) para conhecer a confissão? E quando se recusou a
cooperar, Adcock ameaçou-o? É incrível.
- Talvez não seja assim tão incrível. Só você pode ser o supremo juiz neste
caso.
- Como é que o ameaçou?
O padre Dubinski fixou o olhar na mesa de café.
- A ameaça não foi implícita nem indireta. Foi uma ameaça clara e direta,
enfim, chantagem. Ao que parece, o FBI tinha estado a fazer uma investigação
sobre mim, sobre o meu passado; suponho que isso é rotineiro nos dias que correm,
não?
- É o processo corrente quando o FBI está a investigar alguém.
- Ou quando quer fazer alguém falar? Mesmo que essa pessoa esteja
inocente?
Collins mexeu-se no sofá.
- Isso não faz parte do processo. Mas ambos sabemos que isso acontece.
Houve abusos.
- Parece-me que esta investigação do meu passado só pode ter sido instigada
pelo diretor Tynan. Você afirmou que Adcock não passa de um... de um lacaio.
- É verdade.
- Pois bem, o FBI desenterrou o que há muito estava enterrado, um incidente
infeliz no meu passado. Quando era um jovem padre, ocupando o meu primeiro
cargo (dirigia uma igreja em Trenton, Nova Jersey, num ghetto), iniciei um
programa de combate à droga. Para impedir a minha cruzada, alguns dos jovens
delinquentes mais empedernidos, plantaram um pequeno arbusto de droga no meu
passal e a seguir informaram as autoridades para me comprometerem. A polícia
apareceu e deu com o arbusto. Tinham sido avisados que eu andava a plantar droga.
Podia ter sido o fim da minha carreira. Felizmente, o escândalo foi evitado, pois o
meu bispo fez pressão sobre a polícia para me deixar testemunhar em audiência
privada. Devido a esse testemunho, fui ilibado. Mas como os culpados nunca foram
descobertos, o caso ficou dependente apenas da minha palavra. Posso compreender,
recordando o incidente agora, que haja quem possa considerar-me culpado, ou, por
falta de provas, apenas não condenado. Ora, o que é fato é que o caso
prematuramente encerrado, entrou nos ficheiros do FBI. Foi isso que Harry Adcock
me lançou à cara hoje de manhã.
Collins estava estupefato.
- Custa... custa a acreditar.
- Mas é assim. Tem de acreditar. Adcock ameaçou-me de tornar pública esta
informação sobre o meu passado se eu continuasse a recusar divulgar a confissão
derradeira do coronel Baxter. Foi peremptório. Decidi que os meus votos sagrados
eram mais importantes que a ameaça de assassínio moral. Seja como for, se a
história viesse a lume, pouco afetaria o meu estatuto. Poderia ser embaraçoso, mas
pouco mais. Disse a Adcock que fizesse o que entendesse. Eu não cooperaria com
ele. Mandei-o embora. Depois, durante toda a tarde, fiquei furioso. O que mais me
preocupou (agora que já tenho uma experiência pessoal), foram os métodos
violentos usados por um serviço do governo contra os cidadãos que diz proteger.
- Ainda me parece inacreditável. O que haveria de tão importante na
confissão do coronel Baxter para fazer Tynan chegar a tais extremos?
- Não sei - disse o padre Dubinski. - Julguei que você soubesse. Foi por isso
que o contatei.
- Não sei o que o coronel Baxter lhe disse. Por isso, não tenho maneira...
- Vai passar a saber parte do que o coronel me disse, porque eu lhe vou
contar.
Collins sentiu um arrepio de excitação. Contendo a respiração, esperou.
O padre Dubinski prosseguiu, falando vagarosamente:
- A visita de Adcock deixou-me tão irritado que passei longas horas durante a
tarde a reconsiderar a minha posição. Sabia que não podia cooperar com ele nem
com o diretor Tynan. Mas comecei a encarar o seu pedido de Bethesda sob uma luz
diferente. É óbvio que o coronel Baxter confiava em si. Quando já estava
moribundo, foi só por si que chamou. Portanto, ele queria dizer-lhe parte do que me
disse. Comecei também a ver que muito do que ele me contou talvez lhe fosse
dirigido. E compreendi mais claramente que os meus deveres não eram só
espirituais, mas também temporais, e que talvez eu fosse apenas o guarda da
informação que o coronel Baxter lhe queria fazer chegar. Foi assim que cheguei à
decisão de lhe repetir as suas últimas palavras.
Collins sentiu o coração bater mais depressa.
- Aprecio profundamente a sua atitude, padre.
- Quando faleceu, o coronel Baxter estava preparado, segundo as palavras de
S. Paulo, ''para desaparecer e reunir-se a Cristo'' - disse o padre Dubinski. - Estava
reconciliado com Deus. Depois de lhe ter dado os Sacramentos e de ter terminado a
confissão, ele fez um esforço final para referir um assunto terreno que perduraria. As
suas últimas palavras, ditas quase na agonia final... - O padre procurou por entre as
pregas da batina. - Escrevi-as depois de Adcock sair para não as adulterar.
- Abriu uma tira de papel amarrotada. - As últimas palavras do coronel
Baxter, que acredito plenamente serem-lhe dirigidas, foram as seguintes: "Sim,
pequei, padre...E o meu maior pecado... Tenho de o contar... Já não me podem
controlar... Estou livre, já não preciso de ter medo... É sobre a 35.a emenda..."
- A 35.a emenda - murmurou Collins.
O padre Dubinski lançou-lhe um longo olhar e voltou à leitura da tira.
- "É sobre a 35.a emenda". Depois disse algumas coisas sem sentido e a
seguir apanhei isto: "O Documento R... perigo... perigoso... deve ser revelado
imediatamente, a todo o custo... O Documento R é..." Desfaleceu, depois tentou
novamente. É muito difícil reproduzir o que ele tentava dizer, mas estou quase certo
que era: "Eu vi... grave... grave ação... vá ver..." Soltou o suspiro final, recuperou,
mas instantes depois estava morto.
Collins sentia-se enregelado. Tinha ouvido uma voz saída do túmulo.
Confuso e perturbado, disse:
- O Documento R ? Foi disso que falou?
- Por duas vezes. Era evidente que queria dizer qualquer coisa sobre ele, mas
não pôde.
- Tem certeza que não disse mais nada?
- Foram estas as únicas palavras compreensíveis. Disse mais, mas não as
pude entender.
- Padre, tem a mais leve idéia do que possa ser o Documento R?
- Esperava que me pudesse dizer.
- Nunca tinha ouvido falar dele - disse Collins.
Ponderou nas últimas palavras do coronel Baxter que eram certamente a sua
mensagem urgente para o novo Procurador-Geral.
- Ele disse que tinha pecado por se ter envolvido nesse... bem, em qualquer
coisa. Que foi forçado a envolver-se. Qualquer coisa relacionada com a 35.a emenda
e um tal Documento R, uma grave ação que era perigosa e que tinha de ser revelada.
Mandou-me chamar para me dizer isso.
- Era o seu legado para os vivos, o desejo de corrigir uma falta.
- O seu legado para mim, para o sucessor - disse Collins quase de si para si. -
Porque não para o Presidente? Ou para Tynan? Ou mesmo para a sua mulher? Só
para mim. Mas porquê para mim?
- Talvez por confiar mais em si que no Presidente ou no diretor.
Possivelmente porque você compreenderia aquilo que nem a mulher seria capaz.
- Mas eu não compreendo - disse Collins desesperado. O Documento R.
Sentia-se perdido. Procurava mas não conseguia encontrar nada. Que seria?
O padre Dubinski tinha-se posto de pé.
- Talvez seja bom descobrir. Descobrir o mais depressa possível. - Entregou a
tira de papel a Collins. - Agora já sabe tudo o que eu sei e tudo o que Noah Baxter
lhe queria dizer na agonia final. O resto está nas suas mãos. - Respirou fundo. - Há
um perigo no ar. Rezarei pelo seu êxito e pela sua segurança. Deus seja consigo.
Capítulo terceiro

Acordara cedo na manhã seguinte, tomara uma ducha, vestira-se e saíra de


sua casa de nove divisões em McLean, na Virgínia, para fazer as sete milhas até ao
serviço, sem que tivesse falado à mulher na aventura da noite anterior na Igreja da
Santíssima Trindade.
Durante o jantar da véspera e por todo o serão, tencionara contar a Karen o
episódio com o padre Dubinski. Mas uma espécie de instinto natural de cuidado e
proteção para com a sua amada, coibira-o de revelar o encontro. Sabia que isso a
perturbaria e preocuparia, pois o mesmo se passara com ele. Em vez disso, falara-lhe
sobre o telefonema do Presidente que tornava certa a viagem à Califórnia. As suas
únicas incumbências eram dirigir um discurso à Associação Americana do Foro,
aparecer num programa de televisão, e, se possível fazer propaganda informal junto
de alguns legisladores estaduais. Tirando isso, ficaria livre, e talvez pudessem gozar
alguns dias de sol da Califórnia. Pedira a Karen que o acompanhasse. Ela resistira,
argumentando com a gravidez e o estado de cansaço. Afirmara que ele poderia
aproveitar melhor o tempo livre, vendo o filho, Josh, e encontrando-se com alguns
velhos amigos. Collins não insistira. Sabia que poderia aproveitar o tempo que lhe
restasse para falar não só com o jovem Josh, mas também com o homem que Paul
Hilliard queria que encontrasse, o deputado à Assembléia Olin Keefe, o homem que
afirmava que o FBI estava a falsificar as estatísticas criminais da Califórnia. Desde
o encontro que tivera com o padre ao princípio da noite, Collins começara a nutrir
certas dúvidas sobre o FBI.
Quando se deitara na noite anterior, Karen ainda estava acordada. Ao dar-lhe
o beijo de boas-noites, percebeu que ela queria fazer amor. Estivera tão absorvido
pelo mistério do Documento R que o amor era a última coisa em que pensava. No
entanto, porque não lhe queria desagradar, e especialmente porque estaria longe dela
por alguns dias, acompanhara-a. Após uns minutos de preparação, já tinha esquecido
todos os problemas e estava tão desejoso como ela de fazer amor. Apesar do cuidado
em não lhe comprimir o ventre -temia constantemente que ela tivesse um aborto - a
relação tinha sido longa e vibrante. Tinha sido natural e de entrega mútua, de uma
maneira que nunca tinha conseguido com a mãe de Josh - porque pensaria na
primeira mulher, Helen, apenas como mãe de Josh? - e, logo que terminada, ambos
tinham adormecido quase instantaneamente.
Mas quando acordara de manhã, já não era em Karen que pensava, mas no
Documento R. A caminho do Departamento de Justiça, recordou a urgência do
desejo do coronel Baxter em que tomasse conhecimento do assunto e o divulgasse.
Tomar conhecimento e expor o quê? Alguma atuação grave que o coronel
presenciara. Mas como descobri-la? Por onde começar? Tentou pensar no problema
de forma lógica e ordenada. O ponto de partida devia ser alguém ou alguma coisa
relacionada com o falecido coronel Baxter. Antes demais, havia os arquivos
particulares de Baxter. O coronel tinha-os mantido separados dos documentos
relacionados com o seu cargo de Procurador-Geral, que estavam guardados nos
arquivos normais do gabinete de Marion. Collins teria de examinar ambos os
arquivos. Pensou longamente nessa tarefa. Parecia simples, mas onde procurar? E
procurar o quê? Em R, de Documento R? Em T, de 35.a, ou em E de emenda? Em S
de Secreto, ou em P de Perigo? Não tinha grandes esperanças nos arquivos. O tom
da mensagem de Baxter dava a entender claramente que as informações
complementares não seriam de fácil obtenção nem se encontrariam em lugares
óbvios.
Era tudo quanto aos pertences de Baxter. Isso resumia o campo às pessoas
íntimas de Baxter: família, associados, amigos - qualquer pessoa que pudesse tê-lo
ouvido mencionar, num qualquer momento, um papel chamado Documento R. Por
quem começar? O diretor Vernon T. Tynan parecia ser a melhor aposta. As últimas
palavras de Baxter não o tinham mencionado nem alertavam contra ele. Da
mensagem final, deduzia-se que Collins devia começar por alguém próximo.
Quereria Baxter que começasse por Tynan ou que o evitasse? Prudentemente,
Collins ponderou a hipótese Tynan. Havia dois pontos significativos a ter em
atenção. Porque não teria o coronel chamado Tynan para ouvir o aviso? Porque não
confiava em Tynan? Nada permitia inferi-lo. Contudo, pensou Collins, seria Tynan
de confiança? O segundo ponto a ter em atenção agitou-se à sua frente como uma
bandeira vermelha. No regresso do cemitério, Collins fizera algumas observações
inocentes sobre a confissão derradeira de Baxter. Tynan enviou imediatamente um
emissário ao padre Dubinski para descobrir, a bem ou a mal, se necessário através de
chantagem, qual fora o conteúdo da confissão. Procuraria Tynan alguma informação
que lhe escapava? Ou queria saber se Baxter deixara escapar alguma informação
secreta que compartilhavam? Em qualquer dos casos, era possível que Tynan
conhecesse o significado do Documento R. E talvez estivesse pronto a explicá-lo a
um colega e superior. Era ele a pessoa indicada. Mas a bandeira vermelha
continuava a agitar-se em frente de Collins. Age com cautela!
A prioridade deslizou de imediato para uma pessoa menos duvidosa, de maior
confiança, e que podia estar igualmente ao corrente dos segredos do coronel. Era a
viúva do coronel Baxter, Hannah. A bandeira vermelha desapareceu. Era uma
pessoa prestável. Seria compreensiva. Collins tinha excelentes relações com
Hannah, que sempre o olhara maternalmente. E quanto a resultados? Afinal de
contas, tinha sido casada com o coronel quase quarenta anos. Baxter não podia estar
envolvido em questões graves sem que ela o soubesse. Mas, por outro lado,
atendendo à forma como se davam, porque não teria o coronel moribundo confiado
nela em vez de chamar Collins para ouvir o seu aviso? Baxter tinha-a utilizado
apenas como um meio para chegar a Collins. Talvez a explicação não fosse difícil. O
coronel podia ser do tipo de pessoas que pensam que o trabalho dos homens é um
assunto para homens, especialmente envolvendo um antigo Procurador-Geral e o seu
sucessor.
Quando chegou ao seu gabinete, Chris Collins ainda continuava indeciso
quanto ao primeiro passo a dar.
Sentado à secretária, ignorando as mensagens escritas no bloco, continuou a
remoer o assunto. Quando Marion chegou com a chávena de chá forte, já tinha
decidido por onde começar. Partiria de uma fonte menos complicada que os seres
humanos.
- Marion, onde estão os arquivos do coronel Baxter?
- Bem, ele tinha dois arquivos distintos...
- Eu sei.
- O principal, o que tinha os ficheiros mais importantes, está no meu gabinete.
Além desse, tinha um arquivo pessoal (com a correspondência particular,
memorandos, etc.) numa caixa à prova de fogo na sala de estar do meu gabinete.
- Ainda lá está?
- Não. Um mês depois de ter entrado para o hospital, o arquivo foi transferido
para a sua residência em Georgetown.
- Então agora está lá?
- Sim. Se deseja examinar alguma coisa, posso encarregar-me disso.
- Não, não vale a pena. Eu mesmo o farei.
- Quer que telefone à senhora Baxter?
Já não restavam dúvidas quanto à pessoa com quem devia falar primeiro
sobre o Documento R.
- Sim, telefone-lhe e pergunte-lhe se me pode receber por uns minutos hoje à
tarde. - Quando Marion se preparava para sair, acrescentou com ar desinteressado: -
Já agora, Marion, tenho andado à procura de um memorando chamado Documento
R. Isso diz-lhe alguma coisa?
Ela tentou lembrar-se.
- Receio que não. Nunca arquivei tal documento.
- Era um memorando relacionado com a 35.a emenda. É capaz de dar uma
vista de olhos no ficheiro normal?
- Imediatamente.
Enquanto bebia o chá, Collins despachou os assuntos da manhã rapidamente.
Discutiu ao telefone uma nota do governo com o Solicitador-Geral, depois telefonou
ao seu assistente para tratar de um assunto de pessoal. Teve um breve encontro com
o Diretor das Relações Públicas, que estava a orientar a preparação do seu discurso
em Los Angeles. Conferenciou à pressa com Ed Schrader, adjunto do Procurador-
Geral, sobre um caso de fuga coletiva aos impostos, prisões por tumultos em Kansas
City e Denver, e as últimas descobertas relativas aos conspiradores do grupo Luta
pela Liberdade Interna.
Por volta do meio-dia já tinha atendido a secretária em dois assuntos
importantes. Primeiro, ela tinha procurado no ficheiro oficial. Não havia a menor
referência, disse ela, ao tal Documento R. Isso nada o surpreendeu. Depois, ela
disse-lhe que tinha contactado com Hannah Baxter, e que esta teria o maior prazer
em recebê-lo às duas horas.
Depois de almoçar na sua sala de jantar privativa com três Procuradores do
Ministério Público recém-chegados da província, e de atender mais quatro
telefonemas, Collins estava pronto para iniciar a sua investigação particular sobre o
Documento R.
Pagano conduziu-o, e Hogan acompanhou-o a Georgetown. Chegaram à casa
de tijolo branco nos seus três andares velhos de quase duzentos anos, situada numa
rua de árvores frondosas, quando faltavam precisamente cinco minutos para as duas.
Deixando o motorista e o guarda-costas no automóvel, Collins subiu a magnífica
escadaria ornamentada por ferro forjado, tocou à campainha e foi recebido pela
amável criada preta.
- Vou chamar a senhora Baxter - disse a criada. - Deseja esperar no pátio?
Está um dia tão agradável.
Collins concordou, seguiu-a até às portas envidraçadas e entrou para o pátio
lajeado. Observou o seu reflexo na piscina, voltou-se para se sentar numa cadeira de
ferro trabalhado junto de uma mesa de tampo de cerâmica, e acendeu um cigarro.
- Olá, senhor Collins - exclamou uma voz jovem.
Olhou para trás e viu Rick Baxter, o neto de Hannah Baxter, de joelhos no
chão, a mexer num gravador portátil.
- Olá, Rick. Então não foste hoje à escola?
- O motorista está doente, por isso a avó deixou-me ficar em casa.
- Os teus pais ainda estão em África?
- Estão. Não podiam vir a tempo do funeral do avô, por isso ainda ficam mais
um mês.
- Parece que tens problemas com essa engenhoca. Está avariado?
- Não consigo pô-lo a trabalhar - respondeu Rick. - Estou a tentar consertá-lo
para poder gravar hoje à noite o programa especial da televisão sobre a banda
desenhada na América. Mas não consigo...
- Deixa-me experimentar, Rick. Não sou mecânico, mas talvez consiga
ajudar.
Rick levou o gravador para junto de Collins. Rick era um rapaz de cabelo
castanho e olhos vivos, com o gancho habitual nos dentes. Collins lembrou-se que
ele era um rapaz esperto e amadurecido, para a idade de doze anos. Collins pegou no
gravador, examinou todos os botões para verificar se estavam nas posições corretas,
e em seguida abriu a caixa.
Viu imediatamente o que estava mal, fez um simples ajuste e experimentou o
aparelho. Já trabalhava.
- Obrigado!-exclamou Rick. - Agora já posso gravar o programa. Devia ver a
minha coleção. Gravo os melhores programas e as melhores entrevistas da rádio e da
televisão. Tenho a melhor coleção lá da escola. É o meu passatempo favorito.
- E um dia terá muito valor - disse Collins. Estamos na era dos gravadores,
pensou.
Perguntou a si próprio se algum desses miúdos, mesmo espertos como Rick,
ainda saberiam escrever. E o pior ainda estaria para vir, com a aprovação da 35.a
emenda. A escuta telefônica, os microfones escondidos, as escutas por processos
eletrônicos, teriam aprovação pública.
- Olá, avó - ouviu Rick dizer.
Collins pôs-se imediatamente de pé, voltando-se para cumprimentar Hannah
Baxter. Quando ela chegou junto dele, abraçou-a e beijou-a afetuosamente no rosto.
Era uma mulher pequena e anafada, em decrepitude mas com faces ainda brilhantes
e quentes e traços de extrema bondade.
- Os meus sentimentos - disse Collins. - Lamento muito.
- Obrigado, Christopher. Felizmente que tudo acabou. Não podia suportar o
sofrimento dele nem vê-lo para ali prostrado como um vegetal, um homem da sua
vitalidade. Sinto a falta dele. Não pode imaginar as saudades que tenho. Mas é a
vida. Temos de a enfrentar. - Voltou-se. - Rick, vai para dentro. E nada de
programas de televisão nem de gravações até à noite. Pega nos livros da escola. Não
quero que reproves, senão o teu pai fica zangado comigo.
Quando o rapaz os deixou, Hannah sentou-se no tampo de cerâmica da mesa
e Collins reocupou o seu lugar.
Hannah falou nostalgicamente de Noah Baxter por mais algum tempo,
recordando os bons momentos que tinham passado juntos, mas a sua voz começava
gradualmente a arrastar-se.
- Não me deixe continuar. Como vai o seu trabalho?
- Não é fácil. Posso avaliar o que Noah passou.
- Ele costumava dizer que era como ter um gabinete sobre areias movediças.
Por mais que se fizesse ia-se sempre afundando. Mas se há alguém apto para lhe
suceder, é você, Christopher. Sei que Noah sempre teve grandes esperanças em si.
- Foi por isso que ele me mandou chamar na última noite, Hannab?
- Claro.
- O que foi que ele lhe disse?
- Estava ao lado dele quando saiu do estado de coma. Sentia-se terrivelmente
fraco e não se exprimia bem. Reconheceu-me e murmurou umas palavras afetuosas.
Depois pediu-me que lhe fizesse um favor: ''Chama Chris Collins. Preciso o ver. É
um assunto urgente. É importante. Preciso de falar com ele." Não falou com esta
clareza, mas foi isto que tentou dizer. Por isso, mandei chamá-lo. Tenho imensa
pena que não tenha conseguido chegar a tempo.
- Hannah, porque me queria ele falar?
Ela ainda não tinha pensado nisso.
- Porque é que ele o queria ver? Eram assuntos a tratar, certamente. Ele
raramente conversava comigo sobre o trabalho. Tratava esses assuntos diretamente
com os interessados. Naquela ocasião, ele tinha qualquer coisa para lhe dizer. É uma
pena que não o tenha conseguido.
Collins sentiu vontade de lhe dizer que o coronel tivera essa oportunidade
através do padre Dubinski, mas uma vez que ela não sabia, Collins resolveu
instintivamente não a envolver no caso.
- Gostava de ter falado com ele - disse Collins. - Podia ter-me dado solução a
uma série de assuntos. Por exemplo, há certos ficheiros que não encontro. Já estive a
ver o arquivo oficial, mas o arquivo pessoal de Baxter, segundo me diz a minha
secretária, foi trazido para aqui depois de ele adoecer.
- É verdade. Guardei-o no escritório.
- Poderei consultá-lo por uns minutos, Hannah?
- Já não o tenho. Esse arquivo já cá não está. Foi levado no dia em que Noah
morreu. Vernon Tynan telefonou-me para me dizer que precisava dele por um ou
dois meses, que desejava examiná-lo para se certificar de que não tinha assuntos
ultra-secretos no ficheiro. Fiquei aliviada por lhe dar. Todos os assuntos secretos de
Noah me punham nervosa. Portanto, se lá estiver alguma coisa de que precise, tem
de ir ter com Vernon. Com certeza que ele cooperará.
É estranho, pensou Collins. Que quereria Vernon T. Tynan dos papéis
pessoais do coronel Baxter? Mas o tempo urgia e a pergunta ficou no ar.
- Na verdade, aquilo que procuro é um papel do Departamento de Justiça
relacionado com a 35.a emenda. Tem nome. Chama-se Documento R. Por acaso
chegou a ver o ficheiro?
- Nunca mexi nas fichas. Não tinha motivo para o fazer.
- Claro, mas lembra-se se Noah alguma vez lhe falou desse tal documento?
Ela abanou negativamente a cabeça.
- Não, que me lembre nunca falou nisso. Como já lhe disse, ele raramente me
fazia confidências sobre os assuntos do serviço.
Desapontado, Collins prosseguiu:
- E não sabe de alguém a quem ele possa ter falado a esse respeito? Ela
apontou para o maço de cigarros que estava em cima da mesa.
- Posso tirar um, Christopher?
Ele tirou rapidamente um cigarro do maço aberto, ofereceu-lhe e acendeu-o.
- Voltei a fumar depois do funeral. - Soprou o fumo, pensativa. - Noah não
tinha muitos amigos íntimos. Era uma pessoa bastante ciosa da sua vida privada,
como deve saber. Havia algumas pessoas com quem se relacionava no trabalho,
como Vernon Tynan e Adcock, mas não passavam de relações de serviço. No
aspecto particular... um
amigo pessoal? - Calou-se para pensar. - Bem, parece-me que o único que podia
chamar-se amigo era Donald, Donald Radenbaugh. Ele e Noah eram amigos
íntimos, até à altura do problema do pobre Donald.
O nome pareceu-lhe desconhecido, mas subitamente captou-o e recordou-se
das parangonas dos jornais.
- Depois de Donald ter sido julgado, condenado e encarcerado na
Penitenciária Federal de Lewisburg - continuou Hannah Baxter Noah nunca mais o
pôde ver. Atendendo à posição de Noah, seria muito embaraçoso. Foi como no
tempo em que Robert Kennedy era Procurador e o seu amigo James Landis esteve
envolvido num caso de fuga aos impostos. Kennedy demitiu-o. Não podia interferir.
O mesmo se passou com Noah no caso de Donald Radenbaugh. Mas Noah acreditou
sempre na inocência de Donald e achava que o caso tinha sido um engano completo
da justiça. De qualquer forma, Donald foi um dos melhores amigos de Noah.
- Donald Radenbaugh - repetiu Collins. - Lembro-me do nome. O caso teve
muita publicidade nessa altura, há dois ou três anos. Foi um escândalo financeiro,
não é verdade? Não me recordo bem dos pormenores.
- Foi um caso muito feio. Também já não me lembro perfeitamente dos
pormenores. Donald era advogado e exercia a profissão aqui em Washington quando
foi nomeado conselheiro presidencial na anterior administração. Foi acusado de
conspiração para defraudar ou extorquir (não me lembro bem) um milhão de dólares
através de contratos governamentais com grandes companhias. Na verdade, o
dinheiro provinha de contribuições ilegais para campanhas. Quando o FBI deitou a
mão a um tal Hyland, este procurou afastar de si as provas para conseguir uma
sentença leve e deitou todas as culpas para cima de Donald Radenbaugh. Afirmou
que Donald estava a caminho de Miami Beach para entregar o dinheiro a um terceiro
conspirador. Quando o FBI apanhou Donald em Miami, ele não tinha o dinheiro.
Insistia que nunca o tivera. No entanto, com base principalmente no testemunho de
Hyland, Donald foi julgado e declarado culpado.
- Sim, já me recordo - disse Collins. - Parece-me que apanhou uma sentença
pesada, não foi?
- Quinze anos - respondeu Hannah. - Noah ficou muito perturbado. Sempre
disse que Donald tinha sido usado como bode expiatório por ter ajudado o anterior
presidente a manter a administração limpa. Noah não podia interferir no tribunal.
Ainda tentou aligeirar a sentença, mas não conseguiu. Sei que esperava fazê-lo sair
sob fiança passados cinco anos, mas agora já cá não está para o ajudar. Seja como
for, Donald Radenbaugh é a única pessoa que julgo poder ajudá-lo... além de
Vernon Tynan.
- Quer dizer que Radenbaugh talvez saiba alguma coisa a respeito do
Documento R?
- Não sei, Christopher. Realmente, não sei. Mas se esse documento era um
papel ou um projeto em que Noah participou, podia muito bem ter conversado a esse
respeito com Donald Radenbaugh. Era freqüente pedir conselho a Donald em
assuntos melindrosos. Apagou a ponta do cigarro. - Podia visitar Lewisburg no
exercício das suas funções, arranjar maneira de ver Donald e dizer-lhe que deseja
ajudá-lo como Noah pretendia fazer. Talvez ele coopere. Pode ser que lhe dê a
informação de que precisa. Posso escrever-lhe a dizer que pode confiar em si, uma
vez que era protegido e amigo de Noah.
- Seria capaz de o fazer? - perguntou Collins ansioso. - É claro que vou ajudá-
lo.
- Pode estar certo que o farei. De qualquer maneira, já tencionava escrever-
lhe algumas palavras sobre o que se passou. Ele deve sentir a falta da
correspondência, só a filha lhe deve escrever. Tem uma filha encantadora, chamada
Susie, que vive atualmente em Filadélfia. Dir-lhe-ei que o vai visitar. Sabe quando?
Collins voltou mentalmente uma folha do calendário.
- Tenho de estar na Califórnia no fim de semana para fazer um discurso.
Voltarei alguns dias depois. Pois bem, pode dizer a Radenbaugh que o irei ver
dentro de uma semana. Sim, daqui a uma semana. É uma boa pista, Hannah,
agradeço-lhe muito. - Levantou-se, aproximou-se dela e deu-lhe um beijo na face. -
Obrigado por tudo, Hannah. Não ande a pensar no que aconteceu, mantenha-se
ocupada. Se Karen ou eu pudermos fazer alguma coisa, não hesite em telefonar.
À saída, a caminho do carro, sentia-se melhor. Radenbaugh era uma hipótese
concreta. Mas o seu ar cerrou-se de imediato. Primeiro teria de confrontar Vernon T.
Tynan com o mistério do Documento R. Não sabia como iria fazê-lo, mas isso teria
de acontecer mais cedo ou mais tarde. Entrou no carro já com a decisão tomada:
quanto mais depressa melhor.
Na manhã seguinte, às dez e meia, Chris Collins encontrava-se com Vernon
T. Tynan na sala de conferências do diretor, adjacente ao seu gabinete, no sétimo
andar do edifício J. Edgar Hoover. Collins tinha desejado que a reunião se realizasse
no gabinete de Tynan, pois pretendia verificar se o arquivo particular de Noah
Baxter lá se encontrava. Mas Tynan esperara por ele no átrio do sétimo andar e
conduzira-o para a sala de conferências. Aí, Tynan insistira que Collins se sentasse à
cabeceira da mesa, enquanto ele ocupava uma cadeira à direita do Procurador-Geral.
Enquanto tirava da mala de couro a pasta que continha as últimas estatísticas
criminais da Califórnia, Collins observou o diretor e ouviu os seus gracejos para a
secretária que servia chá e café. Desde o encontro com o padre Dubinski na igreja da
Santíssima Trindade, Collins tinha crescentes suspeitas sobre o diretor do FBI. Mas
agora, observando a descontracção de Tynan com a secretária, a suspeita parecia não
ter razão de ser e desvanecia-se gradualmente. O rosto belicoso de Tynan abria-se
num sorriso. Havia nele uma franqueza e cordialidade que desarmavam Collins.
Como suspeitar do principal defensor da lei no país? Talvez o padre tivesse
compreendido mal ou exagerado a ameaça do emissário de Tynan.
- Não se esqueça, Beth - disse o diretor à secretária quando ela ia a sair - nada
de interrupções. - A porta fechou-se e Tynan consagrou-se ao visitante. - Então,
Chris, em que lhe posso ser útil?
- Preciso apenas de poucos minutos - disse Collins, tirando os papéis. - Tenho
estado a rever o meu discurso para Los Angeles, que inclui os últimos relatórios do
FBI sobre criminalidade na Califórnia.
- Sim, recebemo-los diretamente da Califórnia. É onde precisamos atuar neste
momento. Já os tem? Enviei-lhes ontem.
- Tenho-os aqui - disse Collins. - Quero ter certeza de que estou na posse dos
últimos números. Se chegar mais qualquer coisa...
- Está perfeitamente atualizado - disse Tynan. - São os piores até hoje. Faça-
os compreender que são eles, mais do que os cidadãos de qualquer outro Estado, que
precisam do apoio constitucional.
Collins considerou a primeira folha.
- Na verdade, estas estatísticas da Califórnia são excepcionalmente elevadas
em comparação com as dos outros Estados.
- Levantou os olhos. - Serão absolutamente exatas?
- Tão exatas quanto os chefes da polícia da Califórnia o quiserem - respondeu
Tynan. - Pode verificar os números deles lá na Califórnia.
- Só queria saber se piso terreno firme.
- Pisa terreno bem firme. Com esses números terá uma boa introdução para
defender a 35.a emenda.
Collins tomou um gole de chá tépido.
- É claro que vou falar da emenda. Mas tenho de ser cuidadoso para não
exagerar. Custa-me ter de entrar num debate sobre este tema. E não me entusiasma o
programa de televisão. Francamente, não tive tempo de estudar a lei em pormenor,
com todas as suas implicações, desde que me tornei Procurador-Geral.
- Estou convencido que se sairá bem - disse Tynan com desenvoltura.- No
Congresso discutiu-a esplendidamente. Sabe exatamente o que é preciso.
- Mas talvez... - Collins hesitava - talvez não saiba tudo... Tynan deu mostras
de aborrecimento.
- Que mais haveria de saber?
Chegara o momento. Collins fechou os olhos mentalmente e mergulhou.
- Há mais qualquer coisa... uma espécie de suplemento... um certo
Documento R. O que há a respeito disso? Em que medida se relaciona com a 35.a
emenda?
Collins esboçava uma expressão ingênua no seu rosto esguio. Todo ele era
curiosidade inocente. Fixou o olhar em Tynan para ver se a sua reação traía alguma
coisa. As pálpebras semicerradas de Tynan abriram-se. Os seus pequenos olhos
escuros cresceram. Mas mantiveram-se inexpressivos. Ou era um ator consumado ou
a referência ao Documento R não lhe dizia nada.
Collins quebrou o silêncio interpelando-o:
- O que é que preciso saber sobre o Documento R?
- O quê? - perguntou Tynan.
- O Documento R. Pensei que me poderia elucidar, para eu ficar preparado
contra tudo.
- Chris, não tenho a menor idéia do que está a falar. Onde é que foi buscar
isso? O que é?
- Não sei. Tenho estado a desfazer-me de alguns papéis velhos de Noah
Baxter e calhou ver esse nome num dos memorandos relativos à 35.a emenda.
Tratava-se de examiná-lo juntamente com a emenda. Era tudo o que o memorando
dizia.
- Ainda tem esse memorando? Gostaria de vê-lo. Talvez me refresque a
memória.
- Ah, que pena! Já não o tenho. Foi para o lixo com um molho de papéis do
tempo de Noah. Mas ficou-me na idéia, e pareceu-me que o devia mencionar. Pensei
que se você o conhecesse, talvez me pudesse ajudar. - Encolheu os ombros. - Mas se
não conhece...
- Repito-lhe - disse Tynan com firmeza - que não tenho a menor idéia do que
está a falar. Provavelmente era um código (ou o que lhe quiser chamar) que Noah
utilizava para se referir à emenda. Não posso imaginar outra coisa. De qualquer
maneira, não sei nada a respeito disso. Pode ter certeza de que possui todas as
informações de que precisa para fazer um trabalho formidável na Califórnia. Você
vai fazer o seu trabalho e nós faremos o nosso. Pode ter certeza de que a Califórnia
vai ratificar. Apostamos tudo nisso, e, Chris, não tenciono perder a partida.
- Nem eu - disse Collins, guardando os papéis. - Penso que estou em perfeita
forma.
Uma vez no átrio, e sozinho, Collins desceu pensativamente para o sexto
andar, refletindo na reunião. Não tinha havido fendas na armadura de Tynan. Não
tinha havido nada na sua resposta nem na sua atitude que indicasse que ele tinha
conhecimento do documento - um documento perigoso, chamara-lhe Baxter no leito
de morte- designado pelo nome de Documento R. No entanto... Quando se dirigia
para o elevador, os seus olhos pousaram no grande espaço aberto no centro do sexto
andar. Aproximou-se e olhou para cima. Não havia telhado lá no alto. Da primeira
vez que tinha visitado o novo edifício do FBI, perguntara ao guia, um agente
especial, porque é que havia aquela grande abertura no centro do edifício e porque
era descoberta. O guia respondera-lhe:
- Para tornar o nosso quartel-general menos secreto, menos fechado, menos
ameaçador e sinistro. Fizemo-lo parecer completamente aberto para que o público
pense que nós também estamos abertos ao público.
Para parecerem abertos ao público, pensou Collins. Talvez o diretor tivesse
assumido o ar do seu edifício, um ar de franqueza para encobrir a verdade. Collins
continuou a andar vagarosamente para o elevador, onde o esperava Oakes, o seu
guarda-costas de serviço. Chegou à conclusão que talvez só na Califórnia poderia
saber mais a respeito de Tynan e das suas manobras. Depois disso, restava-lhe ainda
Lewisburg, onde poderia saber ainda mais a respeito de Tynan e do Documento R.
Noah Baxter, na sua agonia, tinha-o chamado com a maior urgência para lhe
falar de uma grave atuação presente no Documento R. Teria Noah compreendido
que o estava a meter num labirinto sem saída? Não, Noah não o encaminharia para
uma odisséia cega se não houvesse uma saída.
Ao entrar no elevador, prometeu a si próprio descobri-la rapidamente.
***
De novo no seu gabinete, o diretor Tynan ficou de pé no centro da sala, de
sobrolho carregado, à espera de Harry Adcock.
Quando Adcock entrou, fechando a porta suavemente, Tynan estava absorto,
com os olhos fixos no tapete. Sem levantar a cabeça, disse:
- Acabou de sair.
- Que queria ele? - perguntou Harry Adcock, dirigindo-se para o meio da
sala.
- Tentou jogar às escondidas comigo. Disse que desejava que o ajudasse no
discurso que vai fazer em Los Angeles. - Tynan praguejou: - Merda!
- Mas que queria ele afinal, chefe?
- Queria saber se eu tinha ouvido falar de uma coisa chamada Documento R.
- E tinha?
Tynan ergueu a cabeça.
- Eu nem sequer sabia do que ele estava a falar.
- Onde é que ele ouviu tal coisa?
- Não sei. Disse que tinha visto uma referência num dos memorandos de
Noah. - Grunhiu: - Estava a mentir. - Procurou os olhos de Adcock. - É um belo
intrometido;
este nosso Collins, tem o nariz muito comprido. Parece que anda à procura de
sarilhos.
Adcock assentiu com a cabeça.
- Sente-se, Harry.
Tynan rodeou a secretária e instalou-se na cadeira giratória, enquanto Adcock
se sentava numa cadeira à sua frente. Tynan recostou-se, com os braços cruzados
sobre o peito atlético e os olhos postos no teto. Passados instantes, falou:
- Eu julgava que ele era bom rapaz, um daqueles intelectuais superficiais,
ainda de olhos fechados. Também pensava que, tendo sido trazido para cá por Noah,
pertencia ao nosso grupo. Agora já não tenho certeza. Parece-me que ele é um burro
a dar-se ares de sabido e que anda a ver se arranja problemas.
- Como, chefe?
- Pensando, por exemplo, que pode ser mais esperto que Vernon T. Tynan. -
A cadeira giratória rangeu quando ele se endireitou.- Sabe que este edifício é um
monumento a J. Edgar Hoover, Harry. Pois eu sei muito bem como quero que seja o
meu monumento. Quero que seja a ratificação da 35.a emenda integrada na
Constituição. Não me importo de não vir a ser recordado por mais nada, desde que
seja por isso.
- E há de ser, chefe - disse Adcock com fervor.
- Sim? Pois bem, quero estar certo de que o senhor Collins também percebe
isso. Parece-me que é melhor começarmos a vigiá-lo. Não só aqui, também na
Califórnia...- A pausa foi quase uma ameaça. - Especialmente na Califórnia. Sim.
Vamos falar um pouco a respeito disso, a respeito do senhor Collins e da Califórnia.
Tenho uma série de idéias. Vamos ver se servem.

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facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a
oportunidade de conhecerem novas obras.
Capítulo quarto

Apesar do discurso que estava encarregado de fazer e do malfadado programa


de televisão, Chris Collins ficara ansioso pela viagem à Califórnia. Tinha aligeirado
propositadamente o plano. Chegaria a S. Francisco na quinta-feira à tarde, instalar-
se-ia nos seus aposentos favoritos do Hotel S. Francisco, e teria um encontro bem
regado com dois delegados do Ministério Público dos quatro distritos judiciais da
Califórnia. Depois, esperaria a visita do seu filho Josh, de dezenove anos, vindo da
Universidade de Berkeley. A seguir a essa reunião (não via o rapaz há oito meses),
iriam ao restaurante Ernie e poderiam deliciar-se com um longo e calmo jantar. Mas
o plano não tinha resultado. Dois dias antes da partida de Washington, Collins tinha
telefonado a Josh para confirmar a data. Primeiro tinham vindo as perguntas
habituais e as correspondentes respostas breves.
- Como tens passado, Josh?
- Atarefado como o diabo. O trabalho de casa é demasiado. Imensas
atividades externas.
- Bem, e como vai a escola?
- Já sabe, o costume.
- Continuas entusiasmado com as ciências políticas?
- Claro, mas eles tornam tudo muito maçador.
- Tens visto a tua mãe ultimamente?
- Não a vejo desde o aniversário dela. Estive em Santa Bárbara dois dias.
Helen está bem. Só que não me larga.
- E o marido?

Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer


recebê-lo em nosso grupo.
- Parece-me que se entendem bem. Mas eu não posso com ele. De que é que
se pode falar com um tarado pelo tênis, cheio de artrite? E o pior é que ele insiste em
chamar-me "filho".
Collins não pudera conter o riso e Josh acabara por o acompanhar. Não era
um rapaz mal humorado, sabia até ser espirituoso quando lhe parecia valer a pena.
Vivia muito intensamente o mundo que o rodeava. Fisicamente, era bastante
parecido com o pai. Era alto (cerca de um metro e noventa), rijo e tinha um rosto
magro.
Collins perguntara-lhe se ainda usava barba. Ele respondera-lhe que já a tinha muito
mais curta. Mary tinha insistido que a aparasse. Sim, continuava a viver com Mary
em felicidade extramatrimonial. Ela tinha redecorado o apartamento da Rua Stuart e
pintara pessoalmente o interior. Josh era suficientemente delicado para perguntar por
Karen, que só tinha visto duas vezes. Collins hesitara em falar-lhe da gravidez, mas
acabara por lhe contar que ia ter um irmão ou uma irmã dentro de cinco meses. Para
alívio de Collins, Josh ficara encantado e felicitara-o.
- Quando é que nos vemos? - perguntara Josh.
- Foi por isso que telefonei. Podes encontrar-te comigo esta semana se
estiveres livre. vou de avião para São Francisco na quinta-feira.
Collins explicara-lhe os fins da visita à Califórnia. Depois de um breve
silêncio, Josh interrogara-o:
- Vai defender a 35.a emenda nesse discurso, pai? Collins hesitara,
percebendo a tempestade.
- Sim, vou.
- Porquê?
- Bem, porque faz parte do meu trabalho. Pertenço à Administração.
- Penso que essa razão não é suficiente, pai.
- Bem, há outras razões. Há muito que dizer a favor da 35.a emenda.
- Não consigo encontrar uma única. Vou ser franco consigo. Disse-lhe que
tenho andado com atividades exteriores à Universidade. Pois tenho estado ocupado,
durante todo o tempo livre de que disponho, no combate à aprovação da emenda.
Também lhe posso dizer que pertenço ao grupo de Tony Pierce; sou investigador
dos Defensores da Declaração de Direitos. Vamos lutar aqui na Califórnia.
- Desejo-te boa sorte. Mas receio que percam. O Presidente está empenhado
em apoiar por todas as formas essa lei.
- O Presidente - dissera Josh com desprezo - tem a cabeça tão vazia como
uma bola de voleibol. Se pudesse, adormeceria todo o país. Tynan é o único que nos
preocupa. Ele é uma nova edição de Hitler.
- Eu não seria tão duro a seu respeito, Josh. É um policial com um trabalho
difícil a realizar. Não tem nada de parecido com Hitler.
- Posso provar-lhe que está enganado - desabafara Josh.
- Que queres dizer com isso?
- Os defensores da emenda estão sempre a argumentar que não será aplicada
senão em sérias emergências, como por exemplo, no caso de atentados para derrubar
o governo.
- Mas isso é absolutamente correto.
- Pai, eu penso que as pessoas que estão por trás da lei (não me refiro a si,
falo em Tynan e na sua quadrilha) pretendem ir muito mais longe assim que tiverem
a emenda.
- Ir muito mais longe? Que queres dizer?
- Não quero falar nisto pelo telefone. Mas posso prová-lo.
- Provar o quê? - perguntou Collins, tentando conter-se.
- Mostrar-lhe-ei. Eu levo-o lá; temos estado a investigar e vamos abrir-lhe os
olhos. Vai ver pessoalmente e então acreditará. Nós (quer dizer, os que trabalham no
grupo de Pierce), estamos a guardar o maior trunfo, pois queremos apresentá-lo
poucos dias antes de o órgão legislativo votar a emenda. Mas os meus amigos não se
vão importar se eu lhe mostrar, atendendo a quem é. Talvez o faça mudar de
opinião.
- Estou sempre receptivo a tudo o que for razoável. Se não me queres dizer do
que se trata pelo telefone, talvez me possas dizer onde é. Tens de compreender que o
meu tempo é limitado.
- Vai valer bem o tempo que perder. Eu levo-o lá. Faça-me um favor, pai.
Faça-me este favor.
Collins vacilara. Há muito que o filho não lhe pedia um favor.
- Bem, vou ver se arranjo tempo. Como vamos fazer?
- Encontramo-nos em Sacramento, quinta-feira ao meio-dia.
- Em Sacramento?
- Iremos a um lugar chamado Newell...
Por isso, porque era pai além de Procurador-Geral e porque gostava do filho,
decidira voar para Sacramento em vez de se dirigir a S. Francisco, depois de ter
transferido o encontro com os delegados do Ministério Público para Los Angeles.
Chegara a Sacramento pouco antes do meio-dia. Josh, aprumado, bronzeado, de
barba bem cortada, esperava-o, claramente cheio de emoção contida. Depois de o
abraçar, tinham entrado diretamente para um Mercury alugado. Com eles seguia o
agente especial Hogan, enquanto o agente substituto Oakes ficaria à espera que
regressassem à tarde, pois Collins teria de voar diretamente para Los Angeles.
Agora, depois de terem percorrido quilômetros que pareciam não ter fim,
Josh assegurava-lhe que estavam perto do destino. Não tinha querido e continuava a
não querer divulgar o objetivo.
- Vai ver com os seus próprios olhos - repetia várias vezes. Como o motorista
tivesse seguido inicialmente para Norte, pela estrada nacional número 5 em direção
a Weed, voltando depois para Nordeste na estrada número 97, para Klamath Fali, no
Oregon, para reentrar depois no sentido da Califórnia, Collins teve a crescente
sensação de ter sido arrastado para uma brincadeira, para uma aventura paranóica de
um jovem. No entanto, procurou continuar bem disposto, fumando, tentando
distrair-se com a conversa ligeira, porque sentia prazer pela presença do seu filho
aventureiro. Por seu turno, Josh, embora se mantivesse impenetrável a respeito do
que pretendia mostrar ao pai, não parava de arengar sobre o que ele e o seu grupo
pensavam da 35.a emenda.
- Uma das poucas coisas grandiosas deste país é a Declaração de Direitos -
dizia ele. - As primeiras dez emendas garantem a liberdade religiosa, de imprensa,
de expressão, de reunião, de petição, libertam-nos do arbítrio, dão proteção aos
acusados de crimes, garantem o julgamento por um júri, não permitem penas
excessivas nem punições cruéis...
Collins remexia-se incessantemente no assento. Porque julgarão os filhos que
os pais não sabem nada? Ou que se esqueceram de tudo?
- ...Mas agora aparece a 35.a emenda para suspender todas estas liberdades e
estes direitos.
- Qualquer declaração de direitos se refere a liberdades relativas e não
absolutas - esclareceu Collins calmamente. - Como disse Emerson, as Constituições
são apenas sombras alongadas dos homens. Foram inventadas por estes para se
protegerem uns dos outros. Quando não o conseguem, então o destino da sociedade
humana é posto em causa; têm de ser tomadas medidas drásticas para a própria
segurança da sociedade.
Josh recusou-se a aceitar essa idéia.
- Nem pensar. Só há um aferidor. Veja o que se passa no mundo. Todos os
governos verdadeiramente livres têm uma declaração de direitos que não pode ser
repudiada pelo governo. Só as ditaduras, as tiranias e os governos que não são livres
é que não têm declaração de direitos ou têm declarações que são condicionadas e
podem
ser revogadas pelos partidos no poder mesmo em tempo de paz. A Inglaterra tem a
Magna Carta de 1215 e a Declaração de Direitos de 1689; estas e outras leis
trouxeram aos Ingleses o fim das prisões arbitrárias, a garantia do julgamento com
um júri. A liberdade de expressão e de reclamação, o habeas corpus, a proteção da
vida, a liberdade, a propriedade. A França tem uma Declaração de Direitos baseada
nos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 1789, seis semanas depois da
queda da Bastilha. Também neste caso, os direitos consagrados de igualdade para
todos os cidadãos, de proteção à mulher, à criança e à terceira idade, de trabalho sem
discriminação, de segurança social, de educação, etc., não são coarctadas por
embustes como a 35.a emenda. O mesmo se verifica na Alemanha Ocidental e na
Itália. Porque é que na Alemanha Ocidental a Declaração de Direitos não pode ser
alterada como nós estamos a pretender fazer? Mas noutros países que também têm
declarações de direitos, principalmente países comunistas ou ditatoriais, encontra-se
sempre uma carta na manga. Veja Cuba: a liberdade de expressão é garantida, claro,
mas a propriedade privada pode ser confiscada "se o governo o achar necessário
para combater atos de sabotagem, terrorismo, ou outras atividades contra-
revolucionárias". Veja a Rússia: direitos iguais para todos, independentemente da
nacionalidade ou do sexo, exceto para os "inimigos do socialismo". Ou veja a
Iugoslávia: a Constituição declara a liberdade de expressão, de imprensa, etc.; mas
depois vem a carta escondida: "Estas liberdades e estes direitos não podem ser
usados por ninguém para abalar as bases da ordem democrática socialista... para
fazer perigar a paz... para difundir o ódio ou a intolerância nacional, racial ou
religiosa... para incitar ao crime ou ofender de qualquer forma a decência pública.''
Mas quem é que decide? Agora o nosso Presidente e o diretor do FBI estão a tentar
jogar essa cartada contra as nossas liberdades. Acredito que se a Califórnia disser
sim à emenda, será o fim da liberdade e da justiça para todos nós. Que diabo, até
fiquei sem fôlego para o convencer.
Exausto por o ouvir, Collins disse circunspectamente:
- Josh, os horrores que receias nunca acontecerão. A 35.a emenda será usada
para te proteger e, de fato, pode até nunca ser invocada.
- Nunca ser invocada? Espere pelo que lhe vou mostrar daqui a pouco.
- Estamos a chegar?
Josh espreitou por cima do motorista e de Hogan que ocupava o banco da
frente.
- Sim.
Collins olhou para o brilho do sol pela janela lateral. A América era uma
amálgama de terras com paisagens dramaticamente diferentes, mas esta era a mais
desolada de todo o país. Na última hora só tinha visto lagos secos, leitos alcalinos,
quintas abandonadas cobertas de mato, uma ou outra estação de serviço dando-se
ares de cidade. Agora atravessavam um terreno rude e sinistro, coberto de resíduos
de antigas correntes de lava, de pedra-pomes vulcânica e sem sinais de vida. De
repente, essa vida surgiu, algumas pessoas conversavam em frente de uma loja,
outras reuniam-se junto do posto de gasolina, viam-se uns tantos casebres e uma
tabuleta batida pelo tempo dizia: NEWELL.
Josh deu instrução ao motorista e depois de breves momentos disse-lhe que
parasse.
Collins estava atônito.
- Onde é que estamos?
- Lago Tule - anunciou Josh, triunfante.
Collins franziu o sobrolho. Lago Tule. O nome tinha o sabor de um velho
lugar familiar.
- Criado em 1942, oito semanas após Pearl Harbor, pelo decreto presidencial
número 9066 de Roosevelt - explicou Josh. - Os Americanos de origem japonesa
foram considerados um perigo para a segurança. Por isso, apesar de dois terços
serem cidadãos americanos, 110.000 foram concentrados, aprisionados em dez
campos ou centros de deslocados. O lago Tule era um deles, era um dos piores
campos de concentração da América, e foram aqui internados 18.000 americanos
japoneses.
- Não gosto dessa mancha na nossa história mais do que tu disse Collins. -
Mas que tem isso a ver com a 35.a emenda?
- Pode verificar pessoalmente.
Josh abriu a porta de trás do Mercury e saiu. Collins seguiu o filho, com o
vento seco e quente a bater-lhe no rosto, tentando descobrir qualquer relação.
Percebeu que estavam perto do que parecia ser uma vasta fazenda moderna ou uma
instalação fabril:
uma série de edifícios de tijolo e de barracas de chapa ondulada, por trás de uma
nova barreira de arame farpado.
- Isto é o lago Tule?
- Era - disse Josh com ênfase -, mas agora já não é. Foi o nosso campo de
concentração mais duro, construído em 26 mil acres do leito seco do lago. Agora é
algo mais, e foi por isso que o trouxe aqui.
- Onde queres chegar, Josh?
- Antes de lhe dizer, deixe-me mostrar-lhe uma coisa que o vai esclarecer. -
Segurava um grande sobrescrito, que abriu. Retirou meia dúzia de fotografias
e passou-as ao pai.
- Primeiro veja isto. Foram obtidas através da Liga dos cidadãos americanos
de origem japonesa. Estas fotografias do antigo campo foram tiradas precisamente
deste ponto, há exatamente um ano. O que é que vê?
Collins examinou a fotografia. O que via eram fragmentos destroçados da
barreira de arame farpado assentado em suportes de cimento. Atrás, via alguns restos
de barracões em ruínas, edifícios de paredes esburacadas e uma torre de vigia em
desagregação.
- E então? - perguntou Collins, devolvendo as fotografias.- Não se vê nada.
- Exatamente - disse Josh. - Aí é que bate o ponto. Foram tiradas há um ano e
não se via nada. Só ruínas. - Abarcou com um gesto a cena que presenciavam. - Veja
agora o lago Tule e diga-me o que lhe parece. - Confuso, Collins perscrutava o
horizonte enquanto o filho prosseguia: -Uma nova barreira de segurança com fios
eletrificados a encimar os alicerces de betão reforçado. E lá adiante, veja os
edifícios. Uma nova torre de vigia gigantesca, com holofotes. Três edifícios de
cimento novos em
folha e mais quatro em construção. Que quer isto dizer?
- Que estão a fazer novas construções. Só isso.
- Mas que espécie de construção? Vou dizer-lhe do que se trata. É um projeto
secreto do governo. Estão a reconstruir um novo lago Tule. Estão a preparar um
futuro
campo de concentração para as vítimas das prisões em massa assim que a 35.a
emenda entrar em vigor.
Collins estava surpreso e irritado. Tinha perdido um dia, sofrido incômodos
desnecessários para ver o que não passava de um produto da imaginação imatura e
tonta do seu filho.
- Ora, Josh, certamente não esperas que eu acredite nisso. Onde é que foste
buscar tal idéia?
A boca de Josh comprimiu-se.
- Temos as nossas fontes. É uma obra do governo. É nova. Não restam
dúvidas de que se trata de uma espécie de campo de internamento ou prisão. Se não
é, porque foi reconstruída a torre de vigia?
- Há um cento de projetos do governo que podem tê-las por motivos de
segurança.
- Não tão grandes nem do tipo desta.
- Apre, é evidente que não se trata de um campo de concentração ou lá o que
queiras chamar-lhe. Já não temos disso no país e nunca mais voltaremos a ter. Meu
Deus, Josh, o que dizes é o mesmo tipo de disparate, o mesmo tipo de boato
infundado que corria em 1971 quando um punhado de jornais clandestinos
acusavam o presidente Nixon e o Procurador-Geral Mitchell de fazerem reviver os
centros de deslocados japoneses, como campos prisionais para os dissidentes e
manifestantes. Nunca ninguém o conseguiu provar.
- Mas também ninguém o refutou.
Pelo canto do olho, Collins viu que, por trás da barreira, vinham dois homens
a caminho do portão da entrada.
- Pois bem, eu vou refutar a idéia que fazes deste projeto - disse Collins com
determinação. - Espera aqui.
Quando Collins se dirigiu ao portão, viu os dois homens, um de uniforme
militar e o outro de camiseta e calças de ganga, apertarem as mãos e separarem-se.
Enquanto o uniformizado ficava junto do portão, o outro dirigia-se novamente para
o local das construções lá ao longe. Collins apressou o passo ao aproximar-se do
militar, que observava a sua chegada com um olhar inquiridor.
- O senhor é guarda aqui? - perguntou Collins.
- Sou.
- É uma propriedade privada ou do Estado?
- É do governo federal. Posso ser-lhe útil em alguma coisa?
- Pertenço ao governo. Gostava de dar uma olhadela, se me permitir.
O guarda avaliou Collins rapidamente.
- Não sei se posso. Se é do governo... - Olhou à volta, pôs a mão em concha
junto da boca e gritou: - Eh, Tim! - O vulto que se retirava parou e voltou atrás. -
Este amigo diz que é do governo. É melhor falares com ele.
A outra figura, um homem corpulento de rosto avermelhado, aproximou-se.
Collins esperou. Quando o homem corpulento de camiseta e calças de ganga
chegou ao portão, o guarda desviou-se para o lado.
- Sou Nordquist, o encarregado da obra - disse o homem corpulento. - Em
que posso servi-lo?
- Bem... Eu queria dar uma volta por aí. - Esteve tentado a mostrar as suas
credenciais, a identificar-se como Procurador-Geral dos Estados Unidos, mas achou
melhor não o fazer. Poderia propalar-se a sua participação nesta brincadeira de
crianças, neste disparate, e faria figura de tolo. - Faço parte do... do governo... do
Departamento
de Justiça, em Washington.
- Precisa ter uma autorização para entrar. Ou pelo menos uma palavra do
Pentágono ou da Armada...
- Não tenho - disse Collins, sem convicção.
- Lamento, mas não posso deixá-lo entrar sem uma autorização especial -
disse Nordquist. - Esta área é interdita.
- Disse da Armada?
- Não é segredo - explicou o encarregado das obras. - Isto é um ramo do
Projeto Sangüíneo. Chama-se FUB. Conhece?
- Não sei bem...
- FUB: Freqüência Ultra-Baixa. É uma iniciativa da Armada dos Estados
Unidos. Um sistema de comunicação para contatar submarinos imersos. Se lê os
jornais, já deve ter ouvido falar nisso.
- Não tenho podido lê-los durante a minha viagem de inspeção. De qualquer
maneira, parece-me que vim a um lugar errado.
- Parece que sim. Mas volte com a devida autorização e terei muito gosto em
lhe mostrar tudo isto.
- Bem, obrigado, de qualquer forma.
Viu o homem retirar-se. Então, sentindo-se tolo e manipulado, arrastou-se
penosamente para junto de Josh que o esperava em frente do carro. Tentou não se
mostrar ressentido com o filho. Explicou a situação a Josh, repetindo exatamente o
que Nordquist lhe dissera.
- E é tudo - concluiu. - E agora podes dizer a Pierce e a todos os teus amigos
que as suspeitas são totalmente fantasistas. Trata-se de um empreendimento da
Armada e nada mais.
Josh não estava convencido.
- Ora, pai, não estava certamente à espera que eles lhe chamassem um campo
de detenção, pois não? - Persistia obstinado. - E para que são todos aqueles
barracões, aquelas prisões? - perguntou.
- Só tu é que dizes que são prisões.
- O pessoal da marinha não precisa daquele tipo de instalações. E continuo na
minha: porque é que há uma torre de vigia? Para que são as barreiras eletrificadas?
Porquê tanto segredo?
- Ele disse que não era segredo, que tinha vindo nos jornais.
- Apostava. Escute, pai, nós temos fontes seguras. O que não quer é encarar o
que o Presidente e o FBI estão a planejar fazer. Estão a mistificá-lo de toda a
maneira.
Collins dirigiu-se para o automóvel.
- Talvez sejas tu quem está a ser mistificado - retorquiu para trás. - Vamos
embora, voltemos à civilização.
A longa viagem de regresso foi silenciosa. Só quando chegaram ao Aeroporto
Metropolitano de Sacramento e se preparavam para a despedida (seguindo ele para
Los Angeles e o filho para Berkeley, via Oakland), é que Collins lhe ofereceu um
sorriso.
Colocou o braço à volta do ombro de Josh.
- Repara que não tenho nada contra o fato de seres um ativista. Até tenho
orgulho nisso. Mas tens de ter muito cuidado ao fazer acusações. Tens de ter certeza
dos fatos antes de os tornares públicos.
- Estou certíssimo a respeito deste.
A obstinação do rapaz era exasperante. Com grande esforço, Collins
conseguiu manter o bom-humor.
- Muito bem. E se eu conseguir provar-te que aquilo que vimos é um projeto
legítimo da Armada? Se o provar, ficarás convencido?
Josh sorriu pela primeira vez.
- É uma proposta justa. Se o pai o provar, então admitirei que estava errado.
Mas tem de o provar.
- Dou-te a minha palavra de que o farei. Bem, agora tenho de apanhar o
avião. Vou encontrar-me com um deputado que está do teu lado. Mas esse terá de
provar-me muitas outras coisas.
Quando chegou ao Hotel Beverly Hills, vindo do aeroporto internacional de
Los Angeles, anunciou à pressa a sua entrada. Mal teve tempo para abrir as malas no
apartamento de três divisões que alugara nas traseiras do hotel, para se lavar e mudar
de camisa. Instantes depois saía a correr para o parque de estacionamento, pois o
encontro
com o deputado Olin Keefe no Hotel Beverly Wilshire estava aprazado para as dez
horas e já passavam cinco minutos.
O guarda-costas Oakes, que substituía Hogan, esperava-o à porta do
apartamento. Atravessaram rapidamente os carreiros sinuosos que levavam ao hotel,
passaram pelo átrio e entraram no Lincoln Continental que os esperava. Cruzaram o
Sunset Boulevard, dirigiram-se para o Wilshire Boulevard e, em cinco minutos,
paravam diante do hotel.
Lá dentro, depois de saberem pelo recepcionista o número da suite alugada
no quarto andar, Collins telefonou para cima. Keefe atendeu de imediato.
- Já comeu? - perguntou Keefe.
- Não, hoje ainda quase não pude comer. No avião não serviam refeições.
Está a oferecer-me alguma coisa?
- Claro que estou. Vou já encomendar.
- Nesse caso, peça um sanduíche de pão de centeio com presunto e um chá
quente sem limão. Subo já.
- Ficamos à sua espera.
Collins percebeu do plural. Pensava que se ia encontrar com Keefe a sós.
Afinal ele estava acompanhado, mas talvez fosse apenas a mulher.
Quando entrou na pequena sala de estar de Keefe, Collins encontrou não um
mas dois estranhos, que se levantaram para o cumprimentar, e nenhum deles era a
mulher do deputado à Assembléia.
O afável Keefe, com um sorriso amigável no seu ar de querubim, vestia um
casaco desportivo de qualidade e calças de gabardine.
Apertou a mão de Collins com entusiasmo e apresentou-lhe de imediato os
seus companheiros.
- Espero que não se importe, mas tomei a liberdade de convidar dois dos
meus colegas da Assembléia. Dado que temos a sorte de o ter entre nós, pensei que
quanto mais informações lhe pudermos dar melhor... para si e para nós.
- Tenho muito prazer - disse Collins, um tanto desconcertado.
- Este é o deputado Yurkovich.
Yurkovich era um jovem sério, de sobrancelhas delgadas, com um tique
nervoso nos olhos e um bigode longo mas ralo. Collins apertou-lhe a mão.
- E este é o deputado Tobias, veterano da Assembléia.
Tobias era baixo, rubicundo, de olhos castanhos salientes.
- Faça o favor de se sentar num cadeirão. Vai precisar de estar bem sentado
para ouvir o que lhe contarmos - disse Keefe.
A frase pareceu-lhe um mau augúrio. Sentou-se numa poltrona e concordou
que um Scotch com gelo vinha a calhar. Acendeu um cigarro enquanto o hospedeiro
preparava a bebida.
- O seu sanduíche deve estar a chegar - disse Keefe. - com certeza que está
terrivelmente cansado com o vôo e a mudança de hora, por isso vamos tentar não lhe
tomar muito tempo. O melhor é irmos direto ao assunto.
- Façam o favor - disse Collins, aceitando o Scotch e bebendo um gole.
Os outros estavam sentados no sofá; Keefe puxou uma cadeira para junto da
mesa de café, em frente de Collins.
- Este assunto é importante para os quatro, incluindo-o a si - começou Keefe.
- Para si pode ser um abrir de olhos, embora eu saiba que o nosso amigo comum, o
senador Paul Hilliard, o elucidou na semana passada.
- Sim, é verdade - disse Collins tentando lembrar-se. Passara-se tanta coisa
desde o jantar com Hilliard. Além disso, estava cansado. Já passava da uma da
manhã na sua cabeça, ainda pela hora de Washington. Tomou outro gole de Scotch,
esperando que lhe devolvesse a memória. - Ele queria chamar-me a atenção para
qualquer... qualquer discrepância na taxa de criminalidade... na estatística... É isso,
não é?
- É isso mesmo - confirmou Keefe. - Espero que não se importe que
tenhamos uma discussão livre e franca a propósito deste e de outros assuntos que lhe
dizem respeito.
- É claro que não me importo. Sejam tão francos e livres quanto desejarem.
De repente Keefe tornou-se menos afável, pareceu até ligeiramente
perturbado.
- Comecei assim, porque se está realmente disposto a uma discussão franca,
não vai ter um serão agradável.
O aviso era inesperado.
- Como é que chegou a essa conclusão? - perguntou Collins, agora mais
desperto. - Diga o que tem a dizer.
- Muito bem. O que quero dizer é que nós os três, bem como muitos outros
legisladores do Estado da Califórnia que receiam falar abertamente, estão
muitíssimo desanimados com as táticas que você e o seu Departamento de Justiça
estão a utilizar para ganhar o apoio deste Estado na votação da 35.a emenda.
Collins acabou a bebida e apagou o cigarro.
- Que táticas? - perguntou. - Não empreguei nenhuma tática para influenciar a
vossa votação. Dou-lhe a minha palavra. Nada fiz nesse sentido.
- Então alguém o fez - interrompeu Tobias do sofá. - Alguém do seu
departamento está a tentar amedrontar os legisladores deste Estado para que
aprovem a emenda.
Collins franziu a testa.
- Se isso está a acontecer, digo-lhes de uma vez por todas que não tenho
absolutamente nada a ver com o assunto. Estão a fazer alegações vagas. Não
poderiam ser mais precisos?
- Deixem-me ser eu a continuar - disse Keefe aos seus colegas, e voltou-se
para Collins. - Muito bem, seremos precisos. Estamos a falar sobre as suas
estatísticas criminais, que tiveram aqui a mais ampla publicidade. Essas estatísticas
de crimes violentos e conspirações foram deliberadamente exageradas pelo FBI,
para amedrontar
o povo e os legisladores deste Estado, no sentido de estes apoiarem a 35.a emenda.
Já depois da ocasião em que o senador Hilliard discutiu este assunto consigo,
entrevistei pessoalmente uma dúzia, dos catorze existentes, de chefes da polícia a
esse respeito. Mais de metade concordaram que os números que enviam para o FBI
não são os mesmos que o Departamento de Justiça publica. Em qualquer parte, ao
longo do caminho, as estatísticas verdadeiras são alteradas, exageradas, falsificadas
mesmo.
Abalado pela veemência do seu interlocutor, Collins disse:
- Isso é uma acusação grave. Obteve declarações escritas desses policiais que
o comprovem?
- Não, não obtive - retorquiu Keefe. - Os chefes de polícia que se queixam
não querem ir tão longe. Estão demasiado dependentes da boa vontade e da
cooperação do FBI para o atacarem. No fundo, até simpatizam com o FBI. Estão no
mesmo campo de ação e têm um trabalho difícil presentemente. Julgo que os chefes
de polícia me falaram no assunto porque estão ressentidos por os terem feito parecer
incompetentes. Não, senhor Collins, não temos a menor prova escrita. Pedimos que
aceitássemos a sua palavra em como não está envolvido no assunto. Em
contrapartida, terá de aceitar a nossa palavra quanto às táticas que estão a ser usadas
pelo FBI.
- Posso estar pronto a fazê-lo, mas receio que o diretor Tynan não dê grande
crédito a provas baseadas apenas em palavras. Certamente que compreendem a
minha posição. Não posso ir junto do diretor Tynan, duvidar da sua integridade, ou
da de todo o Serviço, sem provas por escrito que corroborem as vossas acusações.
Agora, se conseguirem que esses chefes de polícia passem qualquer coisa a escrito...
- Não conseguimos - disse Keefe desanimado. - Já tentei, mas nada feito.
- Talvez eu possa tentar. Pode ser que eles não se importem de me apresentar
uma queixa a mim, como Procurador-Geral, ao passo que com vocês se recusavam a
fazê-lo. Têm os nomes dos chefes da polícia que entrevistaram?
- Tenho-os aqui.
Keefe ia pegar na sua pasta castanha, que jazia aberta sobre a mesa, quando
soou a campainha. Dirigiu-se à porta, deixou entrar o criado de serviço aos quartos e
indicou-lhe que o tabuleiro do sanduíche era para Collins. Assinada a conta, esperou
que o criado se retirasse para voltar à pasta.
Collins já tinha perdido o apetite, mas sabia que havia de ter fome se não
comesse. Pegou no sanduíche de presunto e queijo, regou-a com mostarda e
esforçou-se por comer. Estava a beber o chá quando Keefe voltou com um bloco de
notas. Keefe arrancou três páginas e estendeu-as a Collins.
- Os chefes de polícia que não quiseram falar estão riscados. Os outros oito
falaram. Tem aí os endereços e os números de telefone. Espero que tenha sorte.
Duvido, mas faço votos que tudo corra pelo melhor.
- Tentarei - disse Collins, dobrando as páginas e colocando-as no bolso do
casaco.
- O problema fundamental - disse Keefe, voltando a sentar-se é que essas
pessoas desconhecidas do departamento em que trabalha estão a desenvolver uma
campanha deliberada de temor na Califórnia. Parecem estar decididas a meter-nos a
35.a emenda pela garganta abaixo, custe o que custar - mesmo à custa da
honestidade e da decência.
- Se se refere à alteração das estatísticas...
- Refiro-me a muito mais coisas - disse Keefe.
- Conte-lhe - insistiu Yurkovich do sofá. - Conte-lhe toda a verdade.
- É o que vou fazer - garantiu-lhe Keefe. Esperou que Collins engolisse o que
tinha na boca e poisasse o resto do sanduíche, para prosseguir: - Aquilo que lhe vou
dizer não é limpo. Alterar as estatísticas é o menos. Alguém, em Washington, está a
brincar com as nossas vidas.
Collins descruzou as pernas e levantou-se.
- Que diz?
- Digo que está em curso uma campanha organizada pelo FBI para intimidar
certos membros do órgão legislativo, para nos atemorizar, recorrendo à chantagem...
A palavra chantagem fez a memória de Collins vogar para o encontro com o
padre Dubinski na igreja da Santíssima Trindade. O padre falara de chantagem nessa
ocasião. Agora este legislador da Califórnia fazia o mesmo. Collins esperou pela
continuação.
- ...Chantagem sutil, mas que não deixa de ser chantagem, do tipo mais vil
que é possível. Primeiro foi dirigida aos legisladores que estavam indecisos, que
ainda não tinham formado uma opinião sobre a 35.a emenda. O ataque foi dirigido
contra os deputados que... bem, que eram vulneráveis.
- Vulneráveis?
- Cujas vidas particulares não tinham sido um livro aberto. Deputados que
tinham qualquer coisa no passado que não queriam que fosse do domínio público.
Muitos recearam objetar ou protestar. Mas os deputados à Assembléia Yurkovich e
Tobias, embora pensassem que não era aconselhável denunciar o FBI...
- Porque a chantagem era demasiado sutil - interrompeu Yurkovich. - Não era
evidente. As nossas queixas podiam ser menosprezadas, ou mesmo refutadas.
Keefe concordou:
- Sim. De qualquer forma, os meus dois colegas, uma vez que não podiam
protestar publicamente, resolveram vir aqui e protestar pessoalmente na sua
presença. A princípio receavam que fizesse parte da maquinação. Mas o senador
Hilliard convenceu-me (antes mesmo de você o fazer), e eu convenci-os a eles de
que era um homem honesto e de confiança, talvez há muito pouco tempo no lugar
para perceber o que se passa nas suas costas. - Keefe fez uma pausa. Espero que esta
opinião seja correta.
Collins procurou um cigarro e levou-o à boca. Não se surpreendeu por ver a
mão tremer.
- Honesto e de confiança, sou. Mas o que é que se passa nas minhas costas?
Continue, diga-me mais.
Foi a vez de Yurkovich falar:
- Vou contar-lhe o que se passou comigo. Houve tempos em que eu era um
alcoólico. Até há cerca de oito anos. Finalmente, fui internado numa clínica para me
tratar. Deixei-me disso. Tenho levado uma vida correta, desde então. Ninguém
soube disso, à exceção da minha família mais chegada. Ora, há uma semana, dois
agentes do FBI - um chamava-se Parkhill, o outro Naughton - procuraram-me no
meu escritório em Sacramento. Disseram que precisavam da minha ajuda numa
investigação de que estavam a tratar. Era uma investigação difícil. Tais inquéritos
sobre as transgressões às leis federais tornar-se-iam mais fáceis, diziam eles, assim
que a 35.a emenda fosse aprovada. De momento, tinham de seguir o caminho mais
penoso. Queriam informações sobre uma certa clínica, uma casa de recolhimento de
bêbedos, na qual sabiam que tinha estado internado um legislador da Califórnia
durante cinco meses. Talvez eu lhes pudesse dizer mais sobre os proprietários dessa
clínica...
Yurkovich terminou rapidamente a sua declaração, abanando a cabeça com
renovada descrença.
- Foi diabólica a maneira de me insinuarem que sabiam. O meu segredo
absoluto estava nas mãos deles. Fiquei perturbadíssimo.
Collins também estava perturbado.
- Que é que eu podia dizer? Reconheci que tinha estado doente na clínica e
continuei a fingir acreditar que estavam a investigar os proprietários de uma cadeia
nacional de clínicas, suspeitos de envolvimento num caso de drogas ilegais. Contei-
lhes o que tinha visto e ouvido quando estive internado. Quando acabei,
agradeceram-me. Perguntei-lhes se todas essas informações ficavam em segredo.
Um deles respondeu: "Bem, isso não está nas nossas mãos. Pode falar com o diretor,
se quiser. Talvez ele chegue a um entendimento com o senhor." A seguir retiraram-
se. Eu tinha recebido o aviso. A 35.a emenda era boa para o meu país. Vote pela
35.a emenda e o diretor não consentirá que a sua hospitalização se torne pública. Se
não cooperar, ela será conhecida.
- Que vai fazer? - perguntou Collins.
- Lutei para chegar onde estou - disse Yurkovich simplesmente. - Gosto de
estar onde cheguei. Fui eleito por um eleitorado que só confia em pessoas sóbrias. -
Não tenho por onde escolher. Tenho de votar a favor da 35.a emenda.
- Tem certeza que a investigação era legítima? - perguntou Collins. - Não terá
interpretado mal o que lhe fizeram?
- Não me parece, mas é possível. Julgue por si mesmo. Pela minha parte, não
me arrisco.
O homem rotundo, que se sentava ao lado de Yurkovich, levantou o braço.
- Nem eu - disse o deputado à Assembléia, Tobias.
- Quer dizer que lhe aconteceu a mesma coisa? - perguntou Collins.
- Quase o mesmo - disse Tobias. - Foi no dia seguinte. Só que o FBI não me
procurou. Foram ter com... Bem, eu tenho uma amante e foi a ela que contactaram.
Sou um homem bem casado e com filhos. É pelo menos isso que parece à primeira
vista. Mas a minha mulher e eu estamos afastados há muito. No entanto, por amor
dos miúdos, continuamos casados; depois dos filhos terem seguido as suas vidas
continuamos a manter as aparências. Isso permite-lhe fazer vida social.
E a mim, permite-me fazer a minha vida oficial. Durante a maior parte destes anos,
tive sempre outra mulher em residência separada. Ninguém no mundo sabia disto,
exceto nós os três. Ora, na semana passada, o FBI contactou a minha amante. O
nome de um dos agentes era Lindenmeyer, se bem me lembro. Foram amáveis com
ela, assim que viram como estava assustada. Tentaram acalmá-la. Durante um
bocado falaram de outras coisas, não pessoais. Falaram mesmo acerca da 35.a
emenda... ah, como por mero acaso. Por fim, entraram no assunto. Eu estava num
comitê relacionado com os contratos do governo. Estavam a investigar alguém que
fazia parte do comitê e era suspeito. Por rotina, investigavam também os outros
membros. Desejavam saber se eu tinha alguma vez discutido os contratos do
governo com ela. Ela tentou dizer que não me conhecia muito bem. Limitaram-se a
ignorar os seus protestos. Estavam a par dos fatos. Sabiam quantos dias e quantas
horas por semana eu passara com ela em todos estes anos. Então, deram a entender
que ''se fosse preciso'', sim, acentuaram, "se fosse preciso'', tinham de a intimar.
Collins respirou lentamente.
- Custa-me a acreditar.
-Eu acredito - disse Tobias. - Não posso provar que o fizeram com o
propósito de influenciar o meu voto, mas resolvi proteger a minha mulher e a outra.
E proteger também a mim, naturalmente. Assim, alterei o meu voto. Abomino a
emenda, mas vou dizer ''Sim'' em voz alta e clara quando chegar a minha vez de
votar. A partir de agora, já sabe tudo, senhor Collins.
Collins ficou absorto. Sentia-se cada vez mais indisposto.
- E aconteceu o mesmo a outros deputados?
- Não sei - disse Tobias. - São coisas em que não posso falar pelos outros.
Cada um de nós tem a sua vida privada e quer mantê-la privada.
Collins olhava o seu hospedeiro.
- E consigo, que se passou?
- Ninguém me procurou, porque sabem o que penso, e sabem que os poria na
rua. Também tenho a minha vida particular e calculo que eles possam trazer a lume
qualquer coisa. Mas mandá-los-ei para o diabo. Não arrisco tanto como os meus
amigos. Prefiro expor-me do que ceder a esses canalhas, sejam eles quem forem.
- Quem pensa que são?
- Não sei.
- Também eu não - disse Collins. - Não é o meu gabinete, disso podem estar
certos. Se estamos perante uma campanha deliberada, pode ter sido organizada por
qualquer pessoa, desde o Presidente ou o diretor do FBI até a um qualquer dos seus
subordinados.
- Pode fazer alguma coisa? - pretendeu Keefe saber. Collins levantou-se.
- Não tenho certeza, uma vez que não temos provas seguras de que essas
visitas significassem intimidação. Podem ter sido investigações em curso,
devidamente estruturadas, ou podem ter sido formas de chantagem.
- Como vai descobrir de qual das coisas se trata?
- Investigando os investigadores - respondeu Collins.
***
De volta ao Hotel Beverly Hills, no balcão da recepção, Chris Collins recebeu
do empregado uma mensagem telefônica juntamente com as chaves do seu
apartamento. Desdobrou a mensagem. O telefonema chegara há uma hora. Dizia:
''O encarregado do lago Tule disse-lhe que o empreendimento não era secreto
e que tinha sido publicado na imprensa. Todos nós passamos horas à procura durante
a noite. Mas a iniciativa da Armada, que lhe disseram estar em curso no lago Tule,
nunca foi referida na imprensa. Nem uma palavra a esse respeito veio a público.
Pensei que gostasse de saber. Josh Collins."
Já quase se tinha esquecido. Havia a promessa feita ao filho de que provaria
não ser o empreendimento do lago Tule um futuro campo de concentração. Tinha de
tratar disso. Havia também a verificar a alteração das estatísticas da Califórnia.
Havia ainda a estranha coincidência das investigações de agentes do FBI,
ameaçando os deputados do Estado da Califórnia. E, acima de tudo isso,
sobrepondo-se a todos os outros afazeres, havia o Documento R. Primeiro o
essencial.
Deu a volta ao balcão da recepção, recordado que as cabinas telefônicas eram
perto da entrada para o campo de pólo. Encontrou-as e estavam vazias.
Fechando-se numa delas, fez uma ligação direta interurbana para o Adjunto do
Procurador-Geral Ed Schrader. Sabia que o ia acordar (eram quase três da manhã na
Virgínia), mas queria conhecer a realidade o mais depressa possível. No dia seguinte
estaria ocupadíssimo.
Uma voz sonolenta respondeu ao telefone.
- Está lá, não me diga que marcou um número errado...
- Não, Ed. É Chris que fala. Ouça, quero que me descubra uma coisa o mais
cedo possível, logo de manhã. Tem um lápis? - Explicou que a Armada dos Estados
Unidos tinha uma base terrestre com um sistema de comunicações com submarinos
chamado Projeto Sangüíneo. Uma das maiores instalações estava presentemente a
ser construída, já em fase de conclusão, no Norte da Califórnia. - Descubra o que
puder a esse respeito. Não vou para os estúdios da televisão antes do meio-dia e um
quarto; entretanto estarei nos meus aposentos em reuniões. Telefone-me assim que
tiver alguma informação. Agora desligue e vá dormir outra vez.
Saiu de cabina, encontrou o guarda-costas no átrio, acompanhou-o até ao
apartamento pelos carreiros sinuosos bordejados de arbustos, deu-lhe as boas-noites
e entrou. Estava terrivelmente cansado. Vagueou ruidosamente pela sala de estar,
tirando o casaco e a gravata, e tentando sintetizar os acontecimentos do dia -
especialmente a reunião com Keefe, Yurkovich e Tobias. As acusações sobre uma
seita desconhecida dentro do FBI, ou contra alguém colocado mais alto, tinham sido
graves. Tentou julgar a veracidade do que lhe fora dito pelos três deputados. Não
conseguia vislumbrar nenhuma razão válida para que mentissem. Que lucrariam em
inventar tais histórias? com que fim? Não encontrava resposta. Portanto, deviam
estar a falar verdade. No entanto, sabia que não podia agir baseado exclusivamente
no que lhe tinham dito, nem contar o que se passara ao Presidente, a Tynan ou a
Adcock sem antes fazer uma verificação pessoal. Não sabia por onde começar. Teria
de esperar até de manhã, para que o seu espírito fosse mais operacional.
Tirando a camisa, entrou no quarto mergulhado na escuridão, para passar ao
banheiro, acendendo a luz. Despiu-se, lavou-se, escovou os dentes, percebeu que
estava com olheiras e procurou o pijama. Não estava pendurado na porta, o que o
levou a pensar que a empregada do hotel o teria posto provavelmente no travesseiro
da sua cama de casal.
Apagando a luz da casa de banho, entrou nu no quarto e dirigiu-se às
apalpadelas até à cama, onde uma nesga de luz vinda da frincha da porta da sala de
estar incidia sobre o pijama. Preparou-se para o vestir, desejoso de se meter na cama
e dormir, mas mal tinha pegado nele quando sentiu o pulso direito tocar em qualquer
coisa mole e carnuda. Lançou um grito de espanto e baixou a mão, encontrando
outra mão que lhe agarrou o pulso.
O coração pulsava-lhe doidamente.
- Mas que raio... - bradou.
- Vem para a cama, querido - murmurou uma voz feminina. Estava
demasiado ocupado à procura da luz, tateando desesperadamente em busca do
interruptor, para afastar a mão da mulher que lhe acariciava o pênis.
De repente, uma luz suave lançou um círculo de amarelo sobre a cama e ela
apareceu, arrastando-se para o seu lado da cama, sorrindo-lhe, sem retirar a mão de
entre as pernas, acariciando-o. Ficou petrificado, demasiado incrédulo para agir ou
falar. Ela era uma rapariga bonita, certamente com pouco mais de vinte anos, cabelo
solto, castanho-dourado, lábios vermelhos, grandes peitos trêmulos, ventre liso e um
longo triângulo de pêlos púbicos.
- Olá - disse ela numa voz abafada. - Sou a Kitty. Pensava que nunca mais
vinha.
- Mas afinal quem é você? - exclamou ele. Baixou a mão e agarrou na dela,
obrigando-a a tirá-la do sexo. - Cometeu um erro, certamente está enganada...
- É este o apartamento cujo número me indicaram. Disseram-me que
esperasse pelo senhor Collins.
Então não era engano. Quem teria sido o amigo desmiolado que lhe arranjara
uma brincadeira de mau gosto como esta?
- Quem lhe disse para vir aqui?
- Sou um presente de um amigo seu.
- Que amigo?
- Ele não disse o nome. Nunca dizem. Mas pagou-me logo. Duzentos dólares.
Sou cara. - Ria-se. - Ele disse que era uma surpresa, que havia de gostar. E prometo-
lhe
que há de gostar, senhor Collins. Agora venha para aqui, seja bom menino...
- Como é que conseguiu entrar?
- Alguns empregados conhecem-me. Gratifico-os bem. - Ela observava-o. -
Ah, és bem bonito. Gosto dos homens altos. Mas falas muito. Vem, vem para a cama
com a Kitty. Prometo que vais passar um bom bocado. Ficarei toda a noite.
- O raio é que você fica! - disse-lhe quase a gritar, agarrando-lhe o pulso
quando ela tentou novamente chegar-lhe ao sexo. Afastou-lhe a mão. - Agora saia,
imediatamente, saia. Não quero aqui ninguém, nem você nem outra. Alguém esteve
a tentar pregar uma partida, uma partida infantil...
- Fui paga...
- Ponha-se lá fora! - Agarrou-a pelos braços e fê-la sentar-se. Vista-se e saia
daqui imediatamente.
- Nunca ninguém me tratou assim.
- Pois eu trato. - Agarrou no pijama. - Enquanto vou ao banheiro, espero que
se vista e desapareça.
Entrou furioso na casa de banho, enfiou as calças e abotoou o casaco.
Quando voltou, ela tinha acabado de vestir a blusa e enfiava a saia azul
marinho.
- Depressa.
Ela correu o fecho da saia.
- O seu amigo disse que se havia de portar assim ao princípio, mas que não o
tomasse a sério. - Inclinou a cabeça para ele, sorriu novamente e aproximou-se. -
Está a brincar, não está?
Pegou-lhe no braço com dureza e empurrou-a para a porta.
- Ponha-se a mexer.
- Deixe-me, que me está a magoar.
Ele abrandou a pressão, mas levou-a para a sala de estar e arrastou-a
rapidamente para a porta da entrada.
À porta, respirando fortemente, cedeu um pouco.
- Lamento que alguém a tenha utilizado desta maneira - disse ele. - Foi um
engano e lamento muito. Boa noite.
Ela tentou compor-se e sair com alguma dignidade.
- É tempo perdido. Você nem sequer seria capaz de me aguentar. Ele
escancarou a porta, e enquanto a rapariga saía divisou uma sombra que se levantava
por trás de uma sebe. Era um homem que apontava uma máquina fotográfica.
Por instinto, Collins escondeu-se atrás da porta no preciso instante em que o ''flash''
era disparado. Atirou-se contra a porta, fechando-a com estrondo. Ficou encostado,
ofegante, sabendo que o fotógrafo tinha apanhado Kitty mas não a ele.
Depois, fechou a porta à chave. Abalado, cambaleou até ao bar para preparar
uma bebida.
Se estava indeciso quanto ao significado do que se passara nesse dia, não
tinha dúvidas quanto ao que se passara à noite. Não se tratara de uma brincadeira
estúpida perpetrada por um amigo de faculdade ou de sociedade. Tinha sido muito
mais diabólico. Alguém tinha tentado apanhá-lo em falta, comprometê-lo. Mas
quem? E porquê? Proponentes da 35.a emenda? Impossível, visto que sempre se
mostrara publicamente do seu lado. A menos que quisessem assegurar-se de que
ficava desse lado. Inimigos da emenda? Também era impossível pensar que homens
como Keefe ou Pierce chegassem a tais extremos para o obrigar a mudar de posição.
Incrível, pensou. Então, ainda abalado, preparou outra bebida, para aguardar a luz do
dia, quando as coisas se tornam mais claras.
A luz do dia trouxera-lhe, de fato, maior claridade para as coisas obscuras
que tinham ocupado a sua mente durante o sono conturbado.
A manhã trouxera alguma luz.
O pequeno almoço tardio e demorado com os dois Delegados do Ministério
Público tinha-lhe permitido tratar de diversos assuntos de rotina do Departamento de
Justiça. Uma reunião com uma delegação de três advogados da Associação
Americana do Foro tinha sido muito amena. Uma entrevista com uma jovem
jornalista do Los Angeles Times tinha sido uma espécie de treino para tentar evitar
um excessivo comprometimento com a 35.a emenda, falando das reformas
profundas que eram necessárias no sistema judicial americano e procurando
conhecer as opiniões de um jornalista sobre a escalada do crime no Sul da
Califórnia.
Por fim, Collins ficara só com o telefone. Pensara telefonar aos oito chefes da
polícia que se queixaram ao deputado Keefe das alterações das estatísticas criminais
da Califórnia por parte do FBI. Mas acabara por só telefonar a três. Logo que
sabiam que estavam a falar com o Procurador-Geral, todos eles evitavam responder
às perguntas. Embora um admitisse uma "ligeira discrepância" entre os números
apresentados ao FBI e os publicados, imputava esse fato a "um possível erro de
computador". Todos eles se recusavam a reconhecer terem-se queixado a Keefe
sobre exageros das estatísticas do FBI. Todos eles disseram, à sua maneira, que o
deputado Keefe os tinha compreendido mal. Ou os chefes da polícia tinham
protestado junto de Keefe mas não desejavam fazer o mesmo junto do Procurador-
Geral, ou Keefe os tinha entendido mal. Em qualquer das hipóteses, o inquérito não
lhe tinha permitido tirar conclusões.
Depois, outro fato o viera abalar. Na noite anterior, tinha apontado os nomes
dos agentes especiais do FBI que tinham contactado com Yurkovich e Tobias:
Parkhill,
Naughton, Lindenmeyer. Collins tinha pensado se seria melhor tentar descobri-los
através das delegações do FBI na Califórnia ou falando diretamente com Tynan ou
Adcock. Acabara por decidir ser mais circunspecto. Passado algum tempo,
telefonara a Marion, a sua secretária.
- Marion, quero que faça uma pergunta ao FBI. Não deve partir de mim.
Diga que se trata apenas de uma investigação rotineira de alguém do serviço de
Conselho Legal. Tem um lápis? Bem, pergunte-lhes se dois agentes especiais do
FBI na Califórnia, um chamado Parkhill e o outro Naughton, entrevistaram o
deputado Yurkovich na semana passada. - Soletrou o nome do deputado. - E
pergunte também se um tal agente Lindenmeyer contactou... - Viu que não tinha o
nome da amante do deputado Tobias. - Se... se contactou alguém em Sacramento no
decurso de uma investigação sobre um comitê da Assembléia em que participa o
deputado Tobias. Estou no hotel. Telefone-me assim que puder.
Vagueara pela sala de estar enquanto esperava. Depois pegara numa cópia do
discurso e burilara algumas frases. Passados quinze minutos, o telefone tocara. Era
Marion.
- É muito estranho, senhor Collins. O FBI diz que não tem na Califórnia
agentes especiais chamados Parkhill, Naughton ou Lindenmeyer. De fato, nem
sequer têm pessoas com esse nome em todo o país.
Como tudo o mais, também isso se tornara um quebra-cabeças. Não havia
agentes chamados Parkhill, Naughton ou Lindenmeyer. No entanto, o deputado
Yurkovich tinha sido entrevistado por Parkhill e Naughton, e a amante do deputado
Tobias tinha sido contactada por Lindenmeyer. Isso podia significar que Yurkovich
e Tobias tinham percebido nomes errados. Impossível. Ou então tinham ambos
mentido a Collins. Estava fora de questão. Ou podia ainda querer dizer outra coisa -
igualmente improvável, mas muito mais sinistra. Podia querer dizer que o FBI
mantinha um corpo especial de agentes - um corpo secreto, não referenciado - usado
para intimidar os legisladores da Califórnia. Collins encarou essa possibilidade. Em
geral, Collins era uma pessoa realista que se atinha aos fatos, raramente dada a vôos
fantasiosos ou à imaginação de melodramas. Em circunstâncias normais, teria
afastado a possibilidade de um corpo secreto por demasiado sinistra para ser tomada
a sério - exceto por uma razão. O seu predecessor no cargo tinha guardado as
últimas palavras para o avisar de um perigo terrível: um perigo chamado Documento
R. Se era possível aceitar como um fato a existência de tal documento que ameaçava
a... a quê?... a segurança do país?... também se podia aceitar a possibilidade de
agentes desconhecidos do FBI ameaçar os deputados da Califórnia, tal como um
conhecido ameaçara o padre Dubinski.
Não lhe agradava a evolução das coisas. Enquanto se dirigia para o quarto
para vestir um terno, antes de ir gravar o programa de televisão com Pierce e
pronunciar o discurso na Associação, não lhe agradou a idéia de ter sido alcandorado
a uma posição em que devia conhecer tudo sobre o crime no país. Contudo,
decorriam atividades à sua volta, atividades que tudo se assemelhavam a atos
criminosos e de que não sabia praticamente nada. Tudo isso tinha sido gerado, de
uma maneira ou de outra, pela atmosfera criada pela 35.a emenda. Que aconteceria
então se a emenda se tornasse efetivamente lei deste país, pensou. Tinha acabado de
mudar de terno, quando o telefone começou a tocar na sala de estar. Acorreu à sala e
levantou o auscultador ao quinto toque. Ouviu a voz de Ed Schrader em
Washington.
- Chris, é sobre a tarefa que me destinou esta noite.
Quase se tinha esquecido do telefonema para Schrader na noite anterior.
Tinha-lhe falado do empreendimento do lago Tule apresentado pelo filho, da
construção de um novo ramo do Projeto Sangüíneo. Desejava que Schrader lhe
confirmasse a existência das instalações da Armada para poder provar ao filho, Josh,
que ele estava errado na sua paranóia de campos de concentração e para o chamar à
razão.
- Sim, Ed. O que descobriu?
- Recebi esta informação de fontes autorizadas do Pentágono. O Projeto
Sangüíneo da Armada ficou concluído há três anos. Não há novas instalações em
construção nem reparações nas existentes. Nenhuma das instalações se situa perto do
lago Tule.
Nem queria acreditar no que ouvia.
- Está a dizer-me que a Armada não tem nenhum projeto no lago Tule?
- Nenhum.
- Mas o encarregado da obra disse-me... Não, não tem importância. Mas estão
a construir lá alguma coisa. É um projeto do governo. Estão a construir qualquer
coisa.
- Bem, então não é certamente o que julgou.
- Não, pois não... - disse vagarosamente. - Obrigado, Ed.
Admitia pela primeira vez a possibilidade de o seu filho, Josh, poder ter
razão. E Keefe, Yurkovich e Tobias, também podiam ter razão.
Durante os vinte minutos de percurso para os estúdios da televisão, reviu as
crescentes provas de que se passava algo sinistro. O Documento R, que era um
perigo que devia ser exposto. Falsificação das estatísticas criminais da Califórnia.
Um campo de detenção secreto na Califórnia. Contudo, fora o menor acontecimento
aquele que mais o perturbara. O seu espírito voltou ao fotógrafo escondido junto do
apartamento na noite anterior, tentando caçá-lo com a pega que tinham metido lá
dentro. Isso não era um boato. Isso era uma experiência pessoal.
Estava cheio de suspeitas e dúvidas sobre os que o rodeavam, os paladinos da
35.a emenda, bem como sobre a própria emenda. Acima de tudo, não estava com
disposição para defender a emenda num programa de televisão de âmbito nacional.
Repugnava-lhe o papel que tinha de desempenhar. Desejava dar meia volta e ir-se
embora.
Mas era demasiado tarde. Já tinham chegado à Beverley Boulevard e já via lá no alto
os estúdios da televisão.
Collins sentou-se na cadeira da sala de caracterização, com um pano a
proteger-lhe a camisa, observando os reflexos no espelho enquanto o caracterizador
lhe aplicava
um pó enfarinhado de tom castanho no rosto pálido.
Viu também, no espelho, a produtora de À Procura da Verdade, uma jovem
mulher de ar fino chamada Monica Evans, quando ela apareceu à porta por trás dele.
- Como vai isso, senhor Procurador-Geral? - perguntou.
- Creio que estou quase pronto - respondeu Collins.
- Mais alguns minutos, Monica, e é todo seu - prometeu o caracterizador.
- Espero que se cumpra o horário - acrescentou Collins. - Logo a seguir, sou
esperado no Century Plaza para discursar na Associação do Foro. Vai ser apertado.
- Ficará despachado muito antes - assegurou-lhe Monica Evans. - Tony Pierce
já está no estúdio com o nosso moderador, Brant Vanbrugh. Já estão caracterizados.
Estão preparados para começar assim que estiver pronto.
Para Collins, isso era um pequeno alívio. Receara a possibilidade de ser
engaiolado com Tony Pierce nesta sala de caracterização antes de começar o
programa e de ser forçado a conversar com ele. Uma discussão formal com Pierce,
na televisão, já era bastante desagradável. Mas uma conversa privada teria sido
insuportável.
- Ficarei à sua espera no átrio para o levar ao estúdio - disse Monica Evans,
desaparecendo de imediato.
Collins continuou a observar-se no espelho e não gostou do que viu. Apesar
dos cosméticos, dos cremes e dos pós que lhe cobriam todas as rugas e todos os
sulcos do rosto, aparecia aos seus próprios olhos como um cadáver que um agente
funerário tentava tornar apresentável. Porque estaria aqui, pensou, para defender
uma bomba que arrancaria a Declaração de Direitos da Constituição? O que o teria
feito alinhar, pensou, com antiliberais como o Presidente Wadsworth e Vernon T.
Tynan? Como se teria tornado um prosélito da horrenda 35.a emenda? Na difusa
claridade das lâmpadas teatralmente dispostas à volta do espelho, houve uma súbita
iluminação. Até agora, tinha racionalizado constantemente a sua posição com
sofismas. Como um bom entre os maus, poderia modificar-lhes o rumo. Contudo,
não tinha conseguido fazê-lo, ou nem sequer tentara realmente. Como membro do
Gabinete, tinha escolhido permanecer, porque tinha assuntos inacabados, a sua
própria solução para a criminalidade, que era mais humana e decente. No entanto,
não tinha tratado desses assuntos. Como Procurador-Geral, podia realizar coisas
mais importantes que a 35.a emenda. Mas sabia que esse outro trabalho não tinha
significado comparado com a extrema importância da nova emenda. Em resumo:
todas as suas racionalizações não tinham passado de fogo de vista. Sabia porque
estava aqui. Sabia o que o trouxera aqui. Sabia como isso tinha acontecido. Estava a
descoberto, visto à claridade do espelho, e era fácil de identificar. Era a ambição.
Sim, a ambição tinha sido o motor que o levou pelo caminho errado. A ambição de
conseguir uma posição, para mostrar ao pai. De conseguir um lugar à sua própria
custa. A explicação era de um freudismo elementar, mas era precisamente essa. Ser
o que não era, para vencer. Para mostrar ao pai. Ser alguém por qualquer preço.
Agora, tudo isso era ridículo. Nada havia para mostrar ao pai. O pai estava morto.
Havia apenas ele. E já pouco dele restava.
- Pronto, senhor Collins - disse o caracterizador, retirando o pano. - Já pode
ir.
Ir aonde? Saiu da cadeira. Agradeceu.
No átrio, encontrou Monica Evans e seguiu-a rapidamente até ao amplo
estúdio de televisão.
Emergiram de um monte de cenários para um brilhante quadrado de luzes.
Havia três câmaras volumosas, duas delas móveis. Os técnicos andavam numa roda
viva. A atenção centrava-se numa pequena plataforma que tinha sido decorada como
uma pequena biblioteca particular, com três cadeiras giratórias agrupadas à volta de
uma mesa maciça.
Dois homens conversavam na plataforma.
- Deixe-me apresentar-lhe Brant Vanbrugh, o moderador, e Tony Pierce -
disse a produtora.
Embora Collins nunca tivesse encontrado Pierce pessoalmente, reconheceu-o
de imediato dos retratos dos jornais e de anteriores presenças na televisão. Ver
Pierce em pessoa foi uma desilusão. Collins desejava um vilão, mas o que viu foi
um ser humano simples e insinuante. Pierce tinha cabelos ruivos e um rosto de meia
idade sardento e franco, animado pelo entusiasmo. Era elegante, ágil, media cerca de
um metro e sessenta, vestia um terno simples de bom corte.
O coração de Collins caiu-lhe aos pés. Tinha esperado não só um vilão mas
também um inimigo, mas agora o único inimigo que conseguia descobrir não era
senão ele próprio.
Monica Evans aproximou-o e fez as apresentações.
- Tenho muito prazer em encontrá-lo finalmente, senhor Collins - disse
Pierce. - O pouco que sei de si vem-me do que li e do seu filho, Josh. É um ótimo
rapaz.
- Ele diz muito bem de si - respondeu Collins, desgraçadamente convencido
de que Pierce o observava para descobrir como tal pai tinha produzido tal filho.
- Meus senhores - interrompeu o moderador. - Receio que não disponhamos
de muito tempo.
Era um homem novo, vivo, com um falso ar de dirigente juvenil, mas com
um espírito (Collins já tinha visto o programa) que parecia feito de aço. Um
ambicioso, pensou Collins. Depois pensou: olha quem fala.
Vanbrugh conduziu-os às cadeiras respectivas, que o ladeavam. Enquanto
alguém apertava o pequeno microfone à volta do pescoço de Collins, ouviu
Vanbrugh dirigir-se-lhe de novo.
- Começaremos a gravar dentro de dois minutos. Esta emissão de À Procura
da Verdade estará no ar de costa a costa às primeiras horas da noite. O que fizerem
vai tal qual. Não há arranjos. Haverá duas paragens para a publicidade. Eis as linhas
gerais. Eu abro com a questão a ser discutida: "A Califórnia deve ratificar a 35.a
emenda?" Apresento a seguir umas notas introdutórias sobre a emenda. Direi o que é
e qual é a sua situação presente. A câmara estará focada sobre mim. Depois a
câmara recuará para o mostrar, senhor Collins. Apresentá-lo-ei à audiência como
Procurador-Geral dos Estados Unidos e indicarei algumas das suas credenciais. Em
seguida, a câmara voltar-se-á para o senhor Pierce e para mim, e eu irei apresentá-lo,
senhor Pierce, como um ex-agente especial do FBI, exercendo atualmente a
advocacia, e chefe do grupo que se opõe à 35.a emenda e apoia a Declaração de
Direitos. Depois dar-lhe-ei a palavra, senhor Collins. Terá cerca de dois minutos
para fazer uma declaração inicial. Sugiro que se concentre nas razões que o levam a
apoiar a emenda. Suponho que quererá pintar um quadro carregado da situação da
criminalidade na América de hoje, e argumentar que são necessárias medidas
drásticas para preservar a nossa sociedade. Em seguida, será a sua vez, senhor
Pierce. Poderá dispor dos seus dois minutos iniciais. Não rebata logo o senhor
Collins. Limite-se a apresentar as suas razões para se opor à emenda. A seguir
passaremos a falar do que vier a propósito. Poderão começar o debate. Podem fazer
interrupções, mas não obstruam as intervenções. - Olhou para a frente. - Estamos
quase a começar. Quando a luz vermelha se acender na câmara central estamos a
gravar. Felicidades e mantenham a vivacidade.
A luz vermelha da câmara central começou a brilhar.
Sentindo-se indisposto e atordoado, Collins mal ouviu as observações iniciais
de Vanbrugh.
Ouviu o seu nome e compreendeu que estava a ser apresentado.
Correspondeu com um sorriso macilento para a câmara.
Depois, ouviu o nome de Tony Pierce. Espreitou para além do moderador. O
rosto aberto e franco de Pierce estava grave.
Ouviu novamente o seu nome, e a pergunta.
Lá ao longe, ouviu-se a falar.
- Em nenhum momento desde a Guerra Civil estiveram as nossas instituições
democráticas tão seriamente ameaçadas como estão hoje. A violência tornou-se
banal. Em 1975, dez em cada 100.000 americanos morriam assassinados. Hoje, vinte
e dois em cada 100.000 americanos morrem assassinados. Há alguns anos, três
matemáticos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, depois de fazerem um
estudo sobre o nível crescente da criminalidade, concluíram: "Um rapaz americano
citadino nascido em 1974 tem mais probabilidades de morrer assassinado do que um
soldado da II Guerra Mundial tinha de morrer em combate.'' Hoje, essa cruel
possibilidade duplicou. Foi desta necessidade de travar a crescente espiral de
violência, incluindo o assassínio, que nasceu a congeminação da 35.a emenda.
Continuou laboriosamente até ver o cartão dos quinze segundos, e foi com alívio que
concluiu a declaração inicial.
Agora ouvia Tony Pierce falar, cada frase um golpe, e retraía-se sobre si
próprio e tentava não ouvir.
Passaram dois minutos, e compreendeu que o debate tinha começado.
Ouvia Tony Pierce a falar novamente.
- Os seres humanos combateram pela liberdade, para se libertarem da tirania,
durante pelo menos 2500 anos. Agora, repentinamente, se a 35.a emenda passar,
esse combate morrerá na América. De um dia para outro, por um capricho do diretor
do FBI e do seu Comitê de Segurança Nacional, a Declaração de Direitos poderá ser
suspensa indefinidamente...
- Indefinidamente, não - interrompeu Collins. - Só numa emergência e apenas
por um curto período, talvez alguns meses.
- Foi isso que disseram na Índia em 1962 - retorquiu Pierce. Tiveram uma
emergência e suspenderam a Declaração de Direitos. Esteve suspensa por seis anos.
Depois, voltaram a suspendê-la em 1975. Quem nos garante que isso não acontecerá
aqui? E se acontecer, significa o fim da nossa liberdade. Temos provas disso. Já
houve situações desse tipo nos Estados Unidos e foram sempre sinônimo de
calamidade.
- Que diz, senhor Pierce? - intrometeu-se Vanbrugh. - Pretende afirmar que a
Declaração de Direitos já foi suspensa anteriormente na nossa história?
- Sim, embora não oficialmente. A nossa Declaração de Direitos foi suspensa
de fato, ou desprezada, ou ignorada, numerosas vezes no nosso passado, e sempre
que isso aconteceu sofremos profundamente.
- Pode citar exemplos concretos? - pediu o moderador.
- Certamente - disse Pierce. - Em 1798, depois da Revolução Francesa, os
Estados Unidos temeram a infiltração de conspiradores radicais franceses que
poderiam tentar derrubar o nosso governo. Numa atmosfera de histeria, o Congresso
ignorou a Declaração de Direitos e aprovou as leis sobre os estrangeiros e a sedição.
Foram detidas centenas de pessoas. Os redatores que escreveram contra essas leis
foram metidos na prisão. Cidadãos comuns que se manifestaram contra o Presidente
John Adams também foram encarcerados. Foi por Thomas Jefferson ter feito uma
campanha contra essa loucura, contra essa suspensão da Declaração de Direitos, que
as pessoas foram chamadas à razão e Jefferson foi eleito Presidente - fez uma pausa.
- Mas não faltam outros exemplos - continuou Pierce. Durante a Guerra Civil,
a lei do habeas corpus foi ignorada, e os tribunais civis cederam o lugar a tribunais
militares. Depois da I Guerra Mundial, o Procurador-Geral A. Mitchell Palmer
invocou a ameaça vermelha e desencadeou uma caça às bruxas que levou à
detenção, sem a aplicação das garantias, de 3500 pessoas e à deportação de 700
estrangeiros. O Presidente do Supremo Tribunal, Charles Evans Hughes,
caracterizou essas detenções como uma das "piores práticas de tirania". Com o início
da II Guerra Mundial, os cidadãos americanos que tinham a infelicidade de
descenderem de Japoneses, foram desapossados da sua propriedade e confinados em
campos de detenção. Passado pouco tempo, em 1954 para ser exato, o senador
Joseph R. McCarthy acusou temerariamente 205 pessoas empregadas no
Departamento de Estado de serem membros do Partido Comunista, instigando assim
o terror vermelho. McCarthy, um ousado demagogo sedento de publicidade e um
beberrão incurável, difamou e destruiu um número gigantesco de americanos
inocentes, catalogando os dissidentes e os inconformistas de traidores. Por fim,
devido aos seus excessos, acabou por ser destruído antes da nação, durante os trinta
e seis dias das audiências Exército-McCarthy - fez outra pausa.
- Mais recentemente - prosseguiu Pierce - a Lei de Controle do Crime
Organizado, de 1969, a filha querida do Presidente Richard M. Nixon e do
Procurador-Geral John N. Mitchell, suspendeu de fato a Declaração de Direitos ao
estipular a detenção preventiva de suspeitos de crimes, a entrada não autorizada nos
domicílios, a limitação do direito dos acusados verem as provas ilegalmente obtidas
contra eles, e a escuta eletrônica por quarenta e oito horas sem autorização legal e
por mais tempo com essa autorização. Comentando esta lei, o senador Sam J. Ervin
da Carolina do Norte chamou-a ''um caixote do lixo da legislação mais repressiva,
inepta, intolerante, injusta e vindicativa jamais apresentada ao Senado... Esta lei bem
pode ser intitulada uma lei para abolir as 4.a, 5.a, 6.a e 8.a emendas da
Constituição".
- No entanto, a democracia sobreviveu - disse Collins.
- Mal, mal, senhor Collins. E um dia pode não sobreviver a tais assaltos à
nossa liberdade. Como Charles Péguy observou algures, a tirania está sempre
melhor organizada que a liberdade. Se todos os horrores que mencionei foram
cometidos com uma Declaração de Direitos em vigor, imagine o que acontecerá sem
uma Declaração de Direitos, quando a 35.a emenda for aprovada. Senhor Collins, a
nossa Constituição, com a sua Declaração de Direitos, sobrevive há mais tempo que
qualquer outra constituição escrita da Terra. Não a destruamos com as nossas
próprias mãos.
- Senhor Pierce - disse Collins -, fala da nossa Constituição como se tivesse
sido cinzelada na pedra ou tivesse caído do céu; como qualquer coisa inflexível, não
sujeita à mudança. No entanto, a nossa Constituição é um mero produto de
compromisso. Antes de ser assinada, houve muitas versões, houve muitas mudanças
e pode ainda haver muitas outras...
- A questão não é essa, senhor Collins - interrompeu Pierce. A questão é...
Vanbrugh interpôs-se rapidamente.
- Um momento. Gostaria que o Procurador-Geral Collins desenvolvesse o
que ia dizer. Estava a dizer, senhor Collins, que houve muitas versões da
Constituição...
- E também da Declaração de Direitos - acrescentou Collins.
-...Antes da versão final ser assinada. Parece-me que isso é interessante.
Muitas pessoas da nossa audiência podem não o saber. Quer explicar?
- Tenho muito prazer. Estou apenas a tentar provar que não estamos a
adulterar a Constituição quando a pretendemos mudar. Estou apenas a dizer que
passou por muitas mudanças no início, e que ainda pode passar por mais. É para isso
que existem as emendas. A palavra emenda deriva da palavra latina emendare, que
significa corrigir um defeito ou modificar qualquer coisa para melhor.
- Mas essas diferentes versões da Constituição e da Declaração de Direitos... -
insistiu Vanbrugh.
- Sim. Bem, como deve saber, um grupo de cinqüenta e cinco homens de
doze Estados reuniram-se de Maio a Setembro de 1787 na Assembléia do Estado da
Pensilvania (que hoje se chama Independence Hall) para forjarem uma Constituição
que ligaria treze Estados numa Nação. A idade média desses homens era de quarenta
e três anos. Talvez o patriotismo e a sobrevivência não fossem os únicos incentivos
desses delegados. Metade deles possuíam bens públicos. Se conseguissem escrever
uma Constituição que formasse um novo governo, os seus bens aumentariam de
valor. De qualquer maneira, se pensa que a Presidência, tal como está hoje
estabelecida na Constituição, é sagrada, considere o fato de Alexander Hamilton ter
pretendido um Presidente nomeado vitaliciamente. Edmund Randolph e George
Mason pretenderam que três homens servissem simultaneamente como Presidente,
ao passo que Benjamin Franklin queria que fosse um conselho a governar os Estados
Unidos. A Convenção votou cinco vezes a favor da proposta de um Presidente
indicado pelo Congresso. Foi a delegação da Virgínia a primeira a sugerir um único
"executivo nacional". Nem sequer o chamaram Presidente. Foi Randolph quem se
opôs a este tipo de presidencialismo, descrevendo-o como "o feto da monarquia". -
Collins olhou para o moderador. - Tenho tempo para mais?
- Faça favor de continuar - incitou-o Vanbrugh.
- Talvez muitas pessoas pensem que a criação do Senado, como se apresenta
na Constituição, também é sagrada. Não era assim no princípio. Alguns membros da
Convenção queriam que fossem os órgãos legislativos dos Estados a indicar os
senadores. Hamilton pretendia senadores vitalícios. James Madison sugeriu que os
senadores exercessem o cargo por nove anos. Quando ficou resolvido que os
senadores deviam ser eleitos pelo povo, alguns delegados entenderam por isso
pessoas com propriedade, isto é, pessoas com estabilidade. Foi Jay quem disse: "O
povo que possui o país é que deve governá-lo." Por fim, alcançou-se um
compromisso. Os órgãos legislativos dos Estados podiam votar os senadores e estes
serviriam por seis anos. Só em 1913 é que a 17.a emenda veio alterar esta situação,
dando a todos os cidadãos o direito de elegerem os senadores. Quanto à Declaração
de Direitos, não existia tal coisa, nem pouco mais ou menos, quando a Constituição
foi assinada. A maioria dos Antepassados Fundadores sentiram que a própria
Constituição era uma Declaração de Direitos, não tendo de se acrescentar nenhuma
emenda. Repito, os homens mais avisados da América não pensaram nessa ocasião
que fosse necessária uma Declaração de Direitos. À luz do nosso passado, não vejo
que atentado estamos a fazer contra a Constituição no presente século por lhe
acrescentarmos uma 35.a emenda que se limitará a suspender temporariamente a
Declaração de Direitos se isso for necessário para preservar o nosso país.
- Senhor Vanbrugh? - Era Tony Pierce tentando fazer-se ouvir. - Posso
responder à versão da história americana do Procurador-Geral?
- É a sua vez, senhor Pierce - disse o moderador.
- Senhor Collins - começou Pierce -, apesar de tudo o que disse, o que é fato é
que temos hoje uma Declaração de Direitos. Como a conseguimos? Omitiu esse
fato. Temo-la porque o povo a quis, porque o povo sentiu que a Convenção
Constitucional tinha errado ao pô-la de parte. Os diversos Estados desejavam que os
direitos do povo e os direitos dos Estados fossem exarados, queriam que isso fosse
feito antes de ratificarem a Constituição. Patrick Henry, da Virginia, sugeriu vinte
emendas, entre as quais as primeiras dez que viriam depois a ser aprovadas.
Massachusetts apoiava as dez emendas. E o mesmo faziam outros Estados. Quando
o primeiro Congresso se reuniu em 1791, Madison propôs doze emendas. O
Congresso concordou com dez e enviou-as para os treze Estados para serem
ratificadas. Foram ratificadas e a Declaração de Direitos tornou-se um fato em
Dezembro de 1791.
- Está a insinuar que todos esses Estados pretendiam uma Declaração de
Direitos - disse Collins -, mas isso não tem fundamento. Três dos treze Estados
iniciais recusaram-se a ratificar a Declaração de Direitos. Na verdade, só o fizeram
em 1939, um século e meio depois.
- Parece-me que está a sofismar - ripostou Pierce. - O que importa é que
tivemos desde o início uma Declaração de Direitos que garantia a todo o nosso povo
três direitos essenciais: liberdade de religião, liberdade de expressão e
imparcialidade do julgamento. Foi Thomas Jefferson quem acentuou: "Uma
Declaração de Direitos é o que o povo pode exigir de qualquer governo do mundo,
geral ou particular, e o que nenhum governo justo pode recusar ou deixar de lado.'' A
nossa Declaração de Direitos foi e continua a ser importante. É evidente que
Jefferson se oporia à sua 35.a emenda tão veementemente como eu o faço agora.
Aquilo que está a defender é uma emenda para anular a Declaração de Direitos, e eu
digo-lhe que fazer isso é anular a própria democracia.
Collins sentiu-se sem resposta e desamparado, e por se sentir assim recorreu à
animosidade.
- Senhor Pierce, é para preservar a democracia que eu apóio a 35.a emenda -
disse calorosamente. - O que destruirá a democracia é permitir que a presente praga
de desrespeito da lei e de anarquia nos escape totalmente ao controle, é permitir os
assassínios, os raptos, os atentados bombistas, as conspirações, as revoluções -
deixar que isso nos submerja. Daqui a poucos anos não haverá democracia. Nem
sequer haverá um país.
- Prefiro não ter país a ter um país sem liberdade - retorquiu Pierce. - Mas
existirá país enquanto existir povo, povo livre e não escravos. Há melhores maneiras
de controlar o crime do que oferecendo a ditadura. Podemos começar por oferecer
ao povo alimentação, trabalho, habitação, justiça, compaixão, igualdade.
- Também eu acredito em todas essas coisas, senhor Pierce. Mas primeiro
temos de pôr fim à matança. A 35.a emenda pode acabar com essa matança. Depois
disso, com a ordem restaurada, podemos começar a atentar nas nossas outras
prioridades.
Pierce abanou a cabeça.
- Não poderemos ocupar-nos de nada, pois teremos perdido os nossos direitos
humanos. Ontem à noite, estive precisamente a reler um livro... - Pegou num papel
que estava em cima da mesa e abriu-o. - ...um livro intitulado As Vossas Liberdades:
A Declaração de Direitos, de Frank K. Kelly, vice-presidente da Reserva da
República. Ouça o que ele tem a dizer: "Se perdêssemos a nossa Declaração de
Direitos, o que aconteceria à nossa maneira de viver? Eis algumas das coisas que
poderiam acontecer: o governo poderia ocupar os jovens em serviços militares por
períodos indefinidos, sem dar a menor explicação ou justificação dessa política. Os
jovens rapazes e raparigas que saem do ensino poderiam ser designados para tarefas
nas nossas indústrias onde parecesse ao governo que eram necessários. Os
estudantes que protestassem contra a política do governo poderiam ser lançados para
as prisões federais por ordem do Presidente. Os americanos, velhos e novos,
poderiam ver a sua propriedade expropriada por utilidade pública sem direito a
indenização. Os nomes das pessoas que escrevessem cartas críticas aos seus
congressistas poderiam ser entregues à polícia, e tais pessoas poderiam ser detidas e
encarceradas. Os editores que publicassem artigos nos seus jornais, criticando o
governo, ficariam sujeitos à detenção em qualquer momento, de dia ou de noite...
Pierce não parava de falar e Collins foi-se afundando inconscientemente na
cadeira. A luta que tinha tentado acalentar abandonara-o. Não estava bem ali, pelo
menos do lado em que se sentava, e sentia dentro de si, intensa aversão pelo outro
homem, o monstro ambicioso que ali o pusera.
Esperou. Ouviu. Tentou mais algumas defesas fracas e sem convicção. Fez o
seu dever. Os minutos passavam, os infindáveis trinta minutos, e por fim a tortura
acabou. Tentou tirar o microfone enquanto Vanbrugh e Pierce se levantavam, ambos
amigáveis, ambos prontos para conversar. Collins ignorou-os.
- Desculpe-me - disse ele a Vanbrugh -, indicava-me onde é o banheiro?
- Passado o átrio, à esquerda.
Collins voltou-se, atravessou apressadamente o estúdio de televisão, passou
ao átrio e virou à esquerda. Encontrou o banheiro e precipitou-se para dentro.
Felizmente estava vazio. Chegou à privada mesmo a tempo. Durante instantes ficou
apoiado sobre ela, pálido. Depois vomitou. A seguir lavou as mãos e o rosto, e
tentou retomar a compostura. Fixou a sua imagem no espelho. Se tivera dúvidas
sobre que posição tomar relativamente à 35.a emenda, agora já sabia. E,
estranhamente, não fora a consciência a ditar-lhe essa posição. Fora o estômago.
Uma hora mais tarde, já decidira o que devia fazer. Não era precisamente o
que desejava, mas era um começo: um bom começo.
Quando saiu do elevador que o levara dois pisos abaixo do salão principal do
Hotel Century Plaza, sabia estar tomada uma decisão definitiva quanto ao seu
próximo ato. Com a ajuda dos guarda-costas e dos oficiais da polícia local que o
ajudavam a atravessar a multidão dos fotógrafos e dos espectadores, Collins
percorreu o vasto salão inferior e entrou na Sala Los Angeles do hotel.
Escoltado ao longo da primeira fila de mesas, não estava preparado para o
impacto de tantos corpos aglomerados nesta sala cavernosa, iluminada apenas por
um paquidérmico candeeiro central e uma fila de quatro candeeiros na parte mais
afastada. Segurando na mão esquerda a pasta de couro onde levava o discurso, subiu
para o estrado brilhante do palco, onde os dirigentes da Associação Americana do
Foro se levantaram para o saudar.
Era ainda pouco conhecido publicamente, mas uma salva de aplausos vindos
de baixo acompanhou-o até ao seu lugar.
Banalidades, cumprimentos, enquanto era dirigido para o lugar ao lado do
Presidente do Supremo John G. Maynard.
Ao apertar a mão ao Presidente do Supremo, Collins mais uma vez se sentiu
impressionado pelo ídolo da sua mocidade. Maynard era um dos poucos homens
públicos da América que pareciam moldados para o cargo que desempenhavam. A
sua grande cabeleira branca, os olhos profundos e indagadores sob as espessas
sobrancelhas, o nariz arqueado, o queixo quadrado davam-lhe um ar de um César
honesto. A aparência, o porte direito como uma régua davam-lhe um ar de vigor e
juventude notáveis para um homem bem entrado nos setenta.
Para Collins, o movimento seguinte era difícil. Conhecia mal o Presidente do
Supremo Maynard. Só o tinha encontrado três vezes, de passagem, durante
recepções do governo e nunca lhe tinha falado demoradamente. Na verdade, tinha
havido um quarto encontro muito recentemente: a ocasião em que o Presidente do
Supremo Maynard o ajuramentara, como Procurador-Geral, na Casa Branca.
Vendo que o presidente da Associação já se dirigira para a tribuna, que a
sessão estava prestes a começar, Collins foi pressionado pela necessidade a agir de
imediato. Chamou a atenção de Maynard, viu que ele estava a falar com a senhora à
sua esquerda, e aguardou pacientemente a sua vez. Instantes depois, Maynard
afastou-se da senhora para se consagrar ao discurso de apresentação.
Collins tocou-lhe na manga e inclinou-se para ele.
- Senhor Presidente... Maynard aproximou-se de Collins.
- Sim?
- Gostava que me dispensasse cinco minutos em particular, depois de sairmos
daqui.
- Com certeza, senhor Collins. Temos aposentos lá em cima, no terceiro
andar. Só regressaremos a Washington à noite. A senhora Maynard foi às compras,
por isso podemos ficar a sós.
Satisfeito, Collins recostou-se novamente, sentindo-se melhor. Mas enquanto
ouvia a sua apresentação palavrosa como primeiro orador, o seu espírito foi
absorvido pela 35.a emenda e a sensação de opressão voltou. No colo tinha o
discurso que relatava o aumento da criminalidade nos Estados Unidos e as maneiras
como a lei e os procedimentos judiciais se tinham desenvolvido e transformado para
acompanhar esse aumento. No princípio e no final do discurso argumentava-se a
favor da necessidade de revisão constitucional, quando necessária, com particular
ênfase na importância e valia da 35.a emenda. Revendo as declarações que em breve
ia fazer, Collins sentiu-se incomodado. Pegando na caneta, releu rapidamente três
citações nas páginas iniciais. Examinou a primeira: ''Como o Presidente George
Washington declarou no seu discurso de despedida à nação, em Setembro de 1796:
'A base do nosso sistema político é o direito do povo elaborar e alterar as suas
formas de governo'." Collins riscou o parágrafo.
Examinou o parágrafo seguinte.
"E como Alexander Hamilton disse doze anos depois, numa comunicação ao
Senado dos Estados Unidos, 'As Constituições devem consistir apenas em
disposições gerais; a razão é que devem ser necessariamente permanentes e não
podem por isso prever as possíveis mudanças das coisas.' É a natureza geral dos
artigos que permite a realização de emendas que vão ao encontro das emergências
históricas. É a natureza geral da nossa Declaração de Direitos que permite
incorporarmos-lhe a 35.a emenda, para resolver os problemas desta geração, sem
alterar a integridade do documento como um todo." Collins fez deslizar a caneta por
este parágrafo, cortando-o também. Entrou na terceira página. "Em 1816, Thomas
Jefferson escreveu o seguinte a um amigo: 'Alguns homens encaram as constituições
com sacrossanta reverência e consideram-nas como a Arca da Aliança, sagrada
demais para se lhe tocar. Atribuem aos homens das gerações anteriores uma
sabedoria sobre-humana, e julgam que o que eles fizeram não está sujeito a
alterações.' Jefferson pensava que a nossa Constituição era passível de revisões..."
com traços firmes, Collins cortou mais este parágrafo.
Feitos estes cortes, o que restava era ainda uma argumentação a favor da
flexibilidade, da aplicação de novas leis aos novos problemas, mas agora os
argumentos eram mais suaves, esbatidos - pareciam mais uma sugestão oferecida
para debate.
Ouviu o Presidente do Supremo Maynard sussurrar-lhe:
- Isso é que é escrever à pressa!
Ele olhou para Maynard.
- Segundos pensamentos - respondeu.
Ouviu então o Presidente da Associação dizer da tribuna:
- Senhoras e senhores, tenho o maior prazer em apresentar-lhes o Procurador-
Geral dos Estados Unidos: Christopher Collins!
Enquanto os aplausos estalavam, ele levantou-se para falar.
***
Duas horas depois, com o seu discurso túrgido deitado para trás das costas,
com o brilhante discurso do Presidente do Supremo ainda a retinir-lhe nos ouvidos,
Collins sentou-se à beira da cadeira de costas altas da tranqüila suite de Maynard,
tentando traduzir em palavras o que lhe ocupara o espírito durante toda a tarde.
- Senhor Presidente do Supremo - começou Collins -, vou dizer-lhe o que me
levou a querer falar-lhe em particular. Vou direto ao assunto. Gostava de conhecer a
sua opinião sobre a 35.a emenda. Que pensa dela?
O Presidente do Supremo, recostado num sofá, enchendo o cachimbo com
tabaco de uma bolsa de couro, levantou a cabeça, de sobrancelhas franzidas.
- A sua pergunta... é inspirada pelo Executivo ou é pessoal?
- Não é inspirada por ninguém. É pessoal, nasceu da minha própria
preocupação.
- Compreendo.
- Tenho grande respeito pela sua opinião - continuou Collins. Gostaria
imenso de saber o que pensa sobre a lei que é talvez a mais controversa e decisiva
jamais apresentada ao povo americano.
- A 35.a - murmurou Maynard, acendendo o cachimbo. Puxou o fumo
durante alguns segundos, depois estudou Collins. - Como pode supor, sou contra ela.
Oponho-me radicalmente a legislação tão drástica. Se for mal aplicada, pode sufocar
a Declaração de Direitos, tornar a nossa democracia um Estado totalitário. É verdade
que enfrentamos um problema sério no país. O crime e o desrespeito pela lei
crescem como nunca se viu na nossa história. Mas a limitação das liberdades não
proporciona uma solução definitiva. Pode trazer-nos a paz, mas é uma paz resultante
da morte. A pobreza, como bem sabemos, é a mãe do crime. Acabe-se com a
pobreza e estaremos a aproximar-nos do fim da criminalidade. Não há outra forma.
Estou com Benjamim Franklin: quem entrega a liberdade para comprar a segurança,
não merece nem uma nem outra. A 35.a emenda pode comprar a segurança. Mas
será pelo preço da liberdade humana. É um mau negócio. Oponho-me fortemente.
- Porque não diz isso em público? - perguntou Collins.
O Presidente do Supremo Maynard recostou-se, inspirando o fumo, e olhou
maliciosamente para Collins.
- E porque não o faz você? - retorquiu. - Você é o Procurador-Geral. Porque
não se pronunciar contra ela?
- Porque deixaria de ser Procurador-Geral.
- E isso é assim tão importante?
- Sim... porque penso que posso ainda fazer algum bem onde estou. Além
disso, a minha voz não teria o mesmo impacto que a sua. Se não considerarmos a
minha posição oficial, sou quase um desconhecido. Não tenho a sua credibilidade.
Deve ter visto a recente sondagem em todo o Estado da Califórnia sobre os
Americanos mais admirados. Obteve 87%. A si, o povo escutá-lo-ia, e o mesmo
aconteceria com os legisladores do Estado.
- Espere um instante, senhor Collins - disse Maynard, pousando o cachimbo
num cinzeiro. - Parece que não me percebeu bem. Quando me perguntou porque não
falava contra a lei, respondi fazendo-lhe a mesma pergunta. Esperava que me
dissesse que não se pronunciava contra porque é a favor. Em vez disso, deu a
entender que está do meu lado. No entanto, quer que seja eu a denunciá-la
publicamente. Não o consigo perceber. Pensei que você, tal como o Presidente, os
dirigentes do Congresso e o diretor do FBI, estavam todos por trás da emenda.
Embora o seu discurso de hoje parecesse indicar que se devia fazer uma análise
cuidadosa da emenda. Tudo isto é confuso.
Collins abanou a cabeça.
- Talvez porque eu próprio tenho andado vacilante. O discurso foi escrito há
já alguns dias, e foi preparado por instigação do Presidente Wadsworth. Desde
ontem que tenho alimentado crescentes dúvidas sobre a emenda, e que temo uma má
utilização. Parece-me que agora concordo totalmente consigo a esse respeito.
Parece-me que prefiriria demitir-me a defendê-la novamente. Mas, por agora, prefiro
manter-me no meu cargo. Tenho à minha frente alguns assuntos por concluir. Quero
terminá-los antes de tomar uma posição definitiva. Entretanto, o tempo escoa-se
aqui na Califórnia. Era preciso que o povo e os legisladores ouvissem alguém que
respeitam. É por isso que lhe peço que se manifeste. Só o senhor a pode liqüidar
- Pode ser liqüidada sem a minha ajuda.
- Duvido. Pelo menos de acordo com as sondagens particulares do Presidente.
- Pois bem, vou dizer-lhe porque não posso opor-me a ela. Não sei se tem
conhecimento disto, mas há um ano e meio os juízes do Supremo Tribunal chegaram
a um acordo ético. Ninguém daria a sua opinião, verbalmente ou por escrito, sobre
assuntos legais que pudessem um dia vir a ser apresentados no tribunal. Ser-me-ia
impossível discutir em público uma emenda que mais tarde poderei ter de interpretar
ou julgar no meu cargo.
- Sim, compreendo - disse Collins desesperado. - Parece-me então que não há
maneira de dizer ao público o que pensa realmente da 35.a emenda.
- Não vejo nenhuma forma - disse Maynard vagarosamente. Pelo menos
enquanto estiver no Supremo Tribunal. - Ficou pensativo por instantes. - É claro que
haveria uma maneira. Posso sair do Supremo em qualquer momento. Posso demitir-
me. Então estaria livre para falar. - Abanou a cabeça. - Mas as circunstâncias atuais
não parecem exigir uma medida tão drástica.
- As circunstâncias atuais - repetiu Collins. - Mas é capaz de encarar
circunstâncias futuras que possam levá-lo a demitir-se e a pronunciar-se contra a
emenda?
Maynard pensou na pergunta.
- Sim, é claro, suponho que há várias possibilidades que me podem levar a
agir. É evidente que se eu estivesse convencido que os homens e os motivos que
estão por trás da 35.a emenda são maus, se estivesse certo de que nessas mãos a
emenda representaria um perigo imediato para o país, demitir-me-ia do meu cargo e
falaria ao povo. De momento, ainda não estou plenamente convencido. Mas se
estivesse, deixaria tudo e ergueria a minha voz imediatamente. Em resumo, se
existisse mais alguma coisa do que aquilo que vejo...
Nesse instante, Collins pensou no Documento R, no perigo que não se via
mas era real, no aviso de agonia do coronel Baxter.
- Senhor Presidente- interrompeu Collins -, já ouviu falar de um tal
Documento R?
- O Documento R? Não, parece-me que não. O que é?
- Não tenho certeza. Deixe-me explicar-lhe. - Lentamente, relatou a Maynard
as circunstâncias da morte do coronel e as suas agourentas palavras finais. - Tanto
quanto posso deduzir, parece tratar-se de um documento ou de um plano existente
que se destina a... a acrescentar de qualquer forma a 35.a emenda. Como lhe disse, é
qualquer coisa que Baxter considerava perigosa. Deve estar relacionado com a 35.a
emenda, deve ser uma parte que não se vê.
- Talvez - disse Maynard. - É realmente sinistro.
- Se eu descobrisse o que se trata e provasse que é um perigo, isso levá-lo-ia a
agir?
- Talvez - disse Maynard cautelosamente. - Dependeria do conteúdo. Mostre-
me primeiro, o documento ou qualquer outra coisa, e então dar-lhe-ei a minha
resposta.
- Ótimo. - Collins levantou-se. - Vou apressar a investigação. Se e quando
encontrar o Documento R, será o primeiro a conhecê-lo.
Maynard ergueu-se.
- Fico à espera de notícias. Assim que as tiver, estarei pronto para tomar uma
decisão.
Quando Collins saiu da suite de Maynard, o seu espírito sentia-se mais
desanuviado. Sabia finalmente que posição tomar face à emenda. Sabia que tinha um
aliado para o ajudar a detê-la, se conseguisse a prova concludente que faltava. E
sabia também de uma fonte para encontrar a ponta do fio.
Tinha de regressar a Washington. Mas depois, num dia da próxima semana,
teria de contatar com alguém na Penitenciária Federal de Lewisburg, na Pensilvania.
***
Na manhã seguinte, por trás das portas trancadas do gabinete do diretor do
FBI, no edifício J. Edgar Hoover em Washington, duas figuras imóveis estavam
sentadas a ouvir uma gravação que passava lentamente no grande gravador dourado
colocado em cima da mesa de café, entre elas. Vernon T. Tynan e Harry Adcock
tinham estado a ouvir em silêncio durante cerca de um quarto de hora. A fita estava
a chegar ao fim.
Fiéis à vida, as vozes saíam do reprodutor de som.
"Como lhe disse, é qualquer coisa que Baxter considerava perigosa. Deve
estar relacionado com a 35.a emenda, deve ser uma parte que não se vê."
"Talvez. É realmente sinistro."
"Se eu descobrisse o que se trata e provasse que é um perigo, isso levá-lo-ia a
agir?"
"Talvez. Dependeria do conteúdo. Mostre-me primeiro, o documento ou
qualquer outra coisa, e então dar-lhe-ei a minha resposta."
"Ótimo. Vou apressar a investigação. Se e quando encontrar o Documento R,
será o primeiro a conhecê-lo."
''Fico à espera de notícias. Assim que as tiver, estarei pronto para tomar uma
decisão."
Silêncio, só cortado pelo deslizar do resto da fita virgem.
- Filho da puta! - exclamou Tynan, de rosto lívido, pondo-se de pé num salto.
- Esse pulha desse vira-casacas, a virar-se assim contra nós! Desligue esse raio dessa
fita, Harry.
Adcock desligou rapidamente o gravador e deu meia-volta para observar o
seu superior, que vagueava pelo gabinete.
Tynan bateu fortemente com o punho na palma da outra mão.
- O grande porco, o pulha que me saiu esse Collins. Vai-lhe custar o pescoço.
Não vai mexer uma palha, a tentar subverter, mas nós vamos afastá-lo do caminho e
depressa. O Maynard é que me preocupa mais. Esse nojento liberal amigalhaço dos
vermelhos... esse é que nos pode arranjar sarilhos se andar pela Califórnia a dizer
mal de
nós e da emenda.
- Não pode, chefe, não tem provas. Ele disse que não fazia nada sem provas.
- Não confio nele. Pode dar-lhe na cabeça meter-nos na berlinda. Não vou
dar-lhe asas... nunca mais, a nenhum deles. Vamos dar cabo de Maynard e de
Collins.
- Collins deve ser fácil de anular - disse Adcock. - Basta levar esta gravação
ao Presidente... ele despede o seu Procurador-Geral num minuto.
Tynan levantou a mão.
- Não, Harry. Você e os seus rapazes fizeram um bom trabalho em Los
Angeles. As gravações são preciosas, todas elas, mas parece-me que não será
prudente dar a conhecer os nossos processos ao Presidente. Pode ficar com dúvidas.
Além disso, ele pôs o assunto nas nossas mãos. Não quer ser envolvido. Não, acho
que é melhor encarregarmo-nos do senhor Procurador-Geral Collins e do senhor
Presidente do Supremo Maynard à nossa maneira.
Adcock ficou a vê-lo passear pensativamente por trás da cadeira giratória da
secretária. Esperou um pouco e perguntou-lhe:
- Tem alguma idéia, chefe?
O diretor abanou a cabeça.
- Algumas. Não sei se eles irão mais longe. Collins afirmou que sim, mas
penso que não sabe aonde se dirigir. De qualquer modo, são ambos potencialmente
perigosos para o país... e para nós. Até aqui temos estado de sobreaviso; agora temos
de estar preparados para a defesa. Temos de estar prontos para qualquer
eventualidade. Se tivermos munições, podemos enfrentá-los, e usá-las se a isso
formos forçados.
- Tira-me as palavras da boca, chefe.
- Parece-me que podemos começar pelo nosso Procurador-Geral Collins.
Quero que o FBI proceda a uma investigação secreta a seu respeito.
- Mas ele foi sujeito a uma investigação cuidadosa antes de o Congresso o
confirmar como Procurador-Geral - protestou Adcock.
Tynan agitou a mão, como se apagasse as primeiras diligências feitas.
- Rotina, as primeiras investigações foram de rotina. Quero um grupo de
escol, uma pequena força de choque formada pelos seus melhores agentes, que
começará a investigar ainda hoje. Escolha-os a dedo, Harry. Só aqueles que sabem
ocupar-se de uma tarefa de espionagem da maior importância. Aqueles que são de
absoluta confiança, que têm lealdade total ao seu diretor. Quero que Collins seja
investigado com dez vezes mais cuidado que da primeira vez.
- Até onde podemos ir?
- Sem limites. Procurem toda a gente que tiver contactado com ele em
qualquer altura da vida. Procurem a primeira mulher, Helen Collins... por este nome
ou pelo que agora tiver. Procurem o filho. Procurem a segunda mulher, Karen
Collins, e a governanta. Passem a pente fino os parentes mais chegados. Não se
esqueçam dos amigos, como o senador Hilliard. Não menosprezem nada nem
ninguém.
Adcock tomava agora uma atitude que parecia de atenção.
- Assim se fará. É como se já estivesse feito, chefe.
- Uma semana. Quero as investigações terminadas dentro de uma semana.
- Uma semana - prometeu Adcock.
- Muito bem. A seguir, John G. Maynard. Parece-me que o nosso ilustre
Presidente do Supremo também pode merecer um pouco de atenção. Sei que foi feita
uma investigação antes de ser confirmado. Mas isso foi há... há...
- Há quinze anos.
- Ponha a nossa força especial a investigá-lo, como se isso ainda nunca
tivesse sido feito. Mande-os passar pela peneira amigos e inimigos, associados,
família e pessoas que tiveram contatos com ele nos últimos sete anos. Quero que
cada passo que Maynard tenha dado, cada declaração, carta, investimento, atividade,
seja observado à lupa. Se Collins se manifestar publicamente contra nós, pode
prejudicar-nos um pouco na Califórnia, mas não decisivamente. Mas se Maynard se
resolver a voltar-se contra nós, pode destruir-nos. Quero estar preparado. Apenas
isso, Harry, estar preparado.
Adcock aproximou-se da secretária.
- Chefe, se quer a minha opinião, mesmo que encontremos qualquer coisa
contra Maynard, isso não chegará para o travar se decidir opor-se à emenda.
- Mas pode desacreditá-lo.
- Talvez. Mas bem viu pelos inquéritos como ele é admirado.
- Sei-o bem. Vamos tentar obter coisas, de qualquer maneira, e esperemos
que sejam bastante fortes.
Tynan refletiu.
- Tem razão, Harry. Collins é fácil de eliminar. Maynard é diferente. Vai ser
mais difícil. - Parecia falar consigo mesmo. - Se se demitisse para nos combater,
nada o faria parar. Iria até ao fim. – O semblante de Tynan carregou-se. - Nesse
caso, também nós teríamos de ir até ao fim. Seria ele ou nós. Estou a pensar...
Mergulhara em profundas congeminações.
- Sim, chefe - acorreu Adcock.
Tynan agitou a mão por cima da cadeira.
- Preciso pensar melhor. - Depois acrescentou: - Mas é preciso muito
dinheiro, montes de dinheiro...
- O Presidente tem um fundo...
- Não - interrompeu Tynan -, dá demasiado nas vistas. Além disso, como já
lhe disse, não quero o Presidente envolvido no assunto. Temos de levar a cabo a
tarefa com os nossos recursos, para colhermos os resultados. Precisamos de um
fundo de guerra vindo de uma fonte que... que não deixe rastos. - Subitamente bateu
com o punho na palma da mão. - Raios, Harry, achei!
Galvanizado pela idéia, Tynan deu a volta à cadeira, sentou-se e chamou a
secretária pelo intercomunicador.
- Beth? Pegue no telefone... Bem, traga-me a ficha de Donald Radenbaugh.
Traga-me depressa.
Desligou e recostou-se, sorrindo para o adjunto. Adcock estava
verdadeiramente pasmado.
- Radenbaugh está preso em Lewisburg...
- Eu sei.
- Julguei que estava à procura de muito dinheiro. Tynan sorriu.
- Pois estou. E sei quem o vai arranjar sem nunca falar. Espere um instante,
Harry, tenha paciência e confie no velho Vernon T. Tynan.
Minutos depois, Beth aparecia com o dossier.
- Isto é só um resumo do caso. Temos arquivos completos...
- Isto serve, Beth. Obrigado.
Quando ficou só com Adcock, Tynan abriu a capa e começou a passar as
folhas de papel datilografado com o dedo molhado. Enquanto folheava as páginas,
parava aqui e ali, lendo alguns fatos.
- Radenbaugh, Radenbaugh... Extorsão... Entregou o dinheiro em Miami
Beach, segundo Hyland... Não foi encontrado o dinheiro... depois veio o tribunal...
Culpado. Quinze anos... Hum, dois anos e oito meses cumpridos... Sim.
Fechou o dossier. Ergueu o olhar para o adjunto, dando um estalo de
satisfação com a língua.
- Perfeito. Devo dizer-lhe que se isto resultar, sou um gênio. Se o nosso
Presidente do Supremo interferir, estaremos preparados para o receber.
- Não compreendo, chefe.
- Vai compreender daqui a pouco. A partir de agora, cumpra apenas as
instruções. Depois poderá passar à investigação sobre Collins. Primeiro vai-me fazer
isto. - Fez uma pausa para remoer mentalmente a hipótese. - Faça assim: tranque-se
no seu gabinete e telefone ao diretor da Prisão Federal de Lewisburg, Bruce Jenkins.
Telefonema confidencial. Diga-lhe que o assunto fica entre nós dois, que é
completamente confidencial. Ele é de confiança. O diretor deve-me muito. Bem,
diga-lhe que quero falar com um dos condenados, Donald Radenbaugh, fora dos
muros da prisão, ainda esta noite, depois da meia-noite, digamos às duas da manhã.
Arranje um lugar para o encontro onde ninguém nos importune, onde eu possa ter
uma bela conversa privada com o senhor Donald Radenbaugh. Está muita coisa em
jogo, Harry, está tudo em jogo, por isso veja se corre tudo bem.
Capítulo quinto

Faltava um quarto para as duas da manhã e, apesar da lua, estava muito


escuro. Harry Adcock conduzia lentamente na escuridão.
Pela terceira vez nessa hora, Vernon T. Tynan, sentado no lugar da frente ao
lado dele, perguntou:
- Tem certeza que ninguém sabe que saímos da cidade?
- Absoluta - confirmou Adcock. - Até arranjei uma lista falsa das suas
atividades em Washington durante a noite e distribuí-a por lá.
- Ótimo, Harry, muito bem.- Tynan esgueirou-se para a frente, espreitando
pelo pára-brisas para a densa vegetação e para o arvoredo que ladeavam a estrada
raramente utilizada. - Não vejo absolutamente nada... Tem certeza que sabe onde
estamos?
- Estou a seguir à letra as instruções do diretor - disse Adcock. - Jenkins
explicou tudo minuciosamente.
- Quanto falta para lá chegarmos?
- Poucos minutos, chefe.
Tinha voado num pequeno jato privativo de Washington para Harrisburg, na
Pensilvania. Por especial favor, tinham conseguido ser os únicos passageiros do
avião. Em Harrisburg, um Pontiac alugado esperava-os no aeroporto. Adcock tinha-
se sentado ao volante desde o início, com Tynan ao lado e um mapa topográfico de
Lewisburg marcado a vermelho entre ambos. Tinham saído de Harrisburg, cruzado a
ponte sobre o rio Susquehanna e avançado para norte pela auto-estrada número 15,
ao longo da margem ocidental do rio. Tinham demorado uma hora e meia cobrindo
aproximadamente cinqüenta milhas, até chegarem ao primeiro ponto de referência, a
Universidade de Bucknell, situada à direita. Tinham continuado, atravessando a
cidade de Lewisburg, uma cidade fantasma que dormia àquelas horas da madrugada.
Ao passarem pela escola superior, Adcock tinha abrandado para consultar o mapa.
Tinha estendido o mapa e procurado a estrada que se estendia à sua frente. Tinham
chegado ao extremo da cidade. Adcock tinha apontado para a esquerda.
- É aqui que se vira para a entrada da Penitenciária. Jenkins disse que não
fizesse caso, que me dirigisse para nordeste pela auto-estrada número 15, que virasse
depois à esquerda no Hospital Evangélico e que seguisse para norte, passando pelo
outro lado da Penitenciária...
- Poderá alguém ver-nos lá? - perguntara Tynan preocupado.
- Não, chefe, não podemos ser vistos. Além disso, veja as horas que são.
Mesmo assim, vamos em frente e depois voltamos novamente atrás quando
chegarmos à estrada secundária que atravessa a floresta. Seguimos pelos bosques até
ao extremo sul e daí veremos os muros e a torre de vigia da Penitenciária. É aí que
esperamos.
Agora seguiam em marcha lenta através da floresta.
Adcock inclinou-se sobre o volante e Tynan esgueirou-se ao mesmo tempo,
espreitando através do pára-brisas para o que parecia ser o fim da estrada e o limite
da área florestal.
- Parece que chegamos - murmurou Adcock. - Ele disse que havia uma
clareira entre as árvores, à direita. Olhe, ali está ela.
Saiu da estrada para a direita, depois virou rapidamente para a esquerda e
parou. A pouca distância, podiam distinguir a silhueta da parte fronteira do muro de
cimento que rodeava a prisão, os cumes dos edifícios mais altos do recinto da prisão
e duas torres com depósitos de água, uma à direita e outra atrás da Penitenciária
Federal de Lewisburg.
Adcock alcançou o tablier e desligou os faróis. Apontou para as silhuetas do
lado de trás.
- É ali que estão os duros, no buraco da maior segurança.
- Alguns - disse Tynan. - Donald Radenbaugh não pertence a esse número. É
um dos inofensivos, um dos presos políticos.
- Não sabia que ele era preso político.
- Tecnicamente não é. Mas no fundo, é. Sabia demasiado sobre o que se
passava. Isso também pode ser um crime.
Tynan agitava-se na escuridão do assento da frente, espreitando pelo pára-
brisas e esperando.
Já tinham passado alguns minutos quando Adcock puxou pela manga de
Tynan.
- Chefe, parece-me que os vejo chegar.
Tynan olhou sofregamente pelo pára-brisas, quase fechando os olhos, e
acabou por ver dois focos de luz a aproximarem-se.
- Deve ser Jenkins - disse ele. - Só trás os mínimos.
Calou-se, continuando a seguir o avanço do outro carro que se acercava.
- Bem - disse Tynan de repente -, eis o que vamos fazer. Eu vou para o banco
de trás, para ficar ao lado dele. Você fica onde está, ao volante. Pode ouvir. Não
diga nada. Quem fala com ele sou eu. Você limita-se a ouvir. Estamos ambos
metidos nisto.
Tynan abriu a porta da frente do Pontiac, saiu, fechou-a, abriu a porta
traseira, entrou e anichou-se no canto do assento.
O outro carro já tinha entrado na clareira e estacou a dez metros deles. O
motor parou de trabalhar. Os mínimos apagaram-se. Uma porta abriu-se e fechou-se.
Ouviu-se o ruído de passos.
O rosto seco do diretor Bruce Jenkins aproximou-se até ficar junto da janela
de Adcock, que agitou o polegar para o assento detrás. Jenkins assentiu com a
cabeça e recuou. Agora o seu rosto surgia à janela das traseiras. Tynan abriu metade
do vidro.
- Jenkins, como tem passado?
- É um prazer encontrá-lo, diretor. Estou ótimo. Trago comigo o que quer.
- Algum problema?
- Problema, problema, não. Só que ele não tinha muita vontade de o ver...
- Ele não gosta de mim - disse Tynan.
- ...Mas veio. É curioso...
- Olá se veio - disse Tynan. - É melhor não perdermos tempo. É bastante
tarde. Traga-o para aqui. Deixe-o entrar pelo outro lado e sentar-se ao pé de mim.
- Muito bem.
- Depois de acabarmos, volte cá. É possível que também queira falar consigo.
Posso querer mais alguma coisa.
- Entendido.
- Outra coisa, Jenkins. Este encontro nunca existiu. O rosto do diretor abriu-
se num sorriso.
- Que encontro?
Tynan esperou. Não tinha ainda passado um minuto, quando do outro lado do
carro se abriu uma porta. Jenkins meteu a cabeça.
- Cá o tem.
Donald Radenbaugh estava de pé, muito direito, junto do diretor. Tynan não
lhe podia ver a cara; só via que os pulsos estavam juntos.
- Está algemado? - perguntou Tynan.
- Está, sim.
- Tire-lhe o raio das algemas, sim? Este encontro não é desse gênero.
Tynan ouviu o tilintar de chaves e viu o diretor abrir as algemas e tirá-las.
Observou o prisioneiro a esfregar os pulsos magoados. Depois ouviu o diretor dizer:
- Pode entrar para o banco de trás.
Donald Radenbaugh baixou-se para entrar no carro. A cabeça e a cara ficaram
à vista. Não tinha mudado muito nos quase três anos de prisão. Parecia apenas
ligeiramente mais magro dentro do uniforme cinzento da prisão, demasiado largo.
Tinha a cabeça completamente calva, só com um tufo de cabelo louro nas têmporas,
os olhos semicerrados pelos papos, atrás de uns óculos de armação de aço, um rosto
pálido e fino, um nariz estreito e pontiagudo, com um bigode loiro, pequeno e mal
cuidado, por baixo, e um queixo curto. Estava pálido e soturno. Talvez tivesse um
metro e setenta e oitenta quilos, calculou Tynan. Tinha entrado no carro, e afundou-
se no assento de trás, tão longe quanto possível de Tynan.
Tynan não fez o menor esforço para lhe apertar a mão.
- Olá, Don - disse-lhe.
- Olá.
- Já passou muito tempo.
- Suponho que sim.
- Quer um cigarro? Harry, dê-lhe um cigarro e o seu isqueiro. Radenbaugh
estendeu a mão para aceitar o cigarro e o isqueiro.
Depois de acender o cigarro, devolveu o isqueiro. Aspirou o cigarro duas
vezes, exalando uma nuvem de fumo. Pareceu mais descontraído.
- Então, Don - começou Tynan - , como tem passado?
Radenbaugh sorriu ironicamente.
- É uma pergunta infernal.
- É assim tão mau? - perguntou Tynan, solícito. - Pensei que o tinham na
biblioteca da prisão.
- Estou numa cela - disse Radenbaugh amargamente. - Estou na prisão
encarcerado como um animal e estou inocente.
- Sim, bem sei - continuou Tynan. - Realmente, não deve ser agradável.
- É só podridão - disse Radenbaugh. - Há tudo para vos proteger de nós:
portas de aço corrediças, fechaduras triplas, vigias nas paredes de betão. Mas não há
nada que nos proteja lá dentro: pancadaria, facadas, violações, droga. Os guardas
prisionais, os carcereiros, os vendidos, rafeiros dos guardas (parece-me que já estou
a falar como os outros), todos eles tentam agir pior que os outros. Comida estragada,
falta de exercício e uma cela de dois metros por três e meio. Gostaria de passar os
seus melhores anos num planeta de dois metros por três e meio? O maior
acontecimento é a ida ao barbeiro. Ou talvez uma carta da minha filha. É terrível.
Especialmente quando se está inocente. Não há a menor esperança.
Caiu num silêncio agressivo, inspirando e expirando o fumo do cigarro.
Tynan observava-o na obscuridade.
- Pois é, a perda da esperança... Suponho que isso é o pior de tudo - disse
simpaticamente. - Foi uma pena o que aconteceu ao Noah Baxter. Ele era a sua
penúltima hipótese de sair daqui mais depressa. Foi uma pena.
Radenbaugh olhou-o profundamente.
- A minha penúltima hipótese? - repetiu.
- Sim, a penúltima hipótese, Don; eu sou a última. Radenbaugh fixou-o bem
nos olhos.
-Você?
- Eu. - Tynan abanava a cabeça. - Sim, eu. Vim aqui para lhe oferecer um
contrato, Don. Um negócio entre nós os dois. Posso dar-lhe aquilo que quer:
liberdade. E você dar-me-á o que eu quero: dinheiro. Está disposto a ouvir-me?
Radenbaugh não respondeu. Mas estava a ouvir.
- Muito bem - continuou Tynan -, vou dizer-lhe tudo de uma vez, em poucas
palavras. Você tem um milhão de dólares em dinheiro escondido em qualquer parte
na Flórida. Não vamos discutir se o tem ou não. Estive a ler atentamente o processo.
Uma testemunha fidedigna jura que você saiu de Washington com o dinheiro para o
entregar em Miami. Nunca o entregou. Quando foi preso não o tinha.
- Talvez nunca o tivesse - disse Radenbaugh calmamente. Talvez eu estivesse
a dizer a verdade.
- Talvez - disse Tynan para ser agradável. - Mas talvez não. Talvez o tenha
enterrado. Num dia de chuva. Partamos dessa hipótese. Se assim foi, então há um
lindo milhão em notas num lugar qualquer da Flórida. Dinheiro que não rende
juros... E devia render. Devia servir-lhe para qualquer coisa... não daqui a doze anos,
mas desde já, hoje mesmo. O que é que tanto dinheiro poderá comprar? O que é que
deseja acima de tudo no mundo? A liberdade? Você mesmo disse que a prisão é
podridão. Quer sair. Eu não posso torná-lo inocente, uma vez que o tribunal o
declarou culpado. Mas posso torná-lo um homem livre. Quer continuar a ouvir-me?
Radenbaugh chegou-se para a porta, abriu uns centímetros do vidro e deitou
fora a ponta do cigarro. Encostando-se novamente, voltou a cabeça para Tynan.
- Continue - disse-lhe.
- Esse milhão de dólares... - prosseguiu Tynan - Preciso de parte dele. Não
sou uma pessoa suja. Podia pedir-lhe todo e talvez o conseguisse. Mas não lhe estou
a pedir todo. Só quero parte dele... digamos que é para um investimento. Em troca,
reduzirei a sua sentença ao tempo já cumprido até esta noite, ou até daqui a algumas
noites. Não é fácil, mas posso consegui-lo. Pela sua parte, irá a Miami, desenterrará
o dinheiro e entregará parte dele a um intermediário. Entregará setecentos e
cinqüenta mil dólares e poderá ficar com os restantes duzentos e cinqüenta mil para
recomeçar a sua vida. E o negócio ficará satisfatoriamente concluído. Que lhe
parece?
Olhou para Radenbaugh, mas este não lhe deu resposta. Continuava sentado a
olhar em frente, os lábios comprimidos, o rosto impassível.
- Muito bem, suponho que quer conhecer alguns pormenores continuou
Tynan. - Há um óbice. Terá de se haver com ele, ou o negócio vai ao ar. Disse-lhe
que não era fácil. E não é. Não tenho poderes para o afiançar ou libertar. Ninguém
os possui, exceto os membros da comissão de fianças e acontece que sei que eles
não o autorizarão a sair durante os doze anos que lhe falta cumprir. Eu não posso
libertar Donald Radenbaugh da Penitenciária Federal de Lewisburg. Mas posso
libertá-lo a si.
Radenbaugh olhava agora para o diretor.
- Trata-se de um truque, mas eu posso fazê-lo. Para nos protegermos a ambos,
tem de assumir uma nova identidade no dia em que for solto. Não é simples, mas
pode fazer-se. Não é a primeira vez que se faz isso com êxito. Desde 1970 que pelo
menos quinhentos informantes, testemunhas do governo, pessoas que falsearam
provas, receberam novas identidades dadas pelo diretor dos Serviços Criminais do
Departamento de Justiça. Isto tem acontecido e pode repetir-se. Só que desta vez não
o
posso fazer por intermédio do Departamento de Justiça. Tenho de tratar do assunto
pessoalmente.
Tynan percebeu que não havia nenhuma reação por parte de Radenbaugh.
Continuou:
- Primeiro fazemos desaparecer Donald Radenbaugh. É uma necessidade
fazê-lo desaparecer. O diretor Jenkins poria a correr a história de que tinha morrido
de um ataque cardíaco ou de uma facada. Diria provavelmente que tinha morrido de
causas naturais. Isso dá menos nas vistas. A seguir, podíamos soltá-lo. Fazíamos
desaparecer as suas impressões digitais, alterávamos a sua aparência, dávamos-lhe
uma identidade completamente nova, um novo nome e novos papéis, desde uma
certidão de nascimento até um cartão da Previdência, uma carta de crédito para
aluguel de automóveis, uma carta de condução, tudo com o novo nome. Poderia ser
um homem novo a partir da próxima semana: completamente livre, tão vivo como
nunca e com uma conta choruda no banco. Mas teria de se lembrar: Donald
Radenbaugh deixaria de existir. Sei que tem uma filha e mais alguns parentes e
amigos: todos eles ficariam de luto. Nunca viriam a conhecer a verdade.
Compreendo que deve ser duro para si, mas faz parte do preço que terá de pagar
pelo acordo - isso e os setecentos e cinqüenta mil dólares.
Tynan parou e olhou abstraído para fora. Depois voltou-se novamente para
Radenbaugh.
- Aí tem - disse Tynan. Tentou ver os ponteiros do relógio de pulso.- Já
excedemos o tempo, Don. Ouviu a minha primeira e última oferta. Tem de resolver:
sim ou não. Se escolher não e preferir ficar fechado na prisão por mais doze anos (se
tiver a sorte de não ser esfaqueado e morto), para sair quando já for velho... bem,
então pode guardar o seu dinheiro e conservar o seu nome... a escolha é sua. Se
preferir dizer sim, então não haverá mais prisão, fica livre e ainda conservará uma
parte importante do dinheiro, fará uma vida nova e poderá disfrutá-la como qualquer
outra pessoa. Também neste caso, é a si que compete a escolha.
Tynan fez uma pausa para o deixar refletir. Passados alguns minutos, disse
com ênfase:
- Tem de escolher uma ou outra hipótese esta noite. Mais precisamente: nos
próximos cinco minutos. Se for não, pode abrir a porta e ir-se embora. Jenkins está à
sua espera com as algemas para o levar para a sua cela. Se for sim, basta dizer a
palavra; nesse caso dar-lhe-ei instruções, e ao diretor também, sobre o que tem a
fazer, como lhe expliquei, e dentro de uma semana terá um quarto de um milhão de
dólares e uma vida livre. Quando deixar a prisão, só terá de seguir as instruções
simples que estarão no bolso do seu terno novo, com um bilhete de avião para
Miami e uma reserva de hotel.
Tynan parou.
- Muito bem, Don - disse suavemente -, é a sua vez. Qual é a decisão?
***
Foi só cinco dias mais tarde que Chris Collins se deslocou à Penitenciária
Federal de Lewisburg.
Após a viagem de regresso de Los Angeles para Washington, Collins tinha
relatado ao Presidente Wadsworth a sua visita à Califórnia. O relatório tinha sido
breve, pois Collins omitira muitas das suas atividades. Tinha resolvido que, pelo
menos por enquanto, não revelaria ao Presidente a visita ao lago Tule, a conferência
com os deputados Keefe, Yurkovich e Tobias, o encontro particular com o
Presidente do Supremo Maynard. Não podia falar desses assuntos porque não estava
ainda seguro sobre o papel do Presidente nos acontecimentos suspeitos da
Califórnia. Pelo contrário, tinha discutido o debate televisivo com Tony Pierce.
Depois tinham falado bastante sobre o discurso na Associação Americana do Foro.
Tinha tentado apresentá-lo como um êxito, mas o Presidente, bem informado,
expressara-lhe rudemente o seu descontentamento.
- Você defendeu mal e subestimou a nossa luta pela 35.a emenda. Na
verdade, eu desejava que tivesse sido mais incisivo. No entanto, as coisas parece que
estão a correr bem por lá. Tivemos hoje boas notícias.
As boas notícias tinham sido as últimas sondagens de Ronald Steedman nos
órgãos legislativos da Califórnia. Na Assembléia do Estado, entre os deputados que
já tinham uma posição tomada, os que estavam a favor da emenda ultrapassavam os
que se lhe opunham: 65% contra 35%. No Senado, os resultados eram mais
equilibrados: 55% a favor e 45% contra. Collins dificilmente dissimulara o seu
desagrado. Collins ficara obcecado pelo desejo de visitar Lewisburg, para se
encontrar com a última fonte que lhe restava para descobrir o segredo do Documento
R, e tinha contado fazer a viagem no segundo ou terceiro dia após o regresso a
Washington. Mas solicitações do Presidente e da sua própria secção criminal e da
secção de direitos civis, tinham tornado a deslocação impossível. Por fim, graças aos
seus subordinados do Serviço Prisional, tinha conseguido preparar a viagem.
Sabendo que não podia explicar nem justificar o verdadeiro fim da visita,
tinha inventado um pretexto. Estava a trabalhar em alterações a introduzir na Lei de
Reabilitação de Prisioneiros, e para o fazer teria de visitar a Penitenciária Federal de
Lewisburg. E assim, lado a lado com o diretor Bruce Jenkins, estava agora a fazer
uma rápida inspeção à prisão. Já tinha percorrido as oficinas de roupas e de chapas
metálicas; tinha visitado as salas de aulas, o hospital, a biblioteca; tinha suportado
entrevistas rigorosamente vigiadas com prisioneiros dentro das suas celas. Agora,
estava terminada a última parte da inspeção, e começava para Collins a parte mais
importante.
Tinha evitado o almoço, alegando um compromisso inadiável em Nova
Iorque.
- Deseja mais alguma coisa de mim? - inquiriu o diretor Jenkins.
- Já me ajudou muito - disse Collins sorridente. - Tenho os elementos de que
preciso. Acho que... - Hesitava. - Na verdade, há mais uma coisa. Temos a correr um
caso de impostos e o nome de um dos seus pensionistas tem vindo constantemente à
baila. Gostaria de falar com ele em particular durante cinco ou dez minutos... Será
possível?
- Com certeza - disse o diretor Jenkins. - Basta dizer-me quem é e trago-o
imediatamente para lhe poder falar a sós.
- O seu nome é Radenbaugh. Donald Radenbaugh. Gostava de o ver.
O diretor Jenkins não escondeu a sua surpresa.
- Quer dizer que não leu os jornais da manhã? Nem viu televisão?
- Não, não pude.
- Donald Radenbaugh está morto. Lamento dizer-lhe. Morreu há três dias.
Caiu fulminado por um ataque cardíaco. Retardei a notícia até saber onde
poderíamos encontrar o seu parente mais próximo. Enterrámo-lo a noite passada. A
notícia saiu hoje de manhã cedo.
- Morto - disse Collins surdamente. Sentia-se mal. A sua grande esperança de
vir a saber o que era o Documento R também estava morta.
- Chegou atrasado três dias - disse Jenkins. - Pouca sorte. Desesperado,
Collins preparava-se para partir imediatamente, quando de repente lhe ocorreu um
pensamento.
- Disse que tinha retardado a notícia três dias para localizar o parente mais
próximo?
- Sim, ele tinha uma filha em Filadélfia, mas ela estava ausente da cidade.
Acabamos por a encontrar: tínhamos de lhe comunicar o falecimento e de lhe
perguntar qual o destino a dar ao corpo. Com o acordo dela, enterrámo-lo no
cemitério local, a expensas do governo.
- Como é que ela recebeu a notícia?
- É claro que ficou muito perturbada.
- Quer dizer que Radenbaugh estava muito ligado à filha?
- À exceção do antigo Procurador-Geral Baxter, que foi seu amigo, Susie era
a única pessoa que contatava com ele regularmente.
- Tem a morada dela?
- Não...
- Como é que lhe participou?
- Ela tem uma caixa postal na central dos correios em Filadélfia.
Telegrafamos-lhe e quando ela recebeu o telegrama, telefonou-nos.
- Pode dar-me o número da caixa postal?
- Claro. - Dirigiu-se à secretária, procurou entre uma série de pastas e abriu
uma. - É a caixa postal 153, da estação de correios William Penn, Filadélfia, 19105.
- Obrigado. Disse que ela contatava regularmente com o pai?
- Sim.
- Talvez ela saiba alguma coisa dos seus negócios. Talvez me possa informar.
- Talvez, mas não creio.
- Eu também duvido - disse Collins desanimado. - Vamos ver.
Tinha sido uma operação delineada com incrível rigor. Até agora não tinha
havido o menor problema.
***
Sentado na cabina fechada do lustroso barco a motor que deslizava pelo canal
artificial que separa a ponta sul da praia de Miami da Ilha dos Pescadores, ele tentou
rever os acontecimentos da semana anterior. Há seis noites, numa zona arborizada
do exterior da Penitenciária Federal de Lewisburg, tinha-se separado do diretor do
FBI Vernon T. Tynan, concordando em aceitar o estranho acordo proposto a Donald
Radenbaugh, o prisioneiro. Há duas noites, aninhado no banco traseiro do carro do
diretor, tinha sido conduzido para fora da prisão adormecida como Herbert Miller,
cidadão e homem livre. Desde o encontro com Tynan, só tinha recebido um visitante
cujo nome conhecia: Harry Adcock. Tinha havido mais três, mas eram pessoas
anônimas. Radenbaugh recordou-se que tinha sido posto na solitária, para ficar
isolado dos outros condenados. Aí tinha recebido um homem idoso e coxo que lhe
aplicara ácido para apagar - e com que dor! - as impressões digitais. A seguir tinha
vindo um oculista para lhe tirar os óculos com armação de aço e lhe colocar lentes
de contato. Depois tinha sido a vez de o barbeiro lhe cortar o bigode e as patilhas,
lhe pintar os restos de cabelos louro de cor negra, e lhe colocar um chino.
Finalmente, tinha vindo Adcock com os documentos (uma certidão de nascimento,
uma caderneta militar com louvores) e os cartões (carta de condução, cartão de
crédito para alugar automóveis, cartão da Previdência) que substituiriam os
documentos da sua velha carteira e o transformariam oficialmente no respeitável Sr.
Herbert Miller de cinqüenta e nove anos.
Tinham-lhe dado um terno castanho-escuro, de corte moderno, em substituição do
que vestia na prisão, que estava fora de moda e podia parecer estranho.
Tinha recebido instruções verbais de Adcock. Assim que o soltassem, devia dirigir-
se imediatamente para Miami de avião. Em Miami, tinha sido reservado um quarto
em nome de Herbert Miller no Hotel Bayamo, situado na Rua West Flager. No dia
ou na noite seguinte, estaria livre para desenterrar o milhão de dólares escondidos.
Não seria seguido. Ao fim da manhã do dia seguinte, deveria encontrar-se com um
contato chamado Senhora Remos, no bairro suburbano de Coconut Grove e
receberia dela o nome de um cirurgião plástico da maior confiança que lhe faria a
operação plástica à volta dos olhos antes de deixar Miami. Nessa noite, deveria
dirigir-se a um barco a motor que estaria à sua espera no cais municipal da praia de
Miami para o levar à Ilha dos Pescadores. Aí, junto do primeiro depósito de
petróleo, alguém o chamaria pelo nome de Miller. Ele diria duas vezes a senha, que
era "Linda". Abandonaria então o pacote contendo os três quartos de milhão de
dólares e regressaria ao barco. De regresso a Miami, poderia continuar a operação
plástica. Depois seria totalmente livre para ir aonde quisesse e para fazer o que lhe
apetecesse.
- Receberá o terno novo pouco antes de sair da prisão - dissera-lhe Adcock. -
No bolso direito do casaco encontrará um sobrescrito. Contém o bilhete de avião
para Miami, o lugar de encontro com o barco, um mapa da Ilha dos Pescadores com
o local da entrega assinalado e dinheiro suficiente para as primeiras despesas até que
possa ter nas suas mãos o quarto de milhão que lhe pertence. Faça apenas o que lhe
foi dito e não tenha a menor veleidade de usar truques. Só lhe fariam mal à saúde.
Compreendido?
Ele tinha compreendido bem.
Tinha tomado o avião especial e chegado à tabela ao aeroporto internacional
de Miami.
Tinha-se registrado à tabela no decadente Hotel Bayamo.
Tinha alugado um carro, certificando-se constantemente que não era seguido
nem vigiado, e dirigira-se para os pântanos a oeste de Miami. Aí, calcorreara a pé o
caminho até à margem do pântano coberto de vegetação tropical onde tinha
escondido o milhão de dólares numa caixa metálica, há três anos. Esvaziara o
conteúdo da caixa para dentro de sacos de mercearia que metera numa mala, e a
seguir regressara ao carro. O resto tinha decorrido facilmente. No quarto do hotel
separara um quarto de milhão, metendo-o noutra mala que tinha preparada. À noite,
pegara na mala que continha a sua parte do dinheiro e levara-a para o aeroporto de
Miami, metendo-a num cofre de aluguel. Depois de sair do aeroporto, comprara um
exemplar do Herald de Miami, já com a data do dia seguinte. Examinando-o
atentamente, pretendera verificar se a notícia do falecimento de Donald Radenbaugh
já tinha sido publicada. Na sexta página encontrara uma fotografia pouco favorecida
e já velha de três anos de um Radenbaugh careca e de óculos, e o seu obituário.
Provocara-lhe uma sensação estranha ler a notícia da sua própria morte, saber quão
pouco tinha feito e como isso ficara encoberto pela condenação por felonia. Era
injusto. Nem sequer diziam que estava inocente. Por fim, afligira-o a sua amada
Susie, a quem deixara um tal legado. Perguntara a si próprio se alguma vez se
atreveria a contatar com ela e a revelar-lhe a verdade. Sabia que não. As pessoas que
podiam inventar um ser humano não eram para brincadeiras.
No dia seguinte, de acordo com as instruções, só tivera um contato antes da
crítica missão noturna. Ao fim da manhã, guiara até Coconut Grove e tivera um
encontro breve e satisfatório com a Senhora Remos, uma mulata idosa que já o
esperava no seu apartamento.
- Tem sorte, senhor Miller, está cheio de sorte - dissera a Senhora Remos. -
Perdemos recentemente o cirurgião que sempre utilizamos, mas há dois dias
arranjamos um substituto. É o doutor Garcia, um homem extremamente competente
que, devido à sua situação atual, pode ser considerado seguro. Escapou recentemente
de Cuba, e até lhe arranjarmos documentação é um emigrante ilegal. Temos de agir
com cautela. Está disponível esta noite? Ah, só depois das dez horas. Muito bem. O
doutor Garcia estará à sua espera no seu quarto do hotel às dez e quinze. É preferível
ele não perguntar por si na recepção. Seria melhor ele ficar à espera no seu quarto.
Tem a chave consigo? Ah, ótimo, eu fico com ela. O hotel deve ter uma chave extra
para si no cacifo. O doutor Garcia irá examiná-lo, informá-lo-á do que pode fazer e
indicar-lhe-á a ocasião e o lugar da operação. Então, às dez e um quarto? Está
combinado.
Radenbaugh ocupara parte da tarde a passear e a fazer compras e regressara
depois ao quarto do hotel para esperar pela noite. Ao anoitecer, pegara a pesada
mala, descera as escadas, saíra e seguira de táxi pela MacArthur Causeway até à
praia de Miami, até ao cais municipal. Por volta das oito horas, encontrara o contato,
entregara
a mala ao fleumático cubano proprietário do barco a motor, e embarcara.
Agora, tal como fora planejado, ia a caminho. Faltava menos de meia milha
para a Ilha dos Pescadores, para o pagamento final e para o clímax do seu negócio.
Abriu uma vez mais o mapa desdobrável que levava no bolso do casaco e
tentou decorá-lo.
A Ilha dos Pescadores era um pedaço de terra de 213 acres, totalmente
desabitada, ostentando algum arvoredo de pinheiros bravos australianos, o esqueleto
apodrecido de uma casa numa propriedade particular que outrora pertencera ao
fundador de Miami e dois depósitos de petróleo.
Esta noite, refletiu Radenbaugh, a sua população seria de pelo menos duas
pessoas: ele próprio e um desconhecido.
O barco a motor abrandou e preparou-se para parar.
Radenbaugh espreitou para a frente e viu o piloto a fazer-lhe sinal. Pegou
nervosamente na mala e, baixando-se, saiu da cabina para pular para o cais de
madeira. O piloto chamou-o e ele lembrou-se, voltando atrás para receber a potente
lanterna.
Já em terra, começou a subir o carreiro. Os pontos de referência que tinha
decorado eram claros. As únicas dificuldades eram a escuridão, apesar da lanterna, e
o peso da mala, com três quartos de um milhão de dólares no interior. Algum tempo
depois (tinha perdido totalmente a noção do tempo), divisou o primeiro dos
depósitos de petróleo, cercou o lugar da entrega com a luz da lanterna e dirigiu-se
para lá.
Estava a escassos dez metros do tanque, arfando da longa caminhada no
silêncio, quando ouviu um ruído. Parou. Ouviu uma voz.
- É o senhor Miller?
A voz era aguda e com um sotaque claramente espanhol.
- Sou.
- Apague a lanterna. Desligou rapidamente a luz.
A voz com sotaque irrompeu novamente da escuridão. Estava perto.
- Qual é a sua senha?
Já quase se tinha esquecido. Mas lembrou-se:
- Linda - disse em voz alta, e repetiu: -Linda.
Houve um murmúrio.
- Deixe ficar o que traz no local onde está. Volte pelo mesmo caminho, volte
para o barco.
Pousou a mala no chão, à sua frente.
- Está bem - disse. - Vou-me embora.
Deu meia volta rapidamente e apressou o passo assim que encontrou o
caminho. Na escuridão, sem acender a lanterna, atrapalhou-se, tropeçou e caiu.
Depois de se levantar, seguiu mais devagar. Minuto depois, parou para retomar o
fôlego. Percebeu então de qualquer coisa. Um murmúrio de vozes, duas vozes, que
falavam animadamente por trás de um renque de árvores. Ainda mal tinha pensado
no dinheiro depois de o retirar da margem do pântano coberto de vegetação tropical.
Agora, quase um homem livre, permitiu-se pensar nele. Perguntou a si próprio para
que quereria Tynan uma quantia tão avultada, sem barulho. Talvez tivesse
problemas financeiros particulares. Perguntava-se porque teria sido confiado a duas
pessoas, uma das quais pelo menos era de origem espanhola. Perguntou-se quem
seriam. Talvez agentes do FBI. Estava tentado a espreitar. Donald Radenbaugh não
cairia em tal tentação. Herbert Miller sim, e foi o que fez. Em vez de voltar ao
caminho, cortou em diagonal por entre pinheiros dispersos. Andava cautelosamente,
para não tropeçar e cair de novo. Passados cinco minutos, viu uma luz.
Aproximou-se a rastejar, deslizando de árvore para árvore, até ficar a cerca de
dez metros de distância. Parou e observou, e ouviu, sustendo a respiração.
Lá estavam efetivamente dois homens.
Um, completamente iluminado pela lanterna do companheiro, estava
ajoelhado diante da mala aberta, contando ou examinando o dinheiro. O
companheiro, de pé a segurar na lanterna, não se podia reconhecer.
O mais alto, que segurava a lanterna, perguntou em inglês sem sotaque :
- Está tudo?
O que estava de joelhos, atarefado, respondeu:
- Está tudo.
O homem da lanterna gracejou:
- Ah, vais ficar riquíssimo... o rico Seftor Ramon Escobar.
- Santo Deus, vê se te calas, Fernandez! - grunhiu o que estava de joelhos,
olhando diretamente para a luz da lanterna e acrescentando qualquer coisa em
espanhol.
Radenbaugh viu-o distintamente: baixo, cabelo negro encaracolado, patilhas
compridas, cara horrível com maçãs do rosto profundamente cavadas e uma cicatriz
lívida ao longo do maxilar.
Enquanto o indivíduo chamado Escobar se consagrava novamente ao
conteúdo da mala, os dois homens continuaram a conversar, mas agora apenas em
espanhol. Continuar a espiá-los não levava a nada; Radenbaugh afastou-se e dirigiu-
se cautelosamente para o caminho. A sua curiosidade não ficara saciada. Não podia
crer que este par, Escobar e Fernandez, fossem agentes do FBI. Quem eram, então?
Que teriam a ver com o diretor Tynan?
Quando descobriu o caminho e começou a caminhar para o embarcadouro,
deixou de especular sobre o que vira. Estava mais ocupado consigo próprio, com o
seu futuro. A travessia de regresso a Miami pareceu mais rápida e foi infinitamente
mais calma.
De novo em terra, e desembaraçado, sabia que agora estava livre e
completamente senhor de si.
Não, reconsiderou, ainda não estava. Faltava realizar uma cláusula do
negócio. De manhã tinha combinado (gentileza de Vernon T. Tynan, através do
contato chamado Senhora Remos) encontrar-se no hotel com um emigrante
clandestino, o cirurgião chamado Dr. Garcia.
Ao dirigir-se para uma paragem de táxi, Radenbaugh lembrou-se que o
encontro era para as dez e um quarto. Lembrou-se também que não comia há longas
horas e estava terrivelmente esfomeado e com vontade de celebrar os
acontecimentos. A opção era voltar para o seu deprimente quarto de hotel, cheio de
fome, para esperar pelo Dr. Garcia, ou satisfazer a fome, o que o faria chegar
atrasado ao encontro. Não queria perder o Dr. Garcia. A cirurgia plástica era vital e
Radenbaugh estava ansioso por saber o que o cirurgião poderia fazer aos olhos, e
aos papos que os ornavam. Também queria saber quanto tempo teria de esperar pela
operação, e quanto tempo demorariam as cicatrizes a desaparecer. Todavia, tinha a
certeza que o Dr. Garcia não se importaria que chegasse um pouco atrasado, que
esperaria, pois tinha a chave do quarto e podia instalar-se confortavelmente. Sim, o
Dr. Garcia esperaria. Não estava em posição de conseguir trabalhos daqueles todos
os dias.
Quando chegou à paragem, a decisão estava tomada.
Sentou-se no banco traseiro do primeiro táxi.
- Há um restaurante na Avenida Collins, mais ou menos a uma milha do
Hotel Fontainebleau... não sei o nome, mas indico-lhe o local - disse ao motorista.
Calculou que podia ter um jantar repousante regado com uma garrafa de
vinho sem chegar mais de meia hora atrasado ao encontro com o Dr. Garcia. O mais
importante era que nessa noite tinha cumprido a sua parte do contrato e Tynan
correspondera: o negócio estava encerrado. Era altura de comemorar.
Uma hora e quinze minutos depois, com a barriga cheia, Radenbaugh sentia-
se melhor e estava pronto para se encontrar com o Dr. Garcia e colaborar na
transformação final de Radenbaugh em Miller. Vendo que chegaria três quartos de
hora atrasado, Radenbaugh apressou-se a apanhar outro táxi, mandou-o seguir para o
Hotel Bayamo, atravessou a ponte da Baía Byscane e entrou no centro de Miami.
Quando o táxi voltou para a Rua West Flagler e se aproximou do Hotel, viu
uma multidão aglomerada à frente da entrada: muita gente na rua, um carro dos
bombeiros a afastar-se e dois carros da polícia. O problema era nas vizinhanças do
hotel.
- Pode deixar-me aqui na esquina - disse ao taxista. Avançou rapidamente
pelo quarteirão até ao local onde se desenrolava uma cena de atividade frenética.
Quando chegou junto da multidão viu que todas as atenções se concentravam no
Hotel Bayamo. Bombeiros de capacete retiravam as mangueiras do átrio. O fumo
ainda saía em rolos das janelas destroçadas do terceiro andar. Radenbaugh
estremeceu ao lembrar-se que o seu quarto era no terceiro andar.
Dirigiu-se ao espectador mais próximo, um jovem barbudo com uma
camisola da Universidade de Miami:
- Ena, o que é que aconteceu?
- Houve uma explosão seguida de incêndio no terceiro andar, há cerca de uma
hora. Destruiu quatro ou cinco quartos. Parece-me que ouvi alguém dizer que houve
um morto e dois feridos.
Radenbaugh esgueirou-se e viu três ou quatro homens e mulheres, um deles
de microfone (obviamente jornalistas) a entrevistarem um bombeiro, provavelmente
o chefe. À pressa, Radenbaugh acotovelou e abriu caminho através da massa,
murmurando que era da imprensa, até chegar à primeira fila dos espectadores. Pôs-
se atrás do porta-voz do departamento de incêndios.
Esforçou-se por ouvir o que diziam.
- Houve um morto? - perguntou o repórter.
- Sim, tanto quanto sei, morreu apenas uma pessoa. O ocupante do quarto
onde a explosão se deu. Deve ter morrido instantaneamente. O quarto foi destruído
pelo fogo e ele estava completamente calcinado. Chamava-se... deixe-me ver... Sim,
aqui está (encontramos alguns restos de documentos), o seu nome era
provavelmente... Herbert Miller. Não temos mais indicações.
Radenbaugh tapou a boca para sufocar um grito. Um outro repórter
perguntou:
- Já determinaram a causa da explosão? Foi uma fuga de gás ou uma bomba?
- Ainda não podemos dizer. É muito cedo para responder. Só amanhã é que
teremos mais informações para dar.
Trêmulo, Radenbaugh afastou-se e voltou a empurrar a multidão até ao
passeio.
Confuso, tentava refletir no que tinha acontecido. Raramente um homem
escapa para assistir a uma, quanto mais a duas necrologias.
Tynan tinha matado Radenbaugh para o fazer ressurgir como Miller. Assim
que teve os três quartos de milhão, tinha tratado de matar Miller. E, de fato,
oficialmente matara-o. O pulha, o grande pulha! Mas não podia fazer nada, nem
agora nem mais tarde, Radenbaugh sabia-o bem. Era um morto, um ninguém, sem
identidade. Compreendeu então que, no final das contas, talvez isso lhe trouxesse
segurança, na medida em que nunca viria a ser reconhecido, nem como Radenbaugh
nem como Miller. No entanto, precisava de um cirurgião plástico -pobre Dr. Garcia-,
o mais depressa possível. Para isso, precisava de um lugar para se esconder e de
alguém em quem pudesse confiar. Não havia ninguém... Sim, havia uma pessoa.
Começou a andar, à procura de outro táxi, um táxi que o levasse ao aeroporto
internacional de Miami.
***
Na manhã seguinte, Chris Collins, sentado à secretária no Departamento de
Justiça em Washington, recebeu avidamente o telefonema do adjunto do Procurador-
Geral.
- Então, Ed, o que é que descobriu?
- A caixa postal número 153 da estação William Penn de Filadélfia estava e
ainda está alugada a Susan Radenbaugh.
- E a morada? Os correios têm a morada?
- Está com sorte. É a Rua South Jessup, número 419. Ouça, Chris, para que é
tudo isto?
- Conto-lhe quando nos virmos. Obrigado, Ed.
Collins desligou, assentando o endereço no bloco. Durante instantes ficou a
contemplar a direção. Bem, pensou, talvez Lewisburg não fosse tempo
completamente perdido. Tinha perdido a grande hipótese por Radenbaugh ter
falecido três dias antes. Mas ficara um leve fio que podia conduzi-lo ao Documento
R: o parente mais próximo, Susan Radenbaugh, a filha adorada. Ela tinha sido muito
íntima do pai. Tinha continuado em contato com ele. Se ele sabia do Documento R,
talvez ela tivesse ouvido falar a esse respeito. Seria muita sorte, mas é a última
hipótese, refletiu Collins. Levantou-se, atravessou o amplo gabinete e enfiou a
cabeça na sala da sua secretária.
- Marion, como estamos de marcações para o resto do dia?
- Já há muita coisa para um sábado.
- Não há nada que se possa cancelar ou adiar?
- Receio que não, senhor Collins.
- E para amanhã?
- Deixe-me ver... Tem coisas ligeiras da parte da manhã...
- Ótimo. Adie todos os encontros. Pegue no telefone e marque-me uma
reserva no primeiro vôo da manhã para Filadélfia. É importante. Pelo menos espero
que seja.

Capítulo sexto
Era uma pequena casa de madeira inexpressiva, por trás de uma grande
residência na Rua South Jessup, em Filadélfia. Talvez tivesse sido em tempos um
anexo para convidados, mas presentemente era uma casa de aluguel própria para
uma pessoa só que desejasse tranqüilidade.
Antes de sair de Washington, Chris Collins tinha procurado recolher
elementos sobre Susan Radenbaugh. Pouco havia a saber. Era filha única de Donald
Radenbaugh. Tinha vinte e seis anos. Tirara o curso na Universidade de Pittsburgh.
Estava empregada no Inquirer de Filadélfia como redatora de biografias.
Quando Collins lhe tinha telefonado pessoalmente para o jornal, para lhe
marcar um encontro, fora informado de que ela se encontrava em casa, doente.
Collins compreendera. Ela tinha perdido o pai. Precisaria de algum tempo para se
recompor. Collins não se dera ao trabalho de lhe telefonar para casa. Tinha a certeza
de a encontrar. Uma vez chegado a Filadélfia, tinha dito ao motorista do carro
alugado para o levar diretamente ao endereço da Rua South Jessup. Deixara o carro
com o condutor e o guarda-costas à distância de meio quarteirão e dirigira-se a pé
até ao local.
Agora, no passeio, observava o alpendre da casa de madeira. Atravessou a
rua a pensar no que diria a Susan Radenbaugh. Mas pouco havia para pensar. Ou o
pai lhe tinha contado alguma coisa sobre o Documento R ou não tinha. Era a última
e incerta esperança. Susan era a derradeira hipótese.
Atravessou o pequeno quintal das traseiras, chegou à porta principal e tocou à
campainha.
Esperou. Não teve resposta.
Voltou a tocar sem melhores resultados. Já conjecturava que ela teria ido às
compras ou consultar o médico, quando a porta se entreabriu. Uma mulher jovem
espreitava pela frincha. Era atraente, com cabelo louro até aos ombros e um rosto
fatigado que parecia de palidez e rigidez irreais.
- Susan Radenbaugh? - perguntou Collins.
Ela esboçou um gesto de assentimento.
- Telefonei para o seu jornal esta manhã, para marcar um encontro. A
telefonista disse-me que estava em casa doente. Vim de Washington para a ver.
- O que é que deseja?
- Desejo falar-lhe por uns instantes a respeito do seu pai. Lamento...
- Não posso receber ninguém agora - disse ela abruptamente. Estava
fortemente agitada.
- Deixe-me explicar-lhe...
- Quem é você?
- Sou Christopher Collins. Sou o Procurador-Geral dos Estados Unidos. Eu...
- Christopher Collins? - Ela reconheceu o nome. - O que é...
- Preciso falar consigo. O coronel Noah Baxter era meu amigo e...
- Conhecia Noah Baxter?
- Sim. Por favor, deixe-me entrar. Só por alguns minutos.
Ela hesitava, mas acabou por abrir a porta.
- Está bem, mas só alguns minutos.
Seguiu-a até à pequena mas agradável sala de estar, profusamente decorada
com almofadas coloridas. À esquerda havia uma porta que dava provavelmente para
o quarto. Um arco, à direita, deixava ver uma pequena mesa de sala de jantar e a
entrada para a cozinha.
- Pode sentar-se - disse ela.
Ele sentou-se à beira do móvel mais próximo, uma otomana. Ela ficou de pé à
sua frente, alisando nervosamente o cabelo.
- Lastimo imenso o que aconteceu ao seu pai. Se eu puder ser-lhe útil...
- Obrigado. É realmente o Procurador-Geral?
- Sou.
- Não foi mandado pelo FBI ?
Collins sorriu.
- Eu é que mando neles, não são eles que mandam em mim. Não, estou aqui
por minha vontade. Devido a um assunto pessoal.
- Disse que era amigo do coronel Baxter?
- Era, e creio que o seu pai também era.
- Eram muito íntimos.
- Foi por isso que vim cá - disse Collins. - Porque o seu pai e o coronel eram
amigos. Na noite em que morreu, o coronel deixou-me uma mensagem do que foram
as suas últimas palavras. Falava de um assunto que desde então me tem ocupado. Já
não consegui falar com ele, mas ocorreu-me que o seu pai podia saber alguma coisa
a esse respeito, de conversas com ele. Sei que o coronel lhe fazia muitas
confidências.
- É verdade - disse Susan Radenbaugh. - Como soube disso?
- Através de Hannah Baxter, que me sugeriu que visitasse o seu pai em
Lewisburg. Ela pensava que talvez ele conhecesse o assunto. E eu fui a Lewisburg
há dois dias, sabendo então que ele tinha falecido. Entretanto, informaram-me que
você era a única pessoa com quem o seu pai contatava. Ocorreu-me que talvez ele
lhe tivesse falado no assunto. Estive a investigar e decidi vir cá para falar consigo.
- O que é que quer saber?
Collins respirou fundo e fez-lhe a pergunta:
- O seu pai falou-lhe acerca de um tal Documento R? Ela ficou impassível.
- De que se trata?
O coração de Collins caiu-lhe aos pés.
- Não sei. Esperava que soubesse.
- Não - disse ela firmemente -, nunca ouvi falar disso.
- Raios - murmurou Collins, ofegante. - Desculpe-me, mas fiquei
desapontado. Você e o seu pai eram as minhas últimas esperanças. Bem, tentei... -
Levantou-se da otomana. - Não a aborrecerei mais. - Ainda hesitava. - Permita-me
que lhe diga só mais uma coisa: o coronel Baxter acreditava no seu pai. Antes do
ataque estava até a tentar que lhe aceitassem uma fiança. Depois disso, fiz uma
revisão do caso e concordei com ele: o seu pai foi uma vítima. Eu também
tencionava conseguir-lhe uma fiança. Prometi à senhora Baxter que havia de discutir
esse assunto com o seu pai, quando o fosse procurar para tratar do Documento R.
Hannah Baxter disse-me que lhe ia escrever para cooperar comigo. - Encolheu os
ombros. Bem, infelizmente cheguei tarde demais.
Viu os olhos da rapariga dilatarem-se enquanto levava a mão à boca, como se
olhasse para trás dele. De repente, ouviu-se uma terceira voz na sala.
- Não chegou tarde desta vez - disse alguém por trás de Collins.
Voltou-se e viu-se perante um estranho, de pé sob o arco que ligava à casa de
jantar.
O homem idoso parecia-lhe vagamente familiar, embora não o conhecesse.
O homem avançou para ele e parou.
- Sou Donald Radenbaugh - disse calmamente. - Que queria saber sobre o
Documento R?
Passou mais de meia hora antes de o Documento R voltar a ser mencionado.
Primeiro, surgira a incredulidade de Collins. Radenbaugh depressa a
dissipara.
- Radenbaugh escapou à morte - disse ele. - Só estou morto oficialmente. De
fato, até estou bem vivo. Mas teremos tempo para falar de mim quando eu souber
mais a seu respeito e depois de me contar como chegou até aqui.
Em seguida, surgira a incredulidade de Susan. Radenbaugh depressa a
dissipara.
- Não compreendes como me arrisquei a aparecer, Susie? Especialmente
perante uma pessoa do Departamento de Justiça? É porque preciso de alguém em
quem confie, além de ti. Parece-me que posso confiar no Procurador Collins. Ele
mostrou-se simpático mesmo antes de saber que eu estava aqui. Preciso de ajuda,
Susie. Talvez se eu o ajudar, ele também me ajude.
Por fim, surgira a incredulidade do próprio Radenbaugh. Dissipara-a pedindo
que Collins lhe explicasse como tinha tomado conhecimento do Documento R e
como suspeitara que Radenbaugh o conhecia.
- Talvez já tenha explicado à minha filha, mas não consegui ouvir o princípio
da conversa. Estava escondido na cozinha. Só depois é que me aproximei, para
escutar. Antes de continuarmos, poderia começar por me dizer como veio aqui ter.
Tinham-se sentado frente a frente no sofá-cama, encostados às almofadas
empilhadas contra a parede da sala de estar.
Collins falara com atenção, devagar, com franqueza, apresentando todos os
pormenores sobre os acontecimentos ocorridos desde a morte do coronel Baxter. Por
fim, falara na visita a Hannah Baxter.
Embora declarando desconhecer o documento, ela tinha afirmado que se
Noah tivesse confiado o seu conteúdo a alguém, poderia ter sido a Donald
Radenbaugh.
- Sim, ela escreveu-me para que aguardasse a sua visita - dissera
Radenbaugh.
- E eu fui visitá-lo - respondera Collins. - O diretor disse-me que tinha
morrido, mas afinal está aqui.
- Agora que já sei como cá chegou, deixe-me contar-lhe o que me aconteceu.
E a sorte que tenho em estar aqui. Tem de pôr de parte toda a descrença.
Collins ouvira-o, em silêncio, muitas vezes incapaz de esconder a dúvida. O
encontro secreto de Tynan com Radenbaugh e a oferta da liberdade em troca dos três
quartos de milhão, tinham-no deixado atordoado. E tinham também levantado a
questão de saber para que quereria Tynan tão veementemente tal soma a ponto de
correr riscos tão grandes, mas Collins não tinha querido interromper com perguntas.
Continuara a ouvir, enquanto Radenbaugh relatava a sua história até ao momento da
destruição do quarto do hotel onde o seu alter ego, Herbert Miller, fora
indubitavelmente eliminado. No fim da narrativa, Collins deixara de ter dúvidas
sobre o que se passara na Califórnia.
- Tynan - dissera ele em voz alta.
- É ele quem está por trás de tudo - concordara Radenbaugh. É fácil dizer
porquê. Eu li a 35.a emenda. Ela irá torná-lo o homem mais poderoso da América.
Mais poderoso que o Presidente. Mas aposto que não há a menor prova contra ele.
Collins tinha estado a pensar nisso.
- Até agora nenhuma. A menos... a menos que esteja envolvido no
Documento R. Podemos passar a esse assunto?
- Sim. Mas antes quero pedir-lhe três coisas.
- Diga.
- Primeiro, quero que me façam a operação plástica no rosto. Pelo menos nos
olhos. Talvez seja o suficiente. Não me parece que possa ser reconhecido
atualmente, mas se fosse, seria um homem morto. Tynan encarregar-se-ia disso.
- Não há problemas. Temos um cirurgião em Carson City, no Nevada, que o
FBI desconhece. Tanto a Cosa Nostra como a CIA
recorrem aos seus serviços, se quer garantias. Quando pretende tratar disso?
- Imediatamente. Pode ser já amanhã.
- De acordo.
- Segundo, preciso de uma nova identidade. Donald Radenbaugh morreu em
Lewisburg; Herbert Miller morreu em Miami. - Tinha puxado da carteira, retirando
três cartões para os entregar a Collins. Uma carta de condução, um cartão de crédito
para aluguel de automóveis e um cartão da Previdência Social... é tudo o que resta
de Herbert Miller. Já não servem. Preciso de novos documentos. Tenho de ser
alguém.
- Têm de ser preparados em Denver - dissera Collins. - Tem-nos dentro de
cinco dias... Que mais? Disse que havia mais uma coisa.
- Sim, uma promessa solene da sua parte.
- Continue.
- Que se acaso eu disser a verdade acerca de Tynan, acerca da minha morte
simulada, e restituir a minha parte do dinheiro, me ajudará a retomar o meu
verdadeiro nome e a conseguir a fiança ou a anistia.
- Não sei se isso será possível.
- Mas se for?
Collins refletira rapidamente no dilema. Poderia ele, enquanto primeiro
magistrado da nação, fazer um acordo com um condenado por burla? Sabia que o
seu dever legal era claro: não fazer promessas a Radenbaugh e pô-lo sob prisão. Mas
também sabia que, atendendo à singularidade das circunstâncias, tinha um dever
mais alto, um dever para com o seu país. Era este que estava em primeiro lugar.
Transcendia todos os legalismos mesquinhos. Dera a resposta:
- Nessa altura, se for possível, fá-lo-ei - dissera Collins. - Sim, ajudá-lo-ei.
Juro fazê-lo.
- Agora já posso falar do Documento R.
Tudo isto tinha levado a primeira meia hora. Chegavam finalmente àquilo
que para Collins era o momento da verdade.
Radenbaugh pediu um cigarro à filha, sorriu-lhe enquanto o acendia e voltou-
se para Collins.
- Não sei tudo sobre ele - disse vagarosamente -, mas talvez saiba coisas que
o possam ajudar. A 35.a emenda... O Documento R faz parte dela, embora não seja
escrito...
Quer dizer, é uma parte secreta... A emenda, dizia eu, foi forjada antes de eu ir para
a cadeia. Era um motivo de preocupação para Noah Baxter. É verdade que ele era
um conservador e um retrógrado em relação a muitas coisas, mas era um homem
honesto e um constitucionalista ferrenho. Não gostava de adulterar a Constituição
nem de pervertê-la. Mas como a criminalidade aumentava cada vez mais no país e a
pressão era constantemente maior, foi encurralado a um canto. Tinha uma tarefa a
cumprir e compreendia que não o podia fazer; que a ordem só podia ser restaurada
no país se a lei fosse alterada. Pensava que a 35.a emenda era muito drástica. Tinha
graves suspeitas sobre ela. Mas continuou. Percebi que lamentava tais medidas. No
final, suponho que estava tão comprometido que não podia desligar-se.
- Penso que foi exatamente isso que aconteceu - disse Collins. - Como lhe
contei, ele disse na agonia: "Tenho de o contar... Já não me podem controlar... Estou
livre, já não preciso ter medo...'' Livre de quê? Receoso de quem ou de quê?
Radenbaugh abanou a cabeça.
- Não sei. Só lhe posso dizer que estava mais comprometido do que desejava,
que estava muito preocupado e não tinha mais ninguém para fazer confidências
senão a
mim. Quando estava mais aborrecido, contava-me o que se passava. Foi assim que
me mencionou o Documento R. Referiu-se-lhe várias vezes. Preferia que Tynan não
o tivesse comprometido com a emenda nem com o Documento R.
- Tynan?... - disse Collins com surpresa. - Pensava que tinha sido o
Presidente Wadsworth a instigar a emenda e tudo o que se relaciona com ela.
- Não, foi tudo obra de Tynan. Ele é que é o autor e criador da emenda e do
documento. Vendeu a idéia ao Presidente e ao Congresso. Pelo menos, vendeu-lhes
a emenda. Não sei se alguém além de Tynan e Baxter (e eu, é claro), já ouviu falar
do Documento R.
- Mas afinal do que se trata?
- O R é inicial de Reconstrução. É o Documento da Reconstrução.
- Reconstrução de quê? Dos Estados Unidos?
- Exatamente. O Documento R foi concebido secretamente como um plano
suplementar à emenda. É um projeto para reconstruir os Estados Unidos, tornando-o
um país sem criminalidade graças à 35.a emenda. O Documento divide-se em duas
partes. Baxter conhecia apenas uma parte. A segunda, de acordo com o que me
disse, ainda estava a ser elaborada por Tynan. A primeira parte era o programa
piloto.
Confuso, Collins perguntou:
- O programa piloto? O que é isso?
- Era isso que eu lhe ia explicar. Disse-lhe que foi Tynan quem concebeu a
emenda. Vou dizer-lhe de onde lhe veio a idéia. Ao tentar elaborar novas leis a
recomendar ao Presidente e ao Congresso, novas leis que pudessem travar a
crescente escalada da taxa da criminalidade da nação, Tynan lembrou-se de fazer um
estudo sobre as comunidades sem criminalidade ou com índices muito baixos nos
Estados Unidos. Se havia cidades com índices baixos, quais seriam os elementos na
estrutura dessas comunidades que tornavam tal fato possível?
- Até aí é compreensível.
- Até aí -repetiu Radenbaugh. - Bem, os auxiliares de Tynan alimentaram os
computadores e eles lançaram-se ao trabalho. Depois indicaram uma mão cheia de
comunidades praticamente sem criminalidade. Em todos os casos, essas
comunidades eram cidades pertencentes a companhias.
- Cidades de companhias?
- Os Estados Unidos estão cheios delas. Geralmente são cidades construídas e
administradas para uso exclusivo do pessoal das companhias. Podemos citar casos
típicos como Morenci no Arizona, onde Phelphs Dodge abriu as suas minas de
cobre. Todas as casas, os armazéns e as casas comerciais pertencem a Phelphs
Dodge. A vida da cidade é integralmente dominada pela companhia. Ora, nem todas
as cidades de companhias estão livres da criminalidade. Não sei se é o caso de
Morenci. Mas em algumas delas, o crime é praticamente inexistente. Isso acontece
com maior freqüência em comunidades pequenas e remotas, onde uma única
companhia ou pessoa domina toda a vida da cidade.
- Uma ditadura!?
- De certo modo. Pelo menos um lugar onde há controles econômicos e
sociais poderosos e rígidos. Entre essas comunidades que Tynan descobriu serem
quase isentas
de crime, havia uma que o fascinava. Possuia o melhor registro histórico. Não havia
praticamente crimes nem desordens. Chamava-se Argo City e era propriedade
exclusiva
da Companhia Argo de Fundição e Refinação do Arizona. Tynan fez uma
investigação aturada sobre essa comunidade e encontrou o segredo dos resultados de
Argo City. Descobriu que nessa cidade a Declaração de Direitos, ou a maior parte
das liberdades consagradas na Declaração, tinham sido suspensas. Os habitantes
pareciam não se importar. Mostravam-se satisfeitos na medida em que se sentiam
seguros econômica e fisicamente. Baseando-se na estrutura legal dessa cidade,
Tynan criou a 35.a emenda. Pensou que o que funcionava bem em Argo City,
poderia resultar perfeitamente em todos os Estados Unidos da América.
- Fascinante - disse Collins. - É diabólico.
- Mas muito mais diabólico foi o que Tynan fez a essa cidade. Precisava ter
certeza de que todos os pormenores da emenda funcionariam na vida real. Assim,
usou o povo de Argo City como cobaia. Como conseguiu meter lá os seus agentes e
fazê-lo? Investigou a companhia que governava a cidade e descobriu que a Fundição
e Refinação Argo estava a cometer fraudes nos impostos há já vários anos. Fez
pressão sobre os administradores e eles logo chegaram a acordo. Se Tynan não
denunciasse ao Departamento de Justiça o que tinha descoberto, eles deixavam-lhe
as mãos livres, a ele e aos seus agentes, para dirigirem a comunidade. Assim, Tynan,
tal como poderá ficar à cabeça do comitê de Segurança Nacional sob a égide da 35.a
emenda, ficou à cabeça de um protótipo de comitê de segurança em Argo City. Era o
seu campo de ensaio para ver como a emenda funcionaria quando entrasse em vigor.
- Meu Deus, é incrível - disse Collins. - Quer dizer que existe atualmente essa
cidade sem Declaração de Direitos?
- Tanto quanto sei, existe.
- Mas isso não pode ser consentido numa democracia. É ilegal.
- Passará a ser legal quando a emenda for aprovada na Califórnia - disse
Radenbaugh. - Portanto, os resultados da experiência constituem a primeira parte do
Documento R.
- E a segunda parte?
Radenbaugh levantou as mãos.
- Não sei.
Collins refletiu no que tinha ouvido.
- Não posso acreditar que isso tenha dado resultado. O que aconteceu?
Funcionou bem em Argo City?
Radenbaugh fixou Collins.
- Terá de ver pelos seus próprios olhos. - Fez uma pausa. Gostaria de ver?
- É claro. Quero chegar ao cerne da conspiração de Tynan. Está muita coisa
em jogo. E será seguro?
- Pouca gente visita a cidade; pelo menos era assim quando ouvi falar disso
pela última vez. Mas se formos só os dois talvez não pareça estranho.
- Seremos três.
- Três! - disse Radenbaugh. - Assim já pode ser perigoso.
- Vale bem o risco - concluiu Collins.
Mal chegara a Washington, Chris Collins tinha posto em ação um profundo
projeto de investigação sobre as cidades de companhias nos Estados Unidos -
cidades de companhias em geral e Argo City, no Arizona, em particular.
A investigação fora feita sem ruído e rapidamente, e neste momento,
passados quatro dias, já tinha os dossiers com os fatos básicos espalhados sobre o
mata-borrão da sua ampla secretária, no Departamento de Justiça.
Começou a rever os fatos. Viu de imediato que as cidades de companhias
eram um fenômeno natural e inocente ligado ao crescimento da nação. Quando uma
companhia abria uma mina numa região remota, precisava de homens que nela
trabalhassem. Para conseguir empregados para essas regiões longínquas do país, as
companhias tinham de construir cidades para as famílias viverem. Para construírem
cidades, tinham de fazer casas, criar lojas, facultar divertimentos e assistência
médica. As companhias eram também obrigadas a criar a administração local e a
oferecer a proteção da polícia. Enfim, as companhias faziam tudo para o povo e em
troca o povo submetia-se ao seu domínio e passava a pertencer-lhes.
Collins leu o registro. Tinha existido Pullman no Dlinois, a dez milhas de
Chicago, construída por George M. Pullman, o milionário que possuía o monopólio
das carruagens-camas dos caminhos de ferro. Pullman alojava os seus 12.000
empregados na sua cidade particular. Segundo uma fotocópia de um Harper's New
Monthly Magazine do princípio do século: "As companhias Pullman possuem tudo.
Nenhum indivíduo possui hoje um centímetro que seja de terra nem uma única
estrutura em toda a cidade. Nenhuma organização, nem mesmo uma igreja, pode
ocupar outra coisa que não sejam bens alugados. São patentes alguns aspectos
desagradáveis da vida social: má administração... favoritismo e nepotismo... a
sensação obsessiva de insegurança. Ninguém considera Pullman como a sua
verdadeira terra. O poder de Bismarck na Alemanha é insignificante quando
comparado com o poder das autoridades que governam no Palácio Pullman da
companhia de carruagens, em Pullman. Cada homem, mulher ou criança da cidade
está totalmente à sua mercê. Estamos perante uma população em que nem um único
residente ousa exprimir livremente a sua opinião sobre a cidade em que vive.''
O fato de George M. Pullman sufocar os seus dependentes, impondo
encargos e rendas mais elevadas que nas comunidades vizinhas, levou os habitantes
a revoltarem-se. Chegaram a processar e a destruir o seu domínio sobre a
propriedade da comunidade. Mas Pullman, no Illinois, tinha sido uma exceção. A
maior parte das cidades de companhias modernas pareciam suficientemente
suportáveis. Era o caso de Scotia, na Califórnia, pertencente à companhia de
Madeiras do Pacífico; Anaconda, em Montana, pertencente à Companhia dos Cobres
de Anaconda; Louviers, no Colorado, da E.I. du Pont de Nemours; Sunnyside, no
Utah, da Companhia Petrolífera do Utah; Trona, na Califórnia, da Corporação
Americana da Potassa e Produtos Químicos.
Por fim, na última folha, lá estava Argo City, no Arizona, pertencente à
Companhia de Fundição e Refinação... e a Vernon T. Tynan e ao FBI. O material
disponível sobre Argo City era parco, estranhamente parco. A investigação mostrava
claramente a diferença entre Argo City e as outras cidades de companhias que
existiam por todo o lado. Na generalidade das cidades, nem tudo era propriedade da
companhia e nem todas as pessoas lhe estavam sujeitas. Por vezes as pessoas
podiam comprar e possuir as suas casas. Por vezes, pessoas de fora podiam abrir
lojas. Em geral, as pessoas que não trabalhavam para a companhia nem por isso
eram proibidas de viver na cidade. Mas em Argo City não era assim. Tudo pertencia
à companhia: casas, comércio, instituições, governo. Nada levava a crer que um
estranho, uma pessoa que não trabalhasse para a companhia, tivesse podido adquirir
uma casa ou abrir uma loja em toda a história da cidade. E não havia crimes sérios
ou desordens em Argo City há cinco anos. Era demasiado bom, ou demasiado
horrível para ser verdade.
Collins fechou a capa.
Só havia uma maneira de conhecer a realidade: ir ver pessoalmente. Se o que
presenciassem fosse uma antevisão da América sob à égide da 35.a emenda, então
mais alguém, além dele e de Radenbaugh, devia ver o espetáculo, alguém que
pudesse travar a emenda, se necessário. A sua decisão estava tomada.
Levantou o telefone e ligou para a secretária.
- Marion, estes telefones foram vistoriados?
- Já não é necessário, senhor Collins. O equipamento de interferências foi
instalado esta manhã.
A sua preocupação desvaneceu-se. O telefone tinha finalmente um aparelho
de interferências, o que significava que as chamadas que fizesse só seriam
inteligíveis ao chegarem ao destinatário. Sentindo-se mais descansado com essa
precaução, pegou no telefone e preparou o passo seguinte.
- Ligue para o Presidente do Supremo Maynard, imediatamente. Se não
estiver, localize-o, quero falar já com ele.
***
Ao fim da manhã de uma sexta-feira quente e seca do fim de Junho, tinham
chegado de avião a Phoenix, no Arizona, vindos de três lugares diferentes. Chris
Collins, com a reserva no avião feita em nome de C. Cutshaw, proveniente do
aeroporto Friendship de Baltimore, via Chicago, tinha chegado ao aeroporto de Sky
Harbor, em Phoenix, num jato 727, precisamente às onze horas. Era o primeiro.
Donald Radenbaugh, viajando com o novo nome de Dorian Schiller, chegara
pouco depois de Carson City, via Reno e Las Vegas, num DC-9. Deveria ter sido o
primeiro, mas o vôo tinha sido atrasado uma hora e quinze minutos.
Por fim, o Presidente do Supremo, John G. Maynard, sob o pseudônimo de
Joseph Lengel, chegara de Nova Iorque num 707 à hora combinada, às onze e
quarenta e seis.
Tinham combinado antecipadamente que Collins e Radenbaugh não
esperariam por Maynard, pois seria arriscado entrarem em Argo City e registarem-se
no Hotel Constellation ao mesmo tempo. Tinha ficado combinado que Collins e
Radenbaugh partiriam para Argo City imediatamente, sendo seguidos depois por
Maynard quando chegasse.
Collins esperara impacientemente no terminal até ao aviso de que o vôo
atrasado de Radenbaugh tinha pousado. Só reconhecera Radenbaugh a curta
distância. O cirurgião de Nevada tinha feito um bom trabalho. Tinha havido uma
mudança no nariz de Radenbaugh, que ainda estava ligeiramente inchado. Quando
ele tirara os grandes óculos escuros, Collins tinha notado o desaparecimento dos
papos por baixo dos olhos, substituídos por cicatrizes esbatidas; os próprios olhos
tinham ficado menores, parecendo orientais. Todo o seu aspecto tinha sido alterado
consideravelmente.
- Senhor Cutshaw? - dissera ele divertido.
- Senhor Dorian Schiller - respondera Collins, entregando-lhe um sobrescrito.
- O seu batismo oficial está aqui dentro. As pessoas de Denver foram eficientes.
Tudo o que pretender saber sobre Dorian Schiller vai nesse sobrescrito.
- Não tenho palavras para lhe agradecer.
- Eu é que agradeço pelo local onde nos vai levar hoje. Espero que seja como
ouviu dizer. Se assim for, ficará tudo nas mãos de John Maynard. - Olhara para o
relógio do terminal. - Ele estará aqui dentro de uns vinte minutos. Tomará um táxi
para Argo City. Collins apontou para a saída. - Tenho um Ford alugado à nossa
espera.
Tinham seguido para sudoeste através de campos verdes recortados por
brilhantes valas de irrigação, até entrarem na imensidão do deserto. Tinham
continuado então a caminho da fronteira do México.
Por fim, tinham encontrado uma tabuleta amarela que dizia: ARGO CITY.
População: 14.000 habitantes. Sede da Companhia Argo de Fundição e Refinação.
Radenbaugh, ao volante, tinha apontado para o lado de Collins.
- Lá está o poço da mina de cobre. Tem 2500 metros de extensão e perto de
200 metros de profundidade. É onde trabalha a maior parte da população masculina.
Minutos depois estavam no centro de Argo City: uma única avenida larga,
alcatroada, com quatro ou cinco ruas laterais. Collins tinha conseguido identificar
alguns dos edifícios alvos e bem conservados: um grande supermercado, construído
horizontalmente e com a fachada envidraçada; a seguir, a estação de correios; o
teatro; qualquer coisa chamada Loja de Manutenção da Cidade; um pequeno jardim
asseado, com áleas que iam até à Biblioteca Pública; uma igreja episcopal com
campanário; um prédio de tijolo com dois andares e um letreiro dizendo que se
tratava do Bugie, provavelmente o jornal da cidade.
O edifício mais alto era o Hotel Constellation: quatro andares, bem
conservado, de estilo espanhol, apesar do nome.
Tinham parado no estacionamento junto do prédio do lado, passando em
seguida por uma loja índia que exibia bonecas de navajos, cestos, artigos de couro,
prataria e cerâmica no átrio coberto de azulejos do hotel, que circundava um pátio
central descoberto.
- Parece uma miniatura do edifício J. Edgar Hoover - dissera Collins. -
Provavelmente foi Tynan que o mandou construir.
Radenbaugh levara um dedo aos lábios.
- Não fale nisso, senhor Cutshaw - murmurara em voz baixíssima.
Na recepção tinham-se registrado como Cutshaw e Schiller, de Bisbee, no
Arizona. Tinham pedido quartos contíguos, apenas para a tarde.
Um mandarete pegara na pasta de Radenbaugh e na maleta de Collins,
acompanhara-os ao terceiro andar e conduzira-os aos quartos no fundo do corredor
ventilado, tendo o cuidado de abrir a porta de comunicação entre eles; verificara o ar
condicionado, esperara a gorjeta e partira.
Agora estavam sós no quarto de Collins.
Tinham combinado esperar pelo Presidente Maynard antes de saírem para a
cidade.
- Assim que chegar, ele manda embora o táxi - disse Collins. Partiremos
juntos para Phoenix. Nessa altura já não haverá perigo.
- Coçou a cabeça. - A mim, a cidade parece-me bastante vulgar. É tudo
perfeitamente normal, tanto quanto pude ver.
- Espere pelo que vai ver - disse-lhe Radenbaugh. Abriu a pasta. - Na noite
passada fiz uma lista de tudo o que consegui lembrar, sobre o que Noah me disse
deste lugar quando conversamos acerca do Documento R.
- E eu tenho uma lista de coisas a visitar ou a espiar, feita na base das
pesquisas que o meu pessoal efetuou. Vamos juntar as duas listas. Quando Maynard
chegar podemos ver o que parece mais prometedor e dividir o trabalho.
Trabalharam durante quinze minutos na composição de uma lista única com
tudo o que Argo City tinha demais prometedor, e quando acabaram sentiram-se
satisfeitos.
- Só faço votos que possamos achar o que queremos em quatro horas - disse
Collins.
- Vamos tentar - disse Radenbaugh. - Tudo depende agora das pessoas que
virmos e com quem falarmos aceitarem a nossa história de fachada. Tem a carta?
Collins apalpou a frente do casaco.
- Está aqui. Não há problema. Alguém do meu Departamento conseguiu
arranjar papel timbrado das Indústrias Phillips durante a noite. Não sei como foi,
mas conseguiram. Eu próprio ditei a carta de recomendação.
Recordaram e repisaram a história de fachada, ensaiando as perguntas difíceis
e suspeitas. O disfarce consistia em estarem em Argo City como representantes das
Indústrias Phillips, que tinham obtido autorização da Companhia de Fundição e
Refinação para o exame de certas realizações cívicas em Argo City. Essas
realizações seriam estudadas pelas Indústrias Phillips com vista a remodelações a
fazer e iniciativas cívicas a tomar, em breve, em Bisbee, no Arizona.
- E Maynard, que justificação apresenta? - quis saber Radenbaugh.
- A história dele é um pouco diferente. Nós pedimos quartos até ao fim da
tarde. Ele pedirá para passar a noite, embora parta conosco. Fará de turista. Será um
advogado reformado, cidadão conceituado de Los Angeles. Dirá que está de viagem
de Los Angeles para Tucson, para visitar o filho e a nora e um neto recém-nascido.
Parou em Argo City não só para passar a noite, depois de uma viagem fatigante, mas
também para ver as possibilidades de comprar aqui uma casa. Dirá que já cá esteve
uma vez e que ficou encantado com o ambiente da comunidade, estando a pensar em
estabelecer-se cá.
Radenbaugh franziu o nariz inchado.
- Não me parece uma boa história.
- Deve servir para quatro horas. Tentar morar em Argo City... Deve resultar.
- Talvez. - Collins tinha mais uma coisa em mente.
- Acha que pode haver aqui alguém, o administrador da cidade, o editor do
jornal, o chefe da polícia... qualquer pessoa... que tenha ouvido falar no Documento
R?
- Ninguém, nem sequer os administradores da Companhia de Fundição e
Refinação. Ninguém sabe que servem de cobaia do grande plano de Tynan para os
Estados Unidos, a executar no próximo ano e para todo o sempre. O Documento R
só deve ser conhecido pelo próprio Tynan e talvez pelo seu lacaio... Como se chama
ele?
- Harry Adcock.
- Sim, Adcock. E, naturalmente, era do conhecimento do falecido Noah
Baxter. Eu, a minha filha, o padre que lhe falou dele pela primeira vez, e você,
conhecemo-lo de nome. Duvido que mais alguém o tenha ouvido mencionar.
- Você disse que Argo City era apenas uma parte do Documento R. Quero
conhecer o resto. Tenho esperança de podermos descobrir aqui alguma indicação.
- Pode ser que sim, mas não conto com isso.
- Bem, o que importa é o que descobrirmos hoje - disse Collins.
- Para derrotar a emenda na Califórnia?
- Sim. Mas se não encontrarmos nada... - Ou se formos apanhados e
denunciados...
- Nesse caso, teremos de desistir. É assim, Donald. Vai ser uma tarde de
grande tensão.
- Eu sei.
Collins olhou para o relógio.
- John Maynard deve estar a chegar.
Dez minutos depois, John Maynard batia levemente à porta e entrava no
quarto de Collins. Parecia tudo menos o digno e imponente Presidente do Supremo
Tribunal dos Estados Unidos. Com o seu chapéu castanho de abas largas, óculos de
sol, camisa aberta, caqui amarrotado e botas altas, parecia um velho pesquisador que
tivesse vagabundeado até à cidade depois de duas semanas no deserto ardente.
- Cá estamos - disse ele - neste lugar esquecido por Deus. Foi uma viagem
dura, num táxi desde Phoenix. Mandei o carro embora. Fiz bem, não fiz?
- Sim - respondeu Collins -, regressaremos juntos. Maynard pousou o chapéu
na cama e sentou-se.
- Mas vamos ao trabalho. Temos pouco tempo. - Olhou para Radenbaugh. -
Você, suponho que é Donald Radenbaugh.
- Desculpe - disse Collins rapidamente, para logo os apresentar formalmente.
Maynard fixou os olhos em Radenbaugh.
- Espero que não nos esteja a fazer perder tempo. O seu relato de Argo City
era chocante, para não dizer mais. Espero que seja exato.
- Relatei só o que soube pelo coronel Baxter - disse Radenbaugh, na
defensiva. - O Documento da Reconstrução baseia-se no estudo do diretor Tynan
sobre Argo City.
- Hum. Então vamos ver os futuros Estados Unidos em miniatura, o nosso
país como será depois de aprovada e promulgada a 35.a emenda. Olhe, senhor
Radenbaugh, digo-lhe honestamente que me é difícil crer que as condições que o
coronel Baxter lhe disse existirem aqui, continuem a subsistir. Não me parece que
nenhuma comunidade dos Estados Unidos aceitasse essa situação por muito tempo.
- Muitas aceitaram, pelo menos até certo ponto - esclareceu Collins. - Fiz
estudos sobre as cidades de companhias. Embora não existisse nenhuma tão
totalitária como esta parece ser, encontrei algumas práticas espantosas e restrições
muito fortes.
- Hum. Tudo é possível. Se isso acontecer aqui... - Mergulhou nos seus
pensamentos. - Isso traria nova luz aos acontecimentos. Mas antes temos de ver
pelos nossos próprios olhos, e rapidamente. Senhor Collins, por onde começamos?
Collins estava preparado. Pegou nos apontamentos.
- Queria sugerir-lhe, senhor Presidente, que começasse por visitar a
Companhia de Argo. Afinal de contas, deve parecer que pretende viver aqui.
Portanto, desempenhando o papel de um advogado reformado, pode ir ter com o juiz
local e tentar chegar através dele ao xerife. Faça também uma visita a um dos
armazéns, um supermercado por exemplo, e meta conversa com os clientes.
- Mais devagar - disse Maynard, que tomava apontamentos num papel
colocado sobre o joelho.
Collins esperou um pouco e continuou:
- Se tiver tempo, visite o Bugie. Procure exemplares antigos. Não deve ter
tempo para mais nada, mas tente contatar com um jornalista ou com o editor.
- Vai ser precisa uma boa dose de ingenuidade - disse Maynard.
- Estaremos de volta demasiado cedo para levantarmos suspeitas - disse
Collins. - Quanto a Donald e eu, iremos à biblioteca, aos correios, tentaremos falar
com o administrador da cidade. Iremos o mais longe que for possível. Todos nós
devemos contatar com o maior número possível de cidadãos comuns. Por exemplo, à
hora do almoço falaremos com uma ou duas criadas. Ou podemos pedir indicações a
transeuntes, e aproveitar para meter conversa. Deixe-me ver... - Viu as horas no
relógio de pulso. - É uma e um quarto. Devemos estar todos aqui no meu quarto às
cinco horas. Compararemos as nossas descobertas e possivelmente saberemos então
a verdade. Vamos? O senhor sai primeiro, senhor Presidente.
Maynard levantou-se, pôs o chapéu na cabeça e saiu. Cinco minutos depois,
Collins fez sinal a Radenbaugh e saíram juntos do quarto, a caminho do elevador,
para descerem a Argo City.
O administrador da cidade empurrou os óculos dourados para o alto do nariz,
e a sua cara redonda e rosada, que encimava o nó da gravata, inclinou-se para eles
por cima do tampo vazio da secretária.
- Lamento não lhes poder conceder mais tempo - disse, apontando para o
relógio elétrico na parede. - Quatro e um quarto. Tenho outro encontro.
Levantou-se e rodeou a secretária para conduzir Collins e Radenbaugh à
porta.
- Tive muito prazer na visita. Espero ter-lhes dado alguma ajuda. Recordem-
se que uma terra simpática produz gente simpática e promove a paz. Como lhes
disse, e o xerife confirmará, em Argo City há anualmente uma meia-dúzia de delitos
de pequena importância, mas não há crimes. Em cinco anos, não tivemos a menor
desordem pública, isto é, desde que aplicamos a lei local sobre reuniões públicas. Os
nossos empregados civis sentem-se satisfeitos e produtivos. Por vezes, aparece um
fruto podre, como aquela professora cuja história lhes contei, mas deitámo-lo fora
rapidamente e não há danos. - Abriu a porta para os deixar sair. - Bem, felicidades
no vosso trabalho de remodelação e reconstrução de Bisbee. Se conseguirem fazer
metade do que aqui fizemos, podem ter orgulho nos resultados. Quando vir o senhor
Pitman das Indústrias Phillips, dê-lhe lembranças minhas.
Ficou a ver Collins e Radenbaugh afastarem-se. Quando voltava para o
gabinete, viu que a secretária o seguia.
Notando-lhe uma expressão perplexa, perguntou:
- O que há, Hazeltine?
- Esses dois homens que acabaram de sair... Ouvi-o dizer que eles tinham
vindo cá para colher informações que os ajudassem a remodelar e reconstruir
Bisbee...
- É verdade.
- Mas deve haver engano. A cidade de Bisbee foi integralmente modernizada,
planejada de novo e reconstruída há poucos anos. Tenho uma ficha da Câmara do
Comércio de Bisbee que diz isso mesmo.
Era a vez de o administrador parecer perplexo.
- Não pode ser.
- Vou mostrar-lhe.
Minutos depois, o administrador já tinha visto o dossier com recortes,
fotografias e mapas de Bisbee, demonstrativo do trabalho já finalizado de
reconstrução de partes da cidade. Parecia abalado. Pediu imediatamente uma
chamada pessoal para o Sr. Pitman das Indústrias Phillips, em Bisbee.
Depois, telefonou ao xerife.
- Mac, estiveram aqui dois estranhos que se apresentaram como empregados
das Indústrias Phillips, ramo Bisbee, e fizeram toda a espécie de perguntas suspeitas.
Tinham
uma carta de apresentação de Pitman das Indústrias Phillips, mas soube agora
mesmo que ele nunca tinha ouvido falar neles. Não gosto disto, Mac. Pode prendê-
los?
- Não, não posso enquanto não souber quem são. Conhece as ordens.
- Mas, Mac...
- Deixe o assunto comigo. Vou já pôr-me em contato com Kiley. Ele dirá o
que se há de fazer.
No segundo andar do liceu de Argo City, Miss Watkins, uma mulher de meia-
idade, empertigada e de aspecto severo, tinha abandonado a aula para ir ao encontro
de Collins e Radenbaugh no átrio.
- O reitor telefonou e disse que me queriam ver. Em que lhes posso ser útil?
- Soubemos que tinha sido despedida, miss Watkins - começou Collins. -
Desejávamos fazer-lhe algumas perguntas.
- Quem são os senhores?
- Fazemos parte da administração da escola de Bisbee. Estamos a fazer um
inquérito sobre o sistema de ensino em Argo City. Acabamos de falar com o
administrador da cidade e foi ele que mencionou o seu caso. Disse que tinha pisado
o risco...
- Pisado o risco? - repetiu confusa. - Sempre cumpri a minha obrigação.
Estive a ensinar a história da América.
- De qualquer forma, despediram-na.
- Sim, é hoje o meu último dia de trabalho.
- Pode contar-nos o que se passou? - pediu Radenbaugh.
- Quase tenho vergonha - disse ela. - É demasiado ridículo. A minha turma
estava a começar o estudo dos Antepassados Fundadores. Para animar a lição,
lembrei-me de um velho recorte de um jornal de Wyoming que guardei antes de vir
para aqui. - Procurou na bolsa, tirou um recorte amarelecido e entregou-o a Collins.
- Li-o à turma do décimo ano de História...
Collins e Radenbaugh leram o artigo da Associated Press:
''Só uma em cinqüenta pessoas contactadas nas ruas de Miami por um
repórter, concordou em assinar uma cópia datilografada da Declaração de
Independência. Duas chamaram-lhe um 'disparate dos comunas', outra ameaçou
chamar a polícia..."
Miss Watkins apontou para a última parte da notícia.
"Outras pessoas, que acharam ameaçadores a leitura dos três primeiros
parágrafos, teceram comentários semelhantes. Uma afirmou : 'Isto é obra de um
louco.' Outra disse: 'O FBI devia ser avisado sobre esta porcaria.' Outra ainda
chamou ao autor da Declaração 'um revolucionário de idéias vermelhas'. O repórter
fez circular um questionário contendo um excerto da Declaração de Independência
por entre 300 membros de um grupo de juventude religiosa, e 28% responderam que
pensavam que o excerto tinha sido escrito por Lenine."
Guardou novamente o recorte.
- Depois de ter lido isto aos meus alunos, disse-lhes que não prosseguiria o
curso sem que lessem primeiro cuidadosamente a Declaração de Independência e a
Constituição e sem que tivessem compreendido esses documentos clássicos.
- Referiu-se à Declaração de Direitos? - perguntou Collins.
- De fato discuti com os meus alunos as liberdades básicas e os direitos civis.
Os estudantes pareciam altamente interessados. No entanto, alguns foram para casa
e falaram nisso aos pais. Os fatos foram exagerados e destorcidos, e, antes que me
desse conta, o presidente do conselho escolar dizia que eu era uma perturbadora, que
vinha causar distúrbios. Mas que distúrbios? Respondi que me limitava a ensinar
história. Ele insistiu que eu estava a fomentar dissidentes e comunicou-me que tinha
de me retirar. Para lhes dizer a verdade, ainda não consegui compreender o que
aconteceu.
- Não vai protestar contra o despedimento? - quis saber Radenbaugh.
Miss Watkins pareceu sinceramente surpresa com a sugestão.
- Protestar? A quem?
- Com certeza que deve haver alguém a quem protestar.
- Não há. E mesmo que houvesse, teria de pensar bem antes de o fazer.
- Porquê? - insistiu Radenbaugh.
- Porque não me quero envolver nessas coisas. Só quero que me deixem
sossegada. Gosto da vida e quero viver.
Collins intrometeu-se novamente.
- Mas não a querem deixar viver, miss Watkins. Pelo menos à sua maneira.
Ficou momentaneamente confusa.
- Não sei. Parece-me que aqui têm regras, como em toda a parte. Devo ter
desrespeitado uma por acaso. Mas isso não é razão para fazer... para me meter num
escândalo público. Não, nunca me passaria pela cabeça fazer tal coisa.
- O que é que aconteceu das outras vezes que ensinou a Constituição? -
perguntou Collins.
- Ainda nunca a tinha ensinado. Costumava dar história da Europa. A mulher
do administrador da cidade é que ensinava história da América, mas reformou-se no
último semestre e eu fui encarregada de a substituir.
- E agora que vai fazer? Fica em Argo City?
- Ah, não, não me deixam. A não ser que se trabalhe para a companhia ou
para a cidade, não se pode viver cá. Não me dariam outro emprego. Acho que vou
regressar à Wyoming. Não sei. É muito desencorajador. Nem sequer sei o que fiz de
mal.
- Quer contar-nos mais coisas? - perguntou Collins.
- Sobre quê?
- Sobre o que se passa aqui.
- Aqui não se passa nada. Nada - disse ela enfaticamente.- Parece-me que é
melhor voltar para a aula. Se me desculpam...
Radenbaugh olhou para Collins.
- Quem foi que disse, Chris: "Se o fascismo se implantar nos Estados Unidos,
será por o povo votar nele?"
- Amém! - disse Collins, pegando no braço de Radenbaugh. - É melhor
voltarmos para o hotel. Temos muito para decidir.
Às cinco e cinco, os três homens tinham-se reunido no quarto de Collins do
Hotel Constellation.
Collins foi o primeiro a falar, dirigindo-se ao Presidente do Supremo
Maynard, que se tinha sentado na dura cama, pousando o chapéu, e estava agora a
enxugar a testa
suada.
- Então, senhor Presidente, que descobriu? Maynard parecia atordoado.
- Numa palavra, é... é chocante.
- Inacreditável - concordou Collins.
- Quem poderia imaginar que isto se passa nos Estados Unidos?
- E afinal é verdade - disse Collins severamente. - A população está tão
doutrinada que nem sabe o que se passou.
Maynard abanou fortemente a cabeça.
- Sim, também é essa a minha impressão.
- É tarde - disse Collins - e parece-me que o melhor é sairmos daqui quanto
antes e voltarmos para Phoenix. Podemos discutir o assunto pormenorizadamente no
carro. Mas, para já, deixe-me resumir o que Donald e eu descobrimos. Soubemos
muitas coisas, falamos a muitas pessoas.
- Eu também - disse Maynard. - Cheguei mesmo a falar com o xerife e com o
editor do jornal. Falam, mas não compreendem o que estão a dizer. Tornou-se um
hábito. Nunca, com toda a minha experiência do país e do estrangeiro, pelo menos
desde a II Guerra Mundial, nunca vi uma população viver assim, numa existência de
autômatos. Ou a viver sob uma opressão tão insidiosa.
Collins levantou-se e começou a vaguear pelo quarto.
- Deixe-me dizer-lhe rapidamente o que Donald e eu descobrimos. A
Companhia Argo de Fundição e Refinação é dona dos únicos armazéns de
alimentação e vestuário da cidade. Os empregados das minas recebem salários, mas
também lhes dão livros de senhas que só podem ser usadas nos armazéns da
companhia. Quando se lhes esgota o dinheiro, podem usar as senhas para comprar a
crédito. Assim, a maior parte deles estão empenhados à companhia.
- É uma forma sutil de escravatura ou de servidão econômica. - comentou
Radenbaugh.
- Mas há muitas outras coisas que não são tão sutis. A companhia é
proprietária do menor terreno, possui ou domina a Câmara Municipal, o posto de
xerife, as escolas, o hospital, o teatro, os correios, a igreja, as oficinas de reparações,
o jornal da cidade, e até o hotel. A companhia proibe livros (menos os livros sexuais
que os de política e história). Os correios registam toda a correspondência recebida
ou expedida. O conselho escolar determina o que os professores devem ensinar. O
xerife impede que os vendedores ambulantes e os caixeiros viajantes entrem na
cidade. O hotel não permite que ninguém permaneça mais de dois dias. Os estranhos
são expulsos por vagabundagem ao fim de três dias. A companhia censura os
sermões do sacerdote. Os homens e mulheres solteiras, são separados, conforme os
sexos, por quatro pousadas da companhia, que estão cheias de informantes. Quanto
às habitações comuns...
- Isso vi eu - disse Maynard. - Fiz de conta que queria comprar uma casa e
estabelecer-me aqui. Em vão. Só os empregados da companhia Argo são autorizados
a comprar habitações. A companhia fica com uma hipoteca sobre cada casa que é
vendida. Os pagamentos da hipoteca são deduzidos do salário. Se o comprador
resolver ir-se embora, tem de vender novamente a casa à companhia. Nas casas
alugadas, as rendas também são deduzidas dos salários.
- Mais escravatura - comentou Radenbaugh.
Collins aproximou-se de Maynard.
- Que descobriu mais?
A cabeça grisalha de Maynard abanava.
- O suficiente para me enojar. Nunca encontrei semelhante desrespeito pela
Declaração de Direitos. A certa altura, parei para comer uma salada no café da
companhia. Enquanto estava à mesa, coberto de curiosos, peguei num guardanapo
de papel, ou melhor, foram dois, e escrevi os direitos básicos concedidos pelas dez
primeiras emendas à Constituição: a Declaração de Direitos aprovada em Dezembro
de 1791. A seguir a cada emenda indiquei a situação respectiva em Argo City.
Ouçam isto... Tirou os dois guardanapos de papel do bolso do casaco de caqui
e trocou os óculos de sol por outros de lentes quadradas.
- Ouçam bem - prosseguiu Maynard. - A primeira emenda garante a liberdade
de religião e de expressão e institui os direitos de reunião e reclamação. Aqui em
Argo City só se pode freqüentar uma igreja. Só se lê um jornal. Todos os jornais de
fora e a maior parte das revistas são proibidas. Sabiam disto? A televisão consiste
numa estação local, UHF - dominada pela companhia, é claro. Os programas
nacionais são gravados e só alguns são retransmitidos. O mesmo quanto à rádio. Só
transmitem programas gravados. Todos os receptores são vendidos pela companhia
e têm um filtro especial, para não poderem apanhar Phoenix ou outras cidades. A
liberdade de expressão está totalmente banida. Se se sai da casca, um informador faz
uma denúncia. Fica-se sem emprego e sem casa. Não são permitidas reuniões
públicas nem manifestações. A última ocorreu há quatro anos. Foi reprimida, e os
trabalhadores que protestavam contra a falta de segurança no trabalho foram presos.
A prisão era demasiado pequena para os conter, mas, ignorado por toda a gente, há
um campo de internamento fora da cidade, no deserto...
- Um campo de internamento? - Collins estremeceu, lembrando-se do seu
filho Josh e da viagem ao lago Tule.
- Sim, quatro semanas nesse campo acabaram com os protestos. Desde então,
nunca mais houve manifestações. - Maynard tentava decifrar o que tinha escrito no
guardanapo.
- A 2.a emenda dá ao cidadão o direito de possuir e deter armas, isto é, dá a
cada Estado o direito de ter uma milícia. Mas isso não acontece em Argo City. Só
um grupo de escol de empregados da companhia, altamente colocados e de absoluta
confiança, podem usar armas. A 3.a emenda diz que nenhum militar se pode aboletar
em casas particulares sem consentimento do dono da casa. Há cinco anos foi feita
uma postura que permite à polícia, em caso de emergência, mudar-se para a casa de
qualquer pessoa e instalar-se lá. A 4.a emenda dá ao povo o direito de não ser sujeito
a buscas indevidas. Uma postura de Argo City permite que os homens do xerife
entrem em qualquer casa sem mandato. A 5.a emenda protege o acusado de crime
capital (de resto, só um grande júri pode inculpar um civil), garante o processo legal
e diz que ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra si próprio. Ora, não há
grande júri em Argo City. É um juiz que decide se a prova exige um julgamento. É
evidente que os juízes são indicados pela companhia. A 6.a emenda garante que os
acusados de crimes terão direito a um rápido julgamento, a um júri imparcial, a
serem acareados com as testemunhas de acusação, a terem a assistência de um
advogado. Em Argo City pode-se definhar indefinidamente na prisão à espera de
julgamento. Aqui não há júris. Um dos juízes desempenha simultaneamente a
função de juiz e a de júri. As testemunhas de acusação não precisam estar presente.
A defesa é fornecida pela companhia. - Maynard soltou um suspiro. - Como disse
um dia Stanislaw Lee: "A distribuição da injustiça está sempre em boas mãos."
- Apre! - murmurou Radenbaugh. - Apesar de se terem enganado, sempre tive
doze jurados, e escolhi o meu advogado.
Maynard pegou no segundo guardanapo e começou a lê-lo.
- A 7.a emenda. Bem, esta também garante o julgamento por um júri nos
casos da lei comum. Isto tem sido totalmente ignorado em Argo City. A 8.a emenda
garante uma fiança razoável, protege os cidadãos contra multas excessivas ou penas
cruéis e infamantes. Bem, aqui, por uma coisa de somenos, um delite sem
importância, a fiança é tão alta que o acusado fica na prisão até ser julgado. Não é
possível saber o montante das multas. Mas, aparentemente, as penas cruéis e
infamantes são a regra. Os culpados perdem as casas. Os protestos ou crimes levam
os condenados a um campo de detenção rodeado de arame farpado, no deserto
escaldante. Só Deus sabe o que mais aí os espera. A 9.a emenda salvaguarda outros
direitos não especificados na Constituição. Não descobri muito a este respeito,
exceto que os cidadãos de Argo City não parecem ter outros direitos que não sejam
os de comer e dormir, em certas condições. A 10.a emenda reserva todos os poderes
que não sejam delegados ao Governo pela Constituição, aos Estados e ao povo.
Aqui, obviamente, todos os poderes reservados pela Constituição ao Governo, aos
Estados e ao Povo, estão nas mãos da companhia.
- Ou nas de Vernon T. Tynan - acrescentou Collins.
- Ou nas de Tynan, sim - concordou Maynard, voltando a meter os
guardanapos no bolso. - Como poderá isto ter acontecido? Tenho certeza que o
governo federal não tem conhecimento do que aqui se passa. Mas o Estado de
Arizona! O Estado devia saber e atuar.
- Não, eu calculo como se gerou tal situação - disse Radenbaugh. - Aposto
que a Comissão das Corporações do Arizona, que deveria pretensamente controlar
as corporações, é dominada pela Companhia Argo. Então Tynan arranjou qualquer
coisa contra esta companhia e passou a dominá-la para realizar a sua grande
experiência.
Maynard estava mais perturbado que nunca.
- É a situação mais aterradora que jamais encontrei.
- Não podemos continuar sentados e deixar correr - disse Collins. - Como
Procurador-Geral, tenho de atuar. Posso mandar cá uma equipe de investigadores...
Maynard ergueu a mão.
- Não, não é isso que é prioritário. Argo City e os seus 14.000 habitantes não
são o fim. São meramente parte de um objetivo mais vasto. Você mesmo o disse,
Collins. Há muito mais em jogo, muitíssimo mais.
- Refere-se à 35.a emenda?
- Sabemos que Argo City, por estar isenta de crimes, inspirou o diretor Tynan
a elaborar a emenda. Sabemos que ele experimentou e apurou aspectos da emenda,
usando Argo City como um laboratório para a supressão das liberdades e para a
repressão nos últimos quatro anos. Sabemos que vimos hoje uma perspectiva dos
Estados Unidos daqui a um ano, se a Califórnia ratificar a emenda e a integrar na
Constituição.
Maynard levantou-se e vagueou pelo quarto, imerso num conflito íntimo.
Quando voltou para junto de Collins e Radenbaugh o seu ar pensativo tinha-se
desvanecido.
- Meus senhores - disse ele -, tomei a minha decisão. Se depender de mim, a
Califórnia não pode nem deve aprovar a emenda.
Collins não pôde esconder o seu júbilo.
- Vai... Que vai fazer, senhor Presidente?
- Vou fazer o que lhe prometi se me provasse concretamente que a nossa
democracia está realmente em perigo. Deram-me a conhecer uma parte do
Documento R, aparentemente o plano de Tynan. Vi o fascismo ser aceito pelo preço
da segurança. Já posso imaginar o fascismo tornado lei em toda a nação. Não quero
nem posso admitir que isso aconteça. - Os seus olhos pousaram em Collins. -
Primeiro vou falar com o Presidente. Vou tentar persuadi-lo a inverter a sua posição.
Se falhar, então irei para a frente e far-me-ei ouvir. Se a minha influência é tão
grande como você pensa, não haverá 35.a emenda, não haverá mais cidades como
Argo City na América, e a nossa agonia terá terminado.
Collins agarrou na mão de Maynard e apertou-a calorosamente. Radenbaugh
acenava com a cabeça em sinal de aprovação.
- É melhor irmos embora - disse Maynard bruscamente. - Vou para o quarto
arranjar as minhas coisas. Encontramo-nos no átrio daqui a dois minutos.
Maynard apressou-se a sair.
Rejubilantes, Collins e Radenbaugh pegaram nos seus haveres e prepararam-
se para sair. À porta, Collins deteve Radenbaugh.
- Depois de Phoenix, para onde vai?
- Tenciono regressar a Filadélfia.
- Venha para Washington. Não o posso pôr na lista de pagamentos federal.
Mas posso pô-lo na minha lista privada. Preciso de si. O nosso trabalho ainda não
terminou. Quando Maynard derrotar a emenda, precisaremos de um programa novo
para a substituir, um programa que leve à redução da criminalidade sem sacrificar os
nossos direitos civis.
Radenbaugh parecia comovido.
- Poderá realmente utilizar-me? Estou muito satisfeito, mas...
- Vamos embora, não percamos tempo.
No corredor, encontraram Maynard que saía do quarto. Desceram juntos de
elevador. Collins parou no balcão da recepção para assinalar a partida. Depois, os
três, lado a lado, atravessaram o átrio e saíram para o calor do fim de tarde.
Enquanto Collins e Radenbaugh, silenciosos avançavam para o
estacionamento, Maynard apressou-se a comprar a última edição do Bugie de Argo
City a um vendedor cego e barbudo, que se sentava numa banca perto da entrada do
hotel. Quando o vendedor ouviu o tilintar das moedas, os seus olhos mantiveram-se
parados por trás dos óculos, mas a boca abriu-se num sorriso de agradecimento.
Maynard apressou o passo para alcançar os companheiros. Minutos depois,
Radenbaugh conduzia o Ford para fora do parque de estacionamento, em direção ao
centro de Argo City, a Phoenix e ao ar livre.
Em frente do Hotel Constellation, o vendedor cego meteu o dinheiro no
bolso, levantou-se e colocou o que restava da pilha de jornais em cima da banca.
Batendo com a bengala branca, passou titubeante em frente do hotel, ultrapassou o
parque de estacionamento e virou à direita para a estação de serviço da esquina.
Seguindo a bengala, apontou em linha reta para a cabina telefônica mais próxima.
Entrou na cabina, fechou a porta de vidro e arrumou a bengala a um canto. Por fim,
olhando para trás, tirou os óculos escuros, meteu-os no bolso, pegou no auscultador,
meteu uma moeda na ranhura e olhou com um ar indiferente para os números do
disco enquanto esperava.
A telefonista surgiu na linha. Ele indicou-lhe um número. Instantes depois,
depositou as moedas que faltavam. Esperou. O telefone estava a tocar. Uma voz
chegou da outra extremidade do fio. O vendedor encobriu o bocal do telefone.
- Faça o favor de ligar ao diretor Vernon T. Tynan - disse num tom de
urgência. - Diga-lhe que é o agente especial Kiley a falar do gabinete de campo R.
Ficou à espera. Poucos segundos.
- Diretor Tynan? Aqui Kiley, em R. Vieram três. Só reconheci dois. Um era o
Procurador-Geral Collins. O outro era o Presidente do Supremo Maynard... Não, não
tenho dúvidas. Collins e Maynard.

Capítulo sétimo
Estava-se a meio da manhã do dia seguinte, e o Presidente Wadsworth já
tinha telefonado duas vezes nos últimos quinze minutos. Que se lembrasse, era a
primeira vez que tinha evitado receber um telefonema do Presidente. Acompanhado
por Harry Adcock, por trás de portas trancadas, o diretor Tynan tinha estado
profundamente ocupado a ouvir uma gravação que Adcock lhe entregara. Era uma
gravação feita uma hora antes de uma conversa telefônica entre o Presidente do
Supremo Maynard e o Presidente Wadsworth. Maynard é que tinha feito a chamada,
e a sua curta conversa com o Presidente não durara mais de cinco minutos.
O primeiro telefonema do Presidente para Tynan tinha chegado no preciso
instante em que Adcock lhe trouxera a gravação.
- Diga-lhe que ainda não cheguei ao gabinete - respondera Tynan à secretária.
- Diga-lhe que vai tentar localizar-me.
O segundo telefonema do Presidente tinha chegado enquanto Tynan ainda
ouvia a gravação.
- Diga-lhe que ainda não cheguei - ordenara ele à secretária -, mas que me
espera a todo o momento.
Ouvira a gravação até ao fim. Adcock desligou o gravador.
- Quer ouvir outra vez, chefe?
- Não, uma vez chegou. - Tynan recostou-se na cadeira.- Devo dizer-lhe que
não estou surpreso. Depois do aviso de Kiley, de Argo City, na noite passada, já
suspeitava que isto iria acontecer. Agora confirma-se. Bem, é melhor telefonar ao
Presidente e ver a reação dele.
Segundos depois, Tynan obtinha a ligação com o Gabinete Oval da Casa
Branca.
- Desculpe não estar para o atender - disse Tynan, resfolegando. - Cheguei
agora mesmo. Tive dois encontros no exterior e esqueci-me de avisar a Beth. Há
alguma coisa urgente?
- Vernon, estamos tramados. Podemos considerar a 35.a emenda
antecipadamente morta.
Tynan simulou espanto.
- O que diz, senhor Presidente?
- Antes de lhe telefonar, recebi uma chamada do Presidente do Supremo
Maynard.
- E então?
- Queria saber se eu conhecia um lugar chamado Argo City, no Arizona. Eu
lembrei-me imediatamente. Era o lugar de que me falou ontem à noite, quando me
veio pôr ao corrente das últimas atividades do FBI. Respondi a Maynard que sim,
que era uma comunidade que o FBI estava a acompanhar de perto há vários anos.
Disse-lhe que você estava a conduzir pessoalmente as investigações dos crimes
federais nessa cidade e que ia submeter brevemente as informações descobertas ao
Procurador-Geral Collins.
- Correto.
- Bem, Maynard pensa de maneira diferente quanto às suas atividades em
Argo City.
Tynan fingiu-se extremamente confundido.
- Não compreendo. Que opinião diferente é que pode ter?
- Ficou com a idéia de que você tem estado a usar Argo City como campo de
ensaio para a 35.a emenda. E os resultados, embora a si lhe possam ter agradado,
para ele foram horríveis.
- É absurdo.
- Eu também lhe disse que era absurdo... empreguei precisamente esse termo.
Mas o velho casmurrão não se deixou convencer.
- Saiu da casca - disse Tynan.
- Seja como for, está contra nós. Disse que nunca se tinha pronunciado
publicamente contra a emenda, mas que agora estava disposto a fazê-lo. Então
tentou forçar-me.
- Forçá-lo, senhor Presidente? A quê?
- Disse que se eu retirasse publicamente o meu apoio à emenda, ele teria o
maior prazer em continuar calado. Mas se eu me recusasse a fazê-lo, se recusasse
inverter a minha posição, então ele entraria na liça.
- Que diabo pensa ele que é para ameaçar o Presidente da República? - disse
Tynan num tom indignado. - Como é que lhe respondeu?
- Disse-lhe que sempre tinha estado ao lado da emenda e que era aí o meu
lugar. Disse-lhe que acreditava nela e que a queria ver ratificada como parte da
Constituição.
- E ele, como reagiu?
- Disse: "Então força-me a agir, senhor Presidente; demito-me do meu cargo
e entro na arena política, para poder manifestar-me enquanto é tempo." Disse que ia
de avião para Los Angeles hoje à tarde. Passará todo o dia de amanhã na sua casa de
Palm Springs. Depois de amanhã, regressa a Los Angeles. Ele disse: "vou dar uma
conferência de imprensa no Hotel Embaixador para anunciar a minha resignação do
Supremo Tribunal, e vou anunciar o meu desejo de comparecer como testemunha
perante o comitê judicial da Assembléia e do Senado da Califórnia para me
manifestar contra a aprovação da 35.a emenda."
- Estará realmente decidido a fazer isso?
- Não duvido, Vernon. Tentei incutir-lhe algum bom senso, mas não
consegui. Estará na Califórnia dentro de poucas horas. E nós levaremos sopa. No
momento em que ele se manifestar contra a emenda, estamos arrumados. Vai virar a
legislatura de pernas para o ar. Quem podia imaginar que tal havia de acontecer?
Todos os nossos esforços, todas as nossas esperanças destruídas pela interferência de
um homem. Que havemos de fazer, Vernon?
- Combatê-lo.
- Como?
- Não sei bem. Vou pensar numa maneira.
- Pense em qualquer coisa... seja o que for.
- Tratarei disso, senhor Presidente.
Tynan desligou, sorriu para o telefone, levantou a cabeça e sorriu para
Adcock. Piscou os olhos.
- É claro que descobriremos uma maneira, não é, Harry?
Chris Collins estava bem disposto nessa tarde. Sentia-se aliviado da tensão
das últimas semanas e pronto a descontrair-se. De regresso do trabalho, assim que
entrara em casa, recebera o esperado telefonema de Maynard. O Presidente do
Supremo tinha chegado há minutos ao aeroporto internacional de Los Angeles, mas
antes de se dirigir com a mulher para o carro que os levaria a Palm Springs, tinha
querido informar Collins das ocorrências da manhã. Tinha efetivamente falado ao
telefone com o Presidente. Tinha-lhe pedido que modificasse a sua posição quanto à
emenda. O Presidente tinha recusado. Maynard tinha então avisado o Presidente que
partia para Los Angeles, onde anunciaria a resignação do Supremo Tribunal, e tinha-
lhe dito que tencionava manifestar-se, em Sacramento, contra a aprovação da
emenda. Passaria um dia na casa de Palm Springs para escrever o discurso
de resignação e a dura declaração aos comitês dos órgãos legislativos.
- Espero que isto seja suficiente - dissera Maynard.
- Será, será - prometera Collins, a arder em excitação. - Obrigado, senhor
Presidente.
- Eu é que lhe agradeço, senhor Collins.
Karen tinha estado a rondar por ali, desejando saber o que se passava, e,
depois de desligar, Collins pusera-se de pé, aproximara-se dela, começara a levantá-
la no ar, lembrara-se da gravidez, e limitara-se a abraçá-la e beijá-la. Collins tinha-
lhe explicado sucintamente, sem entrar em pormenores, sem referir Argo City, a
decisão do Presidente do Supremo de se manifestar publicamente contra a emenda.
Karen tinha ficado verdadeiramente emocionada.
- Que maravilha, querido. Finalmente, boas notícias.
- Vamos comemorar - tinha proposto Collins. Tinha sentido a cabeça e o
corpo mais leves, como se se tivesse libertado de quilos de pressão. - Vamos à
cidade. Escolhe
o que quiseres.
- O Jockey Club e tornedos Rossini - tinha dito Karen melodiosamente.
- Vai vestir-te enquanto marco mesa. Só nós dois. Nada de negócios, só
divertimento, prometo-te.
Meia hora mais tarde, depois de tomarem juntos uma ducha, estavam no
quarto, quase vestidos.
Collins enfiava as calças do seu melhor terno azul-marinho, metia as fraldas
da camisa para dentro, quando o telefone tocou.
- Atende tu - disse Karen do toucador. - O verniz das unhas ainda não está
seco.
Collins foi ao toucador, rezando para que não fosse trabalho. Poucas pessoas
que tinham o seu número não estavam relacionadas com o Departamento de Justiça.
Levantou o auscultador.
- Está lá?
- Senhor Collins?
- Sim.
- Daqui fala Ishmael Young. Não sei se se lembra...
Collins sorriu. Como se alguém pudesse esquecer aquele nome.
- Claro que me lembro. É o fantasma do diretor Tynan.
Ishmael Young respondeu muito sério:
- Espero não ser recordado assim. Mas é verdade. Estou a trabalhar na
autobiografia de Tynan e o senhor teve a amabilidade de me receber no mês
passado. - Hesitava, procurando as palavras. Depois, com um tom de urgência,
desembuchou: -Sei que é uma pessoa muito ocupada, senhor Collins, mas seria
humanamente possível falar-lhe esta noite? Não lhe ocuparei muito tempo...
Olhando para a mulher, Collins interrompeu-o:
- Lamento, mas já estou comprometido para a noite, senhor Young. Talvez
me possa telefonar para o gabinete na segunda-feira, para combinarmos...
- Senhor Collins, creia-me, não quero aborrecê-lo, mas é realmente
importante. Tanto para si como para mim.
- Bem... não sei...
- Por favor.
O tom de voz de Ishmael fez Collins capitular.
- Está bem. Para lhe dizer a verdade, ia agora jantar ao Jockey Club com a
minha mulher.
- Lamento imenso. Mas...
- Não faz mal. Encontramo-nos lá às oito e meia.
Depois de desligar, viu Karen olhá-lo interrogativa. Collins resmungou:
- É o escritor fantasma de uma autobiografia de Vernon Tynan. Precisa falar
comigo esta noite. Infelizmente tenho curiosidade em saber porquê. Pelo menos é
um tipo simpático. Espero que não te importes, amor.
- Tolo, nunca me convenci que íamos estar só os dois. - Apontou para o
telefone. - É melhor ligares para o Jockey Club e fazeres a marcação para três. Além
disso, estou tão curiosa como tu.
O Jockey Club, situado no Hotel Fairfax da Avenida Massachusetts, estava a
transbordar por volta das nove horas dessa noite.
No entanto, a melhor mesa do restaurante tinha sido reservada e guardada
para Chris Collins e os seus convidados.
- Vês - sussurrou Collins à mulher - , há algumas vantagens em ser
Procurador-Geral.
- Ou em dar boas gorjetas - retorquiu Karen.
Ishmael Young, que tinha esperado por eles na esquina da rua, tinha-se
mostrado invulgarmente ansioso, pedindo constantemente desculpa desde o
encontro. Agora, depois de as bebidas chegarem, olhando abstraído para o seu Jack
Daniels com soda, Young desculpava-se novamente:
- Lamento imenso imiscuir-me nesta noite privada.
- Temos muito prazer na sua companhia - disse Collins expansivo. Sentia-se
maravilhosamente e ergueu o seu Scotch com água num brinde irônico. - Pela
derrota da 35.a emenda. - Esperou que Karen levantasse sua vodka com água tônica
e que o escritor se lhes juntasse no brinde, e bebeu. Pousando o copo, disse a Young:
- Não sabia, pois não, que eu já deixei de apoiar a 35.a emenda?
- Sei, sei - respondeu Young.
Collins não escondeu a sua surpresa.
- Como é que soube? Foi uma decisão particular. Ainda não a tornei pública.
E mais, não a tornarei pública enquanto pertencer ao governo. - Baixou a cabeça
para Young. - Como descobriu?
- Esquece-se - disse Young -, que trabalho com o diretor Tynan. Ele sabe
tudo e eu sou o seu fantasma.
O aspecto de Collins tornou-se sisudo.
- Estou a ver. Então ele também sabe?
- Sim.
- Devia ter imaginado. - Tomou um grande gole da sua bebida. - Tenho
tendência para o menosprezar, mas devo lembrar-me que ele é formidável.
Caíram num breve silêncio. Ishmael Young brincava com o copo, como se
não fosse capaz de formular um pensamento. Por fim, decidiu-se.
- Quis vê-lo esta noite por... por duas razões. Uma diz-lhe respeito. A outra
tem que ver comigo. Primeiro a sua.
Mas não continuou imediatamente e Collins interrogou-o:
- Então, que tem a dizer?
- Queria discutir sobre Tynan.
Collins ficou exasperado.
- Se isso quer dizer que me pretende fazer mais perguntas sobre o que eu
penso de Tynan para o seu livro, deixe-me avisá-lo que não tem sorte. Não tenho
mais nada a dizer.
- Não, não é isso - disse Young rapidamente. - Não é nada a respeito do livro.
Não o incomodava durante o jantar para lhe perguntar coisas sobre Tynan. Vim
porque
lhe queria falar sobre Tynan. Queria...
- Dizer-me o quê? - interrompeu Collins impaciente. - O que é que me quer
contar?
Karen aproximou-se dele e tocou-lhe no braço.
- Por favor, Chris, deixa-o falar.
Ishmael Young dirigiu um gesto de agradecimento a Karen, puxou o nó da
gravata e alisou os restos de cabelo, penteado de maneira a cobrir a calva.
Embora irritado pela agitação do escritor e pela sua relutância em entrar no
assunto, Collins acedeu ao pedido e esperou.
- Ele não gosta de si, como sabe - disse Young.
- Quem, Tynan?
- Não gosta mesmo nada de si - repetiu Young.
- Isso não me admira - disse Collins. - Como descobriu?
- Estou com ele todas as semanas. Estou com ele, mas ultimamente ele nem
sequer parece dar-se conta disso durante metade do tempo. Conversa e torna a
conversar. Responde ao telefone. Faz chamadas. Deixa apontamentos e memorandos
por todo o lado. Deixou de ser cauteloso comigo. É como se eu não existisse. Talvez
ele tenha razão. Sou apenas um escrevinhador.
- Então ele não gosta de mim! - repetiu Collins.
- Eu decidi que se ele não gostava de si, isso era razão suficiente para eu ter a
opinião contrária. Quando Tynan se põe contra qualquer coisa, ou qualquer pessoa, é
porque é boa. Como sabe, quando nos encontramos pela primeira vez, disse-lhe que
ele não era pessoa do meu gênero. Cheguei à conclusão que também não era do seu.
Compreendi, quer o admita ou não, que estamos do mesmo lado. Foi por isso que o
quis ver imediatamente, para o avisar de uma coisa.
Karen parecia preocupada, mas Collins continuava impassível.
- Continue.
- Está bem. - Baixou a voz. - Tynan e o FBI têm andado a investigá-lo.
- Oh, Chris - suspirou Karen.
Ele fez um gesto para ela se calar. Dirigiu-se ao escritor:
- Isso não é novidade. Se é tudo...
- Mas eu pensei...
- Evidentemente que fui investigado pelo FBI. É esse o seu papel. Tiveram
de investigar quando o Presidente me nomeou Procurador-Geral. É costume.
- Não, não compreendeu bem, senhor Collins. Sei bem que o investigaram há
semanas. Foi a tal rotina. O que lhe quero dizer é que Tynan ordenou uma nova
investigação secreta a seu respeito, há poucos dias. Ainda está em curso.
Collins semicerrou os olhos, tentando assentar idéias e compreendendo
finalmente. Respirou fundo e disse:
- Ah, bem... Tem certeza?
- Absoluta. De resto, não é a primeira investigação. No mês passado, ouvi-o
falar ao telefone sobre Baxter e a igreja da Santíssima Trindade, e nessa altura
aludiu ao caso Collins...
Collins interrompeu:
- Bem sei. Mas agora interessa-me mais o que disse antes. Tem certeza
absoluta? Ouviu Tynan dizer que me estavam a investigar de novo?
- Estou certíssimo. Estive ontem com ele durante muito tempo. Recebeu essa
chamada. Quando lá vou e estamos a trabalhar, ele geralmente só atende chamadas
do Presidente ou de Adcock. Mas esta chamada não era do Presidente. Enquanto ele
estava ao telefone, fui ao banheiro, mas deixei a porta entreaberta. Consegui ouvir o
que ele dizia. O seu nome nunca foi mencionado. Mas houve uma referência... não
me recordo exatamente o que foi... que me esclareceu que estavam a falar sobre si.
Era em relação às investigações que estão a decorrer. No final, Tynan disse a
Adcock: "Bem, continue a tentar, e trate também dos outros."
Karen notara as últimas palavras.
- Os outros? Que queria ele dizer?
- Não faço idéia - respondeu Ishmael Young. Voltou-se para Collins. - Mas
não tenho dúvidas que a conversa era a seu respeito. Faz sentido? Haverá alguma
razão para que ele o investigue agora?
- Talvez. Sim, talvez haja - disse Collins lentamente.
- Bem, pensei que não devia perder tempo. Preveni-o e assim pode estar de
sobreaviso.
- Agradeço-lhe - disse Collins sinceramente. - Muito obrigado, Ishmael... -
Olhou distraidamente à sua volta, viu o criado e chamou-o. - Acho que isto está a
pedir
mais uma rodada de bebidas.
Depois de Collins ter feito o pedido, Karen chegou-se para mais perto do
marido. Tentava conter a agitação que a dominava.
- Que quer isto tudo dizer, Chris?
- Não tenho certeza, querida, provavelmente nada. - Tentou animá-la: -Nem
todas as investigações são sinistras. Às vezes fazem-nas por causa de alguém que
está relacionado com a pessoa, para nos protegerem.
- Pode ser isso - concordou Young rapidamente, também ele desejoso de
acalmar Karen.
- Mas pelo menos deviam dizer-te - alegou Karen, dirigindo-se ao marido -,
em vez de fazerem as coisas nas tuas costas. Afinal tu és seu superior hierárquico.
Realmente, ele é um homem horrível.
A segunda rodada de bebidas chegara e Young ergueu o copo.
- Ora aí temos um motivo de brinde, senhora Collins, bebo à sua opinião.-
Deu uma vista de olhos pelas proximidades para ver se alguém estava a escutar. -
Ele... bem sabem a quem me refiro... é o pior pulha... desculpem, o pior egomaníaco
e o maior desonesto que conheci.
Beberam, e antes que pudessem retomar o fio da conversa, o criado de mesa
apareceu para saber o que queriam.
Concordaram todos na sopa de cebola para começar. Depois Collins
encomendou tornedos Rossini para Karen, esperou que Young examinasse
novamente a ementa, e pediu finalmente um bife Stroganoff para o escritor e Coq
au Vin para si.
Ishmael Young tinha voltado ao seu Jack Daniels.
- De fato, voltando a Tynan - disse Young, dirigindo-se a Karen -, acho que
ninguém gosta dele, exceto, e estou só a alvitrar, a mãe e Adcock. Todos os outros,
ou se limitam a respeitá-lo, ou o temem, ou o odeiam profundamente.
Collins interessou-se.
- Exceto a mãe e Adcock, disse você. Isso da mãe foi só uma suposição ou é
verdade? Será que ele tem uma mãe?
- Talvez não acredite, não é? Que Vernon T. Tynan possa ter uma mãe. Pois
tem. Aqui perto. Rose Tynan. Oitenta e quatro anos de idade. Vive no Bairro dos
Anos Dourados, em Alexandria. Ninguém sabe disto, exceto Adcock e eu, mas
Tynan vai vê-la todos os sábados. Sim, o monstro tem uma mãe.
- Já a viu? - perguntou Collins.
- Ah, não. Verboten, proibidíssimo. Uma vez, quando falava com ele acerca
da sua juventude, não conseguiu lembrar-se de nada, mas disse que a mãe devia
saber. Eu disse-lhe que não sabia que a mãe ainda era viva. Ele respondeu: pois é,
mas não falo nela por razões de segurança, para que possa estar tranqüila. Ele quis
ter certeza que eu não diria isso no livro... não diria que a mãe ainda estava viva;
mas permitiu-me que me referisse a ela e disse coisas bonitas a seu respeito.
Contou-me até um pouco do seu passado. É tudo o que sei.
- Interessante - disse Collins.
- Nem sequer imaginava que Tynan tivesse mãe - disse Karen. - Isso torna-o
quase humano.
- Não se iluda - comentou Ishmael Young -, Calígula também teve mãe, e
Jack o Estripador.
Collins achava graça, mas Karen insistia em que Tynan continuasse a ser
revelado por Ishmael Young.
- Senhor Young, se não gosta do diretor Tynan...
- Nunca disse que não gostava dele. Odeio-o.
- Muito bem, se o odeia, porque é que trabalha com ele na autobiografia?
- Porquê?! Vou dizer-lhe porquê...
Mas não prosseguiu, porque o criado tinha trazido um carrinho com as sopas
de cebola e começava a servi-las. Mal o criado se retirou, Young retomou a conversa
no ponto em que tinha ficado.
- Quando me encontrei com o seu marido, disse-lhe que tinha sido forçado a
escrever este livro. Agora quero explicar-lhes, se me permitirem. Vou apresentar-lhe
a outra razão que me levava a querer falar-lhe esta noite. Disse-lhe que o primeiro
motivo se relacionava consigo e o segundo comigo. Espero que não se importe que o
aborreça com um problema pessoal. Tem a ver com Tynan e com o motivo que me
leva a escrever o seu Mein Kampf.
- Por favor, continue - disse Collins.
- Fui intimidado para escrever este livro dum raio - continuou Young. - Não
queria fazê-lo, mas Tynan obrigou-me. O que aconteceu foi o seguinte: vivi em
Paris durante algum tempo, colhendo material para um livro que queria escrever,
não como fantasma, mas mesmo meu -um livro sobre a Comuna de Paris. Entre as
pessoas que entrevistei nessa altura, há dois anos, havia um professor britânico
exilado e a mulher. O professor Henderson, que era um perito da Comuna e que
tinha sido deportado dos Estados Unidos há muito tempo devido a ter-se envolvido
em atividades anarquistas. Os Hendersons tinham uma filha, Emmy, por quem me
apaixonei profundamente. A primeira e única vez na minha vida. E ela também me
amava. Resolvemos casar. O único problema era que eu... estava casado. Separado
há algum tempo, mas casado. Combinamos que eu voltaria a Nova Iorque, obteria o
divórcio e mandaria vir Emmy para casar com ela. Bem, o divórcio deu muito que
fazer...
- Sei como essas coisas são - disse Collins, pegando na mão de Karen.
- Mas lá acabei por conseguir. Tinha um modesto best-seller, uma biografia
política. Concedendo todos os direitos de autor à minha mulher, obtive o divórcio.
Preparei-me para mandar vir Emmy. Entretanto, Vernon T. Tynan descobriu-me e
decidiu que eu era a única pessoa capaz de escrever a sua autobiografia. Recusei,
mas Tynan não gosta de ser contrariado. Fez investigações a meu respeito e soube
tudo acerca de Emmy e dos seus pais. Teve conhecimento de que Emmy, como os
pais, tinha sido uma anarquista convicta. Mas, ao contrário deles, era apenas passiva,
uma intelectual. É uma pessoa delicada, doce e, politicamente, uma teórica, nada
mais. Bem, Tynan já tinha o que queria. Atirou-me com ela. Se eu recusasse
cooperar com ele no livro, impediria a entrada de Emmy nos Estados Unidos, na
medida em que era uma imigrante indesejável. Pelo contrário, se eu colaborasse,
faria vista grossa e permitiria a entrada dela quando o livro estivesse pronto. Era
uma cenoura pendurada à minha frente. O que é que eu podia fazer? Tinha de a
morder. Foi assim que concordei em escrever o livro.
- Espantoso. Obrigá-lo a trabalhar dessa maneira - disse Karen.
- Então qual é o seu problema? - quis Collins saber.
- O meu problema é que Tynan enganou-me duas vezes. Há duas semanas,
veio-me parar às mãos todo um novo arquivo de material de pesquisas
complementares para o livro: papéis, gravações, papeleiras. Tynan deu-me para
copiar. Muita coisa era do antigo Procurador-Geral, mas a maior parte era material
novo de Tynan. Eu tinha de tirar os meus apontamentos e devolver depois os
originais a Tynan. Ora, ontem, ao passar uma vista de olhos por esses papéis,
cheguei a um memorando que Tynan tinha escrito a Baxter (com certeza esqueceu-
se que ele ali estava), avisando-o que Emmy Henderson, entre outras pessoas, devia
ser proibida de entrar nos Estados Unidos por ser uma imigrante indesejável. O
memorando tinha sido escrito depois da promessa dele. Ainda pretende castigar-me
por me ter recusado ao princípio. Podem imaginar como fiquei. Desejava atirar-lhe à
cara este jogo duplo, mas tive medo. Não sabia o que fazer. Foi então que me
lembrei que devia existir uma cópia deste memorando nos arquivos dos Serviços de
Imigração e Naturalização e que estes Serviços estão sob a sua alçada. É esta a outra
razão por que desejava falar consigo hoje. Para lhe perguntar se me podia ajudar.
Collins não hesitou.
- Sim, a Imigração é um dos meus departamentos. Posso intervir na admissão
de imigrantes. Terei muito prazer em ver a ficha da sua Emmy. Pela sua parte,
mande-me os papéis que tem do pedido de imigração. Vou rever o caso. Se ele for
como diz...
- Garanto que está limpa.
- Então passarei por cima da recomendação de Tynan e verei se ela é
autorizada.
- Senhor Collins, não posso exprimir-lhe a alegria que me deu. Não sabe
como apreciei a sua atitude, o que ela significa para mim. Não faz idéia de quanto
lhe devo.
Collins sorriu.
- Sei o que eu lhe devo. Mas isso não está em causa. É um assunto de justiça.
Karen era a única pessoa à mesa que ainda estava perturbada.
- Desejo que o faças, Chris. Mas estou preocupada com Tynan. Ele não vai
gostar. Pode vingar-se.
- Não te aflijas - disse-lhe Collins. - Sei como hei de tratar do assunto. -
Olhou para Young. - Continue a tratar do seu livro como se não soubesse de nada.
Encarregar-me-ei do caso pessoalmente. Ele nunca há de chegar a saber o que se
passou.
Karen pareceu aliviada, embora ainda pensasse em Tynan:
- Ele costuma fazer coisas destas muitas vezes? Refiro-me ao diretor Tynan e
às suas interferências na vida das pessoas. Comportar-se dessa maneira! É incrível!
Ishmael Young fez que sim com a cabeça, antes de continuar a comer.
- Não há ninguém como ele. Com o seu aparelho de investigação, é o Grande
Irmão. Tenho certeza de que não há nada na sua vida, senhora Collins, ou na sua
vida, senhor Collins, ou na minha própria vida, que Vernon T. Tynan não saiba.
Cheguei à conclusão que ele é o homem mais poderoso do país. Ou se ainda não o é,
vai sê-lo assim que a 35.a emenda for aprovada.
- Não será aprovada - disse Collins tranqüilamente - Depois de amanhã estará
morta e nós voltaremos a viver. Portanto, não se preocupe com Tynan. Coma, acabe
de beber e seja feliz. Esta noite estamos a comemorar.
Quando Karen Collins, vestindo uma fina camisa de noite azul-claro, emergiu
para o quarto, todas as luzes estavam apagadas, exceto o candeeiro da sua mesinha
de cabeceira. O relógio elétrico por baixo da luz disse-lhe que faltavam dez minutos
para a uma da manhã. No extremo oposto da cama, já enfronhado na roupa, o
marido estava estendido com a cabeça mergulhada na almofada, de costas para ela.
Ela levantou a roupa e deslizou para o seu lado da cama espaçosa.
Soerguendo-se, inclinou-se para ele. Collins tinha os olhos fechados.
- Obrigado por esta noite encantadora, querido - murmurou.
- Hum, hum - respondeu ele fatigado.
Ela baixou a cabeça e tocou-lhe com os lábios no rosto.
- Boa noite, amor. Estás tão cansado. Dorme bem. Pareceu-lhe ouvi-lo dar-
lhe as boas-noites.
Olhou-o por breves instantes, depois voltou a deitar-se, deslizou para o seu
lado da cama e deitou-se de costas, sem apagar a luz. Ficou a olhar pensativamente
para o teto. O seu espírito voltou à noite, ao Jockey Club, aquele escritorzinho
rechonchudo chamado Ishmael Young. Ele tinha dito ao princípio: o diretor sabe
tudo.
Ele tinha dito mais tarde: tenho certeza de que não há nada na sua vida, senhora
Collins, ou na sua vida, senhor Collins, ou na minha própria vida, que Vernon T.
Tynan não saiba. Ela pensou nisso, enquanto olhava para o teto, e pensou nos
tempos de Fort Worth, no Texas. Sentia a agitação a crescer dentro de si, e
subitamente teve medo. Virando a cabeça para ele na almofada, fixou o olhar na sua
nuca, e umideceu os lábios secos. Ainda estava a tempo de falar. Talvez não fosse
conversa para a cama, talvez não fosse bom tema para um momento em que ele
estava tão cansado - mas chegara o momento de lhe falar.
- Chris - chamou-o ela. - Amor, tenho de te dizer uma coisa... uma coisa que
ainda não tive oportunidade de te contar. Parece-me que chegou a ocasião. Já te
devia ter dito, mas de qualquer forma é uma coisa que deves saber. Passou-se pouco
antes de nos conhecermos. Ouve-me, amor. Deixa-me contar-te tudo de uma vez.
Está bem?
Esperou pela resposta, e acabou por a ouvir.
Ele ressonava levemente.
Demasiado tarde.
Com um suspiro preocupado, afastou-se, levantou a mão para apagar a luz,
depois deixou-se afundar profundamente na almofada, de olhos abertos na
escuridão. Estremeceu: recordando o passado, antevendo o futuro.
Fechou os olhos, vivendo por trás deles algum tempo, até o sono começar a
espalhar a escuridão dentro dela. Talvez, pensou, num último pensamento
reconfortante, talvez esteja a ser infantil e tonta, talvez esteja com medo da noite.
Não há monstros lá fora. Só pessoas. Pessoas como tu e eu. Boa noite, Chris. Juntos,
estamos em segurança, não é verdade?
Sentiu-se mergulhar para o fundo, sempre mais para o fundo, até à terra onde
começam os sonhos.
***
No edifício J. Edgar Hoover, Harry Adcock, tendo acabado o almoço ligeiro,
deixou o seu gabinete no sétimo andar e dirigiu-se ao elevador. O seu destino nesta
tarde de domingo, como acontecia todos os dias desde que o chefe lhe dera essa
ordem de prioridade absoluta, era o complexo de informática do FBI nas traseiras
do primeiro
andar.
Ao descer no elevador, Adcock recordava as palavras exatas de Tynan:
"Comece pelo nosso Procurador-Geral Collins. Quero que o FBI proceda a
uma investigação secreta a seu respeito... Quero que Collins seja investigado com
dez vezes mais cuidado que da primeira vez... Procurem toda a gente que tiver
contactado com ele em qualquer altura da vida."
Adcock apressara-se a reunir duas das mais duras forças de choque. A maior,
cuidadosamente escolhida entre 10.000 agentes especiais no exterior, estava a
trabalhar por todo o país. Estes agentes tinham sido selecionados não só pela sua
experiência e perícia, mas também pela sua lealdade para com o chefe. A menor
tinha sido formada pelos agentes de maior confiança e mais discretos do quartel
general, e estavam concentrados no chamado trabalho documental. As duas forças
tinham mergulhado imediatamente na investigação de Collins. Tinham realizado o
seu trabalho no maior sigilo e sem dar nas vistas (na medida do possível),
produzindo resmas de material nesses dias de trabalho intenso, A vida de Collins
tinha sido dissecada, bem como as vidas dos seus parentes, associados e amigos. Até
à data, pelo menos até à véspera, os resultados tinham sido terrivelmente
desapontadores para Adcock. Tudo o que se tinha descoberto sobre Collins e os que
lhe eram chegados era legítimo, legal, correto, honesto e decente, confirmando a
investigação anterior do FBI. Quase todas as portas fechadas tinham sido
escancaradas. Nenhuma escondia um esqueleto. Era estranhíssimo e Adcock não
queria crer em tal. Já estava no serviço há muito tempo, tinha visto muita maldade
nos seres humanos para acreditar em pureza. Se se cavar bem fundo e na extensão
conveniente, se se cavar duramente, surge lama mais cedo ou mais tarde.
É claro que tinha mantido Tynan ao corrente das investigações. Todavia, uma
vez que Tynan não estava interessado em conhecer pormenores, mas sim resultados
finais, Adcock não lhe contara os insucessos diários em desenterrar qualquer coisa
de valor prático. Limitara-se a dizer-lhe que o trabalho estava a andar; que estavam a
ser seguidas hipóteses e pistas desde Oaklandaté Albany.
Felizmente, o dia de hoje seria melhor e haveria qualquer coisa satisfatória e
útil para relatar ao chefe.
Chegado ao primeiro andar, Adcock saiu do elevador e ultrapassou a fonte
ornamental do complexo de informática do FBI.
Lá dentro, deitou os olhos à placa mural em que se lia: CENTRO
NACIONAL DE INFORMAÇÃO CRIMINAL. Sentiu-se mais seguro. Os seus
olhos deslizaram então pela aparelhagem da ampla sala: a máquina de escrever
automática, as unidades de gravação magnética, o impressor de 1100 linhas por
minuto. Sentia-se cada vez mais seguro. Nenhuma impureza humana podia escapar à
detecção daquelas máquinas, tal como nenhuma fraqueza humana podia deixar de
ser detectada pelos persistentes rastrejadores de sangue do país.
Vagueando pelo complexo, Adcock procurou Mary Lampert. Era a oficial
mais graduada das comunicações e o seu principal contato ali embaixo. Incapaz de a
localizar, parou para perguntar por ela a um operador. Soube que tinha saído há
pouco e que voltaria daí a poucos minutos.
Descobriu uma cadeira e sentou-se para esperar.
Observando novamente a rede de computadores, lembrando-se da divisão de
identificação lá em cima, pensando nos agentes do exterior, Adcock ficou certo de
que teria boas notícias para o chefe mais cedo ou mais tarde. Era só uma questão de
tempo. A linguagem na cabeça de Adcock era a linguagem das infindáveis
estatísticas. Para se sentir ainda melhor, recordou-as. Rede de computadores.
Provenientes de 40.000 delegações federais, estaduais e regionais, os dados vinham
alimentar os computadores. Eram recolhidos e arquivados dados não só de pessoas
com cadastro, não só de potenciais criminosos ou perturbadores da ordem, mas de
dissidentes em geral, de congressistas, de membros do governo, de críticos dos
Estados Unidos, enfim, de praticamente todos os indivíduos com mais de dez anos
de idade. Considere-se apenas o registro de cadastros. Cerca de 49% da população
seria presa pelo menos uma vez na vida, tendo em conta as infrações ao código da
estrada. 90% dos adultos negros seriam presos pelo menos uma vez na vida e o
mesmo aconteceria a 60% dos adultos brancos do sexo masculino. Tudo o que se
referia a essas prisões estava registrado em bancos de dados. Com um nível tão
elevado na taxa de criminalidade, mesmo excluindo as violações de tráfego, cerca de
nove milhões de pessoas seriam presas nesse ano. Perto de metade não seriam
condenadas ou veriam os processos arquivados ou seriam julgadas e absolvidas,
mas todas elas passariam a constar nos bancos de dados. Além das informações de
275 milhões de registros de polícia havia também dados, devidamente guardados, de
350 milhões de notas de casos médicos, de 290 milhões de relatórios psiquiátricos e
de 125 milhões de dossiers de crédito comercial.
Divisão de identificação. Em cada dia, em cada vinte e quatro horas,
chegavam ao FBI cerca de 34 mil jogos de impressões digitais, sendo 15 mil
provenientes das esquadras de polícia e 19.000 dos serviços governamentais,
bancos, companhias de seguros, repartições de licenças e outras fontes. Num único
dia, recorde-se. Em 1975, o FBI tinha 200 milhões de jogos de impressões digitais
nos arquivos. Hoje, devia ter 250 milhões. Um terço dos cartões estava nos arquivos
criminais e dois terços em arquivos comuns.
Agentes do FBI no exterior. Eram mais de 10.000, incluindo a força de
choque que estava a trabalhar nesta investigação. A força de choque tinha andado a
contatar com familiares, amigos, conhecidos, associados em negócios, a visitar
escolas, clubes, donos de lojas, banqueiros, médicos, advogados. Eles lá andavam,
sim, a gravar e a instalar escutas, a espiar como sombras e a seguir o rastro, a
contatar informantes, a tirar fotografias. Eles lá andavam a entrar em apartamentos e
casas de proprietários ausentes, a examinar o conteúdo de caixotes de lixo, a abrir e
inspecionar a correspondência que voltavam a fechar.
Maravilhoso. Quem podia escapar ao exército de Tynan? Se houvesse
impurezas, seriam encontradas, sem dúvida que seriam encontradas.
Harry Adcock estava contente por ter feito o inventário mental. Sentia-se
cada vez melhor.
As suas divagações foram interrompidas por um rosto feminino que se
aproximou do seu. Sentiu o perfume, e ouviu-a sussurrar:
- Olá, Harry.
Ele levantou a cabeça. Miss Lampert tinha voltado.
- Fi-lo esperar muito?
- Não, não. O que temos hoje?
- Venha ao gabinete.
No austero cubículo, sentou-se em frente da secretária dela. Viu-a dirigir-se
ao arquivo à prova de fogo e abri-lo. Mary Lampert tinha 32 anos e 1,70 m de altura.
Usava um penteado fofo e tinha olhos verdes frios, nariz curto e largo, lábios
carnudos, úmidos e sensuais. O vestido não era à medida dos seus peitos altos e
firmes, nem das generosas coxas, revelando a linha das calças.
O rosto cravado de acne de Adcock descontraiu-se com aquela visão de
prazer.
Ela regressou para junto dele.
- Aqui tem - disse ela, entregando-lhe uma pasta de papel.- São os últimos
dados relativos às últimas vinte horas.
Ele abriu a pasta e esquadrinhou, voltando as páginas. Quando acabou, o
prazer tinha-lhe abandonado o rosto, substituído pelo desgosto.
- Que diabo - disse. - Nada.
Mary fez que não com a cabeça.
- Foi o que também me pareceu. Parece uma investigação feita ao Clube dos
Escuteiros e Guias da América.
- Temos de continuar a tentar, Mary. O chefe espera...
O telefone tocou e ele interrompeu a conversa enquanto Mary atendia.
- Ah sim? - disse ela ao telefone. - Vou imediatamente. -
Adcock olhava-a interrogativamente.
- Divisão de identificação - disse ela. - Espere aqui; volto num instante. É
sobre o nosso caso, mas não sei o quê.
Dirigiu-se à porta. Adcock viu-a sair, com o elástico das calças marcado ao
longo das ancas. Não se podia esquecer de lhe dizer para levar aquele vestido da
próxima vez que fosse chamada ao chefe. Isso orientou os seus pensamentos para
Vernon T. Tynan, para a sua responsabilidade perante Tynan: sempre tinha feito
tudo para agradar a Tynan, para o fazer feliz, e não o podia abandonar nesta
perseguição ao traidor do Collins. Nunca tinha deixado ficar mal o chefe até então e
não queria que isso acontecesse agora, especialmente num momento em que estava
tanta coisa em jogo. Tynan tinha-o protegido sempre, e, raios!, daria a vida por
Tynan se fosse necessário. Sabia perfeitamente que as pessoas desta cidade
mesquinha falavam das relações entre eles, entre ele e Tynan. Sempre tinha
suspeitado de tais conversas, acabando por ter a confirmação numa festa da alta
sociedade de Washington -gente do Congresso, do Ministério dos Estrangeiros,
enfim, o costume- durante a qual gravou um grupo que conversava. Ouviu-os
chicanar e rir de Vernon T. Tynan e Harry Adcock, a quem chamavam
homossexuais. Sempre soubera que falavam deles, mas ali tinha a prova: Tynan e
ele, duas belas!
Nunca tinha ficado tão furioso.
Não que se importasse, mas era uma brincadeira falsa e injusta.
Na verdade, Adcock amava Tynan, mas como um homem pode amar outro,
sem ser homossexual. Que diabo, ele amava Tynan e venerava-o. Quanto ao resto,
Adcock já tivera uma mulher - há tanto tempo que já não se lembrava do seu
aspecto. Mas ela tinha morrido antes de poderem casar, muito antes de ter entrado
para o FBI. Tynan não era um substituto dela, era antes o pai que jamais tinha
conhecido, pois passara a mocidade num orfanato. De fato, dera-se com algumas
mulheres, poucas, durante os primeiros anos de FBI, simples companheiras de
cama; mas assim que começou a trepar no serviço, Tynan impôs-se e não houve
mais nenhuma. Tinha-se dedicado ao serviço - a Tynan e ao serviço - e a mais
ninguém. Tinha jurado celibato, tomando o FBI como ordem religiosa.
Quanto a Vernon T. Tynan, que estupidez! Aqueles pedantes não viam que
Tynan era normal quanto a mulheres, mas era cuidadoso e discreto, dada a sua
posição crítica.
Certo dia - recordava Adcock vagamente -, Tynan tinha sido visitado por
algumas raparigas, enviadas por uma senhora agradecida de Baltimore. Mas como
Tynan não gostava nem ousava comprometer-se muito, tinha-as mantido à distância.
Consentira apenas que falassem com ele. Mas há três anos, quando a tal senhora
morreu ou se retirou do negócio, Tynan tinha descoberto outra saída para as suas
necessidades sexuais. Tinha de ser cauteloso, mas felizmente tinha conseguido uma
solução brilhante. O FBI estava a aumentar os seus quadros de pessoal feminino,
não só de secretárias e simples empregadas, mas também de agentes especiais e
operadoras de computadores; Tynan tinha alvitrado que o seu velho ajudante
Adcock filtrasse as concorrentes femininas e fizesse uma prova com as melhores a
respeito da sua experiência com computadores e da sua condescendência sexual,
escolhendo apenas as mais qualificadas. Mary Lampert tinha conseguido o emprego.
O seu trabalho normal era de cinco dias por semana no quartel general do FBI e
uma noite por semana na casa suburbana de Vernon T. Tynan.
Uma noite por semana (todas as sextas-feiras à noite), Mary Lampert,
disfarçada com pastas debaixo do braço, ia a casa de Tynan, uma casa bem protegida
na Geórgia, perto de Rock Creak Park. Acompanhava o chefe em três ou quatro
bebidas, despia-o e despia-se. Brincavam na cama. Depois, metia a cabeça entre as
pernas dele. Era como um relógio, todas as semanas, uma vez por semana, durante
anos. Quem se julgavam aqueles pedantes para dizerem que Tynan não era normal?
Ena, pensou Adcock, como ficariam espantados aqueles pedantes da capital
se soubessem que o diretor e o adjunto eram seres humanos normais: provavelmente
os únicos seres humanos normais (à exceção do Presidente) no meio dessa
comunidade depravada. E também era normal, pensou Adcock, que ele se fizesse
valer junto de Tynan pela sua lealdade e dedicação como servidor daquele que era
efetivamente o maior homem dos Estados Unidos da América.
Era por isso que não podia desapontar Tynan neste importantíssimo assunto
da investigação sobre Collins. No entanto, apesar da aplicação e dos esforços, não
tinham ainda conseguido abrir uma brecha. Estava novamente a ficar desolado e
desanimado, quando viu que Mary Lampert, a primeira oficial das comunicações, se
encontrava à sua frente, sorrindo-lhe. Com um floreado, pousou uma ficha de
impressões digitais e um molho de papéis agrafados no colo de Adcock.
- Boas notícias, Harry. Ele ficou pasmado.
- O que é?
- A investigação Collins. Acaba de chegar. Veja você mesmo. Ele pegou no
molho de papéis, examinou a ficha de impressões digitais, confuso, e começou a
folhear os papéis um a um. A perplexidade depressa se desvaneceu.
- Meu Deus! - disse ele, sorrindo finalmente.
***
Faltavam cinco minutos para as oito da manhã. Chris Collins, em frente do
espelho da casa de banho, acabava de se barbear. Ensaboou mais uma vez a cara,
curvou-se sobre o lavatório, espalhou água quente pelo rosto e limpou o sabão.
Endireitando-se, começou a cantarolar enquanto se via ao espelho. Nos
últimos tempos, o espelho tinha refletido uma cara esguia e magra que parecia
constantemente macilenta e carregada de anos. Mas nessa manhã, o seu rosto estava
(ou parecia estar) tão saudável e fresco como o de um jovem atleta.
Talvez a transformação se devesse ainda à sua alegria.
Desde o telefonema do Presidente do Supremo Maynard, dois dias antes,
quando ele lhe confidenciara que ia resignar do cargo e manifestar-se contra a 35.a
emenda, Collins tinha ficado realmente animado. Nem mesmo as últimas notícias,
durante o jantar da noite anterior (o aviso de Ishmael Young de que estava a ser
secretamente investigado) tinham destruído a sua boa disposição. No dia anterior,
refletindo sobre o comportamento de Tynan, tinha considerado várias vezes a
hipótese de enfrentar o diretor e revelar o que sabia. Claro que isso embaraçaria
Tynan e levaria ao fim imediato da investigação. Mas tinha acabado por decidir não
se importar com isso. Deixaria Tynan fazer o seu jogo inútil. Afinal, Tynan nada
descobriria. Não havia nada a esconder no passado de Collins nem na sua presente
atividade. Além disso, a sua competição com Tynan estava prestes a terminar.
Collins sabia que agora tinha todos os trunfos.
Persuadir John G. Maynard a manifestar-se tinha sido a vitória final. Desse
modo, todas as táticas da oposição seriam anuladas. O sonho de glória de Tynan, o
sonho de conseguir poderes ditatoriais através da emenda, terminaria no momento
em que Maynard erguesse a voz em Sacramento contra a emenda. Mesmo a arma
misteriosa de Tynan, o Documento R, fosse ele o que fosse, poderia ser esquecido.
Apesar do aviso, feito por Baxter no leito de morte, de que devia ser exposto, o
Documento R tornar-se-ia inoperante e inofensivo com a declaração de Maynard
hoje em Sacramento.
Esfregando a cara para a secar, Collins tirou uma camisa azul de um cabide e
vestiu-a. Enquanto a abotoava, calculava qual seria o momento exato da vitória da
democracia nos Estados Unidos. O relógio da prateleira de azulejos sob o espelho da
casa de banho marcava exatamente oito horas aqui em Washington. Portanto, eram
cinco da manhã na Califórnia. Neste momento, Maynard devia estar a levantar-se e a
preparar-se para a viagem de duas horas de Palm Springs a Los Angeles. Aí, às nove
horas, quando Collins interrompesse o trabalho para almoçar, Maynard estaria a dar
a conferência de imprensa, espantando a nação com a resignação e espantando a
Califórnia com a comunicação de que ia voar para a capital no sentido de exortar os
órgãos legislativos a derrotar a 35.a emenda. Na capital estadual, às três horas,
quando Collins regressasse do serviço para jantar, Maynard estaria a ler a sua
declaração escaldante contra a emenda, primeiro perante o comitê judicial da
Assembléia, depois no comitê judicial do Senado. Daí a algumas horas, a
Assembléia da Califórnia estaria a votar a emenda à Constituição, sendo depois a
vez do Senado. Mas nem sequer seria necessário o Senado. Morreria para sempre na
primeira apresentação à Assembléia. A opinião de Maynard, a sua influência e o seu
prestígio, dominariam o dia.
Collins deu-se conta que estava a assobiar o "Glory, glory, hallelujah", achou
que isso estava desatualizado e parou. Tinha posto a gravata e dado o nó,
preparando-se para tomar um pequeno almoço apressado com Karen antes de correr
para o serviço, quando ouviu bater à porta da casa de banho.
- Chris?
- Sim?
- Está aqui um indivíduo que quer falar contigo, um tal Dorian Schiller. Diz
que é um amigo...
Collins abriu a porta.
- Dorian Schiller?
- Não conheci o nome. Por isso não o deixei entrar. Vou dizer-lhe...
Karen preparava-se para se afastar, quando Collins se aproximou e a agarrou
pelo ombro.
- Não, espera Karen. É o nome falso que dei a Donald Radenbaugh.
- Quem?
- Não interessa. Explico-te depois. É um amigo. Deixa-o entrar. Eu já vou.
Enquanto ela se dirigia à porta da rua para receber Radenbaugh, Collins foi
buscar o casaco do terno ao quarto de toilette. Vestindo-o, interrogava-se sobre o
que quereria Radenbaugh àquela hora. Após o regresso de Argo City, ainda só o vira
uma vez, embora falasse diariamente com ele pelo telefone. Tinha instalado
Radenbaugh num apartamento de duas divisões do Madison Hotel, na 15.a Avenida,
esquina da Rua M, e tinha-lhe levado todos os apontamentos disponíveis e
investigações feitas sobre um plano alternativo de combate à criminalidade e ao
desrespeito pela lei no país. Era um plano alternativo à 35.a emenda, que Collins
pretendia apresentar ao Presidente na primeira reunião subseqüente à rejeição da
emenda.
O aparecimento de Radenbaugh era uma surpresa. Collins tinha-lhe dito
claramente que seria melhor não se aventurar além das proximidades do hotel, que
se fechasse no seu apartamento. Ele tinha sido muito conhecido em Washington.
Embora o seu aspecto tivesse sido consideravelmente alterado, alguém que o tivesse
conhecido poderia reconhecê-lo. Isso poderia trazer problemas, possivelmente até a
sua morte. Collins queria-o em Washington apenas durante o tempo necessário para
desenvolver a nova lei criminal, enquanto se desenvolviam esforços para lhe arranjar
um emprego numa pequena comunidade de uma região remota do país.
Preocupado, Collins saiu do quarto de toilette, atravessou o banheiro e o
quarto, percorreu o corredor e entrou na sala de estar. Esperava que Radenbaugh se
tivesse sentado, mas estava de pé, passeando agitado. Karen estava junto da mesa,
pousando o tabuleiro do pequeno almoço.
- Donald - cumprimentou-o Collins -, não o esperava por cá. Já conhece a
minha mulher...?
Randenbaugh parou, como se não tivesse ouvido, mas Karen declarou que já
se tinham apresentado mutuamente. Acrescentou:
- Vou buscar suco, café e torradas e deixo-os conversar.
Karen saiu.
Radenbaugh fixou Collins, com a desgraça estampada no rosto.
- Más notícias - disse finalmente -, muito más notícias, Chris. Antes que
Collins pudesse reagir, Radenbaugh continuou rapidamente. - Estão a dar na
televisão desde as seis da manhã. Ligo sempre o aparelho quando me levanto. Tentei
telefonar-lhe imediatamente, mas esqueci-me do seu número. Por isso, vim cá.
Collins não se mexeu. Palpitava-lhe um desastre.
- O que foi, Donald. Você parece um frangalho.
- A pior notícia possível - disse Radenbaugh, respirando como um asmático. -
Chris, não sei como dizer-lhe...
- Diabos, o que foi?
- O Presidente do Supremo e a mulher foram assassinados na cama, esta
noite, mortos por um vulgar assaltante de casas.
Collins sentiu os joelhos fraquejarem.
- Não posso acreditar.
- Em Palm Springs, na Califórnia, por volta das duas da manhã. Maynard e a
mulher, Abigail, estavam na cama a dormir. Aquilo que percebi foi que alguém
entrou pelo portão de serviço. Essa pessoa introduziu-se no quarto. Parece que
Maynard já estava acordado. Tentou sair da cama ou fez um movimento. O
pistoleiro atirou duas vezes com uma Walter de 9 mm P-38. Atingiu-o no peito e na
cabeça... teve morte instantânea. O barulho acordou a mulher e o assassino alvejou-a
com três balas...
- Meu Deus, nunca ouvi uma coisa assim!
- Até fiquei arrepiado. Não sabia como lhe havia de comunicar.
Collins vagueava desconsolado pela sala, batendo constantemente com o
punho na palma da mão.
- Uma tragédia assim. Quem podia imaginar? E não é só o assassinato sem
sentido de um dos maiores homens da nação, é também a destruição da nossa última
esperança em acabar com a ameaça de uma ditadura. Que diabo, para onde vai este
país?
- Quer dizer, para onde irá - corrigiu Radenbaugh. - Onde tem o aparelho de
televisão?
- Aqui - disse Collins dirigindo-se para o corredor.
Radenbaugh seguiu-o.
- Estão a transmitir direto de Palm Springs desde as seis da manhã. Vamos
ver o que se está a passar.
Entraram no escritório coberto de prateleiras de livros. A televisão estava
anichada na parede. Radenbaugh sentou-se no sofá em frente, enquanto Collins
ligava o
aparelho e o sintonizava.
Collins sentou-se no braço de uma cadeira e empurrou-a para perto da
televisão. A câmara focava a frontaria da casa moderna e deserta onde a tragédia
tinha ocorrido. Um cordão de policiais estacionava no passeio em frente. Detetives à
paisana entravam e saíam pela porta principal. No exterior, dezenas de vizinhos,
muitos ainda em pijama, observavam a cena, abalados.
Agora a câmara móvel focava o repórter da televisão, aproximava-se dele.
"Foi este o palco da tragédia, ainda não há três horas -informava o locutor. -
Aqui, nesta rua lateral, calma e pacífica do mais famoso refúgio da Califórnia, quase
deserto no tempo quente de Verão, o Presidente do Supremo Tribunal dos Estados
Unidos da América, John G. Maynard, e a sua esposa, encontraram a morte
violentamente, às mãos de um assaltante desconhecido. - O locutor, segurando o
microfone, apontava para a casa vivamente iluminada pelos projetores da polícia e
da televisão.
- Os corpos foram retirados há pouco mais de uma hora. Não só os corpos do
Presidente do Supremo e da esposa, mas também o do assassino ainda não
identificado, que foi abatido pelas balas da polícia antes de poder fugir. - O locutor
levantava o microfone à medida que se acercava da câmara. Vou recapitular uma
vez mais o que se sabe sobre o que aconteceu aqui em Palm Springs nesta
madrugada..."
Collins sentou-se hipnotizado em frente da televisão, escutando.
Tudo levava a crer que o intruso estava familiarizado com a disposição da
casa de Maynard. Depois de entrar pelo portão de serviço, dirigira-se ao quarto para
se apoderar dos valores da Senhora Maynard. Ao entrar no quarto, acordara o
Presidente Maynard. A polícia pensava que Maynard, percebendo o que se estava a
passar, se teria soerguido, premindo um botão de alarme colocado na parede. O
alarme tinha sido instalado seis anos antes pela polícia local para dar maior
segurança ao eminente cidadão. O alarme silencioso estava diretamente ligado à
esquadra. A polícia tinha sido alertada imediatamente. Entretanto, assim que vira
Maynard mexer-se, o assassino tinha aberto fogo sobre ele. Quando a Senhora
Maynard acordara, erguendo-se, o assassino também tinha disparado sobre ela.
Tinham morrido ambos em poucos segundos. Então, em vez de fugir, o assassino
tinha continuado no quarto para completar a sua tarefa. Desconhecendo que a
primeira vítima tinha acionado o alarme silencioso, esquadrinhara o quarto à procura
de dinheiro e jóias. Depois de ter metido ao bolso o colar e os brincos da Senhora
Maynard e a carteira do Presidente tinha-se retirado pelo mesmo caminho por onde
entrou. No passeio fronteiro, dirigira-se para o Plymouth, anteriormente alugado em
Los Angeles, que estava estacionado à distância de dois quarteirões. De repente, fora
apanhado pelo holofote de um carro da polícia que se dirigia para ele. Tinha
começado a correr, parando depois para abrir fogo sobre os policiais quando estes
tinham saído do carro. Os policiais tinham-lhe respondido com uma saraivada de
balas, que o deixaria morto no passeio. Além dos objetos roubados que levava nos
bolsos, não tinha nada de pessoal. A sua identidade continuava a ser desconhecida.
O repórter da televisão tinha acabado a recapitulação.
- Agora voltamos aos estúdios em Los Angeles para conhecermos as últimas
notícias sobre o assassínio do Presidente Maynard e da sua esposa.
Na cadeira de braços, observando, ouvindo, Collins sentia um amargo
desespero.
- Com que fim? - perguntou-se.
- Tem aqui um cigarro - disse Radenbaugh, oferecendo-lhe o maço aberto.
Collins tirou um cigarro, mas pousou-o depois na mesa.
- É melhor tomar primeiro um café.
Levantou-se e voltou à sala. Pegou no tabuleiro que Karen lá deixara e levou-
o para o escritório. Serviu o café morno a Radenbaugh e a si próprio. Enquanto
bebia, Collins sentou-se novamente na cadeira e prestou atenção à televisão.
Um locutor, sentado atrás de uma mesa em meia-lua, pegou numa folha que
acabara de ser posta à sua frente.
''É outra informação de última hora - anunciou. - O Presidente do Supremo
Maynard tinha chegado ontem inesperadamente a Los Angeles. Nem os membros do
seu pessoal em Washington nem os seus colegas do Supremo Tribunal sabem
explicar esta viagem repentina que não estava programada. Mas já possuímos alguns
elementos. Logo após a chegada a Los Angeles, o Presidente e a esposa partiram
para a residência de Inverno em Palm Springs. Na manhã seguinte, o Presidente
Maynard contactou com um velho amigo em Sacramento, James Guffey, porta-voz
da Assembléia do Estado, e declarou que tencionava voar para a capital no dia
seguinte (isto é, hoje à tarde) para comparecer perante o comitê judicial da
Assembléia. Disse que queria discutir a 35.a emenda com os membros do comitê
antes de ela ser posta à votação. Guffey ficou encantado e informou o Presidente do
Supremo que seria ouvido na qualidade de última testemunha e mais importante.
Guffey afirmou esta manhã que não fazia idéia do que Maynard ia dizer sobre a
emenda e que ele não lhe tinha revelado se tomaria uma posição contrária ou
favorável. Guffey acrescentou que durante a conversa telefônica tinha criticado o
Presidente do Supremo por ir para Palm Springs fora da estação: 'O que é que está aí
a fazer?', perguntou-lhe Guffey, e Maynard respondeu: 'Precisava de um lugar onde
tivesse paz para pensar. Tencionava escrever a minha comunicação aqui. Mas
resolvi levar o dia a pensar e amanhã falarei de improviso perante o comitê. Já tenho
uma idéia geral do que vou dizer'."
"Agora, a morte calou o Presidente do Supremo e nunca saberemos o que ele
tencionava dizer sobre este importante assunto: a votação crucial da 35.a emenda na
Califórnia. Também soubemos que, antes de seguir para Sacramento, o Presidente
do Supremo tencionava dar uma conferência de imprensa no Hotel Embaixador, em
Los Angeles. Se ele ainda estivesse vivo, a conferência realizar-se-ia daqui a poucas
horas. Acabei de ser informado que o secretário de imprensa do Presidente dos
Estados Unidos irá ler daqui a pouco uma comunicação do Presidente Wadsworth
sobre a morte violenta e intempestiva do Presidente do Supremo. Agora vamos
passar ao nosso repórter em Washington, junto da Casa Branca..."
Collins olhou para Radenbaugh.
- Parece-me que é também o nosso funeral, Donald. Radenbaugh acenou
tristemente com a cabeça.
Collins ergueu os olhos. O choque inicial tinha passado e só restava uma
intensa depressão.
- Sabe, não me lembro de ter acontecido nada pior na minha vida. - Com um
gesto indicou a televisão. - Agora o país é deles.
- Tudo leva a crer - concordou Radenbaugh.
Ficaram ambos em silêncio, concentrados no aparelho de televisão.
O secretário de imprensa da Casa Branca estava a acabar de ler o elogio e as
condolências do Presidente Wadsworth. A atenção de Collins diminuiu.
A declaração do Presidente consistia nas palavras habituais, ocas, banais, por
vezes sem sinceridade: quando um grande homem morre, parte da humanidade
morre com ele. Não restam dúvidas acerca da grandeza de John G. Maynard. Agora
pertence ao panteão dos imortais que tentaram dar uma verdadeira justiça à sua terra.
Lá estão Marshall, Brandeis, Holmes, Warren, e, acima deles, bem alto, John G.
Maynard. Passa a pertencer à história.
E, juntamente com Maynard, também a democracia passa à história, pensou Collins.
Morto. Uma relíquia do passado. Sem Maynard a vaga do futuro era a 35.a emenda,
Vernon T. Tynan - a nação seria fundida no seu molde.
Mal pensara em Tynan, quando ouviu o seu nome anunciado pelo repórter da
televisão em serviço na Casa Branca.
"...Vernon T. Tynan. Vamos passar ao gabinete do diretor do FBI."
Instantaneamente, a familiar cabecinha pequena de Tynan e os seus ombros
largos apareceram na televisão. A sua cara fechada tinha assumido o conveniente
aspecto de pesar e luto. Começou a ler um papel que tinha na mão:
''Esta morte brutal e insensata que levou um dos mais renomados
humanitários da nação foi uma perda que não pode ser expressa por simples
palavras. O Presidente do Supremo Tribunal era um amigo da nação, meu amigo
pessoal, um amigo da verdade e da liberdade. A sua perda feriu a América, mas em
atenção a ele a América tornar-se-á suficientemente forte para sobreviver e
sobreviverá a todos os crimes, a todos os desrespeitos da lei, a todas as violências.
Estou certo de que se o Presidente do Supremo estivesse vivo, quereria que
encarássemos esta tragédia num sentido mais amplo. Esta sistemática dizimação dos
nossos dirigentes e da nossa cidadania tem de ser estancada, para que os Americanos
possam passear nas ruas e dormir com a certeza absoluta de que estão a salvo e
livres."
Tynan olhou para a câmara e pareceu encontrar os olhos de Collins, que o
fixava ferozmente. Pigarreou e continuou a falar:
"Felizmente, o degenerado assassino não escapou. Também encontrou a sua
morte violenta. Acabei de ser informado que esse assassino foi identificado. A sua
identidade será indicada em breve pelo FBI. Basta dizer, por agora, que era um
antigo condenado, um homem com um longo cadastro, a quem se permitiu que
andasse em liberdade e vagueasse pelas nossas ruas ao abrigo das disposições
ambíguas e frouxas da Declaração de Direitos. Se a Declaração de Direitos tivesse
sido alterada há um mês, este terrível crime poderia ter sido evitado. Embora a
emenda só possa entrar em vigor em caso de conspiração ou rebelião, o simples fato
de ser aprovada geraria uma atmosfera positiva que relegaria as mortes como esta
para os anais do passado. Senhoras e senhores, recebemos hoje uma lição, neste
dia de pesar. Vamos trabalhar juntos, de mãos dadas, para tornar a América segura e
forte."
A cara de Tynan desapareceu para dar lugar à do locutor no estúdio da
televisão em Washington.
Ignorando o aparelho, Collins aproximou a cadeira de Radenbaugh. Estava
furioso.
- Este pulha! Como se atreve? Ouviu-o? A fazer a cama à maldita emenda
antes do corpo de Maynard ter arrefecido.
- E lançando-a ao ar de tal maneira que até parece que Maynard a teria
recebido de braços abertos - disse Radenbaugh. Apontou para a televisão. - Olhe,
parece que vão identificar o assassino.
- Que interessa isso agora... - disse Collins, que no entanto prestou atenção.
"Sim, já sabemos a identidade do indivíduo que assassinou o Presidente do
Supremo - dizia o locutor. - Acaba de ser confirmada e comunicada. O assassino foi
definitivamente identificado como um tal Ramon Escobar, de trinta e dois anos de
idade, cidadão americano de origem cubana, residente em Miami, na Flórida. Temos
aqui as fotografias retiradas dos arquivos do FBI..."
Surgiram de imediato duas fotografias de Ramon Escobar, uma de frente,
outra de perfil. Mostravam um homem novo, moreno, mal encarado, de cabelo preto
encaracolado, patilhas compridas, maçãs do rosto salientes e com o traço lívido de
uma cicatriz no maxilar.
- Ah, não! - arquejou Radenbaugh. - Não!
Collins, estupefato, voltou-se para ele a tempo de o ver pôr-se de pé num
salto. Os seus olhos estavam arregalados, as feições raiadas de sangue e continuava
a apontar um dedo para a televisão, tentando dizer qualquer coisa.
Confuso, Collins aproximou-se do companheiro, tentando acalmá-lo. O dedo
que Radenbaugh apontara para a televisão dera lugar a um punho. Radenbaugh
ameaçava a televisão com o punho crispado.
As palavras cavernosas irromperam finalmente.
- É ele, Chris!-bradou Radenbaugh. - É ele, é ele.
Collins agarrava-o.
- Donald, domine-se. O que é?
- Olhe para ele, olhe para o homem que matou Maynard. É um dos que eu vi.
Ouviu o nome? Ramon Escobar. Eu ouvi... Ouvi esse nome na Ilha dos Pescadores,
ao largo de Miami, naquela noite. O rosto... É o mesmo rosto, exatamente,
reconheço-o... o homem da Ilha dos Pescadores... o homem a quem Vernon Tynan
me mandou entregar os 750.000 dólares... é ele, o homem que me tirou o dinheiro.
Meu Deus, Chris, sabe o que isso significa?
O rosto de Ramon Escobar tinha desaparecido, substituído uma vez mais pelo
locutor. Collins atravessou o escritório e fechou a televisão. Voltou-se, chocado,
lembrando-se da história de Radenbaugh, da sua saída de Lewisburg, da recuperação
do milhão de dólares nos pântanos, do transporte dos três quartos de milhão para a
Ilha dos Pescadores e da sua entrega a dois homens que Tynan tinha designado.
Agora descobria-se que o assassino de Maynard era um deles.
- Acredite que é o mesmo homem - dizia Radenbaugh. - Isso quer dizer que
Tynan queria o meu dinheiro para se livrar de Maynard. Isso quer dizer que me tirou
da prisão para deitar a mão a dinheiro suficiente para pagar a um assassino
profissional, dinheiro que não deixasse rastos, inidentificável. Foi Tynan quem
preparou o assassínio.
Estava decidido a ir até onde fosse preciso para evitar que Maynard
liquidasse a 35.a emenda, mesmo que fosse preciso matar o próprio Maynard.
- Acabe com isso - disse Collins severamente. - Não pode provar nada.
- Meu Deus, homem, precisa de maior prova? Eu estava com Tynan quando
ele me fez a oferta. Tirou-me da prisão, deu-me uma identidade nova, enviou-me a
Miami e à Ilha dos Pescadores, mandou-me entregar três quartos de milhão a... a
quem? Ao mesmo homem que assassinou o Presidente Maynard na noite passada.
Que mais provas precisa?
Collins tentava pensar, deslindar a trama.
- Eu não preciso de mais provas, Donald. Acredito. Mas quem mais vai
acreditar?
- Posso ir à polícia. Posso contar-lhes o que aconteceu. Posso dizer-lhes que
entreguei o dinheiro a este assassino por ordem de Tynan.
Collins abanou a cabeça.
- Não dará resultado.
- Porque é que não dará resultado? Harry Adcock conhece a verdade. O
diretor Jenkins também...
- Mas não falarão.
Radenbaugh pegou nas abas do casaco de Collins.
- Ouça, Collins. A polícia há de acreditar-me. Ainda sou eu. Estive na Ilha.
Podemos ver-nos livres de Tynan. Posso contar toda a verdade.
Collins tirou-lhe as mãos do casaco.
- Não. Donald Radenbaugh não pode dizer a verdade, porque Donald
Radenbaugh não existe: a testemunha não existe.
- Mas eu estou aqui.
- Não, quem está aqui é Dorian Schiller. Radenbaugh morreu. Nada prova
que esteja vivo. Não existe.
Subitamente, Radenbaugh sucumbiu. Compreendera finalmente. Olhou para
Collins desanimado.
- Tem razão.
Como se se tivesse transformado, inspirado por uma nova deliberação,
Collins reanimou-se.
- Mas eu existo - disse Collins. - Vou já direito ao Presidente. De ouvido ou
não, acredito em tudo o que você me disse, porque também aprendi à minha custa, e
vou apresentar os fatos ao Presidente. É demasiado para ser ignorado. Ele tem de
conhecer a realidade, tem de saber que o verdadeiro desrespeito pela lei e os crimes
neste país estão a ser cometidos por Tynan. O Presidente não pode deixar de
enfrentar a verdade, de forma nenhuma. Uma vez que a saiba, compreenderá o que
Maynard queria fazer e fá-lo-á em vez dele: falar ao público, repudiar Tynan,
denunciar a 35.a emenda e derrotá-la de uma vez para sempre. Anime-se também,
Donald. O nosso pesadelo vai acabar.

Capítulo oitavo

O Presidente dos Estados Unidos empertigou-se na cadeira giratória de couro


preto por trás da secretária Buchanan, no Gabinete Oval da Casa Branca.
- Demiti-lo? - repetiu com uma ligeira elevação do tom de voz. - Quer que
demita o diretor do FBI ?
Tinham estado a falar, sentados neste Gabinete Oval (o Presidente
Wadsworth atrás da secretária, Chris Collins na cadeira estofada de madeira preta
em frente da secretária), durante vinte minutos. Ou antes, Collins tinha estado a
falar, e o Presidente a ouvir.
Quando Collins solicitara a entrevista nessa manhã, a agenda do Presidente já
estava cheia. Collins tinha invocado uma ''emergência'' e o Presidente tinha
concordado em conceder-lhe meia hora depois do almoço, às duas horas.
Assim que entrara no Gabinete Oval, Collins tinha ignorado as formalidades,
plantara-se imediatamente em frente do Presidente e enfronhara-se numa narrativa
desapaixonada.
- Julgo que deve conhecer algumas coisas que se estão a passar nas suas
costas, senhor Presidente, coisas terríveis - começara Collins -, e já que mais
ninguém lhes conta, terei de ser eu a fazê-lo. Não será fácil, mas cá vai.
Então, quase num monólogo, Collins tinha recitado os incidentes e as
ocorrências com que tinha esbarrado desde o aviso do coronel Baxter sobre o
Documento R até à identificação do assassino de Maynard por Donald Radenbaugh.
Tinha contado tudo sem interrupções, com a clareza de um advogado no tribunal,
sem omitir o menor pormenor.
Tinha concluído:
- Não há nada na terra que possa justificar a desobediência à lei para
preservar a lei. O diretor tem sido a principal mola de tudo isto. Baseado nas provas
que acabo de lhe apresentar, senhor Presidente, julgo que não tem outra hipótese
senão demiti-lo.
- Demiti-lo? - repetiu o Presidente. - Quer que demita o diretor do FBI ?
- Sim, senhor Presidente. Tem de se ver livre de Vernon T. Tynan. Se não
para o punir pelos seus atos criminosos, pelo menos para restaurar o seu prestígio e
salvaguardar o processo democrático. Embora isso lhe custe a 35.a emenda,
preservará a Constituição. Podemos criar um plano melhor para garantir a lei e a
ordem neste país, baseado não na repressão e na tirania potencial, mas no
melhoramento das estruturas econômica e social da nossa sociedade. Contudo, nada
disso é possível enquanto Tynan
continuar.
O Presidente tinha-se mantido extraordinariamente calmo durante a
exposição de Collins. Tinha ouvido tranqüilamente e sem manifestações de emoção,
a não ser o alisar do seu cabelo grisalho, o esfregar o nariz aquilino, e o pôr a mão
em concha no queixo.
Agora, a sua atitude continuava a ser fleumática. O único movimento que fez,
foi levantar um corta-papéis lavrado, sopesando-o na mão numa atitude abstrata,
para logo o voltar a pousar na mesa.
Falou novamente:
- Então, pensa realmente que o diretor Tynan merece ser demitido?
- Absolutamente - disse Collins com ênfase. - As razões para a demissão são
inúmeras. Tynan deve ser demitido por conspiração ilegal, por abuso do poder,
tentando fazer aprovar uma lei que lhe daria um poder supremo. Deve ser demitido
por chantagem e interferência nos processos legais. A única coisa de que não o
posso acusar é de assassínio, porque não tenho provas. O resto é evidente. Com o
seu afastamento (com o fundamento que escolher, baseado nas provas que os meus
serviços lhe podem fornecer ainda esta noite), a 35.a emenda morrerá por si. Mas o
senhor pode desfazer todo o mal que Tynan fez até hoje, realizando pessoalmente o
que o Presidente do Supremo pretendia fazer: manifestando-se contra a emenda e
levando a Califórnia a votar contra. Não me parece que isso seja necessário depois
de se ver livre de Tynan, mas será um ato consciencioso que lhe conquistará ainda
maior respeito.
O Presidente manteve-se em silêncio por algum tempo, parecendo contemplar
tudo o que tinha ouvido. Inesperadamente, levantou-se da cadeira de couro preto,
virou
as costas a Collins, deslocou a sua figura aprumada para a janela da esquerda,
adornada com cortinados verdes, e aí ficou a olhar fixamente para o relvado da Casa
Branca e para o roseiral.
Tenso, Collins esperava. Cruzou os dedos mentalmente. O júri do caso Tynan
estava a deliberar. O veredicto não tardaria. O veredicto correto resolveria tudo.
Hirto, Collins tinha esperança.
Depois de uns momentos que lhe pareceram intermináveis, o Presidente
afastou-se da janela e dirigiu-se para a sua cadeira. Parou atrás dela, pousou
levemente os braços sobre o espaldar, enlaçou os dedos e assentou os olhos em
Collins.
- Bem, bem... - começou. - Tenho estado a pensar em tudo o que disse.
Examinei tudo cuidadosamente. Deixe-me dizer-lhe que me espanta. Deixe-me ser
tão franco consigo como foi comigo.
Collins fez um ligeiro sinal com a cabeça e esperou.
- As suas razões para demitir Tynan! - disse o Presidente. Chris, vamos tentar
ser tão objetivos quanto possível. Conhece melhor a lei que qualquer outra pessoa. É
o principal advogado do país. Sabe que uma pessoa é considerada inocente até se
provar que é culpada. Teorias, boatos, insinuações indiretas, suspeitas, coisas que se
sabem por ouvir dizer e deduções não são fatos, provas evidentes e irrefutáveis. A
sua prova está assentado em conversas e não em fatos.
Collins inclinou-se para a frente para interromper, mas o Presidente levantou
as palmas das mãos e prosseguiu:
- Espere! Deixe-me dizer o que tenho a dizer. Quais são as acusações que
apresenta contra Tynan? Vejamos. Diz que Tynan empolou as estatísticas criminais
da Califórnia. Pode prová-lo efetivamente? Diz que Tynan está a construir campos
de concentração por toda a nação. Pode prová-lo? Pode dizer qual é o serviço que
está a construir esses campos? Pode demonstrar, sem margem para dúvidas, que
essas estruturas se destinam a dissidentes? Temos o contrato de Tynan com
Radenbaugh, libertando o condenado de Lewisburg e dando-lhe outra identidade.
Pode prová-lo? Pode provar que o acordo foi feito? E que foi Tynan que o fez? E
que Radenbaugh não morreu como a prisão anunciou? Temos Tynan a mandar que o
dinheiro, de origem pouco clara, fosse entregue ao assassino de Maynard. Pode
prová-lo? Pode mesmo? Temos Tynan a utilizar os habitantes de uma cidade de
companhia, no Arizona, como cobaias da 35.a emenda. Pode prová-lo? Nós
sabíamos que Tynan estava a fazer investigações nessa cidade, mas pode provar que
em vez disso estava a utilizá-la com intuitos nefandos? Considera Tynan como o
professor Moriarty de uma sinistra conspiração corporizada numa coisa, num plano:
o Documento R. Pode prová-lo? Pode dizer se quer que o soube pessoalmente do
coronel Baxter? Pode provar que tal documento existe? Ou se existe, que é
perigoso? Pode dizer-me o que é e onde está?
O Presidente Wadsworth retomou o fôlego e prosseguiu:
- Chris, o que conseguiu senão um tecido de especulações fantásticas e
conjecturas? Baseado nessas acusações, a que falta a prova irrefutável, pretende que
eu demita o diretor do FBI, um dos homens mais eficientes e populares do país?
Chris, perdeu a cabeça? Demitir Tynan? Porquê? A sua causa é indefensável, Chris,
impossível.
Collins afundara-se na cadeira durante a parte final, derrotado, abatido.
Contava com dúvidas por parte do Presidente, com alguma discussão, mas não com
um ataque declarado contra ele.
Desesperado, tentou voltar ao ataque.
- Senhor Presidente, as provas são de vários tipos. Sei que lhe posso trazer
provas suficientes para o satisfazer, mas isso leva tempo. E não temos tempo.
Primeiro retire Tynan do caminho. É perigoso. Podemos formular depois as provas
criminais contra ele. Digo-lhe pelo que ouvi e testemunhei que Tynan há de fazer
tudo, absolutamente tudo, para se ver livre da Declaração de Direitos, para ver a 35.a
emenda transformada em lei, para destruir a democracia...
A cara do Presidente tornou-se glacial.
- Eu também quero ver a emenda aprovada - disse ele. - Isso significa que
pretendo destruir a nossa democracia?
- Não, certamente que não, senhor Presidente - concordou Collins à pressa. -
Não quero dizer que toda a gente que defende a emenda é contra um governo
democrático. E, de fato, eu próprio a defendi durante algum tempo e em público.
Para o público, ainda a defendo. Nunca a ataquei publicamente e não tenciono fazê-
lo enquanto pertencer à Administração.
O tom do Presidente abrandou ligeiramente.
- Fico satisfeito em sabê-lo, Chris. Agrada-me que ainda tenha o sentido da
lealdade.
- Com certeza que tenho - disse Collins. - O problema é saber se Tynan tem a
mesma lealdade! Mais do que isso, importa saber o que significa a democracia. O
senhor e eu sabemo-lo. E Tynan? Nas nossas mãos a emenda nunca seria usada
indevidamente. Mas nas mãos dele...?
- Não há nenhuma prova de que ele interpretaria a lei diferentemente de si ou
de mim.
- Perante tudo o que lhe contei, ainda pode dizer isso? Mesmo que não
pudesse provar tudo, certamente teria de admitir...
- Não interessa, Chris - cortou o Presidente. Deu a volta à cadeira e
mergulhou nela com ar de querer pôr termo à conversa. Chris, não vale a pena
continuar. Tenho-me aos fatos e respeito-os. Baseado no que me disse, não vejo que
os fatos apóiem o seu ponto de vista. Não vejo razões suficientes para demitir
Tynan. Faça um esforço para encarar o assunto sob o meu ponto de vista. A
reputação de Tynan como patriota é impecável. Afastá-lo com uma prova tão débil,
seria como prender George Washington por provocar desordens, ou atirar Barbara
Frietchie para a cadeia por subversão. Demiti-lo seria um mau serviço prestado ao
país e, para mim, seria também o suicídio político. O público confia em Tynan. O
povo acredita nele...
- E o senhor? - quis Collins saber. - O senhor também acredita nele?
- Porque não? - retorquiu o Presidente. - Nunca deixou de me ajudar. Tem
sido um dos melhores servidores públicos. Por vezes mostra-se demasiado zeloso,
quer cortar a direito na sua ânsia de ver as coisas feitas, mas bem feitas as contas...
- Pretende então mantê-lo e à 35.a emenda - disse Collins.- Nada que eu
possa dizer o poderá dissuadir. Está resolvido a ficar com ele?
- Sim - disse o Presidente terminantemente. - Não tenho alternativa, Chris.
- Então, eu também não tenho alternativa, senhor Presidente disse Collins,
pondo-se de pé. - Se persiste em conservar Tynan, eu não posso continuar. Não
tenho outra escolha senão demitir-me de Procurador-Geral. Vou voltar para o meu
gabinete imediatamente e escrever um pedido oficial de demissão - e passar todos os
momentos das próximas vinte e quatro horas a combater a emenda na Assembléia da
Califórnia e, se falhar aí, dedicarei todo o tempo que restar a combatê-la no Senado
da Califórnia, se lá chegar.
Fez um leve aceno ao Presidente e saía pela porta mais próxima quando
ouviu o Presidente gritar o seu nome. Parou à porta e olhou para trás.
O Presidente Wadsworth estava completamente descontraído.
- Chris - disse ele -, antes de fazer qualquer coisa que mais tarde venha a
lamentar, pense duas vezes. - Levantou-se com dificuldade da sua cadeira de
trabalho. - Atravessamos um período crítico para nós, para o país. Não é altura de
deitar o barco a perder.
- Eu vou sair do barco, senhor Presidente. Vou afundar-me ou nadar por
minha conta. Bom dia.
Dito isto, abandonou o Gabinete Oval.
O Presidente Wadsworth ficou a olhar durante bastante tempo para a porta
por onde Collins desaparecera. Por fim, pegou no telefone e chamou a secretária
particular.
- Miss Ledger, ligue para o diretor Tynan. Diga-lhe que o quero ver a sós, o
mais depressa possível.
A primeira coisa que Chris Collins fez ao chegar ao gabinete foi telefonar à
mulher. Até essa manhã, não tinha mantido Karen perfeitamente a par de todos os
acontecimentos que tinham ocorrido na sua vida durante as últimas semanas. Desde
a noite em que tomara conhecimento do Documento R, tinha-se limitado a contar-lhe
de vez em quando um ou outro fato. Mas, nessa manhã, depois de ter visto na
televisão o relato do assassínio de Maynard e depois de Radenbaugh ter regressado
ao hotel, Collins tinha ido para a cozinha e tinha-se sentado ao pé de Karen para lhe
contar tudo.
Karen tinha ficado espantada.
- O que é que vais fazer, Chris?
- Vou falar imediatamente com o Presidente. Vou pô-lo ao corrente de tudo.
Vou pedir-lhe que demita Tynan.
Karen tinha ficado apreensiva.
- Não achas que isso é perigoso?
- Não, se o Presidente concordar comigo.
Ele confiara, mesmo depois de se despedir de Karen, que o Presidente
Wadsworth concordaria consigo. Agora, quatro horas depois, sabia que nunca se
tinha enganado tanto.
Karen atendeu o telefone. A sua voz era fria.
- Que aconteceu, Chris?
- O Presidente não concordou comigo.
Ouviu Karen murmurar descrente:
- Mas como pôde ele fazer uma coisa dessas?
- Disse que eu não tinha provas de nada. Fez-me parecer um idiota paranóico.
Pôs-se totalmente ao lado de Tynan.
- É terrível. Que vais fazer?
- Vou demitir-me, e já o avisei. Achei melhor contar-te.
- Graças a Deus.
Ele nunca tinha ouvido a voz dela soar tão aliviada.
- Vou terminar depressa o meu trabalho aqui, escrever o pedido de demissão
e enviá-lo; depois vou arrumar a minha secretária. Chegarei mais tarde para jantar.
- Não pareces satisfeito, Chris.
- E não estou. Tynan vai ficar com o caminho livre. A emenda tornar-se-á lei.
Além disso, fica em aberto o assunto do Documento R. E eu fico impotente e
desempregado.
- Passarás por cima disso, Chris - garantiu-lhe ela. - Há tantas outras coisas
para fazer. Vendemos a casa e voltamos para a Califórnia... talvez no mês que vem.
- Esta noite, Karen. Vamos diretinho para a Califórnia. Apanhamos o
primeiro avião. Quero estar em Sacramento de manhã. Quero fazer propaganda. A
emenda entra no plenário da Assembléia à tarde. Se falhar, ao menos caio a
combater.
- Como quiseres, querido.
- Até logo. Tenho muito que fazer.
Depois de desligar, Collins considerou o trabalho acumulado na secretária.
Antes de se atirar a ele, uma coisa tinha de ser feita. Chamou a secretária.
- Marion, cancele tudo o que houver na minha agenda. Refiro-me a hoje, ao
resto da semana e às semanas seguintes.
Viu-a erguer as sobrancelhas.
- Explico-lhe mais tarde. Explico-lhe antes de irmos para casa esta noite.
Diga às pessoas que eu vou estar fora da cidade. Voltaremos ao assunto. Outra coisa,
Marion: marque-me... para mim e para a senhora Collins... bilhetes no último vôo da
noite para a Califórnia, para Sacramento. Eu trato do hotel.
- Mas, senhor Collins, hoje à noite vai para Chicago.
- Chicago? - repetiu espantado.
- Já se esqueceu? Vai falar amanhã na convenção dos Antigos Agentes
Especiais do FBI. É o principal orador do almoço. A seguir ao discurso, tem um
encontro marcado com Tony Pierce.
Tinha-se esquecido completamente. Durante a sua primeira semana no cargo
tinha concordado em discursar no conclave da Sociedade dos Antigos Agentes
Especiais do FBI. Mais tarde, depois da resolução pessoal de se opor à emenda,
tinha também resolvido encontrar-se com Pierce, seu antigo opositor na televisão e
principal impulsionador do movimento dos Defensores da Declaração de Direitos.
Através do filho, Josh, Collins tinha localizado Pierce, que tinha concordado em
encontrar-se com ele na convenção dos ex-agentes do FBI.
- Parece-me que teremos de cancelar essa ida a Chicago, Marion. Tenho de ir
a Sacramento.
- Não vão ficar nada contentes. Não lhes dá tempo de encontrar um orador
que o substitua.
- Há sempre alguém - disse ele bruscamente. - Vou-lhe dizer o que... não, é
melhor eu falar-lhes pessoalmente. Vou telefonar-lhes quando tiver avançado com o
trabalho por fazer. Quanto a Tony Pierce, pode tratar disso. Ligue para a sede do
movimento em Sacramento, localize-o e diga-lhe que cancelei a ida a Chicago e que
lhe peço para estar em Sacramento. Diga-lhe que me encontrarei com ele amanhã de
manhã em Sacramento. Telefonar-lhe-ei de manhã para combinar o encontro.
Entendido?
Ela disse que sim com a cabeça.
- Vou ocupar-me do senhor Pierce. - Mas hesitava. - Quer realmente que
anule todas as entrevistas?
- Tudo. Não faça mais perguntas. Tenho toneladas de trabalho.
Quando Marion saiu, Collins sentou-se, disposto a fazer o trabalho urgente:
ler relatórios e cartas e assinar documentos. Gostou de ler um dos documentos,
dirigido aos serviços de Imigração e Naturalização: a sua autorização para Emmy,
noiva de Ishmael Young, entrar nos Estados Unidos. Assinou-o e levou-o a Marion,
ordenando a expedição imediata, com uma cópia para Young.
Voltando ao gabinete, parou diante do fogão de sala para rever o que faltava
fazer na sua última tarde como Procurador-Geral dos Estados Unidos. Primeiro,
escrever a carta de demissão. Depois, tirar os objetos pessoais das gavetas da
secretária e reunir tudo o que lhe pertencia na pequena sala de estar junto do
cubículo de Marion. Por fim, ligar para Chicago e anular o discurso marcado para o
dia seguinte.
Em primeiro lugar, o pedido de demissão.
Dirigiu-se à garrafa de prata junto da prateleira do telefone, no extremo da
secretária, encheu um copo de água e bebeu. Olhou para a estante envidraçada dos
livros de leis na parede em frente. Vagueou pelo amplo gabinete, a pensar na
redação da carta. Simples ou cerimoniosa? Nem uma nem outra. Agressiva ou
defensiva? Também não. Por fim, decidiu-se. Ia apresentar a demissão do cargo de
Procurador-Geral por razões de consciência. Depois de ter consultado a consciência,
tinha decidido que não podia permanecer no governo a apoiar a 35.a emenda.
Achava que podia servir melhor a consciência e o país demitindo-se, para dedicar os
seus esforços, livres, à oposição à emenda. Era o tom adequado.
Correu para a secretária, pegou numa folha de papel oficial e passou para o
papel o que tinha composto mentalmente.
Decidiu então que em vez de mandar a carta manuscrita para a Casa Branca,
iria fazê-la passar à máquina para a assinar. As fotocópias de uma carta
datilografada seriam melhores para os meios de informação que as de um
manuscrito. Sim, mandaria Marion passá-la à máquina, assinaria e tiraria fotocópias.
Releu a carta de demissão e levantou-se, tentando pensar em maneiras de a
melhorar. Vagueou novamente pelo gabinete, acabando por entrar na ampla sala de
conferências contígua. Atravessando a habitual alcatifa vermelha, parou em frente
de um quadro de Alphonso Taft, Procurador-Geral no tempo do Presidente Ulysses
S. Grant. Pensou por que diabo estaria aquilo ali, decidiu mandar retirá-lo no dia
seguinte, mas lembrou-se que seria ele a retirar-se. Seguiu ao longo da sala,
passando pela comprida mesa de conferências rodeada por dezesseis cadeiras de
couro vermelho. Antes de chegar a meio da parede oposta, parou, observando o
busto de mármore branco de Oliver Wendell Homes. Foi junto do busto de mármore
que a secretária, Marion, o veio interromper.
- Senhor Collins - disse ela, ofegante-, o diretor Tynan está cá e quer ser
recebido.
- Tynan, aqui?
- Está na sala de recepção.
Collins estava confuso. Era totalmente inesperado. Durante a sua curta
estadia no cargo, Tynan nunca o tinha procurado pessoalmente no Departamento de
Justiça.
- Bem, mande-o entrar.
Interrogava-se sobre o que seria. Mas uma coisa era certa: Tynan era a última
pessoa que desejava ver naquele dia. Aborrecido, aguardou a chegada do diretor.
Viu a figura enorme de Vernon T. Tynan à porta da sala de conferências.
Tynan, musculoso por baixo do apertado terno de marujo de peito duplo, dirigia-se
para ele em grandes passadas. Os traços desagradáveis do seu rosto davam-lhe o
habitual ar carrancudo, nada revelando da sua missão.
Quando chegou junto de Collins, disse:
- Desculpe entrar assim de rompante, mas é importante. - Segurava uma mala
debaixo do braço. - Tenho uma coisa para discutir consigo.
- Está bem - disse Collins. - Vamos para o meu gabinete.
Tynan não se mexeu.
- Não me parece bem - disse calmamente. Percorreu a sala de conferências
com o olhar. - Talvez seja melhor aqui. - Depois acrescentou: - Não gostaria que
alguém ouvisse o que temos para discutir. E parece-me que você também não
gostaria.
Collins percebeu.
- Vernon, não tenho escutas no meu gabinete. Não gosto de gravar o que os
meus visitantes dizem.
Tynan limitou-se a murmurar:
- Não sabe o que perdeu.
Atirou com a pasta para a mesa de conferências, para a frente da cadeira
seguinte à cabeceira.
- Sentemo-nos. O que tenho para dizer não demora.
Aborrecido, Collins puxou a cadeira de couro-vermelho da cabeceira e
sentou-se perto do diretor do FBI. Enquanto esperava, Collins encontrou o seu maço
de cigarros, ofereceu um a Tynan que recusou, tirou um para si e acendeu-o com o
isqueiro. Puxou um cinzeiro e perguntou:
- Então, a que devo a honra da sua visita?
Tynan pousou as palmas das mãos na mesa.
- Vamos direto ao assunto - disse ele. - Soube há pouco pelo Presidente que o
tinha ido ver. Soube que pretendeu que ele me demitisse do meu cargo... e soube as
razões apresentadas.
- Se já conhece as razões, acho que não precisamos voltar a falar nelas.
Tynan recostou-se na cadeira, apreciou Collins de alto a baixo e abanou a
cabeça.
- Foi uma estupidez da sua parte - disse ele com um sorriso perverso. - Tentar
demitir Vernon T. Tynan foi uma grande estupidez. Pensei que fosse mais esperto.
Collins tentou controlar-se.
- Fiz o que tinha a fazer.
- Não me diga?! Pois bem, também eu. - Com louca deliberação, Tynan
começou a abrir a pasta. - Sim, também eu - repetiu trocista. - E já que tem andado a
meter o nariz nos meus assuntos... e tem...
- É claro que tenho.
- ... Pensei que também era justo eu meter-me nos seus.
- Sei perfeitamente das suas atividades recentes - disse Collins. - Sei que me
tem andado a investigar novamente.
Tynan olhou-o de soslaio.
- A sério? Soube e não tentou fazer nada?
- Não havia razão para isso. Nada tenho a esconder.
- Tem certeza? - Tynan tinha estado a procurar dentro da pasta e retirava
agora um dossier. - Bem, seja como for, eu pensei que ficaria lisonjeado por saber
que temos estado a tratar de si com atenção... com carinhosa atenção.
- Agradeço o seu interesse. - Agora surpreenda-me. Que foi que
encontraram?
A testa de Tynan franziu-se.
- Vou dizer-lhe o que encontrei. Descobri uma coisa que escondeu
deliberadamente do público... ou, possivelmente, que lhe esconderam a si. - Abriu o
dossier, estudou rapidamente o conteúdo e procurou os olhos de Collins. - Você está
decidido a obstruir a única peça de legislação que pode salvar este país da ruína.
Andou a intrometer-se na vida de muita gente, incluindo a minha. Mas não se
incomodou em ver se a sua própria casa estava em ordem. Antes de se apresentar em
público como senhor Puro, é melhor verificar se a sua vida e a vida dos que o
rodeiam é pura.
- O que pretende dizer?
- Pretendo dizer que aconteceu casar com uma mulher com um passado
recente muito suspeito. Parece-me que será bom discutirmos o passado da sua
mulher.
Collins sentiu intensa cólera contra aquele homem que se dedicou a espiar a
vida particular dos outros. A cólera sobrepôs-se à curiosidade instintiva em saber o
que Tynan trazia na manga.
- Vernon - disse-lhe Collins -, não sei que raio está a insinuar, mas desde já
lhe digo que não consinto em discutir a minha mulher ou qualquer outro membro da
minha família consigo. O Senado possui informações a meu respeito. A minha vida
é objeto do conhecimento público. O Senado confirmou-me. Não há mais nada a
discutir.
Tynan não desarmava.
- Receio que haja algo mais a discutir. Penso que quererá falar sobre isso. Um
assuntozinho que foi menosprezado na nossa primeira investigação, um assunto que
desejará ardentemente conhecer.
- Não consinto que a minha mulher seja metida nos nossos diferendos.
Tynan encolheu os ombros.
- É consigo, Chris. Ou me ouve e me diz o que hei de fazer, ou a sua mulher
terá de o dizer a um juiz e a um júri novamente. - Fez uma pausa. - Então, posso
continuar?
Collins sentia o coração a bater fortemente. Desta vez ficou em silêncio.
Tynan olhou para os papéis mais uma vez e continuou a falar.
- A sua mulher era viúva quando a conheceu. Foi há pouco mais de um ano.
O seu nome era Karen Grant. O marido chamava-se Thomas Grant. Certo?
- Certo, bem sabe que está certo. E então?
- Está errado e bem sei que está errado. O nome de solteira era Karen Grant e
o nome do marido era Thomas Rowley. O nome de casada era Karen Rowley.
Collins não sabia disso, mas apressou-se a defendê-la.
- E depois? Não é nada de anormal uma viúva usar o nome de solteira.
- Talvez não -disse Tynan. - Ou talvez sim. Vejamos...Você conheceu-a em
Los Angeles, onde trabalhava como modelo. Antes disso, vivia com o marido em...
em...
- Madison, no Wisconsin.
- Foi isso que ela lhe disse? Informou-o mal. Vivia com o marido em Fort
Worth.
Collins empurrou a cadeira para trás como se quisesse levantar-se e acabar
com as perguntas.
- Vernon, não me interessa nada disso.
- É melhor interessar-se - disse Tynan friamente. - Sabe como é que a sua
mulher ficou viúva?
- Pelo amor de Deus, o marido morreu num acidente.
- Um acidente? Tem certeza? Que tipo de acidente?
- Nunca falei a esse respeito. O assunto não é nada agradável de recordar. - E
acrescentou: - Creio que foi atropelado por um automóvel. Está satisfeito, Vernon?
- Não, não estou satisfeito. De acordo com os registros do FBI de Fort
Worth, não foi atropelado por um automóvel. Foi atingido por uma bala... isso
mesmo. Foi assassinado.
Embora Collins estivesse preparado para uma informação desagradável, foi
um golpe inesperado. A sua tranqüilidade desapareceu. Tynan continuou,
incansável.
- Todos os indícios apontavam a sua mulher como assassina. Foi presa e
julgada. Depois de quatro dias de deliberação, conseguiu um júri irresoluto. Talvez
devido à influência do pai, que era um cacique local (já morto), as autoridades
decidiram não iniciar um segundo julgamento. Ela foi libertada.
- Não acredito - protestou Collins.
Tynan e a sala de conferências bailavam à sua frente. Collins tentava retomar
a compostura.
- Se tiver dúvidas - disse Tynan friamente -, isto vai tirar-lhes. - Tirou alguns
papéis do dossier e colocou-os ostensivamente à frente de Collins.- Um resumo do
caso, condensado dos nossos registros, identificado com o respectivo número. E
fotocópias de recortes de três jornais. Poderá reconhecer neles Karen Rowley. Agora
vamos ao ponto crucial do assunto...
Collins ignorou os papéis que estavam à sua frente, e prestou atenção ao
adversário e ao ponto crucial.
- O júri não considerou a sua mulher culpada. No entanto, também não a
considerou inocente. Não chegou a acordo. Discutiu durante quatro dias mas não
conseguiu aplanar as divergências entre os seus membros para chegar a um
veredicto. Ficou num impasse. Como sabe melhor do que eu, isso deixa o caso em
aberto e lança uma sombra de dúvida quanto ao procedimento da sua mulher. É esta
a parte que me interessa. Sugeri aos nossos agentes que continuassem as
investigações. Fizeram-no. Reconstituíram o assassínio, interrogaram novamente as
testemunhas e, no decurso desses inquéritos, surgiu um novo elemento. Não há
dúvida que é bastante valioso. Não sei como as autoridades o deixaram escapar. Às
vezes são desmazeladas. Como sabe, o FBI nunca é desmazelado.
Collins não respondeu. Aguardava.
- Temos uma nova testemunha, que não tinha sido notada. Uma mulher que
afirma ter visto Karen Rowley, ou Karen Grant, ou Karen Collins, como preferir...
uma testemunha visual, dizia eu, que afirma ter ouvido uma altercação e ter ouvido
Karen dizer a Rowley que gostaria de o matar. A testemunha decidiu abandonar a
casa dos Rowley, e, quando o fazia, ainda viu Karen com uma arma na mão junto ao
corpo jacente do marido. - Tynan parou. - Mas há mais. A sua voz baixou de
intensidade. - Odeio entrar neste assunto. Mas, se for necessário, virá a público, se a
testemunha for chamada a depor. É uma coisa muito suja...
Collins sentiu o peito constranger-se, mas continuou calado. Tynan reatou a
narrativa, procurando as palavras vagarosamente.
- Em muitos fins de semana, a sua mulher ia visitar o pai. Ou dizia que ia.
Rowley, o marido, acabou por suspeitar. Seguiu-a e soube... bem... como hei de
dizer... soube que Karen era uma participante ativa de um grupo sexual de Houston.
Juntavam-se, faziam nudismo, realizavam orgias sexuais... E ela participou... umas
vezes com vários homens, outras vezes com mulheres. Sexo, perversões... Não
quero entrar em pormenores, mas...
- Isso é uma mentira imunda e você sabe-o - gritou Collins, meio fora da
cadeira.
Tynan continuou imperturbável.
- Bem gostaria que fosse, mas não é. A testemunha ouviu perfeitamente
Rowley acusar Karen de tudo isso. - Meteu a mão no dossier. - Quer ver o
testemunho confidencial que ela nos fez?
- Não, obrigado.
- De qualquer forma, depois da cena, a testemunha ouviu o disparo e viu
Karen junto do corpo de Rowley.
Tynan olhou rapidamente para Collins e voltou a falar.
- Ora, essa testemunha nada fará só por si. Não quer ser envolvida num
assunto tão complicado. Mas se for forçada a testemunhar sob juramento, contará
tudo. Isso implicará um segundo julgamento. Desta vez, é improvável que consiga
um júri benévolo. Contudo, deve gostar de saber que não permiti que o meu pessoal
entregasse as novas provas ao Procurador do Distrito em Fort Worth. Pensei que não
o deveria fazer sem o consultar primeiro. Além disso, apesar das fraquezas, Deus
sabe o que a levou a comportar-se assim. Tenho uma certa simpatia pela senhora
Collins. Por outro lado, o marido dela tinha um caráter desagradável. Andava atrás
do dinheiro dela (ou melhor, do pai dela) e gastava-o. Provavelmente, ameaçava-a
de revelar o seu comportamento sexual para lhe extorquir mais dinheiro. Pode-se
dizer que ela tinha razões consideráveis para agir como agiu. É claro que tive em
atenção tudo isso quando mandei suspender o processo. Finalmente (e talvez seja a
razão mais importante), preferia não causar embaraços a um membro do Governo,
da equipe do Presidente, numa ocasião crítica como esta. Penso que compreenderá
isto. Parece-me que as pessoas metidas neste caso já sofreram bastante e que não há
necessidade de trazer o assunto a público novamente. Nestas circunstâncias, tudo
isto pode ser facilmente esquecido.
Collins estava enjoado, não só devido às informações sobre Karen e à ameaça
que pendia sobre ela, mas também pela chantagem declarada de Tynan. A repulsa
que sentia por aquele homem ardia dentro dele. Até então nunca se sentira capaz de
matar outro ser humano. Nesse momento, o seu único desejo era deitar as mãos ao
pescoço de Tynan. Mas voltou a dominar-se. Manteve-se imóvel, tremendo só por
dentro.
Por fim, sentiu-se capaz de falar.
- Está então disposto a esquecer o caso em certas condições?
- Sim.
- Quais são essas condições. O que quer de mim?
- Apenas a sua cooperação, Chris - disse Tynan suavemente. Cooperação que
até pode ser muito pequena. Digamos que desejava
que me garantisse que continuaria na equipe do Presidente, e na minha, e que
apoiaria a 35.a emenda até ao final. O que não queria da sua parte era qualquer
atitude de ruptura, como uma demissão ou uma declaração pública denunciando a
emenda. É este o preço. Penso que é muito razoável.
- Estou a ver. - Collins observou Tynan a fechar o dossier e a metê-lo
cuidadosamente na pasta. - Não me vai mostrar o resto das provas?
- Acho melhor guardá-las para não se perderem. Já sabe o suficiente para tirar
conclusões. Tem também a sua mulher. Ela pode suprir aquilo que faltou dizer.
- Não é isso, refiro-me ao nome da nova testemunha que encontraram. Pelo
menos gostava de saber quem é.
Tynan sorriu.
- Não lhe direi, Chris. Se quiser ver a testemunha, terá de ser no tribunal. -
Fechou a pasta. - Suponho que já disse tudo o que tinha a dizer. Já sabe o suficiente
para poder tirar uma conclusão. O que acontecer depois é consigo.
- Vernon, você é o filho da puta mais nojento que jamais existiu.
Tynan continuou a sorrir.
- Penso que os meus pais não acreditariam nisso. - Fez-se sério. - Tenho um
defeito: é que amo demasiado o meu país. O seu defeito é amar menos o país. É por
causa do meu país que quero a sua decisão, já.
Collins fixou-o com repugnância. Por fim, cedeu, entregou-se e afundou-se
na cadeira.
- Está bem - disse enfastiado -, ganhou. Diga-me outra vez, com exatidão, o
que quer que eu faça.
Era a primeira vez desde o casamento que não gostara de voltar para junto da
mulher. Não tivera estômago para trabalhar depois de Tynan sair, mas tinha ficado
deliberadamente até tarde no Departamento de Justiça, desejando estar só, desejando
pensar. Tinha ficado atormentado por emoções contraditórias. Sentia-se chocado
pelo que tinha ficado a saber do passado de Karen. Sentia-se desapontado com ela
por lhe ter escondido os acontecimentos do seu passado recente. Sentia-se confuso
quanto à sua culpa ou inocência na morte do marido (um júri tinha deliberado
durante quatro longos dias e mesmo assim não a tinha podido ilibar). Sentia medo de
a ver sofrer, agora que Tynan estava pronto para reabrir o caso. Sobrepondo-se a
tudo estava o quadro que Tynan pintara da vida sexual secreta de Karen. As orgias.
A promiscuidade. As perversões. Collins não acreditava. Nem um pouco. Mas as
imagens permaneciam, não se desvaneciam. Não tinha idéia de que sentimento devia
ter por ela, que posição tomar, como tratá-la. Estas atitudes tinham ficado por
decidir no gabinete e continuavam por decidir agora que metia a chave na fechadura,
abria a porta e entrava em casa. Queria fugir ao confronto, evitá-la, mas sabia que
era impossível.
Ela tinha-o ouvido entrar.
- Chris? - chamou ela da sala de jantar.
- Sim - respondeu ele, dirigindo-se para o quarto pelo corredor. Tirou a
gravata e despia o casaco quando ela apareceu.
- Estive ansiosa todo o dia - disse Karen -, desde que telefonaste, à espera de
saber o que aconteceu. Vamos para a Califórnia, não é?
- Não - disse ele num tom inexpressivo.
Ela aproximava-se para o beijar, mas parou no caminho.
- Não? - Franziu a testa e procurou-lhe o rosto. - Demitiste-te, não foi?
- Não, não me demiti.
- Não compreendo, Chris.
- Escrevi a carta de demissão. Depois rasguei-a. Depois de Vernon T. Tynan
me ter falado, rasguei-a. Teve de ser.
- Teve de ser? - repetiu ela. - Rasgaste-a por minha causa concluiu abatida -,
por minha causa?
- Como é que sabes?
- Sabia que isto tinha de acontecer. Sabia que ele havia de fazer qualquer
coisa para te deter. Outro dia, ao jantar, quando aquele escritor, o Ishmael Young,
disse que Tynan investigava todas as pessoas que o rodeavam e sabia tudo a respeito
de todas as pessoas que tinham importância na vida de cada um, fiquei a saber.
Sabia que ele te havia de perseguir e de me encontrar. Estava muito sobressaltada,
Chris. Nessa noite, quando nos deitamos resolvi pela centésima vez contar-te tudo.
Queria dizer-te, e comecei a contar, mas tu já tinhas adormecido. Depois, de manhã,
veio tanta coisa interpôr-se... Devia ter-te contado. Oh, meu Deus, que tola que fui.
Um segredo insignificante que devias ter sabido da minha boca.
- Deveria ter sabido, pelo menos para te proteger.
- Sim, tens razão. Mas não para me protegeres. Para te protegeres a ti. Agora
esse Tynan já te disse... Não sei o que ele te disse, mas é melhor eu contar-te a
história.
- Não quero ouvi-la agora. Tenho de sair da cidade para fazer um discurso.
Quando voltar de Chicago.
- Não, escuta. - Chegou-se para ele. - O que foi que Tynan te disse? Que o
meu marido foi assassinado por um disparo mortal no nosso quarto em Fort Worth?
Que me tinham ouvido dizer por mais de uma vez que desejava que ele morresse? A
verdade é que tivemos uma discussão terrível. Como tivemos um milhão de outras.
Eu fugi para casa de meu pai. Depois resolvi regressar. Tentar uma última vez. Tom
estava no chão. Morto. Não tinha a mínima idéia de quem o tinha assassinado. E
ainda não sei. Mas várias pessoas ouviram-nos questionar e ouviram-me dizer que
gostava que ele morresse. É verdade. Disse-o muitas vezes. Naturalmente, fui
acusada. As provas não tinham consistência, eram circunstanciais, mas tínhamos um
Procurador Distrital novo que queria ganhar nome. Fui indiciada e julgada. Passei os
maiores tormentos. Foi o que Tynan te disse? Disse-te isto tudo?
- Muito mais, disse que tinhas apanhado um júri irresoluto.
- Júri irresoluto - repetiu ela, desdenhosa. - Onze jurados estavam a favor da
minha absolvição desde o primeiro minuto. O décimo segundo homem defendeu a
condenação durante quatro dias, até ao momento de o júri se pronunciar. E mesmo
esse achava que o culpado era o meu pai e não eu. Tinha em tempos sido despedido
pelo meu pai, soube-o mais tarde. O Procurador não quis que eu fosse julgada outra
vez porque as provas e o júri tinham sido a meu favor. Sabia que não valia a pena.
Libertaram-me e desistiram. Para fugir à publicidade, deixei de usar o nome de
casada e abandonei a cidade. Fui trabalhar para Los Angeles, onde te conheci um
ano depois. É tudo, Chris. Nunca te contei porque já tinha passado, tinha ficado para
trás, pois eu sabia que estava inocente... Depois apaixonei-me por ti e não quis que
nada estragasse as nossas relações ou te fizesse ter dúvidas. Não quis que esse
assunto sórdido manchasse o que ainda era tão recente e adorável entre nós. Queria
começar de novo. Devia ter-te dito. Devia, mas não o fiz e isso foi um erro. -
Respirou fundo. - Estou aliviada por ter acabado. Agora já conheces a história.
- Segundo Tynan não é a história toda. Tynan arranjou uma nova testemunha,
uma mulher que diz que te viu ao pé de Rowley com a arma. A testemunha viu e
ouviu-te.
- É mentira, não fiz nada. É uma mentira absoluta. Cheguei e encontrei o
Tom morto. Tom já tinha sido assassinado.
Enquanto a ouvia junto de si, inquieta, procurava a verdade e compreendeu
que era aquela, embora outras imagens persistissem: Karen nua, Karen desvairada
numa sala
cheia de estranhos nus, homens e mulheres; Karen nos braços da perversão, com
homens e mulheres.
- Ainda há mais, Karen - deu-se conta de estar a dizer. Não tencionava falar
das orgias como se acreditasse nisso, mas foi obrigado a desabafar.-Não acredito em
nada disto, mas tenho de te dizer: a testemunha disse a Tynan...
E contou-lhe tudo.
À medida que ele falava, o horror dela aumentava. Quando acabou, ela estava
à beira do colapso.
- Oh, não - soluçava. - Não, não, que terríveis mentiras... nem uma só palavra
é verdade. É uma invenção completa. Eu? Portar-me dessa maneira? Tu conheces-
me, Chris, sabes como sou na cama. Sou recatada, sou... Oh, Chris, não podes
acreditar nisso...
- Já te disse que não acredito.
- Juro pela vida do filho que vamos ter...
- Eu sei que não é verdade, querida. Mas há uma testemunha que declarará
que é verdade, que o assassínio...
Ela parecia recobrar forças.
- Quem é essa testemunha?
- Não sei. Tynan não me quis dizer. Mas é isso que nos ata as mãos.
Ameaçou abrir o caso, a menos que eu aceitasse as suas condições. Por isso, resolvi
continuar no grupo.
- Oh, Chris, não. - Atirou-se para os seus braços, agarrando-se ferozmente. -O
que eu te fiz?
Ele tentou acalmá-la.
- Isso não tem importância, querida Karen. O que importa és tu. Acredito em
ti e nunca mais se fala nisso. Vamos esquecer Tynan...
- Não, Chris, tens de o combater, não podes deixá-lo proceder assim. Não
temos de ter medo de nada. Eu estou inocente. Deixa-o reabrir o caso. A longo
prazo, não nos pode atingir. O principal é que não o deixes fazer chantagem, não o
deixes calar-te. Tens de voltar a combater, por amor de mim.
Ele desprendeu-se.
- Não volto a combater, por amor de ti. Nunca te sujeitaria a uma nova
provação. Vamos esquecer tudo isto e continuar a nossa vida como antes.
Começou a andar, mas ela perseguiu-o pelo quarto.
- Nunca mais será como dantes. Chris, se receias combatê-lo, é porque
acreditas na versão dele e não na minha.
- Não é verdade! O que não quero é que sofras aquele inferno outra vez.
- Vais desistir, manter-te calado, enquanto a Assembléia da Califórnia aprova
a 35.a emenda e o Senado da Califórnia a ratifica daqui a três dias? Oh, Chris, por
favor, não deixes que isso aconteça.
Collins olhou para o relógio de pulso.
- Karen, repara, tenho vinte minutos para mudar de roupa, comer, acabar de
fazer a mala e telefonar a Tony Pierce em Sacramento, antes de o motorista me levar
ao aeroporto. Tenho de falar na convenção dos antigos agentes do FBI, em Chicago,
amanhã. Tenho de estar presente. É preciso apressar-me. - Abraçou-a e beijou-a.-
Amo-te. Se houver mais alguma coisa a dizer, falaremos amanhã à noite.
- Sim - disse ela quase de si para si -, se houver um amanhã.
Capítulo nono

De pé na tribuna, perante os seiscentos convidados aglomerados no salão de


baile ouro-pálido do Hotel Embaixador de Chicago, Chris Collins voltava outra
página do
discurso que estava a ler na reunião anual da Sociedade dos Antigos Agentes
Especiais do FBI. Viu que só faltava uma página e sentiu-se aliviado. Tinha
pronunciado o discurso sem calor e o auditório também se mostrara frio. Collins não
estava surpreso. Muitos fatores afetavam o conteúdo e a exposição do discurso. Fora
a falta de concentração. Fora o desânimo. Fora a cautela. Tinha sido incapaz de se
concentrar porque o seu espírito vogava por outras paragens. Pela sala de
conferências do Departamento de Justiça, onde Vernon T. Tynan levara a melhor
sobre ele, fizera chantagem para que calasse o que sentia. Pelo quarto da sua casa,
onde ele e Karen tinham suportado a revelação do assassínio e do julgamento que
havia no passado dela. Pela sua terra natal, a Califórnia, onde principiava a tarde em
Sacramento e onde, daí a menos de uma hora, a Assembléia estadual se reuniria para
ser a primeira das duas câmaras a votar a 35.a emenda.
Tinha-se sentido profundamente desanimado durante o vôo para Chicago na
noite anterior, durante a manhã e durante a recepção dos seus anfitriões. A sensação
de desânimo e depressão tinha preponderado em todo o discurso. As sucessivas
esperanças em derrotar a emenda na Califórnia, quer na Assembléia quer no Senado,
tinham fenecido.
A morte do Presidente do Supremo Maynard tinha sido o golpe mais cruel.
Só Maynard poderia ter invertido a maré, mas tinha sido impiedosamente eliminado
à décima primeira hora. Depois, a recusa do Presidente em demitir Tynan, que
poderia ter posto a nu as atividades de Tynan e atingido a emenda, tinha sido outra
esperança queimada. A sua própria decisão de combater a emenda sozinho, nesses
últimos dias, tinha sido motivo para algum otimismo, mas Tynan tinha-o abafado
eficientemente.
Restava apenas o Documento R, que até agora lhe escapara, escondido ao
olhar e fora do alcance.
Acima de tudo, em detrimento do discurso, tinha sido algemado pelo receio. Talvez
medo fosse a palavra adequada: algemado pelo medo. Os membros da Sociedade
dos Antigos Agentes Especiais do FBI a quem viera discursar eram
preponderantemente homens de Tynan. No tempo de J. Edgar Hoover, a sociedade
dos alunos do FBI contava com 10.000 antigos agentes. Muitos deles, depois de
deixarem o FBI, tinham seguido com êxito carreiras jurídicas, na indústria, nos
bancos, graças ao amparo e apoio de Hoover. Agora, sob o domínio de Vernon T.
Tynan, a sociedade dos alunos do FBI tinha uma massa associativa de 14.000
homens e mulheres (embora estas fossem poucas) e a maioria esmagadora ainda
estava sob a influência da disciplina que o FBI incutia nos seus homens, ainda
estava agradecida ao apoio de Tynan, que ajudava a catapultar os ex-agentes nas
suas novas carreiras. Era um auditório hostil para Collins. Não porque soubessem
que havia divergências da sua parte. Mas ele sabia-o e isso era o suficiente para o
perturbar.
O discurso que ele e Radenbaugh tinham preparado fora cuidadosamente
limado para se adequar ao auditório. Já que não podia atacar a 35.a emenda, Collins
tinha decidido evitar pronunciar-se sobre essa questão. Tinha partido do princípio
que a emenda se converteria em lei, limitando-se a afirmar que era necessário criar
meios para deter a criminalidade e o desrespeito pela lei na América. Tinha exposto,
em linhas gerais, outras reformas necessárias ao país. Tinha tratado do crime e das
suas causas. Tinha falado sobre as raízes sociais da criminalidade.
Sabia, desde o início, que isso não aqueceria o auditório pró-Tynan. Estes ex-
agentes do FBI pretendiam uma afirmação inequívoca da emenda do seu diretor.
Queriam foguetes e fogo de artifício a proclamar a morte da Declaração de Direitos
obstrucionista e o nascimento de um Comitê de Segurança Nacional dirigido por
Tynan. Em vez disso tinham apanhado com a estopada das reformas sociais. Tinham
ficado desiludidos e aborrecidos.
Collins também tinha consciência de que o auditório estava infiltrado de
espiões e informantes de Tynan, prontos a relatar ao patrão qualquer desvio em
relação ao texto preconizado pelo diretor. Prevendo esse fato, depois do confronto e
do acordo com Tynan na véspera, Collins tinha refeito o discurso várias vezes,
durante o vôo para Chicago e já de manhã no hotel, diluindo-o persistentemente até
se tornar incaracterístico. Qualquer deslize no sentido da dissidência- sabia-o bem -,
era uma condenação lançada sobre Karen. Sabia, é claro, que havia também um
pequeno grupo de ouvintes que eram anti-Tynan e contra a emenda. Não sabia quem
eram, mas sabia que Anthony Pierce era o seu chefe. Collins tinha até sentido receio
em contatar com Pierce na noite anterior e já de manhã. Karen correria perigo se
Tynan soubesse que contactara com Pierce e se encontraria com ele depois do
discurso.
De manhã Collins dirigira-se a uma obscura cabina telefônica no exterior do
hotel para telefonar a Pierce. Combinara encontrar-se com ele, não nos seus
aposentos, mas num quarto desocupado (reservado sob nome suposto) do Hotel
Embaixador, depois de acabar o discurso e de sair do salão de baile. Tinham
combinado ver a reportagem direta da televisão sobre a votação da Assembléia da
Califórnia nesse quarto, e, se necessário, Collins arriscar-se-ia a revelar a Pierce a
defecção quanto às posições governamentais sobre a 35.a emenda e a ajudar o
propagandista numa estratégia possível para a derrotar no Senado estadual daí a três
dias. Tudo isto estivera presente no espírito de Collins enquanto tentava ler
expressivamente o discurso. Tinha chegado à última parte. Tentava interessar-se por
ela, infundir-lhe expressão.
- E assim, amigos, chegamos à encruzilhada - continuava Collins. Estamos à
beira de mudar a Constituição do país, na nossa busca de lei e ordem. Mas, para
preservar uma sociedade pacífica de seres humanos, é preciso mais, muito mais.
Delineei aqui algumas dessas necessidades. Permitam-me que as resuma nas
palavras de um Procurador-Geral dos Estados Unidos.
Collins fez uma pausa, examinou as filas e filas de rostos à sua frente e
iniciou a citação das palavras do antigo Procurador.
- Ele avisou-nos firmemente que nos lembrássemos do seguinte: "Se
quisermos tratar efetivamente o problema do crime, o que devemos ver é o efeito
desumanizante exercido sobre os indivíduos pelos bairros de lata, o racismo, a
ignorância, a violência, a corrupção e a impotência para fazer cumprir os direitos, a
pobreza, o desemprego, a preguiça, as gerações de subnutridos, as doenças mentais
congênitas, a negligência pré-natal, a doença, a poluição, a habitação decrépita, suja,
indigna, insegura, superlotada, o alcoolismo e o consumo de drogas, a avareza, a
ansiedade, o medo, o ódio, o desespero
e a injustiça. São estas as fontes do crime. E podem ser controladas." Temos de agir
desde já. Obrigado pela vossa atenção.
Não lhes tinha dito o nome do Procurador-Geral que citara. Não lhes tinha
dito que eram palavras de Ramsey Clark.
Os aplausos foram ligeiros, e a sua agonia acabou.
Voltou para o seu lugar, aliviado, apertou algumas mãos frouxas e preparou-
se para esperar pelos últimos oradores e pelo encerramento da convenção.
Meia hora depois, estava livre. Deixou o salão de baile e juntou-se a Hogan, o
guarda-costas, que o acompanhou do elevador até aos seus aposentos, a suite 1700-1
num recanto do décimo sétimo andar. À porta, disse que ficaria na suite durante o
resto da tarde. Sugeriu que era boa altura descer ao The Greennerie, o café do hotel,
e aproveitar o tempo livre para comer. O guarda-costas não o ouviu duas vezes.
Já na suite, Collins esperou algum tempo, depois abriu a porta e espreitou
para o corredor. Estava deserto. Saiu rapidamente dos seus aposentos, procurou as
escadas, desceu para o décimo quinto andar e localizou o quarto com o número 1531
inscrito na porta. Assegurando-se que não tinha sido seguido, entrou, deixando a
porta entreaberta.
Fez o inventário do quarto. Uma cama dupla. Uma cadeira de braços. Duas
cadeiras. Um guarda-roupa. Uma televisão. Pouco atraente para um membro do
gabinete presidencial, mas serviria para o efeito. Estava tentado a telefonar a Karen,
quanto mais não fosse para lhe reafirmar a sua confiança. Refletiu se seria prudente
usar o telefone, mas antes de poder decidir, ouviu baterem levemente à porta. Deu
meia volta, preparado para dar as boas-vindas apenas a Tony Pierce, mas viu com
surpresa que não era só Pierce que entrava no quarto, pois acompanhavam-no dois
homens.
Collins não via Pierce desde que tinham sido adversários no programa À
procura da verdade. Sentiu-se mal ao lembrar-se do seu papel e da sua atuação no
programa, e perguntou a si próprio o que Pierce estaria a pensar dele neste momento.
À primeira vista, Pierce não parecia mostrar ressentimentos nem relutância
neste segundo encontro. O rosto franco e sardento daquela cabeça de cabelo ruivo
estava tão bem humorado e entusiástico como sempre.
- Cá estamos outra vez - disse ele, apertando a mão a Collins.
- Ainda bem que pôde vir - disse Collins. - Não tinha certeza se viria.
- Não pensei duas vezes - disse Pierce. - Quero apresentar-lhe dois dos meus
companheiros. Este é o senhor Van Allen. E este é o senhor Ingstrup. Estivemos
todos no FBI e demitimo-nos no espaço de um ano.
Collins apertou as mãos a cada um deles. Van Allen era um louro de maxilar
proeminente e olhos irrequietos. Ingstrup tinha uma trunfa acastanhada e um rosto
curtido que ostentava um bigode castanho mal cuidado.
- Sentem-se - disse Collins. Os outros tomaram lugar na cama e em duas
cadeiras, mas Collins ficou de pé. - Deve estar admirado por lhe ter pedido para se
encontrar aqui comigo. Deve querer saber o que é que temos em comum para
conversarmos. Aos seus olhos, sou um superior do diretor Tynan do FBI e um
membro do gabinete do Presidente Wadsworth, pertenço à seita que defende a
aprovação da 35.a emenda. Aos meus olhos, você é o fulcro da oposição à emenda.
Não acha surpreendente que eu o queira ver?
- Absolutamente nada - disse Pierce, à pesca do cachimbo, que acabou por
descobrir. - Não o perdemos de vista até ontem ao princípio da tarde, quando
planejava ir à Califórnia para testemunhar contra a emenda. Sabemos qual é a sua
posição hoje.
Collins estava verdadeiramente espantado.
- Como pôde saber isso?
- Uma vez que agora podemos confiar em si, posso contar-lhe disse Pierce
alegremente, divertindo-se com a situação. Assim que encheu o cachimbo,
continuou: - Depois de nós três termos deixado o FBI, cada um foi à sua vida. Eu
organizei uma firma de advogados. Aqui o Van Allen têm uma agência particular de
detetives. Ingstrup é escritor, com duas exposições comprometedoras sobre o FBI
na lista. Todos compartilhamos a mesma idéia: que Vernon T. Tynan, para quem
trabalhamos tanto tempo, é um homem perigoso, perigoso para o país. Vimo-lo
tornar-se mais ameaçador de ano para ano. Encontramos por todos os Estados
Unidos outros ex-agentes que pensam exatamente como nós. Todos nós possuímos
ainda a disciplina, a experiência, a perícia que ganhamos e aplicamos no FBI.
Perguntamos a nós próprios: porque não pôr em prática essa aprendizagem? Porque
não trabalharmos para nos protegermos uns aos outros e para livrarmos o FBI
daquele megalomaníaco, protegendo assim a própria democracia? Assim, por
sugestão minha, pusemos de pé uma organização livre e não-pública de ex-agentes
do FBI que quisessem investigar... em oposição ao Grande Irmão, que vigiava todos
os nossos movimentos. Não temos nome oficial, mas gostamos de nos chamar IFBI,
Investigadores do FBI. Temos informantes simpatizantes por toda a parte. Temos
seis no seu Departamento de Justiça, incluindo dois no edifício J. Edgar Hoover, de
Tynan. Fomos sabendo da sua passagem para o nosso lado. Ontem, soubemos que
estava a planejar ir a Sacramento. Pelos elementos que tínhamos a seu respeito,
deduzimos que ia fazer a viagem para romper com o Presidente e com Tynan, para
denunciar publicamente a 35.a emenda.
- Isso mesmo - confirmou Collins.
- No entanto, não está em Sacramento neste momento - disse Pierce. - Está
aqui em Chicago. De fato, fiquei surpreso quando recebi o seu recado ontem à noite.
Receei que a sua mudança de planos de viagem significasse que os seus planos
políticos também tinham mudado. Mas concluí que isso não podia ser, pois não
quereria falar-me.
- Exato, mais uma vez - disse Collins. - A minha posição continua a ser a
mesma. Estou de todo o coração contra a emenda. Queria ir a Sacramento combatê-
la. Mas no último instante, surgiu uma coisa...
- Surgiu Tynan - disse Pierce simplesmente. Collins franziu a testa.
- Como soube?
- Não soube, mas tinha certeza.
Van Allen falou pela primeira vez.
- Tynan está em toda a parte. Nunca se deve menosprezar. Conhece tudo e é
vingativo. Continuou a partir do ponto em que J. Edgar Hoover tinha ficado.
Lembra-se dos arquivos Oficiais e Confidenciais de Hoover? Hoover tinha bufos a
recolherem informações sobre a vida sexual do Dr. Martin Luther King. Tinha
informações pessoais de Jane Fonda, de Muhammad Ali, do doutor Benjamin Spock
e de pelo menos dezessete altos funcionários do governo, congressistas, jornalistas.
Bem, isso era puro amadorismo comparado com o que Vernon T. Tynan fez.
Triplicou os arquivos
Oficiais e Confidenciais de Hoover, e tem-nos usado para fazer chantagem. A bem
do país, diz ele...
- O patriotismo - interrompeu Ingstrup - é o último refúgio de um patife, para
citar o doutor Samuel Johnson.
- Sem dúvida - continuou Van Allen. Quando Tynan me designou para
investigar a vida pessoal dos dirigentes da maioria do Senado e da Câmara dos
Representantes (foi algum tempo antes da emenda ser apresentada ao Congresso, e
julgo que ele queria certificar-se que seria aprovada), disse-lhe que preferia outro
serviço. "Terei muito prazer em lhe arranjar", disse-me ele. Pouco depois, soube que
me tinham dado outra missão... longe de Washington. Fui notificado da minha
transferência para Butte, no Montana. É a Sibéria de Tynan. Entendi. Demiti-me.
- É verdade - disse Pierce. - Quando me referi ao fato de nos termos demitido
do FBI, não queria dizer que o tivéssemos feito amigavelmente. Van Allen saiu por
ter sido mandado para o exílio, como acaba de lhe contar. Ingstrup era o principal
orador na festa do final do curso do liceu da sua filha. Falou do papel do FBI na
nossa democracia e fez sugestões moderadas para algumas reformas no Serviço. Isso
chegou ao conhecimento de Tynan nessa noite. Ingstrup foi imediatamente
despromovido, o seu trabalho foi classificado num escalão mais baixo e ele demitiu-
se. Mas Tynan ainda não estava satisfeito. Quando Ingstrup tentou arranjar outro
emprego no tribunal de execuções, o longo braço de Tynan acompanhou-o. Tynan
informou toda a gente que Ingstrup tinha um registro desonroso no FBI. Quando ele
se tornou um escritor independente, o seu primeiro livro foi um comentário crítico
das operações do FBI. Tynan ordenou a proibição da publicação do manuscrito.
Conseguiu-o tão bem que Ingstrup teve de procurar uma editora de segunda para
fazer a publicação. Felizmente, o livro foi um best-seller.
- E no seu caso? - perguntou Collins.
- Eu? - disse Pierce. - Eu protestei contra a despromoção de Ingstrup.
Defendi-o. A única resposta de Tynan foi um documento avisando-me da
transferência para Cincinnati, a segunda Sibéria de Tynan. Sabia que o FBI não
tinha futuro para mim depois disso. Assim, demiti-me. Não, Chris (se me permite
que o chame Chris), ninguém se mete com Tynan e ganha.
- Vocês estão a meter-se com Tynan no caso da emenda.
- E não conto vencê-lo - disse Pierce. - Mas tentarei fazer-lhe a vida negra.
De qualquer forma, quando me disse que tinha planejado opor-se a Tynan mas que
tinha surgido uma coisa que mudara os seus planos, pensei logo que essa coisa se
chamava Tynan. Presumo que não vai colocar-se abertamente do nosso lado.
- Não posso -disse Collins.
Estudou os três homens que estavam no quarto, esses veteranos de Tynan,
esses homens que tinham sido postos na rua por se oporem ao diretor do FBI e à sua
organização paquidérmica, e sentiu subitamente que estava ao seu lado. Tinham
ganho completamente a sua confiança. Decidiu dizer-lhes como Tynan o tinha
tornado impotente no último minuto.
- Está bem. Parece-me que não há nada a esconder. Vou dizer-lhes porque
não posso acompanhá-los em público.
Pierce dispensou-lhe um meio sorriso.
- Pode confiar em nós.
Collins refletiu no que lhes havia de dizer e por onde começar.
- Encontrei-me ontem com o Presidente Wadsworth. Disse-lhe que sabia que
Tynan era o responsável pelo assassínio do Presidente do Supremo Maynard...
- Eh! - exclamou Pierce. - Não sabíamos disso. Tem certeza?
- Sim, creio que sim. Soube-o por uma pessoa que estava envolvida. Mas não
posso provar. Não pude provar isso e muitas outras coisas ao Presidente. No entanto,
apresentei-lhe uma boa acusação contra Tynan. Pedi-lhe que o demitisse. Recusou.
Disse-lhe que então não tinha por onde escolher, que tinha de me demitir, de ir para
a Califórnia e manifestar-me publicamente contra a emenda. Estava disposto a fazê-
lo, como souberam.
- Mas então teve de defrontar-se com Tynan - disse Pierce.
- Exatamente. Logo a seguir, soube que ele estava pessoalmente no meu
gabinete.
- Para comprar o seu silêncio - disse Ingstrup.
- Sim, para fazer chantagem comigo - concordou Collins.
Pierce encheu novamente o cachimbo e acendeu-o.
- Conte-nos o que se passou.
Embora reticente, Collins concordou. Relatou todos os pormenores das
provas que Tynan tinha reunido contra a sua mulher e falou da nova testemunha
visual que tinha aparecido no momento oportuno.
- Não usou da menor sutileza - concluiu Collins. - Ofereceu-me os termos da
rendição: não podia demitir-me; não podia ir para a Califórnia; não podia proclamar
a minha oposição à emenda. Se aceitasse esses termos, Karen ficaria a salvo. Se o
desafiasse, prosseguindo, então ela seria novamente julgada. Não tinha por onde
escolher. Aceitei as condições.
- Mas ela contou-lhe que estava inocente - disse Van Allen.
- Claro que sim. Está inocente. Acredito nela. No entanto, não posso permitir
que seja novamente agarrada na teia. Tive de desistir. - Levantou as mãos. - E aqui
estou como Sansão com um corte à escovinha.
Viu Pierce olhar de relance para Van Allen que fez um aceno quase
imperceptível, depois viu-o olhar para Ingstrup, que também acenou com a cabeça.
- Talvez o possamos ajudar, Chris - disse Pierce.
- Como?
- Metendo-nos no caso com a nossa pequena força anti-FBI, o nosso IFBI.
Temos um dos melhores homens no Texas... um rancheiro, Jim Shack. Foi agente do
FBI durante dez anos, mas fartou-se quando Tynan se tornou diretor. Temos lá mais
dois, ainda membros do FBI, que odeiam Tynan. Talvez possam fazer muito por si,
mesmo dar a Sansão a nova cabeleira.
- Não vejo o que possam fazer.
- Podem examinar o antigo processo da sua mulher e descobrir qual é a sua
verdadeira situação. Depois, podem fazer perguntas e descobrir se Tynan tem uma
nova testemunha, como diz, ou se o está a enganar, armando uma chantagem sobre
provas que não existem.
- Não tinha pensado nisso.
- Mas deve pensar. É muito possível.
Collins ficou carrancudo.
- Não sei. Não gosto de me arriscar. Se Tynan descobriu...
- Jim Shack e os outros homens são muito discretos. São melhores que os
melhores que Tynan hoje tem.
Collins ainda estava preocupado.
- Deixem-me pensar.
- Não temos muito tempo - recordou-lhe Pierce. - A Assembléia da Califórnia
vota hoje...
- Eh! - exclamou Van Allen, saltando da cadeira. - Dá na televisão. Quase nos
esquecíamos.
Correu para o aparelho de televisão colocado no toilette.
- Sim - disse Pierce -, vamos ver se o nosso trabalho junto dos deputados da
Assembléia deu algum resultado. Se votarem contra está tudo acabado para Tynan e
o nosso trabalho concluído. Mas se aprovarem...
- Quais são as previsões? - perguntou Collins, sentando-se na cadeira de
braços.
- Pelas últimas informações, a Assembléia inclinava-se para a aprovação. No
Senado é que é mais difícil. No entanto, nunca se sabe. Vamos ver.
A televisão estava ligada. Todos se concentraram nela.
A câmara focava a divisa dourada sobre o retrato encaixilhado de Abraham
Lincoln no alto da tribuna. A legenda dizia: LEGISLA TORUM EST JUSTA LEGES
CONDERE.
- O que é que significa? - perguntou Van Allen.
- É dever dos legisladores fazerem leis justas - explicou Collins.
- Olhem - exclamou Pierce.
A câmara descia lentamente para mostrar as bancadas por baixo da tribuna,
onde as leis e as resoluções eram forjadas. Em seguida a câmara focou os oitenta
deputados à Assembléia, sentados nas suas carteiras individuais e com os
microfones nas cinco coxias.
Estava a realizar-se a terceira e última leitura da proposta de emenda.
"Secção I. Número 1. Nenhum direito ou liberdade garantidos pela
Constituição podem ser considerados como autorização para pôr em perigo a
segurança nacional. Número 2. Na eventualidade de perigo claro e imediato, deve
reunir-se um Comitê de Segurança Nacional, nomeado pelo Presidente, em sessão
conjunta com o Conselho Nacional de Segurança. Número 3. Se se reconhecer que a
segurança nacional está em perigo, o Comitê de Segurança Nacional proclamará o
estado de emergência e assumirá plenos poderes, sobrepondo-se às autoridades
constitucionais, até que o perigo em causa tenha sido dominado e/ou eliminado.
Número 4. O presidente do Comitê será o diretor do FBI."
- Tynan, a cláusula de Tynan - disse Pierce sem se dirigir a ninguém em
particular.
A leitura continuava na televisão.
"Número 5. A proclamação durará só enquanto persistir a emergência e
terminará automaticamente assim que se declarar formalmente que a emergência já
não existe. Secção II. Número 1. Durante o período suspensivo, os restantes direitos
e garantias assegurados pela Constituição continuarão a ser invioláveis. Número 2.
Todas as resoluções do Comitê devem ser tomadas por unanimidade."
A voz calma do locutor da rede de televisão fez-se ouvir.
"A votação crítica está prestes a começar. Cada deputado vota carregando
num botão instalado na sua carteira. Se votar Sim, acende-se uma luz verde ao lado
do seu nome no grande quadro da sala. Se deslocar a cavilha do botão para a posição
Não, acende-se uma luz vermelha a seguir ao seu nome. Prestem atenção ao quadro
eletrônico dos resultados, onde os votos são somados automaticamente. Será
suficiente a maioria simples para aprovar a emenda. Quer dizer, se o total de votos a
favor atingir 41, a 35.a emenda terá sido aprovada por esta Assembléia. Uma
votação contrária de quarenta e um deputados significará que foi derrotada. Se for
aprovada, a decisão final da sua retificação ou rejeição caberá ao Senado, composto
por quarenta membros, e será tomada daqui a três dias. - Parou. - A votação vai
começar."
Collins parecia colado à cadeira enquanto observava.
As lâmpadas iam-se acendendo à medida que os minutos passavam.
Collins observava o quadro eletrônico dos resultados e as somas. As
lâmpadas verdes predominavam. O contador subia para trinta e seis, depois para
trinta e sete, trinta e oito, trinta e nove, quarenta, quarenta e um.
Um grito de satisfação partiu da galeria da assistência, cortado por alguns
lamentos, mas a voz do locutor sobrepôs-se.
''Tudo está resolvido na Assembléia da Califórnia. A 35.a emenda obteve a
maioria dos votos: quarenta e um em oitenta. Foi aprovada na primeira das duas
Câmaras. Agora o seu destino está integralmente nas mãos do Senado do Estado da
Califórnia, daqui a setenta e duas horas."
Pierce levantou-se da cama e desligou o aparelho.
- Já receava isto. - Olhou para os outros. - Parece que a nossa tarefa não
resultou. - Aproximou-se de Collins, que estava imóvel na cadeira de braços. -
Chris, preciso de toda a ajuda que nos puder dar. Deixe-nos tentar ajudá-lo a
libertar-se para nos poder auxiliar.
- Refere-se a Karen?
- À sua mulher. À chantagem de Tynan. Deixe me contatar com Jim Shack e
os outros dois em Fort Worth.
O desencorajador acontecimento apresentado na televisão já tinha levado
Collins a uma decisão.
- Muito bem -disse -, vão para a frente. Aceito a vossa oferta. - Tinha
decidido que a sua última esperança era ficar ao lado destes três homens. - Mas há
mais uma coisa em que me podem ajudar. É uma coisa que, se for revelada, pode
levar à derrota da emenda.
- Tudo o que possa ser feito nesse sentido tem o meu apoio disse Pierce,
voltando para o seu lugar à beira da cama.
Collins pôs-se de pé.
- Algum de vocês já ouviu falar de um documento, ou talvez de um
memorando, chamado o Documento R?
- O Documento R? - repetiu Pierce. Fez que não com a cabeça. - Não me diz
nada. Não, nunca ouvi falar.
Van Allen e Ingstrup também deram a entender que nunca tinham ouvido
falar disso.
- Então vou contar-lhes - disse Collins. - Tudo começou com a morte do
coronel Baxter. Só soube do documento uns dias depois...
Sem omitir nenhum pormenor, Collins fez reviver o grupo de personagens
familiares e recapitulou os acontecimentos das últimas semanas, enquanto que os
três homens o ouviam entusiasmados. Collins falou durante uma hora, a respeito do
coronel Baxter, da viúva, do Documento R (perigo... perigoso... deve ser revelado
imediatamente, a todo o custo... Eu vi... grave... grave ação... vá ver...), do lago Tule,
de Josh, com o campo de detenção (Pierce tinha feito que sim com a cabeça), dos
deputados Keefe, Yurkovich e Tobias e das estatísticas criminais falsificadas, do
diretor Jenkins da Penitenciária de Lewisburg, de Susie Radenbaugh e do próprio
Radenbaugh, da Ilha dos Pescadores, do Presidente do Supremo Maynard e de Argo
City, de Radenbaugh e de Ramon Escobar.
Foi tudo exposto diante deles, exceto a prova principal, o Documento R, que
continuava a faltar.
Quando acabou, tinha a voz rouca e esperava ver a incredulidade nos rostos.
Em vez disso, estavam impassíveis, como se refletissem no que tinham ouvido.
- Não estão espantados? - perguntou Collins.
- Não - respondeu Pierce. - Já vimos muita coisa, já ouvimos muito, sabemos
demasiado a respeito de Tynan.
- Acreditam em mim, não acreditam?
- Em tudo o que disse - respondeu Pierce pondo-se de pé. Sabemos do que
Tynan é capaz e da sua capacidade em agir, desde que satisfaça os seus fins. É
totalmente implacável e vai vencer, a menos que tiremos vantagem das nossas
possibilidades. Se nos der toda a sua cooperação, Chris, dentro de horas poremos
toda a nossa força de ex-agentes do FBI e de informantes em contra-ataque. Quero
pedir-lhe que fique cá esta noite, Chris. Poderá regressar a Washington de manhã.
Vou mandar Van buscar comida e bebidas. Vamos ficar aqui até à meia-noite e
delinear o nosso plano. Depois nós os três sairemos, iremos a cabinas telefônicas, e
telefonaremos para os membros da nossa força de contra-ataque. De manhã já
devem estar todos cientes das suas atribuições. Que lhe parece?
- Estou pronto.
- Ótimo. Os contatos mais importantes reservamo-los para nós mesmos.
Temos de passar por todo o terreno que você já bateu. Sei que realizou uma tarefa
perfeita, mas as investigações são o nosso ofício. Podemos conseguir informações a
que você não tem acesso. Além disso as pessoas com quem falou podem lembrar-se
demais pormenores numa segunda conversa. Interrogarei Radenbaugh pessoalmente.
Van Allen irá investigar novamente Argo City. Ingstrup irá ter com o padre
Dubinski. E você, acho que deve ir ver novamente Hannah Baxter, Chris. Penso que
pode falar com ela melhor que qualquer de nós. Está bem?
- Irei vê-la outra vez - prometeu Collins. - E quanto a Ishmael Young?
Pierce refletiu e depois abanou a cabeça.
- Não, não tenho certeza que ele esteja do nosso lado, porque é muito íntimo
de Tynan. Pode deixar escapar qualquer coisa por acidente. Se isso acontecesse, as
nossas cabeças rolariam. - Fez uma pausa.- Então, há mais alguma coisa?
Collins lembrara-se de mais um pormenor.
- Ishmael Young, da última vez que o vi, referiu que Tynan tinha mãe. Vive
perto de Washington. Tynan vai vê-la uma vez por semana.
- Não está a brincar? Tynan tem mãe? Custa-me a acreditar.
- É verdade.
- Bem, é evidente que não nos atreveríamos a entrevistá-la. Mas quem sabe?
Deixe-me dormir sobre o assunto. Tem outras idéias, Chris?
- Não.
- Bem, temos mais do que o suficiente para nos manter ocupados durante as
setenta horas que nos restam. Agora vamos tirar os casacos e as gravatas, pedir a
Van que nos traga bebidas e assentar em planos definitivos.
- O que é que falta combinar? - perguntou Collins.
- A nossa força de campanha, recorda-se? Vou contatar com Jim Shack para
ir a Fort Worth amanhã e para trabalhar vigorosamente no caso da sua mulher. Mas
temos mais de cinqüenta homens e mulheres quase tão bons como Shack. Vai
espreitar debaixo de cada pedra em que Tynan viveu. Nenhuma pedrinha será
deixada de lado.
- Acha que temos alguma possibilidade?
- Se tivermos sorte, Chris.
- E se Tynan descobrir?
- Seria pouca sorte - disse Pierce.
***
Eram nove horas e dezoito minutos da manhã quando Chris Collins regressou
a Washington. À porta do aeroporto, esperava-o a sua limusine. Mandou Pagano
levá-lo diretamente para casa.
Ao abrir a porta, não ouviu nenhum ruído e pensou que Karen ainda estivesse
a dormir.
Atravessou a casa e entrou no quarto para mudar de roupa e voltar para o
serviço o mais depressa possível. Viu que a cama estava feita. Perguntando-se onde
estaria Karen, percorreu novamente a casa, chamando-a, esperando encontrá-la na
cozinha. Mas não estava na cozinha.
Voltou ao quarto. Ao contrário do que era habitual, a casa estava sossegada. Entrou
na casa de banho e viu um papel colado ao espelho com fita gomada. Puxou-o,
reconhecendo a letra de Karen, e, pela data, viu que tinha sido escrito na noite
anterior. Apreensivo, começou a lê-lo.
Meu querido,
Espero que não fiques abalado. Nunca te devia ter escondido absolutamente
nada. Devia ter percebido que uma figura pública como tu era vulnerável, e devia
ter compreendido que uma pessoa como Tynan havia de esquadrinhar informações
a meu respeito e usá-las indevidamente. Juro-te que estou inocente. Contudo, receio
que não estejas convencido. O fato de não permitires que o assunto seja conhecido,
receando um segundo julgamento (para meu bem, eu sei), diz-me que não tens
certeza de como o julgamento terminaria. Por mim não tenho dúvidas, mas sei que
as tens. De qualquer maneira, uma vez que não desafiaste Tynan (por minha causa),
decidi desafiá-lo eu. Resolvi ir para o Texas, descobrir essa testemunha nova e
arrancar-lhe a verdade. Não quero esperar até que voltes a casa. Não quero que
voltes a falar-me no caso. Quero provar a minha inocência total, a Tynan e a toda a
gente, leve o tempo que levar, e sei que só eu o posso fazer. Não tentes encontrar-
me. Estarei em Fort Worth em casa de amigos. Não quero estar em contato contigo
até ver resolvido o problema. Não te preocupes. Deixa-me agir à minha maneira. A
coisa mais importante é que te amo. Quero que me ames e confies em mim.
Karen
Collins deitou o papel para o lixo e rodou nos calcanhares, confuso. O
procedimento dela era a última coisa no mundo que podia esperar. Ela esperara que
não ficasse abalado, dizia-o. Não estava abalado. Estava chocado. A idéia da sua
mulher, grávida, sozinha algures no Texas, algures em Fort Worth, fora do alcance e
profundamente perturbada, era quase mais do que podia suportar. Esteve tentado a
tomar o primeiro avião para Fort Worth e a tentar encontrá-la. Mas seria procurar
uma agulha num palheiro. No entanto, tinha de fazer alguma coisa.
Antes que pudesse pensar, ouviu o telefone a tocar no quarto.
Rezando intimamente que fosse Karen, correu para o telefone e levantou o
auscultador.
Não era Karen. Era uma voz masculina que logo reconheceu. Era Tony
Pierce.
- Bom dia, Chris. Meti-me num avião pouco depois de você. Já estou em
Washington.
- Bons dias, T... - Por pouco não lhe escapava o primeiro nome de Pierce,
mas acautelou-se a tempo, lembrando-se das regras do jogo estabelecidas em
Chicago na noite anterior: não mencionar Pierce nem os seus amigos ao telefone.
- Tenho uma novidade a dar - disse Pierce. - Acabo de ser informado que
Vernon T. Tynan segue amanhã à noite para Nova Iorque em serviço. Depois vai
para Sacramento. Está combinado apresentar-se pessoalmente perante o Comitê
Judicial do Senado da Califórnia, na sexta-feira. Vai dar um valente empurrão na
35.a emenda. Será a última testemunha antes de passar ao plenário do Senado.
Collins estava demasiado agitado por causa da mulher para reagir às notícias
sobre Tynan ou atingir as suas implicações.
- Lamento - disse -, mas receio não ser capaz de pensar nisso agora. Cheguei
a casa e encontrei um bilhete da minha mulher. Ela...
- Espere - interrompeu Pierce. - Imagino o que seja, mas não discuta isso pelo
telefone. Há cabinas telefônicas nas proximidades?
- Várias. A mais perto...
- Não diga. Vá lá e telefone. Fico à espera. Dei-lhe o número ontem à noite.
Tem-no?
- Sim. Já lhe telefono.
Collins pegou precipitadamente no bilhete de Karen e apressou-se a sair de
casa. O automóvel oficial ainda estava à espera; Collins fez sinal ao condutor para
aguardar e disse a Pagano que não demorava.
Minutos depois, tinha percorrido dois pequenos quarteirões e virado para a
estação de serviço. Dirigiu-se à cabina telefônica, fechou-se lá dentro, meteu as
moedas e marcou o número de Tony Pierce.
Pierce respondeu imediatamente.
- Agora já pode falar. É seguro. A sua mulher foi-se embora?
- Para o Texas. Quer vingar-se.
- Não me surpreende.
- Bem, eu fiquei surpreso. Não posso compreender essa atitude. O que me
parece é que ela se quer ilibar por minha causa, mas isso significa desafiar Tynan. É
um disparate. Ela devia ter pensado melhor. Devia saber que ninguém pode bater
Tynan no seu campo. Tentar agarrar uma testemunha de Tynan e arrancar-lhe a
verdade! Karen não percebe como isso pode ser perigoso.
- Referiu-se a um bilhete que ela lhe deixou - disse Pierce calmamente. -
Importa-se de me ler?
Collins tirou do bolso a nota de Karen e leu-a. Quando acabou, disse:
- Estou a pensar seriamente em ir a Fort Worth para a tentar encontrar.
- Não - disse Pierce firmemente -, fique quieto. Nós vamos encontrá-la.
Avisarei os meus homens (Jim Shack, lembra-se), e ponho-os na pista dela.
Poupava-nos tempo se tivéssemos alguma indicação. O bilhete diz que ela vai para
casa de amigos em Fort Worth. Tem a agenda dela em casa?
- Temos uma agenda comum, mas acho que ela tem uma antiga lá por casa.
- Ótimo. Assim que voltar a casa, procure essa agenda antiga, se é que ela a
deixou ficar. Então....não, é melhor não ler as moradas pelo seu telefone... use outra
cabina no caminho para o serviço. Leia-me os nomes e endereços de todos os
amigos de Karen em Fort Worth e na área de Dálias. Eu transmito-os a Jim Shack.
- Está bem.
- Jim Shack também já está à procura da testemunha-vedeta de Tynan. A sua
mulher deve estar demasiado emocionada para lidar com ela. Mas Shack pode tratar
facilmente do caso.
- Obrigado, Tony. Mas como vai encontrar a testemunha de Tynan? Ele não
me deixou saber quem era.
- Não há problema. Já lhe disse que temos dois informantes no edifício do
FBI. Um deles trabalha de noite. Há de arranjar maneira de espreitar para o dossier
de Karen depois de Tynan e Adcock terem saído. Dá-me o nome da testemunha e eu
transmito-o a Shack. Confie em nós para tratar disso. A sua mulher e o caso dela
estão em boas mãos.
- Não tenho palavras para lhe agradecer, Tony.
- Não tem importância - disse Pierce -, estamos todos unidos. Gostaria de o
fazer aparecer na Califórnia a tempo de anular o testemunho
de Tynan. Se ele for a única testemunha do governo, lançará o pânico entre os
senadores para os fazer aprovar a emenda. A minha outra esperança é que possamos
deitar a mão ao Documento R até amanhã. Vamos encontrar-nos com o padre
Dubinski e com Donald Radenbaugh para continuar as entrevistas já nas próximas
horas. E você? Vai voltar a falar com Hannah Baxter?
- Não pode ser hoje. Telefonei-lhe do aeroporto de Chicago hoje de manhã.
Acordei-a, mas não ficou aborrecida. Concordou em receber-me amanhã de manhã.
Encontramo-nos em casa dela às dez.
- Muito bem. Se houver alguma novidade, telefono-lhe para o serviço. O
telefone está livre para receber chamadas?
- Estará quando ligar. Vou passar a mandar verificar se não está sob escuta
todas as manhãs.
- Ótimo. Entrarei em contato consigo.
***
Pela primeira vez em muitos anos, Vernon T. Tynan ia a caminho da casa da
mãe sem ser sábado. Além de ser quarta-feira, havia outros aspectos invulgares na
visita de Vernon T. Tynan a Alexandria. Por um lado, não se tinha dado ao
incômodo de trazer a habitual pasta dos dossiers Oficiais e Confidenciais sobre
celebridades. Por outro lado, não ia almoçar com a mãe. Além disso, não era uma
menos um quarto, mas sim três e um quarto da tarde. O que tinha ocasionado esta
viagem antecipada, fora uma conversa telefônica que tivera com a mãe há menos de
dez minutos. Ela raramente lhe telefonava, mas fazia-o esporadicamente, e hoje fora
um desses dias.
- Perturbo o teu trabalho? - perguntara a Vern.
- Não, nada. Como está? Corre tudo bem?
- Nunca correu melhor. Só queria agradecer-te.
- Agradecer-me?
- Por seres um filho tão atencioso. O aparelho de televisão ficou a trabalhar
perfeitamente.
Ele não tinha a menor idéia de que raio ela estava a falar.
- O que é que está a dizer? - perguntou ele.
- Que te quero agradecer pelo arranjo da televisão. O técnico veio ao fim da
manhã. Disse que o tinhas mandado. Foi muito gentil da tua parte, Vern, pensares na
tua mãe e nos seus problemas, quando andas tão ocupado.
Ele tinha ficado calado, tentando assentar idéias.
- Vern, está, Vern?
- Estou, mamã. Hum... vou vê-la daqui a pouco. Tenho uns assuntos a tratar
em Alexandria. Passo por aí durante um minuto.
- Isso é uma alegria inesperada. Mais uma vez obrigado por teres mandado o
técnico.
Depois de ter desligado, Tynan tinha-se recostado, tentando ainda clarificar
idéias. Podia ter sido um engano, um endereço errado. Mas podia ter sido muito
mais. De qualquer maneira, uma coisa era certa: não tinha mandado nenhum técnico
de televisões reparar o aparelho da mãe. Tinha-se levantado imediatamente da
cadeira para chamar o motorista e ir o mais depressa possível para Alexandria. Neste
momento, tendo chegado ao apartamento da mãe no Bairro dos Cidadãos dos Anos
Dourados, saía do carro e entrava no edifício. Verificou o botão de alarme,
praguejou por não estar ligado e entrou em casa.
Rose Tynan estava na sua cadeira de balanço em frente da televisão. Assistia
a um programa de variedades. Tynan deu-lhe um beijo leve e descuidado no rosto.
- Vieste depressa - disse ela. - Estou contentíssima por teres vindo. Queres
que te dê de comer?
- Não se incomode, mamã. Parei só por uns minutos. - Apontou para a
televisão. - Então, agora está melhor? Não me lembro do que não funcionava bem.
- O quê? - perguntou ela por entre o ruído da televisão. Respirando com
dificuldade, inclinou-se para a frente e baixou o volume.
- Estava a ver se me lembrava do que não funcionava bem no aparelho. Às
vezes a imagem andava às voltas.
- Então o técnico veio hoje de manhã? A que horas?
- Deviam ser onze.
- Trazia uniforme?
- Claro.
- Lembra-se do aspecto dele, mamã?
- Que pergunta - respondeu Rose Tynan. - Tinha o aspecto de um técnico.
Porquê?
- Queria ter certeza que mandaram o mais competente. Quanto tempo se
demorou?
- Talvez meia hora.
Ele queria continuar, mas tentava não a aborrecer.
- A propósito, mamã - disse como por acaso -, esteve a vê-lo fazer o
conserto? Esteve sempre na sala ao pé dele?
- Falamos um bocado, mas ele estava muito ocupado. Depois fui lavar os
pratos.
Tynan passou pelo sofá e olhou para o telefone na mesinha ao lado.
- Mamã, onde está a chave de parafusos? Ela lutou para sair da cadeira de
balanço.
- Vou buscá-la. Para que queres a chave?
- Quero examinar o seu telefone enquanto cá estou. Não se ouve muito bem
quando fala. Talvez eu o consiga arranjar.
Assim que a mãe voltou com a chave, Tynan desatarraxou a base do telefone.
A seguir tirou a caixa. O mecanismo interior ficou à vista. Começou a examiná-lo
minuciosamente.
Passado algum tempo, suspirou, murmurando:
-Ah!
Tinha localizado o transmissor - um transmissor menor que um dedal, preso
com adesivo e resina - um aparelho que captava ambos os extremos da conversa
num receptor de freqüência modulada escondido em qualquer parte da cidade, onde
a conversa podia ser gravada. O dispositivo era exatamente o mesmo que o FBI
usava.
Tynan extraiu o transmissor do telefone, meteu-o no bolso e recolocou a
caixa na base do telefone.
- Então, estava alguma coisa avariada? - perguntou Rose Tynan.
- Estava, mamã. Agora está tudo bem. -
O que importava era que eles, quem quer que fossem, tinham vigiado o
telefone da mãe desde manhã. Tentou lembrar-se se lhe tinha dito alguma coisa
importante nos últimos sábados que ela pudesse ter hoje repetido a alguma amiga
pelo telefone.
- A mamã fez hoje chamadas? Não de manhã cedo, só depois das onze horas.
- Vamos ver se me lembro.
- Pense bem. Alguém lhe telefonou? Ou telefonou a alguém?
- Só recebi uma chamada da senhora Grossman.
- De que falaram?
- Foi pouco tempo. Falamos de uma receita que lhe passaram. Também te
telefonei a ti.
- É tudo.
- Sim, é tudo. Não, espera. Terá sido hoje? Sim, foi hoje. Tive uma grande
conversa com Hannah Baxter.
- Lembra-se do que falaram?
Rose Tynan começou a contar os assuntos que tinha discutido com Hannah
Baxter. Coisas triviais, sem a menor importância.
- Precisa se manter ocupada - concluiu Rose Tynan. - Sente muito a falta do
marido. Apesar de ter o neto Rick em casa, e de não estar sozinha, não é a mesma
coisa
que ter uma pessoa íntima, especialmente sendo ele o Procurador-Geral. É claro que
amanhã vai ter lá o Procurador-Geral...
Tynan não tinha estado a prestar atenção, mas agora arrebitava as orelhas.
- O que é que está a dizer? Que vai ter lá o Procurador-Geral amanhã? Deve
estar enganada. O Procurador-Geral era Noah, mas já está morto.
- Ela referia-se ao novo Procurador-Geral. Como é que ele se chama?
- Christopher Collins.
- É esse. Vai vê-la amanhã de manhã.
- Porquê? Ela disse porquê?
- Não sei, ela não disse.
- Collins vai visitar Hannah Baxter - disse mais para si que para a mãe.- Bem,
diga-me, quanto tempo esteve a falar com Hannah Baxter ao telefone?
- Ao telefone? Não disse que falei com Hannah Baxter ao telefone. Falei com
ela pessoalmente. Ela apareceu de manhã para tomar café comigo.
- Veio cá! ? - disse Tynan com alívio. - Ótimo. Bem, tenho de me ir já
embora, mamã. Tenho muito que fazer antes de ir para a Califórnia amanhã. Só mais
uma coisa.
Não deixe entrar mais nenhum técnico sem falar comigo primeiro. Telefone-me
antes...
- Se é assim que o diretor quer...
- É o que eu quero. - Beijou a mãe na testa. - E obrigado pelas notícias.
- Que notícias? - perguntou ela.
- Qualquer dia conto-lhe. Dito isto, partiu apressado.
***
Na manhã seguinte chovia e o céu de Washington estava escuro e pesado,
quando Chris Collins seguia do Departamento de Justiça para a residência de Baxter,
em Georgetown. Durante o caminho, a disposição de Collins tinha acompanhado o
tempo. Raras vezes tinha estado tão melancólico. Desde a véspera que não recebera
chamadas, nem de Tony Pierce nem de Ingstrup ou Van Allen. Parecia que os
interrogatórios e investigações, dos três homens na capital e dos seus companheiros
por todo o país, não tinham encontrado pistas que pudessem levar à descoberta do
Documento R. E o pior é que não tinham chegado notícias de Jim Shack em Fort
Worth. No dia seguinte à tarde, no extremo do país, no capitólio do Estado da
Califórnia, a 35.a emenda seria posta à votação final pelos quarenta membros do
Senado. Era preciso a maioria dos votos para a ratificar, ou seja vinte e um
membros. De acordo com um artigo do Washington Post dessa manhã, uma fonte
próxima do Presidente Wadsworth tinha revelado que o conselheiro presidencial
Ronald Steedman informara o Presidente de que a última sondagem confidencial
entre os senadores da Califórnia indicara que trinta senadores iriam votar pela
ratificação da nova emenda. No dia seguinte à noite, a 35.a emenda faria parte da
Constituição dos Estados Unidos. O futuro nunca parecera tão desolador a Collins.
Percebeu que a sua limusina do governo tinha parado diante da velha casa de
tijolo branco em Georgetown. Eram exatamente dez horas da manhã. Tinha chegado
a horas para o encontro com Hannah Baxter.
Quando o agente especial Hogan lhe abriu a porta de trás, Collins informou o
motorista Pagano:
- Pode esperar aqui. - Ao descer do carro acrescentou para Hogan: - Não me
devo demorar. Fique por aqui.
Enquanto subia a escadaria ladeada pela grade de ferro, Collins estava
demasiado desanimado para ter quaisquer esperanças na visita.
Já tinha falado com Hannah Baxter uma vez, no início da sua busca do Documento
R, e ela pouco lhe tinha podido dar. Era verdade que o tinha levado até Donald
Radenbaugh, o que já tinha sido alguma coisa, mas não o suficiente. Tinha dúvidas
que lhe pudesse oferecer mais alguma coisa desta segunda vez. Era um trabalho
inútil, estava certo, mas tinha prometido a Tony Pierce que tentaria novamente, e
assim faria. Tocou à campainha. Em vez da criada, foi a própria Hannah Baxter
quem veio abrir a porta. A sua figura roliça era tão hospitaleira como sempre.
- Christopher, como é bom vê-lo de novo. - Depois de terem entrado, beijou-a
e ela retribuiu. - Bem, deixe-me olhar para si. Parece excelente; bem, talvez um
pouco cansado. Não deve trabalhar demasiado. É o que eu dizia sempre a Noah. E
tinha razão, como sabe.
- Tem melhor parecer que da última vez, Hannah. Como tem passado?
- Ocupada, Christopher, sempre a mexer-me. Graças a Deus tenho comigo o
Rick. Quando ele vai para a escola à tarde, sinto-me completamente desamparada.
Os pais regressam de África na próxima semana. Creio que o vão deixar comigo até
acabar o semestre. Talvez o Verão todo. Como está Karen?
Collins gostava de lhe contar, mas como seria muito complicado e envolveria
Tynan, decidiu não o fazer.
- Oh, está ótima. Manda-lhe lembranças. Obrigado.
Foram para a sala de estar.
Hannah apontou para as portas de vidro que se viam através dos pesados
reposteiros castanhos parcialmente corridos.
- É pena não poder arranjar um dia de sol para si. Podíamos sentar-nos no
pátio. Não faz mal, estaremos bem aqui.
Collins esperou que Hannah se instalasse no sofá e sentou-se na cadeira de
espaldar alto em frente dos reposteiros.
- Posso servir-lhe alguma coisa, Christopher? - perguntou.- Café ou chá?
- Nada, Hannah. Estou perfeitamente. Queria falar de uma coisa sem grande
importância. Não vai demorar muito.
- Vamos a isso.
- Trata-se do mesmo assunto que me trouxe cá da última vez, pouco depois
da morte de Noah. Lembra-se?
As suas sobrancelhas contraíram-se.
- Não me lembro muito bem. Tem acontecido tanta coisa... Acho que era
sobre uns papéis de Noah que procuravas, não era?
- Sim, vou refrescar-lhe a memória. Foi por causa de um papel que faltava e
que eu tentava encontrar; estava relacionado com a 35.a emenda, um papel
complementar. Noah queria que eu o procurasse e conhecesse. Disse que se
chamava Documento R. Mas não fui capaz de o encontrar. Embora devesse achá-lo.
Na última visita perguntei-lhe se tinha ouvido Noah falar dele. Disse-me que não.
Tinha esperança de que se tentasse novamente, se pudesse lembrar de qualquer
ocasião em que ele...
- Não, Christopher. Se tivesse ouvido falar nele, havia de me lembrar. Mas
nunca ouvi falar de nada chamado o Documento R. Noah raramente falava comigo
sobre assuntos de serviço.
Collins resolveu tentar de outra maneira.
- Ouviu Noah referir-se alguma vez a um lugar chamado Argo City? É uma
cidade do Arizona em que o Departamento de Justiça está interessado. - Repetiu o
nome lentamente. - Argo City.
- Não, nunca.
Desapontado, resolveu voltar ao assunto inicial.
- Da última vez que aqui estive, perguntei-lhe se Noah tinha alguns amigos
íntimos ou sócios de negócios a quem pudesse ter falado no assunto, alguém que me
pudesse ajudar a encontrar o Documento R. Alvitrou que eu devia falar com Donald
Radenbaugh na penitenciária de Lewisburg, o que lhe agradeço.
- Viu Donald Radenbaugh? - quis saber Hannah.
- Não. Tentei vê-lo, mas tinha morrido antes de o poder visitar.
- Pobre homem. Uma tragédia. E Vernon T. Tynan. Já lhe perguntou se sabia
o que era o Documento R?
- Assim que saí daqui. Mas ele não me pôde ajudar. Hannah Baxter encolheu
os ombros.
- Então parece que está sem sorte, Christopher. Se Vernon Tynan não o pode
ajudar, tenho certeza que não há mais ninguém que possa. Como sabe, Vernon e
Noah eram muito chegados, quer dizer, trabalhavam juntos na emenda. De fato, na
última noite que passou em casa, Vernon e Harry Adcock estavam aqui, nesta sala, a
conferenciar com ele, a trabalhar com ele, quando lhe deu o ataque. Foi no meio da
reunião. De repente teve uma tontura, desmaiou e caiu no chão. Foi terrível.
Collins ainda nunca tinha ouvido falar nisso.
- Mas então, Noah estava com Tynan e Adcock na noite do ataque? Nunca
soube disso. Tem certeza?
- Não consigo esquecer-me - disse Hannah pesarosa. - Foi uma reunião
extraordinária. Noah (julgo que por amor de mim) raramente trabalhava à noite.
Bem, às vezes ficava a trabalhar sozinho. Refiro-me a reuniões com outras pessoas.
Lembro-me que Vernon insistiu em vê-lo nessa noite, e veio logo depois do jantar.
- E Harry Adcock também estava cá?
Ela hesitou.
- Tenho quase certeza. Quanto a Vernon tenho certeza, claro. Mas foi uma
noite de muita confusão... Posso não me lembrar de tudo perfeitamente. Quer saber
se Harry Adcock também estava?
- Bem, talvez não tenha importância.
- Não, não me importo de verificar - disse ela levantando-se. A agenda de
Noah deve informar-nos. Há de estar em qualquer parte no escritório. Hei de
encontrá-la.
Saiu da sala e Collins recostou-se na cadeira de braços, pensando que não
tinha sabido nada de útil de Hannah Baxter.
Ali sentado, mergulhou no desânimo mais profundamente do que nunca,
completamente perdido.
Pareceu-lhe ter ouvido um ruído junto da cadeira, por trás e debaixo- como
um roçar e arrastar de pés. Lançou a cabeça para a esquerda a tempo de ver o
reposteiro castanho abanar misteriosamente. Olhou para baixo e a ponta do
cortinado erguia-se e saía de trás dele um rapaz. Era Rick Baxter, o neto de Hannah,
que avançava de joelhos, com o eterno gravador na mão esquerda.
- Olá, Rick - chamou Collins. - Que estavas a fazer atrás do reposteiro, a
ouvir a conversa?
- É o melhor esconderijo desta sala - disse Rick, com um sorriso que deixava
ver a armação nos dentes.
- Como é que está a trabalhar o teu gravador? - perguntou Collins.
O rapaz levantou-se, afastando dos olhos o cabelo castanho desgrenhado.
Pousou a caixa de couro que continha o gravador.
- Está a trabalhar perfeitamente desde que o arranjou. Quer ouvir?
Sem esperar por resposta, Rick carregou no botão de rebobinar, observando
hipnotizado a fita que voltava para trás, parou o aparelho e premiu o botão de
reprodução.
Rick chegou a máquina para mais perto dos ouvidos de Collins.
- Ouça, acabei de gravá-lo a falar com a avó.
Abanando a cabeça, Collins chegou-se para perto do gravador e prestou
atenção.
Era a voz inimitável de Hannah, e a fidelidade da gravação, mesmo feita por detrás
do reposteiro, era notável.
"E Vernon T. Tynan? Já lhe perguntou se sabia o que era o Documento R?"
Depois a voz dele:
''Assim que saí daqui. Mas ele não me pôde ajudar.''
De novo a voz de Hannah:
"Então parece que está sem sorte, Christopher. Se Vernon Tynan não o pode
ajudar, tenho certeza que não há mais ninguém que possa. Como sabe, Vernon e
Noah eram muito chegados, quer dizer, trabalhavam juntos na emenda. De fato, na
última noite que passou em casa, Vernon e Harry Adcock estavam aqui, nesta sala, a
conferenciar com ele, a trabalhar com ele, quando lhe deu o ataque. Foi no meio da
reunião...
- É formidável, Rick - interrompeu Collins. - Já ouvi o suficiente. Da próxima
vez que cá vier, vou ser cuidadoso.
O rapaz carregara rapidamente no botão de paragem.
- Fique à vontade, não sou empregado de um serviço do Governo. É só um
passatempo.
Collins tentava mostrar-se impressionado.
- Bem, foi muito bem feito. Podes arranjar trabalho como agente do FBI.
- Não, ainda não tenho idade. Mas é divertido brincar ao FBI. Já fiz um bom
cento de gravações atrás deste cortinado. Ninguém sabia que aqui estava. Até uma
vez, o avô apanhou-me.
- O avô apanhou-te? - disse Collins.
- Viu a biqueira do sapato a sair por baixo do reposteiro.
- E importou-se?
- Ah, ficou muito aborrecido. Disse-me que era muito grave fazer gravações
daquelas.
Subitamente, Collins empertigou-se na cadeira. Baixou os olhos para o rapaz.
- Desculpa, Rick, não compreendi bem o que contaste. O que é que o teu
avozinho disse quando te apanhou atrás do reposteiro?
- Que era muito grave fazer gravações daquelas e que se me visse a brincar
outra vez assim me castigava.
- Compreendo.
Nesse instante Collins ainda não compreendia, sentia apenas. Mas não tardou
que aquilo começasse a fazer algum sentido.
Collins ficou absorto.
As últimas palavras de Noah Baxter inundavam-lhe o espírito:
"O Documento R... Eu vi... grave... grave ação... vá ver..."
Agora as palavras de Rick Baxter:
"Que era muito grave fazer gravações daquelas."
Noah Baxter: "Eu vi... grave... grave ação..."
Rick Baxter: "Grave, fazer gravações daquelas."
Teria o coronel, nestas últimas palavras ofegantes, falado de uma grave ação,
ou referir-se-ia à gravação de Rick? À escuta de Rick atrás dos reposteiros?
"Eu vi... grave... ação... gravação..."
Teria o coronel, na sua última conversa com Tynan, minutos ou segundos
antes do ataque, visto o abanar do reposteiro, a biqueira do sapato do rapaz saindo
por baixo do reposteiro? Teria percebido que o rapaz tinha gravado o segredo? E ter-
se-ia lembrado mais tarde disso, ao recobrar momentaneamente o conhecimento
quando saiu do estado de coma? Teria tentado dizer-lhe: eu vi a gravação e agora
procure-a, vá vê-la? Ver o quê? Ver se Rick tinha gravado a última conversa
confidencial, porque ela conduzia ao segredo do Documento R? Seria isso? Seria
possível?
Collins olhou para Rick, O rapaz ainda estava sentado de pernas cruzadas, ao
lado da sua cadeira.
Collins pigarreou e tentou falar normalmente.
- Olha, Rick, queria fazer-te uma pergunta...
O rapaz levantou a cabeça. Collins hesitava.
- Aqui só para nós, é claro, depois do aviso do teu avô nunca mais fizeste a
brincadeira de te esconderes atrás dos reposteiros para gravar qualquer coisa, nunca
mais? Ou voltaste a fazer gravações?
- Claro, continuei a fazer. Fiz uma data delas.
- E não tinhas medo que o avô te apanhasse?
- Não -disse Rick, seguro de si.- Tinha cuidado, e, além disso, era mais
divertido correr o risco.
- Bem, és muito valente - disse Collins. - Fizeste algumas gravações do teu
avô?
- Com certeza. Muitas. Era sempre ele que falava. Há de ouvir algumas das
fitas que gravei.
Collins olhava fixamente para Rick. Avança com cuidado, dizia-lhe uma voz
interior, com muito cuidado, não o assustes.
- Então guardaste fitas do teu avô? Mesmo da última noite, quando estava
com o diretor Tynan e sofreu o ataque?
Collins conteve a respiração.
- Sim - disse o rapaz - e foi terrível estar ali escondido quando toda a gente
começou a mexer-se por todo o lado.
- Queres dizer, depois do teu avô ter o ataque?
- Sim. - Pegou no gravador. - Mas antes disso gravei a conversa toda.
- Não estás a brincar, Rick? Não posso acreditar. Então, conseguiste gravar a
última conversa de Noah, do teu avô com o diretor Tynan? Gravaste tudo isso?
- Foi fácil. Tal como o gravei a si há pouco. O diretor Tynan estava sentado
no lugar onde a avozinha esteve. O senhor Adcock estava naquela cadeira, ali.
Falaram do Documento R, disso que estava a falar com a avozinha.
Lentamente, Collins endireitou-se na cadeira, sentindo um arrepio no interior
do corpo e os braços a ficarem em pele de galinha. As últimas palavras de Noah
Baxter e as suas suspeitas eram confirmadas. Esforçou-se por manter a voz calma.
- Dizes que o diretor Tynan e o teu avô falaram do Documento R? Ouviste-os
falar disso? Não estarás enganado?
- O avozinho não falou. Foi só o diretor Tynan.
- E quando é que isso aconteceu?
- Antes de levarem o avozinho para o hospital. Foi a última vez que o diretor
Tynan cá esteve. Ele estava a falar com o avô, quando ele teve o ataque de repente.
- E ouviste tudo o que o diretor Tynan disse?
- Claro - disse Rick. - Estava atrás do reposteiro como há bocado. Tinha o
gravador ligado. Gravei-o exatamente como a si.
- E a gravação ficou boa? Quer dizer, as vozes ficaram bem?
- Já ouviu este gravador, é uma perfeição - disse Rick orgulhoso. - Voltei a
passar a fita na manhã seguinte, quando a avozinha estava no hospital. Não faltava
nada. Estava lá tudo.
Collins deu um estalo com a língua.
- Que rica máquina que tu tens. Hei de arranjar uma assim. Fez uma pausa. -
Ah, e a fita? Apagaste-a? Ou ainda a tens por aí?
O coração quase lhe parou enquanto esperava pela resposta do rapaz.
- Não, nunca apago as gravações - disse Rick.
- Então tens cá a gravação?
- Já não tenho. Não guardei nenhuma com a voz do avozinho. Quando o
avozinho adoeceu, peguei na última fita, escrevi nela PGA, quer dizer, Procurador-
Geral Avozinho, e a seguir, Janeiro. Peguei nela e nas outras e coloquei-as na gaveta
de cima (que estava aberta) do arquivo especial do avozinho, juntamente com as
outras gravações que ele fazia, porque ali estava segura.
- Mas o arquivo especial foi levado, não foi?
- Sim, por uns tempos.
- Rick, lembras-te do que estava nessa última fita que gravaste do diretor
Tynan e do avozinho? Lembras-te do que disseram sobre o Documento R?
Collins esperava. Sabia que a velha frase era verdadeira. As pessoas
esperavam mesmo sufocadas. O rapaz contraiu o rosto.
- Não prestei muita atenção. Só queria fazer a gravação. Na manhã seguinte
quando voltei a passá-la, só quis ver se tinha apanhado tudo.
- Mas deves lembrar-te de alguma coisa do que ouviste. Disseste que ouviste
o diretor Tynan falar do Documento R.
- Disse - confirmou Rick. - Falou disso, mas não me lembro demais nada. O
diretor Tynan estava sempre a falar e então o avozinho caiu doente. Houve muitas
correrias e apareceu a avozinha a chorar.
Fiquei com muito medo e desliguei o gravador. Fiquei escondido até chegar a
ambulância. Quando toda a gente foi para a porta, saí do reposteiro e corri para o
meu quarto.
- Não te lembras demais nada?
- Lamento, mas...
Collins deu uma palmadinha no braço do rapaz.
- Já é muito - disse agradecido.
Hannah Baxter voltava à sala.
- Esse rapaz está outra vez a ser uma peste e a aborrecê-lo com o gravador,
Christopher?
- De maneira nenhuma. Tivemos uma conversa muito interessante. Rick deu-
me uma boa ajuda.
- Quanto a Harry Adcock - disse Hannah -, estive à procura na agenda de
Noah. Sim, a entrevista dessa noite foi marcada para os dois.
- Bem me parecia - disse Collins, piscando o olho a Rick e levantando-se. - É
melhor ir andando. Muito obrigado pela atenção que me deu, Hannah. E para ti,
Rick, muito obrigado também. Se alguma vez procurares emprego no Departamento
de Justiça, pergunta por mim.
Ao chegar à porta de entrada, Collins tinha certeza de que já não podia estar a
chover nem tempo encoberto. No entanto, ainda chovia e o tempo ainda estava
encoberto.
O sol a brilhar estava na cabeça de Collins. Só havia uma nuvem.
O arquivo pessoal de Baxter estava no gabinete privativo do diretor do FBI,
no edifício J. Edgar Hoover.
- Pagano - disse Collins assim que entrou no carro -, deixe-me na primeira
cabina telefônica que vir. Tenho que fazer uma chamada importante.

Capítulo décimo

A tarde já ia alta quando a limusine deixou Chris Collins diante do edifício


ornamentado a vermelho que abrigava a Repartição de Imprensa do Governo.
- Estacione entre as ruas G e H - ordenou Collins a Pagano. Pode vir buscar-
me dentro de meia hora.
Passou por um grupo de rapazes negros que conversavam perto da entrada,
penetrou no edifício, mas não chegou a entrar na sala das publicações. Depois de
consultar o relógio de pulso, voltou para trás pelo mesmo caminho até ao passeio
fronteiro. Olhou em volta cautelosamente, para se certificar que não era seguido.
Considerava bastante provável que Tynan já não se preocupasse em mandá-lo seguir
desde a conversa que o levara à rendição. No entanto, tinha dado uma chave de casa
a Van Allen para que ele fizesse uma busca eletrônica que lhes garantissem poderem
fazer chamadas telefônicas e falar à vontade nessa noite.
Satisfeito, Collins começou a andar em direção aos Correios Centrais da
cidade. Na esquina da Rua E, voltou à esquerda e encaminhou-se para a estação da
União.
A chuva tinha parado e o ar estava limpo. Inspirando profundamente, Collins
caminhou em longas passadas, sentindo-se entusiasmado, cheio de excitação e de
expectativa.
Ia ser difícil, sabia-o, mas agora havia uma possibilidade.
Aproximando-se da fachada clássica da estação da União, evitou vários táxis
repletos de passageiros, ignorou a bicha dos recém-chegados cheios de malas que
esperavam transporte e entrou na estação.
O imenso átrio da estação da União (inspirado na câmara central dos Banhos
de Diocleciano, segundo lera) estava quase vazio. Vagueou até ao quiosque de livros
e revistas, espreitou para dentro, comprou um exemplar do Washington Post e
concluiu que tinha sido o primeiro a chegar.
Tinham escolhido o átrio da estação como ponto de encontro seguro, porque
os agentes do FBI já nunca saíam de Washington de comboio, nem mesmo para
viagens curtas até Filadélfia. Sob a direção de Tynan, todos eles se deslocavam de
avião ou de helicóptero. O aparecimento de um homem do FBI na estação seria
imediatamente notado e poderiam ser tomadas medidas para o evitar.
Collins sentou-se numa cadeira desocupada em frente da entrada da estação,
abriu o jornal de par em par, mas não se deu ao trabalho de o ler. Por cima do
cabeçalho, mantinha os olhos postos na porta.
Não teve de esperar muito tempo. Passados minutos, um homem de meia
idade com cabelos cor de areia, atravessava a porta. Olhou na direção de Collins,
acenou ligeiramente e dirigiu-se ao quiosque das revistas. Procurou nas prateleiras,
pegou num jornal, pagou-o e aproximou-se de Collins.
Tony Pierce instalou-se numa cadeira ao lado de Collins.
- Não me posso esquecer - disse Pierce a meia-voz. - É fantástico. O miúdo
apanhou mesmo a conversa com o seu gravador Mickey Mouse?
- É o que ele diz. E talvez seja um bom aparelho. Ele não tinha dúvidas de
que a fidelidade da gravação era perfeita.
- E ouviu Tynan falar do Documento R?
- É verdade.
- E como é que podemos reconhecer a fita?
- É uma cassette Memorex, marcada PGA e datada de Janeiro pela mão de
Rick. Deve ser fácil encontrá-la entre as de Noah. Noah usava fitas Norelco de
tamanho pequeno, cassettes de quinze minutos e 2 1/4 por 21/2 polegadas, para os
ditados feitos em casa.
- Você fez um bom trabalho de casa - disse Pierce bem disposto.
- A questão não é como identificar a fita - disse Collins-, a questão é apanhá-
la. Como lhe disse, está na gaveta superior do arquivo de Noah, no gabinete de
Tynan.
- Também fiz o meu trabalho de casa - disse Pierce. - Tynan deve estar no
gabinete até às oito e quarenta e cinco da noite. A essa hora, sai do gabinete para
seguir no vôo para Nova Iorque; depois, no aeroporto Kennedy, apanhará o vôo das
onze para S. Francisco; daí, partirá de automóvel para Sacramento.
- Quanto mais longe, melhor.
- O gabinete dele deve ficar vazio. Estaremos por ali perto. Quando nos
avisarem que a costa está livre, você e eu entramos no edifício Hoover pela porta da
10.a Rua. Disse-lhe que tínhamos dois informantes no FBI; um deles está no turno
da noite e deixa-nos entrar. Providenciará para que a porta do gabinete de Tynan não
esteja trancada.
- Mas o arquivo de Noah pode estar fechado.
- Sim, deve estar - concordou Pierce. - É um modelo antigo, marca Victor
Firemaster, com uma fechadura de segredo. Eu abro-a. Já lhe disse que também
fizemos o nosso trabalho de casa.
- Ótimo - disse Collins com admiração.
- A respeito da sua mulher...
- Sim?
- Pode ficar descansado. Jim Shack já sabe onde ela está em Fort Worth. Está
bem.
- Onde é que ela está?
- Shack não disse. Não faz mal. O que importa é que já demos uma olhadela
pelo dossier da senhora Collins. Já temos o nome e a morada da testemunha que
Tynan está a esconder. É uma tal Adele Zurek que vive em Dálias. Este nome diz-
lhe alguma coisa?
- Karen nunca o mencionou.
- Naturalmente. Era uma empregada substituta. Nos dias em que a empregada
habitual da sua mulher estava de folga, Zurek substituía-a. Jim Shack foi procurá-la
esta tarde. Se tiver alguma coisa para contar, telefona-lhe à noite.
- Mas nós estamos fora.
- Ele sabe. Telefona-lhe depois das dez e continuará a tentar até o encontrar.
- Obrigado, Tony.
- Então, hoje à noite encontramo-nos na esquina da Rua E e da 12.a Rua. É a
dois quarteirões do FBI. Há uma casa de hamburgers com um letreiro de néon por
cima, que diz: ''Fill-Up Café''. Esteja lá às oito e meia em ponto.
- Estarei - garantiu-lhe Collins. - Espero bem que a possamos tirar -
acrescentou com ansiedade.
- Não se preocupe com isso - disse Pierce. - Esperemos é que essa fita valha
todos os nossos esforços.
- Foi Noah que relacionou o Documento R com a 35.a emenda e que nos
avisou que era perigoso, que tinha de ser divulgado. Temos de confiar nele.
- Esperemos que assim seja - disse Pierce. - Porque é a nossa última
oportunidade até amanhã. Apostamos tudo nisso.
Enquanto metia o jornal no bolso, olhou em volta.
- Muito bem. Saio primeiro. Até logo à noite.
- Até logo.
Eram oito e meia quando Chris Collins, enervado pela trepidação, desceu do
táxi na esquina da Rua E com a 12.a Rua. A curta distância da esquina, um letreiro
de néon vermelho e branco dizia ''Fill-Up Café".
O balcão estava cheio, mas eram poucas as mesas brancas de fórmica que
estavam ocupadas e, na mais distante, ao canto, estava Tony Pierce.
Collins abriu caminho através do restaurante e sentou-se junto de Pierce, que
comia serenamente o último sanduíche.
- Foi pontual - disse Pierce entre duas dentadas.
- Estou terrivelmente nervoso - confessou Collins.
- Porquê? - perguntou Pierce, limpando a boca a um guardanapo. - Vai
apenas visitar o gabinete do diretor do FBI. Já lá esteve antes.
- Mas não quando ele não estava.
Pierce riu em surdina.
- Ora aí está! Agora vamos adiantar o programa. O que é que vai fazer depois
de ter nas mãos a coisinha?
- Bem, a gravação de Rick só pode dizer-nos onde está o Documento R.
- Seja como for, o que é que faz quando tiver a fita?
- Se for contundente como Noah deu a entender, telefonarei imediatamente
para Sacramento. Tentarei encontrar o lugar-tenente do Governador, que é o
Presidente do Senado da Califórnia. Dir-lhe-ei que tenho provas vitais que devem
ser objeto de apreciação para a votação final da 35.a emenda e pedir-lhe-ei que me
marque uma audiência de manhã perante o Comitê Judicial, assim que Tynan acabar
a sua declaração. Tenho esperança de poder anulá-la.
- Perfeito - disse Pierce. - Amanhã à noite, a esta hora estaremos a festejar
num restaurante de classe.
- Ainda falta muito para amanhã à noite - disse Collins.
- Talvez. Ande lá, tome uma chávena de café comigo. Ainda temos tempo.
Foi-lhes servido o café. Quando começavam a beber, Pierce apontou para a
porta atrás de Collins.
- Aí vem ele.
Collins olhou.
Van Allen aproximava-se por entre as mesas e o balcão. Chegou junto deles e
curvou-se.
- O caminho está livre - murmurou. - Tynan saiu para o aeroporto há dez
minutos.
Pierce pousou a chávena, deixou uma gorjeta na mesa e empurrou a cadeira.
- Vamos embora.
Depois de Pierce ter pago a conta, entraram na Rua E. Percorreram
rapidamente os dois quarteirões que os separavam do objetivo. Nenhum deles falou
até chegarem à Rua E e à esquina da 10.a. A estrutura maciça de cimento do FBI
surgiu diante deles, do outro lado da rua.
- É aqui que me separo de vocês - disse Van Allen. - vou ficar do outro lado
da rampa de estacionamento, para o caso de alguma coisa correr mal ou de Tynan
regressar. Se isso acontecer, irei ter com vocês antes dele. Felicidades para ambos.
Viram-no afastar-se. Pierce pegou no braço de Collins.
- Apressemo-nos.
Atravessaram a rua e seguiram lestos pela 10.a Rua junto ao edifício J. Edgar
Hoover. Pierce subiu a dois e dois o íngreme lance de degraus, esforçando-se
Collins por seguir na sua pegada. Não se via ninguém lá em cima junto das portas de
vidro fechadas. De repente, um vulto destacou-se da escuridão interior. Abriu a
porta e deixou-a ficar entreaberta.
Pierce empurrou Collins para dentro e seguiu atrás dele. Collins só tinha visto
de relance o agente que os tinha deixado entrar. Era um homem novo, de cara
estreita, vestido de escuro, que murmurava qualquer coisa a Pierce; este respondeu-
lhe que sim com a cabeça, esboçou um cumprimento e juntou-se a Collins.
- Espero que esteja em boa forma - disse Pierce baixinho. Vamos evitar o
elevador e as escadas estão fechadas. Temos de subir até ao sétimo andar.
Dirigiram-se à escada e começaram a trepá-la, tentando Collins acompanhar
Pierce com alguma dificuldade. No terceiro patamar,
Pierce descansou um instante, permitindo que o companheiro recuperasse o fôlego
para continuarem a escalada.
Chegaram ao sétimo andar sem terem encontrado ninguém. O barulho dos
seus passos no átrio interior quebrava o silêncio sepulcral.
Tinham encontrado uma porta com o letreiro DIRETOR DO FBI.
Pierce indicou-lhe uma outra segunda porta sem inscrição. Pôs a mão no
puxador e experimentou-o. A porta cedeu e abriu-se. Pierce entrou com Collins
colado a ele.
Tinham penetrado diretamente no gabinete particular de Tynan, fracamente
iluminado pela pequena lâmpada ao lado do sofá.
Collins ficou irresoluto, perscrutando o gabinete. A escrivaninha de Tynan
estava à esquerda, em frente das janelas que davam para a 9.a Rua, para a sede do
Departamento de Justiça de Collins. À direita, havia um conjunto de móveis: sofá,
mesa de café e duas cadeiras de braços.
Não se viam arquivos.
- Estão na sala de vestir - murmurou Pierce, apontando por cima da mesa de
café para uma porta aberta.
Passaram entre a mesa e as cadeiras e entraram na estreita sala de vestir.
Pierce procurou o interruptor da luz e ligou o candeeiro do teto. Tinham à frente o
arquivo verde da marca Viciar Firemaster, o arquivo de Noah Baxter.
A fechadura de segredo era por baixo da terceira gaveta. Pierce experimentou
cada uma das gavetas. Estavam todas bem fechadas. Então, esfregou os dedos da
mão direita na coxa.
- Muito bem - murmurou. - Vamos a isto. Deve ser fácil.
Dextro como um arrombador de cofres, Pierce girou os botões da fechadura
de segredo. Collins olhava para ele, pensando nos minutos que passavam.
Decorridos três minutos, que mais pareceram três horas, a incerteza de Collins
estava a tornar-se insuportável.
Ouviu Pierce soltar um suspiro de satisfação, viu-o puxar a terceira gaveta e
abri-la parcialmente.
Pierce levantou-se, puxou para trás a gaveta superior e recuou.
- Está à sua disposição, Collins.
Com o coração aos pulos, Collins avançou. Olhou para dentro da metade
aberta da gaveta, repleta de cassettes pequenas Norelco,
metidas em pequenas caixas de plástico; além destas, havia meia dúzia de cassettes
maiores, do tipo das que Rick tinha usado.
Meteu a mão dentro da gaveta, quando subitamente outro foco de luz emergiu
na sala e o som de uma voz áspera, por detrás deles, os paralisou.
- Boa noite, senhor Collins - cumprimentou a voz. - Não se incomode.
A porta da casa de banho estava agora aberta e a figura compacta de Harry
Adcock ocupava-a. A sua atitude era vincada por um sorriso horrível.
Estendeu a palma de uma das mãos, enorme como um presunto, exibindo
uma cassette Memorex. A caixa de plástico já tinha sido aberta.
- É disto que os senhores estão à procura? - perguntou. - Do Documento R?
Pois está aqui. Podem vê-lo bem. - Com os dedos separou os dois lados da cassette e
pôs de lado a caixa de plástico. Então, com o olhar sempre fixo neles, meteu um
dedo sob a fita e desprendeu-a, desenrolando-a vagarosamente. Lançando o plástico
para o tapete, agitou a estreita fita castanha à frente deles.
Pelo canto do olho, Collins viu a mão de Pierce mergulhar no bolso do
casaco, mas a mão livre de Harry Adcock deslocou-se ainda mais depressa para o
coldre junto ao ombro e já empunhava uma Magnum 357 de cano fino que apontava
para eles.
- Não experimente, Pierce -disse Adcock. - Aqui, o senhor Collins vai segurar
nesta fita por um momento. - Pôs a fita na mão lívida de Collins, andou de lado,
pulou para perto de Pierce, apanhou e meteu ao bolso a pistola especial da polícia,
calibre 38, que Pierce trazia. Sorriu para ambos. - Um tiroteio entre o adjunto do
diretor do FBI e um assistente oficioso do Procurador-Geral ficava lindamente nos
jornais, não ficava?
Afastou-se e retomou de Collins a ponta emaranhada da fita.
- Foi o mais perto do Documento R que conseguiu chegar, senhor Collins.
Segurando a fita numa das mãos e a arma na outra, sempre apontada para
eles, recuou para o banheiro e começou a puxar lentamente a fita para dentro.
- Vejam-na bem pela última vez - disse Adcock. - Nunca houve um
documento, fiquem a saber. Nunca houve um papel.
Também não deveria estar gravado. As coisas mais importantes do mundo estão
geralmente dentro da cabeça e em mais nenhum lado. O pé de Adcock tinha
levantado a tampa da privada. Suspendeu a fita sobre a abertura.
- Espere um minuto - pediu-lhe Collins. - Ouça-me antes de...
- Primeiro ouça isto. - Adcock lançou a fita, recuou, carregou no manipulo do
autoclismo e a água correu. Parecia divertido com o barulho da água a descarregar.
Depois sorriu. - Foi para o esgoto, como as suas esperanças, senhor Collins. - Saiu
da casa de banho. Agora diga-me o que queria dizer, senhor Collins.
Collins cerrou os lábios e não disse nada.
- Bem, meus senhores, toca a sair. - Fez um gesto com o revólver na direção
do gabinete de Tynan.
Adcock ficou imóvel até eles chegarem ao meio do gabinete. Depois avançou
de lado, como um caranguejo, até junto da mesa de Tynan, estendendo a mão para o
grande gravador prateado do diretor.
Adcock voltou-se para Collins.
- Não sei que espécie de Procurador-Geral é o senhor, mas tenho certeza que
não daria sequer para ser um agente do FBI pouco esperto. Um bom agente não
menospreza nada. O senhor e os seus rapazes esquivaram-se à maior parte da cidade
para esconderem a visita secreta que aqui vinham fazer esta noite, mas houve uma
coisa de que se esqueceram.
Carregou no botão de reprodução do gravador de Tynan.
As vozes que saíam do amplificador eram bem audíveis, nítidas e
identificáveis.
A voz de Rick: ''Quando o avozinho adoeceu, peguei na última fita, escrevi nela
PGA, quer dizer, Procurador-Geral Avozinho, e a seguir, Janeiro. Peguei nela e nas
outras e coloquei-as na gaveta de cima (que estava aberta) do arquivo especial do
avozinho, juntamente com as outras gravações que ele fazia, porque ali estava
segura."
A voz de Collins: "Mas o arquivo especial foi levado, não foi?"
A voz de Rick: "Sim, por uns tempos."
Adcock tinha estado a gozá-lo. Agora o seu dedo carregava noutro, botão,
desligando o aparelho.
- A única coisa que não evitaram foi a mãe de Vernon Tynan. Ouviu dizer
que iam a casa de Hannah Baxter e comunicou-lhe.
Poderá subestimar o FBI, senhor Collins, mas nunca subestime o amor de uma mãe,
o prazer que uma mãe tem em conversar com o seu filho e as suas amigas.
Agitou novamente o revólver na direção deles.
- Podem sair do gabinete pelo mesmo caminho por onde vieram. Estarão no
átrio dois agentes para os acompanhar até à saída. Boa noite, meus senhores. Desta
vez podem sair do edifício pela porta principal.
Foi a viagem mais longa que Collins já tinha feito até à sua casa em
MacLean, na Virgínia.
Esmagado, enterrava-se no assento da frente do carro alugado de Pierce,
enquanto este, uma imagem de desânimo, ia conduzindo. Atrás sentava-se Van
Allen que se sentia igualmente destroçado.
Quase não falaram até pararem em frente da residência de Collins.
Quando o carro estacou, Pierce disse:
- Bem, não se pode ganhar sempre, mas esta partida foi muito mal perdida.
- Parece-me que é o fim da estrada - disse Collins. - Amanhã o país é deles.
- Receio que sim.
- E que diabo, estivemos tão perto - disse Collins. - O Documento R. Tive
essa maldita coisa na mão.
Pierce abanou a cabeça.
- O pulha sádico. Bem, foram mais espertos que nós. Juro-lhe que não sei
como. Porque estava ele babado pela mãe de Tynan?
- Ela deve ter descoberto, suponho que através de Hannah Baxter, que eu a ia
visitar. A mãe de Tynan deve-lhe ter dito e ele mandou vigiar a casa de Baxter. Eles
não descuram nada. Enfim... Abriu a porta. - Meus senhores, para usar o termo de
Adcock, sinto-me suficientemente suicida esta noite para me embebedar. Vou fazê-
lo.
Querem acompanhar-me?
- Porque não? - disse Pierce, desligando a ignição.
Dirigiram-se para a porta da entrada. Collins procurou a chave, abriu a porta
e deu-lhes passagem.
Tinham acabado de chegar à sala de estar, quando o telefone começou a
tocar.
- Eu atendo - disse Collins olhando Pierce. - É seguro? Posso usar o meu
telefone?
- Toda a casa foi verificada - garantiu-lhe Pierce.
- Ótimo. As bebidas estão na mesa e o gelo está na cozinha.
Aproximou-se do telefone que tocava persistentemente.
- E para mim, arranjem-me cicuta com gelo.
Levantou o auscultador, quase o deixando cair, e acabou por o conseguir
levar ao ouvido.
- Está!
- Senhor Collins?
- Sim?
- Tenho estado a tentar apanhá-lo. Daqui fala Jim Shack de Fort Worth.
Tenho boas notícias para si. Não vou agora entrar em pormenores, mas passei toda a
tarde em Dálias com Adele Zurek, a testemunha que Tynan afirmava ter visto a sua
mulher cometer o assassínio. Era mentira, pura mentira. E o mesmo no que se refere
à conduta sexual reprovável de Karen. Pura invenção.
Collins ouvia aliviado.
- Interroguei Zurek durante horas, e quando lhe prometi que o senhor a
protegeria, ela abriu-se completamente. Confessou que Tynan tinha feito chantagem
com ela (tem um episódio no passado que a torna vulnerável). Tynan descobriu-o e
usou-o para fazer pressão sobre ela. Prometeu não a denunciar se ela fizesse o seu
jogo. Ela ficou demasiado assustada para não concordar. Mas quando eu lhe prometi
que não seria perseguida, despejou o saco. A verdade é que tinha ouvido a zanga
entre os Rowley. Não era a primeira vez. Continuou em casa, acabou o trabalho e
foi-se embora já depois da senhora Collins ter saído; ao atravessar a rua, viu um
carro parar. Saiu dele um homem, que não pôde distinguir bem e que se dirigiu à
porta da rua e entrou. Ela ficou a olhar, ali perto, espantada com a entrada e sem
saber o que fazer, quando ouviu um tiro dentro de casa. Ficou cheia de medo e
fugiu. No dia seguinte, quando soube que Thomas Rowley estava morto, teve receio
de se dirigir às autoridades devido ao seu passado. Não queria ser envolvida no
assunto, mas Tynan implicou-a recentemente. A respeito do homem que deve ter
assassinado Rowley, parece haver indícios que este andava metido com a mulher
dele e que o homem descobriu. Podemos prosseguir com o assunto se quiser.
- Agora já não interessa - disse Collins. - O que foi importante foi ter
encontrado a ponta da meada. Não imagina como lhe estou grato. Uma vez que
Karen está bem...
- Está ótima. Está aqui na sala comigo, à espera de lhe poder falar.
- Chame-a.
Esperou, depois ouviu-a falar e sentiu que a amava mais do que nunca.
Ela chorava, mas sentia-se feliz.
Com a voz pouco firme, começou a contar novamente tudo o que lhe tinha
sucedido. Ele interrompeu-a e disse-lhe que não era preciso. Já lhe tinham contado
tudo.
- Oh, Chris - disse ela, tentando dominar-se - , foi um pesadelo.
- Já passou, querida. Vamos esquecer isso.
- Mas o que é importante, a coisa mais importante - disse ela -, é que não
tenhas problemas comigo devido a Tynan. Podes ir à Califórnia... demitires-te e ir à
Califórnia prestar declarações enquanto é tempo. Vais, não vais?
O regozijo dele desvanecera-se e a pergunta fizera-o voltar ao estado em que
se encontrava antes do telefonema.
- É demasiado tarde, querida - disse-lhe desalentado. - Já não importa o que
eu possa dizer. Tynan ganhou. Pôs-me fora de combate mesmo no fim.
- Que queres dizer com isso?
- É muito comprido para te contar agora. Só quero dizer-te que voltes para
casa.
- Quero saber tudo imediatamente. Que se passou?
Embora fatigado, contou-lhe o que tinha acontecido. Narrou-lhe os fatos
desse dia com os seus êxitos e o final infeliz. Contou-lhe o que se passara de manhã,
quando soubera acidentalmente que Rick Baxter gravara o texto do Documento R.
Contou-lhe o plano para recuperar a fita que o rapaz colocara no arquivo do coronel
Baxter. Contou-lhe a ida ao gabinete de Tynan e como este soubera antecipadamente
da visita; como Adcock os esperava com a fatídica fita e a destruirá à sua frente.
- E foi assim, Karen - concluiu. - Está tudo acabado, foi-se a única prova que
nos podia ter salvo a todos.
Ficou à espera que Karen o lamentasse, mas em vez disso só teve silêncio por
resposta.
- Karen? Karen, está?
De repente, a voz dela irrompeu, viva, excitada.
- Chris, a fita de Rick não era a única prova. Estás a ouvir? Escuta. Deve
haver uma cópia dessa fita.
- Uma cópia? Que estás a dizer?
- Sim, ouve. Lembras-te da noite em que jantamos com... ah, como é o nome
dele? O escritor fantasma de Tynan, aquele que te fez um favor...
- Ishmael Young?
- Sim. Na noite em que jantamos com Ishmael Young no Jockey Club,
lembras-te? Ele estava ressentido porque Tynan o tinha ludibriado duas vezes.
Tynan tinha prometido consentir que a noiva dele viesse da Europa, se Young lhe
preparasse a autobiografia. Mas depois, ao ler uns documentos recentes que tinha de
copiar do arquivo do coronel Baxter, tinha descoberto que Tynan o estava a
mistificar e que não ia conseguir a entrada da noiva apesar da promessa. Chris,
compreeendes o que estou a dizer?
- Não sei bem. - Tentava tirar conclusões. - Desculpa, mas estou confuso.
- Naquela noite, Ishmael Young disse-nos... até posso reproduzir as palavras
exatas... disse-nos: "Veio-me parar às mãos todo um novo arquivo com material
complementar para o livro: papéis, gravações, papeleiras. Tynan deu-me para copiar.
Muita coisa era do anterior Procurador-Geral. Tenho de tirar os meus apontamentos
e devolver os originais a Tynan." Compreendes agora, Chris? Ele disse-nos que
tinha tirado cópias de muitas coisas do arquivo particular do coronel Baxter. Tynan
queria que ele visse tudo para a autobiografia. E isso foi antes de Tynan saber que
uma das fitas era a que tinha sido feita por Rick. Se Ishmael Young tirou uma cópia,
como tirou de tudo o mais, então a gravação de que precisas, o Documento R, ainda
existe e é Ishmael Young quem a tem. Não sei o que ele copiou, mas se o fez...
- Deve ter feito! - explodiu Collins. - Tu és genial, Karen! Amo-te. Vou tratar
disso imediatamente. Encontramo-nos aqui.
Ishmael Young não estava em casa.
Depois de ter relatado aos seus companheiros a possibilidade de êxito que
tinha surgido, Chris Collins procurara inutilmente o número de telefone de Young
na sua agenda. Concluira que não o tinha. Rezando para que Ishmael Young não
tivesse um número que não constasse na lista, Collins tentara as informações
telefônicas. Lembrando-se vagamente que Young vivia em Fredericksburg, na
Virgínia, Collins pedira a informação. Pouco depois ficara a saber não só o número,
mas também o endereço.
Telefonara a Ishmael Young e aguardara nervosamente que a sua voz se
fizesse ouvir. Por fim, ouvira-a. Mas era a gravação de um recado. A voz
respondera: ''Olá. Sou Ishmael Young. Vou sair à noite. Não devo voltar antes da
uma da manhã. Faça o favor de deixar o seu número e nome. Não comece a falar
sem ouvir o sinal."
Collins não se dera ao trabalho de deixar o nome ou recado. Desligando,
calculara que chegariam a Fredericksburg quando Young estivesse de volta.
Tinham-se sentado na sala de estar, a trocar impressões sobre a possibilidade
de Young ter feito uma cópia da fita de Rick juntamente com as do restante material
do arquivo de Baxter. Não beberam muito. Tinham ficado muito animados com a
esperança que ressurgira. Viram o relógio, retomaram a mesma discussão,
levantando-se e sentando-se constantemente.
Por volta das onze horas, Collins perdera a paciência.
- Estão demasiadas coisas em jogo para ficarmos aqui sentados sem fazer
nada. Vamos já para Fredericksburg e esperamos lá. Pode ser que ele chegue mais
cedo.
Pierce e Van Allen concordaram.
Regressaram a Washington no carro de Pierce, dirigindo-se depois para
Fredericksburg.
Uma hora e cinco minutos mais tarde, paravam diante do pequeno chalé que
Ishmael Young tinha alugado e arrumaram o carro. Collins saiu do lugar da frente,
atravessou o passeio e tocou várias vezes à campainha. Depois, espreitou para dentro
de casa por uma janela cuja porta não estava completamente fechada.
Voltou para junto dos outros.
- Parece que ainda não está ninguém. Só tem uma luz acesa, o resto da casa
está às escuras. Temos de esperar outros quinze minutos.
À uma menos cinco, surgiram faróis no extremo da rua. Estava a chegar um
carro vermelho de desporto. Aproximou-se, ultrapassou-os e estacionou.
A porta do automóvel abriu-se. Uma figura baixa e roliça saiu com esforço,
deu volta ao carro, parou no relvado, olhando-os fixamente e correu para a porta de
entrada.
Collins, que estava meio fora do carro, pôs-se de pé.
- Ishmael! - gritou. - Sou eu, Chris Collins.
Young, que já se esquivava para dentro de casa, parou e voltou-se, enquanto
Collins se aproximava dele seguido pelos companheiros.
- Chris - suspirou Ishmael Young, quase desmaiando de alívio -, pensei que
me queriam assaltar a casa ou qualquer coisa assim. Vocês pareciam suspeitos ali
parados. -Apertou as mãos a Pierce e Van Allen. - Mas o que é que se passa? Por
aqui a esta hora?
- Vou explicar - disse Collins, apresentando rapidamente os dois amigos. -
Estamos aqui porque talvez nos possa ajudar. É um assunto da maior importância.
- Vamos para dentro - disse Young.
- Obrigado - respondeu Collins. - Não podemos desperdiçar um minuto.
Uma vez reunidos na sala de estar, Young despiu o casaco de bombazina,
olhando para eles interrogativamente.
- Parece que é um caso urgente, mas não sei em que poderei ajudá-los.
- Pode ajudar e muito - disse Collins. - Quer ver a 35.a emenda derrotada?
- Se quero? Faria tudo no mundo para a derrotar. Mas não há hipóteses,
senhor Collins. A votação na Califórnia é hoje à tarde...
- Há uma possibilidade. Depende de si. Onde é que tem o material para o
livro de Tynan?
- Aqui, na sala ao lado, na sala de jantar. Converti-a em escritório. Querem
ver?
Confuso, levou-os para uma sala pequena, que parecia um escritório
improvisado. Perto da janela da fachada, estava uma velha mesa de tampa corrediça.
Ao lado, num forte suporte, estava uma máquina de escrever elétrica IBM.
Encostada à parede oposta, estava a mesa de jantar, também juncada de papéis,
pastas e utensílios. Na ponta estava um gravador Wollensak. Havia mais dois
gravadores numa cadeira diante da mesa, um Norelco de sete polegadas e um Sony
portátil. Dois arquivos de cartas estavam encostados a uma terceira parede.
- É um chiqueiro - desculpou-se Ishmael Young -, mas é assim que trabalho.
Ouça, senhor Collins, espero que tenha recebido o meu bilhete de agradecimento.
Foi extraordinário da sua parte, arranjar esse caso de imigração. Não lhe posso
exprimir quanto Emmy e eu lhe devemos.
- Não me deve nada. Mas pode auxiliar-me, a mim e a todos nós, agora
mesmo. Diz que é aqui que faz as suas pesquisas? Muito bem, há um documento que
eu quero ver, se o tiver.
Young empurrava o cabelo para cima da calva, preocupado.
- É claro que desejo ajudá-lo de todas as formas possíveis, mas, como sabe,
muito deste material é confidencial. Jurei por minha honra a Vernon T. Tynan que
ninguém o veria. Porque se ele descobre que lhe mostrei alguma coisa... -
Interrompeu-se. - Que vá para o diabo. O senhor arriscou o pescoço por minha
causa. Tenho de lhe retribuir. O que quer?
- Lembra-se quando jantamos no Hockey Club? Você referiu de passagem
que Tynan lhe tinha emprestado parte ou todo o arquivo confidencial do coronel
Baxter, para tirar cópias, para copiar as cartas e gravações, para as suas pesquisas de
preparação do livro. Fez cópias de tudo o que estava no arquivo de Baxter?
Ishmael Young fez que sim com a cabeça.
- Praticamente tudo. É claro, tudo o que pertencia a Tynan. À exceção das
gravações...
O coração de Collins caiu-lhe aos pés.
- ... Já está tudo pronto - continuou Young. - Quanto às gravações, o que tirei
foram reproduções (é por isso que vêem ali dois gravadores; tive até de alugar um),
mas ainda não acabei de passar todas as fitas. É uma tarefa aborrecida. Tenho de a
fazer sozinho, porque Tynan não quer que seja ajudado por estranhos. Só há três dias
é que comecei a copiar à máquina o que está nas fitas.
O coração de Collins reanimou-se.
- Mas reproduziu ou copiou todas as fitas do arquivo de Baxter?
- Tudo o que Tynan me deu, e julgo que me deu tudo.
- Como foi que as reproduziu? - perguntou Collins.
- Bem, há dois tamanhos, por isso tive de usar dois gravadores para as passar
para o meu Wollensak grande.
- Ótimo - disse Collins -, dois tamanhos: cassettes miniatura Norelco e
cassettes normais Memorex. Ouviu-as enquanto estava a gravar?
- Seria uma perda de tempo. Há uma ficha e grava-se de um para o outro
silenciosamente.
- Onde estão as cassettes maiores Memorex?
- Devolvi-as a Tynan há alguns dias. Refiro-me às originais. Copiei,
reproduzi talvez seis dias de cassettes em bobinas maiores.
- Sabe o que está nessas fitas?
- Até passar as reproduções à máquina não sei, mas identifiquei cada cassette
e anotei a ordem por que foi reproduzida no gravador grande. Cada cassette tem
uma identificação ou data. Fiz uma espécie de índice. - Foi à mesa e trouxe várias
folhas de papel presas umas às outras. - Pode ver.
- Procuro uma cassette Memorex especial. Está marcada PGA e datada de
Janeiro. Pode ajudar-nos?
- Deixe-me procurar.
Ishmael Young começou a esquadrinhar e a voltar as páginas do seu índice.
Collins observava-o febrilmente.
- Certo, está aqui - anunciou Young, satisfeito consigo mesmo. - Essa fita é a
primeira gravação da minha segunda bobina.
- Tem certeza? Tem-na?
- Estou certíssimo.
- Vitória! - exclamou Collins, eufórico, dando um grande abraço ao escritor.
Ishmael Young estava perplexo.
- O que é que eu fiz?
- Ressuscitou o Documento R.
- O quê?
- Não importa - disse Collins, excitado. - Reproduza a fita. Procure o raio da
bobina em que a reproduziu; ponha-a no gravador e reproduza-a.
Acotovelaram-se os três à volta do grande gravador Wollensak que jazia na
mesa, enquanto Ishmael Young procurava a bobina. Trouxe-a cuidadosamente,
colocou-a no gravador e preparou a fita.
Young ergueu a cabeça e olhou para Collins, Pierce e Van Allen. Disse:
- Não sei do que se trata, mas estou pronto se também estiverem.
- Estamos prontos - disse Collins, inclinando-se para premir a tecla marcada
REPRODUÇÃO.
Os carretos começaram a girar.
Instantes depois, a voz de Vernon T. Tynan enchia a sala.
Capítulo décimo primeiro

Sentado no banco de trás do Cadillac que os levara de São Franscisco aos


subúrbios de Sacramento, Chris Collins, excitadíssimo, inclinou-se mais uma vez
para a frente, dizendo ao motorista :
- Não pode ir um pouco mais depressa?
- Estou a fazer o melhor que posso com este trânsito, senhor replicou o
condutor.
Collins fez um esforço determinado para conter o nervosismo enquanto se
recostava novamente. Acendendo outro cigarro na beata anterior, olhou pela janela e
viu a cidade distante a aproximar-se e a crescer. Estavam na zona ocidental de
Sacramento, notou, e tinham entrado numa área de cruzamentos. O motorista
chegou-se para a faixa da direita, entrando na auto-estrada 275, que em breve os
deixaria na alameda do Capitólio.
Em breve, pensava, mas talvez sem a brevidade necessária.
Era uma ironia, pensou, que o êxito da sua longa busca pudesse ser frustrado
no seu clímax devido a uma conspiração da natureza. O nevoeiro começava a
levantar, bem via, mas o aeroporto Metropolitano de Sacramento ainda devia estar
mergulhado nele.
Em princípio, devia ter chegado a Sacramento de avião ao meio dia e vinte
cinco, hora da Califórnia. O encontro com o deputado Olin Keefe estava marcado
para a uma da tarde no Derby Club de Posey's Cottage, o restaurante onde os
legisladores e políticos se reuniam diariamente para almoçar. Se tudo tivesse corrido
bem, Keefe teria consigo o Adjunto do Governador Edward Duffield, Presidente do
Senado estadual, e o senador Abe Glass, presidente pró tempore do Senado. Collins
teria ainda tempo suficiente para revelar o Documento R aos dirigentes do Senado
antes de este órgão se reunir para votar, às duas horas em ponto.
A votação final realizar-se-ia poucos minutos depois das duas horas, segundo
o tinham informado. A resolução seria lida na Câmara pela terceira e última vez. O
debate seria suspenso, de acordo com o regulamento legislativo. A votação nominal
começaria. Uma vez iniciada, não podia ser interrompida. Uma vez registrada não
podia ser invertida ou sujeita a nova votação. Noutros tempos, mesmo depois de ter
votado contra, a legislatura de um Estado podia considerar novamente a mesma lei,
votá-la outra vez, e alterar a sua posição. Isso tinha acontecido em 1972, quando a
Emenda da Igualdade de Direitos, a 27.a, fora apresentada aos Estados. Dois desses
Estados, Vermont e Connecticut, tinham votado contra, tendo mais tarde alterado os
seus votos. Mas isto já não era permitido na maioria dos Estados, e um desses era a
Califórnia. A votação das duas horas seria decisiva. A 35.a emenda tornar-se-ia lei
do país. Tynan teria acabado por ganhar - e o povo teria perdido.
O seu relógio de pulso dizia-lhe que faltavam dezenove minutos para as duas.
Aspirava profundamente o cigarro, revivendo os acontecimentos da noite, das
primeiras horas do dia, da madrugada. Reviveu-os como se fossem parte do
presente.
Ao deixarem Ishmael Young na posse da gravação crucial, estavam menos
num estado de entusiasmo maníaco que num estado febril. Estavam esgotados. A
sua missão tinha-se tornado uma cruzada. Enquanto se deslocavam de
Fredericksburg para o Departamento de Justiça às duas da manhã, tinham tentado
definir tarefas. Havia muito a fazer, e pouco tempo para tanto.
No gabinete de Collins, estabeleceram as missões respectivas. Collins
chamou a si os telefonemas. Todos concordaram que, usando da autoridade de
Procurador-Geral,
conseguiria que lhe prestassem a atenção necessária. Pierce aceitou a tarefa de
autenticar a gravação através de registros de voz. Todos eles sabiam que a gravação
era verdadeira, mas as outras pessoas podiam exigir uma prova absoluta. Van Allen
preparou-se para marcar as reservas de Collins na Califórnia. Tinha havido uma
breve discussão sobre se deveriam requisitar um avião militar. Collins tinha-se
oposto, por recear que a missão pudesse tornar-se conhecida. Um vôo comercial,
embora mais demorado, era também mais seguro. Van Allen propôs a aquisição de
uma cassette. Uma vez feito o registro de voz, Allen transferiria da incômoda bobina
de Young a parte que continha o Documento R para uma cassette que Collins
levaria.
Todas as missões foram realizadas sem entraves, à exceção de uma que
Collins tinha chamado a si.
O primeiro telefonema de Collins não suscitou problemas. Acordou o diretor de uma
grande rede de televisão de Nova Iorque, invocou a sua autoridade, falou de
emergência, e persuadiu o funcionário a conseguir que o administrador da central de
Washington cooperasse. Feito isto, Pierce fez levantar o Dr. Lenart da Universidade
de Georgetown. Dado que Pierce era um velho conhecido, o criminologista
concordou de boa vontade em examinar as vozes no seu laboratório.
Pierce correu aos estúdios da televisão para obter um filme e a banda sonora
de uma entrevista que Vernon T. Tynan tinha concedido recentemente, bem como
um aparelho de videotape para o passar. Depois, juntando tudo isso à fita de Ishmael
Young, Pierce dirigiu-se ao laboratório do Dr. Lenart na Universidade de
Georgetown. Aí, o renomado perito em identificação de vozes pôs em ação o seu
espectrógrafo de som para selecionar palavras que Tynan tinha pronunciado na
entrevista à televisão e as mesmas palavras proferidas na fita de Ishmael Young. O
aparelho de verificação fazia 400 passagens pelas fitas em cada oitenta segundos,
reproduzindo visualmente uma série de linhas onduladas que correspondiam à fala e
ao volume de voz de Tynan. Quando o Dr. Lenart acabou, estava provado que a voz
da gravação do Documento R era indubitavelmente a de Tynan. O Dr. Lenart
escreveu um certificado de autenticidade e despediu Pierce com a sua prova.
Entretanto, Van Allen, tendo alugado em gravador portátil para Collins levar
para a Califórnia, conseguiu as reservas de avião. O primeiro vôo para Sacramento
saía do aeroporto nacional de Washington às oito e dez da manhã. Collins estaria em
Chicago às nove e oito. Depois haveria uma espera de uma hora entre os aviões;
Collins
partiria do aeroporto O' Hare de Chicago às dez e dez, chegando a Sacramento às
doze e vinte cinco, hora da Califórnia. O programa estava perfeito e Collins ficou
satisfeito. No entanto, era Collins quem tinha problemas com a sua própria tarefa.
Tinha decidido que devia avisar os senadores do Estado da Califórnia da sua
próxima chegada e marcar um encontro com eles antes de a resolução ser votada.
Queria dizer-lhes que tinha uma prova tenebrosa que afetaria a votação do Senado
sobre a 35.a emenda. Queria dizer-lhes isso, e mais nada. Sabia que estava fora de
questão explicar pelo telefone a natureza da prova de que estava de posse. Tinha de
ser ouvida para acreditar e a transmissão pelo telefone era perigosa. Podia ser levada
ao conhecimento de Tynan, que já estava em Sacramento, e ele poderia chegar aos
piores extremos para recuperar o material de Collins e destruí-lo.
Não, só diria aos senadores o suficiente para conseguir uma audiência
imediata após a sua chegada.
Começou por telefonar para casa do Governador-Adjunto Edward Duffield.
Ligou e deixou o telefone tocar e tocar, sem resposta. Ligou mais algumas vezes,
sempre sem resposta. Por fim, convenceu-se que Duffield tinha desligado o telefone
para não ser incomodado de noite. Desistiu de Duffield.
A seguir, tentou o senador Abe Glass, presidente pró tempore do Senado. As
duas primeiras chamadas também não foram atendidas. A terceira, despertou uma
voz ensonada de mulher que respondeu ser a Senhora Glass e que disse que o
marido tinha saído da cidade e só voltaria ao fim da manhã, para ir ao escritório
preparar-se para a votação.
Frustrado, Collins procurou pensar para onde se havia de voltar. Por
instantes, pensou em ligar para a Casa Branca, falar com o Presidente Wadsworth e
entregar-lhe todo o assunto em mãos. Decerto que o Presidente dos Estados Unidos
não teria a menor dificuldade em mandar uma mensagem para Sacramento. Mas
uma coisa preocupava Collins. O Presidente poderia não querer mandar a mensagem
para Sacramento, pretender que a 35.a emenda fosse aprovada apesar do Documento
R, pensando tratar do assunto mais tarde, à sua maneira.
Não, o Presidente Wadsworth era um risco. O mesmo acontecia com o
Governador da Califórnia, amigo pessoal do Presidente.
Era melhor outra pessoa em Sacramento, resolveu Collins.
Decidiu quem seria e pediu uma ligação para o deputado à Assembléia Olin
Keefe. Foi imediatamente atendido.
- Tenciono estar em Sacramento por volta da uma hora da tarde - disse-lhe
Collins. - Tenho uma prova estrondosa contra a 35.a emenda que deve ser conhecida
antes da votação. Pode procurar o Governador-Adjunto Duffield e o senador Glass
em meu nome? Tenho estado a tentar ligar para eles durante toda a noite, mas não
tive sorte e é imperioso que lhes fale.
- Devem ir almoçar ao Derby Club a essa hora. É nas traseiras de Posey's
Cottage. De certeza que estarão lá até às duas menos um quarto. Digo-lhes para
esperarem por si. Eu estarei na companhia deles.
- Diga-lhes que é realmente urgente.
- Farei o meu papel. Venha a horas. Depois de entrarem na sala da Câmara e
de começar a votação já não conseguirá falar-lhes.
- Estarei lá - prometeu Collins.
Tinha ficado combinado e estava mais descansado.
Estendeu-se no sofá do gabinete e dormiu sobressaltado durante duas horas,
até que Pierce e Van Allen o acordaram para o informar que chegara o momento de
partir para o Aeroporto Nacional.
Tudo corria como combinado, em ordem. Saiu de Washington a horas e
chegou a Chicago a horas. Contava aterrar também a horas em Sacramento.
Mas, a uma hora de Sacramento, o capitão do jato 727 anunciou que forte
nevoeiro inesperado tinha coberto o aeroporto de Sacramento e que o vôo ia ser
desviado para S. Francisco. Pedia desculpa pelo incômodo, mas teria de aterrar em
S. Francisco às onze e trinta. Haveria um autocarro especial para levar os
passageiros a Sacramento, um percurso de oitenta milhas.
Pela primeira vez nesse dia, Collins sentiu-se preocupado. Já tinha viajado
muitas vezes de S. Franscisco para Sacramento e sabia que isso significaria mais
hora e meia de atraso na sua viagem. Mesmo alugando um carro particular e fazendo
o condutor ir a toda a velocidade, não chegaria a Posey's Cottage muito antes de
Duffield e Glass saírem.
No aeroporto de S. Francisco, enquanto uma hospedeira saía a correr para lhe
alugar um carro, Collins foi ao telefone para tentar contatar com Olin Keefe. Mas
Keefe já não estava no seu escritório e não estava ainda a almoçar. Não querendo
perder mais tempo a tentar localizá-lo, Collins deixou a cabina telefônica e correu
para a hospedeira que o chamava.
Estava a reviver tudo isso, enquanto o automóvel entrava no centro de
Sacramento, vendo-se já a elegante cúpula dourada do Capitólio.
- Agora para onde vamos? - perguntou o motorista.
- Para um restaurante que fica um quarteirão a sul da alameda do Capitólio.
Chama-se Posey's Cottage ou Posei's Restaurant. É na esquina das ruas 11 e O.
- Estaremos lá dentro de um minuto.
Lá fora, à sua esquerda, Collins via o enorme parque do Capitólio: quarenta
acres, contendo pelo menos mil variedades de árvores, arbustos, flores. Sobre um
terraço graciosamente inclinado erguia-se o edifício do Capitólio, com a cúpula
brilhante e quatro andares, cercado de colunas coríntias e de pilares.
Seguiram mais devagar ao longo da via única cheia de trânsito que era a Rua
N, voltaram à esquerda chegaram finalmente ao cruzamento das ruas 11 e O.
- Cá estamos - disse o condutor, apontando para Posey's Cottage.
- Procure um lugar para estacionar - disse Collins. - Não me demoro.
Encontramo-nos em frente do restaurante.
Já tinha a porta do carro aberta, pegou na maleta que continha o gravador
portátil e saltou para a rua.
Parou apenas para ver as horas. Faltavam nove minutos para as duas. Estava
atrasado cinqüenta e um minutos. Perguntou a si próprio se Keefe teria conseguido
contatar com Duffield e Glass, como lhe pedira.
Correu para o restaurante, perguntou onde era o Derby Club e foi enviado
para uma sala das traseiras. Quando chegou ao Derby Club ficou consternado. A
sala estava vazia, à exceção de uma figura melancólica no bar.
No bar, Olin Keefe viu-o e saltou do banco. O seu aspecto pícnico,
normalmente afável, cedera lugar à preocupação.
- Já não contava consigo - disse. - O que aconteceu?
- Nevoeiro. Tivemos de aterrar em S. Francisco. Vim de carro durante hora e
meia. - Olhou à sua volta. - Duffield e Glass...?
- Tive-os aqui. Não os pude reter mais tempo. Foram para o Senado para se
prepararem para a votação. Ainda temos sete minutos antes da leitura final e da
votação. Não sei, mas talvez possamos tirá-los para fora da câmara.
- Temos de conseguir - insistiu Collins, desesperado. Saíram rapidamente do
restaurante e, meio a andar meio a correr, evitando os peões, seguiram para sul pela
Rua 11 em direção ao edifício do Capitólio. Keefe disse:
- A Câmara do Senado é no extremo sul do segundo andar. Dificilmente lá
chegaremos antes de fecharem as portas.
Chegados ao Capitólio, subiram a correr um pequeno lance de escadas e
passaram pelo grande Selo da Califórnia, um mosaico colorido colocado à entrada.
- A escada é ali - indicou Keefe. Enquanto subiam, Keefe acrescentou: -Sabe
que o diretor Tynan esteve aqui esta manhã?
- Sei. Como se portou?
- Demasiado bem, infelizmente. Convenceu-os no Comitê Judicial. O Comitê
votou esmagadoramente pela ratificação da emenda. O mesmo acontecerá no
Senado, a menos que consiga fazer melhor do que Tynan.
- Posso fazer melhor se tiver oportunidade. - Levantou a maleta. - Tenho aqui
o único testemunho que pode destruir Tynan.
- Quem?
- O próprio Tynan - disse Collins com ar misterioso.
Tinham chegado à entrada do Senado.
Embora a maior parte dos quarenta senadores já estivessem nas suas maciças
cadeiras giratórias azuis, alguns ainda estavam de pé nas coxias. O Governador-
Adjunto Duffield, vestindo um elegante terno azul às riscas, estava de pé ao lado da
tribuna, no topo da Câmara, olhando os senadores através das suas lunetas.
- Raios! - disse Keefe. - O funcionário já está a fechar as portas.
- Não pode chamar Duffield?
- Vou tentar - respondeu Keefe.
Apressou-se a entrar na Câmara, dando qualquer explicação ao guarda que
lhe barrava o caminho, continuou em frente, rodeou os degraus atapetados e, do
fundo da tribuna, chamou a atenção do Presidente do Senado.
Collins observava ansiosamente aquela cena muda. Duffield tinha-se
inclinado para ouvir o que Keefe dizia. Depois levantou as mãos e fez um gesto que
abarcava a Câmara cheia. Keefe voltou a falar. Por fim, Duffield, abanando a
cabeça, desceu até junto dele. Keefe continuou a falar, apontando para onde estava
Collins. O tempo parou por um instante, Duffield parecia indeciso. Com evidente
relutância, acabou por seguir Keefe até onde Collins os esperava.
Encontraram-se no limiar da Câmara e Keefe apresentou o Presidente do
Senado a Collins.
O rosto duro de Duffield mostrava-se descontente.
- Por deferência para com o senhor Procurador-Geral, acedi em deixar a
tribuna. O deputado Keefe diz que o senhor tem novas provas relacionadas com a
nossa votação sobre a 35.a emenda...
- Uma prova que é vital o senhor e os membros de Senado ouvirem.
- É completamente impossível consegui-lo, senhor Procurador-Geral. É
demasiado tarde. Já foram ouvidos todos os testemunhos, já foram apresentadas
todas as provas ao Comitê Judicial, durante os últimos quatro dias. As audiências
terminaram esta manhã com o diretor Tynan. Não há lugar para debates, e, portanto,
as provas não podem ser apresentadas para debate. Não vejo maneira de alterar os
trâmites.
- Há uma maneira - disse Collins. - Ouvir a minha prova fora da Câmara.
Atrase a sessão até ouvir a minha prova.
- Isso não tem precedentes. É altamente invulgar.
- O que tenho para lhe apresentar, a si e aos membros do Senado, é também
sem precedentes e mais do que invulgar. Garanto-lhe que se tivesse conseguido esta
prova mais cedo, teria estado aqui com ela na sua presença. Mas só consegui obtê-la
esta noite. Voei imediatamente para a Califórnia para a apresentar. A prova é da
máxima importância para si, para o Senado, para o povo da Califórnia, para todos os
Estados Unidos. Não podem votar sem ouvir o que tenho nesta pasta.
A veemência das palavras de Collins fez Duffield vacilar ligeiramente.
- Mesmo que o que tem seja de tal importância... bem, não sei como impedir
a votação imediata.
- Não podem votar se não houver quorum, pois não?
- Quer pedir à maioria dos membros que saiam da sala? Isso não resultaria.
Haveria uma moção para uma chamada geral. O funcionário receberia ordens para
trazer para dentro os ausentes.
- Mas eu já teria acabado de apresentar a minha prova antes de o funcionário
o poder fazer.
Duffield continuava hesitante.
- Não sei... E de quanto tempo precisa?
- Dez minutos. Não preciso de mais. É o tempo que leva a ouvir o que tenho a
apresentar.
- E como é que os membros do Senado poderão ouvir a prova?
- O senhor chama-os informalmente, vinte de cada vez, dois grupos de vinte e
diz-lhes para ouvirem o que já terá ouvido. Nessa altura, será o senhor que quererá
que eles ouçam. Depois de terem ouvido, podem votar.
Duffield ainda hesitava.
- Senhor Procurador-Geral, é uma coisa muito extraordinária o que está a
pedir.
- É uma prova extraordinária que tenho comigo - insistiu Collins.
Collins estava seguro da sua posição de membro do Gabinete, e poderia até
ter sido mais insistente. Mas também sabia como certos funcionários do Estado
defendem os seus direitos. Assim, ainda coibido, mas marcando um sentido de
urgência na voz, continuou:
- Tem de encontrar uma maneira de ouvir isto. Por certo que há vários meios.
Não há nada no mundo que o possa fazer atrasar a votação?
- Bem, pode haver vários fatores... certamente, fatores como... Bem, se tem
provas evidentes que a resolução prestes a ser votada era fraudulenta ou continha
elementos de conspiração... se o puder provar...
- Posso! Tenho provas de uma conspiração a nível nacional. A vida ou a
morte da nossa república depende de ter ouvido esta prova e de ter presente o que
ouviu quando votar. Se deixar de ouvir a prova, levará as culpas do seu erro para a
sepultura. Acredite-me.
Impressionado, o Governador-Adjunto deitou um longo olhar grave a Collins.
- Muito bem - disse subitamente. - Deixe-me combinar com o senador Glass a
maneira de não termos quorum por dez minutos. Vá para o quarto andar, para a
primeira sala de comitês, à saída do elevador. Está vazia. O senador Glass e eu
iremos lá ter consigo rapidamente. - Fez uma pausa. - Senhor Procurador-Geral, é
bom que seja importante.
- Pode ter certeza - disse Collins, severamente.
***
Estavam os quatro na moderna sala de comitês, à volta da mesa de madeira
clara que ocupava o centro da sala.
Chris Collins tinha acabado de explicar a Duffield e Glass as circunstâncias
em que tinha sabido da existência do Documento R, suplemento da 35.a emenda, que
o coronel Baxter dissera no seu leito de morte dever ser revelado.
- Não os vou maçar com pormenores da minha longa busca do Documento R
- disse Collins. - Basta dizer que só o localizei de madrugada. Afinal não é um
documento mas um plano verbal, que foi gravado acidentalmente pelo neto de doze
anos do coronel Baxter. Estavam três pessoas presentes quando a fita foi gravada em
Janeiro último.
Uma era o diretor do FBI, Vernon T. Tynan. Outra era o adjunto do diretor,
Harry Adcock. A terceira era o Procurador-Geral Noah Baxter. Nesta fita só se
ouvem as vozes de Tynan e Baxter, gravadas por brincadeira pelo rapaz, ignorando a
sua importância. Para terem certeza que é a voz do diretor Tynan em pessoa que foi
gravada nesta fita, mandamos fazer um registro de voz da conversa de Tynan e de
uma entrevista recente que deu à televisão. Verão que se trata da mesma voz.
Collins inclinou-se, tirou da pasta o registro e o certificado de autenticidade
do Dr. Lenart e entregou-os a Duffield. O Governador-Adjunto examinou-os
gravemente
e passou-os a Glass.
- Estão ambos convencidos de que vão ouvir a voz do diretor Tynan? -
perguntou Collins.
Ambos os dirigentes do Senado fizeram que sim com a cabeça.
Collins inclinou-se de novo e retirou da pasta o gravador portátil. Colocou o
botão do volume de som na posição Alto. Pôs deliberadamente o gravador no meio
da mesa.
- Vamos então começar - disse Collins. - Vão ouvir primeiro a voz de Tynan
e depois a de Baxter. Ouçam bem. Isto é o segredo conhecido como Documento R.
Ouçam.
Collins aproximou-se, carregou no botão de reprodução e, com os cotovelos
na mesa e as mãos no queixo, fixou o olhar no Presidente e no Presidente pró
tempore do Senado estadual da Califórnia.
A cassette girava no gravador. A conversa voltava a realizar-se.
Voz de Tynan: ''Estamos sós, não é verdade Noah?"
Voz de Baxter: ''Queria falar-me em particular, Vernon. Bem, eu creio que a
minha sala de estar é um dos lugares mais seguros da cidade."
Voz de Tynan: "Deve ser. Gastamos milhares de dólares para lhe retirar
escutas. Estou certo que é suficientemente segura para o que temos a discutir."
Voz de Baxter: "O que é que temos de discutir? Qual é a sua idéia, Vernon?"
Voz de Tynan: "Muito bem, é o seguinte: penso que tenho o último aspecto
do Documento R desenvolvido. Harry e eu pensamos que é perfeito. Mas uma coisa,
Noah, não se vá melindrar comigo à última hora. Lembre-se que concordamos que
devíamos sacrificar tudo (e devo acrescentar, todos) se estamos realmente dispostos
a salvar a nação. Até agora tem estado sempre conosco, Noah. Concordou com a
emenda, visto que é a melhor solução, a única esperança real, não importando os
obstáculos a ultrapassar para ir adiante. Bem, há mais um passo a dar. Lembre-se
que tem estado sempre do nosso lado até agora. Já foi muito longe para voltar atrás.
Mesmo que quisesse fazer marcha atrás, não podia."
Voz de Baxter: "Voltar para trás em quê? De que está a falar, Vernon?"
Voz de Tynan: "Trata-se simplesmente de fazer algo pelo povo que ele não
pode fazer por si mesmo. Dar segurança às suas vidas. Assim que a 35.a emenda se
tornar parte da Constituição, poremos o Documento R em vigor, a Reconstrução do
país; poremos em execução todas as nossas prerrogativas legais ao abrigo da
emenda..."
Voz de Baxter: "Mas não pode, Vernon, não pode invocar a emenda. Não há
uma emergência nacional efetiva. Segundo a Constituição, já com a 35.a emenda
integrada, terá de existir uma crise real... uma emergência... uma conspiração... antes
de podermos atuar. Se não houver, não pode..."
Voz de Tynan: "Mas podemos, Noah, porque teremos a nossa emergência, a
nossa crise. Isso arranja-se, Noah. Tratarei do assunto pessoalmente. Muitas vezes
uma pessoa tem de ser sacrificada para a sobrevivência das restantes. Um de nós,
provavelmente você, invocará a emergência num discurso televisionado. Dirigir-se-á
à nação. É essa a essência do Documento R. Já preparei os pontos principais do
discurso. Você dirige-se à nação, começando talvez assim: 'Amigos americanos.
Vim falar-vos a esta hora da manhã porque estamos todos igualmente desolados,
sofrendo todos juntos o mais profundo pesar pelo chocante assassínio do nosso
amado Presidente Wadsworth, ocorrido ontem. A sua terrível morte às mãos de um
assassino, mãos dirigidas por uma conspiração para subverter a nação, custou-nos a
pessoa do nosso maior dirigente. Mas talvez a sua morte aproveite às nossas vidas e
aproveite à vida da nação. Unindo-nos todos, teremos de fazer que tal violência não
volte a repetir-se dentro das nossas fronteiras. Para isso, por ordem do novo
Presidente, vou dar os passos necessários para destruir o reinado da anarquia e do
terror que hoje existe. Estou a proclamar a suspensão da Declaração de Direitos,
conforme disposto na 35.a emenda, e a anunciar que daqui em diante o Comitê de
Segurança Nacional...' "
Voz de Baxter: "Meu Deus, Vernon! Será que ouvi bem? O Presidente
Wadsworth assassinado por sua ordem?"
Voz de Tynan: "Não faça de pateta sentimental, Noah. Não há tempo para
isso. Sacrificaremos um político insignificante para salvar uma nação inteira.
Compreende, Noah? Salvaremos..."
Voz de Baxter: ''Oh, meu Deus, meu Deus, meu Deus! Ahh...''
Voz de Tynan: ''Noah, nós... Noah, Noah! O que foi? Que tem? O que é isto,
Harry, teve uma espécie de ataque ou quê? Tente levantá-lo. Vou chamar Hannah..."
Fim da gravação.
Collins estudou os rostos de Duffield, Glass e Keefe. Estavam gelados pelo
choque.
- Bem, meus senhores - disse Collins - terá chegado o dia da justiça?
Duffield pôs-se pesadamente em pé.
- Chegou o dia da justiça - disse calmamente. - Vou chamar os senadores.
***
Era noite em Washington quando o suave Boeing a jato começou a descer,
voando cada vez mais baixo em direção à pista de aterragem do Aeroporto Nacional.
Chris Collins observava a dança das luzes na janela, via-as crescerem
progressivamente, e apertou o cinto de segurança para o impacto da chegada.
Minutos depois, já fora do avião, estava na bicha dos passageiros que se
dirigiam ao terminal.
Foi Hogan quem viu primeiro e o seu guarda-costas mostrava um largo
sorriso incaracterístico.
- Parabéns, senhor Procurador-Geral - disse Hogan, pegando-lhe na maleta. -
Fiquei preocupado quando foi embora sem mim, mas parece-me que o risco valia a
pena.
- Valia tudo - disse Collins. - Não trouxe bagagem. Tudo o que levei foi esta
maleta.
- Chris...
Viu que Tony Pierce também estava presente para o felicitar. Um Pierce
risonho apertou-lhe a mão enquanto se dirigiam para o tapete rolante, tirando depois
um jornal do bolso e abrindo-o na sua frente.
O grande cabeçalho negro dizia:
Conspiração contra o Presidente, a Nação em perigo, Tynan implicado.
A 35.a emenda derrotada.
- Chris, você arrasou-os - exultava Pierce. - Viu? A votação do Senado da
Califórnia foi dada na televisão. Quarenta a zero, a emenda caiu. Unânimes.
- Vi - disse Collins. - Estava na galeria.
- Depois a conferência de imprensa. Todas as principais redes de televisão
interromperam os seus programas para a apresentar. Duffield e Glass deram uma
conferência de imprensa conjunta. Contaram como se deu a viragem. Falaram do seu
papel. Contaram o que era o Documento R.
- Não vi isso - disse Collins. - O nevoeiro levantou e apanhei o primeiro
avião.
- Bem, Chris, sempre conseguiu.
Collins abanou a cabeça.
- Não, Tony. Conseguimos todos, incluindo o coronel Baxter, o padre
Dubinski, o meu filho Josh, Olin Keefe, Donald Radenbaugh, John Maynard, Rick
Baxter, Ishmael Young e você. Fomos todos.
Chegaram ao carro, que não era o habitual, mas o próprio carro à prova de
bala do Presidente. O motorista do Presidente, com a porta de trás aberta,
cumprimentou-o orgulhosamente.
Collins olhou para Pierce, interrogativo.
- O Presidente quer vê-lo. Pediu para lhe falar assim que chegasse.
- Muito bem.
Collins entrava no automóvel quando a mão de Pierce no ombro o deteve.
- Chris... -Sim?
- Sabe que Vernon T. Tynan está morto?
- Não sabia.
- Há duas horas. Suicidou-se. Deu um tiro na boca.
Collins refletiu.
- Como Hitler - disse.
- Adcock desapareceu.
Collins fez que sim com a cabeça.
- Como Bormann - disse.
Entraram no carro. Quando o motorista se instalou ao volante, Pierce
ordenou-lhe:
- Para a Casa Branca.
Quando chegaram ao pórtico sul da Casa Branca, McKnight, ajudante-em-
chefe do Presidente, estava à espera para lhe dar calorosas boas-vindas. Collins e
Pierce foram
conduzidos ao elevador através da Sala de Recepções Diplomáticas, no rés-do-chão.
Tomaram o elevador para o segundo andar e seguiram McKnight até à sala oval
amarela.
Collins não esperava uma festa, mas estava a decorrer uma. Pode distinguir o
Vice-Presidente Loomis, o senador Hilliard com a mulher, a secretária do Presidente
miss Ledger, e o secretário de reuniões Nichols. Mais longe, nas cadeiras Luís XIV
que ladeavam a lareira, viu Karen a conversar com o Presidente Wadsworth.
No momento em que Karen percebeu sua presença, não quis saber do
Presidente e correu pela sala, caindo-lhe nos braços e beijando-o por entre lágrimas.
- Amo-te, amo-te - gritava ela. - Oh, Chris...
Por cima do ombro dela, viu que o Presidente caminhava na sua direção.
Deixou Karen para se aproximar dele. O rosto de Wadsworth apresentava uma
expressão singular.
Collins pensou que Lázaro devia parecer assim.
- Chris - disse o Presidente solenemente, apertando-lhe a mão com calor e
sinceridade -, não tenho palavras para lhe agradecer ter-me salvo a vida e o país. - O
Presidente abanava a cabeça. - Fui um asno completo, posso dizê-lo agora. Perdoe-
me. Tinha perdido o sentido das coisas. Suponho que é porque quando receamos a
batalha final que nos agarramos a qualquer expediente. Não quis reconhecer que já
estava metido nessa batalha. - Sorriu. - Mas apesar de tudo não foi uma derrota,
porque a cavalaria chegou a tempo. - Procurou ver a cara de Collins. - Já sabe o que
aconteceu a Vernon T. Tynan?
- Já. Lamento que tenha chegado a tal ponto.
- Ele devia estar transtornado nestes últimos meses para ter maquinado uma
coisa assim. Graças a Deus que você não desistiu. A minha dívida para consigo
nunca poderá ser paga. Se puder fazer alguma coisa...
- Há duas coisas que me podia fazer - disse Collins sem rebuços.
- Diga-me.
- Há um homem que, como o senhor, deve ser ressuscitado da morte.
Desempenhou um papel fundamental para o salvar. Quero que também o ajude.
Quero que lhe conceda um perdão presidencial completo e restaure o seu nome.
- É só você preparar o perdão e eu assino. E a outra coisa?
- O pior está passado - disse Collins - , mas ainda temos de encarar o
problema que originou esta louca conspiração. O problema do crime. A repressão
não o resolve. Como disse algures um homem sábio: "Os destroços a arder não
iluminam a escuridão''. Tem de ser uma solução melhor...
- Assim será - interrompeu o Presidente. - Vamos tratar disso imediatamente.
Em vez de alterar a Declaração de Direitos para resolvermos os nossos problemas,
vamos utilizar a Declaração de Direitos e usá-la devidamente. Amanhã de manhã
vou nomear uma comissão especial plenipotenciária (você e Pierce farão parte dela)
para investigar o FBI, varrer a influência de Tynan, fazer recomendações para
remodelar completamente o Serviço e estabelecer novas diretivas nesse sentido.
Depois disso, primeira ordem de trabalhos, Chris: quero sentar-me a uma mesa
consigo e discutir um novo programa de legislação econômica e social que acabe
com o desrespeito pela lei e com a criminalidade das nossas cidades. Havemos de
fazer alguma coisa nesse sentido. Passamos por um momento perigoso, mas agora
vamos dar força à nossa democracia.
Collins fez que sim com a cabeça.
- Muito obrigado, senhor Presidente. - Hesitou. - Sabe que durante todo o
caminho de regresso estive a pensar que em Argo City um amigo meu disse que se o
fascismo surgir nos Estados Unidos será porque o povo votou nele. Bem, desta vez o
povo quase o fez. Agora acho que já recebeu a lição, pode ser que nunca mais se
aproxime tanto. E talvez possamos ajudá-lo a lembrar-se desta lição.
- Poderemos, prometo. Vamos resolver o que for humanamente possível. -
Pegou no braço de Collins. - Mas esta noite não. Chamou Karen para junto deles. -
Esta noite vamos fazer um brinde pelo futuro. Talvez dois brindes ou três. E vamos
ver o último filme da televisão. Descansaremos umas horas; afinal, agora já
podemos fazê-lo, antes de recomeçar.
Índice
Capítulo primeiro 7
Capítulo segundo 43
Capítulo terceiro 85
Capítulo quarto 101
Capítulo quinto 149
Capítulo sexto 169
Capítulo sétimo 199
Capítulo oitavo 231
Capítulo nono 251
Capítulo décimo 281
Capítulo décimo primeiro 299
Fim

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