Você está na página 1de 2

UNIVERSIDAD DEL NORTE - INSTITUTO DE IDIOMAS

CURSO DE LÍNGUA PORTUGUESA – PREGRADO

Turismo de miséria
De abrigo de sem-teto a travessia fictícia aos EUA, agências vendem “viagens de experimentação”
POR CATHERINE A. TRAYWICK
WASHINGTON - Quando Maria Antonieta queria escapar dos limites e pressões da vida da corte, refugiava-se em sua
pitoresca Petit Hameau, onde ela e seus amigos vestiam seus melhores trajes de camponeses e fingiam ser pobres.
Um século depois, os maiores lançadores de tendências de Londres levaram a fantasia de pobreza a outro extremo -
com visitas noturnas a favelas do leste da capital britânica, onde conviviam com moradores e daí cunharam o termo
“favelizar”.
O passatempo cruzou o oceano e, em pouco tempo, socialites de Nova York desembocaram na vizinhança de
Bowery, no sul de Manhattan, à procura de locais de consumo de ópio e aventuras dignas de tabloides. Naquela
época, o turismo a favelas era encarado como uma espécie de diversão “faça você mesmo”.
Hoje, é um destino de férias requisitado, com direito a pacotes com variados tipos de acomodações e refeições
incluídas. O turismo de favela do século XXI está muito longe das excursões a becos realizadas no passado.
Por um preço propício, os turistas mais exigentes podem conhecer em primeira mão como os mais pobres dos
pobres vivem - e sem ter que sacrificar as conveniências do primeiro mundo, como wi-fi, aquecedores e banheiras de
hidromassagem.
Abaixo, seguem os detalhes de alguns dos mais requisitados roteiros de “pobreza-chique”. As informações
reúnem os destaques de cada pacote e os preços cobrados pela experiência inusitada, que nem sempre condizem
com a modéstia do destino escolhido.

1 - Bloemfontein, África do Sul


Diária em favela cinco estrelas - US$ 82
Alguma vez já quis se mudar para um acolhedor barraco em uma das favelas em expansão na África do Sul —
apenas para mudar de ideia sobre suas preocupações com o crime, o barulho e a infraestrutura em geral precária de
sua cidade? Emoya, um hotel de luxo em Bloemfontein, pode ser o que você procura.
Trata-se da reprodução de uma pequena e pitoresca favela encravada com toda a segurança num resort. Por
apenas US$ 82 por noite, você terá direito a um barraco privado, feito de telhas onduladas de zinco, para aproveitar a
experiência de viver numa favela do pós-apartheid sem nunca ter de pisar numa de verdade. O local também recebe
crianças e oferece instalações equipadas com sistema de aquecimento no chão, wi-fi gratuito e serviços de SPA.

2 - Hidalgo, México
Tour para ‘entrar nos EUA’ como imigrante ilegal - US$ 19
No Sul do México, um parque ecológico que pertence aos índios Hñahñu oferece aos turistas a oportunidade
de vivenciar o drama e a tensão de uma travessia ilegal da fronteira com os EUA. Chamado de Night Walk (caminhada
noturna), a inusitada excursão dura cerca de quatro horas e leva grupos a uma viagem fictícia pelo deserto e cruzando
o Rio Grande.
Cerca de uma dúzia de índios Hñahñus interpreta diferentes papéis, de imigrantes em busca de trabalho a
policiais que patrulham a fronteira imaginária com os EUA. O parque inclui outras atrações, como piscinas de águas
termais, passeios de caiaque e locais para acampar. Mas a caminhada noturna como um imigrante figura como a
maior atração.

3 - Jacarta, Indonésia
Hospedagem num povoado em época de inundações - US$ 10
Os turistas que procuram uma experiência do terceiro mundo mais realista podem encontrá-la na Banana
Republic, um povoado rural a poucos minutos de Jacarta. Por US$ 10 por noite, o visitante terá um quarto, um colchão
e um ventilador dentro desse complexo de casas humildes. É preciso levar a própria lanterna se pensar em usar o
banheiro ao ar livre durante a noite, assim como produtos de higiene pessoal para o chuveiro de uso comunitário.
Se isso não for original o suficiente para o turista, o portal de viagens Airbnb lembra que dezembro é época de
enchentes. As fortes chuvas fazem transbordar o rio que circunda a aldeia, os telhados enferrujados deixam passar a
água, e as casas inundam. O anúncio da viagem garante que os US$ 10 serão usados para a desobstrução do rio e
para a reparação de telhados danificados — mas não antes de alguém ter a chance de desfrutar de ambos.

4 - Gotemburgo, Suécia
Um cantinho debaixo de um viaduto - US$ 15 por noite
A cidade de Gotemburgo, na Suécia, tem mais de três mil moradores de rua. A empresa Faktum Hotels
pesquisou os dez lugares mais usados por eles para dormir, e resolveu alugá-los para viajantes intrépidos que
queiram conhecer a Suécia a partir da perspectiva dos mais desamparados. Reserve um canto numa fábrica de papel
abandonada, enrosque-se debaixo de um viaduto, ou acampe num parque público (convenientemente localizado perto
de vários cafés da moda), recomendam.
É certo que o valor da iniciativa é ironicamente insignificante. A renda com o alojamento é dirigida a programas
que beneficiam a população de rua em Gotemburgo. Sequer se espera que os turistas de fato durmam nos lugares
que reservaram, mas vale supor que ao menos algum deles ouse tentar.

5 - Amsterdã, Holanda
Visita guiada por um morador de rua - US$ 16 por pessoa
Se o turista quiser aprofundar a experiência como um sem-teto para além de uma única noite debaixo da
ponte, talvez lhe agrade uma caminhada em Amsterdã, onde uma agência de entretenimento oferece passeios onde o
guia, de fato, é um morador de rua.
Segundo um anúncio em sua página na internet, a empresa Mokum Events “encontrou um sem-teto em
Amsterdã que já viveu de tudo”. Por uma taxa de US$ 16, o visitante pode dar uma caminhada com ele, pedir esmola
para comprar comida e saber tudo sobre os altos e baixos da vida na rua.
E, para quem questiona a ética do passeio, a empresa tranquiliza os turistas com a garantia de que “o morador
de rua não é infeliz.” No tour, ele ainda mostra aos acompanhantes onde dorme e aponta “as latas de lixo de
restaurantes em que, às vezes, uma refeição digna de reis pode surgir de sobras saudáveis”.

6 - São Francisco, Califórnia


Passeio por bairro perigoso ao lado de sem-teto - US$ 20
A maioria dos turistas em São Francisco tenta evitar Tenderloin, um bairro no centro outrora famoso pela alta
taxa de criminalidade, mas agora mais conhecido pela população de mendigos. Um homem chamado Milton Aparicio
tenta mudar essa imagem. Ele oferece passeios cujo destaque é, justamente, a cultura única dos sem-teto de
Tenderloin.
“Vamos visitar alguns abrigos, orfanatos, refeitórios comunitários”, anuncia ele, fazendo propaganda da
“experiência de ser um morador de rua sendo guiado por um simpático sem-teto”. Como a maioria dos outros
exemplos de turismo da pobreza, este promete uma experiência reveladora, que conduzirá seus participantes ao
crescimento pessoal e ao esclarecimento.
Nesse quesito, o turismo da pobreza contemporâneo ainda se assemelha a seus antecessores do século XIX.
As visitas originais ao lado menos abastado de Londres eram descaradamente voyerísticas e exploradoras, mas
nunca revelaram um lado positivo. A queda do véu entre ricos e pobres incentivou algumas ações de caridade das
classes mais altas. “Incursões a favelas em Londres trouxeram aos ricos muito sofrimento”, noticiou o “New York
Times” em 1884, “e levaram a reformas sanitárias”.
O turismo da pobreza moderno, por outro lado, geralmente é caracterizado desde o começo como um esforço
de responsabilidade social — muitas vezes com o objetivo de beneficiar comunidades carentes. Mesmo assim, ainda
parece um pouco assustador pagar pela experiência de visitar os mais pobres como se fossem animais no zoológico.
http://oglobo.globo.com/mundo/turismo-de-miseria-11212342

Você também pode gostar