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Turismo de miséria
De abrigo de sem-teto a travessia fictícia aos EUA, agências vendem “viagens de experimentação”
POR CATHERINE A. TRAYWICK
WASHINGTON - Quando Maria Antonieta queria escapar dos limites e pressões da vida da corte, refugiava-se em sua
pitoresca Petit Hameau, onde ela e seus amigos vestiam seus melhores trajes de camponeses e fingiam ser pobres.
Um século depois, os maiores lançadores de tendências de Londres levaram a fantasia de pobreza a outro extremo -
com visitas noturnas a favelas do leste da capital britânica, onde conviviam com moradores e daí cunharam o termo
“favelizar”.
O passatempo cruzou o oceano e, em pouco tempo, socialites de Nova York desembocaram na vizinhança de
Bowery, no sul de Manhattan, à procura de locais de consumo de ópio e aventuras dignas de tabloides. Naquela
época, o turismo a favelas era encarado como uma espécie de diversão “faça você mesmo”.
Hoje, é um destino de férias requisitado, com direito a pacotes com variados tipos de acomodações e refeições
incluídas. O turismo de favela do século XXI está muito longe das excursões a becos realizadas no passado.
Por um preço propício, os turistas mais exigentes podem conhecer em primeira mão como os mais pobres dos
pobres vivem - e sem ter que sacrificar as conveniências do primeiro mundo, como wi-fi, aquecedores e banheiras de
hidromassagem.
Abaixo, seguem os detalhes de alguns dos mais requisitados roteiros de “pobreza-chique”. As informações
reúnem os destaques de cada pacote e os preços cobrados pela experiência inusitada, que nem sempre condizem
com a modéstia do destino escolhido.
2 - Hidalgo, México
Tour para ‘entrar nos EUA’ como imigrante ilegal - US$ 19
No Sul do México, um parque ecológico que pertence aos índios Hñahñu oferece aos turistas a oportunidade
de vivenciar o drama e a tensão de uma travessia ilegal da fronteira com os EUA. Chamado de Night Walk (caminhada
noturna), a inusitada excursão dura cerca de quatro horas e leva grupos a uma viagem fictícia pelo deserto e cruzando
o Rio Grande.
Cerca de uma dúzia de índios Hñahñus interpreta diferentes papéis, de imigrantes em busca de trabalho a
policiais que patrulham a fronteira imaginária com os EUA. O parque inclui outras atrações, como piscinas de águas
termais, passeios de caiaque e locais para acampar. Mas a caminhada noturna como um imigrante figura como a
maior atração.
3 - Jacarta, Indonésia
Hospedagem num povoado em época de inundações - US$ 10
Os turistas que procuram uma experiência do terceiro mundo mais realista podem encontrá-la na Banana
Republic, um povoado rural a poucos minutos de Jacarta. Por US$ 10 por noite, o visitante terá um quarto, um colchão
e um ventilador dentro desse complexo de casas humildes. É preciso levar a própria lanterna se pensar em usar o
banheiro ao ar livre durante a noite, assim como produtos de higiene pessoal para o chuveiro de uso comunitário.
Se isso não for original o suficiente para o turista, o portal de viagens Airbnb lembra que dezembro é época de
enchentes. As fortes chuvas fazem transbordar o rio que circunda a aldeia, os telhados enferrujados deixam passar a
água, e as casas inundam. O anúncio da viagem garante que os US$ 10 serão usados para a desobstrução do rio e
para a reparação de telhados danificados — mas não antes de alguém ter a chance de desfrutar de ambos.
4 - Gotemburgo, Suécia
Um cantinho debaixo de um viaduto - US$ 15 por noite
A cidade de Gotemburgo, na Suécia, tem mais de três mil moradores de rua. A empresa Faktum Hotels
pesquisou os dez lugares mais usados por eles para dormir, e resolveu alugá-los para viajantes intrépidos que
queiram conhecer a Suécia a partir da perspectiva dos mais desamparados. Reserve um canto numa fábrica de papel
abandonada, enrosque-se debaixo de um viaduto, ou acampe num parque público (convenientemente localizado perto
de vários cafés da moda), recomendam.
É certo que o valor da iniciativa é ironicamente insignificante. A renda com o alojamento é dirigida a programas
que beneficiam a população de rua em Gotemburgo. Sequer se espera que os turistas de fato durmam nos lugares
que reservaram, mas vale supor que ao menos algum deles ouse tentar.
5 - Amsterdã, Holanda
Visita guiada por um morador de rua - US$ 16 por pessoa
Se o turista quiser aprofundar a experiência como um sem-teto para além de uma única noite debaixo da
ponte, talvez lhe agrade uma caminhada em Amsterdã, onde uma agência de entretenimento oferece passeios onde o
guia, de fato, é um morador de rua.
Segundo um anúncio em sua página na internet, a empresa Mokum Events “encontrou um sem-teto em
Amsterdã que já viveu de tudo”. Por uma taxa de US$ 16, o visitante pode dar uma caminhada com ele, pedir esmola
para comprar comida e saber tudo sobre os altos e baixos da vida na rua.
E, para quem questiona a ética do passeio, a empresa tranquiliza os turistas com a garantia de que “o morador
de rua não é infeliz.” No tour, ele ainda mostra aos acompanhantes onde dorme e aponta “as latas de lixo de
restaurantes em que, às vezes, uma refeição digna de reis pode surgir de sobras saudáveis”.