Fazer download em pdf
Fazer download em pdf
Você está na página 1de 7
Rachel Soihet Professora do Departamento de Hist6ria da Universidade Federal Fluminense. Maulheres em busca de novos e€spagos e relagées de género partir da segunda me- tade do século XIX, principalmente, as insa- tisfagdes de muitas mulheres inconformadas com sua exclusdo do terreno piblico contribuem para a emergéncia de movimentos feministas na Europa Ocidental € nos fstados Unidos. Criando uma imprensa prépria, organi- zando associagoes, quer aquelas que se limitavam a uma postura liberal, quer as que vinculavam suas propostas a Instau- Tago do socialismo, as mulheres lutam pelo reconhecimento de seus direitos, Incursionando algumas pelo terreno da sexualidade. No inicio do século XX, uma primeira geragéo de mulheres médicas Sugere as demais a liberagéo do medo € da ignorancia do seu corpo. Nao foi tranqiila a receptividade para com essas manifestagoes. A reacao fez-se sentir, no s6 por parte dos governantes reprimindo tais movimentos, como da prépria s0- ciedade, particularmente da parcela mas- culina € de nao poucas mulheres.' No mundo anglo-saxéo da era vitoriana, por exemplo, as feministas € seus parti- dérios so apresentados como desafiado- res das sabias e intocaveis leis da nature- za, Em nome dessas verdades universais, a réplica buscava ser demolidora, com vistas a desmoralizar aqueles que pugna- vam pelo acesso das mulheres a proprie- dade, as profiss6es, ao voto. Galinhas a cacarejar, hommes-femmes, homesses, ‘een, Roe Jane. ¥. 9 1 1, p12, Janvdes, 198 - pag 90 hermafroditas, eram alguns dos pesados epitetos sexuais que langavam os antifeministas contra tais mulheres, en- quanto os homens que as apoiavam eram. chamados de ‘solteironas de calgas’. Tao assustadora Ihes era a idéia de uma pos- sivel confusao de papéis sociais, temero- 508 da perda de seu predominio nas rela- oes de poder entre os géneros, que lan- cavam mao das estratégias mais variadas para manter © status quo. Assim, lla-se ou ouvia-se, repetidamente, em tratados ou piadas, em tons solenes ou leves, que ‘os homens e as mulheres deviam ocupar esferas separadas porque tinham nature- zas e capacidades distintas €, portanto, deveriam exercer tarefas distintas. ©, apesar desse bombardeio, mais € mais mulheres reagiram contra esses sofismas, contra “sua dubia realeza € sua muito real submissao domé: a". Algumas se rebe- laram abertamente, enquanto a maioria se valesse de maneiras mais sutis na sua Ansia de subverter sua situagdo. Langa- vam mao de taticas que Ihes permitiam reempregar os signos da dominacao, marcando uma resisténcia.? No Brasil, idénticas iniciativas de libera- Ao das mulheres tiveram lugar. Desde 0 primeiro protesto de Misia Floresta na década de 1850, as insatisfagées femini- nas manifestaram-se com mai: fora. Constitui-se aqui, igualmente, uma im- prensa feminina, cujo primeiro periédico, O Jornal das Senhoras, data de 1852. Al- gumas mais moderadas nas suas reivin- dicagées enfatizavam a importancia da ‘9 100, jariser 1980 educagdo da mulher, lembrando o seu papel de mae. ou por uma “questao de requinte espiritual”, Outras mais incisivas defendiam-na como recurso para o alcan- ce da independéncia econdmica, também. acentuando a relevancia dos direitos ci- vis e politicos, chegando algumas a de- fender o divéreio.? Ja no século XX, despontam nomes como Maria Lacerda de Moura, pioneira em muitos Ambitos, cujas idéias, porém, nao encontraram 0 devido eco naquele mo- mento. Outras organizam-se em associa- goes, destacando-se a atuacdo de Bertha Lutz, cujo movi ento teve como alvo o acesso das mulheres & cidadania plena. E, apesar de limitagées comuns aos de- mo} entos feministas da época, algumas de suas propostas, como aquela dos direitos civis, sé recentemente vem sendo implementadas. nos Tais reivindicagées deram lugar a fortes resisténcias; autoridades, politicos em geral, juristas, opunham-se as suas pre- tensdes negando-se por toda a Primeira Republica a reconhecer as mulheres, en- tre outros, 0 direito de voto. Respalda- vam-se na ciéncia da época que legitima- va a partir de raz6es biolégicas a desi- gualdade entre homens ¢ mulheres. Tam- bem, através de pecas teatrais, da litera- tura, de crénicas e por diversas matérias na imprensa — jornais € periédicos — ob- serva-se oposigao ao seu atendimento, chegando alguns a ridicularizar as mi tantes, representando-as como masculinizadas, feias, despeitadas e, mes- mo, amorais. Conseguiam grande reper- cussio, nao sendo poucos os homens co- muns que endossavam tais opinides, atra- vés de depoimentos e cartas aos jornais Nao se pode. porém, concluir que tal cam- panha tenha sido totalmente vitoriosa. As mulheres continuaram a expressar seu descontentamento com a educagao que thes era fornecida. Algumas langavam mao dos préprios argumentos que Ines estavam sendo impingidos. Muito possi- velmente, estariam desenvolvendo uma tatica, visando mobi zar para seus pré- prios fins uma representacao imposta — aceita, mas desviada contra a ordem que a produziu. Tipica modalidade de mani- festacao dos poderes femininos numa si- tuacdo de sujeicao e de inferioridade que se traduz na reapropriacao dos instrumen- tos simbélicos que instituem a domina- cao masculina, desviando-os contra o seu préprio dominador. Dessa forma, ainda em 1855, uma mulher que nao assume sua identidade, assinando-se como ‘Ba- ronesa’, aponta a necessidade de se exi- gir para as filhas uma instrugdo mais va- riada e séria, para 0 qué considera inca- pazes os colégios existentes, Observa a auséncia de preocupagdo no cultivo do espirito ¢ da inteligéncia de uma menina “para que seja uma verdadeira senhora’. © apelo se completa, valendo-se do pro- prio arqumento utilizado por aqueles que pretendem manter a mulher como subal- terna, ao acentuar o despreparo "de quem deve um dia depender o futuro de uma familia inteira’, Mas havia, também, aquelas que exigiram ‘Aula de culingria na Escola Doméstca de Natal. Ro Grande do Norte, 1953. ‘Arquivo Nacional. eerw oe Jane, ¥ 9, 2, p.9O124, Jn 190 pO uma educagdo mais qualificada néo em nome da sua responsabilidade familiar, mas porque consideravam-se tao capazes “como o homem para oestudo das cién- cias", apesar da constante repetigao con- tréria; afirmavam inclusive a existéncia de mulheres “superiores a muitos homens ci- entistas e que escreveram trabalhos que so citados por médicos insignes”. A profissionalizagao como fruto da instru- ga0 era apontada como uma necessida- de, reivindicando algumas, ainda de for- ma timida, a titulo de comple- mentaridade, pois "nem sempre o traba- Iho do homem € suficiente para propor- cionar sua familia todas aquelas como- didades...". Outras mai hicidas manifes- tavam tal necessidade com vistas a que as mulheres atingissem uma posicao si- mei ica no relacionamento com os ho- mens, tornando-se dignas, capazes de uma escotha livre, 0 que as levaria a des- prezar “as adulagées pueris de que ainda se mostram vidas”, Havia, também, aquelas que nem mencionavam o casa- ‘mento como alvo, ao apontarem a impor- tancia do trabalho assiduo e 0 seu forta- lecimento “para as provas da liberdade e para os combates da vida". O DEBOCHE COMO ARMA exercicio pelas mulheres de ati- \vidades profissionais considera- das préprias dos homens é para muitos considerada catastréfica € objeto de grosseiras caricaturas como na créni- ca que se segue. Através do malicioso ti- tulo de Emancipada, busca-se passar a PPG 10D ver 1098 ashy ose ve mensagem do terror ¢ do grotesco que essa situaao poderia significar. Madame Linhares apés um longo dia no escrité- rio, encontra a casa em polvorosa: “os meninos ainda nao haviam jantado. E nao haviam jantado porque o Cazuza Linhares nao havia acertado com o meio de fazer a sopa € 0 assado".*A cozinheira tinha sai do as compras e, numa situagao de in- versdo que a crénica buscava ridiculari tar, “o Cazuza ficara em casa tomando conta dos filhos”. E todo atrapalhado presta contas das suas desventuras, in- formando a esposa que o almogo tinha sido a carne fria da véspera e ovos quen- tes. Ja estava hd trés horas tentando sem éxito preparar o jantar, pois *o fogo cus- tou a acender como 0 diabo...*. O fato, sem diivida, se dest lava a provocar pre- ocupagées aos mais ‘sensiveis’, acerca dos Prejuizos da auséncia da mae do lar ... © didlogo que se segue acentua a sub- serviéncia do marido e 0 autoritarismo da mulher. Era a inverso do quadro habitu- al, que ameacava as familias de bem. — Também voce para nada presta. — Mas Mild se eu nunca aprendi a faz Isso... — £0 que fol que aprendeu, nao me dir8? © senhor € um imprestavel, — Mas Mil. —Cale-se homem, cale-set — Mas eu... —trrai Molengal Bananal Pasteliot — bu 86 queria ver vocé na cozinha... \ — Sim? Querla? Pols esse gosto nao ha de ter meu caro. Entdo eu, uma mulher Superior, vou la me ocupar com esses culdados domésticos. Pas criangas? — Pols, ai née tem queijo? Néo tem pio? Va ferver dqua para o ché. —Cha, pao € queijo? Mas isso é 1a um Jantar? — f basta, Também yore 56 cuida da barriga. Imagem de mae no final do séeulo XX. Arquivo Nadonal. Madame Linhares desloca-se em sequida para os seus aposentos “majestosa ¢ len- ta... acompanhada pelos olhares dos fi- Ihinhos que 0 dedo a boca néo ousaram aproximar-se, temerosos”. Servido 0 cha, segue-se outra discussao entre os cOnju- ges, derramando a madame o cha fume- gante pela cabeca do Linhares e aquela para finalizar decide: *e passaré a dormir na sala de visitas durante trés meses. & para ensind-lo a respeitar uma mulher emancipada’. ‘een, Bade Janseo, v9 1:2, 96-12% Janiles 1908 - pag 103 Apesar do tom caricatural, tal comporta- mento feminino nao distava daquele pro- pagado, no momento em foco, por criminalistas e médices, acerca do peri- go representado pelas mulheres intetectualizadas como parece ser a per- sonagem. Para Cesare Lombroso, médi- co italiano € nome conceituado da criminologia em fins do século XIX, em- bora a mulher normal apresentasse algu- mas caracteristicas negativas que a apro- ximavam da crianga, tais como senso moral deficiente, tendéncia exagerada a vinganga, ao citime, de maneira geral es- ses defeitos eram neutralizados, entre outros, pela maternidade, sua frieza se- xual e sua menor inteligéncia. Em contraposicao, as mulheres dotadas de forte inteligéncia se revelavam extrema- mente perigosas, constituindo as crimi- nosas natas. Eram incapazes da abnega- 80, da paciénci . do aitruismo que ca- racterizam a maternidade, funcao primor- dial das mulheres a que estaria subordi- nada toda a organizacao biolégica € psi- colégica daquelas normais. Higienistas, no Rio de Janeiro, concorda- vam com tais assergées. Discorrendo so- bre os motivos que levariam a mulher a cometer o terrivel crime do infanticidio, © dr. Augusto Militao Pacheco aponta as “mulheres originais” como capazes de fazé-lo. Estas divergiriam das demais e se caracterizariam “pela sua extrema devas- sidao,... pelo gosto infrene de pintar, es- crever, viajar etc.”. Nesse caso enquadra em primeiro lugar, a muther inflel e em segundo, a mulher emancipada. Nesse og 108, jane 9p PTS Fea particular, acentua Jurandir Freire Costa, para os higienistas a independéncia da mulher nao poderia extravasar as frontei- Fas da casa € do consumo de bens € idéi- as que reforcassem a imagem da mulher mae. A mulher intelectual, emancipada, em fins do s€culo XIX ¢ inicio do XX, cons- tituia-se num mau exemplo para outras mulheres, levando-as a acreditar que po- deriam subsistir sozinhas sem o concur- so do marido, comprometendo toda a or- ganizacao da sociedade. Voluntariamen- te recusando-se a restringir seu universo Amatemidade e & casa, desprezando suas fungées naturais, eram a fonte de todos 98 flagelos sociais.” Mais uma reivindicagao feminina & 0 ti- tulo de uma outra crdnica visando ridicu- larizar as demandas feministas por maior Participacao na sociedade: 44 no sao somente nas profissbes, Jando se limitam aos direitos civis e politicos: nao param também nos vestuérios as rei- vindicagbes das nossas ardentes feminis- las. M4 agora uma tendéncia pronuncia- da para usar coisas até agora permitidas ao sexo feio. £ assim que brevemente apareceré uma obra da ilustrada sta. X s+ feivindicando © direito de senhora: usarem barbas também* Utilizando-se de um exemplo absurdo e Grotesco, no caso a aspirago pelas mu- Iheres ao uso da barba, busca o autor in- duzir os leitores a encarar, igualmente, como tolas ou supérfluas as demais rei- vindicagées. E ao longo da narrativa nao faltam alusées a indignagao por tal pre- tensdo de “trazerem os rostos femininos os pelos macios que o homem ciosamente reserva para o seu exclusivo uso’. E na uti- lizacdo da barba, como exemplo de deman- da das feministas, pode estar implicita a pretensdo de mostra-las masculinizadas ou invejosas nao apenas de papéis vistos como privativos dos homens, mas igualmente de seus atributos fisicos. como Afinal, Freud nao enxergaria nas mulheres uma forte inveja do pénis? ©, para terminar, 0 autor nao deixa de as- sinalar mais uma das propaladas fraquezas femininas, nao escondendo 0 esforgo em apresentar as mulheres como seres ndo muito conseqientes. Assim, afirma que 0 referido uso da barba “servira ... para de- monstrar a falsidade da alegacao de que toda mulher é tagarela, pois necessaria~ mente terdo de ficar caladas, ao menos, enquanto fizerem a barba’. Alguns tentam manifestar sua oposicao as mudangas pretendidas pelas feministas, apelando para um tom cavalheiresco, pré- ximo ao piequismo. Aqui, 0 articulista nao deixa de ressaltar a dimensao sacralizada da mulher. representada pela maternidade que inicla o homem na sua caminhada pela vida, e este “obedece-a. e sem nunca mais poder esquecé-la ...". Seu "poder magico” exerce-se ndo “pela arrogancia, nao pela Imposicao mascula € viril que sao os predicados do homem, mas pelo tom sen- timental com que move todas as suas acées, mesmo matando quando ri, mesmo traindo quando beija’, no que abusa o au- tor em termos de morbidez ...” Em tom grandilogiente, acentua a im- portancia da sensibilidade, privativa da mulher, através da qual “dominando 0 homem, guia as criangas € governa 0 mundo”. E, em sequida, ressalta 0 ca- rater especifico das qualidades femini- nas que nao passam pela atividade in- telectual ou politica, Nao concebo a muther fora do seu cl- clo, apostrofando os deuses ou dis- cutindo a origem das espécies, Bla fo} feita para domar 0 homem. Que sera da humanidade o dia em que ela, ras- gando 0 peignoir de rendas, envergar © grosso capotao masculino © sair para a rua, no mais com aleve som- brinha de seda, mas com o humithan- té cacete do capanga eleltoral? Desa- parecerd o encanto dos salées, a alma da palsagem, 0 amor do lar... Repetem-se velhos esteredtipos, acer- ca da importancia de serem respeitados 0s diferentes atributos dos homens © mulheres, concepcéo presente na reli- gido, atualizada € sofisticada pelos f16- sofos iluministas e utilizada pela clén- cla. 0 tom da crénica caracteriza-se pela sisudez, em que pese sua excessiva melosidade, até chegar ao seu final, quando langa mao de um artificio por demais vulgar, aquele de que “s6 as muito feias ho de querer se emancipar s«. Coltadas! As bonitas nao”, porque a elas nunca faltaré um adorador. E, sem mais delongas: *...que nos importa as felast Salvem-se as belas, que a huma- nidade se aperfeicoard”. ‘een, fo 6 380640, 6.9, 1-2, p O-124, Jie 1990 - eH, 109

Você também pode gostar