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Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein SUMARIO Neste capitulo se delineiam os primeiros contrastes entre Frege, Russell ¢ Wittgenstein. Referem-se antes de tudo a teoria da nomeagao (a relagdo entre nomes e objetos) , de modo particular, aos termos que dizem respeito a obje- tos nao existentes (“termos ndo denotativos”). Em 5.2 se apresenta a teoria fre- geana da pressuposigao; em 5.3, a teoria russelliana das descrigdes definidas; em 5.4, a teoria da imagem do Tractatus de Wittgenstein. Qual é a forma logica dos enunciados que contém termos nao denotativos? A resposta depende das teorias da nomeagiio: para Frege, os nomes préprios tém sentido e referéncia; para Russell, sdo abreviagdes de descrigdes; e, para Wittgenstein, os nomes se referem diretamente a objetos. As diversas solugdes sobre a forma légica, que dependem desses pontos de vista, vao refletir-se sobre os diferentes modos de ver a relaco entre a linguagem natural ¢ a linguagem formal (5.5): Frege vé a linguagem formal como uma correedo dos limites da linguagem natural, en- quanto Wittgenstein, seguindo a teoria das descrigdes de Russell, procura na forma légica a esséncia da linguagem natural (5.6). 5.1. Frege, Russell e Wittgenstein A filosofia contemporanea da linguagem nasce da combinacao das relagdes de trés pensadores muito diferentes entre si, mas indissoluvel- mente ligados tanto por relagGes tedricas profundas como por intensas relagies pessoais: Frege, Russell e Wittgenstein. Wittgenstein conhecia bem e apreciava os trabalhos de Frege, que procurou quando jovem para aconselhar-se sobre o modo de prosseguir no estudo dos fundamentos da matematica. Frege o aconselhou a ir estudar em Cambridge com Ber- trand Russell, 0 légico e filésofo que tinha identificado uma contradi- cao no sistema formal fregeano (cf. Quadro 4). Wittgenstein se dirigiua 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 67 Cambridge e nasceu entao uma dificil, mas intensa colaboragao com 0 filésofo inglés, agraciado duas vezes com 0 prémio Nobel (de Literatura e da Paz). Wittgenstein exerceu forte influéncia sobre Russell, evidente em filosofia do atomismo légico (1918) ¢ na segunda edigio dos Prin- cipia Mathematica (1925), monumental trabalho de légica escrito por Russell e Whitehead, obra que constitui um marco miliar no desenvolvi- mento da légica formal juntamente com a Ideografia de Frege (1879) ¢ os Grundziige der Mathematik de Hilbert e Ackermann (1928). O primeiro e fundamental livro de Wittgenstein foi publicado em 1921, com o titulo de Tractatus logico-philosophicus, titulo ideado por George E. Moore, filésofo moral do grupo fundador da revolta antiidea- lista na Inglaterra e colega de Russell. Russell e Moore, alids, concede- ram ao jovem Wittgenstein o titulo de PhD, considerando 0 Tractatus co- mo a sua tese de doutorado. Embora ligados por uma histéria comum e pela mesma paixao pela 16- gica, Frege, Russell e Wittgenstein divergiram muitas vezes sobre algumas idéias fundamentais. Uma dessas divergéncias dizia respeito ao problema dos termos nao denotativos, a saber: expressdes como “Pégaso, o cavalo alado”, “Sherlock Holmes”, “Superman”, “Papai Noel”. Se os nomes sao expressdes da linguagem que se referem a objetos, a que se referem tais no- mes? E como avaliar os enunciados em que esses nomes aparecem? 5.2. Frege: termos nao denotativos e pressuposicao Como vimos em 4.1, Frege considera que todo tipo de expressio lin- giiistica da linguagem légica tem um sentido ¢ uma referéncia, segundo 0 seguinte esquema: Nome priprio __| Predicado Enunciado Sentido modo dedara |mododedara —_| pensamento referéncia referéncia Referéncia objeto conceito valor de verdade Extensio classe 68 Parte II - Linguagem e representacéo Frege usa o termo “nome proprio” no lugar daquele que indicamos em geral como “termo singular”, ou termo que tem como referéncia um tinico objeto. Uma tese fundamental de Frege é que expressdes que denotam um 86 objeto (um individuo) pressupdem a existéncia do individuo em ques- tio. Se eu digo “o homem que descobriu as érbitas elipticas dos planetas morreu na miséria”, ou também “Kepler morreu na miséria”, pressupo- nho que exista alguém que descobriu as érbitas elipticas dos planetas ou pressuponho que exista uma pessoa chamada Kepler. O argumento de Frege para fundamentar essa tese é simples. Se no enunciado “Kepler morreu na miséria” estivesse contido 0 pensamento que Kepler denota um individuo exis- tente, a negacao desse enunciado deveria ser “Kepler nao morreu na mi- séria, ouo nome ‘Kepler’ no denota coisa alguma”. Mas a negagao nor- mal do enunciado é obviamente “Kepler nao morreu na miséria”. Nisto se vé que quando se formula uma asser¢&o, pressupde-se a existéncia do individuo denotado pelo nome prdprio que se usa. A existéncia de um individuo chamado “Kepler” é uma pressuposigdio ou do enunciado em questao ou da sua negacao. E esta ¢ a primeira definigao da pressuposi- ¢ao semantica: uma pressuposicao seméntica de p é um enunciado q que deve ser ver- dadeiro, a fim de que ou p ou nao p possam ser verdadeiros; ou, esque- maticamente: p pressup6e semanticamente g se (a) se p € verdadeiro entao q € verdadeiro, (0) sep & falso entdio q é verdadeiro. “Kepler morreu na miséria/Kepler n&io morreu na miséria” pressu- poem “Kepler existe”; de forma andloga, “meu tio perdeu o trem/meu tio niio perdeu o trem” pressupdem que haja um trem e que exista meu tio. Normalmente, portanto, 0 uso de um nome préprio (ou de um ter- mo singular) pressupée a existéncia do individuo denotado pelo nome. Na linguagem natural, porém, é possivel introduzir nomes sem referéncia; 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 69 por exemplo, ¢ possivel falar de “Ulisses”, mesmo que este jamais tenha existido. Mas no sé para os objetos individuais concretos, mas também para os abstratos, é possivel construir expressdes que nao se referem a coi- sa alguma, por exemplo “a série menos convergente” ou “o maior nimero inteiro”. Com efeito, dado um nimero, por maior que seja, sempre existe um outro maior, pela propria definigdo de “numero inteiro”, Como se comportar, entéo, com os enunciados que tém termos nao denotativos? A teria légica de Frege tem na base um princfpio fundamental, 0 Tincipio de composicionalidade (cf.4.1), em vista do qual tanto 6 senti- do como a referencia do todo é fungao, respectivamente, do sentido e da referéncia das partes. Ora, se falta a uma parte a referéncia, 0 que se po- deria dizer do todo? Que também nao tem referéncia? Mas a referéncia de um enunciado é um valor de verdade, portanto, para Frege: um enunciado que contém um termo sem referéncia é também destitui- do de referéncia, ou seja, nao tem valor de verdade: nao é nem verda- deiro nem falso. 5.3. Russel légica descrigées definidas e forma Bertrand Russell (1872-1970) se rebela contra a idéia de Frege aci- ma mencionada ¢ pensa que o erro esta em acreditar que os nomes te- nham tanto sentido como referéneia. A partir de um famoso artigo de 1905, intitulado Sobre a denotagdo, e na sua introdugao aos Principia Mathematica, Russell combate tanto a tese de Frege como a ontologia extremamente rica do légico Alexius von Meinong, para o qual existem diversos tipos de objetos no existentes, dos quais é possivel dar uma classificacao (por exemplo, 0 quadrado redondo sera um tipo de objeto logicamente contraditério, ao passo que a montanha de ouro ou Pégaso, o cavalo alado, serio apenas fisicamente nao existentes, mas nao impli- cardio nenhuma contradig&o légica). Russell, levado aqui por uma forte sintonia com 0 empirismo, defende uma tese alternativa que pretende aparar “a barba de Plato” e fazer tabula rasa de todos os entes ideais de 70 Parte II - Linguagem e representacdo duvidosa existéncia. Como ponto-chave de sua alternativa a Frege e Mei- nong, Russell defendea tese pela qual o significado de um nome proprio se reduz ao fato de se referir a um objeto. Mas os nomes préprios da lin- guagem natural nado desempenham essa fungao justamente por nao da- rem garantia de se referirem a um individuo. Todos sabemos que Sher- lock Holmes nfo existe nem nunca existiu. Mas se os nomes préprios nao necessariamente denotam individuos existentes, que outra fungao de- sempenham? A resposta é a seguinte: os nomes préprios da linguagem natural so abreviagdcs de descri- Ges definidas. Os nomes proprios sao expedientes retéricos Uiteis por sua brevida- de: de fato abreviam descrigdes como “o autor de Waverley” ou “o ami- go do Doutor Watson e protagonista dos romances de Conan Doyle”. Deve-se, portanto, distinguir dois tipos de expresses diferentes: 1. as descrigdes definidas do tipo “o F”, como por exemplo “o Presi- dente do Conselho” ou “o Presidente dos EUA”, valem para todo aquele que satisfaga a propriedade. Os normais nomes préprios entram nesta categoria enquanto abreviagGes de descrigdes; 2. os nomes logicamente préprios, como as constantes individuais da légica matematica, desempenham a fungio de se referir diretamente a objetos, prescindindo de qualquer propriedade, Deve encontrar essa fungao na linguagem natural? Nas expressdes demonstrativas como “isto” e “aquilo” (por mais estranha que pareca, esta reflexio de Russell antecipa o debate sobre os demonstrativos que vai ocupar lugar central na filosofia subseqiiente, como se vera em 7.6). Essa diferenga entre tipos de expressao lembra uma tese epistemol6- gica fundamental no pensamento de Russell (e aqui semantica e episte- mologia caminham no mesmo ritmo, para o bem e para o mal), € por isso € necessario distinguir entre: (i) conhecimento por descrigao, que identifica um objeto enquanto se caracteriza por certas propriedades; 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 71 (ii) conhecimento direto, que identifica um objeto diretamente, pres- cindindo de suas propriedades sem mediaco conceitual. Uma vez decidido que os nomes proprios so abreviagGes de descri- goes, a andlise de Russell se desenvolve no plano estritamente semanti- co. Se os nomes proprios sdo abreviagdes de descrigdes, é desorientador trata-los como constantes individuais em uma linguagem légica; nou- tros termos, é errado traduzir enunciados como “Ciampi ¢ calyo” ou “o Presidente da Republica é calvo” por uma forma légica do tipo: Pa Onde “P” esta no lugar do predicado “...¢ calvo”, e a esténo lugar de “o Presidente da Republica”, A idéia original de Russell ¢ explicitar aquilo que se oculta por tras do artigo definido (“o”, “a” etc.) que carac- teriza as descrigdes definidas. A presenga do artigo definido subentende dois aspectos: a existéncia e a unicidade do individuo que possui as pro- priedades adscritas (muitas vezes limitadamente ao tempo da prolacao). Mas se as descrigées definidas dio como implicitas a existéncia e a uni- cidade, a sua forma légica deve explicita-las. A existéncia se expressa na linguagem légica por um quantificador 3xPx (“existe um certo x, tal quex éum P”). As descrigées definidas nfo podem, portanto, ser expres- ‘sas por constantes logicas — simbolos constantes que representam um in- dividuo — mas por uma expresso com uma variavel (por isso Russell Ihes da o nome de “simbolos incompletos”). Uma assercfo que contém uma descrigo deveria ser, portanto, reescrita em uma linguagem sem ambigiiidade, com uma forma que explicite a idéia de existéncia e unici- dade. Tomemos como exemplo esta frase: “o atual rei da Franga é calvo”. Neste enunciado temos uma descri¢ao definida. Para Frege, esta nao seria nem verdadeira nem falsa, visto nao existir nenhum atual rei da Franga, dado que a Franga é uma republica. Para Russell, este enunciado esconde a sua verdadeira forma légica sob uma forma gramatical, que pode induzir a erro, de sujeito-predicado. A sua forma légica deve expli- citar que: 1. exisie ao menos um individuo que é um atual rei da Franga; 72 Parte II - Linguagem e representacao 2. existe no maximo wm individuo que é um atual rei da Franga; 3. este individuo ¢ calvo. Abreviando 0 predicado “atual rei da Franca” por “F”, eo predicado “calvo” por “C”, essas trés condigdes podem ser expressas deste modo: (1) 3x (Fx a Vy (Fy > x =)) A Cx.) Traduzida em linguagem natural a forma légica da frase “o atual rei da Franga é calvo” se traduz em um complicado “Existe um alguém tal que éum atual rei da Franga e todo aquele que for um atual rei da Franga entao é igual a este, e este é calvo”. Este enunciado ¢ falso. De fato, é fal- so que exista um atual rei da Franca e esta falsidade torna falso todo 0 enunciado (a conjungao de p ~q se é falso um dos dois conjuntos). Um aparente problema para essa solucao russelliana é que, “se 0 rei da Franga é calvo” é uma proposicao falsa, a sua negacao deveria ser verdadeira; mas se “o rei da Franga nao é calvo” fosse verdadeira, isto pareceria pressupor a existéncia do rei da Franga, contra a hipotese assu- mida. Por outro lado, se dizemos que “o rei da Franca nao é calvo” é fal- sa, porque orei da Franga nao existe, corremos o risco de violar as leis da l6gica, segundo as quais vale p ou ndo pe tertium non datur, Segundo Russell, esta discussao nasce de um mal-entendido ligado ao fato de que existem duas diferentes possiveis representagdes formais da negacao do asserto “o rei da Franga é calvo”. As duas solugdes dependem da diversi- dade de Ambito (cf. 2.3) do operador de negacao, que tem ambito amplo em (2) e Ambito restrito em (3): (2) nfo 3x (Fx A Vy (Fy 9 x=y) A CX) (3) Sx Fx a Vy (Fy > x =y) Ando Cx). Enquanto (2) for uma formula verdadeira, (3) serd falsa. Obviamen- te a (2) éa formula que representa a negacdo de (1), salvando o terceiro excluido. Quine (cf. cap. 3) elabora uma radicalizacdo da estratégia de Russell propondo substituir os nomes por descrigdes definidas, usando predicados construidos sobre os proprios nomes. Por exemplo, 0 termo “Pégaso” é substituido por “o Unico x que pegasiza”. Ainda mais facil dizer que Pégaso nfo existe: basta dizer que nada pegasiza. E nao ha 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 73 problema em dizer que existem predicados sem extens’o ou com exten- sao vazia. Russell, e com ele Quine, aleangam o objetivo de salvar a bivaléncia (cf. Quadro 16): todos os enunciados da linguagem, inclusive os enunciados com ter- mos nao denotativos, tém sempre um valor de verdade. Esta é uma resposta forte a idéia de Frege, segundo a qual enuncia- dos com termos nao denotativos nao tém valor de verdade (cf. 5.2). Observe-se, além disso, que Russell consegue chegar a essa solucao através de uma nitida distingdo entre forma gramatical e forma légica, que se acha na base da revolugao légica de Frege (cf. 2.5). A partir disso se vé que definir qual é a forma logica de certos tipos de expressao é uma questao que pode encontrar diversas solugdes alternativas. A discussdo sobre a forma légica de diferentes tipos de expresso ira se tornar uma das principais fontes de contraste entre correntes filoséficas diferentes, nao s6 em filosofia da linguagem, mas também em metafisica e ontolo- gia. Discutiremos esse ponto em 6.1, depois de ter visto a posigéio de Wittgenstein sobre o argumento. 5.4, Os nomes do “Tractatus” e a teoria da imagem Wittgenstein é um dos filésofos mais famosos do século XX. As suas duas publicagées principais, o Tractatus logico-philosophicus e as Investigagées filoséficas, deram origem a duas escolas filoséficas que se contrapdem, 0 neopositivismo do Circulo de Viena, que surgiu por volta dos anos 1920, ¢ a filosofia da linguagem ordinaria que se desenvolveu_ em Oxford, na década de 1940 (cf. 6.1 ¢ 10.1). No Tractatus, Wittgenstein, como paladino da nova légica, desen- volve as idéias de Frege e Russell realizando uma espécie de traducdo lingiiistica do problema kantiano dos limites do pensamento: os limi- tes do pensamento sao os limites do dizivel. Deve-se dispor, portanto, de 74 Parte II - Linguagem e representagao uma teoria capaz de revelar a esséncia da linguagem, que distinga entre aquilo que pode ser dito (aquilo que se pode pensar) daquilo que nao pode ser dito com proposigdes, mas s6 pode ser mostrado. Para conse- guir isso, deve-se explicitar a forma logica da linguagem, Retomando o principio do contexto de Frege (cf. a esse propésito 4.4), Wittgenstein lembra que os nomes sé se dao no contexto de um enunciado. Todo debate sobre os nomes deve portanto partir do papel que eles tém no enunciado. Uma teoria dos nomes pressupée, deste modo, ‘uma teoria dos enunciados. Encontramos no Tractatus duas teorias dos enunciados que se apdiam_ reciprocamente, embora sejam em parte independentes uma da outra: 1. a teoria do enunciado como imagem; 2. a teoria do enunciado como fungio de verdade. Veremos no capitulo seguinte o segundo componente da estrutura geral do Tractatus. Aqui falaremos, a seguir, apenas da teoria da ima- gem. Caracteristica do Tractatus é considerar 0 enunciado como uma imagem (Bild) da realidade. E necessario, entao, partir de uma teoria da imagem ou da representagao. Pense-se nos diversos modos como se pode representar um acidente de automével: com miniaturas de autom6- veis, com um desenho a cores, com um grafico. Toda imagem desse tipo se caracteriza por ter: (i) uma série de elementos que representam objetos do mundo; (ii) um modo de colocar esses elementos que representa 0 modo como estao situados no mundo; (iii) uma forma especifica de representagao (tridimensional, a cores, grifica), Analogamente, um enunciado representa um estado de coisas e se caracterizard por ter: (i) nomes que estao no lugar dos objetos; (ii) uma configuragdo dos nomes que representa o modo como estio Os objetos entre si. 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 75 O enunciado, porém, nao possui uma forma especifica de represen- tagao, mas tem aquilo que todas as imagens devem todavia ter em co- mum coma situagao representada: a forma légica. Como se mencionou ha pouco, diversos tipos de imagem tém em comum com a realidade al- guns aspectos da propria forma de representagao (a escultura tem os as- pectos tridimensionais, a pintura as cores, o desenho as proporgses etc.) Quanto ao enunciado, que é a imagem constituida por simbolos, nao pode compartilhar com a realidade esses aspectos concretos, mas deve ter sempre algo em comum com ela: a forma mais abstrata, ou sua forma logica. Também os outros tipos de imagens, como a escultura ¢ a pintu- ra, tém em comum coma situagdo representada a forma légica, além dos aspectos concretos acima lembrados. O enunciado, todavia, tem em co- mum com a realidade representada somente a forma légica: 0 modo como 0s elementos do enunciado estao em relagio entre si reflete de ma- neira essencial 0 modo como os objetos esto em relagao entre si na situa- ao representada. Neste quadro se insere a teoria wittgensteiniana da nomeagao. Embo- ta se reportando muitas vezes a Frege, Wittgenstein nao aceita algumas de suas teses, em particular que os nomes tenham tanto um sentido como uma referéncia. Ele defende, com efeito, uma tese alternativa: os nomes se referem diretamente a objetos, sem nenhuma media¢éo cognitiva ou conceitual. A sua andlise dos nomes ¢ fundamental para todo o sistema. Com cfeito, Wittgenstein indica um objetivo, o de chegar a enunciados anali- sados em seus componentes tiltimos, enunciados “atémicos” ou “‘ele- mentares”. A forma ldgica dos enunciados elementares § um conjunto de nomes conectados entre si. Os nomes se referem diretamente aos ob- Jetos simples. O que seriam os objetos simples nao esta claro: alguns conjeturam que Wittgenstein estaria pensando nos atomos da fisica, ou- tros nos dados dos sentidos, outros na substancia aristotélica, outros en- fim que a simplicidade dos objetos dependeria da linguagem escolhida. Mas Wittgenstein nunca dard um exemplo de um objeto simples: consi- 76 Parte II - Linguagem e representacdo derava o problema da competéncia dos cientistas, nao dos l6gicos ou dos filosofos. 5.5. Revelar a forma légica: o conceito de sentido e a ontologia Embora nao fique definido 0 que seja um objeto simples, presu- me-se todavia que existam objetos simples e a pesquisa da forma logica de enunciados atémicos e compostos permanece como um ponto firme do Tractatus. Wittgenstein recorda como a forma légica se acha “traves- tid’ na linguagem comum por acordos e convengdes que impedem cap- ta-la com clareza. Cabe entao ao lgico e ao filésofo mostrar com clare- za. a forma logica da linguagem, e um exemplo neste sentido é constitui- do pelo trabalho de Russell sobre as descrigdes definidas. Outro exem- plo éa analise do verbo “ser”. Nas linguas indo-européias, acordos e convengées nos permitem compreender-nos usando 0 verbo “ser” para varias fungdes da linguagem: uma anilise da forma légica de enunciados com “é” ajuda a compreender as diferengas profundas que se escondem por tras de uma aparente seme- Thanga dada ao uso do mesmo verbo na linguagem natural. O verbo “ser”, com efeito, desempenha a triplice fungi de cdpula, identidade ¢ existén- cia (TLP 3.323). Na linguagem légica o verbo “ser” desaparece e é substi- tuido por varias expresses ndo ambiguas, que manifestam uma forma l6- gica muito diferente da forma gramatical aparente (nome e copula). De- pois do desenvolvimento da légica matemitica, a forma logica dos enun- ciados da linguagem natural que contém o verbo “ser” se tornou um pa- drdo. Esses enunciados podem, além disso, ser facilmente compreendidos por falantes de outras linguas, como o chings, que tém uma estrutura onde no ha um verbo “ser” polivalente, tipico das linguas indo-européias. Eis um exemplo padrio de tradugio: Todo francés é jovial Vx(Fx—(Gx) inclusdo Abelardo é francés Fa pertenga Aldo é 0 rei da Franca a=b identidade Existe (vi é) ao menos um francés AxFx existéncia 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 77 Aqui, diversamente de Wittgenstein, distinguimos os dois diferentes usos do verbo “ser” como cépula (isto &, como predicagio, bem claros em légica depois de Cantor e Frege: (0 ocair de um conceito dentro de outro conceito (inclustio de classes); Gi) 0 cair de um objeto sob um conceito (pertenca de um elemento a uma classe). Na anilise da forma légica, um papel fundamental ¢ desempenhado, segundo Wittgenstein, pela negacao da tese de Frege que considera que os nomes tém sentido e referéncia. Se para Wittgenstein os nomes nio t&m sentido, mas apenas referéncia, por outro lado os enunciados tem um sen- tido. E uma primeira definig&o do sentido de um enunciado contém uma referéncia implicita 4 forma légica ¢ ao tema do dizer e do mostrar: enunciado mostra o seu sentido. Ele mostra como estio as coisas se é verdade (mostra a condigao na qual 0 cnunciado seria verdadciro), ¢ diz que as coisas estao assim (TLP 4.022). Noutras palavras, o enunciado mostra o seu sentido quer através das relagdes entre nomes e objetos quer mediante a sua forma légica, aquilo que possui em comum com a realidade, a forma do estado de coisas re- presentado. Dedicaremos o préximo capitulo 4 andlise do sentido dos enunciados. Vamos agora concluir este paragrafo com uma alusao a on- tologia do Tractatus. Uma andlise da forma ldgica dos nossos enunciados nos leva, com efeito, a raciocinar sobre a maneira como é feito o mundo e também se 0 Tractatus comega com uma ontologia, é dbvio que esta procede da and- lise da linguagem e da teoria da imagem. E mais ou menos como se Wittgenstein se perguntassi omo é que deve ser o mundo se a lingua- gem é essencialmente um conjunto de enunciados constituidos por uma concatenagtio de nomes? Uma concatenagao de nomes é a imagem de um estado de coisas, Um estado de coisas, um conjunto de objetos em relag&o uns com os outros, pode subsistir ou nfo subsistir. Os enuncia- dos sao efetivamente imagens de situagdes possiveis. E isso permite 78 Parte II - Linguagem e representacao compreender como se pode dizer o falso: dizer o falso é proferir um enunciado que representa uma situagao ou um estado de coisas que no subsiste. Deve-se, portanto, distinguir entre os possiveis estados de coi- sas, aqueles que subsistem, ou seja, aqueles que chamamos de “fatos”. O mundo é 0 conjunto dos fatos, dos estados de coisas subsistentes, que correspondem aos enunciados verdadeiros. Os objetos, que sao a subs- tancia do mundo, ainda nao formam, todavia, um mundo. Um mundo é tudo aquilo que acontece, portanto 0 conjunto dos fatos, ndo das coisas. O mundo atual é apenas um dos muitos mundos possiveis, ou seja, dos intimeros conjuntos de possiveis estados de coisas. Em cima dessa metafora ira se desenvolver uma das mais vigorosas semanticas do sécu- lo XX, a semAntica dos mundos possiveis (cf. capitulo 6). 5.6. Linguagem natural e forma légica: 0 atomismo Iégico Com a anilise de Frege, Russell e Wittgenstein, estamos diante de um contraste de principio, baseado sobre algumas idéias de fundo co- muns. Tal como Frege (cf. 2.5), também Russell distingue forma grama- tical e forma légica. Assim como Frege (cf. 1.4), Russell também reco- nhece que a linguagem natural ¢ muitas vezes ambigua ¢ leva a extra- vios. Mas as duas visées sobre o que seja a forma légica divergem em duas posigdes antagGnicas: * uma visao reformista ou corretiva afirma que uma parafrase em forma légica visa corrigir a linguagem natural e tornd-la menos am- bigua; + jduma visdo hermenéutica vé na parafrase em forma légica o modo de explicitar a verdadeira estrutura profunda subjacente a linguagem natural (sua esséncia). Frege considera que a linguagem natural leva a descaminhos por ser inevitavelmente imperfeita, e pensa que somente uma linguagem sim- bélica diferente, artificial como 0 formalismo légico que ele inventou, pode evitar as ambigiiidades e os equivocos tipicos da linguagem co- mum. Russell sugere uma outra idéia: a linguagem comum, uma vez 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 79 corretamente interpretada, revela uma forma légica subjacente que lhe tira a ambigiiidade. Essa idéia de Russell, que emerge claramente em sua teoria das descrigdes, é considerada muito importante por Wittgens- tein que, neste ponto, se pde do lado de Russell: “a linguagem est4 em ordem tal como é”. Se nos engana ou nos parece ambigua, é porque a sua esséncia ou a sua verdadeira forma légica nos estio escondidas. Os “ta- citos entendimentos” da comunicacdo e do discurso nos impedem mui- tas vezes de compreender a verdadeira forma lgica daquilo que dize- mos. Através da anilise, porém, podemos identificar a forma légica sub- jacente superficie gramatical, assim como Russell mostrou paradig- maticamente que a forma légica das descrigdes definidas nao é aquela que aparece na gramatica superficial. A andlise da linguagem deveria le- var a identificacdo da forma légica das proposigdes nao ulteriormente reduziveis, as proposigdes “atémicas”. Essa teoria, desenvolvida depois de Russell e Wittgenstein pelos pri- meiros neopositivistas, recebe 0 nome de “atomismo légico”. A deno- minacao lembra a andlise quimica que encontrou uma escrita simbélica para descrever as regras com as quais as moléculas sao construidas a partir dos atomos (e da sua estrutura). Assim, de modo analogo, deveria a légica encontrar uma escrita simbélica que permitisse descrever como as proposigdes complexas sfio construidas a partir de proposigées ele- mentares ou at6micas. Desta maneira se esclarece em parte o trabalho do légico: dar 0 es- queleto da linguagem, a estrutura essencial do modo como funciona a relagdo entre palavras e objetos do mundo sem entrar em pormenores. Nasce, ainda que nos contrastes de viso filos6fica, o projeto de uma se- méantica formal que tem necessidade de idéias metodoldgicas claras. Nasce uma coisa que tem, em confronto com a légica tradicional, 0 pa- pel da quimica diante da alquimia. No centro desta anilise esta 0 concei- to wittgensteiniano de “sentido”, que constitui um desenvolvimento e um esclarecimento das idéias fregeanas. A este ponto se dedica o proxi- mo capitulo. 80 Parte II ~ Linguagem e representacao jografia essencial CHATEAUBRIAND, Oswaldo. Logical Forms (Part I) — Truth and Description Vol. 34. Campinas: Unicamp, 2001 [Colegao CLE]. FREGE, Gottlob. Légica e filosofia da linguagem. Sao Paulo: Cultrix/Edusp, 1978 [Trad. de Paulo Alcoforado). RUSSELL, Bertrand. Inirodugao a filosofia matemdtica. Rio de Janeiro: Za- har, 1974 [Trad. de Giasone Rebua]. — “Da denotacao”. In: Russeil/Moore. So Paulo: Abril, 1974 [Colegio Os Pensadores ~ Trad. de varios colaboradores]. — Significado everdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1978 [Trad. de Alberto Oliva]. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Sto Paulo: Edusp, 1994 [Trad. de Luis Henrique Santos]. 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 81 — Objetos ¢ forma légic : © Tractatus logico-philosophicus 1. O mundo é tudo aquilo que aconiece 1.1. O mundo é a totalidade dos fatos, no das coisas. 2, Aquilo que acontece, 0 fato, é o subsistir de estados de coisas 2.01. O estado de coisas é um encadeamento de objetos 2.03. No estado de coisas os objetos esto interconectadas, camo os elos de uma cadeia 2.1. Nés nos fazemos imagens de fatos 2.12. A imagem é um modelo da realidade 2.13. Aos objetos correspondem na imagem os elementos da imagem 2.2. A imagem tem em comum com o representado a forma logica de represen- tag! 3. A imagem ligica dos fatos é 0 pensamento 3.1, Na proposigo o pensemento se exprime de modo perceptivel pelos senti- dos 3.2. Naproposigdo o pensamento pode ser expresso de tal modo que aos objetos do pensamento correspondam elementos do signo proposicional, 43.3. Somente a proposiggo tem sentido; s6 no contexto da proposigdo um nome tem significado 3.326. Para reconhecero simbolo no signo deve-se considerar ouso com sentido. 4. O pensamento ¢ a proposiedo com sentido 4,022. A proposicio mostra o seu sentido. A proposigao mostra como esto as coisas, se ela é verdadeira. E diz que as coisas esto assim 4,024. Compreender uma proposigao é saber o que acontece se ela é verdadeira 4.1. A proposicao representa o subsistir ¢ néo subsistir de estados de coisas 4.2. O sentido da proposicdo é a sua concordancia e ndo-concordancia com as possibilidades do subsistir e niio-subsistir dos estados de coisas 4.22. A proposicdo elementar consta de nomes. Bla é uma conexio, um encade- amento de nomes 4,431. A expressiio da concordincia e ndio-concordincia com as possibilidades de verdade das proposigdes elementares exprime as condigdes de verdade da proposigio. A proposigdo & a expressdo das suas condigdes de verdade. (Fre- ge, portanto, corretamente, as antepde como explicagio dos signos de sua ideo- grafia). 5. A proposigéo é uma funedo de verdade das proposicées elementares 6. A forma geral da funcito de verdade é: [p, & N@)] 7. Sobre aguilo de que niio se pode falar deve-se calar 82 Parte II - Linguagem e representacaio

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