Você está na página 1de 523

1Coríntios - Série Comentários Bíblicos

João Calvino
Título do Original: Calvin’s Commentaries: The First Epistle of Paul the Apostle to the Corinthians
Edição baseada na tradução inglesa de T. A. Smail, publicada por Wm. B. Eerdmans Publishing
Company, Grand Rapids, MI, USA, 1964, e confrontada com a tradução de John Pringle, Baker
Book House, Grand Rapids, MI, USA, 1998.

Copyright © Editora Fiel 2013


Primeira Edição em Português 2013

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária

Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores,
salvo em breves citações, com indicação da fonte.

A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil
(SBB)

Diretor: James Richard Denham III


Editor: Tiago Santos
Tradução: Rev. Valter Graciano Martins
Revisão: Editora Fiel
Capa: Edvânio Silva
Diagramação: Rubner Durais
Ebook: Yuri Freire

ISBN: 978-85-8132-172-1
Dados Internacionais de Catalog aç ão na Publicaç ão (CIP)
(Câmara Bras ileira do Liv ro, SP, Bras il)

C168r Calvino, João, 1509-1564


1Coríntios / João Calvino ; [tradução de Valter Graciano Martins]
– São José dos Campos, SP : Fiel, 2014.
2Mb ; ePUB – (Comentários Bíblicos)
Tradução de: 1Corinthians.
Prefácio de Augustus Nicodemus Lopes.
Inclui referências bibliográficas.
ISBN 978-85-8132-172-1
1. Bíblia. N.T. 1Coríntios - Comentários. I. Título.
II. Série.
CDD: 227.107

Caixa Postal, 1601


CEP 12230-971
São José dos Campos-SP
PABX.: (12) 3919-9999
www.editorafiel.com.br
Sumário

Prefácio à edição em português


Dedicatória
Segunda Dedicatória
Análise da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios

Capítulo 1
Versículos 1 a 3
Versículos 4 a 9
Versículos 10 a 13
Versículos 14 a 20
Versículos 21 a 25
Versículos 26 a 31

Capítulo 2
Versículos 1 a 2
Versículos 3 a 5
Versículos 6 a 9
Versículos 10 a 13
Versículos 14 a 16

Capítulo 3
Versículos 1 a 4
Versículos 5 a 9
Versículos 10 a 15
Versículos 16 a 23

Capítulo 4
Versículos 1 a 5
Versículos 6 a 8
Versículos 9 a 15
Versículos 16 a 21

Capítulo 5
Versículos 1 a 5
Versículos 6 a 8
Versículos 9 a 13

Capítulo 6
Versículos 1 a 8
Versículos 9 a 11
Versículos 12 a 20

Capítulo 7
Versículos 1 a 2
Versículos 3 a 5
Versículos 6 a 9
Versículos 10 a 17
Versículos 18 a 24
Versículos 25 a 28
Versículos 29 a 35
Versículos 36 a 38
Versículos 39 a 40

Capítulo 8
Versículos 1 a 7
Versículos 8 a 13

Capítulo 9
Versículos 1 a 12
Versículos 13 a 22
Versículos 23 a 27

Capítulo 10
Versículos 1 a 5
Versículos 6 a 12
Versículos 13 a 18
Versículos 19 a 24
Versículos 25 a 33

Capítulo 11
Versículos 1 a 16
Versículos 17 a 22
Versículos 23 a 29
Versículos 30 a 34

Capítulo 12
Versículos 1 a 7
Versículos 8 a 13
Versículos 14 a 27
Versículos 28 a 31

Capítulo 13
Versículos 1 a 3
Versículos 4 a 8
Versículos 9 a 13

Capítulo 14
Versículos 1 a 6
Versículos 7 a 17
Versículos 18 a 25
Versículos 26 a 33
Versículos 34 a 40

Capítulo 15
Versículos 1 a 10
Versículos 11 a 19
Versículos 20 a 28
Versículos 29 a 34
Versículos 35 a 50
Versículos 51 a 58

Capítulo 16
Versículos 1 a 7
Versículos 8 a 12
Versículos 13 a 22
Prefácio à Edição em Português

As cartas de Paulo à igreja de Corinto formam uma importante parte do


cânon no Novo Testamento. Os problemas que surgiram naquela igreja, de
ordem doutrinária, prática e litúrgica, deram ensejo ao apóstolo de
responder com orientações cujo valor, relevância e aplicação transcendem,
em muito, os limites daquela época e lugar, chegando aos nossos dias como
a inspirada Palavra de Deus.
A semelhança entre a situação da igreja de Corinto e as igrejas
evangélicas no Brasil na primeira metade do século XXI é surpreendente.
Junto com a vitalidade e o crescimento numérico, ambas compartilham
desafios similares: divisões internas, liderança despreparada, falta de
disciplina, questões relacionadas com o papel das mulheres na igreja e do
uso dos dons espirituais nos cultos, além da infiltração de heresias
perniciosas, como a negação da ressurreição dos mortos.
Por estes motivos, entre outros, 1 e 2 Coríntios estão entre as cartas
paulinas mais relevantes para os nossos dias. E, naturalmente, bons
comentários que nos ajudem a entendê-las mais e melhor são muito bem
vindos.
É o caso do comentário que o leitor tem em mãos.
João Calvino publicou este comentário em 1546, quando era pastor da
igreja reformada de Genebra. O comentário fazia parte de uma série de
outros cuja base era suas pregações expositivas nos livros do Novo
Testamento. Quando nos lembramos de que este ano em particular foi de
grandes preocupações e aflições para o Reformador – as ameaças de Carlos
V contra a Reforma e uma acusação de heresia contra Calvino por dois
pastores (alcoólatras) de Genebra – ficamos admirados de como, apesar de
tudo isto, Calvino encontrou tempo e paz de espírito para preparar e
publicar um comentário deste porte.
Os comentários de Calvino, apesar de terem sido escritos a cerca de 450
anos atrás continuam entre os mais vendidos, lidos e consultados pelos
estudiosos da Bíblia. Isto se deve a vários fatores que fizeram de Calvino um
dos melhores exegetas das Escrituras na longa história da Igreja Cristã.
Primeiro, sua confiança inabalável nas Escrituras como a Palavra
autoritativa e infalível de Deus, o que o conduzia a sondar de maneira
respeitosa os seus mistérios.
Segundo, sua preparação pessoal. Calvino conhecia as línguas originais
da Bíblia, era versado nos Pais da Igreja, estava familiarizado com os
teólogos e intérpretes que vieram antes dele, além de uma vasta educação
literária e filosófica decorrente de sua formação humanista.
Terceiro, Calvino amava a brevidade e a clareza, duas características
indispensáveis de qualquer autor que queira realmente ser lido e
compreendido. É impressionante como ele consegue com poucas palavras
nos transmitir de maneira profunda e clara o significado da mente do
apóstolo Paulo ao escrever esta carta aos coríntios.
Quarto, Calvino não se perde em discussões fúteis e inúteis. Mesmo
quando ele trata de aplicações contemporâneas dos princípios que
descobre nas palavras do apóstolo Paulo, ele o faz de tal forma que o leitor
moderno consegue encontrar aplicações para seus próprios dias.
Quinto, o sistema teológico de Calvino – que mais tarde veio a ser
chamado de calvinismo por seus discípulos – funcionava como fator de
coerência e integração em seu pensamento, orientando seu pensamento e
organizando suas ideias, de maneira que seus comentários refletem uma
unidade e coesão interna surpreendentes. É muito fácil para quem escreve
comentários se contradizer num ponto ou noutro ao analisar diferentes
passagens. A coesão do pensamento de Calvino livrou-o deste perigo a
maior parte do tempo.
Por último, Calvino escreveu comentários não com o objetivo de
contribuir, de maneira acadêmica, para que os estudiosos de sua época
satisfizessem sua curiosidade sobre passagens difíceis de 1Coríntios. Não,
ele escreveu com coração pastoral, com o objetivo de aplicar as verdades
desta carta às consciências de seus leitores. Por este motivo, suas
explicações com frequência são entremeadas com conceitos teológicos que
desaguam em considerações práticas. O comentário de Calvino em
1Coríntios satisfaz mente e coração.
Por estes motivos, além da minha dívida teológica a João Calvino, é que
me sinto profundamente honrado em escrever este prefácio.

Augustus Nicodemus Lopes, Ph.D.


São Paulo, Novembro de 2013.
Dedicatória

Ao mui ilustre varão, Tiago, senhor da Borgúndia,


de Falais e de Breda etc.1

Neste meu comentário, esforcei-me por fazer uma exposição desta


epístola de Paulo, a qual não é menos difícil do que [em extremo] valiosa.
Muitos me têm solicitado este comentário; na verdade, há muito tempo que
fazem insistente apelo por sua publicação. Agora que está publicado, tão-
somente desejo que o mesmo venha igualmente satisfazer suas esperanças e
anseios. Não digo isto com o fim de granjear alguma recompensa para meu
trabalho na forma de louvor, porquanto tal ambição deve ficar longe dos
servos de Cristo; mas o que desejo é gerar benefício para todos, e não posso
alcançar tal objetivo se ele não for aceitável. Tenho deveras labutado com a
máxima fidelidade e diligência para que, sem qualquer importunidade, a
obra seja do mais elevado valor para a Igreja de Deus. Quanto mais êxito
tiver, mais meus leitores julgarão de acordo com a real praticidade da obra.
De qualquer forma, creio que consegui fazer com que este comentário
seja de inusitada ajuda na conquista de uma completa compreensão do
pensamento de Paulo. Certamente, meu honorável senhor, estou certo de
que vós achareis plenamente compreensível, e até mesmo indispensável,
que vos aconselhe a não permitir-vos que fiqueis excessivamente afeiçoado
a mim. Mesmo que tal aconteça, não obstante terei vosso veredito na mais
elevada conta, a fim de que eu possa considerar meu trabalho como tendo
atingido seu mais elevado sucesso, se porventura tiver alcançado vossa
inestimável aprovação.
Além do mais, ainda que vo-lo dediquei, não foi só na esperança de ele
vos agradar, mas por muitas outras razões, das quais a mais importante é
que vossa vida pessoal confirme perfeitamente um dos temas da carta de
Paulo. Pois enquanto no presente tempo há tantos que convertem o
evangelho numa filosofia fria e acadêmica, acreditando que têm feito tudo
quanto deles é requerido, e feito devidamente, embora acenem suas cabeças
em assentimento ao que têm dito, vós, por outro lado, para nós sois um
conspícuo exemplo desse poder vivo sobre o qual Paulo insiste tanto. O
que pretendo dizer é que quando olhamos para vós, compreendemos o que
significa esse vigor espiritual que, afirma Paulo, jorra do evangelho.
Naturalmente, não faço menção dessas coisas para vossa satisfação pessoal,
senão que acredito ser de grande importância do ponto de vista do exemplo
[cristão].
Vós pertenceis à primeira classe da nobreza, obtivestes e usufruístes de
elevada e ilustre posição na vida, e sois prendado com qualidades e
riquezas (posições que se acham atualmente todas enxameadas de
corrupções!). Ora, certamente seria algo por si mesmo importante se vós,
em tais circunstâncias, não só levásseis uma vida disciplinada e temperada,
mas também conservásseis vossa família sob controle mediante uma
adequada e saudável disciplina. De fato tendes levado ambos estes
[deveres] ao pleno cumprimento. Pois vosso comportamento tem sido tal,
que a todos tem sido uma clara evidência de que não há em vós o menor
traço de egoísmo.
Sempre que foi necessário que mantivésseis vosso esplendor, o fizestes
de tal forma que estabeleceu-se um moderado padrão de vida, e jamais
houve qualquer rasgo de mesquinhez ou de avareza; e, todavia, sempre bem
a descoberto, evitastes mais do que buscastes um magnificente estilo de
vida. Tende-vos mostrado tão cortês e considerado, que todos foram
forçados a louvar vosso despretencioso comportamento. De fato não há a
mais leve evidência de orgulho ou de arrogância que viesse a gerar ofensa
em alguém. No que tange a vossa família, é-nos suficiente dizer, numa
palavra, que tem sido ela conduzida de tal maneira como para refletir a
mente de seu senhor e de seu modo de vida, precisamente como um espelho
reflete a imagem de alguém. Tal coisa por si só teria dado ao povo um claro e
notável exemplo de virtude a ser imitada.
Mas há algo que considero ainda mais importante. Tendes sido
erroneamente acusado diante do Imperador pelos embustes de homens
ímpios, e que, por nenhuma outra razão senão o fato de que imediatamente
o reino de Cristo começa a fazer progresso em alguns lugares, os leva à
demência e frenesi. Mas (e eis o que é mui importante) tendes mantido uma
coragem que nada tem a ver com debilidade, e agora estais vivendo como
num exílio de vossa terra natal, com uma grande porção de estima como
tivestes anteriormente, quando a honráveis com vossa presença. Não
pretendo mencionar outros fatores, visto que seria tedioso adicionar algo
mais. Na verdade, os cristãos devem sempre considerar como algo mais que
comum e costumeiro, não só deixar estados, castelos e desprezar, em
comparação a ele [Cristo], tudo quanto é tido como mui precioso na terra.
Entretanto, quase todos nós somos negligentes e indiferentes a pactos, de
modo que a virtude particular é especialmente merecedora de nossa
admiração. Portanto, no tempo em que podemos vê-lo tão nitidamente em
vós, só desejo que tal fato possa despertar muitas pessoas, de modo que
queiram imitar tal atitude, e, em vez de continuarem para sempre
escondendo-se em seu confortável aconchego, possam um dia sair em
público trazendo toda a centelha do espírito cristão que porventura
tenham.
Ora, quando os homens vos atacam trazendo freqüentemente novas
acusações contra vós, fazem notório que são violentos inimigos da religião,
e nada ganharão disto senão fazer-se mais e mais detestáveis, favorecendo
mui contundentemente a mentira. Com certeza alguns, em seu são juízo,
acreditam que os tais são cães raivosos, visto que procuram estraçalhar-vos,
e então, ao perceberem que não podem abocanhar-vos, vingam-se ladrando
contra vós. É bom que assim façam a certa distância, pois então não
conseguirão causar-vos nenhum dano. Mas, ainda que os maus feitos dos
ímpios resultem na perda de muitas de vossas possessões, em nada
diminuem da glória real com que os crentes vos consideram. Mas, como
cristão que sois, deveis ter uma visão mais ampla que esta. Pois não estais
satisfeito com nada mais senão com a glória celestial, a qual vos é guardada
com Deus, e que será trazida à luz assim que nossa natureza externa perecer.
Mui ilustre senhor, e nobre família, adeus. Que o Senhor Jesus vos guarde
a salvo perenemente, para a expansão de seu Reino; e que ele mesmo vos
conserve sempre vitorioso sobre Satanás e sobre toda a hoste de seus
inimigos.

Genebra, 24 de janeiro de 1546


1. Após 1551, esta dedicatória foi suprimida das edições do comentário, em decorrência da
disputa que suscitou-se entre Calvino e o senhor de Falais sobre Balsec. Mantemo-la aqui
porque a segunda dedicatória faz alusão ao incidente.
Segunda Dedicatória

Saudação a um fidalgo, mais excelente por suas virtudes do que por seu
nobre nascimento, senhor Galliazo Carracciolo, filho único e legítimo
herdeiro do Marquês de Vico.
Quando este comentário foi pela primeira vez publicado, eu não tinha
conhecimento ou não estava totalmente familiarizado com o homem cujo
nome anteriormente apareceu nesta página, e agora sou obrigado a suprimi-
lo. Certamente, não me sinto temeroso de que venha ele a acusar-me de
leviandade ou de queixar-se de mim por ter subtraído dele o que outrora lhe
dera; pois, tendo ele deliberadamente procurado não só manter-se tão longe
quanto possível de mim, pessoalmente, e também por deixar de entender-se
com nossa igreja, ficou sem qualquer justificativa para protestar. Entretanto,
é com relutância que renuncio minha costumeira prática e elimino de meus
escritos o nome de alguém; e lamento muito que tal pessoa tenha caído da
elevada posição que eu lhe tenha dado, o que significa que ela deixou de dar
bom exemplo a outrem, precisamente como eu esperava dele. Porém, visto
que a cura deste mal não se acha em minhas mãos, então que tal pessoa, no
que me diz respeito, fique em total olvido, pois ainda agora sinto-me
ansioso por calar-me sobre ela, e portanto sem mais trazer qualquer
prejuízo a sua reputação.
Mas, no que concerne a vós, mui honrado senhor, eu teria que encontrar
algum pretexto para então substituir o outro nome pelo vosso, embora não
me aventurei a tomar tal liberdade, confiando em vossa insuspeitável
bondade e amor para comigo, o que é notoriamente conhecido de todos os
nossos amigos. Voltando a mencionar meus desejos, gostaria deveras de ter-
vos conhecido há dez anos atrás, porque não teria tido motivo algum para
fazer agora tal mudança. E esta se presta agora tanto para o bem quanto para
servir de exemplo à Igreja como um todo, não só pelo fato de que não vamos
sentir que sofremos alguma perda ao esquecermo-nos daquele que se
afastou de nós, mas porque seremos compensados, em vós, por um exemplo
ainda mais rico, e deveras preferível, em todos os sentidos. Porque, ainda
que não estais correndo após os aplausos do povo, vivendo satisfeito em
ter Deus como vossa única testemunha; e ainda que não tenho nenhuma
intenção de cantar-vos louvores, todavia meus leitores não devem ser
deixados completamente em trevas acerca do que lhes é proveitoso e
benéfico saber. Sois um homem nascido numa família nobre; gozais de
grande prestígio e de grandes riquezas; fostes abençoado com uma esposa
da mais nobre origem e da mais elevada virtude, com muitos filhos, com paz
e harmonia em vosso lar; na verdade tendes sido abençoado em todas as
circunstâncias de vossa vida. Mas para que passásseis para o campo de
Cristo, deixastes espontaneamente vossa terra natal, abandonastes
propriedades férteis e aprazíveis, esplêndida herança e uma casa tanto
deleitosa quanto espaçosa; privastes-vos de um habitual e magnificente
estilo de vida; separastes-vos de pai, esposa, filhos, parentela e congêneres;
e após dizer adeus a tantas atrações mundanas, e sentindo-vos feliz com
nossas depauperadas circunstâncias, adotastes nosso frugal modo de vida,
o padrão de gente simples, assim vos tornastes um de nós.
Enquanto relato todas estas coisas a outros, não posso de modo algum
esquecer-me dos benefícios que pessoalmente recebo. Pois embora eu
exponha vossas virtudes ante os olhos de meus leitores, aqui, como num
espelho, para que possam imitá-las, ser-me-ia deprimente, tendo-as diante de
meus próprios olhos, não para ser mais profundamente influenciado, à luz
do fato de que as vejo mui claramente todos os dias. Mas, visto que
realmente sei de experiência própria o quanto vosso exemplo significa para
o fortalecimento de minha própria fé e devoção, e visto que todos os filhos
de Deus que estão aqui reconhecem, juntamente comigo,que têm extraído
extraordinário benefício desse vosso exemplo, considerei, quanto a mim,
fazê-lo notório, para que um círculo cada vez mais amplo de pessoas
pudesse usufruir da mesma bênção. Outrossim, seria estultície falar
detalhadamente em louvor de um homem, cuja natureza e temperamento
são tão despidos de ostensividade quanto se pode imaginar, e, ainda mais,
proceder assim na presença de estranhos e em lugares longínquos. Portanto,
se tantas pessoas, que nada sabem de vossa vida pregressa, por viverem
distantes de vós, têm este admirável exemplo diante de si e se prepararam
para deixar seu comodismo, ao qual são tão inclinadas, e imitar vosso
exemplo, serei amplamente recompensado pelas coisas que tenho escrito.
Os cristãos, realmente, devem sempre considerar como algo mais do que
meramente comum e costumeiro, não só deixar estados, castelos e posições
nobres, sem pesares, se porventura é impossível seguir a Cristo de outra
forma; mas também estar sempre prontos e dispostos a desprezar, em
comparação a ele [Cristo], tudo quanto é reputado como por demais
precioso sobre a terra. Todos nós, porém, somos por demais negligentes,
ou, antes, tão indiferentes que, enquanto muitos acenam suas cabeças em
formal assentimento ao ensino do evangelho, raramente um em cem, talvez
possuidor de um insignificante sítio, permitirá ser arrancado dele por causa
do evangelho. A não ser em meio à mais profunda relutância, dificilmente
alguém se persuadiria a renunciar a menor vantagem que seja, o que revela
quão longe estão os homens de sentir-se preparados a renunciar a própria
vida, como devem fazê-lo. Acima de tudo, meu desejo é que todos se
espelhem em vosso espírito de renúncia, a primeira de todas as virtudes.
Pois sois a pessoa mais bem indicada a testificar de mim, e eu de vós, quão
pouco deleite encontramos no companheirismo daqueles que, ao deixarem
sua terra natal, acabam revelando nitidamente que trouxeram consigo as
mesmas perspectivas que alimentavam lá. Porém, visto que é melhor para
meus leitores refletirem sobre estas coisas em sua própria mente, em vez de
verbalizá-las, eu agora me ponho em oração ao Deus que até aqui vos tem
encorajado através do portentoso poder de seu Espírito, visando a que vos
muna ele perenemente de invencível disposição. Pois estou bem cônscio do
modo como Deus vos disciplinou com muitas e duras lutas, porém, com
notável percepção, percebestes que severas e renhidas hostilidades ainda
permanecem diante de vós. E visto que muitas experiências vos têm
ensinado quão realmente necessário é que do céu se vos estenda uma
[benfazeja] mão, deveis prontificar-vos a juntar-vos a mim em fervente
oração a Deus pelo dom da perseverança. Quanto a mim, particularmente,
orarei a Cristo, nosso Rei, a quem o Pai conferiu suprema autoridade, e em
cujas mãos foram colocados todos os tesouros das bênçãos espirituais,
rogando-lhe que vos guarde em segurança, a fim de que venhais a
permanecer longo tempo conosco para a expansão de seu Reino; e para que
ele prossiga a usar-vos na obtenção da vitória sobre Satanás e seus
seguidores.

24 de janeiro de 1556
(dez anos após a primeira publicação deste comentário)
Análise da Primeira Epístola
de Paulo aos Coríntios

Esta carta é de diversas formas valiosa; pois ela contém tópicos1


especiais e de grande importância. Em proporção que forem sendo
desenvolvidos, sucessivamente em sua ordem, a discussão por si só os
esclarecerá à medida da necessidade para sua compreensão. E de fato isso
se dará de forma muito clara nesta mesma avaliação. Tentarei apresentar
este tema de forma breve, porém, ao mesmo tempo, pretendo fornecer um
sumário completo do mesmo, sem, contudo, perder algum de seus pontos
principais.
É bem notório o fato de que Corinto era uma rica e famosa cidade da
Acaia. Quando L. Mummius a destruiu (em 146 a.C.), ele o fez simplesmente
porque sua vantajosa situação o levou a suspeitar do lugar. Mas um povo de
tempos posteriores a reconstruiu pela mesma razão que ele (L. Mummius) a
destruiu,2 quando as mesmas vantagens topográficas a levaram a ser
restaurada num curto espaço de tempo. Visto estar ela situada nas
proximidades do Mar Egeu, de um lado, e do Mar Jônio, do outro, e visto que
ela ficava no istmo que liga a Ática e o Peloponésio, então idealmente se
adequava à importação e exportação de mercadorias.
Em Atos, Lucas nos conta que, após ter Paulo ensinado ali durante um
ano e meio, ele foi obrigado, em virtude do comportamento ultrajante dos
judeus, a viajar dali para a Síria. Durante a ausência de Paulo, falsos
apóstolos se infiltraram na região. Não vieram (em minha opinião) com o
fim de perturbar a Igreja obviamente com um ensinamento heterodoxo, ou
intencionalmente, por assim dizer, causar dano ao ensinamento. Há três
razões para seu surgimento. Primeiramente, se orgulhavam de sua oratória
brilhante e ostensiva, ou, diria alguém, convencidos por sua linguagem
vazia e bombástica, passaram a tratar com desprezo a simplicidade de Paulo
e inclusive do próprio evangelho. Em segundo lugar, movidos por sua
ambição, almejavam dividir a Igreja em várias facções. Finalmente,
indiferentes a tudo, exceto em desfrutar das boas graças que almejavam que
o povo tivesse deles, entraram em cena com o fim de fazer seu jogo em prol
do aumento de sua própria reputação, antes que promover o reino de Cristo
e o bem-estar do povo.
Por outro lado, visto que Corinto se achava dominada pelos vícios com
os quais as cidades comerciais geralmente são infestadas, ou, seja, a luxúria,
a arrogância, a vaidade, os prazeres, a cobiça insaciável, o egoísmo
desenfreado – tais vícios tinham penetrado também a própria Igreja de tal
modo que a disciplina se tornou grandemente deteriorada. Mais seriamente
ainda, já se achava presente a apostasia da sã doutrina, de modo tal que um
dos fundamentos da fé, a ressurreição dos mortos, estava sendo posta em
cheque. E ainda que se achasse em meio a tanta corrupção de toda espécie,
estavam contentes consigo mesmos, como se tudo quanto em relação a eles
estivesse em perfeita ordem. Tais são os subterfúgios que Satanás
geralmente emprega. Se ele não consegue impedir a expansão do ensino, ele
se chega solerte e secretamente com o fim de desferir seu golpe mortal sobre
ele [o ensino]. Se ele não consegue suprimi-lo por meio de mentiras que o
contradigam, e impedi-lo de vir a público, então lhe prepara covas ocultas
para sua destruição. Finalmente, se ele não pode alienar dele as mentes
humanas, num golpe incisivo, ele as leva a abandoná-lo gradativamente.
Ora, tenho boas razões para crer que aqueles indignos correligionários,
que trouxeram sofrimento à igreja corintiana, não eram inimigos declarados
da verdade. Sabemos que Paulo não ignora as falsas doutrinas em outras
cartas. As cartas aos Gálatas, aos Colossenses, aos Filipenses e a Timóteo
são todas breves; porém, em todas elas não só ataca violentamente os falsos
apóstolos, mas, ao mesmo tempo, ele igualmente realça as formas em que
prejudicavam a Igreja. E ele estava perfeitamente certo, pois os crentes não
só devem ser admoestados acerca daqueles de quem devem se precaver,
mas devem também perceber o mal contra o qual precisam sempre estar em
guarda. Portanto, não posso acreditar que numa carta longa como esta ele
pretendesse manter em silêncio o que executa tão assiduamente em outras
cartas muito mais breves. Além disso, ele trata com muitas faltas dos
coríntios, algumas das quais, sem dúvida, totalmente triviais, então parece
que ele não pretendia omitir algo sobre aqueles que ele chamou para
reprovar. E se esse não era o caso, então ele estava desperdiçando um
amontoado de palavras ao juntar-se em debate com aqueles prepostos
mestres ou chilreantes oradores. Ele condena sua ambição; ele os
responsabiliza em transformar o evangelho numa filosofia artificial; ele nega
que tenham eles o poder do Espírito para produzir resultados, porque, em
sua preocupação com linguagem vazia e bombástica, só estavam indo no
encalço de “letra morta”; todavia, não há uma só palavra sobre ensino
corrupto. Portanto, estou plenamente certo de que não faziam nenhuma
depreciação pública das substância do evangelho, em qualquer aspecto;
porém, visto que um desorientado e apaixonado desejo por proeminência
os abrasava, acredito que tinham engendrado um novo método de ensino, o
qual não se compatibilizava com a simplicidade de Cristo; e assim
esperavam que isso os fizesse objetos da admiração do povo. Isto é o que
inevitavelmente acontece com todos aqueles que não desistem de
preocupar-se consigo mesmos e se engajem na obra do Senhor sem
absolutamente quaisquer entraves. O primeiro passo, para servirmos a
Cristo, é esquecer-nos de nós mesmos e pensar tão-só na glória do Senhor e
na salvação dos homens. Além do mais, ninguém jamais estará aparelhado
para o ensino se antes não for absorvido pelo poder do evangelho, de modo
a falar não tanto com seus lábios, mas com seu próprio coração. Portanto, o
que sucede no caso daqueles que nunca nasceram de novo, pelo Espírito de
Deus, nunca experimentaram o poder do evangelho em seus próprios
corações, e não têm qualquer idéia do que significa ser nova criação! (cf.
2Co 5.17). Sua pregação é morta, quando deveria ser viva e produtora de
resultados; e para que se sobressaíssem aos olhos públicos, eles mesmos
dissimulavam o evangelho, vestindo-o de diferentes indumentárias, de
modo que viesse ele a assemelhar-se às filosofias do mundo.
Fazer isso em Corinto era algo fácil para o tipo de pessoas que estamos
considerando aqui. Pois os mercadores são facilmente levados pela
aparência externa; e não só se permitiam trapacear pelas mesmas trapaças
que aplicavam a outrem, mas, de certa forma, também gostavam disso. Além
disso, possuíam ouvidos sensíveis, de modo que não suportavam censura
por demais severa, resultando que, se se deparassem com os mestres tão
maleáveis e prontos a deixá-los alegremente impunes, se valiam de
recompensas e bajulação. Concordo que isso se dá em toda parte, mas é
mais comum em cidades comerciais e ricas. Ao contrário, Paulo, que em
outros aspectos era um homem sublime e se sobressaía em razão das
admiráveis qualidades que possuía, não obstante fez-se insignificante
exteriormente, no tocante às graças exteriores estava sempre contente,
jamais se irrompendo com ostentação nem procurando tocar sua própria
conduta. De fato, em razão de seu coração estar sempre e verdadeiramente
sob a influência do Espírito, não havia nele a menor sombra de ostentação,
sendo incapaz de proferir bajulação nem se preocupava em agradar a
homens. Ele só tinha um propósito diante de si, a saber, que ele e todos os
demais, estando à disposição, Cristo pudesse reinar. Já que os coríntios se
inclinavam mais pelo ensino engenhoso do que benéfico, então não
poderiam saborear o evangelho. Já que viviam tão ansiosos por novidades,
então Cristo, para eles, se achava fora de moda. Em todo caso, se não
tivessem ainda, realmente, caído em tais erros, pelo menos já estavam
naturalmente inclinados para as coisas sedutoras desta espécie. Portanto,
era fácil para os falsos apóstolos atrair a atenção entre eles e adulterar o
ensino de Cristo. Pois certamente é ele adulterado quando sua natural
pureza é corrompida e, por assim dizer, pintada com diferentes cores, sendo
ele posto no mesmo nível de qualquer filosofia mundana. Portanto, a fim de
agradar o paladar dos coríntios, adicionavam condimentos a seu ensino,
resultando disso que o genuíno sabor do evangelho era destruído. Agora
estamos em posição de entender por que Paulo foi induzido a escrever esta
carta.
Agora podemos sumariar o argumento, apresentando breves notas sobre
cada um dos capítulos em ordem cronológica.
Paulo inicia o primeiro capítulo congratulando-se com eles (coríntios), e
com isso os encoraja a prosseguirem como começaram. Desta forma ele os
apazigua de antemão antes de prosseguir, de modo a estarem mais dispostos
a receber seu ensino. Mas imediatamente ele fere uma nota mais severa,
fazer a transição para reprovar, quando se refere aos desacordos que ora
afligiam sua igreja. Desejando curar este mal, ele insta com eles que
voltassem do orgulho para a humildade. Pois ele dispensa toda a sabedoria
do mundo, estabelecendo em seu lugar unicamente a pregação da Cruz. Ao
mesmo tempo também os humilha individualmente, ao dizer-lhes que
observassem bem a classe de pessoas a quem o Senhor, geralmente, tem
adotado e conduzido a seu rebanho.
No segundo capítulo, ele cita o exemplo de sua própria pregação, a qual,
humanamente falando, era pobre e insignificante, porém era notável em
razão de possuir o poder do Espírito. E ele prossegue desenvolvendo a idéia
de que o evangelho contém sabedoria celestial e secreta. É algo que nem a
habilidade natural do homem, ainda que perspicaz e penetrante, nem seus
sentidos físicos podem compreender; algo sobre o qual o argumento
humano não pode gerar convicção; algo que não carece de linguagem
floreada nem de ilustrações. É tão-somente por meio da revelação do
Espírito que ele chega a ser compreendido pela mente humana, e vem a ser
selado em seus corações. Finalmente, conclui que não é só a pregação do
evangelho que é extremo oposto da sabedoria humana, visto que ela
consiste na humilhação da Cruz, mas também que o mero juízo humano não
pode determinar qual é seu real valor. Paulo procede assim a fim de desviá-
los da confiança mal colocada em seu próprio entendimento, o qual gera
errônea valorização de tudo.
No início do terceiro capítulo ele faz aplicação do que lhes afirmou
anteriormente. Pois Paulo lamenta que, sendo eles carnais, dificilmente se
sujeitariam a aprender ainda mesmo os princípios rudimentares do
evangelho. Desta forma ele realça que o desprazer pela Palavra, o que era tão
forte neles, não era oriundo de algum defeito inerente à Palavra mesma, e,
sim, da ignorância deles; e, ao mesmo tempo, ele lhes dirige uma
admoestação implícita, ou, seja, que os coríntios necessitam de ter suas
mentes renovadas, e assim possam começar a avaliar as coisas com
propriedade.
E então ele mostra o lugar que deve ser dado ao ministro do evangelho. A
honra devida a eles não deve subtrair em nada da glória que é devida a
Deus; pois há um só Senhor, e todos eles são seus servos; somente Deus
tem o poder em suas mãos, e é ele quem confere os resultados; e todos os
coríntios não passam de simples instrumentos de Deus.
Ao mesmo tempo mostra que ele deve ter como alvo a edificação da
igreja. Aproveita a oportunidade para explicar o correto e adequado método
para realizar um bom trabalho de edificação, a saber, tomar Cristo como o
único fundamento, e adequar a estrutura toda a esse fundamento. E aqui,
tendo afirmado de passagem que ele era um hábil mestre-de-obra, exorta aos
que são deixados para a continuação da obra a que conservem o edifício de
conformidade com o fundamento em todos os meandros de sua conclusão.
Ele ainda insiste com os coríntios a não permitirem que sejam
maculados pelos ensinos corruptos, visto que são templos de Deus. E nessa
parte conclusiva do capítulo, ele novamente reduz a nada o orgulho da
sabedoria humana, de modo que somente o conhecimento de Cristo seja
mantido em evidência entre os crentes.
No início do quarto capítulo, ele explica qual é o ofício de um genuíno
apóstolo, e, rejeitando seus juízos corruptos que os impedem de reconhecê-
lo como genuíno apóstolo, apela para o dia do Senhor. Então, percebendo
que o desprezavam em virtude de sua humilde aparência, ele mostra que de
fato tal coisa se constitui mais em honra para ele do que em desonra. Ele
prossegue citando instâncias de sua própria experiência, a qual revela que
ele não se preocupava com sua própria glória, ou com seu próprio sustento
material, mas que fizera fielmente o trabalho de Cristo e nada mais. No
devido curso ele enfatiza a maneira como os coríntios devem honrá-lo (isto
é, vv. 14-16). Na parte conclusiva do capítulo, ele lhes recomenda Timóteo,
até que ele mesmo vá. E ao mesmo tempo anuncia que em sua chegada ele
deixará plenamente claro que não dá o menor valor a toda a bazófia com que
os falsos apóstolos cantavam seus próprios louvores.
No quinto capítulo Paulo os chama à razão pelo fato de terem tolerado em
silêncio uma união incestuosa entre um homem e sua madrasta. E
francamente lhes diz que, em vez de serem tão vangloriosos, uma
enormidade tal como esta deveria fazê-los pender suas frontes,
envergonhados. Ele muda daquela instrução geral para o efeito, ou, seja, que
ofensas como essas seriam punidas com excomunhão, para que a tolerância
em relação ao pecado seja rechaçada, e que as impurezas sejam limitadas a
uma só pessoa e não venham a propagar-se ainda mais afetando o restante.
O sexto capítulo contém duas partes principais. Na primeira, ele condena
a prática deles (coríntios) em provocar aborrecimento uns aos outros,
trazendo com isso grande descrédito ao evangelho, ao levarem suas
disputas aos tribunais que eram presididos pelos incrédulos. Na segunda
parte, ele condena a tolerância com a promiscuidade sexual, a qual alcançara
um nível tal que era considerada quase como uma coisa normal de se fazer.
De fato, ele começa com uma grave nota de ameaça e então prossegue
produzindo argumentos em apoio da admoestação que ele apresenta.
O sétimo capítulo contém uma discussão sobre a virgindade, o
matrimônio e o celibato. Tanto quanto podemos agrupar do que Paulo diz,
os coríntios se tornaram fortemente influenciados pelas noções
supersticiosas de que a virgindade era uma projeção, quase uma virtude
angelical, de tal forma que desprezavam o matrimônio como se este fosse
algo impuro. Para corrigir este conceito equivocado, Paulo ensina que cada
pessoa deve saber qual é seu dom particular; e neste sentido não deve fazer
algo que não se sinta capacitada para fazer; pois nem todos são chamados
para o mesmo estado. Conseqüentemente, ele realça quem pode abster-se
do matrimônio, e que seu objetivo era abster-se dele. Em contrapartida, ele
aconselha aos que vão se casar e qual é a genuína base do matrimônio.
No oitavo capítulo, ele os proíbe de se envolverem com os adoradores de
ídolos e seus sacrifícios impuros, ou de praticarem alguma coisa que de
alguma forma pudesse causar injúria a alguém com consciência fraca. Eles
se escusavam sob o pretexto de que quando se associavam aos adoradores
idólatras, jamais o faziam com idéias errôneas em suas mentes, visto que em
seus próprios corações reconheciam um só Deus, o qual, naturalmente, os
fazia olhar para os ídolos como coisas indignas de fabricação humana.
Paulo desfaz tal escusa com base no fato de que cada um de nós deve
preocupar-se com seus irmãos, e, por outro lado, havia muitas pessoas
fracas, cuja fé seria destruída por tal insinceridade.
No nono capítulo, ele torna patente que não está exigindo deles nada
mais do que exige de si mesmo, de modo a não dar a impressão de estar
sendo injusto em impor-lhes um princípio que ele mesmo não pudesse
praticar. Então lembra-os de como voluntariamente se refreou de usar da
liberdade que o Senhor lhe concedera, para não causar ofensa a alguém; e
como, no tocante a coisas neutras, adotara ele diferentes atitudes, por assim
dizer, a fim de acomodar-se a todos os tipos de pessoas. Lembra-os desses
dois fatos para que aprendessem por intermédio de seu exemplo, ou, seja,
que ninguém deve concentrar-se demasiadamente em si mesmo, de modo tal
que não se empenhasse em adaptar-se a seus irmãos para a promoção de
sua edificação.
Em razão de os coríntios estarem muitíssimos satisfeitos consigo
mesmos, como disse no começo, Paulo inicia o décimo capítulo usando os
judeus como exemplo para adverti-los a não enganar-se a si mesmos com
um falso senso de segurança. Pois ele mostra que, se estão envaidecidos em
razão de coisas externas e dos dons de Deus, os judeus, igualmente,
possuíam razões semelhantes para ostentar-se. No entanto, tais coisas
provaram ser de nenhum préstimo, notadamente em seu caso, porquanto
fizeram mau uso das bênçãos que receberam. Após despertá-los com tais
advertências, Paulo volta rapidamente ao tema que vinha tratando
inicialmente (ou, seja, o culto idólatra, v. 14), e mostra quão inconsistente é
para aqueles que participam da Ceia do Senhor tomar parte na mesa de
demônios; pois esta é uma infeliz e intolerável forma de corromper-se.
Finalmente, ele conclui que devemos adequar-nos com outros em todas as
nossas ações, de modo a não causar ofensa a ninguém.
No capítulo onze, ele procura expurgar as reuniões de culto deles de
certas práticas nocivas, as quais dificilmente era possível observar com
decência e ordem, e ele afirma-lhes que nessas reuniões deve-se observar
grande dignidade e discrição, pois ali nos achamos diante de Deus e dos
anjos. Porém, sua crítica principal é dirigida contra a administração
corrupta da Ceia pelos coríntios. Mas, além disso, ele apresenta o método
para corrigir os abusos que solertemente haviam entrado; a saber, chamá-los
de volta para nossa instituição original feita pelo próprio Senhor, como o
único padrão seguro e permanente para a sua correta administração.
Porém, visto que muitos deles estavam fazendo mau uso dos dons
espirituais visando a seus próprios objetivos, no capítulo doze ele trata do
propósito para o qual Deus no-los concedeu, e trata igualmente da forma
correta e adequada de seu uso, a saber, que para servirmos uns aos outros,
devemos crescer juntos no único corpo de Cristo. Ele ilustra seu ensino
esboçando uma analogia com o corpo humano. Embora o corpo possua
membros distintos, todos eles com funções distintas, todavia existe neles
um arranjo tão bem equilibrado e uma interdependência [communio] tal que
o que tem sido atribuído aos membros individuais é empregado em
benefício de todo o corpo. Portanto, ele conclui que o amor é nosso melhor
guia nesta conexão.
E assim ele persiste neste tema, mais extensamente no capítulo treze,
fazendo uma explanação mais ampla de seu significado. Porém, ele se
resume nisto: o amor [caritas] deve ser o fator controlador de/em tudo. Ele
aproveita a presente oportunidade para fazer uma digressão e cantar os
louvores do amor, de modo a torná-lo ainda mais persuasivo e levar as
pessoas a desejar possuí-lo, e também a estimular os coríntios a pô-lo em
prática.
No capítulo quatorze, ele começa apresentando detalhes mais precisos
sobre como os coríntios tinham fracassado no uso dos dons espirituais. E
já que estavam pondo uma ênfase tão grande na ostentação, ele os ensina
que sua preocupação devia ser que em tudo houvesse edificação. Esta é a
razão por que ele prefere a profecia a todos os demais dons, visto ser ele
mais benéfico; enquanto que, para os coríntios, as línguas eram mais
valiosas, simplesmente com base em sua pompa vazia. Ele ainda estabelece
a ordem apropriada para se fazerem as coisas. Ao mesmo tempo, ele
condena o erro na exibição ruidosa de línguas estranhas para o benefício de
ninguém; pois significava que, enquanto havia progresso no ensino e nas
exortações, aos quais sempre se deve dar prioridade, eles estavam sendo
prejudicados. Em seguida, ele proíbe que as mulheres ensinem
publicamente, como sendo algo inconveniente.
No capítulo quinze, ele ataca um dos mais perniciosos erros. Ainda que
dificilmente seja crível que este assalto fosse sobre todos os coríntios,
todavia tal ação granjeou um ponto-chave nas mentes de alguns deles, na
medida precisa em que o remédio era claramente necessário. Mas tudo
indica que Paulo, propositadamente, retarda a menção deste assunto para o
final da carta; pois se ele tivesse iniciado com ele, ou se tivesse voltado a ele
imediatamente depois de começado, a conclusão deles seria que estavam
sendo todos condenados. Ele, pois, mostra que a esperança da ressurreição
é tão necessária que, se ela for extinta, então todo o evangelho cairá em
completa ruína. Tendo estabelecido a esperança pelo uso de poderosos
argumentos, ele prossegue mostrando as bases sobre as quais ela descansa,
e como [a ressurreição] se dará (cf. vv. 35-58). numa palavra, ele realiza uma
plena e cuidadosa discussão deste assunto.
O capítulo dezesseis constitui-se de duas partes. Na primeira, ele encoraja
os coríntios a prestarem socorro aos irmãos de Jerusalém em suas
necessidades. Eles estavam, naquela época, sendo duramente premidos pela
fome e cruelmente tratados nas mãos dos incrédulos. Os apóstolos haviam
dado a Paulo a tarefa de animar as igrejas gentílicas a prover recursos para
eles [de Jerusalém]. Paulo, pois, os instrui a pôr de lado o que gostariam de
dar, e assim pudessem enviar a Jerusalém imediatamente [porém, veja-se
16.3].
Ele traz a carta à sua conclusão com uma exortação cordial e com
saudações de alegria.
Podemos deduzir daqui, como disse no início, que esta carta está
saturada do mais prestimoso ensino, pois ela contém várias discussões de
um bom número de temas gloriosos.

1. “Bonnes matieres, et points de doctrine” – “Bons temas e pontos de doutrina.”


2. Estrabo descreve Mummius como “μεγαλαφρων μαλλον ἠ φιλοτεχνος” – “um homem mais
magnânimo do que amante das artes.”
Capítulo 1

1. Paulo, chamado para ser apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus, e Sóstenes,
nosso irmão,
2. à igreja de Deus que está em Corinto, aos que são santificados em Cristo Jesus,
chamados para serem santos, com todos os que em todos os lugares invocam o nome
de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso:
3. graça seja a vós, e paz da parte de Deus e do Senhor Jesus Cristo.

1. Paulus, vocatus apostolus Jesu Christ per voluntatem Dei, et Sosthenes frater,
2. Ecclesiæ Dei quæ est Corinthi, sanctificatis in Christo Jesu, vocatis sanctis, una cum
omnibus qui invocant nomen Domini nostri Jesu Christi in quovis loco tam sui quam
nostri:1
3. Gratia vobis et pax a Deo Patre nostro, et Domino Jesu Christi.

1. Paulo, chamado para ser apóstolo. Dessa forma Paulo procede em


quase todas as introduções a suas Epístolas com vistas a garantir
autoridade e aceitação para sua doutrina. Em primeiro lugar ele se assegura
da condição que lhe fora designada por Deus, de ser apóstolo de Cristo e
enviado por Deus; em segundo lugar ele testifica de sua afeição para com
todos aqueles a quem escreve. Cremos muito mais prontamente em alguém
que consideramos estar genuinamente afeiçoado para conosco e que
fielmente promove nosso bem-estar. Portanto, nesta saudação ele reivindica
autoridade para si ao falar de si mesmo como apóstolo de Cristo, e deveras
chamado por Deus, ou, seja, separado pela vontade de Deus.
Ora, duas coisas são requeridas daquele que deve ser ouvido na Igreja, e
que vai ocupar a cadeira de mestre; pois o mesmo deve ser chamado por
Deus para esse ofício e deve ser fiel no cumprimento de seus deveres. Paulo
aqui alega que ambas se aplicam a ele. Pois o título apóstolo implica que os
atos conscientemente individuais por parte de um embaixador de Cristo
[2Co 5.19], e que proclama a pura doutrina do evangelho. Mas para que
ninguém assuma para si esta honra sem ser chamado para a mesma, ele
acrescenta que não se precipitou temerariamente para ela, mas que fora
designado2 por Deus para tal incumbência.
Aprendamos, pois, a levar em conta ambos esses fatores quando
quisermos saber a quem devamos considerar como ministro de Cristo: que
o mesmo seja chamado e seja fiel ao cumprimento de seus deveres. Visto
que ninguém pode, por direito, assumir para si a designação e condição de
ministro, a não ser que o mesmo seja chamado, assim não é suficiente que
uma pessoa seja chamada, se também não cumprir os deveres de seu ofício.
Pois o Senhor não escolhe ministros para que sejam ídolos mudos, nem
para que exerçam tirania sob o pretexto de sua vocação, nem para que
tomem seus próprios caprichos por sua lei. Ao contrário, Deus ao mesmo
tempo estabelece que tipo de homens devam ser eles, e os põe sob suas
leis; em suma, ele os escolhe para o ministério; ou, em outros termos, para
que, em primeiro lugar, não sejam ociosos; e, em segundo lugar, para que se
mantenham dentro dos limites de seu ofício. Portanto, visto que o
apostolado depende da vocação [divina], se alguém deseja ser reconhecido
como um apóstolo, então que prove que o é de fato e de verdade; não só
isso, mas que tudo faça para que os homens confiem nele e dêem atenção a
sua doutrina. Pois já que Paulo conta com essas base para estabelecer sua
autoridade, pior que a insolência seria a conduta do homem que quisesse
assumir tal posição sem comprovação!
Entretanto, é preciso observar que não basta que alguém reivindique a
posse de um título de alguma vocação para o ofício, mas que também seja
fiel no cumprimento de seus deveres, a menos que realmente comprove
ambas [as alegações]. Pois amiúde sucede que aqueles que mais se
vangloriam de seus títulos são precisamente pessoas que na verdade nada
possuem; como, por exemplo, os falsos profetas da antigüidade que
reivindicavam com grande arrogância que haviam sido enviados pelo
Senhor. E hoje, que outra coisa fazem os romanistas senão grande bulha
sobre a “ordenação divina, a sucessão inviolavelmente sacra provinda dos
próprios apóstolos”,3 enquanto que, depois de tudo, parece serem eles
completamente destituídos de todas as coisas sobre as quais tanto se
exaltam? Aqui, pois, o que se requer não é tanto de vanglória, mas de
realidade. Ora, visto ser comum, para o bom e para o mau, assumir o título,
devemos fazer um teste para que se descubra quem de fato pode e quem não
pode ter o direito ao título apóstolo. Quanto a Paulo, Deus atestou sua
vocação por meio de muitas revelações e então a confirmou por meio de
milagres. A fidelidade tinha de ser avaliada da seguinte forma: se ele estava
ou não proclamando a pura doutrina de Cristo. Quanto à dupla vocação, a
de Deus e a da Igreja, vejam-se minhas Institutas (4.3.II).
Apóstolo. Ainda que este título, de acordo com sua etimologia, tenha um
sentido geral, e às vezes seja empregado para denotar todos os ministros4
indistintamente, não obstante pertence, como uma designação particular,
aos que eram separados pela designação do senhor com o fim de publicar o
evangelho ao mundo inteiro. Mas era importante que Paulo fosse incluído
naquele número, e isso por duas razões: primeiro, porque muito mais
deferência era atribuída a eles do que aos demais ministros do evangelho; e,
segundo, porque unicamente eles, estritamente falando, possuíam a
autoridade de instruir todas as igrejas.
Pela vontade de Deus. Enquanto o apóstolo costumava reconhecer de
bom grado sua dívida irresgatável a Deus pelas muitas coisas boas que dele
recebera, ele agia assim particularmente com referência a seu apostolado,
para que pudesse remover de si qualquer aparência de presunção. E não há
dúvida de que, como a salvação provém da graça, assim também a vocação
para o ofício de apóstolo provém da graça, como preceitua Cristo nestas
palavras: “Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos
escolhi a vós outros” [Jo 15.16]. Entretanto, Paulo ao mesmo tempo
indiretamente dá a entender que todos quantos tentaram subverter seu
apostolado, ou de alguma forma fizeram-lhe oposição, estavam
contendendo contra uma ordenação divina. Porquanto Paulo, aqui, não se
vangloria futilmente de títulos honoríficos, senão que intencionalmente
defende seu apostolado de suspeitas maliciosas. Porque, visto que sua
autoridade tinha de ser suficientemente bem estabelecida em relação aos
coríntios, não havia necessidade de se fazer menção da vontade de Deus
especificamente, caso os homens injustos não estivessem tentando, por
meios indiretos, minar aquela honrosa posição divinamente outorgada por
Deus.
E Sóstenes, nosso irmão. Este é o mesmo Sóstenes que era líder judaico
da sinagoga em Corinto, e de quem Lucas faz menção em Atos 18.17. A razão
de seu nome ser incluído aqui é para que os coríntios tivessem uma
merecida consideração por aquele de quem conheciam o ardor e firmeza no
evangelho. Portanto, há uma honra ainda maior para ele, ou, seja, de ser
denominado irmão de Paulo, do que, como antes, ser presidente da sinagoga.
2. À igreja de Deus que está em Corinto. Talvez pareça algo estranho
dar Paulo aqui o título Igreja de Deus a esse grupo de pessoas que se achava
infestado de tantas falhas, sobre o qual Satanás exercia uma influência mais
poderosa que a de Deus. Certamente seu intuito não era bajular os coríntios,
pois ele fala sob a diretriz do Espírito de Deus, o qual não costuma bajular.
Mas,5 no meio de tanta vileza, que aparência de igreja é mais apresentada?
Minha resposta é como segue: Visto que o Senhor dissera: “Não temas, eu
tenho muitas pessoas nesta cidade” [At 18.9], mantendo esta promessa em
sua mente, ele conferiu a poucas pessoas piedosas a grande honra de
reconhecê-las como igreja no meio de uma vasta multidão de pessoas
ímpias. Demais, a despeito de que muitos vícios tinham solertemente se
introduzido, bem como várias corrupções tanto na doutrina quanto na
conduta, alguns emblemas da genuína Igreja permaneciam em evidência.
Entretanto, devemos prestar muita atenção a esta passagem, para que neste
mundo não esperemos existir uma igreja sem uma mancha ou mácula, nem
precipitadamente neguemos este título a alguma sociedade na qual nem
tudo satisfaça nossos padrões ou aspirações. Porquanto é uma perigosa
tentação imaginar alguém que não existe igreja onde a perfeita pureza se
acha ausente. Pois a pessoa que se sente dominada por tal noção,
necessariamente deve separar-se de todos os demais e olhar para si como o
único santo no mundo, ou deve fundar sua própria seita em sociedade com
uns poucos hipócritas.
Sobre que base, pois, tinha Paulo reconhecido uma igreja em Corinto?
Sem dúvida foi porque viu em seu seio a doutrina do evangelho, o batismo e
a Ceia do Senhor, marcas pelas quais uma igreja deve ser julgada. Pois,
embora alguns começassem a nutrir dúvidas acerca da ressurreição,
contudo tal erro não permeou todo o corpo, e assim o nome e a realidade da
Igreja não são por isso afetados. Ainda que alguns defeitos já tivessem
surgido na administração da Ceia, a disciplina e a conduta já tivessem
declinado tanto, a simplicidade do evangelho já estivesse denegrida e já
tivessem se entregado à ostentação e à pompa, e em decorrência da ambição
de seus ministros já estivessem fragmentados em vários partidos, não
obstante, em virtude de haverem retido a doutrina fundamental – o Deus
único era adorado por eles e invocado no nome de Cristo –, depositavam em
Cristo sua dependência para a salvação e sustentavam um ministério que
não estava de todo corrompido. Por essas razões a Igreja continuava ainda
em existência entre eles. Conseqüentemente, onde quer que o culto divino
tenha sido preservado incorrupto, e aquela doutrina fundamental de que já
falei ainda persiste ali, podemos sem hesitação concluir que nesse caso a
Igreja existe.
Santificados em Cristo Jesus, chamados para serem santos. Ele faz
menção das bênçãos com as quais Deus os adornara, como à guisa de
reprimenda, porque, na prática, nem sempre se mostravam agradecidos. Pois
o que pode ser mais deprimente do que rejeitar um apóstolo, por cujo
ministério haviam sido separados como porção peculiar de Deus?
Entrementes, aqui ele mostra, por estes dois qualificativos, que estão
incluídos entre os verdadeiros membros da Igreja, e que por direito
pertencem a sua comunhão. Pois se o leitor não se revelar como cristão pela
santidade de vida, então certamente não estará capacitado a esconder-se na
Igreja e ainda não pode pertencer-lhe.6 Portanto, todos quantos desejam ser
reconhecidos entre o povo de Deus devem ser santificados em Cristo.
Demais, a palavra santificação denota separação. Isso se dá conosco quando
somos regenerados pelo Espírito para novidade de vida, para servirmos,
não ao mundo, mas a Deus. Porque, enquanto por natureza somos impuros,
o Espírito nos consagra a Deus. Porque isso realmente se concretiza quando
somos enxertados no corpo de Cristo, fora do qual nada mais há senão
corrupção, e visto que o Espírito nos diz que só somos santificados em
Cristo, quando, através dele, aderimos a Deus, e nele somos feitos “novas
criações” (2Co 5.17).
O que segue – chamados para serem santos – o entendo no seguinte
sentido: “Assim fostes chamados em santidade.” Mas isso pode ser
considerado de duas formas. Primeiro, podemos entender Paulo como que
dizendo que a causa da santificação é a vocação divina, porque Deus mesmo
os escolheu; em outras palavras, depende de sua graça, e não da excelência
do homem. O significado alternativo é o seguinte: é consistente com nossa
profissão [de fé] que sejamos santos, porque esse é o desígnio da doutrina
do evangelho. Ainda que o primeiro significado pareça adequar-se melhor ao
contexto, faz pouca diferença de que forma o leitor o considere, quando os
dois significados estão em estreita harmonia entre si, pois nossa santidade
emana da fonte da eleição divina, e é também a meta de nossa vocação.
Portanto, devemos sustentar criteriosamente que de modo algum é por
nossos próprios esforços que somos santos, mas é pela vocação divina;
porque é tão-somente Deus que santifica aos que por natureza eram
impuros. E certamente creio que, mui provavelmente, quando Paulo aponta,
como se o fizesse com seu dedo, para a fonte da santidade, amplamente
aberta, é para subir ainda mais, ou, seja, para o gracioso beneplácito de
Deus mesmo, pelo qual também a missão de Cristo quanto a nós se
originou. Além disso, assim como somos chamados por meio do evangelho
para a vida irrepreensível [Fp 2.15], é necessário que isso se torne uma
realidade em nós, a fim de que nossa vocação venha a ser eficaz. Mas alguém
objetará dizendo que tal coisa não era comum entre os coríntios. Minha
resposta é que os pusilânimes não se acham inclusos neste número, porque
aqui Deus simplesmente começa sua obra em nós, e paulatinamente a leva à
consumação. Respondo ainda que Paulo deliberadamente olha antes para a
graça de Deus em ação neles, e não para os próprios defeitos deles, de modo
a fazê-los sentir-se envergonhados de sua negligência em não fazerem o que
lhes foi requerido.
Com todos os que o invocam. Este é outro qualificativo também comum
a todos os crentes. Porque, visto que invocar o nome de Deus é um dos
principais exercícios da fé, portanto é por este dever que os fiéis devem ser
principalmente julgados. Note-se também que ele diz que Cristo é invocado
pelos fiéis; e é assim que sua divindade é reconhecida, porquanto a
invocação é uma das primeiras evidências do culto divino. Daí, a invocação,
neste contexto, à guisa de sinédoque7 (κατὰ συνεκδοχήν), significa uma plena
profissão de fé em Cristo, assim como em muitas passagens da Escritura ela
é geralmente tomada para abranger todo o culto divino.
Alguns o explicam como sendo só a profissão [de fé], mas isso parece
pobre demais e está em desacordo com sua aceitação usual na Escritura.
Ora, tenho posto estas pequenas palavras nostri (nosso) e sui (deles) no
genitivo, entendendo-as como uma referência a Cristo. Enquanto outros,
tomando-as como uma referência a lugar, traduzem-nas no ablativo. Ao agir
assim, tenho seguido a Crisóstomo. Esta tradução, provavelmente, parecerá
abrupta, porque as palavras em todo lugar aparecem no centro, porém não
há nada de abrupto nesta construção no grego paulino. Minha razão para
preferir esta tradução à da Vulgata é que se o leitor a explicar com uma
referência a lugar, a frase adicional não só será desnecessária, mas também
irrelevante. Pois a que lugar Paulo chamaria seu? Eles o consideram como a
indicar a Judéia; porém, em que áreas? Então, a que lugar Paulo estaria se
referindo como sendo habitado por outros? Afirmam que significa todos os
outros lugares do mundo; mas isso também não é bem apropriado. Em
contrapartida, o significado que tenho atribuído é bem mais apropriado;
porque, depois de fazer menção a “os que em todo lugar invocam o nome de
Cristo, nosso Senhor”, ele adiciona: “deles e nosso”, a fim de tornar
plenamente claro que Cristo é sem a menor sombra de dúvida o Senhor
comum de todos os que o invocam, sejam eles judeus ou gentios.
Em todo lugar. Paulo adicionou isso contrariando sua prática usual,
pois em suas outras cartas ele menciona, na saudação, somente aqueles a
quem ele endereça as cartas. Entretanto, tudo indica que ele desejava
antecipar as calúnias de certos ímpios, como a impedi-los de alegar que ele
estava adotando uma atitude extremada e forte em relação aos coríntios,
reivindicando para si uma autoridade que não ousaria assumir em relação a
outras igrejas. Logo se fará evidente que ele tinha sido também injustamente
cumulado com censura de que estava a construir ‘ninhos’8 para si mesmo,
como se quisesse fugir da luz, ou clandestinamente se excluísse do restante
dos apóstolos. Portanto, a fim de expressamente rebater tal mentira, ele
intencionalmente se põe num posto de comando, donde pudesse tornar sua
voz ouvida forte e difusamente.
3. Graça seja a vós e paz. Os leitores poderão encontrar uma exposição
desta oração no início de meu comentário à Epístola aos Romanos [Rm 1.7].
Porquanto não gostaria de sobrecarregá-los com repetições.

4. Dou sempre graças a meu Deus a respeito de vós, pela graça de Deus que vos foi
concedida em Cristo Jesus;
5. que em todas as coisas fostes enriquecidos por ele, em toda palavra e em todo
conhecimento;
6. assim como o testemunho de Cristo foi confirmado em vós;
7. de maneira que não vos venha faltar nenhum dom; esperando pela vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo,
8. que também vos confirmará até o fim, para serdes irrepreensíveis no dia de nosso
Senhor Jesus Cristo.
9. Deus é fiel, através de quem fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo,
nosso Senhor.

4. Gratias ago Deo meo semper de vobis propter gratiam Dei, quæ data vobis est in
Christo Jesu.
5. Quia in omnibus ditati estis in ipso, in omni sermone,9 et in omni cognitione.
6. Quemadmodum testimonium Christi confirmatum fuit in vobis.
7. Ut nullo in dono destituamini, exspectantes revelationem Domini nostri Jesu Christi.
8. Qui etiam confirmabit vos usque in finem inculpatos, in diem Domini nostri Jesu
Christi.
9. Fidelis Deus, per quem vocati estis in communionem Filii ipsius Jesu Christi Domini
nostri.

4. Dou sempre graças a meu Deus. Após mostrar, na saudação, que sua
autoridade repousa sobre a função que lhe fora designada, Paulo agora
busca granjear a aceitação para sua doutrina, expressando seu afeto por
eles. Agindo assim, de antemão abranda suas mentes, para que pudessem
ouvir pacientemente sua reprovação.10 Ele deveras os persuade a confiar em
seu amor: primeiro, regozijando-se com as bênçãos com que foram
contemplados, como se ele mesmo as recebesse; e, em segundo lugar, ao
declarar que seu coração lhes era favorável e que nutria por eles boa
esperança quanto ao futuro. Além disso, ele caracteriza suas
congratulações, de modo que os coríntios não tivessem nenhuma ocasião
para vangloriar-se, visto que ele aponta para Deus como a fonte donde
emana todas as bênçãos que haviam recebido, todo o louvor deve ser-lhe
dirigido, já que tudo era fruto de sua graça. Em outros termos, Paulo está
dizendo: “Congratulo-me convosco com toda sinceridade, porém de modo a
atribuir louvor somente a Deus.”
Já expliquei, em meu comentário à Epístola aos Romanos [Rm 1.8], o que
Paulo quis dizer quando denomina Deus de meu Deus. Além do mais, como
Paulo não pretendia lisonjear os coríntios, por isso não os enaltece por
motivos falsos. Porque, embora nem todos merecessem tal louvor, e embora
tivessem corrompido muitos dos dons excelentes de Deus por meio de
ambição, contudo não podia ignorar os próprios dons deles, como se
fossem de pouco valor, os quais, em si mesmos, mereciam o mais elevado
apreço. Finalmente, porque os dons do Espírito são concedidos para a
edificação de todos, ele tinha boas razões para considerá-los como dons
comuns a toda a Igreja.11 Vejamos, porém, o que Paulo recomenda neles.
Por conta da graça etc. Graça é um termo geral, porque ela abrange toda
espécie de bênçãos, as quais eles tinham obtido por meio do evangelho.
Pois a palavra graça significa, aqui, não o favor de Deus, mas, à guisa de
metonímia12 (μετωνυμικω̑ς), os dons que graciosamente Deus derramou
sobre os homens. Portanto, Paulo prossegue especificando os casos
particulares quando diz: “em tudo fostes enriquecidos”, e explica tudo como
sendo a doutrina e Palavra de Deus. Pois os cristãos devem ser plenificados
com essas riquezas, as quais devem também receber de nós as mais
elevadas honras e o mais elevado apreço, à medida que forem sendo
desconsideradas pelo povo como um todo.
Preferi conservar o termo in ipso (nele) em vez de mudá-lo para per ipsum
(por ele), porque, em minha opinião, é mais expressivo e vigoroso. Pois
somos enriquecidos em Cristo porque somos membros de seu corpo e fomos
enxertados nele; e ainda mais, visto que fomos feitos um com ele, ele
compartilha conosco tudo quanto recebeu do Pai.
6. Assim como o testemunho de Cristo foi confirmado em vós. A
tradução de Erasmo é diferente: “por meio dessas coisas, o testemunho de
Cristo foi confirmado entre vós”, significando: pelo conhecimento e pela
Palavra. As palavras têm em si uma ressonância distinta, e se não forem
torcidas, o significado é simplesmente este: Deus selou a verdade de seu
evangelho entre os coríntios, com o propósito de confirmá-la. Ora, isso pode
ser feito de duas maneiras – ou por meio dos milagres, ou por meio do
testemunho interno do Espírito Santo. Crisóstomo parece tê-lo entendido
como uma referência aos milagres, porém considero-o em um sentido mais
amplo. Antes de tudo, é certo que o evangelho deve ser propriamente
confirmado, em nossa experiência pessoal, por meio da fé, porque, tão logo
é ele recebido por nós, pela fé, então realmente “por sua vez certifica que
Deus é verdadeiro” [Jo 3.33]. E embora eu admita que os milagres devam ser
de valor para sua confirmação, não obstante uma origem mais elevada deve
ser buscada, a saber: que o Espírito de Deus é o penhor [arrha] e selo. Por
isso, explico estas palavras da seguinte maneira: que os coríntios exceliam
em conhecimento, porquanto desde o princípio Deus fez seu evangelho
produzir frutos neles. Demais, ele não fez isso de uma única forma, mas o
fez pela operação interna do Espírito e pela excelência e variedade dos dons,
pelos milagres e por todas as demais coisas que cooperam. Ele chama o
evangelho de o testemunho de Cristo ou concernente a Cristo, porque toda a
soma dele é desvendar Cristo a nós, “em quem estão ocultos todos os
tesouros do conhecimento” [Cl 2.3]. Se alguém prefere considerá-lo num
sentido ativo, em razão de o autor primário do evangelho ser Cristo, de
modo que os apóstolos nada mais são senão testemunhas secundárias, ou
menos importantes, não discordarei dele. Contudo, para mim a primeira
explicação é mais satisfatória. Admito que, logo depois [cf. 2.1], “o
testemunho de Deus” deve, além de toda controvérsia, ser considerado num
sentido ativo, porquanto o sentido passivo seria inadequado. Entretanto,
aqui o caso é diferente; outrossim, esta passagem corrobora minha opinião,
porque imediatamente ele adiciona seu significado: nada saber senão Cristo
[cf. 2.2].
7. De maneira que não vos venha faltar nenhum dom ̔Υστερεισθαι
significa estar em falta de algo que você realmente necessita. Portanto, Paulo
quer dizer que os coríntios eram ricos em todos os dons de Deus, e deveras
não careciam de nada. É como se dissesse: “O Senhor não só vos considerou
dignos da luz do evangelho, mas também vos proveu ricamente de todas as
graças que auxiliam os crentes a fazerem progresso no caminho da
salvação.” Pois ele intitula dons [charismata] aquelas graças espirituais que
são, por assim dizer, os meios de salvação para os santos. Em contrapartida,
pode-se objetar que os crentes nunca são tão ricos que não se sintam
carentes, em certa extensão, de graças, de modo que sempre se vêem
forçados a ter “fome e sede” [Mt 5.6]. Pois, quem não está longe da
perfeição? Minha resposta é a seguinte: visto que são suficientemente
providos dos dons necessários, e sempre que estão necessitados, o Senhor
vem oportunamente satisfazê-los, Paulo, pois, atribui-lhes tais riquezas. Pela
mesma razão, ele acrescenta: “aguardando a manifestação”, significando que
ele não está pensando neles como quem possui tais riquezas, nada restando
para desejar-se, senão que possuem somente o que lhes bastará até que
tenham alcançado a perfeição. Entendo o gerúndio, aguardando, neste
sentido: “durante o tempo em que estais esperando.” Assim, temos o
seguinte significado: “Portanto, neste ínterim não tendes carência de
nenhum dom, enquanto estiverdes aguardando o dia da perfeita revelação,
mediante a qual Cristo, nossa sabedoria, se fará plenamente manifesto.”
8. Que também vos confirmará. O relativo [que], aqui, não se aplica a
Cristo, e, sim, a Deus, mesmo quando o nome de Deus seja o antecedente
mais remoto. Porque o apóstolo prossegue expressando sua alegria, e como
lhes disse previamente o que sentia sobre eles, portanto agora mostra que
nutre esperança quanto ao futuro deles; e isso em parte para fazê-los sentir-
se ainda mais certos de sua afeição por eles, e em parte também para exortá-
los, por seu próprio exemplo, a nutrirem a mesma esperança. É como se
dissesse: “Ainda que estejais num estado de alarma por estardes esperando
a salvação que ainda está por vir, não obstante deveis estar certos de que o
Senhor jamais vos abandonará, mas que, ao contrário, completará o que
começou em vós, de modo que, quando esse dia chegar, quando todos nós
compareceremos diante do tribunal de Cristo [2Co 5.10], possamos, pois,
ser encontrados irrepreensíveis.”
Irrepreensíveis. Paulo ensina, em suas Epístolas aos Efésios e aos
Colossenses, que o fim de nossa vocação é para vivermos de maneira pura e
livres de mancha na presença de Deus [Ef 1.4; Cl 1.22]. Entretanto, devemos
observar que tal pureza não se completará em nós imediatamente; ao
contrário, para nosso próprio bem, devemos continuar exercitando a prática
diária da penitência, e prosseguir sendo purificados dos pecados [2Pe 1.9],
os quais nos fazem passíveis do castigo divino, até que, finalmente, sejamos
despidos, juntamente com “o corpo de morte” [Rm 7.14], de toda a impureza
do pecado. Acerca do dia do Senhor falaremos no capítulo 4.
9. Deus é fiel. Quando a Escritura fala de Deus como sendo fiel, com
freqüência significa sua perseverança e sua constante uniformidade de
caráter [perpetuum temorem], de modo que tudo o que Deus começa, ele
sempre leva a sua consumação.13 Paulo mesmo diz que “a vocação de Deus
é irrevogável” [Rm 11.29]. Portanto, em minha opinião, o que esta passagem
significa é que Deus é inabalável em seu propósito. Sendo este o caso, ele
não zomba de nós quando nos chama, mas que cuidará de nós para
sempre.14 Conseqüentemente, visto experimentarmos as bênçãos de Deus
no passado, tenhamos bom ânimo e esperemos que ele aja sempre assim no
futuro. Paulo, porém, volve sua atenção para um ponto mais elevado, pois
seu argumento é que os coríntios não podem ser lançados fora, porque uma
vez foram chamados pelo Senhor “à comunhão com Cristo”. Entretanto, a
fim de compreendermos que valor tem este argumento, notemos antes de
tudo que cada um deve ver em sua própria vocação a evidência de sua
eleição. Portanto, embora nem sempre alguém possa julgar com a mesma
certeza acerca da eleição de uma outra pessoa, todavia podemos sempre
decidir, julgando com base no amor, que tantos quantos são chamados, é
para a salvação que são chamados; eu quero dizer tanto eficaz quanto
frutiferamente. Paulo estava dirigindo estas palavras a pessoas em quem a
Palavra de Deus havia formado raízes, e em quem alguns frutos se
despontavam como resultado.
Alguém poderia objetar, dizendo que muitos dos que uma vez receberam
a Palavra, mais tarde apostatam. Minha resposta é que só o Espírito é a fiel e
infalível testemunha da eleição de cada pessoa, e que sua perseverança
depende desse fato. Responderia ainda que, não obstante, esse fato não
impedia Paulo de estar persuadido, no tribunal do amor, de que a vocação
dos coríntios seria uma firme e inabalável prova, já que ele via entre eles os
emblemas do beneplácito paternal de Deus. Além disso, tais emblemas de
forma alguma visavam a produzir um mero senso de segurança carnal; pois
as Escrituras com freqüência nos advertem quanto a nossa real fraqueza,
mas simplesmente visa a confirmar nossa confiança no Senhor. Ora, isso era
necessário a fim de que suas mentes não se vissem desnorteadas ao
descobrirem tantas falhas, como mais adiante ele as poria diante de seus
olhos. Tudo isto pode ser sumariado da seguinte forma: “Os cristãos
sinceros devem nutrir boas esperanças acerca de todos quantos têm tido
acesso ao caminho inconfundível da salvação, e perseveram em seu curso,
ainda que ao mesmo tempo sejam assediados por muitas enfermidades.
Desde o tempo em que é iluminado [Hb 10.32] pelo Espírito de Deus, no
conhecimento de Cristo, cada um de nós, na verdade, é plenamente
convencido de que foi adotado pelo Senhor na herança da vida eterna. Pois
a vocação eficaz deve ser para os crentes a evidência da adoção divina. Não
obstante, nesse ínterim devemos todos nós andar “em temor e tremor” (Fp
2.12). Farei posterior referência a este assunto no capítulo 10.
À comunhão. Em vez disso, Erasmo traduziu à participação [consortium].
A Vulgata traz sociedade [societatem]. Eu, contudo, preferi comunhão
(communionem), porque expressa melhor a força da palavra grega
κοινωνιας.15 Porque todo o propósito do evangelho consiste em que Cristo
se fez nosso e somos enxertados em seu corpo. Mas quando o Pai nos dá
Cristo como nossa possessão, também se nos comunica em Cristo, e por
causa disso realmente alcançamos a participação de cada bênção. O
argumento de Paulo, portanto, é como segue: Visto que fomos trazidos à
comunhão com Cristo através do evangelho, o qual recebemos pela fé, não
há razão para temermos o risco de morte,16 já que fomos feitos participantes
daquele [Hb 3.14] que ressuscitou dos mortos, o Vitorioso sobre a morte.
Em suma, quando o cristão olha para si mesmo, ele só vê motivo para
tremor, ou, melhor, só vê desespero. Mas pelo fato de ter sido chamado à
comunhão com Cristo, ele não deve pensar de si mesmo, no tocante à
certeza da salvação, de nenhuma outra forma senão como membro de
Cristo, tornando assim suas todas as bênçãos de Cristo. Dessa forma, ele se
assegurará da esperança da perseverança final (como é chamada) como algo
certo, caso ele se considere membro de Cristo, aquele que não pode jamais
fracassar.

10. Ora, rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que falem todos a
mesma coisa, e que não haja divisões entre vós, senão que sejais perfeitamente unidos
na mesma mente e no mesmo parecer.
11. Meus irmãos, me foi anunciado acerca de vós, pelos que são da casa de Cloe, de que
há contendas entre vós.
12. Ora, quero dizer com isso que cada um de vós afirma: Eu sou de Paulo; e eu de Apolo;
e eu de Cefas; e eu de Cristo.
13. Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vós? Ou fostes batizados em
nome de Paulo?

10. Observo autem vos, fratres, per nomen Domini nostri Jesu Christi, ut idem loquamini
omnes, et non sint inter vos dissidia: sed apte cohæreatis in una mente et in una
sententia.17
11. Significatum enim mihi de vobis fuit, fratres mei, ab iis qui sunt Chloes, quod
contentiones sint inter vos.
12. Dico autem illud,18 quod unusquisque vestrum dicat, Ego quidem sum Pauli, ego
autem Apollo, ego autem Cephæ, ego autem Christi.
13. Divisusne est Christus? numquid pro vobis crucifixus est Paulus? aut vos in nomen
Pauli baptizati estis?

10. Ora, rogo-vos, irmãos. Até aqui Paulo esteve tratando os coríntios
com mansidão, porquanto sabia o quanto eles eram sensíveis. Contudo
agora, após preparar suas mentes para receberem correção, agindo como um
bom e experiente cirurgião que toca a ferida gentilmente quando um
doloroso medicamento precisa ser aplicado, então Paulo passa a tratá-los
com mais severidade. Não obstante, mesmo aqui ele usa uma boa dose de
moderação, como veremos mais adiante. Eis a substância do que ele está
para dizer: “Minha ardente esperança é que o Senhor não vos tenha
concedido em vão tantos dons, sem antes querer conduzir-vos à salvação.
Por outro lado, deveis também sofrer aflições para impedir-vos que graças
tão excelentes sejam poluídas por vossos vícios. Portanto, esforçai-vos para
que vos concordeis uns com os outros, pois eu tenho boas razões de pedir-
vos que haja concordância entre vós, porquanto tenho sido informado de
que a desarmonia que há entre vós equivale mesmo a hostilidade; que as
facções e o partidarismo são fomentados entre vós de tal forma que estão
destroçando a genuína unidade da fé. “Visto, porém, que, neste caso, uma
simples exortação pode às vezes não ser tão persuasiva, Paulo volta a rogos
enérgicos, pois ele os conjura, em nome de Cristo, a quem amam, a que
promovam a harmonia.
Que todos faleis a mesma coisa. Ao estimulá-los à harmonia, Paulo
emprega três formas distintas de expressão. Primeiramente, ele solicita que a
concordância entre eles fossem em termos tais, que tivessem todos uma só
voz. Em segundo lugar, ele exige a remoção do mal pelo qual a unidade é
espicaçada e destruída. Em terceiro lugar, ele desvenda a natureza da
genuína harmonia, a saber, que a harmonia recíproca fosse na mente e na
vontade. O que Paulo põe como segundo é de fato o primeiro em ordem, a
saber, que nos guardemos das divisões, porque, quando somos
[precavidos], então alguma outra coisa virá, ou, seja, a harmonia. Então,
finalmente uma terceira coisa certamente resultará, a qual é mencionada em
primeiro lugar aqui, a saber: que todos falemos como se tivéssemos uma só
voz; e isso deveras é muitíssimo desejável, como fruto da harmonia cristã.
Portanto, observemos bem: nada é mais inconsistente por parte dos
cristãos do que o cultivo do antagonismo entre si. Pois o princípio mais
importante de nossa religião é este: que vivamos em harmonia uns com os
outros. Demais, a segurança da Igreja repousa sobre esta concordância e
dela depende.
Vejamos, porém, o que Paulo requer da unidade cristã. Se alguém almeja
distinções mais refinadas, ele deseja que, antes de tudo, sejam eles unidos
numa só mente [pensamento]; em seguida, num só parecer [juízo]; em
terceiro lugar, ele deseja que os coríntios declarem verbalmente sua
concordância. Entretanto, visto que minha tradução difere um pouco da de
Erasmo, devo, de passagem, chamar a atenção de meus leitores para o uso
que Paulo faz de um particípio aqui, o qual significa coisas que são
adequada e apropriadamente enfeixadas.19 Pois o verbo καταρτιζεσθαι, do
qual o particípio κατηρτισμένος se origina, significa, propriamente, ‘estar
amarrado’ e ‘estar unido’, da mesma forma que os membros do corpo
humano se acham jungidos uns aos outros numa simetria admiravelmente
perfeita.20
Para parecer [sententia], Paulo tem γνώμην. Considero-o, porém, aqui
como uma referência à vontade, de modo que há uma completa divisão da
alma, sendo a primeira sentença (numa só mente) uma referência à fé, e a
segunda (num só parecer), ao amor. Portanto, a unidade cristã será
estabelecida em nosso meio, não só quando estamos em estreita harmonia
quanto à doutrina, mas também quando estamos em harmonia em nossos
esforços e disposições, e assim nos tornamos de uma só mente em todos os
aspectos. Neste mesmo sentido, Lucas testifica da fidelidade da Igreja
Primitiva, dizendo que todos tinham “um só coração e uma só alma” [At
4.32]. Certamente que isso será sempre encontrado onde o Espírito de
Cristo reina. Ao dizer-lhes que falassem a mesma coisa, ele notifica ainda
mais plenamente o fruto da unidade, quão completa deve ser a
concordância, a saber, que não haja qualquer divergência nem mesmo em
palavras. Certamente que isso é algo muito difícil, porém mesmo assim é
indispensável entre os cristãos, de quem se tem requerido que tenham não
só uma única fé, mas também uma única confissão.
11. Me foi anunciado acerca de vós. Visto que as observações gerais às
vezes surtem pouco efeito, Paulo então notifica que o que ele está dizendo
de fato também se aplica particularmente a eles. Portanto, ele faz esta
aplicação a fim de que os coríntios soubessem que não foi sem motivo que
ele fez menção da harmonia. Pois ele mostra que não só se afastaram da
santa unidade,21 mas que também entraram em controvérsias, as quais se
tornaram mais sérias22 do que diferenças de opinião. Em caso de ser ele
acusado de ser por demais crédulo em dar ouvidos tão prontamente a
informações inverídicas,23 ele fala bem dos que lhe passaram tais
informações. Provavelmente fossem tidos na mais elevada consideração,
visto que Paulo não hesitou em citá-los como testemunhas competentes
contra a Igreja toda. Ainda que não seja de todo certo se Cloe é o nome de
lugar ou de mulher, parece-me mais provável, porém, que fosse o nome de
uma mulher.24 Portanto, em minha opinião é que foi uma família bem
familiarizada com Paulo que lhe falou deste distúrbio na Igreja de Corinto,
com o propósito de que dele proviesse a cura. Mas concluir, como fazem
muitos, seguindo a opinião de Crisóstomo, que Paulo evitou o uso de
nomes reais com o intuito de evitar que fossem molestados, parece-me
absurdo. Pois ele não diz que alguns membros particulares da família o
informaram; ao contrário, faz menção de todos eles, o que não deixa lugar a
dúvida de que estavam bem dispostos a ser citados nominalmente. Além do
mais, para que suas mentes não se exasperassem por indevida severidade,
ele mitigou a reprovação falando de uma maneira como se quisesse angariar
o respeito; e ele procedeu assim não para amenizar seu problema, mas para
fazê-los ainda mais dóceis e entender melhor a gravidade de seu mal.
12. Ora, o que eu quero dizer é que cada um de vós. Alguns acreditam
que haja aqui um caso de imitação (μιμησις), como se Paulo estivesse aqui
repetindo as palavras reais dos coríntios. Ora, ainda que os manuscritos
variem na avaliação da partícula ὅτι, sou de opinião que ela é a conjunção
porque, em vez do pronome relativo que, de modo que temos aqui
simplesmente uma explicação da sentença anterior, como segue: “A razão
por que digo que há controvérsias entre vós, é porque cada um de vós se põe
a gloriar-se no nome de um homem. Mas alguém poderá objetar que essas
afirmações não fornecem em si mesmas qualquer indicação de
controvérsias. Minha resposta é que onde as divisões predominam na
religião, outra coisa não sucede senão que o que se acha na mente dos
homens logo se irrompe em franco conflito. Pois enquanto nada é mais
eficaz para manter-nos unidos, e não há nada que mais une nossas mentes,
conservando-as em paz, do que a harmonia na religião, todavia, se por
alguma razão suscita-se desarmonia em conexão com ela, o resultado
inevitável é que os homens são imediatamente instigados a digladiar-se de
forma ferrenha, e não existe outro campo onde as controvérsias sejam mais
ferozes.25 Portanto, Paulo é justificado em apresentar como evidência
suficiente de controvérsias o fato de que os coríntios estavam criando
seitas e facções.
Eu sou de Paulo etc. Ele agora menciona nominalmente os servos fiéis
de Cristo – Apolo, que fora seu sucessor em Corinto, e também o próprio
Pedro. Então adiciona seu próprio nome ao deles, com receio de que
pudesse, de alguma forma, parecer estar fazendo mais por sua própria causa
do que pela causa de Cristo. Todavia, é improvável que houvesse alguns
partidos que estivessem atacando um desses três ministros em particular,
em detrimento dos outros dois, visto que se achavam limitados, em seu
ministério, por um acordo sagrado.26 Mas, como sugere mais tarde (1Co
3.4ss), ele transferiu para si e para Apolo o que era aplicável aos demais. Ele
procedeu assim a fim de que pudessem ter mais facilidade em avaliar o
próprio problema, dissociado da avaliação dos personagens envolvidos.
Mas alguém poderia apontar para o fato de que Paulo também menciona,
aqui, aqueles que publicamente confessavam que “eram de Cristo”. Isto
também reclamava censura? Respondo que nesta forma a expressão mais
clara é dada para a situação realmente negativa que se desenvolve de nosso
erro em prestarmos nossa devoção aos homens. Se tal acontece, então
Cristo deve necessariamente governar só uma parte da igreja, e os crentes
não têm outra alternativa senão separar-se dos demais, isso se não desejam
negar a Cristo.
Entretanto, como este versículo é torcido de várias maneiras, o único
caminho certo é decidirmos mais exatamente o que Paulo quer dizer aqui.
Seu objetivo é dizer que na Igreja a autoridade pertence unicamente a Cristo,
de modo que todos nós somos dependentes dele; que unicamente ele é
chamado Senhor e Mestre entre nós, de modo que o nome de quem quer que
seja se exibe como rival de Cristo. Portanto, Paulo condena aqueles que
atraem seguidores após eles [At 20.30], a ponto de dividir a Igreja em seitas,
porque ele os condena como inimigos que destroem nossa fé.
Conseqüentemente, Paulo não permite que os homens exerçam tal
preeminência na Igreja, que usurpem a supremacia de Cristo. Os homens,
pois, não devem ser honrados de tal maneira que venham a prejudicar,
mesmo que seja um ínfimo grau, a dignidade de Cristo. É verdade que existe
certo grau de honra que é devida aos ministros de Cristo, e que eles são
igualmente mestres em seu devido lugar; mas é preciso ter sempre em mente
que a qualificação que pertence a Cristo deve ser mantida intocável, ou,
seja, que ele continuará sendo, não obstante, o único e verdadeiro Mestre, e
deve ser contemplado como tal. Por essa razão, o alvo dos bons ministros é
este: servir a Cristo, todos eles de forma idêntica, reivindicando para ele o
domínio, a autoridade e a glória exclusivos; lutar sob sua bandeira; obedecê-
lo acima de tudo e de todos e submeter os outros a seu domínio. Se alguém
se deixa influenciar pela ambição, ele conquista seguidores, sim, não para
Cristo, mas para si próprio. Portanto, eis aqui a fonte de todos os males, eis
aqui a mais danosa de todas as enfermidades, eis aqui a peçonha mais letal
em todas as igrejas: quando os ministros se devotam mais a seus próprios
interesses do que aos interesses de Cristo. Em suma, a unidade da Igreja
consiste primordialmente nesta única coisa: que todos nós dependemos
unicamente de Cristo, e que, portanto, os homens sejam tidos e
permaneçam em posição inferior, para que nada venha a prejudicar Cristo,
um mínimo sequer, em sua posição de preeminência.
13. Cristo está dividido? Este mal intolerável provinha das diversas
divisões prevalecentes entre os coríntios. Porquanto Cristo é o único que
reina na Igreja. E já que o propósito do evangelho é que sejamos
reconciliados com Deus por intermédio de Cristo, é necessário, antes de
tudo, que estejamos todos seguros e unidos nele. Somente uma pequena
parte dos coríntios, mais sábios que os outros,27 continuava a reconhecer
Cristo como seu Mestre, enquanto todos os demais se orgulhavam de ser
cristãos. E assim Cristo estava sendo feito em pedaços. Pois é mister que
todos sejamos mantidos juntos dele e sob ele como nossa Cabeça. Pois se
vivermos divididos em diversos corpos, também dissolveremos o [corpo]
dele. Gloriarmo-nos em seu nome em meio a desavenças e partidos é rasgá-
lo em pedaços. Na verdade, tal coisa não pode ser feita, pois ele jamais
perderá a unidade e a harmonia, porque “ele não pode negar a si mesmo”
[2Tm 2.13]. Paulo, pois, colocando esta situação absurda diante dos
coríntios, se propõe a levá-los a entender que estavam alienados de Cristo
em razão de suas divisões. Pois Cristo só reina em nosso meio quando ele
constitui os elos que nos ligam a ele numa unidade sacra e inviolável.
Foi Paulo crucificado por vós? Mediante duas poderosas
considerações, Paulo mostra quão vil28 é arrebatar a Cristo de seu lugar de
honra como única Cabeça da Igreja, único Mestre, único Senhor; ou extrair
alguma parte da honra que lhe pertence e transferi-la para os homens. A
primeira razão é que fomos redimidos por Cristo com base no princípio de
que não estamos sob nossa própria jurisdição. Paulo usa este mesmo
argumento em sua Epístola aos Romanos [14.9], quando diz: “Pois para este
fim foi que Cristo morreu e ressuscitou, para que pudesse ser Senhor tanto
dos vivos quanto dos mortos.” Portanto, vivamos para ele e morramos para
ele, porque lhe pertencemos para sempre. Novamente nesta mesma Epístola
[7.23], ele escreve: “Fostes comprados por preço; não vos torneis escravos
de homens.” Portanto, visto que os coríntios haviam sido adquiridos pelo
sangue de Cristo, eles estavam, em certo sentido, renunciando as bênçãos
da redenção, já que estavam transformando outras pessoas em seus líderes.
Eis aqui uma notável doutrina que merece especial atenção: “que não temos
a liberdade de pôr-nos sob a sujeição de seres humanos,29 já que somos
herança do Senhor.” Portanto, Paulo aqui acusa os coríntios da mais grave
ingratidão, visto que estavam alienando-se desta Cabeça por cujo sangue
haviam sido redimidos; contudo, talvez agissem assim inadvertidamente.
Além do mais, esta passagem milita contra a ímpia invenção dos
papistas, a qual usam em apoio de seu sistema de indulgências. Pois do
sangue de Cristo e dos mártires eles engendraram o falso tesouro da Igreja, o
qual, ensinam eles, é distribuído pelas indulgências. Assim pretendem que,
por sua morte, os mártires30 meritoriamente ganharam algo para nós aos
olhos de Deus, para que pudéssemos recorrer a essa fonte e obter a
remissão de nossos pecados. Certamente negarão que os mártires nos
redimem. Todavia, nada é mais claro do que um fato proceder do outro. É
uma questão de poderem os pecadores reconciliar-se com Deus; é uma
questão de obterem eles o perdão; é uma questão de fazerem eles expiação
pelas ofensas. Gloriam-se de que tudo isso é feito em parte pelo sangue de
Cristo e em parte pelo sangue dos mártires. Portanto, fazem dos mártires os
participantes de Cristo na conquista de nossa salvação. Paulo, porém, aqui
está negando energicamente que alguém mais, além de Cristo, tenha sido
crucificado em nosso favor. De fato, os mártires morreram para nosso
benefício, mas (no dizer de Leo)31 foi para dar-nos o exemplo de firmeza, e
não para adquirir-nos o dom da justiça.
Ou fostes batizados em nome Paulo? Seu segundo argumento é extraído
da profissão do batismo. Pois nos alistamos sob sua bandeira, em cujo
nome somos batizados. Desta forma somos unidos32 a Cristo, em cujo nome
nosso batismo é celebrado. Daqui se segue que os coríntios podem ser
acusados de perfídia e apostasia, caso se rendam em sujeição aos homens.
Note-se aqui que a natureza do batismo é como um bônus de contrato33
de mútua obrigação, pois como o Senhor, por meio deste símbolo, nos
recebe em sua família, e nos introduz no seio de seu povo, e assim
penhoramos nossa fidelidade a ele de que jamais teremos qualquer outro
senhor espiritual. Conseqüentemente, como Deus, de sua parte, faz um
pacto de graça conosco, no qual promete a remissão de pecados e uma nova
vida, assim também, de nossa parte, fazemos um voto de empreendermos
guerra espiritual, por meio da qual lhe prometemos ser seus perenes
vassalos. Paulo aqui não trata da primeira parte, visto que o contexto não o
requer; ao tratar do batismo, porém, a segunda parte não poderia ficar
omitida. De fato, Paulo não está propriamente acusando os coríntios de
deserção, por terem abandonado a Cristo e se voltado para os homens; está,
porém, realçando o próprio fato de que, não se mantendo firmes em Cristo,
e tão-somente em Cristo, se constituíram em transgressores do pacto.
Suscita-se uma pergunta: o que significa ser batizado em nome de Cristo?
Minha resposta é que essa maneira de se expressar significa não só que o
batismo se acha fundamentado na autoridade de Cristo, mas também que
ele repousa em seu poder, e em certo sentido consiste nisso; e finalmente
que todo o efeito dele depende do fato de o nome de Cristo ser invocado
nele. Pode-se suscitar, porém, outra pergunta: por que Paulo diz que os
coríntios haviam sido batizados em nome de Cristo, quando o próprio Cristo
ordenara [Mt 28.19] que os apóstolos batizassem em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo? Minha resposta é que, ao tratarmos do batismo, nossa
primeira consideração consiste em que Deus o Pai, tendo-nos introduzido,
por sua imerecida mercê, em sua Igreja, recebe-nos, por meio da adoção, à
comunhão de seus filhos. Em segundo lugar, visto que nenhuma união com
ele nos é possível a não ser por meio da reconciliação, é indispensável que
Cristo nos restaure ao favor do Pai, por meio de seu sangue. Em terceiro
lugar, visto que somos consagrados a Deus pelo batismo, precisamos
também da intervenção do Espírito Santo, cuja função é transformar-nos em
novas criaturas. Realmente, sua obra especial é lavar-nos no sangue de
Cristo; mas, visto que só obtemos a misericórdia do Pai, ou a graça do
Espírito, tão-somente por meio de Cristo, temos boas razões para denominá-
lo o próprio objeto [scopum] do batismo, e associamos o batismo com seu
nome em particular. Todavia, isso de forma alguma suprime os nomes do Pai
e do Espírito. Pois quando desejamos falar brevemente da eficácia do
batismo, mencionamos só o nome de Cristo. Quando, porém, desejamos ser
mais precisos, então devemos também incluir os nomes do Pai e do
Espírito.

14. Dou graças a Deus porque não batizei a nenhum de vós, salvo Crispo e Gaio;
15. para que ninguém diga que fostes batizados em meu próprio nome.
16. E batizei também a casa de Estéfanas; além destes, não me lembro se batizei algum
outro.
17. Porque Cristo não me enviou a batizar, mas a pregar o evangelho; não em sabedoria
de palavras, para que a cruz de Cristo não ficasse sem efeito.
18. Porque a pregação da cruz, para os que perecem, é loucura; mas para nós, que
somos salvos, é o poder de Deus.
19. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios; E reduzirei a nada a prudência
dos prudentes.
20. Onde está o sábio? onde está o escriba? onde está o inquiridor deste mundo? Não
tornou Deus em loucura a sabedoria do mundo?

14. Gratias ago Deo meo, quod neminem baptizaverim vestrûm, nisi Crispum et Gaium:
15. Ne quis dicat, quod in meum nomen baptizaverim.
16. Baptizavi autem et Stephanæ familiam; præterea nescio, num quem alium
baptizaverim.
17. Non enim misit me Christus ut batizarem, sed ut evangelizarem: non in sapientia
sermonis, ne inanis reddatur crux Christi.
18. Nam sermo crucis iis, qui pereunt, stultitia est; at nobis qui salutem consequimur,
potentia Dei est.
19. Scriptum est enim; (Ies. xxix.14); perdam sapientiam sapientum, et intelligentiam
intelligentum auferam e medio.
20. Ubis sapiens? ubi scriba? ubi disputator hujus saeculi? nonne infatuavit Deus
sapentiam mundi hujus?

14. Dou graças a Deus. Nestas palavras, ele censura acremente a


perversidade dos coríntios, o que o levou a abster-se, até certo ponto, de
algo tão santo e honroso, que é a administração do batismo. Realmente
Paulo teria agido dentro de seus direitos, e em consonância com a natureza
de seu ofício, caso tivesse ele batizado um grande número de pessoas. Ele,
porém, se alegra de haver acontecido o contrário e de estar consciente de
que assim se deu pela providência divina, para que não houvesse nele
ocasião de orgulho, ou para que não se assemelhasse aos homens
ambiciosos que estavam à espreita de seguidores. Mas, o que aconteceria se
Paulo tivesse batizado muitos? Não teria havido nenhum erro nisso; mas
(como eu já disse) há envolvido nisso uma severa censura contra os
coríntios e seus apóstolos, visto que um servo do Senhor se alegrava em
abster-se de uma obra, igualmente boa e valiosa, com o fim de evitar que
viesse a converter-se na causa de prejuízo para os coríntios.
17. Porque Cristo não me enviou etc. Paulo levanta uma possível
objeção contra si mesmo, a saber, que ele não cumprira o que deveria ter
feito à luz do fato de que Cristo ordenara a seus apóstolos que batizassem e
ensinassem. Portanto, ele replica que esse não era o principal departamento
de seu ofício, pois a tarefa de ensinar lhe fora imposta como sendo
primordial, à qual ele deveria devotar-se. Pois quando Cristo diz aos
apóstolos: “Ide, pregai e batizai” [Mt 28.19; Mc 16.15], ele anexa o batismo ao
ensino simplesmente como adição ou apêndice. De modo que o ensino é
mantido sempre em primeiro lugar.
Entretanto, duas coisas se devem notar aqui. A primeira é que o
apóstolo, aqui, não nega que tivesse uma ordem para batizar. Pois as
palavras, Ide, batizai, aplicam-se a todos os apóstolos, e ele teria sido
presunçoso se batizasse alguém sem ter autoridade para fazê-lo. O que ele
faz aqui é simplesmente realçar a tarefa para a qual fora chamado. A segunda
questão é esta: ele aqui de forma alguma deprecia a dignidade e o efeito do
batismo, como pensam alguns. Porquanto Paulo aqui não está tratando da
eficácia do batismo, e nem faz tal comparação com o fim de denegrir sua
eficácia. Visto, porém, que o dom de ensinar pertencia a uns poucos,
enquanto que a muitos se permitia batizar, e também visto que muitos
podiam ser ensinados de uma só vez, enquanto que o batismo podia ser
administrado a um só indivíduo de cada vez, Paulo, que excedia na
habilidade de ensinar, persistiu na obra que lhe pareceu mais necessária,
enquanto que deixara a outros o que podiam melhor fazer. Além disso, se os
leitores considerarem todas as circunstâncias, mais atentamente, verão que
subjaz aqui uma ironia34 implícita, pois tacitamente ferroa os que buscavam
um pouco de glória à expensa do labor de outros, sob o pretexto de
administrar uma cerimônia religiosa. Pois o labor de Paulo na edificação
daquela igreja tinha sido incrível. Certamente que mestres despreocupados
vieram depois dele, os quais atraíram discípulos para seu partido por meio
da aspersão de água.35 Portanto, Paulo lhes confere o título de honra
(honoris), e assevera que está contente em ficar com o trabalho oneroso
[onere].36
Não em sabedoria de palavras. Há aqui um exemplo de antecipação, por
meio do qual ele refuta uma dupla objeção. Pois esses pretensos mestres
poderiam responder que Paulo, que não possuía o dom da eloqüência, se
ostentava de forma ridícula ao alegar que o departamento docente lhe fora
confiado. Por essa razão ele diz, à guisa de concessão, que não fora formado
para ser orador,37 que pudesse ostentar elegância de palavras, mas que era
ministro do Espírito, um servo que, com fala ordinária e sem polimento,
nada possuía da sabedoria do mundo. Ora, para que ninguém objetasse,
dizendo que ele corria atrás de glória através de sua pregação, assim como
tantos outros faziam quando batizavam, ele responde de forma breve
dizendo que, visto que o método de ensinar, que ele seguia, era despido de
todo brilhantismo, e não revelava qualquer laivo de ambição, então não
podia ser suspeito a esse respeito. Portanto, se não estou equivocado,
podemos prontamente deduzir qual era o principal aspecto da controvérsia
que Paulo manteve com os maus e infiéis ministros de Corinto, a saber, uma
vez que se achavam dominados pela ambição, procuravam angariar a
admiração do povo para si, insinuando-se ante o povo por meio da exibição
de palavras e simulação [larva] de sabedoria humana.
Deste mal principal surgem outros dois. (1) Que por meio do que
podemos chamar dissimulação (por assim dizer), a simplicidade do
evangelho era deformada e Cristo era vestido, por assim dizer, de uma nova
e estranha vestimenta, de modo que o puro e genuíno conhecimento dele
estava oculto dos olhos. Além do mais, (2) visto que a mente dos homens38
estava voltada para o brilhantismo e excelência de palavras, para as
especulações engenhosas, para a fútil exibição de sublimidade superior da
doutrina, a eficácia do Espírito desvanecia e nada era deixado senão a letra
morta. A majestade de Deus, que resplandece no evangelho, era apagada, e
no lugar só era visível a púrpura e a pompa infrutífera.
Conseqüentemente, com o fim de desnudar tais corrupções do
evangelho, Paulo faz aqui uma transição para o método de sua pregação. Ele
assevera que sua forma de pregar é correta e legítima, ainda que seja, ao
mesmo tempo, diametralmente aposta à ostentação daqueles indivíduos
interesseiros.39 É como se ele dissesse: “Eu sei como muitos daqueles
mestres ‘boa-vida’ gostam de vos lisonjear com sua linguagem pomposa.
Quanto a mim, confesso que minha pregação é feita num estilo destituído de
polimento, deselegante e sem qualquer erudição, mas também me glorio
dela. Pois era preciso ser assim, esse foi o método prescrito por Deus.”
Por sabedoria de palavras ele não quer dizer prestidigitação verbal
(λογοδαιδαλία),40 o que não passa de mera fala vazia, mas verdadeira
eloqüência, que consiste em habilidosa escolha de assuntos, em arranjo
pomposo e excelência de estilo. Ele declara que não possuía nada disso; na
verdade, em sua pregação não havia nada de conveniente nem vantajoso.
Para que a cruz de Cristo não fique sem efeito. Como Paulo costumava
pôr com freqüência o nome de Cristo em contraste com a orgulhosa
sabedoria carnal, assim ele agora planta a cruz de Cristo bem no centro, a
fim de destronar toda a arrogância e superioridade dessa sabedoria. Pois
toda a sabedoria dos crentes está concentrada na luz de Cristo. E existe algo
mais desprezível que uma cruz? Portanto, aquele que é verdadeiramente
sábio nas coisas de Deus precisa necessariamente inclinar-se para a
ignomínia da cruz. Isso só se fará, antes de tudo, renunciando seu próprio
entendimento das coisas, bem como toda a sabedoria do mundo. Aliás,
Paulo está ensinando aqui não só que espécie de homens devem ser os
discípulos de Cristo, e qual a vereda do aprendizado devem trilhar, mas
também qual o método de ensino deve ser usado na escola de Cristo. “A cruz
de Cristo se tornaria sem efeito”, diz ele, “se minha pregação fosse adornada
com eloqüência e brilhantismo.” Ele usou aqui a cruz de Cristo para o
benefício da redenção, a qual deve ser buscada no Cristo crucificado. Ora, a
doutrina do evangelho, que nos chama para o desfruto desse benefício, deve
lembrar a natureza da cruz, de modo que, em vez de ser gloriosa, seja, ao
contrário, desprezível e indigna aos olhos do mundo. O significado, pois,
consiste em que, se Paulo tivesse lançado mão de sutileza e de linguagem
pomposa de um filósofo, em seu trato com os coríntios, o poder da cruz de
Cristo, na qual descansa a salvação dos homens, teria sido sepultado,
porque ele [o poder da cruz] não pode nos atingir desta maneira.
Aqui se propõem duas perguntas: Primeiramente, se Paulo aqui condena,
em todos os aspectos, a sabedoria de palavras, como algo que se opõe a
Cristo; e, segundo, se ele tem em mente o fato de que a eloqüência e a
doutrina do evangelho são invariavelmente opostas, então ambas não
podem conviver em harmonia, e que a pregação do evangelho é
contaminada, caso o mais leve matiz de eloqüência41 for usado para adorná-
la.
À primeira questão respondo que é totalmente irracional presumir que
Paulo condenasse peremptoriamente aquelas artes que, evidentemente, são
esplêndidos dons de Deus, dons esses que servem como instrumentos, por
assim dizer, a auxiliarem os homens na concretização de seus importantes
propósitos. Portanto, visto que nessas artes nada existe de superstição, mas
que são detentoras de sólida erudição,42 e se acham fundamentadas em
princípios justos; e visto que são úteis e adequados às transações comuns
da vida humana, assim não pode haver dúvida de que sua origem se radica
no Espírito Santo. Além disso, a utilidade que se deriva e se experimenta
delas deve ser atribuída exclusivamente a Deus. Portanto, o que Paulo diz
aqui não deve ser considerado como um desdouro dessas artes, como se
fossem desfavorável à piedade [cristã].
A segunda questão é um pouco mais difícil, pois ele diz que a cruz de
Cristo será sem efeito se houver nela qualquer mescla da sabedoria de
palavras. Minha resposta é que nossa atenção deve estar focalizada naqueles
a quem Paulo se dirige. Pois os ouvidos dos coríntios sofriam comichões,
com tola avidez, ao som de discursos rebuscados.43 Portanto, careciam de
ser chamados de volta à ignomínia da cruz mais do que outras pessoas, para
que aprendessem a abraçar a Cristo como ele é, sem qualquer adorno, e ao
evangelho em sua simplicidade, livre de todo e qualquer adorno falso. Ao
mesmo tempo reconheço que, em alguma medida, este conceito tem uma
validade permanente, a saber, que a cruz de Cristo perde seu efeito não
meramente em virtude da sabedoria do mundo, mas também da elegância
lingüística. Pois a proclamação de Cristo crucificado é simples e sem
adorno; e por isso não deve ser obscurecida por falsos ornamentos de
linguagem. A prerrogativa do evangelho é humilhar a sabedoria do mundo
de tal maneira que, despojados de nosso próprio entendimento, nos
tornemos plenamente dóceis, e não pretendamos saber, ou mesmo desejar
conhecer algo que não seja aquilo que o próprio Senhor ensina. No que
respeita à sabedoria humana, teremos ocasião de avaliar mais detidamente,
mais adiante, em que aspectos ela é oposta a Cristo. Quanto à eloqüência,
chamarei a atenção para ela de forma abreviada, até onde a passagem o
permite.
Percebemos que desde o início Deus ordenou questões como esta: que o
evangelho fosse administrado com simplicidade, sem qualquer auxílio da
eloqüência. Não poderia aquele que modelou a língua dos homens para que
fosse eloqüente, ser ele mesmo eloqüente caso assim o quisesse? Embora
ele pudesse agir assim, contudo não quis que assim fosse. Por que ele não
quis agir dessa forma, descubro duas razões mais específicas. A primeira é
esta: para que a majestade de sua verdade pudesse resplandecer com a
máxima nitidez, e a simples eficácia de seu Espírito, sem auxílios externos,
pudesse penetrar as mentes humanas. A segunda razão é esta: para que ele
pudesse treinar mais eficazmente nossa obediência e docilidade, e ao
mesmo tempo nos instruir no caminho da genuína humildade. Pois o
Senhor a ninguém mais admite em sua escola senão os pequeninos.44
Portanto, as únicas pessoas capacitadas com sabedoria celestial são
aquelas que vivem contentes com a pregação da cruz, por mais indignas
possam aparentar, e que não nutrem nenhum desejo de ver Cristo por trás
de uma máscara [larratum]. Por isso a doutrina do evangelho tem de ser
ministrada para servir ao propósito de despir os crentes de toda arrogância
e orgulho.
O que fazer, porém, se alguém em nossos dias, discursando com algum
grau de elegância, adornar a doutrina do evangelho com faiscante
eloqüência? Ele mereceria, por essa conta, ser rejeitado como se estivesse
poluindo ou obscurecendo a glória de Cristo? Minha resposta, antes de
tudo, é que a eloqüência não se acha de forma alguma em conflito com a
simplicidade do evangelho quando, isento de menosprezo pelo evangelho,
não só lhe dá o lugar de honra e se põe em sujeição a ele, mas também lhe
presta um serviço como uma empregada faz a sua patroa. Pois, como diz
Agostinho, “Aquele que deu Pedro, o pescador, também deu Cipriano, o
orador”. Ele quis dizer com isso que ambos os homens provêm de Deus,
ainda que um deles, sendo muito superior ao outro em dignidade, seja
totalmente despido de atavismo verbal; enquanto que o outro, se assenta
aos pés do primeiro, se distingue pela fama de sua eloqüência. Não devemos
condenar nem rejeitar o gênero de eloqüência que não almeja cativar
cristãos com um requinte exterior de palavras, nem intoxicar os ouvintes
com deleites fúteis,45 nem fazer cócegas em seus ouvidos com sua suave
melodia, nem envolver a cruz de Cristo com sua fútil exibição, à semelhança
de um véu. Senão que, ao contrário, seu alvo é trazer-nos de volta à original
simplicidade do evangelho e pôr em relevo a pregação da cruz e nada mais,
humilhando-se voluntariamente, e finalmente cumprindo, por assim dizer,
seus deveres de arauto,46 para obter a atenção daquelas pessoas simples,
comuns e sem cultura, que não desfrutam de nenhum atrativo senão do
poder do Espírito.
Em segundo lugar, respondo que o Espírito de Deus também possui uma
eloqüência peculiarmente sua. Ela brilha com aquele esplendor que lhe é
natural, fazendo uso de uma palavra mais excelente, intrínseca (como
dizem), superior aos pretensos ornamentos retóricos. Os profetas possuíam
esta eloqüência, particularmente Isaías, Davi e Salomão. Moisés também
possuía uma pitada dela. Ainda mais: mesmo nos escritos dos apóstolos,
ainda que não tão polidos, não obstante há tênues centelhas dela se
exibindo ocasionalmente ali. Daí, a eloqüência que está em conformidade
com o Espírito de Deus é de tal forma natural que nem é bombástica nem
ostentosa, nem ainda produz um forte volume de ruídos que equivalem a
nada. Antes é sólida e eficaz, e possui mais substância do que elegância.
18. Porque a palavra da Cruz. Nesta primeira sentença, ele faz uma
concessão. Porque, visto ser fácil objetar que o evangelho comumente é
considerado com desdém, se ele vem a ser conhecido numa forma despida e
insignificante, Paulo espontaneamente o admite. Mas quando ele acrescenta
que esse é o ponto de vista daqueles que estão a perecer, significa que
pouquíssimo valor se deve pôr em sua opinião. Pois quem iria querer
condenar o evangelho às custas de sua perdição? Portanto, esta expressão
deve ser entendida nestes termos: “A pregação da cruz é considerada
loucura por aqueles que estão a perecer, justamente porque ela não possui
qualquer atavio de sabedoria humana que o recomende. Seja como for, em
nossa opinião, não obstante, a sabedoria de Deus está vividamente
irradiando-se dela.” Paulo, contudo, indiretamente está censurando o juízo
pervertido dos coríntios, os quais se deixavam facilmente fascinar-se por
palavras sedutoras de mestres megalomaníacos, e ainda olhavam com
desdém para o apóstolo que era dotado com o poder de Deus para a
salvação deles, e procediam assim simplesmente porque ele se devotava à
proclamação de Cristo. Em meu comentário aos Romanos [1.16] expliquei de
que maneira a proclamação da cruz é o poder de Deus para a salvação.
19. Pois está escrito. Ao usar o testemunho de Isaías, Paulo prova ainda
mais quão errônea é a idéia de que a veracidade do evangelho seria tomada
com preconceito com base no fato de que os sábios deste mundo o vêem
com descaso, para não dizer com zombaria. Pois é evidente, à luz das
palavras dos profetas, que a opinião deles é reputada como nada sendo aos
olhos de Deus. As palavras acima são tomadas de Isaías 29.14, onde o
Senhor ameaça que se vingará da hipocrisia do povo com esse gênero
peculiar de castigo, ou, seja: que “a sabedoria dos sábios perecerá” etc. Ora,
isso se aplica à situação com que Paulo está lidando, da seguinte forma:
“Não é novo nem fora do comum que homens, que parecem em outros
aspectos ser eminentes pela sabedoria, formem juízos totalmente absurdos.
Pois o Senhor tem por hábito de punir desta maneira a arrogância daqueles
que confiam em sua própria habilidade natural e pretendem ser seus
próprios guias e os de outras pessoas. Foi assim que ele, certa vez, destruiu
a sabedoria dos líderes de Israel. Se tal sucedeu àquele povo, cuja sabedoria
as demais nações tiveram ocasião de admirar, o que virão a ser as demais?
Entretanto, devemos comparar as palavras do profeta com as de Paulo, e
examinar toda a questão ainda mais estreitamente. Deveras o profeta usa
verbos neutros quando diz que “a sabedoria perecerá e a prudência se
desvanecerá”, quando Paulo os transpõe para a forma ativa, fazendo Deus o
sujeito, contudo concordam perfeitamente em significado. Pois Deus
demonstra que ele executará esta grande maravilha, para que todos sejam
postos em espanto. Assim, “a sabedoria perece”, mas é através do ato
destruidor do Senhor; “a sabedoria se desvanece”, mas é pelo ato do Senhor
em cobri-la e extingui-la. Ora, o segundo verbo, αθετει̑ν, o qual Erasmo
traduz por reiicere [rejeitar], é ambíguo e às vezes é tomado no sentido de
extinguir (delere), ou riscar (expungere), ou obliterar [obliterare]. Este é o
sentido em que prefiro tomá-lo, para fazê-lo corresponder à palavra do
profeta: desvanecer ou estar oculto [desaparecer]. Ao mesmo tempo, há outra
razão que teve uma influência mais forte em mim,47 a saber, a idéia de
rejeição não se harmonizava com o tema, como logo se fará evidente.
Consideremos, pois, o significado. O profeta quer provar mui claramente
que eles [os judeus] não mais teriam governadores com qualificações
legítimas para governar bem, porque o Senhor os privará de perfeito juízo e
de inteligência. Pois assim como em outras passagens [Is 6.10] ele ameaça a
todas as pessoas com cegueira, também aqui com relação aos líderes; é
precisamente como se ele fosse arrancar os olhos físicos.
Seja como for, uma grande dificuldade surge da circunstância de que os
termos sabedoria e prudência são considerados por Isaías em bom sentido,
enquanto Paulo os cita com um propósito completamente diferente, como
se a sabedoria dos homens fosse condenada por Deus como sendo
perversa, e sua prudência rejeitada como sendo mera vaidade. Concordo
que ela é explicada dessa forma, visto, porém, ser indubitável que os
oráculos do Espírito Santo não são pervertidos pelos apóstolos para
assumirem outros significados estranhos a seu real desígnio, prefiro afastar-
me da opinião comum dos intérpretes, do que acusar Paulo de distorcer a
verdade. E também em outros aspectos o significado natural das palavras do
profeta não se adequa mal com a intenção de Paulo. Pois se mesmo os
sábios se tornam insensatos quando o Senhor retira um espírito justo, que
confiança deve ser depositada na sabedoria humana? Além disso, visto que
a maneira usual de Deus vingar-se é golpeando com cegueira aos que se
acham presos a seu próprio entendimento e são excessivamente sábios a
seus próprios olhos, e não surpreende que homens carnais se levantem
contra Deus na tentativa de fazer sua eterna verdade ser substituída por
suas temeridades, tornam-se insensatos e vêm a ser fúteis em suas
imaginações. Agora percebemos com que pertinência Paulo faz uso deste
testemunho. Isaías declara que a vingança de Deus que recai sobre todos
quantos serviram a Deus com suas próprias invenções seria que “a
sabedoria desapareceria de seus sábios”. Paulo faz uso deste testemunho de
Isaías com vistas a provar que a sabedoria deste mundo é inútil e sem valor
quando se exalta contra Deus.
20. Onde está o sábio? Onde está o escriba? Esta nota de sarcasmo é
adicionada com o propósito de ilustrar o testemunho do profeta. Paulo por
certo não tomou esta expressão de Isaías, como comumente se imagina, mas
é uma expressão de seu próprio pensamento. Pois a passagem de Isaías
[33.18], a que as pessoas se referem, não tem absolutamente nenhuma
similitude ou relação com a presente abordagem. Porque, visto que Isaías
está ali prometendo aos judeus o livramento do juízo de Senaqueribe a fim
de mostrar-lhes muito mais claramente quão grande é essa bênção divina,
ele então prossegue lembrando-lhes a condição ignóbil daqueles que são
oprimidos pela tirania de estrangeiros. Diz que eles viviam num constante
estado de agitada incerteza, quando pensam em si mesmos como sendo
ameaçados por escribas e tesoureiros, pelos que pesavam os tributo e por
contadores de torres. Mais que isso, ele diz que os judeus tinham vivido em
situações tão críticas, que eram movidos à gratidão pela simples lembrança
delas. Portanto, é um equívoco imaginar que esta expressão foi tomada do
profeta.48 O termo mundo não deve ser tomado em conexão meramente com
o último termo, mas também com os outros dois. Ora, pela expressão, sábios
deste mundo, ele quer dizer os que não derivam sua sabedoria da iluminação
do Espírito por meio da Palavra de Deus, mas, revestida com mera e profana
sagacidade, repousa na segurança que ela propicia.
Geralmente se concorda que o termo escribas significa mestres. Porque,
visto que rp's;, saphar, entre os hebreus, significa narrar ou contar, e o
substantivo derivado dela, rp≤se, sepher, significa livro ou volume, empregam o
termo myrp]wús, sopherim, para denotar os homens eruditos e os que são
amigos dos livros. Por essa razão também sopher regis às vezes é usado para
denotar um chanceler ou secretário. Então os gregos, seguindo a etimologia
da palavra hebraica, traduziam γραμματεις para escribas.49
Paulo, apropriadamente, chama investigadores50 aos que revelam
perspicácia em lidar com problemas difíceis e questões intrincadas.
Portanto, falando em termos gerais, ele destroça todas as habilidades
naturais dos homens, ao ponto de não valerem nada no reino de Deus. E não
é sem boas razões que ele fala tão veementemente contra a sabedoria
humana. Pois nenhuma palavra pode descrever quão difícil é eliminar das
mentes humanas sua mal direcionada confiança na carne, para que não
arroguem para si mais do que lhes é devido. Entretanto, seria ir além dos
limites se, confiando, mesmo em mínimo grau, em sua própria sabedoria, se
aventurarem a formar opiniões a seu próprio respeito.
Não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Por sabedoria, Paulo
quer dizer, aqui, tudo quanto o homem pode compreender, não só por sua
própria habilidade mental e natural, mas também pelo auxílio da
experiência, escolaridade e conhecimento das artes. Porquanto, ele
contrasta a sabedoria do mundo com a sabedoria do Espírito. Segue-se que
qualquer conhecimento que uma pessoa venha a possuir, sem a iluminação
do Espírito Santo, está incluído na sabedoria deste mundo. Ele afirma que
Deus tornou ridículo tudo isso, ou condenou como loucura. Deve-se
entender de duas maneiras como isso é feito. Pois qualquer conhecimento e
entendimento que uma pessoa porventura possua não tem o menor valor se
não repousar na verdadeira sabedoria; e não é de mais valor para apreender
o ensino do que os olhos de um cego para distinguir as cores. Deve-se
prestar cuidadosa atenção a ambas as questões, ou, seja: Primeiramente,
que o conhecimento de todas as ciências não passa de fumaça à parte da
ciência celestial de Cristo; e, segundo, que o homem com toda sua astúcia é
demais estúpido para entender, por si só, os mistérios de Deus.
Precisamente como um asno é incapaz de entender a harmonia musical.
Paulo mostra a disposição para o orgulho devorador existente naqueles que
se vangloriam na sabedoria deste mundo, ao ponto de desprezarem a Cristo
e a toda a doutrina da salvação, imaginando que serão felizes meramente
por aderirem às coisas deste mundo. Também golpeia a arrogância daqueles
que, confiando em sua própria capacidade, tentam escalar o próprio céu.
Há também uma solução fornecida, ao mesmo tempo, para a pergunta:
Como é possível que Paulo lance por terra, desta forma, todo gênero de
conhecimento que existe fora de Cristo, e calcar aos pés, por assim dizer, o
que bem se sabe ser o principal dom de Deus neste mundo? Pois o que há
de mais nobre do que a razão humana, por meio da qual excelemos aos
demais animais? Quão sumamente merecedoras de honra são as ciências
liberais, as quais refinam o homem de tal forma que o fazem
verdadeiramente humano! Além disso, que extraordinários e seletos frutos
eles produzem! Quem não atribuiria o mais sublime louvor a fim de exaltar a
prudência51 estadista (sem falar em outras coisas), por meio da qual
estados, impérios e reinos são mantidos?
Creio que uma solução para esta pergunta é a seguinte: é evidente que
Paulo não condena peremptoriamente, seja o discernimento dos homens,
seja a sabedoria granjeada pela prática e a experiência, seja o
aprimoramento da mente através da cultura; mas o que ele diz é que todas
essas coisas são inúteis para a obtenção da sabedoria espiritual. E
certamente é loucura para todos quantos presumem que podem escalar o
céu, confiando em sua própria perspicácia ou com o auxílio da cultura; em
outros termos, é loucura pretender investigar os mistérios secretos do reino
de Deus52 [ x 19.21], ou forçar caminho para o conhecimento deles, pois eles
se acham ocultos à percepção humana. Portanto, tomemos nota do fato de
que devemos limitar-nos às circunstâncias do presente caso, ou, seja, que
Paulo aqui ensina acerca da futilidade da sabedoria deste mundo, a saber:
que ela permanece no nível deste mundo, e que de forma alguma alcança o
céu. É também verdade, em outro sentido, que fora de Cristo cada ramo do
conhecimento humano é fútil, e o homem que se acha bem estabelecido em
cada aspecto da cultura, mas que prossegue igualmente ignorante de Deus,
não possui nada. Além do mais, deve-se também dizer, com todas as letras,
que estes excelentes dons divinos – perspicácia mental, agudeza da razão,
ciências liberais, conhecimento idiomático – tudo isso, de uma forma ou de
outra, se corrompe, sempre que cai nas mãos dos ímpios.

21. Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua sabedoria, foi do
agrado de Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação.
22. Visto que os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria,
23. para os que são chamados, porém, tanto judeus como grego,
24. [pregamos] Cristo, o poder de Deus, e a sabedoria de Deus.
25. Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais
forte que os homens.

21. Quoniam enim in sapientia Dei non cognovit mundus per sapientiam Deum, placuit
Deo per stultitiam prædicationis salvos facere credentes.
22. Siquidem et Judaæ signum petunt et Græci sapientiam quærunt.
23. Nos autem prædicamus Christtum crucifixum, Judæis quidem scandalum, Græcis
autem stultitiam:
24. Ipsis autem vocatis, tam Judæis, quam Græcis, Christum Dei potentiam, et Dei
sapientiam.
25. Nam stultitia Dei sapientior est hominibus, et infirmitas Dei robustior est hominibus.

21. Visto que o mundo não conheceu. A ordem correta das coisas era
precisamente esta: que o homem, contemplando a sabedoria de Deus em
suas obras, pelo auxílio da luz do entendimento que lhe fora fornecida pela
natureza (ingenita sibis injenii luce), pudesse chegar a uma familiaridade
com ele. Mas em razão desta ordem ter-se invertido pela perversidade do
homem, a vontade de Deus, antes de tudo, é tornar-nos loucos a nossos
próprios olhos, antes de começar a instruir-nos no conhecimento da
salvação [2Tm 3.15]. Daí em diante, como evidência de sua sabedoria, ele
põe diante de nossos olhos aquilo que tem certa aparência de loucura. A
ingratidão dos homens mereceu esta inversão das coisas. Paulo descreve
como sabedoria de Deus as belezas do mundo todo, as quais são esplêndida
evidência de sua sabedoria, pois elas se nos afiguram de maneira
demasiadamente clara. Portanto, nas coisas que ele criou, Deus mantém
diante de nós nítido espelho de sua esplendorosa sabedoria. Em resultado,
qualquer indivíduo que desfrute de pelo menos uma leve fagulha de bom
senso, e atenta para o mundo e para outras obras divinas, se vê dominado
por ardente admiração por Deus. Se os homens chegassem a um genuíno
conhecimento de Deus pela observação de suas obras, certamente viriam a
conhecer Deus de uma forma sábia, ou daquela forma de adquirir sabedoria
que lhes é natural e adequada. Mas porque o mundo todo não aprendeu
absolutamente nada do que Deus revelou de sua sabedoria nas coisas
criadas, ele, pois, passou a instruir os homens de outra maneira. Deve-se
atribuir a nossa própria culpa o fato de não alcançarmos um conhecimento
salvífico de Deus antes de sermos esvaziados de nosso próprio
entendimento.
Paulo faz uma concessão ao chamar o evangelho de loucura da pregação,
pois esta é precisamente a luz na qual ele é considerado por aqueles “sábios
insensatos” (μωροσόφοις) que, intoxicados por falsa confiança,53 não temem
subjugar a inviolável verdade de Deus a sua própria e medíocre censura. E,
além do mais, não há dúvida de que a razão humana não acha nada mais
absurdo do que a notícia de que Deus se tornou um homem mortal; que a
vida está sujeita à morte; que a justiça foi velada sob a aparência de pecado;
que a fonte de bênção ficou sujeita à maldição; que por esses meios os
homens podem ser redimidos da morte e tornar-se participantes da bendita
imortalidade; que podem obter a vida; que, sendo o pecado destruído, a
justiça volta a reinar; e que a morte e a maldição podem ser tragadas. Não
obstante, sabemos que o evangelho é, nesse ínterim, a sabedoria oculta [1Co
2.7] que excede os céus e suas alturas, e diante do qual até mesmo os anjos
ficam pasmos. Esta é uma passagem muito excelente, e dela podemos ver
nitidamente quão profunda é a obtusidade da mente humana que, em meio à
luz, nada percebe. Pois é uma grande verdade que este mundo se assemelha
a um teatro no qual o Senhor exibe diante de nós um surpreendente
espetáculo de sua glória. Entretanto, quando tais cenas se descerram diante
de nossos olhos, nos revelamos cegos como pedras, não porque a revelação
seja obscura, mas porque somos “alienados no entendimento” (mente
alienati, Cl 1.21), significando que não só a inclinação, mas também a
habilidade nos são falhas. Porque, a despeito de Deus se nos revelar
publicamente, todavia é só pelos olhos da fé que podemos contemplá-lo,
tendo em mente que recebemos só uma leve noção de sua natureza divina,
mas o bastante para pôr-nos na posição de seres sem justificativa [Rm 1.20].
Conseqüentemente, visto que Paulo aqui diz que Deus não pode ser
conhecido pelo prisma das coisas que ele criou, devemos entender com
isso que não se pode obter o conhecimento absoluto de Deus. Para que
ninguém apresente pretexto em prol de sua ignorância, os homens fazem
progresso na escola universal da natureza ao ponto de serem afetados com
alguma consciência da deidade, porém não têm idéia do que seja a natureza
de Deus. Ao contrário, seu pensamento se dissolve em nada [Rm 1.21].
Dessa forma a luz brilha nas trevas [Jo 1.5]. Portanto, segue-se que os
homens não vivem no erro por mera ignorância, a fim de ficarem isentos da
acusação de menosprezo, negligência e ingratidão. Portanto procede que
“todos têm conhecimento de Deus” [Deum novisse], porém “não lhe dão
glória” [Rm 1.21]; e que, em contrapartida, ninguém, à luz da mera natureza,
jamais fez tanto progresso que chegasse a conhecer a Deus [Deum
cognosceret]. Alguém poderia apresentar os filósofos como exceção a essa
regra; replico, porém, que é especialmente em seu caso que há um
conspícuo exemplo de nossa fraqueza. Pois não se pode encontrar sequer
um que constantemente não tenha se afastado daquele princípio de
conhecimento que já mencionei, vagueando54 pelos meandros de
especulações ilusórias. São na maioria das vezes mais tolos do que
espertos! Quando Paulo diz que “os que crêem são salvos”, isso
corresponde ao versículo 18, ou, seja, que “o evangelho é o poder de Deus
para a salvação” [Rm 1.16]. Além disso, ao contrastar os crentes, cujo
número é diminuto, com um mundo cego e louco, Paulo está nos lembrando
de que nos equivocamos quando nos sentimos perturbados ante o pequeno
número dos salvos, visto que, pela ação de Deus, eles foram divinamente
separados “para a salvação”.
22, 23. Visto que os judeus pedem sinais. Isso explica as sentenças
anteriores, ou, seja, Paulo está mostrando de que maneira a pregação do
evangelho é considerada uma loucura. Ao mesmo tempo ele não só explica,
mas também expande, dizendo que os judeus fazem mais que reputar o
evangelho como sendo de pouco valor, eles, além disso, o detestam. “Os
judeus”, diz Paulo, “querem, através dos milagres, ter a evidência do poder
divino ante seus olhos. Os gregos amam aquilo que possui o encanto da
sutileza e se deleitam na engenhosidade humana. Nós, na verdade, pregamos
o Cristo crucificado, e, à primeira vista, não há nada de extraordinário nisso
senão fraqueza e loucura. Portanto, ele não passa de pedra de tropeço para
os judeus quando o vêem aparentemente esquecido por Deus. Quando os
gregos ouvem qual foi o método da redenção, acreditam ouvir uma fábula.”
Em minha opinião, Paulo quer dizer pelo termo gregos não simplesmente os
pagãos ou gentios, mas todos aqueles que eram educados nas ciências
liberais, ou que eram de projeção em razão de sua inteligência superior. Ao
mesmo tempo, à guisa de sinédoque, todos os outros estão igualmente
incluídos aqui. Entre judeus e gregos, contudo, ele traça uma distinção,
dizendo que os primeiros, furiosos contra Cristo movidos por um zelo
irracional pela lei, trovejavam em tormenta de fúria contra o evangelho,
como os hipócritas costumam fazer quando estão lutando por suas
próprias crenças equivocadas [superstitionibus]. Os gregos, em
contrapartida, intumescidos de orgulho, desprezavam-no como sendo algo
insípido.
O fato de Paulo descobrir culpa nos judeus por serem eles tão ansiosos
em querer sinais, não significa que, em si mesmo, seja errôneo desejá-los.
Mas ele mostra onde estavam errados, à luz dos seguintes pontos: (1) em
sua repetida insistência em exigir milagres, estavam, em certo sentido,
prensando Deus sob suas leis; (2) através do embotamento de seu
entendimento, queriam manter contato palpável55 com Deus por meio de
milagres públicos; (3) sendo hipnotizados pelos próprios milagres, olhavam
para eles com estupor; (4) em suma, nenhum milagre poderia satisfazê-los,
mas a cada dia aguardavam, ansiosos, ver um novo. Ezequias não é
censurado só porque prontamente consentiu ser confirmado por meio de
um sinal [2Rs 19.29; 20.8]. Inclusive Gideão não foi reprovado, embora
solicitasse um duplo sinal [Jz 6.37, 39]. No entanto, em contrapartida, Acaz é
condenado por recusar o sinal que o profeta lhe ofereceu [Is 7.12]. Em que
os judeus, pois, estavam errados quando pedem milagres? Estava nisto: não
os buscavam para um bom propósito; não punham nenhum limite a suas
exigências; não faziam bom uso deles. Pois enquanto a fé deve ser auxiliada
pelos milagres, sua única preocupação era permanecer o máximo possível
em sua descrença. Embora seja ilícito prescrever leis para Deus, expandiam
sua monstruosa e irrefreada libertinagem. Enquanto os milagres devem nos
conduzir a uma maior familiaridade com Cristo e com a graça espiritual de
Deus, para os judeus não passava de obstáculos. Por essa razão também
Cristo os repreende, dizendo: “Uma geração perversa busca sinais” [Mc
8.12]. Porquanto não havia limites para sua curiosidade e suas persistentes
exigências; e tão logo obtinham milagres, nenhum benefício viam neles.
24. Tanto gregos como judeus. Paulo mostra, através desta antítese,
quão pessimamente é Cristo recebido, e que isso não era devido a alguma
falha dele, nem pela natural inclinação do gênero humano, mas que sua
causa consiste na depravação daqueles que não foram iluminados por Deus.
Pois nenhuma pedra de tropeço impede os eleitos de Deus de irem a Cristo
com o fim de encontrarem nele a certeza da salvação. Paulo contrasta poder
com pedra de tropeço que advém da humildade de Cristo, e confronta
sabedoria com loucura. A essência disso, pois, é a seguinte: “Eu sei que
nenhuma coisa, a não ser sinais, pode exercer algum efeito na obstinação
dos judeus, e que na realidade só um fútil gênero de sabedoria pode aplacar
o desdenhoso menosprezo dos gregos. Não devemos, contudo, dar
demasiada importância a este fato, visto que não importa o quanto nosso
Cristo ofende os judeus com a humildade de sua cruz e é tratado com o
máximo desprezo pelos gregos; não obstante, ele é para todos os eleitos, de
todas as nações, o poder de Deus para a salvação, para remover essas pedras
de tropeço, e a sabedoria de Deus para afastar toda e qualquer dissimulação
[larvam] no campo da sabedoria.”56
25. Porque a loucura de Deus. Quando Deus trata conosco, de certa
forma parece agir de maneira absurda só pelo fato de não exibir sua
sabedoria; não obstante, o que aparenta ser absurdo excede em sabedoria a
toda a engenhosidade humana. Além do mais, quando Deus oculta seu
poder e parece agir como se fosse frágil, o que se imagina ser fragilidade é,
não obstante, mais forte do que todo o poder humano. Devemos, contudo,
observar sempre, ao lermos estas palavras, que existe aqui uma concessão,
como já fiz notar um pouco antes.57 Pois alguém pode notar mui claramente
quão impróprio é atribuir a Deus, seja loucura, seja fraqueza; mas era
indispensável, por meio dessas expressões irônicas, rebater a insone
arrogância da carne, a qual não hesita espoliar a Deus de toda sua glória.

26. Irmãos, vede que vossa vocação não inclui muitos sábios segundo a carne, nem
muitos poderosos, nem muitos nobres são chamados.
27. Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para confundir as sábias; e Deus
escolheu as coisas fracas do mundo para confundir as que são poderosas;
28. e as coisas insignificantes do mundo, e as coisas que são desprezadas, sim, Deus
escolheu as coisas que não são para reduzir a nada as coisas que são;
29. para que nenhuma carne se glorie em sua presença.
30. Vós, porém, sois dele em Cristo Jesus, o qual foi feito para nós sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção.
31. Para que, como está escrito, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.

26. Videte (vel, videtis) vocationem vestram, fratres, quod non multi58 sapientes
secundum carnem, non multi potentes, non multi nobiles:
27. Sed stulta mundi elegit Deus, ut sapientes pudefaciat: et infirma mundi elegit Deus,
ut patefaciat fortia:
28. Et ignobilia mundi et contempta elegit Deus, et ea quæ non erant, ut quæ erant
aboleret;
29. Ne glorietur ulla caro coram Deo.
30. Ex ipso vos estis 59 in Christo Jesu, qui factus est nobis sapientia a Deo, et justitia, et
sanctificatio, et redemptio.60
31. Ut (quemadmodum scriptum est) Qui gloriatur, in Domino glorietur (Jer. ix.24).

26, 27. Olhai para vossa própria vocação. Em razão de haver dúvida
sobre o modo do verbo grego βλέπετε, o indicativo adequar-se ao contexto
tão bem quanto o imperativo, deixo ao leitor a liberdade de decidir segundo
sua preferência. Entretanto, o significado é obviamente o mesmo em ambos
os modos, pois ao usar o indicativo – “vós vedes”–, Paulo estaria chamando-
os a testemunharem, por assim dizer, algo óbvio, e estaria confrontando-os,
por assim dizer, com algo imediato. Em contrapartida, porém, ao usar o
imperativo, ele estaria incitando-os, como se estivessem desatentos, a
considerarem este mesmo fato.
Chamados pode ser tomado coletivamente como a companhia dos
chamados, mais ou menos assim: “Vede o tipo de pessoas, em vossa
assembléia, a quem o Senhor tem chamado.” Sou, porém, mais inclinado a
deduzir que a forma de sua vocação é por indicação. E este é um argumento
mais forte, porque segue-se daí que, se menosprezam a humildade da cruz,
então, em certo sentido, estão anulando sua própria vocação; pois em seu
chamado Deus tinha mantido seu método de excluir toda honra, poder e
glória humanos. Portanto, Paulo tacitamente acusa-os de ingratidão, porque,
olvidando tanto a graça de Deus, como a si próprios, tratavam o evangelho
de Cristo com escárnio.
Entretanto, duas coisas devem ser observadas aqui. Primeiro, ele
desejava usar o exemplo dos coríntios para confirmar a verdade do que
dissera. Segundo, ele desejava adverti-los de que deviam estar
completamente despidos de todo orgulho, caso estivessem prestando
adequada atenção ao gênero de procedimento que o Senhor seguira ao
chamá-los. Paulo diz que Deus “expôs a sabedoria e a nobreza de
nascimento à humilhação”, e “destruiu as coisas que são”. Ambas as
expressões são mui adequadas, pois a força e a sabedoria se desvanecem
quando expostas ao descrédito, e o que possui existência deve ser
destruído. Ele quer dizer que Deus preferiu chamar o pobre e o tolo, o de
nascimento obscuro, diante do grande, do sábio e de nobre nascimento. Se
Deus não tivesse posto a todos no mesmo nível, nada teria sido suficiente
para abater a arrogância humana. Daí, aqueles que pareciam eminentes, ele
lançou por terra, a fim que o mesmo fosse realmente reduzi-lo a nulidade.
Entretanto, alguém seria insensato se deduzisse desse fato que Deus
dessa maneira estava aviltando a glória da carne, a fim de que o grande e o
sábio fossem excluídos da esperança da salvação. É por isso que alguns
irresponsáveis não só transformaram isso em pretexto para triunfarem sobre
os grandes, como se Deus os houvera abandonado, mas inclusive os
desprezaram como se estivessem muito abaixo deles. Lembremo-nos,
contudo, de que isso foi dito aos coríntios, ou, seja, que eles, embora não
desfrutassem de nenhuma posição importante no mundo, no entanto eram
soberbos, ainda quando não tivessem razão de o ser. Portanto, ao expor os
fortes, os sábios e os grande ao ridículo, Deus não exalta os fracos, os
indoutos e os indignos, senão que reduz a todos eles a um nível comum.
Portanto, que todos quantos são desprezíveis aos olhos do mundo pensem
bem nisto: “Quão modestos deveríamos ser diante do fato de que os que
são tidos em alta estima pelo mundo são reduzidos a nada!64 Se a radiância
do sol é eclipsada, qual é a sorte das estrelas? Se a luz das estrelas é extinta,
o que se espera dos objetos opacos? O desígnio dessas observações
consiste nisto: que aqueles que foram chamados pelo Senhor, ainda que
destituídos de qualquer valor aos olhos do mundo, não podiam abusar
dessas palavras de Paulo enfunando suas cristas! Ao contrário, tendo em
mente a exortação de Paulo em Romanos 11.20 – “por sua incredulidade
foram quebrados, e mediante a fé tu estás em pé” – podiam andar
prudentemente na presença de Deus com temor e humildade.
Em contrapartida, Paulo não diz aqui que nenhum nascido em “berço de
ouro” ou poderoso seria chamado por Deus, e, sim, que haveria poucos
deles. E nos fornece o motivo disso: que o Senhor, ao preferir os
desprezíveis aos grandes, estaria destroçando o orgulho humano. O mesmo
Deus, pelos lábios de Davi, exorta os reis a beijarem a Cristo61 [Sl 2.12]; e
igualmente anuncia pelos lábios de Paulo [1Tm 2.1-4] que ele deseja que
todos os homens sejam salvos, e que seu Cristo é exibido a todos os
homens, tanto ao insignificante quanto ao grande, tanto ao rei quanto ao
cidadão comum. Ele mesmo nos deu prova real disso: os pastores são os
primeiros a ser chamados a Cristo; em seguida vêm os filósofos; pescadores
incultos e menosprezados desfrutam de um espaço mais honroso; porém,
mais tarde, seguem os reis e seus conselheiros, os senadores e oradores são
também recebidos em sua escola.
28. As coisas que não são. Ele usa termos afins em Romanos 4.17, porém
com um sentido distinto. Pois nessa passagem, descrevendo a vocação
universal dos crentes, ele diz que não somos nada antes de sermos
chamados. E isso deve ser entendido como sendo uma referência à realidade
aos olhos de Deus, mesmo quando parecemos ser algo importante aos
olhos dos homens. Contudo, o nada (οὐδενεια) de que Paulo fala deve ser
considerado como uma referência à opinião dos homens. Isso é evidente à
luz da sentença correspondente, na qual ele diz que isso é feito a fim de que
as coisas que são sejam reduzidas a nada. Pois nada existe senão na
aparência, porque na realidade todos nós somos nada. Portanto, devemos
entender “as coisas que são” no sentido de “as coisas que aparecem”; de
modo que esta passagem corresponde a estas afirmações: “Ele ergue do pó o
desvalido; e do monturo, o necessitado” [Sl 113.7]; “O Senhor levanta os
abatidos” [Sl 146.8]; e outros de natureza semelhante. Destas citações fica
perfeitamente em evidência que as pessoas são demasiadamente insensatas
quando presumem existir algum mérito ou dignidade nos homens anterior à
eleição divina.
29. Para que nenhuma carne se glorie. Mesmo que aqui, e em muitas
passagens da Escritura, o termo carne signifique toda a humanidade, todavia
nesta passagem ele contém uma conotação particular, porque o Espírito, ao
falar do gênero humano em termos de desdém, abate seu orgulho; como em
Isaías 31.3: “Pois os egípcios são carne, não espírito.” Eis um sentimento
digno de ser lembrado: que nada nos é deixado em que podemos com razão
nos gloriar. Por esta razão Paulo adiciona a frase: “na presença de Deus.”
Porque na presença do mundo muitos se deleitam, por breve momento, num
falso esplendor, o qual, contudo, rapidamente se desvanece como a fumaça.
Ao mesmo tempo, por meio desta expressão todo gênero humano guarda
silêncio quando tem acesso à presença de Deus; como diz Habacuque: Que
toda carne esteja em silêncio diante de Deus [Hc 2.20]. Portanto, que tudo
quanto mereça algum louvor, seja considerado como procedente de Deus.
30. Mas vós sois dele em Cristo Jesus. No caso de concluírem que
alguns de seus ditos não se aplicam a eles, Paulo então mostra como tais
ditos têm a ver com eles sim, no sentido em que não têm vida senão em
Deus. Pois a expressão vós sois é enfática, como se quisesse dizer: “Vossa
origem está em Deus, que chama as coisas que não são [Rm 4.17], passando
por alto as coisas que parecem ser. Vossa existência [substentia] está de fato
alicerçada em Cristo, de modo que não deveis ter motivo algum para serdes
soberbos.” E ele está falando não meramente de nossa criação, mas daquela
existência [essentia] espiritual na qual nascemos de novo pela graça de
Deus.
O qual foi feito para nós sabedoria de Deus. Visto que há muitos que,
quando não querem afastar-se deliberadamente de Deus, não obstante
buscam algo fora de Cristo, como se ele só não abrangesse em si todas as
coisas,62 Paulo nos diz, de passagem, quão grandes são os tesouros com
que Cristo está munido; e ao agir assim ele procura descrever, ao mesmo
tempo, nosso modo de existência [modus susbsistendi] em Cristo. Pois
quando Paulo chama Cristo nossa justiça, uma idéia correspondente deve
ser entendida, a saber: que em nós nada mais há do pecado; e o mesmo
ocorre com os demais termos nesta oração. Pois aqui ele atribui a Cristo
quatro títulos que somam toda sua perfeição e todos os benefícios que nos
advêm dele [Cristo].
Primeiro. Paulo afirma que Cristo foi feito nossa sabedoria. Com isso quer
dizer que alcançamos a plenitude da sabedoria em Cristo, porque o Pai se
revelou plenamente nele para nós, de modo que não podemos desejar saber
coisa alguma fora dele. Existe uma expressão semelhante em Colossenses
2.3: “em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão
ocultos.” Diremos algo mais sobre isso no próximo capítulo.
Segundo. Ele afirma que Cristo foi feito nossa justiça. Com isso quer dizer
que em seu Nome fomos aceitos por Deus, porque ele fez expiação por
nossos pecados por meio de sua morte, e sua obediência nos é imputada
para justiça. Porque, visto que a justiça da fé consiste na remissão de
pecados e na livre aceitação, nós obtemos ambas através de Cristo.
Terceiro. Ele o chama nossa santificação. Com isso quer dizer que nós,
que por natureza somos imundos, nascemos de novo pela ação do Espírito,
para a santidade, para que tenhamos condição de servir a Deus. Daqui
deduzimos também que não podemos ser previamente justificados pela
exclusiva instrumentalidade da fé, se concomitantemente não vivermos em
santidade. Porquanto esses dons da graça vão juntos como que atados por
uma vínculo indestrutível, de modo que, se alguém tentar separá-los, em
certo sentido estará fragmentando a Cristo. Conseqüentemente, que aqueles
que almejam ser justificados pela livre bondade de Deus, através de Cristo,
reconheçam que tal coisa não pode absolutamente ser concretizada, a
menos que, ao mesmo tempo, se apegue a ele para a santificação; em outros
termos, ele deve nascer de novo pela instrumentalidade do Espírito, para a
irrepreensibilidade e pureza de vida. Os homens descobrem falhas em nós,
porque, ao pregarmos a graciosa justiça da fé, evidentemente estamos
afastando os homens das boas obras. Mas esta passagem os refuta de forma
clara, mostrando que a fé está jungida à regeneração assim como o perdão
de pecados está em Cristo.
Por outro lado, note-se que, enquanto os dois ofícios de Cristo se acham
unidos, todavia são distintos um do outro. Portanto, não temos a liberdade
de confundir o que Paulo expressamente distingue, o que seria um grave
erro.
Quarto. Ele ensina que Cristo nos foi dado para a redenção. Com isto
quer dizer que somos libertados, por sua graciosa bondade, de toda a
escravidão do pecado e de toda a miséria que flui deste. Assim, a redenção é
o primeiro dom de Cristo que teve início em nós, e o último a ser
consumado ou completado. Pois a salvação começa quando somos
desembaraçados do labirinto do pecado e da morte. Nesse ínterim, contudo,
suspiramos pelo dia da ressurreição final, ansiando pela redenção, como é
expresso em Romanos 8.23. Mas se alguém pergunta como Cristo nos é dado
para a redenção, respondo: “Porque ele se fez um resgate.”
Finalmente, de todas as bênçãos que são aqui enumeradas, devemos
buscar não a metade, ou meramente uma parte, mas a plenitude. Porquanto
Paulo não diz que ele nos foi dado como forma de enchimento, ou para
suprir a justiça, a santidade, a sabedoria e a redenção; senão que ele atribui
exclusivamente a Cristo a plena realização da totalidade. Ora, visto que o
leitor raramente encontrará outra passagem na Escritura que forneça uma
descrição mais clara de todos os ofícios de Cristo, ela pode também
propiciar-nos a melhor compreensão da força e natureza da fé. Portanto,
visto que Cristo é o próprio objeto da fé, todos quantos sabem quais são os
benefícios que Cristo nos confere, ao mesmo tempo aprenderam a entender
o que a fé significa.
31. Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. Note-se o propósito de
Deus em nos dar generosamente tudo em Cristo – para que não aleguemos
qualquer mérito para nós mesmos, mas para que lhe tributemos todo o
louvor. Porque Deus não nos despoja com vistas a deixar-nos nus, mas de
antemão nos veste com sua glória, porém com esta única condição: sempre
que desejarmos gloriar-nos, que então nos desviemos de nós mesmos. Em
suma, o homem reduzido a nada em sua própria estima, sabendo que a
bondade não provém de nenhuma outra fonte senão só de Deus, deve ele
renunciar todo anseio por sua própria glória, e com toda sua energia aspirar
e almejar exclusivamente a glória de Deus. E isso se faz ainda mais evidente
à luz do contexto da passagem do profeta de quem Paulo emprestou este
texto. Pois ali o Senhor, depois de despir a todo gênero humano do direito
de gloriar-se em sua força, sabedoria e riquezas, nos ordena a gloriar-nos
somente no conhecimento dele [Jr 9.23, 24]. Mas ele deseja ser conhecido
[cognosci] por nós de tal maneira que saibamos [sciamus] que ele é quem
exerce a retidão, a justiça e a misericórdia. Pois este conhecimento produz em
nós imediata confiança nele e temor a ele. Portanto, se uma pessoa
realmente tem sua mente tão bem regulada, não reivindicando para si
nenhum mérito, então seu desejo é tão-somente exaltá-lo; se tal pessoa
descansa satisfeita em sua graça; e põe toda sua felicidade em seu amor
paternal; e, por fim, se sente feliz tão-somente em Deus, então tal pessoa
realmente “se gloria no Senhor.” Sinceramente digo isso, pois mesmo os
hipócritas sobre falsas bases se glóriam nele, como declara Paulo [Rm 2.17],
quando, ensoberbecidos com seus dons, ou presumidos em sua ímpia
confiança na carne, ou mercadejam sua Palavra, contudo usam seu Nome
como proteção sobre si.

1. “Le leur et le nostre”, ou “le Seigneur (di-ie) et de eux et de nous.” – “Tanto deles, quanto
nosso”, ou, “o Senhor (digo) tanto deles, quanto nosso.”
2. “Constitué, ordonné, et establi.” – “Designado, ordenado e estabelecido.”
3. “Et aujour d’huy, qu’est ce qu’entonnent à plene bouche les Romanisques, sinon ces grous
mots, Ordination de Dieu, La saint et sacrée sucession depuis le temps mesme des Apostres.” –
“E, em nossos dias, o que os romanistas gritam com bocas escancaradas senão aqueles
grandes temas: Ordenação de Deus – A santa e sacra sucessão dos apóstolos até nossos dias?”
4. Αποστολος (um apóstolo), derivado de αποστελλειν (enviar), significa literalmente mensageiro. O
termo é empregado pelos escritores clássicos para denotar o comandante de uma expedição, ou
um delegado ou embaixador. (Veja-se Heródoto, v.38.) No Novo Testamento, ele é em vários casos
empregado em um sentido geral para denotar um mensageiro. [Veja Lc 11.49; Jo 13.16; Fp 5.38.]
Em um caso é aplicado a Cristo mesmo (Hb 3.1). Mais freqüentemente, contudo, é aplicado aos
mensageiros extraordinários que eram (para usar as palavras de Leigh em seu Critica Sacra) “os
legados (a latere)” de Cristo, de sua parte.”
5. “Mais (dira quelqu’un).” – “Mas (alguém diria).”
6. “Tu te pourras bien entretenir en l’Eglise tellement quellement, estant meslé parmi les
autres.” – “Podeis muito bem ter uma permanência na Igreja, de algum modo, estando
entremeados entre outros.”
7. Sinédoque, figura de linguagem por meio da qual a parte é tomada pelo todo.
8. “Nids et cachettes.” – “Ninhos e esconderijos.”
9. Parole’, ou ‘éloquence’. – ‘Enunciação’ ou ‘eloqüência’.
10. O mesmo ponto de vista do desígnio de Paulo aqui é apresentado por Teodoreto: “Visto que
ele está para censurá-los, suaviza de antemão o órgão de audição para que o remédio a ser
aplicado seja recebido o mais favoravelmente possível.”
11. “Que chacun ha en son endroit.” – “Que cada um tem severamente.”
12. Figura de linguagem por meio da qual um termo é expresso por outro – a causa pelo efeito, o
efeito pela causa etc.
13. Calvino provavelmente se refere às seguintes passagens (entre outras): 1 Tessalonicenses
5.24; 2 Tessalonicenses 3.3; Hebreus 10.23.
14. “La vocation donc qu’il fait d’un chacun des siens, n’est point un jeu, et en les appellant il ne
se mocque point, ainsi il entretiendra et pour suyura son œuvre perpetuellement.” – “A vocação,
portanto, que ele faz de cada um dos seus não é mera diversão; e ao chamá-los ele não está a
brincar, mas incessantemente manterá e dará curso a sua obra.”
15. Calvino, depois de falar de ser Cristo apresentado por Paulo como “a nós oferecido no
evangelho com toda abundância de bênçãos celestiais, com todos seus méritos, toda sua
justiça, sabedoria e graça, sem exceção”, observa: “E o que está implícito pela comunhão
(κοινωνια) de Cristo o qual, segundo o mesmo apóstolo [1Co 1.9], nos é oferecido no evangelho –
todos os crentes sabem.”
16. “La mort et perdition.” – “Morte e perdição.”
17. “Et en une mesme volonte”, ou “et mesme avis”. – “E na mesma disposição”, ou “e no mesmo
critério.”
18. “Et ie di ceci”, ou “Or ce que ie di c’est qu’un chacun.” – “E isto eu digo”, ou “Ora, o que digo é
isto: que cada um.”
19. “Et assemblés l’une à l’autre.” – “E associadas umas às outras.”
20. O verbo καταρτιζω propriamente significa: reparar, readaptar ou restaurar a sua condição
original o que fora desordenado ou quebrado; e nesse sentido se aplica à reparação de redes,
navios, muros etc. [veja-se Mt 4.21; Mc 1.19]. Podemos com plena propriedade entender o
apóstolo fazendo aqui alusão à reparação de um navio que fora quebrado ou danificado, e como
a informar que uma igreja, quando dispersa por divisões, não é, por assim dizer, um mar
confiável, e deve ser cuidadosamente reparada, antes que possa estar preparada para os
propósitos de comércio, comunicando às nações da terra as “genuínas riquezas”. Entretanto, a
alusão, mais provavelmente, é como se Calvino estivesse pensando nos membros do corpo
humano, os quais são tão admiravelmente ajustados uns aos outros. Merece nota o fato de que
Paulo faz uso de um derivativo do mesmo verbo (κατάρτισις) em 2 Coríntios 13.9, sobre o qual
Beza observa “que a intenção do apóstolo é que, enquanto os membros da Igreja estavam
todos, por assim dizer, deslocados e desconjuntados, agora uma vez mais seriam enfeixados em
amor, e tudo fariam para fazer perfeito o que estava defeituoso entre eles, quer na fé, quer na
conduta.”
21. “La sancte union qui doit estre les Chrestiens.” – “Aquela santa unidade que deve haver entre
os cristãos.”
22. “Bien plus dangereuses.” – “Muito mais perigosas.”
23. Beza observa que o verbo aqui empregado, δηλοω (declarar) contém uma significação mais
forte do que σημαινω (insinuar), assim como há uma diferença de sentido entre as palavras latinas
declarare (declarar) e significare (insinuar), exemplo esse que é fornecido em uma carta de Cícero a
Lucrécio: “tibi non significandum solum, sed etiam declarandum arbitror, nihil mihi esse potuisse
tuis literis gratius.” – “Creio que não se deve simplesmente insinuar-lhe, mas declarar que nada
poderia ser-me mais agradável do que suas cartas.” A palavra enfática, εδηλωθη (foi declarado),
parece ter sido usada pelo apóstolo para comunicar mais plenamente à mente dos coríntios
que ele não lhes transmitira uma mera notícia.
24. Alguns chegaram à conclusão que por τω̑ν Χλόης (os de Cloe) o apóstolo quer dizer pessoas
que estavam em florescente condição na religião; de χλόη, erva verde (Heródoto, iv.34, Eurípedes,
Hipp. 1124). Certo escritor supõe Paulo querendo dizer seniores (anciãos), derivando a palavra
χλόη de jlb, idoso. Entretanto, tais conjeturas são claramente mais engenhosas que sólidas. É
verdade que o nome Χλόη (Cloe) era freqüente entre os gregos como um nome feminino. É mais
natural entender por τω̑ν Χλόης, os de Cloe, como equivalente a των Χλοης σικειων – os da casa de
Cloe.
25. “Et n’y a en chose quelconque debats si grans ni tant à craindre que sont ceux-là.” – “E em
nenhum departamento há disputas tão fortes, ou tão terríveis como aquelas.”
26. “Autrement veu que ces trois estoyent d’un sainct accord ensemble en leur ministere, il n’est
point vray-semblable, qu’il y eust aucunes partialitéz entre les Corinthiens pour se glorifier en
l’un plustost qu’en l’autre.” – “De outra forma, visto que aqueles três estavam unidos em seu
ministério por um laço sacro, não é provável que houvesse alguns partidos entre os coríntios
que estivessem preparados a gloriar-se neles mais que em outros.”
27. “Mieux avisez que les autres.” – “Melhor avisados do que outros.”
28. “Combien c’est vne chose insupportable.” – “Quão insuportável coisa é.”
29. “Addicere nos hominibus in servitutem” – “de nous assuiettir aux hommes en seruitude.” –
“Entregar-nos a homens, ao ponto de nos tornarmos seus escravos.” Calvino mui provavelmente
tinha em mente o celebrado sentimento de Horácio (Epist. i.1.14): “Nullius addictus jurare in verba
magistri.” – “Obrigado a jurar fidelidade a nenhum senhor”, enquanto impõe o sentimento por
uma poderosa consideração, à qual o poeta pagão era totalmente estranho.
30. “Du sang de Christ, et des martyrs tous ensemble.’ – “Do sangue de Cristo e de todos os
mártires juntos.”
31. Leo, ad Palæstinos, Ep. 81. A passagem supramencionada é citada livremente nas Institutas.
“Ainda que a morte de muitos santos fosse preciosa aos olhos do Senhor [Sl 116.15], contudo
nenhum inocente assassinado era a propiciação do mundo. Os justos recebiam coroas, porém
não as davam; e a fortaleza dos crentes produzia exemplos de paciência, não dons de justiça. Pois
suas mortes eram para si mesmos; e nenhum deles, ao morrer, pagava a dívida de outro, com a
exceção de Cristo nosso Senhor, em quem unicamente todos somos crucificados, todos mortos,
sepultados e ressurretos.” Leo, de cujos escritos foi extraída esta admirável passagem, foi um
bispo romano que viveu no quinto século, e foi um dos mais eminentes homens de sua época.
Ele foi o mais zeloso defensor das doutrinas da graça, em oposição ao pelagianismo e outras
heresias.
32. “Obligez par serment.” – “Atados por juramento.”
33. “Syngrapha (o termo empregado por Calvino) era um contrato ou vínculo, formalmente
endossado entre duas partes, assinado e selado por ambas, e uma cópia dada a cada uma.”
Cic. Verr. i.36. Dio. xlviii.37. Deriva-se de um termo grego, συγγραφὴ (um instrumento ou obrigação
legal). Heródoto, i.48; e Demóstenes, cclxviii.13.
34. Ironie, c’est à dire, mocquerie.” – “Ironia, isto é, zombaria.”
35. “Seulement en les arrousant d’euau: c’est à dire, baptizant.” – “Simplesmente por aspergi-los
com água, ou, seja, batizando-os.”
36. “Toute la charge et la pesanteur du fardeau.” – “Toda a carga e peso do fardo.”
37. “Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou declamador.”
38. “Ces vaillans docteurs.” – “Aqueles mestres valentes.”
39. Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou declamador.”
40. O termo λογοδαιδαλία propriamente denota linguagem engenhosamente inventada. É
composto de λογος (fala) e Δαιδαλος (Dædalus), um artista engenhoso de Atenas, celebrado por
sua habilidade em estatuário e arquitetura. Daí tudo quanto era habilidosamente inventado
passou a chamar dedaliano.
41. “Eloquence et rhetorique.” – “Eloqüência e retórica.”
42. “Vne bonne erudition, et sçauoir solide.” – “Bom aprendizado e sólida sabedoria.”
43. “Les Corinthiens auoyent les oreilles chatouilleuses, et estoyent transportez d’vn fol appetit
d’auoir des gens qui eussent vn beau parler.” – “Os coríntios tinham coceira nos ouvidos [2Tm 4.3],
e se deixavam levar por tola ansiedade de ver pessoas que tinham bom gosto em vestir-se.”
44. “Les humbles.” – “Os humildes.”
45. “Ni à offusquer de sa pompe la croix de Christ, comme qui mettroit vne nuée au deuant.” –
“Nem turvar a cruz de Cristo com sua fútil exibição, como se fosse atrair uma nuvem sobre ela.”
46. “Brief, à seruir comme de trompette.” – “Em suma, para servir de trombeta.”
47. “Combien que j’aye vne raixon encore plus valable, qui m’a induit à changer ceste
translation.” – “Ao mesmo tempo, tenho uma razão ainda mais forte que me tem induzido a
alterar esta tradução.”
48. “As palavras de Paulo em 1 Coríntios 1.20 não constituem, como alguns imaginavam, uma
citação das palavras deste versículo” [Is 33.18]. “Os únicos pontos de concordância entre elas
são meramente a ocorrência de γραμματεὺς, e a repetição da interrogativa που̑. Não é impossível,
contudo, que a estrutura de uma passagem esteja sugerida na outra.” – Henderson sobre Isaías.
49. A frase hebraica mencionada ocorre em 2 Reis 12.10, ^lmh rps, o escriba do rei. É traduzida
pela Septuaginta ὁ γραμματεύς του̑ βασιλέως. O termo grego correspondente, γραμματεύς, é
empregado pelos escritores clássicos para denotar um clérigo ou secretário (Demosth. 269.19).
Os notários (γραμματεις) “tinham a custódia da lei e dos registros públicos que tinham por dever
escrever e repetir para o povo e senado quando assim requerido.” – Potter’s Grecian Antiquities, Vol.
I, p. 103.
50. Calvino aqui evidentemente tem diante dos olhos o significado original de συζητητης, que se
deriva de συν e ζητεω (inquirir juntos) e chegou naturalmente a significar alguém que se entrega a
argumentos ou disputas. O termo era aplicado aos sofistas sutis, ou os que disputavam nas
academias gregas.
51. “La prudence civile, c’est à dire la science des lois.” – “Prudência civil, isto é, a ciência das
leis.”
52. Veja-se Institutas, vol. i, pp. 323, 324.
53. “Et outrecuidance.” – “E presunção.”
54. “Extreuagantes.” – “Extravagantes.”
55. Não pode haver dúvida de que Calvino se refere aqui a uma expressão usada por Paulo em
seu discurso aos atenienses [At 17.27]: “se porventura, tateando, o pudessem achar.” A alusão é
a um cego que anda tateando em seu caminho. A mesma palavra é empregada por Platão:
“Neste aspecto, muitos me parecem estar tateando como se estivessem no escuro.”
56. “Pour oster et faire esvanoir ceste vaine apparence, et masque de sagesse.” – “Para remover
e fazer desaparecer aquela fútil exibição e máscara de sabedoria.”
57. Veja-se página XXX.
58. “Que vous n’estes point beaucoup.” – “Que não sois muitos.”
59. “Or c’est de luy que vous estes.” – “Agora é dele que sois.”
60. “Redemption, ou rançon.” – “Redenção ou resgate.”
61. “Dieu ne permet de presumer d’eux mesmes.” – “Deus não lhes permite confiança em si
mesmos.”
62. “A faire hommage à Christ.” – “A fazer homenagem a Cristo.”
63. “Toute plenitude.” – “Toda plenitude.” [Cl 1.9]
Capítulo 2

1. E eu, irmãos, quando fui ter convosco, proclamando-vos o mistério de Deus, não fui
com excelência de linguagem, ou de sabedoria.
2. Porque determinei nada saber entre vós, a não ser Jesus Cristo, e este crucificado.

1. Et ego, quum venissem ad vos, fratres, veni non in excellentia sermonis vel sapientiæ,
annuntians vobis testimonium Dei.
2. Non enim eximium duxi, (vel, duxi pro scienti,) scire quicquam inter vos,1 nisi Iesum
Christum, et hunc crucifixum.

1. E eu, quando fui ter convosco. Tendo iniciado a falar de seu próprio
método de ensino, Paulo continuou quase imediatamente a tratar do caráter
geral da pregação evangélica. Agora ele volve outra vez para sua própria
pessoa com o fim de mostrar que tudo quanto é desprezado nele pertence à
natureza do próprio evangelho, e em certo sentido é inseparável dele.
Portanto, ele admite que não usufruiu do auxílio da eloqüência ou sabedoria
humana, de cuja provisão poderia capacitar-se para realizar algo. Prossegue,
porém, acrescentando que, a partir do próprio fato de admitir sua carência
de tais recursos, o poder de Deus, que não carece de tais auxílios, se faz
plenamente evidente em seu ministério. Ele introduz esta verdade um pouco
depois. Mas, nesse ínterim, tendo admitido que era carente de sabedoria
humana, não obstante sustenta que proclamava o “testemunho de Deus”
[testemonium Dei]. Ainda que alguns intérpretes expliquem o “testemunho
de Deus” num sentido passivo, contudo não tenho dúvidas de que o oposto
é precisamente o que o apóstolo tem em mente: que o “testemunho de Deus”
é aquele que tem sua origem em Deus, a saber, o ensino do evangelho, do
qual Deus é o Autor e Testemunha. Paulo, pois, faz distinção entre
linguagem e sabedoria (λύγον ἀπὸ τη̑ς σοφίας). Isso confirma o que mencionei
anteriormente,2 ou, seja, que até então ele esteve falando não sobre mera e
fútil tagarelice, mas sobre toda a cultura das ciências humanas.
2. Porque determinei nada saber entre vós etc. Visto que o grego,
κρίνειν, às vezes significa εκλεγειν, ou, seja, selecionar algo como valioso,3
penso que ninguém em são juízo negará que minha tradução é mais
plausível, visto ser consistente com a construção [do grego]. Todavia, se o
traduzirmos “não estimei nenhum tipo de conhecimento”, não haveria
qualquer discordância nisso. Mas se o leitor completa algo que está
faltando, a oração ficará plenamente bem, como esta: “Nada valorizei em
mim mesmo como importante para eu conhecer, ou como base de
conhecimento.” Ao mesmo tempo, de forma alguma rejeito uma
interpretação diversa, ou, seja, considerando Paulo como que afirmando
que nada estimou como conhecimento, ou como merecedor de ser chamado
conhecimento, a não ser exclusivamente Cristo. Se este é o caso, a
preposição grega, αντι, teria de ser suprimida, como às vezes sucede. Mas, se
a primeira interpretação não for reprovada, ou se a segunda for a mais
satisfatória, equivale ao seguinte: “Quanto à ausência de ornamentos em
minha linguagem, e também a ausência de mais elegância em meus
discursos, a razão se deveu ao fato de não haver corrido após tais coisas;
aliás, desdenhei delas, porquanto uma só coisa ocupava meu coração – que
eu pudesse proclamar Cristo com simplicidade.”
Ao adicionar o termo, crucificado, Paulo não pretendia dizer que ele nada
proclamava com respeito a Cristo senão a cruz, mas que todo o vilipêndio
da cruz não o impedia de proclamar a Cristo. É como se quisesse dizer: “A
ignomínia da cruz não me impedirá de contemplar Aquele4 de quem provém
a salvação, ou me leve a envergonhar-me de ter toda minha sabedoria
compreendida nele – Aquele a quem os soberbos tratam com desdém e
rejeitam em razão da ignomínia de cruz.” Portanto, o que ele diz deve ser
explicado da seguinte maneira: “Nenhum tipo de conhecimento, a meu ver,
foi tão importante para mim que me fizesse desejar algo mais além de Cristo,
ainda que continuasse crucificado.” Esta pequena frase é adicionada à gusa de
adição (αὔξησιν), com o fim de causar ainda mais irritação àqueles mestres
arrogantes, para quem Cristo era alvo de desprezo, pois seu maior desejo
era ser aplaudidos pela reputação de possuírem alguma sorte de sabedoria
superior. Este é um versículo muitíssimo belo, e dele podemos aprender o
que um ministro fiel deve ensinar, e o que devemos cultivar ao longo de
toda nossa vida; e comparado a isso tudo o mais deve ser considerado a
esterco [Fp 3.8].

3. E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em muito tremor.


4. E minha linguagem e minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de
sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder;
5. para que vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.

3. Et ego in infirmitate,5 et in timore, et in tremore multo fui apud vos:


4. Et sermo meus, et prædicatio mea, non in persuasoriis humanæ sapientiæ
sermonibus, sed in demonstratione Spiritus et potentiæ:
5. Ut fides vestra non sit in sapientia hominum, sed in potentia Dei.

3. E eu estive convosco em fraqueza. Paulo apresenta uma explanação


completa do que simplesmente tocara de leve antes, ou, seja, que não houve
nada de esplêndido nem de eminente nele aos olhos humanos, para que
fosse visto como uma figura notável. Entretanto, ele concede a seus
adversários o que estavam buscando, e essa era uma forma de fazer as
mesmas coisas, as quais, na opinião deles, visavam a diminuir o crédito de
seu ministério, redundando isso em seu mais elevado enaltecimento. Se ele
aparentava ser alguém digno de menos honra, só porque, segundo a carne,
ele era por demais insignificante e humilde, não obstante ele mostra que o
poder de Deus era o que existia de mais evidente em sua habilidade para
tanta realização, embora não contasse ele com o apoio de quaisquer auxílios
humanos. Mas ele não está pensando somente nos jactanciosos que, a fim
de adquirir fama para si, se ocupavam meramente de sua própria reputação,
mas também dos coríntios que olhavam com espanto para suas fúteis
exibições. Portanto, esse lembrete deve ter causado um forte efeito neles.
Sabiam que Paulo não possuía qualidades humanas que o ajudassem a fazer
progresso, ou que pudesse capacitá-lo a granjear o favor dos homens. Não
obstante, tinham presenciado o maravilhoso sucesso que o Senhor
outorgara à pregação de Paulo. Além disso, realmente tinham visto com seus
próprios olhos, diria alguém, o Espírito de Deus presente em sua doutrina.
Quando, pois, desprezando a simplicidade de Paulo, ambicionavam
febrilmente algum tipo de sabedoria que fosse mais portentosa e mais
polida, e visto que se deixaram cativar por aparências externas, e, ainda
mais, movidos por uma presumida dissimulação, antes que pela viva
eficácia do Espírito, não põem a descoberto, suficientemente, seu espírito
ambicioso? Paulo, pois, está plenamente certo em trazer à lembrança deles
seu primeiro ingresso entre eles [1Ts 2.1], a fim de não se desviarem daquela
eficácia divina que uma vez experimentaram pessoalmente.
Ele emprega o termo fraqueza aqui e em vários casos subseqüentes [2Co
11.30; 12.5, 9, 10] para incluir tudo que pudesse prejudicar o favor e a
dignidade pessoais na opinião de terceiros. Temor e tremor são decorrência
dessa fraqueza. Contudo, existem duas maneiras pelas quais estes dois
termos podem ser-nos explicados. Uma delas consiste nisto: ou podemos
entendê-lo dizendo que, quando ponderava na magnitude do ofício que
sustentava, se perturbava e enfrentava profunda ansiedade ao envolver-se
no desencargo dele. A outra explicação é a seguinte: vendo-se cercado por
muitos perigos, ele era dominado por perene expectativa e constante
ansiedade. Ambas se ajustam perfeitamente bem ao contexto, porém, em
minha opinião, a segunda é a mais simples. Naturalmente que modéstia
como esta é própria dos servos do Senhor, de modo que, cônscios de sua
própria fraqueza e, em contrapartida, encarando respectivamente as
dificuldades e a excelência de tão árduo ofício, devem aproximar-se dele com
reverência e temor. Pois os que se apresentam imbuídos de confiança, e com
ares de superioridade, ou que exercem o ministério da Palavra de forma
displicente, como se fossem bem talhados para tal tarefa, não conhecem
nem a si mesmos nem a própria tarefa.6
Entretanto, como Paulo aqui conecta temor a fraqueza, e como o termo
fraqueza significa tudo quanto contribuía para sua depreciação, segue-se
que, necessariamente, esse temor deve relacionar-se com perigos e
dificuldades. Todavia, é plenamente comprovado que esse temor era de tal
natureza que não impedia Paulo de envolver-se na obra do Senhor, como os
fatos o testificam. Nem são os servos do Senhor tão estúpidos que não
percebam estar ameaçados de perigos, nem tão destituídos de sentimento
que não se deixem comover. Ainda mais: é necessário que vivam gravemente
apreensivos por duas importantes razões: primeiro, que eles, combalidos a
seus próprios olhos, aprendam a depender e a descansar exclusiva e
plenamente em Deus; e, segundo, que sejam exercitados na genuína renúncia.
Paulo, pois, não era isento das influências do temor, mas que o controlava
de tal modo que ele, apesar de tudo, continuava a ser destemido em meio
aos perigos, de modo que, com incansável perseverança e resistência, ele se
furtava de todos os assaltos de Satanás e do mundo; e, em suma, dessa
forma ele seguia por todos os meandros de obstáculos.
4. E minha pregação não consistiu de palavras persuasivas. Ao dizer
“de palavras persuasivas de sabedoria humana”, sua referência é à oratória
seleta que se empenha e lança mão de artifícios, sem se preocupar com a
verdade; e ao mesmo tempo ele aponta também para a aparência de
refinamento, o que fascina as mentes dos homens. Ele está certo ao atribuir
a persuasão (το πιθανον)7 à sabedoria humana. Porque, por sua própria
majestade, a Palavra do Senhor nos concita, de forma mui veemente, a
prestarmos-lhe obediência. Em contrapartida, a sabedoria humana tem seu
encanto com que se insinua8 e se apresenta em seus ornamentos
pomposos, por assim dizer, por meio dos quais atrai para si as mentes de
seus ouvintes. Contra isso Paulo estabelece a “demonstração do Espírito e
de poder”, o que a maioria dos intérpretes limita aos milagres. Quanto a
mim, o entendo num sentido mais amplo, ou, seja, como sendo a mão de
Deus estendendo-se para agir poderosamente e de todas as maneiras através
dos apóstolos. Tudo indica que Paulo pôs “Espírito e poder” à guisa de
hipálage (καθ̕ υ̒παλλαυὴν),9 equivalente a poder espiritual; ou, seguramente, a
fim de realçar, por meio de sinais e efeitos, como a presença do Espírito era
evidente em seu ministério. É seu o uso apropriado do termo αποδείξεως
(demonstração). Pois nosso embotamento, quando olhamos mais de perto
as obras de Deus, é tal que, ao fazer uso de instrumentos inferiores, seu
poder se oculta como se fosse por meio de muitos véus [Is 52.10], de tal
maneira que seu poder já não nos é claramente perceptível.
5. Para que vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens. Apoiar
é usado aqui no sentido de consistir! Portanto, Paulo, pois, quer dizer que os
coríntios tinham sido beneficiados por haver ele pregado Cristo entre eles
sem apoiar na sabedoria humana, mas unicamente no poder do Espírito,
para que a deles não se fundamentasse no ser humano, e, sim, somente em
Deus. Se a pregação do apóstolo tivesse como apoio somente o vigor da
eloqüência, ele poderia ter sido dilapidado por uma oratória superior. Além
disso, ninguém terá por genuína a verdade que se apóia na excelência da
oratória. Naturalmente que a oratória pode servir de auxílio para corroborar
a verdade, mas esta não pode depender daquela. Em contrapartida, a
verdade teria sido muito mais poderosa se se firmasse em si sem qualquer
auxílio estranho. Por essa razão, a verdade é a mais notável recomendação
da pregação de Paulo, e o poder celestial brilhou nela com tal intensidade,
que logrou remover tantos obstáculos, sem qualquer assistência do mundo.
Segue-se, pois, que os coríntios não deviam permitir-se abandonar o ensino
de Paulo, quando sabiam muito bem que ele contava com o apoio da
autoridade divina. Além disso, Paulo aqui está falando da fé dos coríntios,
de uma maneira tal que esta frase granjeou aplicação universal. Portanto,
saibamos que a característica da fé consiste em repousar ela somente em
Deus, e a não depender de homem algum. Pois sua segurança deve ser tão
sólida a ponto de não desmoronar ainda que fosse assaltada por todos os
inventos do inferno, mas que resiste confiadamente a todos os ataques. Isso
não pode ser feito a menos que sejamos firmemente convictos de que Deus
nos tem falado, e que aquilo em que cremos não é de invenção humana. Mas
ainda que a fé deva estar adequadamente fundamentada só na Palavra de
Deus, não há nenhuma inconveniência em adicionar este segundo apoio, a
saber: que os crentes saibam, pelos efeitos de sua influência, que a Palavra
[de Deus] que eles têm ouvido tem sua origem em Deus.

6. Seja como for, falamos sabedoria entre os que são perfeitos; não, porém, a sabedoria
deste mundo, nem a dos príncipes deste mundo, que se reduzem a nada;
7. mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, sabedoria essa que esteve oculta, a
qual Deus ordenou antes dos mundos para nossa glória;
8. a qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a tivessem
conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória;
9. mas, como está escrito: Nenhum olho viu, nem ouvido ouviu, nem penetrou em
coração humano, as coisas que Deus preparou para aqueles que o amam.

6. Porro sapientiam loquimur inter perfectos: sapientiam quidem non sæculi hujus,
neque principum sæculi hujus, qui abolentur.
7. Sed loquimur sapientiam Dei in mysterio, quæ est recondita: quam præfinivit Deus
ante sæcula in gloriam nostram,
8. Quam nemo principum sæculi hujus cognovit: si enim cognovissent, nequaquam
Dominum gloriæ crucifixissent.
9. Sed quemadmodum Scriptum est (Ies. lxiv. 4.) “Quæ oculus non vidit, nec auris audivit,
nec in cor hominis ascenderunt, quæ præparavit Deus iis, qui ipsum diligunt.”

6. Falamos sabedoria. Para que ele não fosse visto como alguém que
desdenha da sabedoria, assemelhando-se a pessoas incultas e ignorantes
que menosprezam o saber com a ferocidade dos bárbaros, ele acrescenta
que não era destituído daquela genuína sabedoria que era digna do nome,
mas que só era apreciada por aqueles que são competentes para julgar. Pela
expressão os que são perfeitos ele quer dizer não aqueles que se apossam de
uma sabedoria plena e completa, mas aqueles que possuem um juízo sólido
e imparcial. Pois o termo hebraico !t, que é sempre traduzido na Septuaginta
por τελειος, significa completo.10 Entretanto, de passagem ele censura os que
não nutriam qualquer inclinação para sua pregação, e lhes dá a entender que
a culpa era deles. É como se quisesse dizer: “Se minha doutrina desagrada a
alguns dentre vós, tais pessoas provam suficientemente que seu
entendimento é depravado e viciado, visto que ela [a doutrina] é
invariavelmente reconhecida como a mais excelente sabedoria entre os que
possuem intelecto saudável e bom senso.” Em contrapartida, ainda que o
ensino de Paulo fosse apresentado a todos, nem sempre era estimado por
seu real valor, e esta é a razão por que ele apela para juízes idôneos e
imparciais,11 para que pudessem declarar que a doutrina, a qual o mundo
reputava como sendo insípida, era a expressão da genuína sabedoria.
Entrementes, pelo termo falamos ele notifica que punha diante deles um
elegante exemplo de admirável sabedoria, a fim de que ninguém
questionasse que ele se vangloriava de algo desconhecido.
Não a sabedoria deste mundo. Uma vez mais ele reitera, à guisa de
antecipação, o que já havia admitido – que o evangelho não era sabedoria
humana, para que ninguém objetasse, dizendo que havia poucos que
apoiavam tal doutrina. Mais ainda, que ela era desdenhada por todos
quantos eram intelectualmente eminentes. Daí ele reconhecer
espontaneamente o que poderia ser apresentado à guisa de objeção, mas de
tal sorte que de forma alguma se dava por vencido.
Os príncipes deste mundo. Pela expressão, príncipes deste mundo, Paulo
tinha em mente aqueles que são eminentes no mundo por causa de algum
dote. Pois alguns há que nem sempre possuem acuidade intelectual, todavia
são tidos em admiração em razão da dignidade de sua posição pessoal.
Entretanto, para que não nos alarmemos diante de suas aparências externas
[larvis], o apóstolo acrescenta que eles serão reduzidos a nada ou perecerão.
Pois não é justo que algo de importância eterna dependa da autoridade
daqueles que estão de passagem e perecendo, incapazes de oferecer
perpetuidade até mesmo a si próprios. É como se quisesse dizer: “Quando o
reino de Deus se manifesta, que a sabedoria deste mundo se retraia, e o que
é transitório ceda lugar ao que é eterno. Pois os príncipes deste mundo têm
sua distinção, porém é de uma natureza tal que se extingue num instante.
Que é isso em comparação com o reino de Deus, que é celestial e
incorruptível?
7. A sabedoria de Deus em mistério. Ele assinala a razão por que a
doutrina do evangelho não é tida em alta estima pelos príncipes deste
mundo: é que ela está envolta em mistério e, conseqüentemente, oculta. Pois
o evangelho transcende muitíssimo à perspicácia do intelecto humano, de
tal forma que aqueles que são reputados como sendo de intelecto superior
podem erguer sua vista ao máximo que jamais poderão chegar a tal altitude.
Entretanto, menosprezam sua insignificância como se ele estivesse lançado
a seus pés. Em decorrência disso, quanto mais arrogantemente o desprezam,
mais terão eles de conhecê-lo; além do mais, eles se acham numa posição
tão eqüidistante dele, que são impedidos inclusive de vê-lo.
A qual Deus ordenou antes dos mundos para nossa glória. Havendo
Paulo afirmado que o evangelho era algo oculto, havia o risco de os crentes,
ouvindo isso e sentindo-se enfraquecidos em meio às dificuldades, fugirem
dele e viessem a sucumbir pelo desespero. Por isso, ele encara este perigo e
declara que, não obstante, o evangelho foi designado para nós, para nosso
deleite nele. Para que ninguém, digo, concluísse que não tinha nada a ver
com uma sabedoria oculta, ou imaginasse ser ilícito dirigir seus olhos para
ele, visto que o mesmo não se achava dentro dos parâmetros da
compreensão humana, Paulo ensina que ele nos foi comunicado pelo eterno
conselho de Deus. Ao mesmo tempo, ele tinha algo maior em mente, pois,
por meio de uma comparação tácita, ele expõe à luz ainda mais meridiana a
graça que foi posta diante de nós por intermédio da vinda de Cristo, a qual
nos pôs numa posição mais excelente do que a de nossos pais que viveram
sob o regime da lei. Eu disse mais sobre isso no final do último capítulo de
Romanos. Antes de tudo, pois, ele parte do fato de que Deus ordenou. Pois
se Deus nada designou sem um propósito, segue-se que nada perderemos
em ouvir o evangelho, o qual ele destinou a nós, pois quando nos fala, ele se
acomoda a nossa capacidade. O que Isaías diz se relaciona a este fato
[45.19]: “Não falei em segredo, em algum canto escuro12 da terra; não disse à
descendência de Jacó: Buscai-me em vão!” Em segundo lugar, a fim de tornar
o evangelho atrativo, e a fim de despertar em nós o desejo de conhecê-lo, ele
extrai ainda outro argumento do desígnio que Deus tinha em vista conceder-
nos: para nossa glória. Nesta expressão ele também parece extrair uma
comparação entre nós e os pais, a quem nosso Pai celestial não considerou
dignos de tal honra, a qual ele reservou para a vinda de seu Filho.13
8. A qual nenhum dos soberanos deste mundo conheceu. Se o leitor
acrescentar: “por seu próprio discernimento”, a afirmação não seria mais
aplicada a eles do que aos homens em geral, e às próprias pessoas mais
humildes; pois qual de todos nós, do mais ao menos importante, alcança
tais obtenções? Naturalmente podemos, talvez, dizer que os soberanos
devem ser censurados por cegueira e ignorância, mais do que outros, pela
seguinte razão: que quando falam parecem ser perspicazes e sábios.
Contudo prefiro entender a expressão de forma mais simples, seguindo o
uso freqüente da Escritura que costuma falar em termos da universalidade
daquelas coisas que acontecem επι το πολυ, isto é, [acontecem] comumente,
e também para usar uma afirmação negativa em termos de universalidade
quanto àquelas coisas que só acontecem ἐπι ἔλαττον, isto é, [acontecem]
mui raramente. Neste sentido, nada houve de inconsistente nessa afirmação,
ainda que houvesse achado poucos homens de distinção e elevados acima
dos demais em dignidade, os quais era, ao mesmo tempo, dotados com o
puro conhecimento de Deus.
Porque, se tivessem conhecido. A sabedoria de Deus resplandeceu
visivelmente em Cristo, e no entanto os príncipes não a perceberam ali. Na
crucificação de Cristo, a direção foi assumida, por um lado, pelos líderes
dos judeus, cuja reputação em justiça e sabedoria era excelente; e, por
outro, por Pilatos e pelo império romano. Este é um claro exemplo da
extrema cegueira de todos os que só são sábios segundo os padrões
humanos. Entretanto, este argumento do apóstolo pode parecer frágil. “Ora,
não vemos todos os dias pessoas que não estão familiarizadas com a
verdade de Deus, contudo se lhe opõem com deliberada malícia? Mesmo
quando essa rebelião franca não fosse percebida por nossos olhos, que
outro é o pecado contra o Espírito Santo senão a espontânea obstinação
contra Deus, quando uma pessoa, consciente e voluntariamente, não só age
contra sua Palavra, mas também levanta os braços contra ele? Eis a razão
por que Cristo testifica que os fariseus e seus associados o conheciam [cf.
Jo 7.28], quando ele os despoja do pretexto de ignorância, e os acusa de
cruel impiedade em persegui-lo, o fiel Servo do Pai, sobre nenhuma outra
base a não ser seu ódio contra a verdade.”
Minha resposta é que existe dois gêneros de ignorância. Um deles tem
por origem o zelo irrefletido, não rejeitando expressamente o bem, mas, ao
contrário, pensa que ele é mau. Embora ninguém peque por ignorância ao
ponto de não ser acusado de má consciência aos olhos de Deus, há sempre
uma mistura, ou de hipocrisia, ou de orgulho, ou de escárnio; contudo, às
vezes o juízo e todo o entendimento são tão reprimidos na mente de uma
pessoa que nada é evidente a não ser a clara ignorância, não só aos olhos
dos outros, mas também a seus próprios olhos. Paulo era assim antes de ser
iluminado. O motivo de seu ódio a Cristo, e sua hostilidade a sua doutrina,
era que, por ignorância, ele se viu devorado por um perverso zelo pela lei.14
Naturalmente que ele não era isento de hipocrisia, nem inocente de orgulho,
de modo que fosse justificado aos olhos de Deus, mas aqueles vícios
estavam tão completamente sepultados pela ignorância e cegueira, que ele
nem mesmo os notava nem os sentia.
O outro gênero de ignorância é mais danoso e perigoso do que uma mera
ignorância. Pois aqueles que voluntariamente se levantam contra Deus são,
por assim dizer, frenéticos, porquanto vêem e ao mesmo tempo não vêem
[Mt 13.13]. Na verdade, a conclusão geral deve ser que a infidelidade é
sempre cega. Mas o que importa é o seguinte: às vezes a cegueira subscreve
a malícia, de modo que uma pessoa não tenha qualquer consciência de seu
próprio mal, como se ela fosse completamente insensível. Esta é a posição
daqueles que se enganam com uma boa intenção, como a chamam, o que é
de fato fútil fantasia. Em alguns casos a malícia tem uma tal ascendência
que, a despeito das restrições da consciência, uma pessoa se arroja em
direção à impiedade desse tipo assemelhando-se a demência.15 Portanto,
não surpreende que Paulo declare que os príncipes deste mundo não teriam
crucificado a Cristo, se porventura tivessem conhecido a sabedoria de Deus.
Porque os fariseus e escribas não sabiam que a doutrina de Cristo era
verdadeira, de modo que vagueavam, como homens entorpecidos, em meio
a suas próprias trevas.
9. Mas como está escrito: O que olhos não viram etc. Todos
concordam que esta passagem é tomada de Isaías 64.3 (na LXX é 4); e visto
que à primeira vista o significado é óbvio e fácil, os intérpretes não se dão
muito ao trabalho de explicá-la. No entanto, ao atentar para ela mais de
perto, duas diferenças bem sérias aí surgem. A primeira consiste em que as
palavras, como usadas por Paulo, não concordam com as palavras do
profeta. A segunda consiste em que Paulo parece estar operando em linhas
diferentes das do profeta, e assim a declaração do profeta parece ter um
propósito totalmente estranho a seu desígnio.
Então trataremos primeiramente das palavras. Uma vez que são
ambíguas, os intérpretes explicam-nas de diferentes formas. Alguns as
traduzem nesta forma: “Desde os primórdios do mundo os homens não têm
ouvido nem percebido com os ouvidos, e nenhum olho tem visto Deus além
de ti, que age [faciat] de tal maneira em favor daquele que espera nele.”
Outros interpretam as palavras como direcionadas para Deus, como segue:
“Olhos não viram, nem ouvidos ouviram além de ti, ó Deus, as coisas que
fizeste por aqueles que esperam em ti.” Literalmente, contudo, a intenção do
profeta é esta: “Desde o princípio do mundo os homens não têm houvido,
nem têm percebido com os ouvidos, não têm visto deus [ou ó Deus] além de
ti, que fará [ou preparará] para aquele que espera nele.” Se lermos !yhla
[Deus] no acusativo [Deum], o relativo que [qui] terá de ser aplicado. Em
primeira instância, esta exposição parece adequar-se melhor ao contexto do
profeta, porque o verbo que segue está na terceira pessoa,16 porém ele vai
além da intenção de Paulo, e que deve levar mais peso em relação a nós do
que outras razões. Pois quem melhor que o Espírito de Deus será um
infalível e fiel intérprete desta declaração profética, a qual ele mesmo ditou a
Isaías, visto que era ele quem o explicava pelos lábios de Paulo? Não
obstante, a fim de podermos resistir as acusações dos ímpios, declaro que a
natureza da construção hebraica permite este como o genuíno significado
do profeta: “Ó Deus, nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, mas tu
somente sabes as coisas que tens costume de fazer por aqueles que
esperam em ti.” A mudança súbita de pessoa não traz dificuldades. Sabemos
ser tão comum nos escritos dos profetas, que nem precisamos ser detidos
aqui. Se a primeira interpretação agrada mais a alguns, eles não estarão em
posição de nos culpar ou culpar o apóstolo de partir do simples significado
das palavras, pois completamos menos do que eles fazem, porque serão
forçados a adicionar um termo de similitude ao verbo agir (formando a
frase: “que ages de tal maneira”).
Ainda que o profeta não inclua o que segue sobre “a entrada daquelas
coisas no coração humano”, a frase não imprime uma nota distinta da outra
frase “além de ti”. Pois ao atribuir este conhecimento só a Deus, ele exclui
dele [conhecimento] não só os sentidos físicos do homem, mas também a
habilidade da mente. Portanto, embora o profeta faça diferença só à visão e à
audição, ao mesmo tempo ele implicitamente inclui todas as faculdades da
mente. Por certo que aquelas são as duas membranas por meio das quais
obtemos conhecimento daquelas coisas que alcançam o entendimento. Ao
usar a frase “aqueles que o amam”, Paulo está seguindo os intérpretes
gregos, que a traduziram assim, porém se equivocaram por causa da
similaridade de uma carta para a outra;17 mas como isso não faz nenhuma
diferença para o ponto deste versículo, ele não quis partir da tradução
comum, porque paulatinamente vemos o quanto ele dá forma ao texto
aceito. Portanto, ainda que as palavras não sejam as mesmas, não há real
diferença de significado.
Passo agora à abordagem do tema. Nesta passagem, o profeta recorda
quão maravilhosamente Deus veio ao encontro de seu povo para assisti-lo
nos momentos de profundas necessidades, e exclama que o favor divino em
prol dos piedosos excede à compreensão da mente humana. Mas alguém
poderia dizer: “O que isso tem a ver com o ensino espiritual e com as
promessas de vida eterna, os quais Paulo está discutindo aqui?” Há três
maneiras como essa pergunta pode ser respondida. Não estará fora de
propósito dizer que o profeta, tendo mencionado os benefícios terrenos, foi
arrebatado pela reflexão destes para uma afirmação geral, e naturalmente
para gloriar-se na bem-aventurança espiritual, a qual está reservada no céu
para os crentes. Prefiro, não obstante, entendê-lo simplesmente como
fazendo referência aos dons da graça de Deus, os quais são diariamente
conferidos aos crentes. Ao tratarmos deles, devemos sempre observar sua
fonte, não limitando nossa visão a seus aspectos presentes. Ora, sua fonte é
o gracioso beneplácito de Deus, por meio do qual ele nos adotou no número
de seus filhos. A pessoa, pois, que deseja avaliar essas coisa corretamente,
não as contemplará em seu aspecto despido, porém as vestirá com o amor
paternal de Deus como se fosse um vestuário, e assim tal pessoa será
conduzida dos dons temporais para a vida eterna. Pode-se dizer também
que este é um argumento do menor para o maior. Pois se o intelecto humano
não pode chegar à medida dos dons terrenais de Deus, muito menos atingirá
ele as altitudes celestiais [Jo 3.12]. Entretanto, já dei a entender que
interpretação prefiro.

10. Deus, porém, no-las revelou pelo Espírito; pois o Espírito perscruta todas as coisas,
sim, as coisas profundas de Deus.
11. Pois qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem que
nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus.
12. Ora, nós recebemos, não o espírito do mundo, e, sim, o Espírito que vem de Deus;
para que pudéssemos conhecer as coisas que nos são dadas gratuitamente por Deus.
13. Coisas essas das quais também falamos, não em palavras que a sabedoria humana
ensina, mas que o Espírito Santo ensina, comparando coisas espirituais com espirituais.

10. Nobis autem Deus revelavit per Spiritum suum: Spiritus enim omnia scrutatur, etiam
profundditates Dei.
11. Quis enim hominum novit, quæ ad eum pertinent, nisi spiritus hominis, qui est in
ipso? Ita et quæ Dei sunt, nemo novit, nisi Spiritus Dei.
12. Nos autem non spiritum mundi accepimus, sed Spiritum qui est ex Deo: ut sciamus
quæ a Christo donata sunt nobis:
13. Quæ et loquimur, non in eruditis humanæ sapientiæ sermonibus, sed Spiritus sancti,
spiritualibus spiritualia coaptantes.

10. Deus, porém, no-las revelou. Tendo concluído que todos os homens
são cegos, e tendo despojado o intelecto humano do poder de obter o
conhecimento de Deus, Paulo agora mostra como os fiéis são isentados
desta cegueira, a saber, honrando-os o Senhor com a iluminação especial do
Espírito. Portanto, quanto mais obtuso é o intelecto humano para
compreender os mistérios de Deus, e quanto mais profunda é a incerteza
sob a qual labora, tanto mais segura é nossa fé, a qual tem seu apoio na
revelação do Espírito de Deus. Nisso reconhecemos a infinita bondade de
Deus que faz com que nossa imperfeição contribua para nosso benefício.
Pois o Espírito perscruta todas as coisas. Isso é acrescido para a
consolação dos piedosos, para que descansem com mais tranqüilidade na
revelação que eles possuem da parte do Espírito de Deus. É como se
dissesse: “Que nos seja suficiente ter o Espírito de Deus como testemunha,
pois nada existe em Deus tão profundo que ele não possa atingir.” Pois esse
é o sentido que perscrutar tem aqui. Pela expressão, “as coisas profundas”,
deve-se entender não pensamentos secretos, os quais não nos é permitido
investigar, mas toda a doutrina da salvação, a qual as Escrituras teriam
posto diante de nós sem qualquer objetividade, se Deus, por intermédio de
seu Espírito, não conduzisse nossas mentes a ela.
11. Pois qual dos homens sabe? Paulo pretende ensinar duas coisas
aqui: Primeiramente, que a doutrina do evangelho só pode ser assimilada
pelo testemunho do Espírito Santo; e, segundo, que aqueles que possuem
um testemunho de tal natureza, provindo do Espírito Santo, também
possuem uma certeza tão sólida e firme, como se pudessem realmente tocar
com suas próprias mãos o que crêem, pois o Espírito é uma testemunha fiel
e confiável. Isso ele prova pela similitude [similitudine] extraída de nosso
próprio espírito. Pois cada um de nós é cônscio de seus próprios
pensamentos; e, em contrapartida, o que vai escondido no coração humano
é desconhecido a outros. Semelhantemente, o conselho e a vontade de Deus
são de tal natureza que se acham ocultos de todos os homens; pois “quem
foi seu conselheiro?” [Rm 11.34]. Portanto, ele [coração de Deus] é um
recesso secreto e inacessível a todo o gênero humano. Mas, se o próprio
Espírito de Deus nos introduzir a ele, ou, em outros termos, nos fizer mais
familiarizados com aquelas coisas que são, por outro lado, ocultas de nossa
percepção, então não deve haver motivo para hesitação, porquanto não
existe nada em Deus que escape à observação de seu Espírito.
Entretanto, esta similitude não aparenta ser totalmente apropriada.
Porque, visto que falar é uma atividade caracteristicamente mental, o ser
humano comunica suas disposições uns aos outros para que se tornem
familiarizados, cada um com o pensamento do outro. Por que, pois, não
poderíamos assimilar na Palavra de Deus qual é sua vontade? Pois embora o
gênero humano, por pretensão e falsidade, às vezes obscureçam, em vez de
revelarem, seu real estado mental, o mesmo não se dá com Deus, cuja
Palavra é a verdade absoluta e sua genuína e viva imagem. Não obstante,
devemos observar cuidadosamente até que ponto Paulo pretendia estender
esta similitude. O pensamento mais íntimo de uma pessoa, acerca do qual
ninguém nada sabe, só é percebido por ela mesma. Se depois ela o revela a
outrem, tal coisa não altera o fato de que seu espírito só conhece o que está
em seu íntimo. Pois é possível que tal pessoa não use uma linguagem
persuasiva; é possível ainda que ela não expresse convenientemente a
realidade de sua intenção. Se ela, contudo, alcança ambos os objetivos, esta
afirmação não entra em conflito com a outra, a saber: que exclusivamente
seu próprio espírito é que mantém o verdadeiro conhecimento dela. Existe,
entretanto, esta importante diferença entre os pensamentos de Deus e os
dos homens: de um lado, os homens se entendem reciprocamente; do outro,
a Palavra de Deus é uma espécie de sabedoria oculta, a cuja altitude o frágil
intelecto humano não pode alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas [Jo 1.5],
até que o Espírito abra os olhos do cego.
O espírito do homem. Note-se que aqui o espírito de uma pessoa
significa a alma [anima] na qual reside a faculdade intelectual, como é
chamada. Porquanto Paulo se teria expresso de forma imprecisa se tivesse
atribuído esse conhecimento ao intelecto humano, ou, em outros termos, á
própria faculdade, e não à alma, a qual é dotada o poder do discernimento.
12. Ora, nós temos recebido, não o espírito do mundo. Ele intensifica,
à guisa de contraste, aquela certeza de que fizera menção. Diz ele: “O
Espírito de revelação que recebemos não é proveniente do mundo, ao ponto
de aderir ao pó e converter-se em tema de futilidade; ao ponto de deixar-nos
em suspenso; ou a enfrentar variação ou flutuação; ou a deixar-nos em
incerteza e perplexidade. Ao contrário, ele tem sua origem em Deus; e daí,
paira acima de todas as nuvens; ele é a verdade sólida e invariável, e está
posto acima de toda e qualquer possibilidade de dúvida.”
Esta é uma passagem muitíssimo clara para refutar o princípio diabólico
dos sofistas de que os crentes vivem num contínuo estado de hesitação.
Porque seu intuito é suscitar dúvidas na mente dos crentes, se de fato vivem
ou não na graça de Deus; e não admitem nenhuma certeza da salvação,
porém dependem da aprovação moral ou de conjetura provável. Não
obstante, ao agirem assim eles destroem a fé de duas maneiras: Em primeiro
lugar, seu intuito é que nutramos dúvida se de fato estamos em estado de
graça; em seguida, sugerem uma segunda ocasião a dúvidas – a incerteza
quanto à perseverança final.18 Aqui, porém, o apóstolo declara, em termos
gerais, que o Espírito foi dado aos eleitos, por cujo testemunho lhes é
assegurado que foram adotados para a esperança da salvação eterna.
Indubitavelmente, se os sofistas mantivessem sua doutrina,
necessariamente privariam os eleitos do Espírito Santo e fariam o próprio
Espírito também sujeito à incerteza. Ambos estes pontos estão em franco
conflito com a doutrina de Paulo. Daí podermos saber ser esta a natureza da
fé, a saber: que a consciência tem, pela operação do Espírito Santo, uma
testemunha infalível do beneplácito de Deus para com ela, e, apoiando-se
neste fato, confiadamente invoca a Deus na qualidade de Pai. É assim que
Paulo eleva nossa fé acima deste mundo, para que ela contemple com
majestoso desdém toda a soberba carnal. Porque, do contrário, ela será
sempre tímida e vacilante, porque vemos quão audaciosamente a
engenhosidade humana se exalta; e os filhos de Deus devem pisar com a
planta de seus pés este orgulho, através de um gênero oposto de altivez: a
heróica magnanimidade.19
Para que pudéssemos conhecer as coisas que foram dadas por Cristo.
A palavra conhecer é usada a fim de externar mais plenamente a convicção
da confiança. Não obstante, notemos bem que a mesma não é obtida por
vias naturais, nem é assimilada por nossa capacidade mental de
compreensão, senão que depende completamente da revelação do Espírito.
As coisas de que ele faz menção como dadas por Cristo são as bênçãos que
granjeamos através de sua morte e ressurreição – que sendo conciliados
com Deus, e tendo obtido a remissão de pecados, sabemos que já fomos
adotados para a esperança da vida eterna, e que, sendo santificados pelo
Espírito de regeneração, fomos feitos novas criaturas a fim de podermos
viver para Deus. Paulo diz em Efésios 1.18 o equivalente à mesma coisa:
“Para que saibais qual seja a esperança de sua vocação.”
13. Coisas essas das quais falamos, não em palavras ensinadas pela
sabedoria humana, mas pelo Espírito Santo. Paulo está fazendo referência
a si próprio, pois está ainda empenhado em enaltecer seu ministério. Ora, é
um notável tributo que ele presta a sua própria pregação quando diz que ela
contém a revelação do segredo de questões muitíssimo importantes: a
doutrina do Espírito Santo; a plenitude de nossa salvação; e os inestimáveis
tesouros de Cristo. Ele age assim para que os coríntios soubessem quão
sublimemente ela deve ser valorizada. Nesse ínterim, ele volta à concessão
que previamente fizera, ou, seja, que sua pregação não havia sido adornada
com qualquer esplendor de palavras; que ela não possuía um estilo
elegante; senão que ela simplesmente continha a doutrina do Espírito Santo.
Pela expressão, ensinadas pela sabedoria humana, ele quer dizer aquelas
palavras que contêm sabor de erudição humana e são polidas segundo as
regras dos retóricos; ou bafejadas com imponência filosófica, com vistas a
excitar a admiração dos ouvintes. Mas as palavras “ensinadas pelo Espírito”
se amoldam a um estilo repassado de sinceridade e simplicidade, ao
contrário de fútil e ostentoso, e que correspondem à dignidade do Espírito.
Porque, para que a eloqüência esteja presente, devemos cuidar sempre a fim
de impedir que a sabedoria de Deus venha sofrer degradação por uma
excelência emprestada e profana. Mas o método de ensino adotado por
Paulo era de um gênero tal que o poder do Espírito resplandecia nele de uma
forma singular e destituído de atavios humanos, sem qualquer assistência
estranha.
Coisas espirituais com espirituais. Συγκρινεσθαι é usada aqui, não tenho
a menor dúvida, no sentido de adaptar [aptare]. Este é às vezes o significado
da palavra (segundo uma citação de Aristóteles feita por Budæus), e daí
συγκριμα é também usada para o que é entrelaçado ou colado junto, e
certamente se adequa bem melhor ao contexto de Paulo do que comparar ou
equiparar, como alguns a têm traduzido. Ele, pois, diz que adapta coisas
espirituais com espirituais, ao acomodar as palavras ao tema. Em outros
termos, ele tempera aquela sabedoria celestial do Espírito com um estilo de
linguagem simples, e de uma natureza tal ao ponto de levar em sua dianteira
a energia natural do próprio Espírito. Nesse ínterim, ele reprova outros que,
com afetada elegância de expressão, e demonstração de refinamento, se
empenhavam pela obtenção dos aplausos dos homens, como pessoas
completamente carentes que são ou destituídas da sólida verdade ou, por
meio de ornamentos inconvenientes, corrompem a doutrina espiritual de
Deus.

14. O homem natural, porém, não recebe as coisas do Espírito de Deus; porque lhe são
loucura; nem pode entendê-las, porque elas são discernidas espiritualmente.
15. Aquele, porém, que é espiritual julga todas as coisas, contudo ele mesmo não é
julgado por ninguém.
16. Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Nós, porém,
temos a mente de Cristo.

14. Animalis autem homo non comprehendit quæ sunt Spiritus Dei. Sunt enim illi stultitia;
nec potest intelligere, quia spiritualiter diiudicantur.
15. Spiritualis autem diiudicat omnia, ipse vero a nemine [vel, nullo] diiudicatur.
16. Quis enim cognovit mentem Domini, qui adjuvet ipsum? nos autem mentem Christi
habemus.

14. Ora, o homem natural.20 Pela expressão, homem animal [animalis


homo], Paulo não quer dizer, como comumente se pretende, uma pessoa
escravizada a desejos grosseiros, ou, como se diz, a sua própria
sensualidade, mas alguém dotado meramente das faculdades21 da
natureza.22 Isso é evidente à luz do termo correspondente, pois ele extrai
uma comparação entre o homem animal e o espiritual. Uma vez que o
espiritual denota o homem cujo entendimento é regulado pela iluminação do
Espírito de Deus, não pode haver dúvida de que o animal significa o homem
que é deixado, por assim dizer, simplesmente numa condição natural [in
puris naturalibus]. Pois a alma23 [anima] pertence à natureza, mas o Espírito
vem de uma comunicação supernatural [ex dono supernaturali].
Paulo traz a lume novamente o que mencionara levemente antes. Pois ele
quer remover uma pedra de tropeço que poderia frustrar o fraco, a saber, o
fato de tantos estarem rejeitando o evangelho com desdém. Ele mostra que
não devemos levar em conta o desdém proveniente da ignorância, e por essa
razão isso não deve impedir-nos de nos apressarmos no curso da fé; a
menos que, eventualmente, decidamos fechar nossos olhos ao esplendor do
sol, sob a alegação de que os cegos não podem vê-lo! Entretanto, deve-se
atribuir grande ingratidão aos que rejeitam um favor especial de Deus, do
qual são indignos, sob a alegação de que cada um deles não o tem, quando,
ao contrário, sua própria raridade põe em relevo seu valor.24
Porque lhe são loucura; e ele não pode entendê-las. Ele está dizendo o
seguinte: “Todos aqueles cuja sabedoria se encontra num nível meramente
humano, nunca experimentaram o sabor25 do evangelho. Mas, como isso é
assim? É proveniente da cegueira deles. Em que sentido, pois, isso pode
prejudicar a majestade do evangelho? Em suma, embora as pessoas
ignorantes depreciem o evangelho só porque, medindo seu valor pelo
critério humano, Paulo extrai deste fato um argumento em prol da mais
sublime eminência de sua dignidade. Pois ele ensina que a razão por que ele
[o evangelho] se deve ao fato de o mesmo ser desconhecido do homem, e
que também é desconhecido em razão de ser, ao mesmo tempo, tão
profundo e elevado demais para ser assimilado pela mente humana. Quão
superior é esta sabedoria,26 que transcende infinitamente a todo o
conhecimento humano, que o homem não pode ter sequer o mais leve sabor
dela!27 Mas ainda que aqui ele esteja tacitamente responsabilizando o
orgulho humano pelo fato de os homens pretenderem condenar como
loucura o que eles não entendem, ao mesmo tempo, contudo, ele mostra
quão profunda é a debilidade, ou, melhor, a obtusidade da mente humana,
ao afirmar ser ela incapaz de [inerentemente] possuir discernimento
espiritual. Porquanto ele ensina que o homem, por si só, não pode aprender
as coisas do Espírito, não só devido ao orgulho obstinado da vontade
humana, mas também em decorrência da impotência de sua mente. Ele não
teria dito nada além da verdade, caso afirmasse que os homens não desejam
ser sábios, porém avança um pouco mais dizendo que os homens nem
mesmo têm o poder de o ser. Daí concluirmos que a fé não provém das
próprias faculdades humanas, senão que ela é divinamente conferida.
Porque elas se discernem espiritualmente. Ou, seja, o Espírito de
Deus,28 de quem emana a doutrina do evangelho, é o único e genuíno
intérprete para no-la tornar acessível. Segue-se que, no transcorrer de [o
processo de] julgá-la, as mentes humanas necessariamente permanecem
cegas até que sejam iluminadas pelo Espírito de Deus. Do contrário o
argumento seria inconclusivo. É verdade que provém do Espírito de Deus
que possuímos aquela débil fagulha de razão de que todos desfrutamos;
mas aqui estamos falando daquela descoberta especial da sabedoria
celestial que só Deus outorga a seus filhos. Por essa causa não existe a
menor base para se tolerar a ignorância daqueles que pensam ser o
evangelho universalmente oferecido à humanidade, de tal sorte que todos
indiscriminadamente estão livres29 para apropriar-se da salvação pela fé.
15. Mas o homem espiritual julga todas as coisas. Havendo despido o
juízo carnal do homem de toda autoridade, ele agora ensina que só os
espirituais são juízes qualificados nesta matéria; visto que somente o
Espírito conhece a Deus, e é sua função pessoal fazer distinção entre suas
próprias coisas e as das demais criaturas, para aprovar o que é
propriamente seu e anular todas as demais coisas. Portanto, o significado é
o seguinte: “Nesta conexão, não existe lugar para o discernimento da carne!
É tão-somente o homem espiritual que possui o conhecimento, firme e
sólido, dos mistérios de Deus; é ele que de fato distingue entre verdade de
falsidade; a doutrina de Deus das invenções humanas; de modo a não cair
em equívocos.”30 Em contrapartida, “ninguém o julga”, porque a certeza de
fé não se acha sob o controle humano, como se a seu bel-prazer31 pudesse
ser reduzida a ruínas, quando de fato é ela superior aos próprios anjos.
Note-se que esta prerrogativa é atribuída não ao homem como um indivíduo,
mas à Palavra de Deus, a qual usa o espiritual como guia para julgar, e a qual,
naturalmente, lhes é imposta por Deus, com verdadeiro discernimento.
Onde isso é propiciado, a persuasão humana fica situada além da categoria
do juízo humano.
Observe-se, além do mais, a palavra traduzida julgada, pela qual o
apóstolo notifica que somos não meramente iluminados pelo Senhor para
recebermos a verdade, mas que somos igualmente dotados com o espírito
de discriminação a fim de não vivermos suspensos pela dúvida entre
verdade e falsidade, mas para sermos capazes de determinar o que devemos
evitar e o que devemos seguir.
Neste ponto, porém, podemos formular a seguinte pergunta: Quem é esse
homem espiritual, e onde havemos de encontrá-lo munido de tanta luz que
se torna capaz de a tudo julgar, quando estamos bem cientes do fato de
estarmos envoltos por um grande volume de ignorância e sujeitos ao risco
de cair em erros, e, o que é ainda mais sério, quando ainda o mais excelente
dentre os homens reiteradamente fracassa? A resposta é fácil: Paulo não
estende esta faculdade a todos, de modo a representar a todos os que são
renovados pelo Espírito de Deus como isentos de todo gênero de erro; mas
simplesmente se propõe a ensinar que a sabedoria da carne é de nenhuma
valia para julgar a doutrina da piedade, e que a prerrogativa de juízo e
autoridade pertence exclusivamente ao Espírito de Deus. Portanto, um
homem só julga corretamente e com segurança depois de ser regenerado e
segundo a medida da graça que lhe for conferida – e não mais que isso!
Ele mesmo não é julgado por ninguém. Já expliquei sobre que base
Paulo afirma que o homem espiritual não está sujeito ao julgamento de
qualquer ser humano, a saber, porque a veracidade da fé, que depende
exclusivamente de Deus, e se acha fundamentada em sua Palavra, não
prevalece nem cai segundo o bel-prazer humano.32 O que ele afirma depois,
que o espírito de um profeta está sujeito a outros profetas [1Co 14.32], de
modo algum é inconsistente com essa declaração. Pois qual é o propósito
dessa sujeição senão para que cada um dos profetas ouça os demais e não
menospreze nem rejeite suas revelações, a fim de que, o que for descoberto
como sendo a verdade de Deus,33 por fim permaneça firme e seja recebido
por todos? Nesta passagem, contudo, ele põe a ciência da fé, que foi
recebida da parte de Deus,34 acima das excilsitudes de céu e terra, para que
ela não venha a ser avaliada pelo juízo humano.
Ao mesmo tempo, ὕπ ̓ οὐδενός pode ser lido como do gênero neutro, a
saber, “por nada”, de modo a ser entendido como uma referência a uma
coisa e não a uma pessoa. Por esse prisma o contraste será mais completo,35
sugerindo que o homem espiritual, até onde é ele dotado com o Espírito de
Deus, julga todas as coisas, porém não é julgado por nada, porquanto não se
acha sujeito a nenhuma sabedoria ou razão humana. E assim Paulo também
isentaria a consciência dos piedosos de todos os decretos, leis e censuras
dos homens.
16. Pois quem conheceu...? É provável que Paulo estivesse olhando
para o que lemos no capítulo 40 de Isaías. O profeta ali pergunta: “Quem foi
o conselheiro de Deus? Quem pesou seu Espírito36 [Is 40.13]; ou o ajudou
tanto na criação do mundo quanto em suas demais obras? E, finalmente,
quem tem compreendido a razão de suas obras?” Por esta mesma razão,
Paulo deseja ensinar, pelo uso desta pergunta, quão afastado da mente
humana está seu conselho secreto que se acha contido no evangelho. Essa,
pois, é a confirmação da afirmação precedente.
Nós, porém, temos a mente de Cristo. Não está claro se ele fala dos
crentes universalmente ou exclusivamente dos ministros. Ambos esses
significados se adequam suficientemente bem ao contexto, ainda que eu
prefira vê-lo como uma referência mais particularmente a ele próprio e a
outros ministros fiéis.37 Ele diz, pois, que os servos do Senhor são
instruídos pela particular autoridade do Espírito, o que se acha
demasiadamente distanciado da compreensão humana, a fim de que falem
destemidamente, por assim dizer, [o que flui] da boca do Senhor.
Posteriormente, esse dom se disseminará gradativamente por toda a Igreja.

1. “Car je n’ay point eu en estime de sçauoir aucune chose ou rien deliberé de sçauoir entre
vous.” – “Eu nada tive em estima como conhecimento; ou, Determinei nada saber entre vós.”
2. Calvino se refere ao que ele dissera ao comentar uma expressão que ocorre em 1.17 – não em
sabedoria de palavras. Veja-se página 51.
3. Xenofonte usa κρινω no sentido de selecionar ou preferir – Mem. iv.4, sec. 16, ουχ ο̒πως τους αυτους
χορους κρινωσιν οἱ πολιται, “não que os cidadãos prefiram as mesmas danças.” Veja-se também
Menander, p. 230, linha 245, edit. Cleric. No Novo Testamento encontramos κρινω usada no
sentido de estimar, em Romanos 14.5.
4. Ne fera point que ie n’aye en reuerence et admiration.” – “Não me impedirá de o ter em
reverência e admiração.”
5. “En infirmité ou foiblesse.” – “Em fraqueza ou debilidade.”
6. “Ne cognoissent ni eux ni la chose qu’ils ont entre mains.” – “Não conhecem nem a si mesmos
nem aquilo que têm em mãos.”
7. Esta passagem tem ampliado os horizontes dos críticos, à luz da circunstância de que o
adjetivo πειθοι̑ς, não ocorrendo em nenhum outro lugar no Novo Testamento, ou em qualquer dos
escritos dos autores clássicos, supõe-se que houve alguma correção da redação. Há quem
presume ser ela uma contração ou corrupção de πείθανοις ou πίθανοις, e Crisóstomo, em um ou
dois casos, ao citar a passagem, usa o adjetivo πίθανοις, quando em outro caso ele usa πειθοι̑ς.
Talvez seja em alusão aos casos em que Crisóstomo faz uso do adjetivo πίθανοις que Calvino
emprega a frase το πίθανον (persuasão).
8. “Secrettement et doucement.” – “Secreta e suavemente.”
9. Uma figura de linguagem por meio da qual as palavras invertem seus casos entre si.”
10. Assim lemos que Jacó [Gn 25.27] era !t `ya, “um homem perfeito”, isto é, sem qualquer falha
ostensiva. Veja-se também Jó 1.8. A palavra correspondente, !ymt, é amiúde aplicada às vítimas
sacrificiais, para denotar que eram sem defeito [ x 12.5; Lv 1.3].
11. “Il ne s’en rapporte pas a vn chacvn, mais requiert des iuges entiers.” – “Ele não submete a
causa a cada um, mas apela para os juízes competentes.”
12. Essa alusão geralmente leva o leitor a pensar nas cavernas profundas e escuras, de cujo
antro os oráculos pagãos apresentavam suas respostas.
13. Locke, em concordância com o conceito de Calvino, entende Paulo como se ele dissesse:
“Por que provocais divisões, vos vangloriando em vossos eminentes mestres? A glória que Deus
ordenou a nós mestres e professores cristãos é para que sejamos expositores, pregadores e
crentes daquelas verdades e propósitos divinos revelados, os quais, ainda que estejam contidos
nas Escrituras Sagradas do Velho Testamento, não eram entendidos nas eras anteriores.”
14. “Vne zele de la loy desordonné et mal reglé.” – “Um desordenado e desequilibrado zelo pela
lei.”
15. A distinção traçada por Calvino é ilustrada por uma afirmação de Salomão em Provérbios
21.27: “O sacrifício do perverso é abominação; quanto mais quando ele a associa com uma mente
perversa.” hmzb – “com um desígnio perverso.”
16. “Assauoir, Fera, ou Preparera.” – “Isto é – Ele fará, ou Ele preparará.”
17. A palavra usada por Isaías é hkjm, que é uma parte do verbo hkj, aguardar, e a intenção de
Calvino mais provavelmente é que os “intérpretes gregos” foram (devido à semelhança entre b e
k) levados ao equívoco de concluir que ela era parte do verbo bbj, amar, enquanto a parte
correspondente do último verbo, bbwjm, claramente difere muito da palavra usada pelo profeta.
18. O leitor encontrará este tema tratado numa forma mais extensa nas Institutas, vol. ii., p. 143.
19. “Fondée en vne magnanimité heroique.” – “Fundamentada em uma heróica magnanimidade.”
20. “Or l’homme naturel. A le traduire du Grec mot a mot, il y auroit l’homme animl.” – “Mas o
homem natural. Traduzindo o grego literalmente, significa o homem animal.”
21. “Les facultés et graces.” – “As faculdades e dons.”
22. A definição que Beza faz do termo é muito semelhante: “Homo non aliâ quam naturali animi
luce præditus.” – “Um homem que não é dotado com nada mais do que a luz natural da mente.”
23. A alma (anima) corresponde ao termo grego ψυχη e o termo hebraico `pn, enquanto que spiritus
(espírito) corresponde a πνευμα e jwr. Calvino, porém, emprega a designação animalis (animal)
como um derivativo de anima (a alma), e como que designando o homem cuja alma existe em um
estado puramente natural – destituída de iluminação supernatural. Em outros termos, o homem
de mera mente.
24. “D’autant qu’il est fait à peu de gens, dá autant doit-il estre trouué plus excellent.” – “Quanto
menos é conferido, tanto mais se deve considerar valioso.”
25. “Et n’auoir point de goust.” – “E é sem sabor.”
26. “O quelle sagesse!” – “Oh, que sabedoria!”
27. “Vn petit goust.” – “Um leve sabor.”
28. O leitor encontrará a afirmação do apóstolo a respeito do “homem natural” comentada em
certa extensão nas Institutas.”
29. Calvino obviamente não quer com isso negar que “todos indiscriminadamente” sejam
convidados e autorizados a “abraçar a salvação pela fé”. Ele diz na Harmonia, vol. iii, p. 109:
“Porque, visto que por meio de sua palavra ele [Deus] chama a todos os homens indiscriminadamente
à salvação, e visto que o propósito da pregação é para que todos recorram a sua guarda e
proteção, pode-se com razão dizer que ele quer congregar a todos em torno de si.” Sua intenção
é dizer que a vontade tem que ser libertada pelo Espírito de Deus.
30. “En cest endroit.” – “Nesta matéria.”
31. “Pour estre ou n’estre point selon qu’il leur plaira.” – “De modo a ser ou não de acordo com
seu prazer.”
32. “N’est point suiete au plaisir des hommes, pour estre ou n’estre point, selon qu’ils voudront.”
– “Não está sujeito à vontade humana, de modo a obedecer ou não segundo sua decisão.”
33. “La pure ferité du Seigneur.” “A verdade pura do Senhor.”
34. “Mais yci il establit et conferme la science de foy, laquelle les eleus recoyuent de Dieu.” –
“Aqui, porém, ele estabelece e confirma a ciência da fé, a qual os eleitos têm recebido de Deus.”
35. “Et expresse.” – “E exato.”
36. A expressão usada por Isaías é: Quem dirigiu o Espírito do Senhor? Nosso autor, citando de
memória, parece ter diante de seus olhos uma expressão que ocorre numa parte anterior da
mesma passagem: “e pesados os montes em balanças.”
37. Calvino, ao aludir a esta passagem, como evidentemente faz em seu comentário aos
Romanos [11.34], considera a expressão, Temos a mente de Cristo, como aplicável aos crentes
universalmente – “Nam et Paulus ipse alibi, postquam testatus ert omnia Dei mysteria ingenii
nostri captum longe excedere, mox tamen subjiicit, fideles tenere mentem Domini: quia non
spiritum hujus mundi acceperint, sed a Deo sibi datum, per quem de incomprehensibili alioqui
ejus bonitate edocentur.” – “Pois ainda o próprio Paulo, em outro passo, depois de testificar que
todos os mistérios de Deus muito excedem a capacidade de nossa compreensão, não obstante
imediatamente acrescenta que os crentes estão de posse da mente do Senhor, porque já
receberam não o espírito deste mundo, mas aquele que lhes foi dado por Deus, por meio do
qual são instruídos quanto a sua incompreensível bondade.”
Capítulo 3

1. E eu, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais, como a
crianças em Cristo.
2. Tenho vos alimentado com leite, e não com carne, porque até aqui não éreis capazes
de suportar, nem ainda agora o sois.
3. Porque ainda sois carnais; pois havendo entre vós inveja, contenda e divisões,
porventura não sois carnais e não andais como os homens?
4. Pois quando um diz: Eu sou de Paulo; e outro: Eu sou de Apolo; porventura, não sois
carnais?

1. Et ego, fratres, non potui vobis loqui tanquam spiritualibus, sed tanquam carnalibus,
tanquam pueris in Christo.1
2. Lactis potu vos alui, non solido cibo. Nondum enim eratis capaces, ac ne nunc quidem
estis:
3. Siquidem estis adhuc carnales. Postquam enim sunt inter vos æmulatio et contentio, et
factiones; nonne carnales estis, et secundum hominem ambulatis?
4. Quum enim dicat unus, Ego sum Pauli: alter vero, Ego Apollo: nonne carnales estis?

1. E eu, irmãos. Ele inicia aplicando aos próprios coríntios o que


dissera sobre as pessoas carnais, de modo que pudessem compreender que
a culpa era deles mesmos se a doutrina da cruz não mais exercia atração
sobre eles. É provável também que muita autoconfiança e orgulho ainda
restassem em suas mentes, de modo que não era sem considerável
relutância e mui grande dificuldade que os impedia ainda de abraçar a
simplicidade do evangelho. O resultado foi que negligenciaram o apóstolo e
a divina eficácia de sua pregação, e passaram a prestar mais atenção aos
mestres que provocavam ruído, porém eram destituídos do Espírito.2 Daí, a
fim de restringir ao máximo sua insolência, ele lhes assevera que deviam ser
contados entre aqueles que, havendo sido subjugados pelo senso da carne,
não tinham a capacidade de receber a sabedoria espiritual de Deus. Sem
dúvida, ele amorteceu a aspereza de sua reprovação chamando-os de
‘irmãos’; porém, por mais que suavizasse a maneira franca de reprová-los,
suas mentes estavam tão sufocadas pelas trevas da carne, que tal fato
tornou-se um obstáculo à pura pregação entre eles. Como, pois, podia-se
atribuir-lhes um juízo saudável, quando ainda não estavam dispostos e nem
ainda preparados para ouvir? Paulo, porém, não pretende dizer que fossem
completamente carnais, sem nem mesmo uma pequena fagulha do Espírito
de Deus, mas que ainda se achavam tão saturados da mente carnal, que esta
prevalecia contra o Espírito e, por assim dizer, extinguia sua luz. Ainda que
não estivessem inteiramente sem a graça, todavia suas vidas possuíam
muito mais da carne do que do Espírito, e esta é a razão por que os
denomina carnais. E isso é bastante claro à luz do que em seguida ele
acrescenta, ou, seja, que os coríntios eram “criancinhas em Cristo” [pueros
in Christo], pois não teriam sido criancinhas não tivessem eles sido gerados,
e essa geração é proveniente do Espírito de Deus.
Crianças em Cristo. Esta descrição é às vezes usada num bom sentido,
como, por exemplo, por Pedro, que nos roga para que sejamos como
“crianças recém-nascidas” [1Pe 2.2]; e naquela afirmação de Cristo – “Quem
não receber o reino de Deus como uma criança, de maneira alguma entrará
nele” [Lc 18.17]. Entretanto, no presente caso, ele lhe atribui um sentido
negativo, porque tem referência ao entendimento. Porquanto devemos ser
“crianças na malícia, mas não na mente” [Lc14.20]. Esta distinção aclara
qualquer possibilidade de haver aqui ambigüidade. Efésios 4.14
corresponde a isto: “Não sejamos meninos, levados por todo vento de
doutrina, transformados em joguete3 das artimanhas dos homens; mas que
cresçamos diariamente etc.”
2. Tenho vos alimentado com leite. Neste ponto, alguém poderia
perguntar se Paulo transformou a Cristo para acomodar-se a pessoas
diferentes. Minha resposta é que isso tem a ver mais com sua maneira ou
método de ensinar do que com a substância do que ele ensinava. Porque o
mesmo Cristo é leite para os nenês e alimento sólido para os adultos [Hb
5.13, 14]. A mesma verdade do evangelho é dirigida a ambos, mas de forma
adequada à capacidade de cada um. Portanto, um mestre sábio tem a
responsabilidade de acomodar-se à capacidade de compreensão daqueles a
quem ele administra o ensino, de modo a iniciar com os primeiros
princípios ou rudimentos quando instrui os fracos e ignorantes, não lhes
dando algo que seja mais forte do que podem ingerir [Mc 4.33]. Em suma, ele
deve instilar seu ensino pouco a pouco, pois comunicar uma porção
demasiadamente forte resultaria apenas em perda. Pois, estes rudimentos
devem conter tudo quanto é necessário para o conhecimento, não menos do
que a instrução mais completa administrada aos mais fortes. É bom ler,
nesta conexão, a 98ª Homília sobre João, de Agostinho. Assim, fica provado
ser falsa a forjada escusa de alguns que, por temerem o perigo, não fazem
mais do que algumas referências gaguejantes e indistintas ao evangelho, e
alegam que neste respeito Paulo é seu exemplo. Entrementes, eles
apresentam um Cristo tão distante da realidade, e inclusive oculto por
muitos véus, resultando que mantêm sempre seus seguidores num estado
de fatal ignorância. Nada direi de seu envolvimento em muitas corrupções;
de sua apresentação não apenas de um Cristo pelas metades, mas de um
Cristo fragmentado4 em partículas; não apenas sua dissimulação de
grosseira idolatria, mas também em conformá-lo a seu próprio exemplo; e, se
dissessem algumas coisas, imediatamente diriam uma porção de mentiras. É
muitíssimo evidente como Paulo e eles são diametralmente diferentes; pois
leite é nutriente, não veneno; e é alimento adequado e benéfico para
crianças até que atinjam seu adequado desenvolvimento.
Porque não podíeis nem ainda podeis suportar. Para que não se
gloriasse em demasia em seu próprio discernimento, Paulo revela, antes de
tudo, o que descobrira neles desde o princípio, e acrescenta algo que é
ainda mais desagradável, ou, seja, que as mesmas falhas ainda persistem
entre eles. Pois ao menos deviam ter-se livrado da carne quando receberam
a Cristo; e assim nos deparamos com Paulo a queixar-se de achar-se
interrompido o progresso a que seu ensino se destinara. Porque, se o
ouvinte não ocasiona atraso em razão de sua indolência, o dever de um bom
mestre é estar sempre incitando-o mais energicamente5 até que a perfeição
tenha sido alcançada.
3. Porque sois ainda carnais. Enquanto a carne, isto é, a corrupção
natural, governa uma pessoa, ela toma posse de sua mente para que a
sabedoria divina não logre acesso. Em razão desse fato, se desejarmos
lograr algum progresso na escola do Senhor, devemos antes renunciar nosso
próprio entendimento e nossa própria vontade. Ainda que houvesse algum
vislumbre de religião nos coríntios, pelo menos boa parte, não obstante, se
achava extinta.6
Pois havendo entre vós. A prova se deriva dos efeitos. Porque, uma vez
que a inveja, as disputas e as facções eram frutos da carne, podemos estar
certos de que sempre serão vistos; haverão sempre de deitar raízes. Esses
males predominavam entre os coríntios; portanto, é à luz desse fato que
Paulo mostra que eles eram carnais. Ele usa igualmente o mesmo argumento
em Gálatas 5.25: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito.”
Pois enquanto estavam ansiosos em ser considerados espirituais, ele os
lembra de olhar para suas próprias obras, por meio das quais estavam
negando o testemunho de seus próprios lábios [Tt 1.16]. Observe-se, porém,
a ordem apropriada que Paulo adota aqui. Pois é da inveja que nascem as
contendas, as quais, uma vez inflamadas, resultam em seitas danosas. Além
disso, a ambição é a mãe de todos estes males.
Andais como os homens. Daqui se manifesta que o termo carne não se
limita meramente aos desejos inferiores, como os sofistas fazem crer,
chamando-os a fonte de toda a sensualidade; ela é predicado do homem
natural como um todo. Pois aqueles que seguem as diretrizes da natureza
não são governados pelo Espírito de Deus. Esses, segundo a definição do
apóstolo, são carnais, de modo que a carne e a disposição natural do
homem são absolutamente sinônimas. Portanto, Paulo tem boas razões para
pedir, em outra passagem, que sejamos “novas criaturas em Cristo” [2Co
5.17].
4. Pois enquanto um diz. Paulo agora especifica a forma precisa que as
contendas7 assumem, e age assim personificando os coríntios, para que sua
descrição tivesse mais força – que cada um deles se vangloriava em seu
próprio mestre em particular, como se Cristo não fosse o único Mestre de
todos [Mt 23.8]. Aliás, onde tal ambição ainda prevalece, o evangelho faz
pouco ou nenhum progresso. Entretanto, não devemos esperar que fizessem
uma pública profissão de fé com muitas palavras, porém o apóstolo reprova
aquelas disposições depravadas pelas quais se deixaram controlar. Ao
mesmo tempo é provável que, visto que a tagarelice vazia que geralmente
alguém exibe visa à conquista do favor do povo em benefícios de seus fins
pessoais,8 e é provável que tenham descoberto seu ponto de vista
distorcido por causa do qual cantaram os louvores extravagantes a seus
próprios mestres em termos que tocavam o próprio céu, ao mesmo tempo
que derramaram seu desprezo sobre Paulo e sobre aqueles que estavam com
ele.

5. Quem, pois, é Paulo? E quem é Apolo? Ministros através de quem crestes, conforme o
Senhor deu a cada um.
6. Eu plantei, Apolo regou; Deus, porém, deu o crescimento.
7. Assim, pois, não é quem planta alguma coisa, nem aquele que rega; mas Deus que dá
o crescimento.
8. Ora, aquele que planta e aquele que rega são um; e cada um receberá seu próprio
galardão segundo seu próprio trabalho.
9. Porque somos cooperadores de Deus; vós sois lavoura de Deus, edifício de Deus sois
vós.

5. Quis ergo est Paulus, aut quis Appolos, nisi ministri, per quos credidistis, et sicut
unicuique Dominus dedit?
6. Ego plantavi, Appolos rigavit; at Deus incrementum dedit.
7. Ergo neque qui plantat aliquid est, neque qui rigat; sed Deus qui dat incrementum.
8. Qui autem plantat, et qui rigat, unum 9 sunt. Porro quisque propriam mercedem
secundum laborem suum recipiet.
9. Dei enim cooperarii sumus,10 Dei agricultura, Dei ædificatio estis.

5. Quem, pois, é Paulo? Ele agora começa a tratar da estima em que os


ministros devem ser considerados e o propósito para o qual foram
separados pelo Senhor. Ele, porém, nomeia a si e a Apolo antes dos outros
para que evitassem a aparência de inveja.11 “Que outro trabalho é o dos
ministros”, pergunta ele, “senão o de conduzir-vos à fé por meio de sua
pregação?” De tal fato Paulo infere que não deve haver ostentação em
homem algum, porquanto a fé não permite que alguém se glorie senão
exclusivamente em Cristo. Segue-se que aqueles que exaltam
excessivamente os homens, os privam de sua genuína dignidade. Pois a
mais importante de todas as coisas é que eles sejam ministros da fé, em
outros termos, que conquistam seguidores, sim, mas não para si próprios,
mas para Cristo. Não obstante, embora pareça que ele, portando-se assim,
está subtraindo a autoridade dos ministros, na verdade não lhes está
conferindo menos do devido. Pois ele lhes confere uma grande honra ao
dizer que obtemos nossa fé por intermédio do ministério deles. Não só isso,
a eficácia da doutrina externa [externæ doctrinæ] recebe aqui a
extraordinária aprovação quando é expressa como o instrumento do
Espírito Santo; e os pastores são honrados não com um título de distinção
comum quando lemos que Deus os usa como ministros para ministrar os
incomparáveis tesouros da fé.
E conforme o Senhor deu a cada um. No grego de Paulo, a partícula de
comparação, ὡς, como, é colocada depois de ἑκαστῳ, a cada um; mas a
ordem foi invertida.12 Portanto, para que o significado fique mais claro,
prefiro traduzir “como a cada um” [sicut unicuique], em vez de “a cada um
como” [unicuique sicut]. Além disso, em algumas cópias, a partícula και, e, se
perdeu, de modo a ficar a frase assim: “ministros através de quem crestes,
como o Senhor deu a cada um.” Se ficarmos com esta redação, a segunda
frase será acrescida para explicar a primeira, de modo que Paulo pôde
realçar o que quis significar com o termo ‘ministro’. É como se dissesse:
“Ministros são aqueles cujo trabalho Deus utiliza; não aqueles que estão
confiantes em seus próprios esforços, mas aqueles que são guiados por sua
mão, como instrumentos.”
Todavia, a redação que tenho adotado está, em minha opinião, mais
próxima da verdade. Se a seguirmos, a oração será mais rica, porque
consistirá de duas sentenças, como seguem: Em primeiro lugar, ministros
são aqueles que põem seus serviços à disposição de Cristo, de modo a
poderem crer nele. Além do mais, eles não possuem nada propriamente seu,
em que possam se orgulhar, visto que nada realizam movidos por sua
própria iniciativa, mas unicamente pelo dom de Deus, e cada um segundo
sua própria medida – o que revela que tudo o que uma pessoa possui é
derivado de outra fonte. Finalmente, ele os mantém todos juntos como por
um vínculo comum, visto que tinham necessidade de assistência mútua.
6. Eu plantei, Apolo regou. Ele desnuda ainda mais claramente a
natureza desse ministério através de uma similitude, na qual a natureza da
palavra e o uso da pregação são mui apropriadamente ilustrados. A fim de
que a terra produza fruto, são necessários todos os processo da agricultura,
como a aradura, a semeadura etc. Mas quando tudo isso tiver se
processado, o trabalho do agricultor seria vão se o Senhor não der “o
crescimento” vindo do céu mediante a influência do sol e, ainda mais, por
seu próprio, maravilhoso e secreto poder. Portanto, mesmo que o cuidado
do agricultor não fosse eficiente, e a semente que ele semeia não fosse
produtiva, contudo é tão-só pela bênção de Deus que ela se torna produtiva.
Porque, o que é mais espantoso do que a semente apodrecendo para então
germinar? Semelhantemente, a Palavra do Senhor é semente frutífera por sua
própria natureza. Os ministros são, por assim dizer, agricultores que
preparam a terra e semeiam. Então outros auxílios se agregam, como, por
exemplo, a irrigação. Os ministros são igualmente responsáveis por esses
deveres quando, havendo semeado a semente no solo, prestam tanto auxílio
quanto possível à própria terra, até que ela dê à luz o que concebeu.
Todavia, a influência real para a fertilidade de seu trabalho emana,
naturalmente, do milagre da graça divina – não um produto do esforço
humano.
Observe-se, entretanto, nesta passagem, quão necessária é a pregação da
Palavra, e quão indispensável é que a mesma seja feita continuamente.13
Certamente que não seria mais difícil para Deus abençoar a terra sem
qualquer diligência por parte dos homens, de modo a produzir fruto por sua
própria vontade do que extrair ou, melhor, forçar14 sua produção através de
uma grande medida de aplicação por parte dos homens, com muito suor e
frustração. Visto, porém, que o Senhor assim determinou [1Co 9.14] que o
homem labutasse e a terra por sua vez correspondesse a seu cultivo, então
procuremos agir concordemente. De igual modo, não existe nada que impeça
a Deus de poder ele implantar fé nas pessoas dormentes, caso ele o queira,
sem qualquer auxílio humano. Ele, porém, o determinou de outra maneira, a
saber, que a fé nasce do ouvir. Portanto, a pessoa que se sente segura de que
pode receber fé, desconsiderando esses meios, age precisamente como se os
agricultores, desistindo do arado, negligenciando a semeadura e
abandonando todo o cultivo, abrissem sua boca e esperassem a comida cair
do céu nela.
Descobrimos agora o que Paulo tem em mente com referência à
incessante15 pregação da Palavra. Certamente que a semeadura não bastará
se a semente não for assessorada pelo freqüente uso de outros agentes
corroborantes. Portanto, aquele que já recebeu a semente ainda precisa
regar, e não deve desistir até que tenha atingido a plenitude do
desenvolvimento; em outros termos, até o fim de sua vida [terrena]. De
Apolo, pois, que sucedeu Paulo no ministério da Palavra em Corinto, diz-se
ter regado o que Paulo semeara.
7. Nem o que planta é alguma coisa. É evidente, à luz do que ficou
expresso, que a obra deles [os ministros] não é de modo algum
insignificante. Por isso é preciso que entendamos a razão por que a deprecia
como fez. Aliás, antes de tudo é preciso observar que ele costumava
discorrer de duas maneiras sobre os ministros,16 como também sobre os
sacramentos. Porque às vezes ele fala de um ministro como alguém
ordenado pelo Senhor, no primeiro caso regenerando as almas, e no segundo
para alimentá-las visando à vida eterna, à remissão de pecados, à renovação
das mentes humanas, ao estabelecimento do reino de Cristo e à destruição
de Satanás. Conseqüentemente, Paulo designa o ministro não só com o
dever de plantar e regar, mas também o mune com o poder do Espírito Santo
para que seu labor não venha a ser improdutivo. Assim,17 em outra
passagem [2Co 3.6], ele o chama ministro do Espírito, e não da letra, já que
ele imprime a Palavra do Senhor nos corações dos homens.
Em contrapartida, ele às vezes fala do ministro como sendo um servo,
não um mestre; como um instrumento, não uma autoridade; e, em suma,
como homem, e não Deus. Visto por esse prisma, ele nada lhe deixa senão
seu trabalho; aliás, morto e impotente, a menos que o Senhor lhe confira
poder eficaz pela operação de seu Espírito. A razão consiste em nisto:
quando é simplesmente uma questão de ministério, não devemos atentar
demasiadamente para o ser humano, mas para Deus que está operando no
homem pela graça do Espírito. Não significa que a graça do Espírito está
sempre atada à palavra do homem, mas que Cristo estende seu próprio
poder ao ministério que ele instituiu, de tal forma que fica evidenciado que
o mesmo não foi instituído em vão. Por este prisma, Cristo não subtrai nem
reduz nada que lhe pertença com o fim de transferi-lo ao homem. Porquanto
ele não está separado do ministro,18 e, sim, que, ao contrário, declara-se que
seu poder é eficaz no ministro. Visto, porém, que, através da depravação de
nosso juízo, às vezes tiramos vantagem deste fato para valorizar demais o
homem, precisamos fazer uma distinção a fim de corrigir esta falha: o Senhor
deve ser colocado de um lado e o ministro, do outro. É assim que se torna
evidente que a necessidade do homem está nele mesmo, e quão plenamente
carente é ele de poder.
Portanto, aprendamos desta passagem que os ministros sãos postos
lado a lado com o Senhor à guisa de comparação. A razão para tal
comparação é que os homens, atribuindo pouco valor à graça de Deus, são
excessivamente liberais em enaltecer os ministros; e assim furtam a Deus
daquilo que por direito lhe pertence e o transferem para si próprios.
Entretanto, Paulo sempre mantém o mais pleno senso de proporção, pois
quando afirma que “Deus é quem dá o crescimento”, ele quer dizer que os
esforços dos próprios homens não ficam sem sucesso. Veremos em outra
passagem19 que o mesmo raciocínio se aplica também aos sacramentos.
Portanto, ainda que nosso Pai celestial não rejeite nosso labor no cultivo de
seu campo, não permitindo que o mesmo seja improdutivo, não obstante ele
deseja que seu êxito dependa exclusivamente de sua bênção, de modo que
todo louvor permaneça sendo seu. Portanto, se queremos granjear algum
benefício de nosso labor, de nosso esforço, de nossa diligência, então
devemos conscientizar-nos de que não lograremos progresso a menos que o
Senhor faça prosperar nossa obra, nossos esforços e nossa perseverança, a
fim de que encomendemos a sua graça nós mesmos e tudo quanto fazemos.
8. Ora, aquele que planta e aquele que rega são um. Ao considerar
outro fator, Paulo demonstra que os coríntios estão erroneamente tirando
vantagem dos nomes de seus mestres, no interesse de seus partidos e
facções. Estão equivocados porque tais mestres unificam seus esforços em
prol de uma e a mesma coisa, e de modo algum podem estar separados ou
divididos sem ao mesmo tempo abandonarem os deveres de seu ofício.
“Eles são um”, diz Paulo. Em outros termos, se acham tão conectados, que
sua união não permite separação, porque todos devem ter um objetivo em
vista, e todos servem ao único Senhor e estão engajados na mesma obra.
Daí, se porventura se dedicam seu labor ao fiel cultivo do campo do Senhor,
então manterão a unidade; e, através de mútua comunicação, ajudarão uns
aos outros – eis uma questão bem diferente de seus nomes servirem de
motivo ou tema de acirradas controvérsias. Aqui temos uma excelente
passagem para estimular os ministros à unidade. Entrementes, contudo,
indiretamente, ele reprova os mestres ambiciosos que viviam a provocar
divisões, e assim tornavam evidente que não eram servos de Cristo, mas
escravos da vanglória, ou, seja, não se davam ao trabalho de plantar ou
regar; ao contrário, se ocupavam em arrancar e queimar.
Cada um receberá seu próprio galardão. Aqui Paulo ensina que o alvo
de todos os ministros deve ser, antes de tudo, não ficar de espreita com o
intuito de arrancar os aplausos da multidão, e, sim, agradar o Senhor. Ele
procede assim com vistas a convocar os mestres ambiciosos a
comparecerem diante do trono do juízo divino, os quais haviam se
intoxicado com as glorificações do mundo e em nada mais pensavam; e ao
mesmo tempo admoestar os coríntios quanto à futilidade daquele vão
aplauso arrancado pela elegância de expressão e vã ostentação. Ao mesmo
tempo, ele descerra nestas palavras a imperturbabilidade de sua própria
consciência, porquanto se aventura a antecipar, destemidamente, o juízo de
Deus. Pois a razão por que os ambiciosos tentavam encomendar-se aos
olhos do mundo consiste em que nunca tinham aprendido a devotar-se a
Deus, e nunca tinham posto diante de seus olhos o reino celestial de Cristo.
Por conseguinte, assim que Deus se deixa ver, esse tresloucado desejo de
conquistar a aprovação humana se desvanece.
9. Porque somos cooperadores de Deus. Aqui temos o melhor
argumento. Estamos engajados nas lides do Senhor, e é a ele que
consagramos nossos labores. Portanto, visto ser fiel e justo, ele não nos
decepcionará no tocante a nossa remuneração. Por essa razão, a pessoa que
olha para o ser humano e espera dele sua remuneração está cometendo um
grave erro. Aqui temos um admirável enaltecimento do ministério, ou, seja,
que quando Deus realiza a obra inteiramente movido por si mesmo, ele nos
chama, insignificantes mortais20 que somos, para sermos seus coadjuvantes
e nos usa como instrumentos. Certamente que a perversão que os papistas
fazem deste texto com o fim de estabelecer o livre-arbítrio vai além de toda
medida da estupidez, porquanto Paulo está aqui ensinando, não que os
homens sejam capazes de efetuar algo por suas próprias faculdades
naturais, mas que o Senhor age através deles por sua mera graça. Quanto à
explicação que alguns dão de que Paulo, sendo um operário de Deus, era um
cooperador junto a seus colegas, isto é, os demais mestres, em minha
opinião este ponto de vista parece dissonante e forçado; aliás, nenhuma
razão nos compele a dar guarida a uma distinção tão engenhosa. Pois o
seguinte concorda com a intenção do apóstolo, a saber: quando é função
própria de Deus construir seu templo ou cultivar sua vinha, ele convoca
ministros para que sejam cooperadores com ele, pois dos quais somente ele
trabalha; mas, ao mesmo tempo, de tal maneira que, por sua vez, eles
trabalham com ele visando a um fim comum. No tocante à remuneração das
obras, vejam-se minhas Institutas, 3.18.21
Lavoura de Deus, edifício de Deus. Estas expressões podem ser
explicadas de duas maneiras. Podem ser tomadas ativamente, neste sentido:
“Vós fostes plantados no campo do Senhor mediante o esforço de outras
pessoas, de maneira que o Pai celestial mesmo é o legítimo Agricultor e o
Autor desta plantação. Além disso, fostes edificados por pessoas, de
maneira que o Senhor mesmo é o legítimo Mestre de obra.22 Ou poderiam
ser tomadas passivamente, assim: “Nós trabalhamos em cultivá-lo, em
semear a Palavra de Deus em vós e em regar. Todavia, não fizemos tal coisa
por nossa própria causa, ou para que o fruto venha a ser nosso; senão que
devotamos nosso serviço ao Senhor. Em nosso anseio de ver-vos
edificados, não fomos impelidos a levar em conta nossas vantagens
pessoais, mas pela preocupação de ver em vós uma lavoura e um edifício de
Deus.
A segunda interpretação parece-me ser a melhor. Porque entendo Paulo
como que desejando expressar aqui que os genuínos ministros não
trabalham para si próprios, mas para o Senhor. Daqui se segue que os
coríntios estavam equivocados ao se sujeitarem aos homens,23 quando de
direito pertenciam exclusivamente a Deus. E em primeiro plano ele de fato
os denomina de “lavoura de Deus”, mantendo a metáfora já iniciada; e daí, a
fim de operar a transição e ampliar a discussão, ele emprega outra metáfora,
a saber, a arquitetura.24

10. Segundo a graça de Deus que me foi dada, como sábio mestre de obra lancei o
fundamento, e outro edifica sobre ele. Mas cada um deve prestar atenção como edifica
sobre ele.
11. Porque ninguém pode lançar outro fundamento além do que já está posto, o qual é
Jesus Cristo.
12. Ora, se o que alguém edificar sobre o fundamento for ouro, prata, pedras preciosas,
madeira, feno, restolho,
13. a obra de cada um se manifestará, porque o dia a declarará, pois será revelada pelo
fogo; e o fogo provará de que gênero é a obra de cada um.
14. Se a obra que alguém edificou [sobre o fundamento] permanecer, esse receberá
galardão.
15. Se a obra de alguém for queimada, esse sofrerá perda; mas ele mesmo será salvo,
todavia como que através do fogo.

10. Ut sapiens architectus, secundum gratiam Dei mihi datam, fundamentum posui, alius
autem superædificat: porro unusquisque videat, quomodo superædificet.
11. Fundamentum enim aliud nemo potest ponere, præter id quod positum est, quod est
Iesus Christus.
12. Si quis autem superstruat super fundamentum hoc aurum, argentum, lapides
pretiosos, ligna, fœnum, stipulam,
13. Cuiuscunque opus manifestum fiet: dies enim manifetabit, quia in igne revelabitur, et
cuiuscunque opus quale sit, ignis probabit.
14. Si cuius opus maneat quod superædificaverit, mercedem accipiet.
15. Si cuius opus arserit, jacturam faciet: ipse autem salvus fiet, sic tamen tanquam per
ignem.25

10. Como sábio arquiteto. Esta é uma metáfora muitíssimo apropriada, e


por isso ocorre com freqüência nas Escrituras, como veremos mais adiante.
Entretanto, aqui o apóstolo declara sua própria fidelidade pessoal com
muita confiança e segurança. Tal afirmação tinha de ser feita, não só por
causa das calúnias dos ímpios, mas também em razão do orgulho dos
coríntios, que já tinham começado a tratar sua doutrina com desdém. Por
isso, quanto mais o empurravam para baixo, mais alto ele subia; e falando
como se estivesse num púlpito altaneiro, então proclama26 que fora posto
entre eles como o primeiro mestre de obra de Deus; e, ao lançar os
fundamentos, ele cumpria este papel com sabedoria, e deixa para outros a
continuação nos mesmos moldes e a completação da superestrutura,
considerando como padrão a obra lançada sobre os fundamentos.
Observemos que Paulo diz essas coisas, primeiramente tendo em vista o
enaltecimento de sua doutrina, a qual ele via sendo menosprezada pelos
coríntios; e, em segundo lugar, com o propósito de refrear a insolência de
outros que, saindo em busca de distinção, afetavam um novo método de
ensino. Portanto, ele os admoesta a nada intentarem temerariamente no
edifício de Deus. Ele os proíbe de fazerem duas coisas: que não se
aventurem a pôr outro fundamento; e que não ergam uma superestrutura
que esteja fora de conformidade com o fundamento.
Segundo a graça. Ele sempre se porta com muita diligência no sentido
de não usurpar para si a menor parcela daquela glória que pertence a Deus.
Pois ele restitui tudo a Deus, e não deixa para si nada senão o fato de ser ele
um mero instrumento. Mas enquanto humildemente se submete assim a
Deus, indiretamente reprova a arrogância daqueles que não se preocupavam
se estavam ou não obscurecendo a graça de Deus,27 contanto que eles
mesmos gozassem de bom conceito. E ainda insinua que nessa fútil
ostentação, pela qual vieram a ser muito admirados, não havia a menor
parcela da graça do Espírito. No tocante a ele mesmo, com lisura
desvencilha-se do desdém humano sobre a base de que estivera sob a
influência divina.28
11. Porque ninguém pode lançar outro fundamento. Esta afirmação
contém duas partes: em primeiro lugar, que Cristo é o único fundamento da
Igreja; e, em segundo lugar, que os coríntios tinham sido solidamente
fundados sobre Cristo mediante a pregação de Paulo. Por isso, era
necessário que fossem reconduzidos exclusivamente a Cristo, pois seus
ouvidos sentiam agudos comichões por novidades. Não era uma questão de
somenos importância que Paulo fosse conhecido como o principal e (se
assim posso afirmar) fundamental mestre de obra, de cuja doutrina os
coríntios não podiam afastar-se sob pena de abandonar o próprio Cristo.
Em suma, a Igreja deve por todos os meios estar plena e definitivamente
fundamentada exclusivamente em Cristo, e que Paulo desempenhava seu
papel nesta esfera tão fielmente, que nada se podia encontrar em seu
ministério que estivesse em carência. Segue-se que, quem quer que viesse
após ele, não poderia servir ao Senhor em sã consciência, ou ser ouvido
como ministro de Cristo, de algum outro modo que não fosse se esforçando
em conformar sua doutrina à dele, e manter o fundamento que ele
estabelecera.
Daqui inferimos que, aqueles que não são obreiros fiéis na edificação da
Igreja, ao contrário tudo fazem para dispersá-la [Mt 12.30], em vez de serem
ministros fiéis, não se preocupando em almejar a conformação a sua
doutrina e seguir de perto um bom princípio a fim de tornar perfeitamente
evidente29 que não se ocupam com novidades. Podemos concluir que esses
não estão trabalhando fielmente para a edificação da igreja, mas que são
seus demolidores. Pois o que é mais destrutivo do que confundir os crentes
bem fundamentados na sã doutrina com um novo gênero de ensino, de
modo que não sabem com certeza onde estão ou para onde vão? Por outro
lado, a doutrina fundamental, que não pode ser subvertida, é aquela que
aprendemos de Cristo. Porquanto Cristo é o único fundamento da Igreja. Não
obstante, muitos são os que usam o nome de Cristo como pretexto e
arrancam toda a verdade de Deus pelas raízes.30
Observemos, pois, de que maneira a Igreja é corretamente edificada
sobre Cristo, ou, seja, só quando ele é estabelecido para justiça, redenção,
santificação, sabedoria, satisfação, purificação, em suma, como vida e glória;
ou, se alguém o preferir de forma mais breve, quando ele é proclamado de tal
forma que seu ofício e influência são entendidos em conformidade com o
que se encontra expresso no final do primeiro capítulo [1Co 1.30]. Em
contrapartida, se Cristo for conhecido só em algum grau, e for chamado
Redentor apenas nominalmente, enquanto que, ao mesmo tempo, a justiça,
a santificação e a salvação forem buscadas em outras fontes, ele é lançado
fora do fundamento e pedras espúrias31 são postas em seu lugar. Temos um
exemplo disso no procedimento dos papistas, quando roubam a Cristo de
quase todos seus ornamentos, e não lhe deixam quase nada senão um mero
nome. Tais pessoas, pois, não estão de forma alguma sendo estabelecidas
em Cristo. Ora, visto que Cristo é o fundamento da Igreja em razão de ser ele
a única fonte de salvação e vida eterna, em razão de que é nele que
conhecemos Deus o Pai e em razão de se achar nele a fonte de todas nossas
bênçãos, então, se ele não for reconhecido como tal, imediatamente cessa de
ser o fundamento.
Pode-se, porém, perguntar se Cristo é uma mera parte, ou se ele é o
próprio originador da doutrina sobre a salvação, porquanto o fundamento é
apenas uma parte do edifício. Porque, se tal é o caso, os crentes fariam de
Cristo meramente o ponto de partida, e seriam perfeitos sem ele. Ora, de fato
é isso que Paulo parece sugerir. Minha resposta é que este não é o
significado do que ele diz, de outra sorte estaria se contradizendo ao dizer
em Colossenses 2.3 que “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento
estão escondidos nele”. Portanto, a pessoa que tem “aprendido Cristo” [Ef
4.20] já se acha plenificada de toda a doutrina celestial. Visto, porém, que o
ministério de Paulo visava mais a estabelecer os coríntios do que a erguer
em seu meio a parte mais alta do edifício, ele apenas mostra aqui o que já
fizera, a saber, que proclamara Cristo em sua pureza. Por essa razão,
pensando no que fizera, Paulo o denomina de o fundamento, enquanto, ao
mesmo tempo, ele com isso não o exclui do resto do edifício. Em outros
termos, Paulo não põe algum outro tipo de doutrina em contraste com o
conhecimento de Cristo; ele está, em vez disso, realçando a relação existente
entre ele mesmo [Cristo] e os ministros.
12. Mas se alguém edifica sobre este fundamento. Ele continua
persistindo na metáfora. Não era suficiente que o fundamento fosse
estabelecido, se toda a superestrutura não lhe correspondesse. Porque, já
que seria absurdo usar material inferior numa fundação de ouro, é
igualmente um crime hediondo sepultar Cristo sob a massa de doutrinas
estranhas.32 Portanto, Paulo quer dizer por “ouro, prata e pedras preciosas a
doutrina digna de Cristo e se a natureza de uma tal superestrutura não
corresponde a esse fundamento. Além do mais, não imaginemos que essa
doutrina seja extraída de outras fontes além de Cristo, mas, ao contrário,
devemos entender que temos de continuar proclamando Cristo, até que o
próprio edifício se complete. Contudo, temos de prestar atenção na ordem
de fazer as coisas, começando com a doutrina geral e os artigos mais
essenciais, como os fundamentos, e em seguida continuar com reprovações,
exortações e tudo quanto se faz necessário para a perseverança, a
confirmação e o progresso.
Visto que há pleno acordo sobre o que Paulo quis dizer até aqui, sem
qualquer controvérsia, segue-se, por outro lado, que a idéia que é expressa
aqui como “madeira, restolho e feno” não corresponde ao fundamento, isto é,
como é engendrado pela mente humana e nos é empurrado como se fosse
oráculo de Deus.33 Porquanto Deus quer que sua Igreja seja edificada com
base na genuína pregação de sua Palavra, não com base em ficções
humanas; de cuja sorte é também aquilo que não tem qualquer tendência
para a edificação, como, por exemplo, as questões especulativas [1Tm 1.4],
que comumente contribuem mais para a ostentação, ou algum louco desejo,
do que para a salvação dos homens.
Ele os previne de que toda a obra humana um dia manifestará sua
qualidade; mesmo que por algum tempo ela se oculte. É como se ele
quisesse dizer: “Pode ser que os obreiros sem princípios por algum tempo
enganem, de modo que o mundo não perceba o quanto cada um trabalhou
fiel ou fraudulentamente. Mas o que agora se acha, por assim dizer,
submerso em trevas, deverá necessariamente vir à luz; e o que agora é
glorioso aos olhos dos homens, deverá ser destruído diante da face de
Deus, e será considerado como algo sem valor.”
13. Porque o dia a declarará. A Vulgata traz “o dia do Senhor”.34 Mas é
provável que o genitivo tenha sido adicionado por alguém à guisa de
explicação. Pois o significado está inquestionavelmente completo sem tal
adição. Porque a designação “o dia” é com propriedade aplicada ao tempo
em que as trevas e a obscuridade forem dissipadas e a verdade for trazida à
luz. Portanto, o apóstolo declara que não pode viver sempre escondido
quem realiza a obra do Senhor fraudulentamente, nem quem cumpre
fielmente seus deveres. É como se quisesse dizer: “As trevas nem sempre
prevalecerão; no fim a luz brilhará e deixará tudo a descoberto.” Reconheço
que esse é “o dia do Senhor”, não o do homem. Mas a metáfora é mais
agradável se lermos simplesmente “o dia”, porque Paulo insinua, dessa
maneira, que os genuínos servos de Deus nem sempre se distinguem
devidamente dos falsos obreiros, porque os pontos bons e maus são
encobertos pelo manto da noite; todavia, essa noite não durará para sempre.
Porque a ambição é cega, a generosidade humana é cega, o aplauso do
mundo é cego, porém Deus um dia dissipará essas trevas, a seu próprio
tempo. Atentemos bem para o fato de que Paulo sempre demonstra possuir
aquela confiança que uma boa consciência produz; e com uma incontestável
grandeza de mente, ele despreza os juízos perversos. Ele assim procede,
primeiramente, chamando de volta os coríntios, da ambiciosa busca da
aprovação humana para um saudável padrão de julgamento; e, em segundo
lugar, para estabelecer a fidelidade de seu próprio ministério.
Porque será revelada pelo fogo. Tendo falado da doutrina em
linguagem metafórica, agora aplica novamente a linguagem metafórica aos
meios reais pelos quais a doutrina é examinada chamando-os de fogo, para
que as partes correspondentes da comparação se harmonizassem entre si. O
fogo, pois, subentende aqui o Espírito do Senhor que, por meio de seu
exame, testifica que a doutrina se assemelha ao ouro e igualmente se
assemelha ao restolho. Quanto mais próxima a doutrina legada por Deus é
levada para perto desse fogo, mais evidente se fará. Em contrapartida, o que
é produzido nas mentes humanas se desvanecerá imediatamente,35 como o
restolho ou a palha é consumida pelo fogo. Tudo indica que aqui há também
uma alusão a “o dia”, conforme já mencionei. É como se ele dissesse:
“Naquele dia, as coisas que a fútil ambição ocultou entre os coríntios, como
uma negra noite, serão trazidas para a luz pelo esplendor do sol. Ainda
mais, haverá concomitantemente um poderoso calor, não só para dissipar e
purificar as impurezas, mas também para queimar todos os erros.” Porque,
embora os homens acreditem que possuem vívidos poderes de
discernimento, sua inteligência, não obstante, não penetra além da
superfície, a qual, geralmente, não possui bastante profundidade. O apelo do
apóstolo visa tão-somente àquele dia que prova tudo, no mais profundo de
sua existência, não meramente por seu resplendor, mas também por sua
chama abrasadora.
14. Se a obra de alguém permanecer, esse receberá galardão. Sua
intenção aqui é dizer que não passa de tolo aquele que depende da
avaliação humana, ao ponto de considerar suficiente ser aprovado pelos
homens, porque então a obra receberá louvor e recompensa somente depois
que tiver sido provada no dia do Senhor. Portanto, Paulo conclama os
ministros genuínos a ter seus olhos postos naquele dia. (Acerca dos
galardões, vejam-se minhas Institutas 3.18.) Pois ele declara, ao usar o verbo
permanecer, que as doutrinas voam com os ventos como se não tivessem
estabilidade alguma, ou, melhor ainda, elas cintilam por um curto tempo
como bolhas [de sabão contra o sol], até serem trazidas ao tribunal de um
teste severo. Disso se segue que todos os aplausos do mundo têm de ser
considerados como algo desprezível, porque o juízo divino logo exporá sua
vacuidade.
15. Se a obra de alguém se queimar. É como se ele dissesse: “Que
ninguém se gabe demais, porque, segundo a opinião do homem, ele está
classificado entre os arquitetos mais eminentes. Pois tão logo chegue a
aurora, todo seu trabalho se reduzirá completamente a nada, isso se não for
aprovado pelo Senhor.” Esta, pois, é a regra pela qual o ministério de alguém
deve ser conformado.
Alguns explicam isso como uma referência à doutrina, de modo que
ζημιουσθαι36 significa meramente perecer, e então o que imediatamente segue
eles o vêem como uma referência ao fundamento, porque o grego θεμελιος
(fundamento) é do gênero masculino. Entretanto, esses intérpretes não
prestam bastante atenção ao contexto como um todo. Pois nesta passagem
Paulo não está sujeitando sua própria doutrina a um teste, mas a de
outrem.37 Portanto, a menção do fundamento neste ponto está fora de
propósito. Ele já disse que “a obra de cada um será provada pelo fogo.”
Então passa a uma alternativa, a qual não deve retroceder além daquela
afirmação geral. Mas é verdade que Paulo ali estava falando apenas do
edifício que fora erigido sobre o fundamento. Já na primeira alternativa ele
prometeu galardão aos bons arquitetos, cuja obra terá sido aprovada.
Portanto, a antítese na segunda alternativa se adequa muito bem, ou, seja,
os que tiverem misturado restolho, ou madeira, ou palha serão privados do
louvor pelo qual tanto esperaram.
Mas esse mesmo será salvo. Não há dúvida de que Paulo está falando
dos que, embora retenham sempre o fundamento, misturam feno com ouro,
restolho com prata, madeira com pedras preciosas. Em outros termos, aqueles
que edificaram sobre Cristo, porém, em razão da enfermidade da carne,
deram espaço a algum conceito humano, ou, motivados pela ignorância, se
desviaram, até certo ponto, da estrita pureza da Palavra de Deus. Muitos dos
santos fizeram isso – Cipriano, Ambrósio, Agostinho e outros. O leitor pode
adicionar também, caso o queira, os que se acham mais próximos de nossos
próprios dias – Gregório e Bernardo, bem como outros como eles –, cujo
propósito era edificar sobre Cristo, mas que, infelizmente, às vezes
retrocediam do correto sistema de construir.
Paulo afirma que pessoas como essas podem ser salvas, porém sobre
esta condição: se o Senhor apagar sua ignorância e purificá-la de toda
impureza; e isso é o que significa a frase “como por meio do fogo”. Portanto,
sua intenção é sugerir que ele mesmo não os priva da esperança da
salvação, contanto que espontaneamente aceitem a perda da obra que
empreenderam e sejam purificados pela mercê divina, tal como o ouro é
refinado na fornalha. Além do mais, ainda que Deus às vezes purifique seu
povo por meio de sofrimentos, tomo o termo fogo aqui no sentido de o teste
feito pelo Espírito. É assim que Deus corrige e destrói a ignorância de seu
povo, pela qual pode ser controlado por algum tempo. Sei muito bem que
muitos aplicam isso à cruz, porém estou certo de que minha interpretação
satisfará a todos quantos desfrutam de são juízo.
Podemos concluir forjando uma réplica, breve, a ser direcionada para os
papistas que usam esta passagem em apoio do purgatório. Seu ponto de
vista é que os pecadores, a quem Deus perdoa, passam pelo fogo a fim de
que sejam salvos. Então, por esse caminho eles sofrem o castigo de Deus a
fim de que sua justiça seja aperfeiçoada. Prefiro omitir aqui seus
inumeráveis comentários sobre o montante de castigo e sobre o livramento
dele. Pergunto, porém: quem de fato são aqueles que passam pelo fogo?
Paulo está peremptoriamente falando somente de ministros. “Mas”, dizem
eles, “a mesma consideração se aplica a todos.” Como a dizer: Deus é
certamente o melhor juiz, não nós!38 Mas, mesmo que lhes fizesse tal
concessão, quão infantilmente se aferram à palavra fogo. No entanto, qual é
o propósito do fogo39 senão o de consumir o feno e a palha e, em
contrapartida, o de provar o ouro e a prata? Querem dizer, porventura, que
as doutrinas são discernidas pelo fogo de seu purgatório? Quem ainda não
descobriu o quanto a verdade se distingue da falsidade? Além disso, quando
esse dia chegará, em cuja luz a obra de cada um será exibida? Começou com
o princípio do mundo e prosseguirá até seu término? Se restolho, feno, ouro
e prata são empregados metaforicamente, que limites a conceder, que sorte
de correspondência haverá entre as diferentes sentenças, se fogo não é
usado metaforicamente? Nem mais um passo com tais futilidades, porque
seus absurdos prontamente saltam aos olhos! Quanto a mim, acredito que a
real intenção do apóstolo já ficou sobejamente estabelecida.

16. Não sabeis vós que sois templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?
17. Se alguém macular o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus é
santo, templo esse que sois vós.
18. Que ninguém a si mesmo se engane. Se alguém dentre vós se tem por sábio neste
mundo, que se faça de tolo para ser sábio.
19. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus. Pois está escrito: Ele
apanha os sábios em sua própria astúcia.
20. E outra vez: o Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que são fúteis.
21. Por isso, que ninguém se glorie nos homens. Porque todas as coisas são vossas;
22. seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam
coisas presentes, sejam coisas por vir; tudo é vosso;
23. e vós sois de Cristo; e Cristo é de Deus.

16. An nescitis, quod templum Dei estis et Spiritus Dei habitat in vobis?
17. Si quis templum Dei corrumpit,40 hunc perdet Deus. Templum enim Dei sanctum est,
quod estis vos.
18. Nemo se decipiat, si quis videtur sapiens esse inter vos: in sæculo hoc stultus fiat,41
ut fiat sapiens.
19. Sapientia enim mundi huius stultitia est apud Deum. Scriptum est enim (Job v.13)
Deprehendens sapientes in astutia sua.
20. Et rursum (Ps.xciv.11) Dominus novit cogitationes sapientum vanas esse.
21. Proinde nemo glorietur in hominibus, omnia enim vestra sunt;
22. Sive Paulus, sive Apollos, sive Cephas, sive mundus, sive vita, sive mors, sive
præsentia, sive futura: omnia vestra sunt,
23. Vos autem Christi; Christus autem Dei.

16. Não sabeis vós? Após apresentar diretrizes aos mestres sobre seu
trabalho, Paulo então se volta para os discípulos, para que eles também
prestassem muita atenção. Ele dissera aos mestres: “Vós sois os mestres de
obra da casa de Deus.” E agora ele diz ao povo: “Vós sois o templo de Deus.
É vossa a responsabilidade de cuidar para de alguma forma não serdes
contaminados.” Ora, o que ele tencionava42 é que os coríntios não se
entregassem indignamente nas mãos dos homens. Na verdade, ao falar-lhes
dessa forma, ele está lhes conferindo uma rara honra, porém seu intuito é
mostrar-lhes mais claramente sua culpa. Porque, já que Deus os consagrara
como templos dele, concomitantemente os designara como guardiães de seu
templo. Portanto, ao se entregarem aos homens, estavam violando um
depósito sagrado. Ele denomina a todos eles, juntos, de um templo de Deus.
Porque cada crente em particular é uma pedra viva para a ereção do edifício
de Deus. Entretanto, indivíduos também são às vezes chamados templos.
Um pouco depois, Paulo usa novamente a mesma idéia, mas com outro
propósito. Naquela passagem, ele está tratando da castidade; aqui, porém,
ele está apelando-lhes para que mantivessem até o fim sua fé na riqueza de
Cristo, tão-somente de Cristo. O uso da pergunta lhe empresta maior realce,
porque, ao recorrer a eles como testemunhas, está sugerindo que lhes está
falando acerca de algo de que estavam bem cientes.
E o Espírito de Deus. Aqui temos a razão por que são o templo de Deus.
Por isso é preciso ler o e como se fosse porque. Isso é bastante comum; por
exemplo, onde o poeta diz: “Tendes ouvido e foi anunciado”, Paulo diz: “Sois
o templo de Deus porque ele habita em vós por intermédio de seu Espírito;
porquanto nenhum lugar impuro pode ser habitação de Deus.” Nesta
passagem temos clara evidência para afirmar a divindade do Espírito Santo.
Porque, se ele fosse um ser criado, ou simplesmente algo a nós outorgado,
então não poderia, ao habitar-nos, fazer de nós templos de Deus. Ao mesmo
tempo, entendemos como Deus se comunica conosco e o elo pelo qual
somos ligados a ele, a saber, derramando sobre nós o poder de seu Santo
Espírito.
17. Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá. Ele agrega
uma grave advertência: uma vez que o templo deve ser sacratíssimo, então
quem quer que o saqueie, não escapará impunemente. No entanto, o gênero
de violação do qual ele agora fala consiste em que os homens se põem no
lugar de Deus, de modo a se tornarem senhores na Igreja. Porque, assim
como a fé, que se devota à doutrina pura de Cristo, é denominada em outro
lugar de “castidade espiritual” [2Co 11.2], ela também nos consagra para
aquela adoração a Deus que é correta e pura. Pois assim que somos
atingidos pelas tramas humanas, o templo de Deus é poluído como que por
alguma imundícia, e a razão disso é que o sacrifício da fé, o qual Deus
declara ser exclusivamente seu, passa a ser oferecido às criaturas.
18. Que ninguém se engane. Aqui ele põe seu dedo na raiz do problema,
visto que todos os danos eram oriundos do elevado conceito que nutriam
por si mesmos. Portanto, ele os adverte energicamente a não se deixarem
levar por uma idéia errônea, ou, seja, reivindicando alguma sabedoria como
se a mesma fosse oriunda deles mesmos. O que ele quer transmitir é que
todos quantos confiam em seu próprio entendimento estão enganando-se.
Em minha opinião, porém, ele aqui se dirige tanto aos ouvintes quanto aos
mestres. Pois os ouvintes tinham melhor disposição para emprestar um
ouvido43 aos homens ambiciosos. E visto que tinham um paladar tão
fastidioso, de modo que a simplicidade do evangelho se tornou insípida a
seu paladar, enquanto que os mestres, querendo causar boa impressão, de
outra coisa não cuidavam senão aparecer. Portanto, Paulo adverte a ambos
[mestres e alunos]: “Que nenhum de vós se exalte diante de sua própria
sabedoria; ao contrário, aquele que acredita ser sábio, que se faça de tolo
neste mundo.” Colocando de outra forma: “Aquele que desfruta de posição
de destaque no mundo em razão da reputação de possuir sabedoria, livre-se
disso, esvazie-se44 de si mesmo e se faça de tolo a seus próprios olhos.”
Além do mais, nestas palavras o apóstolo não está pedindo-nos que
renunciemos totalmente aquela sabedoria que é implantada em nós pela
natureza, ou adquirida por longa prática, mas simplesmente nos pede que a
sujeitemos ao serviço de Deus, para que não possuamos nenhuma outra
sabedoria senão aquela que é derivada de sua Palavra. Pois este é o
significado de “tornar-se tolo neste mundo” ou a nossos próprios olhos,
significa: quando estamos preparados a entregar-nos a Deus e a abraçar com
temor e reverência tudo quanto ele nos ensina, em vez de seguirmos o que
nos parece plausível.45
O significado da frase “neste mundo” é como se ele dissesse: “segundo o
critério ou a opinião do mundo.” Pois esta é a sabedoria do mundo: se nos
considerarmos auto-suficientes, capazes de aconselhar em todas as
questões [Sl 13.2], de governar-nos a nós mesmos, de administrar tudo o
que temos de fazer – se não dependermos de ninguém46 e se não
precisarmos que alguém nos guie, mas que somos capazes de controlar
nossos próprios atos.47
Portanto, por outro lado, “tolo neste mundo” se refere a alguém que
renuncia a seu próprio entendimento e, como se fosse cego, se permite guiar
pelo Senhor; que, desconfiando de si mesmo, se inclina inteiramente sobre o
Senhor; que deposita nele toda sua sabedoria; que se rende a Deus em
docilidade e submissão. É necessário que nossa sabedoria dessa forma se
desvaneça a fim de que a vontade de Deus possa exercer autoridade sobre
nós; e que nos esvaziemos de nosso próprio entendimento, para que
venhamos a encher-nos da plenitude da sabedoria de Deus. Ao mesmo
tempo, “neste mundo” pode ou ter conexão com a primeira parte do
versículo, ou com a segunda. Entretanto, visto que o significado não tem
grande diferença, deixo ao leitor o exercício de sua própria escolha.
19. Porque a sabedoria deste mundo. Este é um argumento extraído de
coisas opostas. A confirmação de uma significa a destruição da outra.
Portanto, uma vez que a sabedoria deste mundo é loucura aos olhos de
Deus, segue-se que a única maneira de podermos ser sábios aos olhos de
Deus é tornando-nos loucos aos olhos do mundo. Já explicamos [1.20] o
que Paulo quis dizer com a expressão “sabedoria deste mundo”: porquanto
a perspicácia natural é um dom de Deus, e as artes liberais, e todas as
ciências por meio das quais a sabedoria é adquirida, são também dons de
Deus. Tudo isso, porém, tem seus limites definidos, porquanto não podem
penetrar no reino celestial de Deus. Conseqüentemente, todas essas
ciências devem ocupar a posição de servas, não de senhoras. Além disso,
elas devem ser vistas como inúteis e indignas até que estejam
completamente subordinadas à Palavra e ao Espírito de Deus. Mas se, em
contrapartida, elas se puserem contra Cristo, que então sejam consideradas
como pestes perigosas. E se seus possuidores continuarem acreditando que
são capazes de por si mesmos realizar algo, então que sejam consideradas
como o pior de todos os obstáculos.48
Portanto, a sabedoria deste mundo é, na conceituação de Paulo, aquilo
que energicamente assume para si a autoridade e não permite ser regulado
pela Palavra de Deus, e nem se deixa humilhar para que esteja
completamente sujeito a Deus. Portanto, até que suceda de uma pessoa
reconhecer que nada sabe exceto o que aprendeu de Deus e, tendo
renunciado seu próprio entendimento, se resigna sem reserva à direção de
Cristo, tal pessoa é sábia segundo os padrões do mundo, no entanto é tola
na avaliação de Deus.
Pois está escrito: Ele apanha os sábios em sua própria astúcia. Paulo
confirma o que acaba de afirmar à luz de dois textos da Escritura. O primeiro
é extraído de Jó 5.13, onde a sabedoria de Deus é exaltada com base no
seguinte: nenhuma sabedoria terrena pode permanecer na presença da
sabedoria de Deus. Não há dúvida de que nesse contexto o profeta está
falando daqueles que são astutos e insidiosos. Visto, porém, que a
sabedoria do homem, quando divorciada de Deus,49 é invariavelmente a
mesma, Paulo a aplica neste sentido: embora os homens adquiram muita
sabedoria por seus próprios esforços, isso não tem o menor valor aos olhos
de Deus. O segundo é o Salmo 94.11, onde, após atribuir a Deus a função e a
autoridade para ensinar a todos, Davi acrescenta que “O Senhor conhece os
pensamentos do homem, que são pensamentos vãos.” Portanto, não
importa quão valorizados tais pensamentos sejam por nós, segundo o
critério divino são fúteis. Esta é uma excelente passagem para humilhar a
confiança da carne, pois aqui Deus do alto declara que tudo o que a mente
humana concebe e propõe é simples nulidade.50
21. Por isso, ninguém se glorie nos homens. Visto que nada é mais vão
do que o homem, quão pouca segurança há em depender-se de uma sombra
evanescente! Daí, ele faz uma válida inferência da oração precedente ao dizer
que não se deve gloriar nos homens visto que ali vemos como o Senhor
despe a todos os homens das bases para ostentação. Entretanto, esta
conclusão depende de tudo o que ensinou no argumento precedente, como
logo veremos. Pois já que pertencemos exclusivamente a Cristo, Paulo está
plenamente certo ao ensinar-nos que qualquer preeminência que
porventura seja atribuída ao homem, pela qual a glória de Cristo é
prejudicada, envolve sacrilégio.
22. Todas as coisas são vossas. Ele continua mostrando qual o lugar e a
condição que os mestres devem ocupar,51 a saber, que não denigram um
mínimo grau sequer a singular autoridade de Cristo em seu ofício de Mestre
único. Portanto, visto que Cristo é de fato o único Mestre da Igreja; e visto
que ele só, e em todas as circunstâncias, deve ser ouvido, é necessário fazer
distinção entre ele e os demais. Cristo mesmo também deu testemunho a
seu próprio respeito em termos similares [Mt 23.8], e nenhum outro nos é
recomendado pelo Pai com esta honrosa declaração:52 A ele ouvi [Mt 17.5].
Portanto, visto que unicamente ele é investido de autoridade para governar-
nos por meio de sua Palavra, Paulo diz que os outros homens são nossos; em
outros termos, que nos são destinados por Deus a fim de que possamos
fazer uso deles; mas não para que exerçam domínio sobre nossas
consciências. E assim ele mostra, por um lado, que não são inúteis; e, por
outro, que ele os mantém em seu próprio lugar para que não se exaltem e se
ponham em oposição a Cristo.
Pelo que toca à presente passagem, ele faz uso de hipérbole, no que
tange à morte e à vida, e assim por diante. Entretanto, ele tinha em vista
argumentos do maior para o menor, por assim dizer, como segue: “Visto que
Cristo pôs em sujeição a nós a vida, a morte e tudo mais, pode que
duvidemos se ele tornou os homens também sujeitos a nós, a fim de
auxiliar-nos por meio de suas administrações; certamente não para nos
oprimir com tirania.”
Ora, se à luz desse fato alguém objetar, dizendo que os escritos de Paulo
e Pedro também estão sujeitos a nosso julgamento, visto que ambos eram
homens, e que não estão isentos da sorte comum dos demais, minha
resposta é que, enquanto Paulo de modo algum poupa a si e a Pedro, ele
aconselha os coríntios a distinguirem entre a pessoa como indivíduo e a
dignidade e caráter do ofício. É como se ele quisesse dizer: “Quanto a mim,
pessoalmente, uma vez que sou homem, desejo ser julgado somente como
homem, a fim de que só Cristo venha a ser o único a ter a preeminência em
meu ministério.” Entretanto, de um modo geral devemos afirmar53 que todos
quantos exercem o ofício do ministério, do maior ao menor, são nossos, de
modo que somos livres, não para aceitar o que ensinam enquanto não
provarem ser o mesmo derivado de Cristo. Pois todos eles devem ser
provados, e obediência só lhes deve ser prestada quando tiverem
demonstrado que são genuínos servos de Cristo. No que diz respeito a
Pedro e Paulo, porém, o Senhor deu sobejas evidências, de modo que não
fica qualquer sombra de dúvida de que sua doutrina tem nele sua fonte. Em
conseqüência, quando apreciamos e respeitamos, como declaração do céu,
tudo o que fizeram conhecido, damos ouvido não propriamente a eles, mas
ao próprio Cristo falando neles.
23. Cristo é de Deus. Esta sujeição [de Cristo a Deus] tem referência à
humanidade de Cristo; porque, ao vestir-se com nossa carne, ele assumiu
para si a forma e condição de escravo, de modo que se fez obediente ao Pai
em todos os aspectos [Fp 2.7, 8]. E para que pudéssemos aderir a Deus
através dele, é certo que ele deve ter o Pai por cabeça [1Co 11.2]. Todavia, é
preciso que prestemos atenção no propósito que Paulo tinha em mente
quando adicionou isso. Pois ele nos cientifica que nossa mais plena
felicidade consiste54 em nossa união com Deus, que é o principal bem. Isso
é efetuado de forma concreta quando somos reunidos sob a Cabeça a quem
o Pai celestial estabeleceu sobre nós. Em termos semelhantes, Cristo disse a
seus discípulos [Jo 14.28]: “Regozijai-vos, porque eu vou para o Pai, porque
o Pai é maior do que eu.” Pois ele o levantou como o Mediador através de
quem os crentes podem ir à fonte original de todas as bênçãos. É verdade
que aqueles que se apartam da unidade da Cabeça55 se privam desse grande
benefício. Daí, esta ordem de coisas se ajusta à conexão da passagem – que
esses se sujeitem somente a Cristo os quais desejam permanecer sob a
jurisdição de Deus.

1. “C’est à dire comme à enfans en Christ.” – “Isto é, como a bebês em Cristo.”


2. “Combien qu’il n’y eust en eux aucune efficace de l’Esprit.” – “Ainda que não houvesse neles
nenhuma eficácia do Espírito.”
3. Nosso autor apresenta aqui, como em muitos outros exemplos, a substância da passagem
citada, e não palavras expressas. Na expressão, “como joguete das falácias humanas”, é como se
ele tivesse diante de seus olhos o termo κυβεια – traduzido por nossos tradutores estratagema
(dos homens), o qual, como o próprio Calvino observa quando comenta a passagem, é
“translatum ab aleatoribus, quod inter eos multæ sint fallendi artes” – emprestado dos jogadores de
dados, com suas muitas artes de engano praticadas entre si.
4. “Par pieces et morceaux.” – “Em pedaços e petiscos.”
5. “D’avancer tousiours ses escholiers, et monter plus haut.” – “Estar sempre levando avante
seus alunos e subindo sempre mais alto.”
6. “L’estouffement touteffois venant de leurs affections perverses, surmontoit.” – “A sufocação,
não obstante, procedendo de seus próprios afetos, prevalecia.”
7. “Qui estoyent entr’eux.” – “Que havia entre eles.”
8. “Cette façon de jetter son cœur sur un homme par ambition, est accompagnée d’un sot babil.”
– “Este modo de estabelecer alguém o coração sobre um indivíduo através da ambição é
acompanhado de uma fútil tagarelice.”
9. “Sont vn, ou vne chose.” – “São um, ou uma só coisa.”
10. “Car nous sommes ouuriers avec Dieu, ou, nous ensemble sommes ouuriers de Dieu.” –
“Porque somos trabalhadores com Deus, ou somos cooperadores de Deus.”
11. “Afin que le propos soit moins odieux, et qu’on ne dise qu’il porte enuie aux autres.” – “Para
que o discurso fosse menos ofensivo, e para que ninguém dissesse que ele tinha inveja dos
outros.”
12. Um exemplo do mesmo gênero ocorre em Romanos 12.3. ἑκάστῳ ὡς ο Θεὸς εμερισε μέτρον πίστεως
– “como Deus distribuiu a cada um segundo a medida da fé.” Calvino, ao comentar a passagem,
observa que ela é um exemplo de “anastrophe, seu vocum inversio, pro Quemadmodum
unicuique.” – “anástrofe, ou inversão de palavras para como a cada um.”
13. “Combien aussi il est necessaire qu’elle continue et soit tousiours entretenue.” – “Quão
necessário é também que ela continue e seja sempre mantida.”
14. “Tous les ans.” – “A cada ano.”
15. Nosso autor se refere àquilo para o qual ele, um pouco antes, chamara a atenção (p. 104)
quanto à necessidade de a palavra de Deus continuar sendo administrada.
16. Poderemos encontrar Calvino chamando a atenção para o mesmo tema em extensão
considerável, ao comentar 1 Coríntios 9.1.
17. “Suyuant ceste consideration.” – “De acordo com este ponto de vista.”
18. “Car en ces façons de parler Christ n’est point separé du ministre.” – “Nessas formas de
expressão Cristo não é separado (ou considerado à parte) do ministro.”
19. Calvino mui provavelmente se refere aqui às afirmações feitas por ele ao comentar Gálatas
3.27 nestes termos: “Respondeo, Paulum de Sacramentis bifariam solere loqui. Dum negotium
est cum hypocritis, qui nudis signis superbiunt, tum concionatur, quam inanis ac nihili res sit
externum signum: et in præposteram fiduciam fortiter invehitur. Quare? non respicit Dei
institutionem, sed impiorum corruptelam. Quum autem fideles alloquitur, qui rite utuntur signis,
illa tunc conjungit cum sua veritate, quam figurant. Quare? neque enim fallacem pompam
ostentat in Sacramentis, sed quæ externa ceremonia figurat, exhibet simul re ipsa. Hinc fit, ut
veritas, secundum Dei institutum, conjuncta sit cum signis.” – “Respondo que é costumeiro em
Paulo falar dos sacramentos de duas maneiras distintas. Quando ele enfrenta os hipócritas que
se gloriam nos meros símbolos, nesse caso ele proclama em alto e bom som a futilidade e
ausência de valor do símbolo externo, e denuncia em termos fortes sua absurda confiança. Por
quê? Porque ele tem em vista, não a ordenança divina, mas a corrupção dela feita pelos ímpios.
Quando, em contrapartida, ele se dirige aos crentes que fazem um uso adequado dos símbolos,
nesse caso ele os vê em conexão com a realidade que representam. Por quê? Porque ele não
faz mera exibição de algum falso esplendor porventura pertencente aos sacramentos, mas põe
diante de nossos olhos a realidade que a cerimônia externa representa. Daí suceder que,
concordemente com a designação divina, a realidade é associada com os símbolos.” O mesmo
tema é abordado nas Institutas, Livro III, p. 305.
20. “Poures vers de terre.” – “Meros vermes do pó.”
21. O tema Galardões é amplamente discutido nas Institutas. O leitor achará a expressão
“trabalhadores juntamente com Deus” comentada ali.
22. “Et conducteur de l’œuvre.” – “E condutor da obra.”
23. “De se rendre suiets aux hommes, et attacher là leurs affections.” – “Ao se tornarem sujeitos
aos homens e pondo neles suas afeições.”
24. “De la massonerie, ou charpenterie.” – “Da alvenaria ou carpintaria.”
25. “Par feu, ou parmi le feu.” – “Pelo fogo ou no meio do fogo.”
26. “Il leur fait assavoir, et declare fort et ferme.” – “Ele lhes dá a conhecer e declara forte e
firmemente.”
27. “Ne faisoyent point de conscience d’amoindrir ou offusquer la grace de Dieu.” – “Sem
qualquer escrúpulo de depreciar e obscurecer a graça de Deus.”
28. “Monstrant, quant à luy qu’il a esté poussé et conduit de Dieu, il se defend et maintient contre
tout mepris.” – “Mostrando, quanto a ele próprio, que se deixa guiar e conduzir por Deus, se
guarda e se defende contra todo desdém.”
29. “En sorte qu’on puisse voir a l’œil.” – “De modo a que alguém veja com seus próprios olhos.”
30. “Arrachent et renversent entierement.’ – “Arrancam e subvertem inteiramente.”
31. “Et non convenantes.” – “E não adaptáveis.”
32. “Ce seroit vne chose mal seante que Christ fust suffoqué en mettant et meslant euec luy
quelques doctrines estranges.” – “Era algo mui inconveniente ser Cristo asfixiado, colocando
sobre ele um misto de doutrinas estranhas.”
33. “On veut à force faire receuoir pour oracles et reuelations procedées de Dieu.” – “Eles nos
forçariam a recebê-la como se fossem oráculos e revelações que emanaram de Deus.”
34. É assim em duas versões inglesas antigas. Na versão de Wiclif (1380), a tradução é como
segue: Pois o dia do Senhor declarará. A versão Rheims (1582) lê assim: Pois o dia de nosso Senhor
declarará.
35. “Celle, qui aura esté forgée au cerveau des hommes s’esuanouira tout incontinent, et s’en ira
em fumée.” – “Aquilo que foi forjado no cérebro do homem rapidamente se desvanecerá e se
dissipará como fumaça.”
36. “Le mot Grec suyuant, qui signifie souffrir perte ou dommage.” – “A palavra grega seguinte, a
qual significa sofrer perda ou prejuízo.”
37. “Car ce n’est pas sa doctrine, mais celle des autres que Sainct Paul dit, qui viendra a
l’examen.” – “Pois não é de sua própria doutrina, e, sim, a de outrem, que São Paulo diz que será
provada.”
38. “Je respon, que ce n’est pas à nous.” – “Respondo que não nos compete.”
39. “Car à quel propos est-il yci parlé du feu?” – “Com que propósito ele fala aqui de fogo?”
40. “Viole, ou destruit.” – “Viola ou destrói.”
41. “Si aucvn entre vous cuide estre sage, qu’il soit fait fol en ce monde, afin qu’il soit sage – ou,
sage en ce monde, qu’il soit fait fol, afin, &.” – “Se alguém entre vós parece ser sábio, que se
torne louco neste mundo, para que seja sábio – ou, sábio neste mundo, que se torne louco para
que” etc.
42. “De cest aduertissement.” – “Dessa cautela.”
43. “Trop facilement.” – “Tão prontamente.”
44. “Soit fait fol en soy de son bom gré s’abbaissant, et s’aneantissant soy-mesme.” – “Que se
torne, espontaneamente, um tolo em sua própria estima, aviltando-se e esvaziando-se.”
45. “Bom et raisonnable..” – “Bom e razoável.”
46. “Que de nous-mesmes.” – “Além de nós mesmos.”
47. “Nous semble que nous sommes assez suffisans de nous conduire, et gouuerner nous-
mesmes.” – “Parece-nos que somos plenamente competentes para conduzir-nos e governar-
nos.”
48. “Ce sont de grans empeschements, et bien à craindre.” – “Constituem grandes obstáculos e
devem ser temidas.”
49. “Quand la sagesse de Dieu n’y est point.” – “Quando a sabedoria de Deus não está nela.”
50. A humilhante tendência da afirmação referida é bem realçada por Kettering. (Fuller’s Works,
vol. iv. p. 389.)
51. “C’est à dire, quelle estime on en doit auoir.” – “Equivale dizer, em que estima devem ser
tidos.”
52. “Nul autre ne nous a esté donné du Pere authorizé de ce titre et commandement.” – “Nenhum
outro nos foi dado pelo Pai, autorizado por esta distinção e injunção.”
53. “Pour vne maxime.” – “Como uma máxima.”
54. “Car il nous donne à entendre, et remonstre, que le comble et la perfection de nostre felicité
consiste là.” – “Pois ele nos dá a entender e nos mostra que o auge e perfeição de nossa
felicidade consiste nisto.”
55. “Qui ne retienent ce seul Chef.” – “Que não retêm aquela única Cabeça.”
Capítulo 4

1. Que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos


mistérios de Deus.
2. Além disso, o que se requer dos despenseiros é que cada um seja encontrado fiel.
3. Mas, quanto a mim, pouco me importa que eu seja julgado por vós, ou por juízo
humano; sim, eu mesmo não me julgo.
4. Porque, nada sei contra mim mesmo; mas nem por isso sou justificado, pois quem me
julga é o Senhor.
5. Portanto, nada julgueis antes do tempo, até que o Senhor venha, o qual trará à luz as
coisas ocultas das trevas e manifestará os desígnios ocultos do coração; e então cada
um receberá o louvor de Deus.

1. Sic nos æstimet homo ut ministros Christi, et dispensatores arcanorum Dei.


2. Cæterum in ministris hoc quæritur, ut fidelis aliquis reperiatur.
3. Mihi viro pro minimo est, a vobis diiudicari, aut ab humano die:1 imo nec me ipsum
diiudico.
4. Nullius enim rei mihi sum conscius: sed non in hoc sum justificatus. Porro qui me
diiudicat, Dominus est.
5. Itaque ne ante tempus quicquam iudicetis, donec venerit Dominus, qui et illustrabit
abscondita tenebrarum, et manifestabit consilia cordium; et tunc laus erit cuique a Deo.

1. Que os homens nos considerem. Visto que era um assunto de séria


preocupação ver a igreja entregue a divisões e facções nocivas, em razão dos
gostos e desgostos do povo, Paulo parte para uma discussão mais extensa
sobre o ministério da Palavra. Três coisas precisam ser consideradas aqui
em sua ordem. Primeira, Paulo define o ofício de um pastor da Igreja.
Segunda, ele mostra que não basta que alguém exiba um título, nem mesmo
que enfrente o dever – o requisito é uma fiel administração do ofício.
Terceira, visto que os coríntios tinham um conceito completamente
distorcido2 a seu respeito, ele convoca, a eles e a si próprio, a comparecerem
diante do tribunal de Cristo.
Portanto, em primeiro lugar ele ensina em que estima se deve ter por
cada mestre da Igreja. Ao tratar disso, ele modifica seu discurso de modo
que, por um lado, não se dê pouco crédito à dignidade do ministério, ou,
por outro lado, não se deve designar ao homem além do que é conveniente.
Pois ambas essas posições são extremamente perigosas porque, quando os
ministros são menosprezados, surge também o menosprezo pela Palavra;3
enquanto que, em contrapartida, se lhes é dado mais importância do que
merecem, os ministros abusam de sua liberdade e passam a fazer
precisamente o que apreciam, “agindo displicentemente contra o Senhor”
[1Tm 5.11]. Ora, a moderação de Paulo repousa no fato de os chamar
ministros de Cristo. Ao agir assim, ele pretende dizer-lhes que não devem
ocupar-se de seu próprio trabalho, mas do trabalho do Senhor, o qual os
convocou como seus servos, e igualmente sugere que não foram designados
para governarem a Igreja com autoridade imperiosa, mas para viverem sob a
suprema autoridade de Cristo.4 Em suma, eles são servos, não senhores.
O acréscimo, despenseiros dos mistérios de Deus, descreve o caráter
[genus] do ministério. Com isso ele insinua que a função deles é confinada à
administração dos mistérios de Deus. Em outros termos, eles se dedicam aos
homens, corpo-a-corpo, como dizemos,5 não segundo seus próprios gostos,
mas segundo o Senhor confiou a sua responsabilidade. Ele poderia colocar
desta forma: “Deus os escolheu para serem ministros de seu Filho, para,
através deles, tornar conhecida dos homens sua sabedoria celestial. Por
essa razão, devem restringir-se estritamente a esta tarefa.” Mas tudo indica
que ele está repreendendo indiretamente os coríntios, porque, tendo
negligenciado os mistérios celestiais, passaram a seguir, com extrema
avidez, após coisas estranhas, engendradas pelos homens, e isso em virtude
de avaliarem seus mestres meramente pelos padrões da erudição mundana.
Paulo enaltece o evangelho denominando-o os mistérios de Deus. Além do
mais, visto que os sacramentos se acham conectados a esses mistérios,
como suplementos, segue-se que, aqueles que são responsáveis pela
proclamação da Palavra, também estão autorizados a ministrá-los.
2. Além disso, o que se requer dos ministros.6 É como se quisesse
dizer: “É de pouca serventia ser administrador [dispensator], se a
administração [dispensatio] não for correta.” Ora, a regra para se efetuar uma
administração correta é o administrador portando-se com toda fidelidade.
Temos de prestar cuidadosa atenção a esta passagem a fim de descobrirmos
como, de uma forma arrogante,7 os papistas exigem que tudo o que fizerem,
e tudo o que ensinarem, tem de assumir uma autoridade de lei,
simplesmente sob o pretexto de serem eles chamados ‘pastores’. Longe de
Paulo, porém, sentir-se satisfeito com um simples título. Para ele, nem
mesmo basta a vocação legítima, a menos que a pessoa chamada execute os
deveres do ofício com toda fidelidade. Portanto, sempre que os papistas
põem diante de nó a camuflagem de um título com o fim de manter a tirania
de seus ídolos, nossa resposta deve ser que Paulo requer dos ministros de
Cristo muito mais que isso. Todavia, se tudo for devidamente considerado, o
leitor descobrirá que o papa e seu séquito carecem não só de fidelidade no
desempenho dos deveres do ofício, mas também do próprio ministério.
Não obstante, esta passagem discute o problema não só dos falsos
mestres, mas também de todos aqueles que têm algum outro propósito em
vista além da glória de Cristo e a edificação da Igreja. Pois o caso não
consiste em que todos os que ensinam a verdade devam ser
consistentemente fiéis, mas somente a pessoa que deseja sinceramente
servir ao Senhor e buscar o avanço do reino de Cristo. Não é sem razão que
Agostinho proveitosamente designa aos mercenários [Jo 10.12] uma posição
intermediária entre os lobos e os bons mestres. Além do mais, Agostinho,
nesta passagem, de fato fala claramente do que Paulo afirma sobre o fato de
Cristo também exigir sabedoria de um bom despenseiro [Lc 12.42]. O
significado, porém, é o mesmo. Pois o que Cristo quer dizer por fidelidade é
a integridade de consciência, a qual deve ser acompanhada de conselho
sadio e prudente. E pela expressão “ministro fiel” ele tem em mente alguém
que, com conhecimento tanto quanto com retidão de coração,8 desempenha
o ofício de um bom e fiel ministro.
3. Quanto a mim, pouco me importa. Restava a Paulo manter sua
fidelidade justamente no centro do quadro para que os coríntios pudessem
manter suas mentes direcionadas para ela. Mas, em virtude de seu juízo ser
corrupto, ele vira as costas e apela para o tribunal de Cristo. Os coríntios
continuavam equivocados, já que viviam fascinados pelas aparências
externas e não atentavam para as marcas genuínas e adequadas de
distinção.9 Conseqüentemente, com grande confiança, ele testifica que
despreza um juízo pervertido e cego desse gênero. E assim ele, de um lado,
admiravelmente deixa exposta a vaidade dos falsos apóstolos que viviam na
expectativa de receber a aprovação humana e nada mais, e se consideravam
felizes quando se viam como alvos do aplauso dos homens. E, do outro,
austeramente açoita a arrogância10 dos coríntios, sendo esta a razão por que
estavam tão cegos em seu discernimento.
Todavia, pode-se perguntar com propriedade, que direito tinha Paulo,
não só de rejeitar a censura de uma Igreja, mas ainda de pôr-se acima do
julgamento humano, já que essa é a condição comum de todos os pastores,
a saber, ser julgados pela Igreja? Minha resposta é que a característica de um
bom pastor é permitir que sua doutrina e sua vida sejam examinados pelo
juízo da Igreja, e o sinal de uma boa consciência é que ele não evite a luz de
cuidadosa inspeção. Por exemplo, Paulo mesmo estava sempre pronto a
submeter-se ao juízo da Igreja de Corinto e a ser chamado a prestar contas
tanto de sua vida quanto de sua doutrina, caso houvesse entre eles meios
apropriados de averiguação;11 pois com freqüência lhes outorga esse poder,
e de sua própria iniciativa sinceramente solicita que se prontifiquem a julgar
corretamente. Mas quando um fiel pastor se vê assenhoreado por
sentimentos hostis e ilógicos, e não se deixa nenhum lugar para a justiça e a
verdade, então não importa o que os homens pensem: ele apela para Deus e
busca recursos em seu tribunal, especialmente quando não se pode
assegurar de se chegar a um conhecimento verdadeiro e acurado das
questões em pauta.
Portanto, se os servos do senhor se lembrarem de que devem agir dessa
maneira, então que consintam que sua doutrina e sua vida sejam expostas à
prova e, ainda mais, que eles mesmos se prontifiquem voluntariamente; e se
porventura houver alguma queixa contra eles, que não se furtem de
responder. Mas se perceberem que são condenados sem uma audiência
formal, e o julgamento é transmitido sem que suas razões sejam ouvidas,
então que assumam sua posição de honra, onde, desdenhando do que os
homens pensem, intrépidos12 aguardem que Deus seja seu Juiz. Desde a
antigüidade, quando os profetas tinham que tratar com pessoas irredutíveis,
que ousavam desprezar a Palavra de Deus afrontando-a na pessoa dos
profetas, estes se punham numa posição imponente a fim de esmagar a
diabólica obstinação que, tão notória, subverte o soberano domínio de
Deus e a luz da verdade. Mas quando se oferece a alguém a chance de se
defender, ou, ao menos, quando precisa inocentar-se, e apela para Deus à
guisa de subterfúgio, por certo que garantirá sua inocência por esse método,
porém sua repugnante impudência ficará a descoberto.13
Ou por algum juízo humano. [O latim: aut ab humanodie. O grego: ἤ υ̒πὸ
ἀνθρωπίνης η̒μέρας] Ainda que outros expliquem isso de outra forma, meu
ponto de vista consiste em que é mais fácil tomar a palavra dia
metaforicamente, no sentido de juízo, porque há dias designados para a
administração da justiça, e as partes são citadas para um certo dia. Paulo o
chama “dia do homem”14 quando se pronuncia juízo, não em concordância
com a verdade ou com a Palavra de Deus, mas em concordância com as
concepções e temeridade dos homens,15 quando, na verdade, Deus não
preside o tribunal. Paulo está dizendo: “Que os homens tomem assento no
tribunal como lhes apraz; quanto a mim, basta-me que Deus rescinda
qualquer decisão que porventura tenham pronunciado.”
Sim, nem eu mesmo me julgo. O significado é o seguinte: “Não ouso
julgar a mim mesmo, ainda que eu seja quem melhor me conhece; como,
pois, me julgaríeis, quando de vós eu sou menos intimamente conhecido?”
E ele prova que não se aventura a julgar-se a si mesmo, ao dizer que, embora
pessoalmente talvez não tivesse consciência de algum erro, contudo não
significava que fosse inocente aos olhos de Deus. Ele, pois, conclui que o
que os coríntios reivindicavam para si era algo que pertencia
exclusivamente a Deus. Diz ele: “Quanto a mim, ao fazer um criterioso exame
de meu íntimo, percebo que minha visão não é suficientemente penetrante
para visualizar as condições dos recessos mais íntimos de meu ser. Eis aqui
a razão por que deixo tal empreendimento para Deus, porquanto só ele é
capaz de julgar, e só ele tem o direito de fazê-lo. Quanto a vós, sobre que
bases credes ser capazes de fazer melhor?”
Entretanto, visto que seria absurdo proibir todo gênero de julgamento,
por exemplo, o próprio indivíduo aplicando a si mesmo e cada pessoa
aplicando a seu irmão, ou todos a uma só voz aplicando ao pastor, devemos
entender que Paulo não está se referindo aqui às ações humanas, que
podem ser julgadas boas ou más segundo a Palavra do Senhor, mas ao valor
de cada pessoa, o qual não deve ser aquilatado pela decisão dos homens. É
prerrogativa de Deus determinar o valor de cada pessoa e que gênero de
honra ela merece. Os coríntios, contudo, desprezavam Paulo e sem qualquer
base sólida exaltavam os demais até o céu, como se o exame que pertencia
exclusivamente a Deus fosse matéria de sua jurisdição. Este é o “dia do
homem” que já mencionei, a saber, quando os homens se assentam no trono
do juízo e, como se fossem deuses, antecipam o dia de Cristo, o qual foi
designado pelo Pai como o único Juiz; quando aquinhoam a cada um com
uma posição de honra, pondo alguns em posição eminente, enquanto que a
outros relegam a posições inferiores. Mas, qual é o critério que governa suas
distinções? Ficam atentos no que está na superfície e nada mais; e assim, o
que é nobre e honroso para eles é, com freqüência, uma abominação aos
olhos de Deus [Lc 16.15].
Se alguém objetar, dizendo que os ministros da Palavra podem, neste
mundo, ser distinguidos por suas obras, como a árvore e seus frutos [Mt
7.16], reconheço que isso deveras tem fundamento, todavia devemos
considerar aqueles de quem Paulo tratava. Eram pessoas que meramente
amavam a ostentação e estavam sempre prontas a julgar, e que arrogavam
para si o poder de designar a cada um seu lugar no reino de Deus [Mt 20.23],
quando Cristo mesmo, durante sua estada neste mundo, se absteve de fazê-
lo. Portanto, ele não nos proíbe de ter em profunda estima aqueles de quem
tomamos conhecimento de serem fiéis, e a quem não tememos recomendar;
nem nos proíbe de decidir quem é mau obreiro à luz da Palavra de Deus. Mas
condena a insolência que vem a lume quando alguns, governados pela
ambição, se põem acima de outros, não porque o mereçam, mas porque não
atentam para um detido exame do caso.16
4. Porque, nada sei contra mim mesmo. Notemos que aqui Paulo não
está falando acerca de toda sua vida, mas simplesmente do ofício de seu
apostolado. Porque, se de fato ele não tivesse consciência de algum erro
pessoal,17 a queixa que ele faz em Romanos 7.19 não seria totalmente
destituída de base, a saber: o mal que eu não quero fazer, esse eu faço; e que
se via impedido pelo pecado de dedicar-se inteiramente a Deus. Portanto,
Paulo tinha consciência de que o pecado habitava nele e o confessava. Mas
ao defrontar-se com seu apostolado – e é disso que ele está tratando aqui –,
ele se comportava com tanta integridade e fidelidade, que sua consciência
de forma alguma o acusava. Este não é um testemunho ordinário, e o mesmo
revela claramente o quanto ele tinha um coração reto e santo.18 Ele, porém,
nega que pudesse ser justificado por isto: que fosse inocente e isento de
toda culpa aos olhos de Deus. Por quê? Porque Deus possui uma percepção
infinitamente mais penetrante do que a nossa, e por isso o que em nossa
percepção parece ser deslumbrantemente belo, a seus olhos não passa de
imundícia. Aqui surge uma advertência excelente e mui benéfica, a saber:
que não meçamos a exatidão da justiça divina pelo critério de nossas
próprias idéias. Porquanto nossa percepção é paupérrima; a de Deus,
porém, é infinitamente penetrante. Somos demasiadamente complacentes
no que respeito a nossa própria pessoa, porém Deus é um juiz
extremamente severo. Portanto, o que Salomão afirma é mui verdadeiro (Pv
21.2): “Todo caminho de um homem é reto a seus próprios olhos, porém o
Senhor pesa os corações.”
Os papistas tiram vantagem desta passagem com o fim de abalar a
certeza da fé em seus fundamentos; e deveras confesso que, se sua doutrina
fosse aceita, não faríamos outra coisa senão viver em um ignóbil estado de
ansiedade todos os dias de nossa vida. Pois que sorte de paz de espírito
possuiríamos caso nossas obras decidissem se somos ou não aceitos por
Deus? Portanto, confesso que do principal fundamento dos papistas nada
promana senão incessante distúrbio de consciência. Por causa disso,
ensinamos que é preciso buscar refúgio na graciosa promessa da
misericórdia que nos é oferecida em Cristo, para que saibamos com certeza
que somos reputados por justos aos olhos de Deus.
5. Portanto, nada julgueis antes do tempo. Desta conclusão se
manifesta que Paulo não estava condenando todo e qualquer gênero de
julgamento, mas somente aquele julgamento precipitado e audacioso sem
que haja um exame criterioso. Pois os coríntios não estavam atentos para o
caráter de cada pessoa com olhos destituídos de preconceito, mas, vivendo
sob o domínio da ambição, cometiam o desvario de exaltar a uma pessoa e
de denegrir a outra, e assumiam mais do que os homens têm o direito de
fazer, ou, seja, determinar o que cada um realmente merece. Saibamos, pois,
o quanto nos é permitido, o que agora nos cabe examinar e o que deve ser
deferido até o dia de Cristo, e não nos aventuremos ir além desses limites.
Porquanto existem algumas coisas que agora são claras a nossos olhos,
porém existem outras que permanecerão sepultadas em obscuridade até o
dia de Cristo.
O qual trará à luz. Se esta é uma afirmação genuína e apropriada sobre o
dia de Cristo, segue-se que os negócios deste mundo nunca são bem
ordenados, mas que muitas coisas estão envoltas em trevas; que nunca há
luz suficiente para que muitas coisas evitem permanecer em obscuridade.
Estou me referindo à vida e às ações dos homens. Na segunda parte da
sentença ele explica qual é a causa das trevas e desordem, de modo que nem
tudo é explícito agora. Naturalmente que isso se deve ao fato de haver no
coração humano extraordinárias regiões secretas e recessos por demais
profundos. Portanto, até que os pensamentos dos corações sejam trazidos à
plena luz, haverá sempre trevas.
E então cada um receberá de Deus seu louvor. É como se ele dissesse:
“Ora, vós, coríntios, procedeis como se fôsseis árbitros de jogos públicos,19
porque a alguns conferis a coroa, enquanto que a outros despedis
humilhados. No entanto, esse direito e essa função pertencem
exclusivamente a Cristo. Estais fazendo isso antes do tempo, antes de
evidenciar-se quem de fato merece a coroa. O Senhor deveras designou um
dia em que o fará conhecido.” Esta afirmação procede da confiança de uma
sã consciência, a qual também traz este benefício, a saber: quando deixamos
a questão de nosso louvor nas mãos de Deus, desconsideramos a fútil
aclamação dos homens e os aplausos humanos.

6. E essas coisas, irmãos, aplico em figura transferida a mim e a Apolo por amor de vós;
para que, em nós, aprendais a não julgar os homens acima do que está escrito; para
que nenhum de vós se ensoberbeça a favor de um, em detrimento de outro.
7. Porque, quem te faz diferente de outro? e o que possuis que não recebeste? ora, se o
recebeste, por que te glórias, como se não o tivesses recebido?
8. Já estais saciados; já estais ricos; já estais reinando como reis sem nós; bem que eu
quisera que reinásseis, para que nós também pudéssemos reinar convosco.

6. Hæc autem, fratres, transfiguravi in me ipsum et Apollo propter vos, ut in nobis


disceretis, ne quis supra id quod scriptum est, de se sentiat: ut ne quis pro hoc vel illo
infletur adversus alterum.
7. Quis enim te discernit? quid autem habes, quod non acceperis? si vero etiam
acceperis, quid gloriaris, tanquam non acceperis?
8. Jam saturati estis, jam ditati estis, absque nobis regnum adepti estis; atque utinam
sitis adepti ut et nos vobiscum regnemus.

6. Aplico em figura transferida a mim e a Apolo. Daqui inferimos que


os fundadores dos partidos não se contavam entre os que eram devotados a
Paulo, porque é plenamente certo que eles não tinham recebido nenhuma
instrução para procederem assim; em vez disso, eram os que, movidos por
ambição, se puseram nas mãos dos mestres ostentosos.20 Visto, porém, que
ele podia mais livremente, e com menos indignação, fazer referência
particular a sua própria pessoa e a de seus irmãos, ele preferiu apresentar
uma ilustração de sua própria pessoa ao erro que estava em outros. Ao
mesmo tempo, o que teria sido um aborrecimento para eles, Paulo detecta
culpa nos fundadores dos partidos e aponta com seu dedo as fontes das
quais esta fatal separação teve sua origem. Pois ele sugere que, se
permanecessem contentes com os bons mestres, este mal não lhes teria
acontecido.21
Para que, em nós. Outros manuscritos trazem “para que, em vós”.
Ambas as redações são plenamente possíveis, e não envolve nenhuma
diferença de significado. Porquanto Paulo pretende dizer: “Para servir de
exemplo, eu transferi essas coisas para mim e para Apolo, a fim de que
possais aplicar a vós mesmos este modelo. Portanto, aprendei, pois, em
nós, isto é, no exemplo de nossas vidas, o que tenho posto diante de vós
como um espelho.” Ou: “Aprendei em nós, isto é, aplicai este exemplo a vós
mesmos.”
Não obstante, o que ele quer que aprendessem? Que ninguém se
ensoberbeça contra outrem por seu próprio mestre, isto é, que não se
encham de orgulho por causa de seus mestres, e não façam uso de seus
nomes para manter as facções vivas nem para dividir a Igreja por meio de
controvérsias. Deve-se observar que o orgulho ou arrogância é a causa e
ponto de partida de todas as controvérsias, quando cada um, reivindicando
para si mais do que permite seu direito, procura com avidez assenhorear-se
dos demais.
A frase, “acima do que está escrito”, pode ser explicada de duas
maneiras, ou, seja: como uma referência ao que Paulo escreveu, ou às provas
bíblicas a que fez referência. Visto, porém, que isso não é muito importante,
os leitores estão livres para escolherem o que preferirem.
7. Porque, quem te faz diferente? O significado é o seguinte: “Qualquer
homem que nutre avidez por preeminência e perturba a Igreja com sua
ambição, que venha para campo aberto. Eu lhe pedirei que se ponha diante
de outra pessoa, ou, seja, que lhe dê o direito de ser considerada da mesma
categoria que outros e de ser superior a outrem.” Ora, este argumento todo
depende da organização que o Senhor estabeleceu em sua Igreja, a saber, que
os membros do corpo de Cristo vivam juntos, e que cada um deles viva
contente com seu próprio espaço, sua própria posição, sua própria função e
com a honra que lhe é conferida. Se um membro quiser deixar seu espaço e
ocupar o espaço de outrem, e tomar posse de seu ofício, que destino terá
todo o corpo? Portanto, lembremos bem que o Senhor nos colocou juntos
na Igreja, e destinou a cada um seu posto, de maneira tal que, sob a Cabeça,
nos empenhemos por auxiliar uns aos outros. Lembremos ainda que dons
tão diferentes nos têm sido conferidos para podermos servir ao Senhor
humilde e destituídos de pretensão, e aplicar-nos ao avanço da glória
daquele que nos tem concedido tudo quanto possuímos. Portanto, o melhor
método de corrigir a ambição daqueles que querem ser superiores é
chamando-os de volta a Deus, de modo que aprendam que nenhum deles
diga que por mérito seu é que foi posto em posição eminente, ou que por
demérito é que foi posto em posição humilde, porque somente Deus faz
isso. Devem igualmente saber que Deus não admite tanto a alguém que se
promove ao lugar da Cabeça; mas ele distribui seus dons de tal maneira que
só ele recebe a glória em todas as coisas.
Distinguir, aqui, significa tornar eminente.22 Entretanto, Agostinho
amiúde e com habilidade faz uso desta declaração com o intuito de defender
a seguinte tese, em oposição aos pelagianos,23 que seja o que houver de
excelência no gênero humano, não é implantado nele pela natureza, de modo
que a mesma não pode ser atribuída à natureza nem à hereditariedade, nem
é obtida por nosso livre-arbítrio, ao ponto de pôr Deus sob obrigação [para
conosco], mas emana unicamente de sua misericórdia, a qual é absoluta e
imerecida. Pois não pode haver dúvida de que Paulo aqui contrasta a graça
de Deus com o mérito ou a dignidade dos homens.24
E o que tens tu? Esta é uma confirmação da afirmação precedente,
porquanto o homem nada possui que lhe forneça base para exaltar-se, o
qual não possui superioridade acima de outros. Pois que maior vaidade
existe do que a ostentação sem qualquer base para sua existência? Ora, não
existe um sequer que possua inerentemente alguma excelência, que o faça
superior; portanto, quem quer que se ponha num nível superior aos demais
é um mero idiota e impertinente. A genuína base da modéstia cristã é esta:
de um lado, não ser presumido, porquanto sabemos que somos vazios e
destituídos do que é bom, isto é, que ele tenha implantado em nós algo que
seja inerentemente bom; e, do outro, por esta razão, somos tanto mais
devedores à divina graça. Em outros termos, não existe em nós nada que
seja propriamente nosso.
Por que te glorias, como se não o tivesses recebido? Observe-se que
não é deixada nenhuma base para a vanglória radicar-se em nós, visto que é
pela graça de Deus que somos o que somos [1Co 15.10]. E isso é o que
tivemos no primeiro capítulo, ou, seja, que Cristo é a fonte de todas nossas
bênçãos, para que aprendamos a gloriar-nos no Senhor [1Co 1.30], e isso só
fazemos quando renunciamos nossa própria vanglória. Porquanto Deus só
nos dá o que é seu quando nos esvaziamos, para que seja plenamente
evidente que tudo o que em nós é digno de louvor é derivado.
8. Já estais fartos. Tendo diretamente, e sem o uso de qualquer figura,
refreado a infundada confiança dos coríntios, ele agora também a
ridiculariza, à guisa de ironia,25 porquanto se sentem tão satisfeitos consigo
mesmos como se fossem as pessoas mais felizes do mundo. Paulatinamente
ele também avança realçando a insolência deles. Primeiro, ele diz que se
sentem satisfeitos, uma referência que aponta para o passado. Então,
acrescenta que são ricos, o que aponta para o futuro. Finalmente, ele diz que
passaram a reinar como reis – e isso contém muito mais do que os outros
dois elementos. É como se dissesse: “O que será de vós quando não for
suficiente que no presente estejais satisfeitos, mas que também no futuro
fordes ricos e, ainda mais, quando passardes a governar como reis?” Ao
mesmo tempo, tacitamente os culpa de ingratidão, porque tiveram a audácia
de olhar para ele com ares de superioridade, ou talvez também para aqueles
de cujas mãos tinham obtido tudo.
Sem nós, diz ele. “Porque neste momento Apolo e eu nada significamos
para vós, ainda que seja através de nosso trabalho que o Senhor vos muniu
de tudo. Que modo desumano de fazerdes dos dons de Deus algo para
satisfazer vosso próprio envaidecimento, e para, ao mesmo tempo, olhardes
com desdém às próprias pessoas de quem tendes recebido tudo!”
E eu quisera que reinásseis.26 Aqui ele deixa bem claro que não lhes
inveja a felicidade, se é que possuíam alguma; e que desde o início não
nutriu nenhum desejo de ter domínio sob eles, a não ser o desejo de
introduzi-los no reino de Deus. Entretanto, em contrapartida ele está
querendo dizer que o reino do qual se vangloriavam é meramente
imaginário, e que, portanto, sua exultação é espúria e nociva.27 Pois a única
ostentação genuína é aquela em que todos os filhos de Deus se regozijam de
se acharem sob Cristo, sua Cabeça, aquela que cada um, segundo a medida
da graça, lhe rende.
Pelas palavras, para que nós também pudéssemos reinar convosco, Paulo
tem em mente isto: “Aos próprios olhos, sois tão ilustres que não hesitastes
em desprezar-me, a mim e aos que são como eu, porém não atentastes para
o fato de quão fútil é vossa ostentação. Porquanto não podeis ter nenhuma
glória diante de Deus da qual não tenhamos nenhuma participação; porque,
se porventura vos redunda alguma honra possuir o evangelho de Deus,
quanto mais em se tratando de nós, por cujo ministério ele nos foi
comunicado! Aliás, atitude demente28 como esta é comum a todas as
pessoas orgulhosas, com o seguinte resultado: quando açambarcam tudo
para si, elas se privam de todas as bênçãos; mais ainda, se privam da
própria esperança de salvação eterna.”

9. Porque penso que Deus nos pôs a nós, apóstolos, por último, como homens
designados à morte; pois somos feitos um espetáculo aos olhos do mundo, dos anjos e
dos homens.
10. Nós somos loucos por amor a Cristo, vós, porém, sois sábios em Cristo; nós somos
fracos, vós, porém, sois fortes; vós sois honrados, nós, porém, somos desprezados.
11. Até a presente hora sofremos fome e sede, estamos nus e somos esbofeteados, e
não temos nenhum lugar de repouso;
12. e labutamos, trabalhando com nossas próprias mãos; ao sermos injuriados,
abençoamos; ao sermos perseguidos, suportamos;
13. ao sermos difamados, imploramos. Somos considerados lixo do mundo, e somos a
escória de todas as coisas, e isso até hoje.
14. Não escrevo estas coisas com o fim de envergonhar-vos, mas para admoestar-vos
como meus filhos amados.
15. Porque, ainda que tivésseis dez mil tutores em Cristo, não teríeis muitos pais.
Porque, por intermédio do evangelho, eu vos gerei em Cristo Jesus.

9. Existimo enim, quod Deus nos postremos Apostolos demonstraverit tanquam morti
destinatos: nam theatrum facti sumus mundo, et angelis, et hominibus.
10. Nos stulti propter Christum, vos autem prudentes in Christo: nos infirmi, vos autem
robusti: vos gloriosi, nos autem ignobiles.
11. Ad hanc enim horam usque et sitimus, et esurimus, et nudi sumus, et colaphis
cædimur.
12. Et circumagimur, et laboramus operantes manibus propriis: maledictis lacessiti
benedicimus: persequutionem patientes sustinemus:
13. Conviciis affecti obsecramus: quasi exsecrationes mundi facti sumus, omnium
reiectamentum usque ad hunc diem.
14. Non quo pudorem vobis incutiam hæc scribo: sed ut filios meos dilectos admoneo.
15. Nam etsi decem millia pædagogorum habueritis in Christo, non tamen multos patres;
in Christo enim Iesu par Evangelium ego vos genui.

9. Porque penso. É incerto se ele está se reportando exclusivamente a si


próprio, ou se ao mesmo tempo inclui também Apolo e Silvano, pois às
vezes ele denomina essas pessoas de apóstolos. Não obstante, prefiro
entendê-lo como que se referindo a si com exclusividade. Se alguém desejar
uma aplicação mais ampla, não faço muita objeção, contanto que, como o
entendia Crisóstomo, não o entendamos afirmando que todos os apóstolos,
por causa da ignomínia, mereciam uma posição menos importante.29 Pois
não pode haver dúvida de que Paulo quer dizer pelo termo “em último
lugar” aqueles que haviam sido admitidos à ordem apostólica após a
ressurreição de Cristo. Mas ele admite que se assemelhava àqueles que são
exibidos ao povo antes de serem entregues à morte. Pois o significado de
exibido encontra sua ilustração naqueles que eram levados pelas ruas em
triunfo com o fim de serem exibidos, e então eram arrastados à prisão, e ali
estrangulados.
Ele realça isso ainda mais nitidamente quando acrescenta que se tornara
um espetáculo. Diz ele: “Minha sina é exibir, na forma de espetáculo, minhas
aflições ao mundo, como os que são condenados ou a lutar com bestas
selvagens,30 ou a enfrentar os jogos dos gladiadores, ou a sofrer algum outro
tipo de tortura, e então são conduzidos perante a multidão extasiada; e, com
referência a mim, não se trata de apenas uns poucos espectadores, mas do
mundo todo.” Observe-se a admirável imperturbabilidade de Paulo, pois
quando percebeu que esse era o tratamento que Deus lhe aplicava, não
sucumbiu nem perdeu o ânimo. Porque ele não atribuía à arbitrariedade do
mundo o fato de ele ser arrastado, por assim dizer, a um degradante
espetáculo dos jogos nas arenas, mas o atribui totalmente à providência de
Deus.
A última parte da frase – dos anjos e dos homens –, evidentemente eu a
tomo neste sentido: “Apresento-me como provedor de esportes, e inclusive
como o próprio espetáculo, não só para a terra, mas também para o céu.”
Esta passagem geralmente é explicada como significando demônios, visto
que parecia absurdo que se referisse a anjos bons. Paulo, porém, não quis
fazer-se entender que todos quantos são testemunhas de seu infortúnio se
deleitavam com o que eles viam. Ele simplesmente quer dizer que Deus guia
sua vida de tal maneira que parece ter sido designado a providenciar esporte
para o mundo inteiro.
10. Somos loucos por amor a Cristo. Este contraste vem repassado de
ironia e observações penetrantes, pois era manifestamente intolerável e
deveras um grande absurdo que os coríntios fossem felizes em tudo e
usufruíssem de honra segundo os padrões humanos, e ao mesmo tempo
assistissem seu mestre e pai sofrer a vil ignomínia e misérias de todo
gênero. Pois os que são de opinião que Paulo se humilha dessa maneira
para que pudesse de alguma forma confiar na solicitude dos coríntios para
lhe darem as coisas que ele mesmo reconhece lhe faltavam, dificilmente
podem impedir que seu ponto de vista seja refutado diante da pequena
sentença que vem imediatamente em seguida.
Portanto, ele está usando de ironia ao admitir que os coríntios são sábios
em Cristo, fortes e honrados. É como se dissesse:31 “Vós desejais,
juntamente com o evangelho, manter a fama de sabedoria,32 ao passo que eu
só fui capaz de vos pregar Cristo tornando-me louco no conceito do mundo.
Ora, quando me disponho a ser um louco ou a desfrutar de tal reputação,
pergunto se é justo que desejeis ser considerados como sábios. Dificilmente
teríeis condição de afirmar que estas duas coisas se harmonizam bem: que
eu, que tenho sido vosso mestre, não passo de um louco por amor a Cristo,
enquanto que vós permaneceis sábios.” Segue-se que, ser sábio em Cristo
não logra aqui um bom sentido, porque ele ridiculariza os coríntios por
desejarem misturar Cristo com a sabedoria da carne, já que isso equivalia ao
esforço de unir elementos diretamente antagônicos.
O raciocínio nas frases que seguem é similar: “Vós sois fortes”, diz ele, “e
honrados”; em outros termos, vos gloriais nas riquezas e recursos do
mundo, e não podeis suportar a ignomínia da cruz. Entrementes, é razoável
que eu seja obscuro e desprezível, e sujeito a muitas enfermidades enquanto
busco33 vossos interesses? Ora, esta queixa não conta com o respaldo da
dignidade,34 porquanto, na verdade, ele não é um indivíduo fraco e
desprezível entre eles [2Co 10.10]. Em suma, ele moteja da vaidade deles,
porquanto as coisas viram de ponta-cabeça quando se esperava que os
filhos e alunos se tornassem famosos e renomados, enquanto os pais
permaneciam na obscuridade, e igualmente expostos a todos os insultos do
mundo.
11. Até a presente hora. Aqui o apóstolo pinta um vívido quadro de
suas circunstâncias pessoais, para que os coríntios aprendessem de seu
exemplo a desistir de seu orgulho e a submeter-se sinceramente e a abraçar
a cruz de Cristo juntamente com ele. Ele demonstra a máxima habilidade
nesse aspecto, porque, ao lembrá-los das coisas que o transformaram num
ser abjeto, ele propicia clara prova de sua singular fidelidade e de seu
infatigável zelo em buscar o avanço do evangelho; e, por outro lado,
tacitamente censura seus rivais que, sem apresentar qualquer evidência,
esperavam, não obstante, ser tidos na mais elevada estima.
Nas palavras propriamente ditas não há obscuridade, exceto o fato de
que devemos observar a distinção existente entre estes dois particípios:
λοιδορουμενοι και βλασφημουμενοι (injuriado e difamado). λοιδορια (injuriar)
significa que a mais cruel sorte de rivalidade que alguém emite, produz não
apenas um leve arranhão, mas uma ferida profunda, e expõe seu caráter aos
insultos públicos. Portanto, não pode haver dúvida de que λοιδορειν
significa ferir alguém com palavras ferinas como se fossem feitas com algum
instrumento cortante;35 por isso a traduzi “molestado com ultrajes”.
Βλασφημια significa reprovação em termos mais francos, quando alguém é
severa e cruelmente caluniado.36
12. Ao dizer que enfrenta perseguição, suportando-a e orando por seus
caluniadores, sua intenção não é apenas expressar que é afligido e
humilhado por Deus, através da cruz, mas também que se acha munido de
disposição para humilhar-se voluntariamente. Talvez com isso esteja ele
golpeando os falsos apóstolos, que eram tão efeminados e delicados que
nem mesmo podiam suportar ser tocados por alguém com seu dedo
mínimo. Ao falar de seu trabalho, ele acrescenta “com nossas próprias
mãos”, a fim de tornar ainda mais evidente quão ignóbil era sua ocupação.37
Diria ele: “Não só produzo meu sustento pessoal através de meu próprio
labor, mas através de um labor humilde, usando minhas próprias mãos.”
13. Como lixo do mundo. Ele faz uso de dois termos: o primeiro deles
significa alguém que foi dedicado aos deuses por meio de execrações
públicas, com vistas a fazer expiação pela cidade.38 Às vezes os gregos
chamam tais pessoas καθαρμοι, mais freqüentemente, καθάρματα,39 porque
levam sobre si todos os crimes e culpas da cidade, e assim purificam o resto
de seus habitantes. Além disso, ao usar a preposição περι, (ao redor), parece
que Paulo tinha um olho no próprio rito expiatório, visto que aqueles
homens desventurados que eram devotados a execrações eram levados ao
redor pelas ruas, para que pudessem levar com eles a qualquer esquina [da
cidade] tudo quanto fosse ruim40 e assim a purificação viesse a ser mais
completa. Pode parecer que o plural indique que ele fala não exclusivamente
de si mesmo, mas também dos outros que eram seus associados, e que não
menos eram tidos em desprezo pelos coríntios. Não há, contudo, razão
urgente para considerar o que ele diz como se estendendo além de sua
própria pessoa. O outro termo, περίψημα (raspagem), é usado para serragem,
raspaduras de alguma sorte, e também para a sujeira de assoalho.41 Sugiro
que se consultem as anotações de Budæus42 concernentes a ambos os
termos.
Precisamos ver como isso se aplica ao significado da passagem que se
acha diante de nossos olhos. Com o fim de descrever sua própria e extrema
degradação, Paulo diz que é merecedor das maldições do mundo todo como
se fosse alguém designado a ser um sacrifício expiatório,43 e que, como se
fosse escória, ele era nauseabundo a todos. Não obstante, ele não sugere,
pelo primeiro símile, que ele mesmo fosse um sacrifício expiatório pelos
pecados, mas simplesmente que, no tocante aos infortúnios e insultos, não
existe diferença entre ele e aquele sobre quem as execrações do mundo
inteiro são cumuladas.
14. Não escrevi estas coisas para vos envergonhar. Depois de Paulo
haver usado termos ferinos e irônicos, de modo a sensibilizar os brios dos
coríntios, ele agora manifesta seu aborrecimento, declarando que não dizia
essas coisas com o intuito de envergonhá-los, mas, antes, para admoestá-los
com amor paterno. É natural que o efeito e natureza de uma correção
paterna levem um filho a sentir-se envergonhado. Pois o princípio do
arrependimento é o senso de vergonha despertado pela consciência do filho
ao ser reprovado por seu pecado. Portanto, ao reprovar seu filho, o objetivo
do pai é fazê-lo sentir-se insatisfeito consigo mesmo. Percebemos que tudo
quanto Paulo disse até aqui visava a levar os coríntios a ter vergonha de si
mesmos. Sim, e tanto é verdade que um pouco depois [1Co 6.5] ele esclarece
que faz menção de seus erros a fim de que comecem a sentir-se
envergonhados. Mas aqui ele só deseja afirmar que sua intenção não era
causar-lhes frustração, nem tirar seus pecados do anonimato e lançá-los à
vista de todos, de tal modo que caíssem em descrédito. Porquanto aquele
que admoesta como amigo se esforça especialmente por ver que toda a
vergonha permaneça sepultada entre ele e a pessoa a quem adverte.44 Mas a
pessoa que chama a atenção de alguém de forma maliciosa, expõe o pecado
desse alguém e o faz sentir-se envergonhado, e assim o transforma em
objeto do repúdio público. Por isso Paulo diz simplesmente que o que
dissera não foi com a intenção de humilhar ou de denegrir o bom nome dos
coríntios; antes, foi para demonstrar afeição paternal e lembrá-los do que
estava faltando neles.
Entretanto, qual era o propósito dessa admoestação? Era precisamente
para que os coríntios, que se achavam ensoberbecidos com idéias
bombásticas, não obstante serem vazios, aprendessem a gloriar-se na
humilhação da cruz juntamente com Paulo; e para que não mais o
desprezassem sob a alegação de que ele era mui digno de gloriar-se aos
olhos de Deus e dos anjos. Em suma, o propósito de tudo isso era que os
coríntios abrissem mão de sua antiga arrogância e dessem mais valor ao
estigma45 de Cristo [Gl 6.17] lançado sobre Paulo, em vez da ostentação fútil
e desprezível dos falsos apóstolos. Ora, os mestres46 precisam aprender que
esse gênero de moderação deve ser sempre usado nos atos de reprovação,
para que não se firam os brios dos homens no uso de excessiva austeridade;
segundo um provérbio bem conhecido, o vinagre precisa ser dosado com
mel e óleo. Mas, acima de tudo, devem tomar cuidado para não parecer que
escarnecem daqueles a quem estão reprovando, nem que se sentem
prazerosos em seu infortúnio. Não! Ao contrário, devem esforçar-se por
deixar em evidência que sua intenção não é outra senão a promoção de seu
bem-estar. Pois, que ganharia um mestre47 com mera gritaria, se porventura
não condimentar a aspereza de sua repreensão com a moderação a que me
refiro? Portanto, se desejarmos fazer algo de positivo enquanto corrigimos
as falhas dos homens, é saudável convencê-los de que nossas críticas são
procedentes de um coração amigo.
15. Porque, ainda que tivésseis dez mil tutores. Ele já se havia
denominado de pai. E agora mostra que tal atribuição é peculiarmente sua
em relação a eles, porque foi ele, exclusivamente, quem os gerou em Cristo.
Não obstante, ao usar esta comparação, ele tem em mira os falsos apóstolos,
a quem os coríntios atribuíam toda autoridade, de modo que Paulo agora
era considerado pouco mais que nada entre eles. Por isso, ele os aconselha
que decidam qual honra devem prestar a um pai e qual honra devem prestar
a um tutor.48 É como se quisesse dizer: “Vós revelais grande respeito para
com os novos mestres. Não faço objeção, contanto que lembreis bem de que
eu sou vosso pai, e que eles não passam de tutores.” Mas, ao reivindicar para
si tal autoridade, ele implicitamente diz que sua atitude é diametralmente
distinta da dos homens a quem os coríntios consideravam tão eminentes.
Provavelmente Paulo poderia dizer: “Eles se esforçam por vos ensinar.
Muito bem! Mas o amor de um pai, o zelo de um pai, a boa vontade de um
pai são atitudes completamente diferentes das de um tutor.” Mas como, se
ele está também fazendo alusão àquela imaturidade de fé,49 à qual já fez
referência? Porque, ainda que os coríntios eram titãs no orgulho, todavia, na
fé, não passavam de crianças, e esta é a razão por que era justo encomendá-
los a tutores.50 Ele também detecta falhas no método absurdo e deveras
malicioso daqueles mestres em manterem seus alunos ocupados apenas
com os primeiros rudimentos, com o fim de mantê-los sempre presos a sua
autoridade.51
Porque em Cristo. Esta é a razão por que ele deve ser considerado com
exclusividade o pai da Igreja de Corinto, ou, seja: porque ele a havia gerado.
E aqui ele descreve a geração espiritual de maneira mais apropriada
afirmando que os gerara em Cristo, o qual é a única fonte de vida, e assim ele
faz do evangelho a causa formal.52 Portanto, notemos bem que aos olhos de
Deus só somos verdadeiramente gerados quando somos enxertados em
Cristo, fora de quem nada existe senão morte, e que isso só pode ser feito
por intermédio do evangelho, porque, visto que somos, por natureza, carne
e erva, a Palavra de Deus é a semente incorruptível por meio da qual somos
renovados para a vida eterna, como Pedro ensina [1Pe 1.23-25], extraindo de
Isaías [Is 40.6-8]. Elimine-se o evangelho, e todos permaneceremos malditos
e mortos aos olhos de Deus. Esta mesma Palavra, por meio da qual somos
gerados, passa a ser leite que nos nutre, e alimento sólido para nosso
sustento perene.53
Alguém poderia apresentar esta objeção: “Visto que na Igreja novos
filhos são gerados para Deus todos os dias, por que Paulo nega que aqueles
que o haviam sucedido eram pais? A resposta é fácil: ele aqui está falando
do início da Igreja. Pois ainda que muitos haviam sido gerados pelo
ministério de outros, esta honra permaneceu inalterada somente no caso de
Paulo, porquanto foi ele quem fundara a Igreja de Corinto. Além disso, se
porventura alguém perguntar: “Todos os pastores não devem ser
contemplados como pais? Por que, pois, Paulo priva a todos os demais
desse título a fim de reivindicá-lo só para si?” Eis minha resposta: Aqui ele
fala numa forma comparativa. Conseqüentemente, embora o título de pai
seja pertinente também a eles em outros aspectos, todavia, em comparação
com Paulo, eles não passavam de tutores. Devemos igualmente ter em mente
o que referi um pouco antes, ou, seja, que ele não está falando de todos eles
(porque, no que respeita a homens como ele, a saber, Apolo, Silvano e
Timóteo, homens que buscavam ansiosamente o avanço do reino de Cristo,
não haveria qualquer dificuldade em denominá-los de pais e atribuir-lhes as
mais elevadas honras), mas ele aponta erros naqueles que, com desenfreada
ambição, estavam transferindo para si a glória que pertencia a outrem. Tais
eram os homens que se apropriavam da honra devida a Paulo, para que
pudessem tomar posse de seus despojos.
Certamente, hoje a condição da Igreja Universal é semelhante à da Igreja
de Corinto de então. Pois quão poucos há que cuidam das igrejas com
afeição paternal; em outros termos, que não buscam recompensas pessoais
e não se dedicam a seu próprio bem-estar! Entrementes, grande é o número
de tutores, os quais alugam seus serviços para que tenham um retorno
lucrativo; e isso fazem como se estivessem empenhados numa tarefa por
tempo limitado e a fim de manterem as pessoas sob seu próprio controle e
para tê-los em admiração.54 Não obstante, mesmo assim é sempre bom que
haja muitos tutores, que façam o bem, pelo menos em alguma medida
ensinando e não destruindo a Igreja pelo efeito corruptor do falsa doutrina.
Quanto a mim, ao me queixar do grande número de tutores, não estou me
reportando dos sacerdotes papistas (porquanto não os considero dignos de
figurarem neste número), mas refiro-me aos que concordam conosco em
doutrina, e todavia se ocupam em atender a seus próprios afazeres no lugar
dos de Cristo. Todos nós, naturalmente, desejamos ser tidos como pais, e
exigimos de outros a obediência de filhos; entretanto, de quantos o leitor
pode dizer são dignos só porque realmente agem como pais?55
Existe ainda outra questão muito difícil. Visto que Cristo nos proíbe de
chamar alguém de pai sobre a terra em razão de termos um Pai no céu [Mt
23.9], como, pois, Paulo ousa aplicar a si o título pai? Eis minha resposta:
propriamente falando, Deus é o único Pai, não só de nossas almas, mas
também de nosso corpo. Entretanto, diante do fato de que, no que se refere
ao corpo, ele outorga o título pai àqueles a quem ele concede filhos, todavia
retém para si só o direito e título especial de “o Pai dos espíritos”, com o fim
de ser distinguido dos pais terrenos, como o apóstolo afirma em Hebreus
12.9. Não obstante, visto que somente ele gera as almas por seu próprio
poder, então as regenera e as vivifica, e ainda faz uso do ministério de seus
servos para esse propósito, não há mal algum em chamá-los pais com
referência a este ministério, porque, ao agirem assim, a honra divina é
deixada intata. A Palavra (como temos dito) é a semente espiritual. Por meio
dela, e por meio de seu poder, unicamente Deus é quem conduz nossas
almas ao novo nascimento, porém ele não exclui o labor dos ministros. Se o
leitor considerar atentamente o que Deus faz por si só, e o que deseja que se
faça por intermédio dos ministros, então entenderá facilmente em que
sentido só ele merece a honra de Pai, e como em alto grau este título é
apropriado aos ministros, sem qualquer violação dos direitos divinos.

16. Por isso vos rogo que sejais meus seguidores.


17. Por essa causa vos enviei Timóteo, que é meu amado e fiel filho no Senhor, o qual vos
trará à memória meus caminhos que estão em Cristo, como em toda parte ensino em
cada igreja.
18. Ora, alguns se acham ensoberbecidos, como se eu não houvesse de ir ter convosco.
19. Mas em breve irei, se o Senhor quiser; e então conhecerei, não a palavra dos que
andam ensoberbecidos, mas o poder.
20. Porque o reino de Deus não consiste de palavras, mas de poder.
21. Que preferis? Irei ter convosco com vara, ou com amor e no espírito de mansidão?

16. Adhortor ergo vos, imitatores mei estote.


17. Hac de causa misi ad vos Timotheum, qui est filius meus dilectus et fidelis in Domino:
qui vobis in memoriam reducat vias meas, quæ sunt in Christo, quemadmodum ubique in
omnibus Ecclesiis doceam.
18. Perinde quasi non sum ad vos venturus, inflati sunt quidam:
19. Veniam autem brevi ad vos, si Dominus voluerit, et cognoscam non sermonem eorum
qui sunt inflati, sed virtutem.
20. Neque enim in sermone regnum Dei est, sed in virtute.
21. Quid vultis? in virga veniam ad vos, an dilectione spirituque mansuetudinis?

16. Por isso vos rogo. Ele agora também expressa, em suas próprias
palavras, o que está pretendendo obter deles por meio de sua correção
paternal, ou, seja, que justamente porque são seus filhos, não interrompam
as relações com seu pai. Há algo mais razoável do que o esforço dos filhos
para se assemelharem a seus pais tanto quanto possível? Ele ainda está
dispensando algo de seus próprios direitos ao instar com eles à guisa de
pedido em vez de ordem. Mas ao propor-lhes que fossem seus imitadores,
ele traz a lume outra passagem, quando, pois, adiciona outra idéia, ou, seja,
“como sou de Cristo” [1Co 11.1]. Esta qualificação deve ser sempre mantida,
para que não venhamos seguir algum ser humano, exceto até onde nos
conduza a Cristo. Sabemos, porém, com que Paulo está tratando aqui. Os
coríntios não estavam evitando a ignomínia da cruz, mas também faziam de
seu pai um objeto de desprezo, só porque ele olvidava a glória que este
mundo tem a oferecer e se gloriava mais nas reprovações que sofria por
causa de Cristo; e os coríntios tinham sua atenção posta em si mesmos e
noutros afortunados, em nada terem a ver, pelos padrões do mundo, com o
que é desprezível. Portanto, ele os aconselha a seguirem seu exemplo e a
prestarem obediência a Cristo para que tivessem condição de suportar tudo.
17. Por essa causa. O significado é como segue: “Para que saibais que
tipo de vida é realmente o que eu vivo, e se sou um adequado exemplo a ser
seguido, ouvi o que Timóteo tem a dizer, pois ele estará na condição de
fornecer confiável evidência neste sentido.” Ora, duas coisas produzem
confiança mediante a evidência que uma pessoa tem a apresentar, a saber:
seu conhecimento das coisas sobre as quais ela tem a dizer, e sua lealdade.
Paulo lhes informa que Timóteo possui ambas. Pois quando afetuosamente
o chama de amado filho, revela que Timóteo conhece Paulo com intimidade
e que está bem familiarizado com todas suas circunstâncias. Ele então o
trata como fiel no Senhor. Ele também confia duas coisas à responsabilidade
de Timóteo. Primeiro, ele desperta a mente dos coríntios para que se
lembrassem de seu próprio assentimento, e nisso ele tacitamente lhes
atribui falta. Segundo, Timóteo lhes fizera saber quão invariável e
consistente era o método de ensino de Paulo em todo lugar.
É bem provável, porém, que Paulo estivesse sendo alvo das deturpações
dos falsos apóstolos, como se ele estivesse reivindicando para si mais
poder sobre os coríntios do que sobre os outros, ou se conduzindo de
maneira completamente distinta em outros lugares; porque ele tinha boas
razões para querer que isso fosse do conhecimento deles. Portanto, um
ministro sábio deve determinar qual deva ser seu método de ensino, e
persistir nesse plano, para que não se levante qualquer objeção contra ele
sem que esteja preparado a defender-se, baseado numa situação concreta,
como Paulo possuía.
18. Como se eu não tivesse de ir ter convosco. Era costume dos falsos
apóstolos tirar vantagem da ausência de homens bons e fazer florescer sua
insolente e incontida vanglória. Paulo realça o fato de que eles não
suportavam a presença dele, e assim o expõe para que ficasse a descoberto a
má consciência deles e assim refreasse sua agressividade. Naturalmente,
sucede de vez em quando que, quando a oportunidade de insultar se lhes
divisa, pessoas atrevidas e descaradas se prorrompem abertamente contra
os servos de Cristo; entretanto, nunca apresentam uma controvérsia56 justa
com o fim de provar que não têm o que esconder; ao contrário, por meio de
suas matreirices, denunciam sua própria carência de confiança.
19. Mas em breve irei. “Eles estão cometendo um grave erro”, diz ele,
“ao emplumar suas penas durante minha ausência, como se isso fosse durar
por muito tempo; logo, porém, perceberão quão fútil tem sido seu orgulho.”
Mas ele não pretende propriamente assustá-los, como se sua chegada fosse
trovejar contra eles, mas para gerar tensão e atingir suas consciências,
porque, por outro lado, não importa o que pretendiam, sabiam muito bem
que Paulo estava equipado com a influência divina.
A frase, se o Senhor quiser, nos ensina que não devemos fazer nenhuma
promessa a alguém visando ao futuro; nem fazer planos pessoais sem incluir
esta restrição: até onde o Senhor o permitir. Por isso, Tiago está plenamente
certo ao ridicularizar a temeridade de pessoas que planejam o que farão até
o final de dez anos, quando, na verdade, não têm certeza alguma se viverão
por toda uma hora [Tg 4.15]. Ora, ainda que não sejamos obrigados a usar
constantemente tais expressões, mesmo assim é melhor que cuidemos em
torná-las habituais, para que mais e mais formulemos todos nossos planos
em plena conformidade com a vontade de Deus.
E então conhecerei, não a palavra. Pelo termo palavra devemos
entender aquela loquacidade fútil em que os falsos apóstolos se deleitavam;
pois seu arrimo tinha por base certa facilidade e charme de linguagem, no
entanto eram completamente carentes de zelo e da eficácia do Espírito. Pelo
termo poder Paulo quer dizer a eficácia espiritual com que são revestidos
aqueles que administram solicitamente57 a Palavra de Deus. Portanto, o
significado é como segue: “Verei se eles desfrutam de tão fortes razões para
se sentirem tão arrogantes, e certamente não os julgarei por seu rico fluxo de
palavras, no qual depositam toda sua glória, e no qual tanto confiam para
reivindicarem tudo58 para si. Se quiserem desfrutar de algum crédito em
minha presença, que então revelem aquele poder que distingue os genuínos
servos de Cristo dos impostores [arratis]; do contrário, não perderei tempo
com eles e suas exibições. Portanto, eles estão pondo sua confiança em sua
vã eloqüência, enquanto que, para mim, ela não passa de fumaça.”
20. Porque o reino de Deus não consiste em palavras. Visto que o
Senhor governa sua Igreja com sua Palavra, como se ela fosse um cetro, a
administração do evangelho [evangelii administratio] é às vezes chamada o
reino de Deus. Aqui, pois, devemos entender por reino de Deus tudo quanto
aponta nesta direção e é determinado com este propósito: que Deus possa
reinar em nosso meio. Paulo diz que este reino não consiste em palavras
[sermone]; pois quão pequeno é o esforço para alguém que tem a habilidade
de falar fluentemente, quando o mesmo não produz nada senão sons
vazios!59 Portanto, aprendamos que a graça e a habilidade meramente
externas, em ensinar, é como um corpo bem elegante e saudável em sua
aparência, enquanto que o poder [virtutem] de que Paulo aqui fala é como a
alma. Já vimos que a natureza da pregação evangélica é tal que se acha
saturada de um sólido gênero de majestade. Essa majestade se revela
quando um ministro entra em ação mais com poder [virtute] do que com
palavras [sermone]. Em outros termos, ele se devota ativamente à obra do
Senhor, não depositando confiança em seu próprio intelecto ou eloqüência,
mas é equipado com armas espirituais, que são o zelo em proteger a glória
do Senhor, o desejo de estabelecer o reino de Cristo, o anseio por edificação,
o temor do Senhor, a perseverança invicta e outros dons indispensáveis.
Sem eles a pregação é morta e não possui nenhuma energia, não importa
quão excelente e bem adornada venha a ser. Por esta razão é que ele diz em
sua segunda Epístola que não equivale a nada senão ser uma nova criação
[2Co 5.17] em Cristo. E este arrazoado tem o mesmo propósito em vista.
Pois ele não quer que permaneçamos satisfeitos com qualquer atrativo
externo [externis larris], senão que perseveremos no poder interior [interna
e virtute] do Espírito Santo.
Ainda que, com estas palavras, ele refira à ambição dos falsos apóstolos,
todavia, ao mesmo tempo, ele acusa os coríntios de perverterem o juízo,
visto que estavam formando a opinião preconcebida dos servos de Cristo,
vendo-os pelo prisma de suas excelências menos importantes. Esta é uma
conclusão notável, a qual se aplica tanto a nós quanto a eles. No que
respeita ao evangelho, do qual tantos nos orgulhamos, onde está a novidade
de vida em muitas pessoas, onde sua eficácia espiritual, a não ser em sua
língua? E esta não é a situação de uma só pessoa.60 Porque, quantos há que
fazem uso do evangelho com o fim de conquistar simpatia e renome, como
se ele fosse algum ramo secular de conhecimento, e cuja preocupação seja
falar com apuro e refinamento! Não acalento a crença de que o poder se
restrinja aos milagres, visto que, em contraste, é fácil de deduzir que ele tem
uma aplicação muito mais ampla.
21. Que quereis? Quem fez a divisão das epístolas em capítulos deveria
ter começado o quinto capítulo neste ponto. Porque, até aqui, Paulo esteve
reprovando o fútil orgulho dos coríntios, sua estulta confiança, seu juízo
distorcido e afetado pela ambição; mas agora menciona os vícios que os
afligiam, os quais deveriam fazê-los envergonhar-se de si mesmos. É como
se dissesse: “Vós vos sentis envaidecidos, justamente como se vossos
negócios transcorressem em uma situação excelente, porém seria melhor se
reconhecêsseis vossa infeliz situação com pudor e tristeza, pois se
prosseguirdes assim serei abrigado a pôr de lado minha mansidão e a ser um
pai severo para convosco.” Mas este tom de ameaça leva mais peso do que a
liberdade de escolha que porventura ele lhes houvesse dado, pois declara
que não dependerá de si mesmo ser manso e gentil com eles, senão que está
se vendo forçado a usar de severidade por culpa deles. Diz ele: “É para que
decidis com que temperamento eu vou encontrar-vos. Quanto a mim, estou
preparado para ser manso. Mas se continuardes a proceder como vindes
fazendo, o jeito é usar a vara.” Assim, ele se coloca numa posição mais
consistente depois de evocar sobre si a autoridade paterna; pois teria sido
ridículo iniciar com uma advertência como esta, caso não tivesse antes
aberto o caminho para si, com o que disse, e os preparado para nutrirem
temor.
Pelo termo vara ele indica aquela autoridade disciplinar com que um
pastor deve corrigir os erros de seu povo. Em confronto com isso ele põe
amor (caritatem) e espírito de mansidão, não porque o pai tenha aversão
pelos filhos a quem reprova (pois, do contrário, a correção não seria
oriunda do amor), mas porque, através de uma expressão facial sombria e
palavras ásperas, ele assume ares como se estivesse irado com seu filho.
Para o expressar com mais clareza, não importa que expressão use, um pai
sempre ama seu filho, porém revela esse amor ensinando-o de maneira
serena e amável; mas quando se vê aborrecido com os pecados do filho e o
corrige com palavras ásperas, ou mesmo com a vara, então assume o papel
de uma pessoa irada. Portanto, visto que o amor fica oculto quando a
disciplina severa é aplicada, Paulo está plenamente certo ao relacionar amor
com espírito de mansidão. Alguns intérpretes tomam vara aqui como
significando excomunhão. No que me diz respeito, ainda que concorde com
eles que a excomunhão seja parte daquela severidade com que Paulo
ameaça os coríntios, ao mesmo tempo a estendo mais amplamente a todas
as reprovações de natureza mais severa.
Observa-se aqui qual o padrão de comportamento que um bom pastor
deve seguir, pois ele deve estar mais disposto a ser delicado a fim de atrair
pessoas para Cristo do que a sucumbi-las com demasiada energia. Ele deve
manter essa docilidade até onde for possível, e não lançar mão da
severidade a menos que a isso seja forçado. Mas quando há necessidade de
tal expediente, ele não deve poupar a vara [Pv 13.24], porque, embora se
deva usar de mansidão com os que são dóceis e maleáveis, faz-se necessário
a autoridade no trato com os obstinados e insolentes. E assim vemos que a
Palavra de Deus não só contém doutrina e nada mais, mas também é
composta de reprovações, que se acham esparsas por toda ela, para que os
pastores se vejam também supridos com a vara. Pois às vezes sucede que,
por causa da obstinação de certas pessoas, os pastores, que são
naturalmente mansos,61 se vêem constrangidos a assumir outra atitude, por
assim dizer, ao agir com rigor e inclusive de maneira implacável.

1. “De iour humain – c’est à dire, de iugement d’homme.” – “O dia do homem – isto é, do critério
humano.”
2. “Pource que les Corinthiens iugeoyent de luy d’vne mauuaise sorte, et bien inconsidereement.”
– “Como os coríntios o julgavam de uma forma desfavorável e mui abruptamente.”
3. “Facilement on viendra à mespriser la parole de Dieu.” – “Prontamente virão a desprezar a
palavra de Deus.”
4. “Ils sont eux-mesmes comme les autres sous la domination de Christ.” – “Eles mesmos estão,
em comum com os demais, sob o domínio de Cristo.”
5. Nosso autor usa da mesma expressão quando comenta 1 Coríntios 11.23 e 15.3.
6. “Entre les dispensateurs.” – “Entre os despenseiros.”
7. “Et d’une façon magistrate.” – “E com um ar de magistrado.”
8. “Auec science et bonne discretion, et d’vn cœur droit.” – “Com conhecimento e boa discrição,
bem como com um coração reto.”
9. “Ils estoyent rauis en admiration de ces masques externes, comme gens tout transportez, et
ne regardouent point a discerner vrayement ne proprement.” – “Estavam arrebatados com
admiração ante as marcas estranhas, como pessoas em completo transporte, e não se
cuidavam em distinguir o verdadeiro e o legítimo.”
10. “Et orgueil” – “E orgulho.”
11. “Si entr’eux il y eust eu vne legitime et droite façon de iuger.” – “Se houvesse entre eles um
método lícito e correto de julgar.”
12. “Ils auoyent affaire à des gens opiniastes et pleins de rebellion.” – “Têm a ver com pessoas
que eram obstinadas e dominadas pela rebelião.”
13. “Se demonstrera estre merueilleusement impudent.” – “Ele demonstrará ser admiravelmente
impudente.”
14. A palavra dia, que é uma tradução literal da palavra original η̒μέρας, é usada em algumas de
nossas versões.
15. “Selon les sottes affections, ou les mouuemens temeraires des hommes.” – “Segundo os
tolos afetos ou impulsos temerários dos homens.”
16. “Comme on dit.” – “Como dizem.”
17. “Si nihil prorsus sibi consciret.” – nosso autor mais provavelmente tinha em vista uma
passagem bem conhecida de Horácio (Ep. I.i.61): “Nil conscire sibi” – “Ter consciência de que
em si não existe nenhum erro.”
18. “Combien sas conscience estoit pure et nette.” – “Quão pura e límpida era sua consciência.”
19. Tanquam agnothetæ. A alusão é aos oficiais ou árbitros (αγωνοθέται) que julgavam os prêmios
nos jogos gregos. (Ver Heródoto vi.127.)
20. “A ces docteurs pleins d’ostentation.” – “Àqueles mestres saturados de ostentação.”
21. “S’ils se contentent de bons et fideles docteurs, ils seront hors de danger d’vn tel mal.” – “Se
tivessem se contentado com os bons e fiéis mestres, se teriam postos além do risco desse
gênero de mal.”
22. “Rendre excellent, ou mettre en reputation.” – “Tornar eminente ou exaltar à fama.”
23. O leitor encontrará uma variedade de passagens deste teor citadas de Agostinho nas
Institutas.
24. “Comme estans choses contraires.” – “Como sendo coisas opostas.”
25. “Vsant d’ironie, c’est à dire, d’vne façon de parler qui sonne en mocquerie.” – “Fazendo uso
de ironia, isto é, uma forma de linguagem que possui um tom de zombaria.”
26. “Uma amarga zombaria”, diz Lightfoot, “castigando a vanglória dos coríntios, os quais tinham
se esquecido de quem primeiro receberam esses privilégios evangélicos, concernente aos quais
agora se envaideciam. Tinham se enriquecido com dons espirituais; reinavam, sendo eles
mesmos juízes, estando no próprio topo da dignidade e felicidade do evangelho; e isso ‘sem nós’,
diz o apóstolo, ‘como se nada nos devêsseis por tais privilégios’, e: ‘Oh, queira Deus que
reinásseis, e isso seria tão bom que gostaríamos de também reinar convosco para partilhardes
conosco um pouco de felicidade nessa vossa promoção, e para que tivéssemos alguma boa
reputação em vosso meio’!”
27. “Fausse et dangereuse.” – “Infundada e perigosa.”
28. “C’est vne folie, et bestise.” – “Isso constitui uma loucura e estupidez.”
29. “Et bien peu estimez.” – “E em tão pouca estima.”
30. “Condamnez à seruir de passe-temps en combattant contre des bestes.” – “Condenados a
servirem como passa-tempo na luta contra animais selvagens.”
31. “C’est une concession ironique, c’est à dire, qu’il accorde ce dont ils se vntoyent, mais c’est
par mocquerie, comme s’il disoit.” – “É uma irônica concessão; isto é, ele admite aquilo de que
se gloriam, mas zombeteiramente, como se ele quisesse dizer.”
32. “En faisant profession de l’Euangile, vous voulez auec cela estre estimez prudens.” – “Ao
fazerdes uma confissão do evangelho, desejais, juntamente com isso, ser tidos como sábios.”
33. “Pour l’amour de vous.” – “De amor por vós.”
34. “Est d’autant plus picquante, et aigre.” – “É tanto mais cortante e severo.”
35. Eustátio presume que λοιδορια se deriva de λογος, uma palavra, e δορυ, uma lança. Uma figura
afim é empregada pelo salmista, quando fala de palavras que são espadas desembainhadas. [Sl
55.21.]
36. “Or le premier signifie non seulement se gaudir d’vn homme, mais aussi toucher son honneur
comme en le blasonnant, et le naurer en termes picqunas: ce que nous disons communement,
Mordre en riant. Le second signifie quando on detracte apertement de quelqu’vn sans vser de
couuerture de paroles.” – “Ora, o primeiro significa não simplesmente divertir-se alguém em
detrimento de outrem, mas também ferir sua reputação como se fosse com o intuito de denegri-
la e feri-la com expressões cortantes, como comumente dizemos: dar-lhe um bom golpe em seu
humor. O segundo significa quando pessoas caluniam alguém publicamente sem usar qualquer
disfarce de palavras.”
37. “Que c’estoit vn mestier ville, et mechanique.” – “Que era um meio e ocupação mecânica.”
38. “Comme c’estoit vne chose qui se faisoit anciennement entre les payens.” – “Como esta era
uma coisa praticada antigamente entre os pagãos.”
39. Os escolásticos sobre Aristófanes, Plut. 454, apresentam a seguinte explicação do termo
κάθαρμα: Καθάρματα ἐλέγοντο ο̒ι επὶ τη̑, καθάρσει λοιμου̑ τινος ἤ τινος ἕτὲρας νάσου θυόμενοι τοις θεοι̑ς. Του̑το δὲ
τὸ ἔθος καὶ παρὰ ̔ Ρωμαίοις ἐπεκράτησε. Aquelas eram chamadas purificações, as quais eram
sacrificadas aos deuses para propiciar a fome ou alguma outra calamidade. Esse costume
prevalecia também entre os romanos.
40. “De malediction.” – “De maldição.”
41. “Les ballieures d’vne maison.” – “A varredura de uma casa.”
42. O ponto de vista apresentado por Budæus do primeiro termo (περικαθάρματα) é expresso por
Leigh em seu Critica Sacra como sendo este: “O apóstolo faz alusão às expiações em uso entre
os pagãos, no tempo de quaisquer pestes ou infecções contagiosas; para a remoção de tais
doenças, sacrificavam então certos homens a seus deuses, homens esses que eram
denominados καθάρματα. Como se o apóstolo dissesse: Somos tão desprezíveis e tão odiosos
aos olhos do povo, como se carregássemos as ignomínias e maldições da multidão, como as
pessoas condenadas que eram oferecidas para expiação pública.” Budæus traduz o último
termo (περίψημα) assim: “Scobem aut ramentum et quicquid limando deteritur.” – “Limagem ou
raspagem, ou qualquer coisa que é limpada por limatão.”
43. “Destiné à porter toutes les execratiions et maudissons du monde.” – “Separado para
suportar todas as execrações do mundo.”
44. “Tasche sur toutes choses que toute la honte demerure entre lui et celui lequel il
admoneste.” – “Tudo faz para que a vergonha permaneça entre ele e a pessoa a quem
admoesta.”
45. “Les marques et fletrisseurs de Christ en luy.” – “As marcas e estigmas de Cristo nele.” A
alusão, como o próprio autor observa ao comentar Gálatas 6.17, é às “marcas com que os
escravos bárbaros, ou fugitivos, ou malfeitores, eram marcados.” Daí a expressão de Juvenal:
stigmate dignum credere – “considerar alguém digno de ser marcado como escravo.” (Juv. x. 183.)
46. “Les docteurs et ministres.” – “Mestes e ministros.”
47. “Le ministre.” – “O ministro.”
48. “A palavra grega, pedagogue”, diz Calmet, “agora contém a idéia que se aproxima do desdém.
Com nenhuma outra palavra para qualificá-la, ela excita a idéia de um pedante que assume ares
de autoridade sobre outrem, a qual não lhe pertence. Mas entre os antigos, pedagogo era uma
pessoa a quem se confiava o cuidado dos filhos de outro, para conduzi-los, para fazê-los
observar seus deveres, instruí-los nos primeiros rudimentos. Assim o ofício de pedagogo quase
que correspondia ao de um governador ou tutor, que constantemente assistia seu aluno, o
ensinava e formava seus hábitos. Paulo [1Co 4.13] afirma: ‘Pois ainda que tivésseis dez mil
instrutores (pedagogos) em Cristo, contudo não teríeis muitos pais’ – se representando como
seus pais na fé, visto que os gerara no evangelho. O pedagogo, de fato, podia ter algum poder e
interesse em seu aluno, mas podia também nunca nutrir por ele a afeição natural de um pai.”
49. “Quel mal y auroit-il, quand nous dirions, qu’il fait aussi vne allusion à ceste petitesse et
enfance en la foy?” – “Que mal havia nisso, ainda que digamos que ele também faz uma alusão
àqueles pequeninos e infantes na fé?”
50. Nosso autor evidentemente faz alusão à etimologia do termo original, παιδαγωγοὺς, como se
derivando de παὶς, um menino, e ἄγω, guiar. Tais instrutores geralmente eram escravos, cuja
ocupação era dar assistência às crianças em sua responsabilidade, guiá-las de casa para a
escola e desta para aquela.
51. “La mauuaise procedure et façon d’enseigner des docteurs, d’autant qu’ils amusoyent leurs
disciples aux premiers rudimens et petis commencemens, et les tenoyent tousiours là.” – “O vil
procedimento e método de instrução dos mestres, ainda que entretivessem seus seguidores
com os primeiros e leves princípios, e os mantivessem constantemente aí.”
52. “Qu’on appelle.” – “Como a chamam.”
53. 210 Nosso autor provavelmente se refere ao que dissera ao comentar 1 Coríntios 3.2.
54. “Qui se loent, comme ouuriers à la iourneé, pour exercer l’office à leur profit, ainsi qu’on
feroit vne chose qu’on aura prise pour vn temps certain, et cependant tenir le peuple en
obeissance, et acquerir bruit, ou estre en admiration enuers iceluy.” – “Que se alugam como
obreiros por um dia a fim de exercerem o ofício em seu próprio benefício, como se fossem fazer
algo por apenas certo tempo, e no momento azado poderem manter as pessoas em sujeição, e
adquirirem fama ou desfrutarem de admiração entre eles.”
55. “Combien y en a-t-il qui facent office de père, et qui demonstrent par effet ce qu’ils veulent
estre appelez?” – “Quantos há entre eles que cumprem o ofício de pai e mostram nos atos do
que desejam ser chamados?”
56. “Si est-ce que jamais ils ne vienent à combatre franchement, et s’ils ne voyent leur auantage:
mais plustot en vsant de ruses et circuits obliques, ils monstrent leur deffiance, et comment ils
sont mal asseurez.” – “Assim sucede que nunca saem francamente em combate, a não ser que
tenham uma visão de sua própria vantagem; mas, ao contrário, ao fazerem uso de artimanhas e
rodeios, demonstram sua falta de confiança e de quão desconfiados são.”
57. “D’vn bon zele, et pure affection.” – “Com um zelo correto e uma afeição pura.”
58. “Proram et puppim.” – “A proa e a popa.”
59. “Sçaura bien babiller et parler eloquemment, et cependant il n’aura rien qu’vn son
retentissant en l’air.” – “Tem habilidade de tagarelar com facilidade e falar eloqüentemente, e no
ínterim nada tem senão sons lançados ao ar.”
60. “Et ce n’est point au peuple seulement qu’est ce defaut.” – “E não é meramente entre as
pessoas que tal defeito existe.”
61. “Qu’on pourra trouuer.” – “Que se possa achar um.”
Capítulo 5

1. Geralmente se ouve que há fornicação entre vós, e fornicação tal que nem mesmo
entre os gentios se ouve, ou, seja, que um dentre vós possua a esposa de seu pai.
2. E vós estais ensoberbecidos, e nem mesmo chorastes, para que quem cometeu tal
ação fosse eliminado de entre vós.
3. Pois eu, na verdade, estando ausente no corpo, porém presente no espírito, já julguei,
como se estivesse presente, que aquele que praticou tal coisa,
4. em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, reunidos vós e meu espírito, com o poder de
nosso Senhor Jesus Cristo,
5. seja entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo
no dia do Senhor Jesus.

1. Omnino auditur in vobus scortatio, et talis scortatio, quæ ne inter Gentes quidem
nominatur, ut quis uxorem patris habeat.
2. Et vos inflati estis, ac non magis luxistis, ut e medio vestri removeretur, qui facinus hoc
admisit.
3. Ego quidem certe tanquam absens corpore, præsens autem spiritu, jam iudicavi
tanquam præsens, qui hoc ita designavit,
4. In nomine Domini nostri Iesu Christi, congregatis vobis et spiritu meo, cum potentia
Domini nostri Iesu Christi, eiusmodi inquam hominem.
5. Tradere Satanæ in exitium carnis, ut spiritus salvus fiat in die Domini Iesu.

1. Geralmente se ouve que há fornicação. Visto que suas disputas eram


oriundas do orgulho e excessiva autoconfiança, como já observamos,1
Paulo se apressa de maneira bastante apropriada ao fazer menção de suas
doenças [morbos], reconhecendo que os esteve, provavelmente, humilhando.
Primeiramente, ele lhes traz à lembrança que é algo muitíssimo desditoso
que se permita que alguém dentre seu rebanho mantenha uma iníqua relação
com sua madrasta. Não fica claro se ele a seduziu, tirando-a de seu pai, como
uma prostituta, ou se a conservou sob o disfarce do casamento. Mas isso,
indubitavelmente, não constitui muito problema, pois enquanto no primeiro
caso teria havido uma extrema impiedade e detestável fornicação, em
contrapartida, no último teria havido uma união incestuosa, estranha à
respeitabilidade e ao decoro. Ora, para que não parecesse estar
apresentando uma acusação contra eles com base numa suspeita incerta, ele
declara que está apresentando algo que constitui matéria de comum
conhecimento. Porque considero o termo ὅλως (geralmente) como que
realçando aquilo que não era um rumor duvidoso, mas um fato óbvio,
notícias de um fato que era divulgado por toda parte, provocando muito
escândalo.
Visto Paulo dizer que essa era uma fornicação de tal gênero que nem
mesmo entre os gentios se tinha notícia, há quem acredita que ele está se
referindo ao incesto de Rúben [Gn 35.22], o qual também cometeu esse
crime com sua nora. Acredita-se que Paulo não fez menção de Israel em
razão de o mesmo ter o exemplo de algo tão deprimente em sua história,
como se as histórias dos gentios, de fato, não fizessem referência a tantos
casos de incestos do mesmo gênero! Pelo quê, esta noção fictícia é
completamente estranha ao que Paulo tinha em mente, pois a razão para ele
mencionar mais os gentios do que os judeus é que ele desejava salientar a
hediondez do crime acima de todos os demais. Diz ele: “Vós permitis este
caso tão infame como se fosse algo natural, porém é algo que nem mesmo
entre os gentios seria tolerado; sim, algo tão grave que eles [os gentios] têm
sempre olhado com horror, aliás, da mesma maneira que se olha para um
monstro.” Portanto, quando ele assevera que tal coisa não era ouvida nem
entre os gentios, nem mesmo mencionada em sua literatura, porquanto suas
tragédias certamente escreveram a respeito, mas que abominava os gentios,
assim como uma asquerosidade e horrível monstruosidade destrói até
mesmo a própria modéstia natural, porquanto não passa de uma luxúria
bestial.
Se alguém perguntar se é justo que o pecado de alguém se torne um
motivo para repreensão de todos, respondo que os coríntios são acusados
não porque um de seus membros pecara, mas porque, como vemos mais
adiante, fechavam seus olhos para um ato tão abominável, o qual merecia o
mais severo repúdio, ao contrário, se encorajavam.
2. E vós estais ensoberbecidos. “Não vos envergonhais de vós mesmos
por sentir-vos orgulhosos de algo que deveria, ao contrário, provocar-vos
humilhação? Paulo asseverara anteriormente que mesmo as mais excelentes
qualidades possíveis não devem provocar vanglória, visto que ninguém
possui algo propriamente seu, senão que, na verdade, são todos
possuidores das mesmas excelentes qualidades [1Co 4.7] provindas da
graça de Deus, e nada mais. Agora, porém, os ataca por um prisma diferente.
“Visto que o infortúnio vos cobre”, diz ele, “que espaço deixais vós,
portanto, para o orgulho e vanglória? Porquanto sois espantosamente cegos
em vangloriar-vos quando vos achais envolvidos por coisas tão
deprimentes, a despeito, por assim dizer, dos anjos e dos homens.”
Ao dizer e nem mesmo chorastes, ele está argumentando à guisa de
contraste; pois onde há pranto não pode haver mais glorificação. Pode-se
perguntar por que deveriam chorar os pecados de outrem. Para isso
apresento duas razões: Em primeiro lugar, uma vez que existe comunhão
entre os membros da Igreja, o fato é que todos eles seriam afetados pela
apostasia da parte de um deles. Em segundo lugar, quando um ato danoso é
cometido em alguma igreja, a culpa não se confina à pessoa que o cometeu,
mas todo o grupo em alguma extensão é também contaminado. Por exemplo,
Deus humilha um pai pelo infortúnio de sua esposa ou filhos; e toda uma
família, pela desgraça de um de seus membros. Cada Igreja deve ponderar
sobre este fato, ou, seja, que ela é marcada com o estigma da desgraça toda
vez que algum infamante crime é cometido em seu seio. Mais que isso:
lembremo-nos de que a ira de Deus se inflamou contra todo o Israel em
virtude do sacrilégio de apenas um homem – Acã [Jz 7.1]. Não é o caso de
Deus ser tão cruel que dê vazão a sua fúria sobre o inocente por causa do
crime de algum outro. Mas, uma vez que já existe alguma evidência de sua
ira, toda vez que algo assim acontece entre um povo, e então passa a punir a
todos pela ofensa de apenas um, faz-se evidente que o corpo todo se acha
infectado e corrompido pela contaminação causada por algum erro. Pode-se
facilmente inferir disso que é dever de cada Igreja prantear os pecados de
seus membros individuais, como se as desgraças domésticas fossem
envolver o corpo todo. E não há dúvida de que uma piedosa e justa correção
começa quando nos dispomos a inflamar-nos de zelo pela santidade através
do descontentamento com o erro, porque, do contrário, a severidade virá
saturada de amargura.2
Para que ... fosse eliminado de vosso meio. Paulo agora esclarece ainda
mais que gênero de acusação promove contra os coríntios, ou, seja, sua
indiferença fechando seus olhos para uma abominação tão grave. Subtende-
se também deste fato que as igrejas são supridas com este poder3 para que
possam corrigir ou remover por meio de estrita disciplina algum erro que
porventura surja nelas; e para que não sejam escusados os que não são
vigilantes com referência à necessidade de se afastar a imundícia. Por isso
Paulo aqui condena os coríntios. Por quê Porque não tiveram a mínima
preocupação em punir um homem por seu crime. Não obstante, sua
acusação contra os coríntios teria sido injusta se porventura não possuísse
este poder. Portanto, à luz desta passagem estabelece-se o poder de
excomunhão. Por outro lado, visto que esses meios de punição foram dados
às igrejas, Paulo mostra que aquelas [igrejas] que não os usam, quando as
circunstâncias o requeiram, estão pecando.4 Pois, do contrário, ele seria
injusto para com os coríntios responsabilizando-os por esse erro.
3. Pois eu, na verdade. Diante do fato de que os coríntios estavam
deixando de cumprir seus deveres, depois de haver condenado sua
negligência, Paulo agora mostra o que deve ser feito. Para que essa desonra
fosse obliterada, o incestuoso teria que ser posto para fora da sociedade
dos fiéis. Assim ele estabelece que a excomunhão é a cura para os
distúrbios; mas enquanto estes fossem protelados, eles também
prosseguiriam no erro. Ao dizer que já tomara essa decisão enquanto
“ausente no corpo”, essa foi a forma de apresentar sua queixa contra a mais
séria de todas as displicências dos coríntios, pois um contraste implícito
subjaz a ela. É como se dissesse: “Vós, que vos achais em dificuldades,
devíeis ter encontrado um remédio para essa antiga enfermidade, visto que
ela está constantemente diante de vossos olhos; quanto a mim, que me acho
distante,5 não posso conformar-me com tal situação.”
No presente caso, entretanto, alguém poderia formular um veemente
protesto, dizendo que, já que se acha distante, ele ousa formalizar um
veemente juízo com base na influência de rumores. Paulo insiste, contudo,
que ele se acha “presente em espírito”, cuja intenção é dizer que sua
responsabilidade era nele tão nítida como se estivesse pessoalmente ao
lado deles, e como se visse as coisas com seus próprios olhos. Agora vale a
pena ver o que ele ensina sobre o método de excomunhão.
4. Reunidos vós com meu espírito, ou, seja, “reunidos comigo”, porém
em espírito, uma vez que lhes era fisicamente impossível que estivessem
juntos. Mas ele assevera que estarão juntos exatamente como se ele
estivesse pessoalmente presente. Deve-se observar que Paulo, ainda que
apóstolo, não excomunga sozinho, satisfazendo sua própria vontade, porém
leva em consideração a Igreja em conselho para que a questão seja tratada
em consenso geral. É verdade que ele vai em frente e mostra o caminho, mas,
quando associa outros consigo, ele deixa plenamente claro que o poder não
repousa sobre um único indivíduo. Todavia, visto que a multidão nunca faz
nada com moderação nem com dignidade a menos que seja guiada por
conselho, um Presbitério6 foi designado na Igreja primitiva, ou, seja, um
colégio de anciãos [ou presbíteros] [collegium Seniorum], o qual, por
consenso geral, era incumbido da investigação inicial de um caso. A partir
deles, o caso, já prejulgado7 em seu curso, era encaminhado ao povo. Não
importa qual o caso, está em completa desarmonia com a instituição de
Cristo e dos apóstolos, com a ordem da Igreja e, de fato, com a própria
eqüidade, que o direito de excomunhão seja posto nas mãos de um único
homem, sobre sua própria autoridade, não importa que pessoa seja ele.
Portanto, notemos bem que, em se tratando de uma questão de
excomunhão, este arranjo regular deve ser mantido, ou, seja, que esta
disciplina particular deve ser exercida pelos anciãos consultores reunidos,
com a anuência do povo. E notemos ainda que este é um remédio preventivo
contra a tirania. Porque nada existe em mais frontal oposição à disciplina de
Cristo [Christi disciplinae] do que a tirania; e a porta se abre de par em par
para ela quando todo o poder fica circunscrito a um único homem.
No nome de nosso Senhor. Pois não é suficiente estarmos reunidos, se
isso não é feito no nome de Cristo; pois até mesmo os ímpios se congregam
para maquinar seus males, seus planos iníquos. Além do mais, para que a
reunião seja celebrada no nome de Cristo, duas coisas são requeridas: (1)
que tenha início com a invocação de seu nome; e (2) não se deve realizar
nada que não esteja em conformidade com sua Palavra. Portanto, que as
pessoas reunidas estejam comprometidas de só agir depois que o Senhor
seja invocado com toda sinceridade, rogando que sejam guiados por seu
Espírito e que todos seus planos sejam, por sua graça, dirigidos rumo a
resultados benéficos. Para que se faça uma boa abertura, devem igualmente
“consultar sua boca”, no dizer do profeta [Is 30.2]; em outros termos, após
consultar seus oráculos, devem entregar-se a si e a todos seus planos em
completa obediência a sua vontade. Se este deve ser o procedimento,
mesmo em relação a nossas ações menos importantes, quanto mais em se
tratando de questões concernentes a Deus, do que se tratando de questões
propriamente nossas! Por exemplo, a excomunhão é uma ordenança de Deus
mesmo, e não do homem; portanto, sempre que a usarmos, em que ponto
começaremos senão em Deus?8 Em suma, quando Paulo impele os coríntios
a se reunirem no nome de Cristo, ele solicita não tanto que usem o nome de
Cristo ou o confessem com seus lábios (porque também os ímpios podem
fazê-lo), mas que o busquem sinceramente, com todas as veras do coração.
Além do mais, ao dizer isso, ele indica a seriedade e importância do que está
dizendo.
E acrescenta: com o poder de nosso Senhor. Porque, se a promessa é
genuína – “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no
meio deles” [Mt 18.20] –, segue-se que tudo quanto se realizar em tal reunião
provém de Cristo. Daí inferirmos quão importante é a excomunhão legítima
aos olhos de Deus, visto que ela depende do poder de Deus. Pois a seguinte
palavra deve também ser implementada: “... tudo o que ligardes na terra terá
sido ligado no céu” [Mt 18.18]. Entretanto, visto que esta declaração deve
encher de inusitado espanto os corações dos que desprezam9 a Deus, então
os pastores fiéis, tanto quanto todas as igrejas em geral, são com isso
admoestados com que espírito devoto,10 devem eles proceder em questões
tão sérias. Pois a verdade é que o poder de Cristo não está sujeito à vontade
e opiniões humanas, mas está associado a sua verdade eterna.
5. Seja entregue a Satanás para a destruição da carne. Visto que os
apóstolos estavam munidos com poderes, entre outros, de entregar os
ímpios e os obstinados a Satanás, e de usá-lo como um chicote para corrigi-
los, Crisóstomo e outros que o seguiam tomam estas palavras de Paulo
como uma indicação desse gênero de castigo. E isso está em harmonia com
a exposição usualmente dada de outra passagem alusiva a Alexandre e
Himeneu [1Tm 1.2]. Daí entenderem eles que “entregar a Satanás” nada mais
é senão a aplicação de algum castigo físico muito severo. Quanto a mim,
particularmente, quando observo de mais perto o texto todo, e ao mesmo
tempo comparo o que é expresso na próxima epístola, rejeito a interpretação
supra como sendo forçada e não estando em harmonia com a intenção de
Paulo, e a entendo simplesmente no sentido de excomunhão. Porque
“entregar a Satanás” é uma forma adequada de descrever excomunhão; visto
que, enquanto Cristo reina dentro da Igreja, Satanás reina fora dela.
Agostinho também faz um comentário semelhante em seu sexagésimo
oitavo sermão sobre as palavras do apóstolo, onde esta passagem é
ventilada. Portanto, em virtude de sermos recebidos à comunhão da Igreja e
de permanecermos nela na condição de que estamos sob a proteção e
responsabilidade de Cristo, afirmo que a pessoa que é afastada da Igreja
está, de certa forma, entregue ao poder de Satanás, porquanto se acha
alienada e excluída do reino de Cristo.
A frase que segue – para a destruição da carne – é adicionada à guisa de
mitigação. Porquanto Paulo não pretende dizer que a pessoa, ao ser
corrigida, está sendo entregue a Satanás para completa destruição, ou que se
fez escrava dele para sempre, mas que sua sentença é temporária e, ainda
mais, que será para seu bem. Visto que, no que concerne ao espírito, tanto
sua salvação quanto sua reprovação são eternas, ele toma a condenação da
carne como sendo temporária. Ele poderia dizer: “Nós o condenaremos por
um período de tempo, neste mundo, a fim de que o Senhor o conserve em
seu reino. “Assim é removida a objeção, pela qual alguns tentam refutar esta
explicação. Porque, diante do fato de a sentença de excomunhão ser dirigida
mais contra a alma do que contra o corpo, então perguntam como é possível
ser ela adequadamente denominada “destruição da carne”. Replico que,
como já sugeri, a destruição da carne é uma questão completamente distinta
da salvação do espírito sobre esta única base, a saber, a primeira é temporal,
enquanto que a última é eterna. É neste sentido que o apóstolo fala de “os
dias de sua carne”, com referência a Cristo, em Hebreus 5.7, significando o
período de sua vida mortal. Mas a razão por que a Igreja pune severamente
transgressores e não os deixa impunes neste mundo, é para que Deus os
poupe.11 Se alguém deseja aprender mais sobre a disciplina da excomunhão,
suas causas, necessidade, propósitos e moderação quanto a seu uso,
poderá encontrá-la em minhas Institutas (4.12).

6. Não é boa vossa vanglória. Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a
massa?
7. Expurgai-vos, pois, do velho fermento, para que sejais uma nova massa, assim como
estais sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, também foi crucificado.
8. Por isso observemos a festa, não com o velho fermento, nem com o fermento da
malícia e da maldade, mas com o pão asmo da sinceridade e da verdade.

6. Non est bona gloriatio vestra: an nescitis, quod exiguum fermentum totam massam
fermenta?
7. Expurgate ergo vetus fermentum, ut sitis nov conspersio, sicut estis azymi: nam
Pascha nostrum pro nobis immolatum est, Christus.12
8. Proinde epulemur non in fermento veteri, neque in fermento malitiæ et pravitatis, sed
in azymis sinceritatis veritatis.13

6. Não é boa vossa vanglória. Paulo condena sua ostentação, não só


porque se consideravam num nível mais elevado do que os homens
designados para tal, mas porque se deleitavam em seus erros. Anteriormente
ele despiu os homens de toda glória; pois mostrou que, já que não possuem
nada propriamente seu, não importa quão excelentes venham a ser, o fato é
que devem tudo a Deus somente. Por certo que o que ele está discutindo
aqui não é se Deus é ou não esbulhado de seus direitos quando os mortais
reivindicam para si o crédito de suas próprias virtudes, mas que os
coríntios estavam sendo extremamente insensatos ao tomar conhecimento
de sua bela plumagem sem a menor razão para isso. Porque se achavam tão
imbuídos de orgulho, que acreditavam que viviam nas condições de uma
idade áurea, quando, na realidade, estavam cercados por muitas coisas que
eram ímpias e desditosas.
Não sabeis? Para que não chegassem a pensar que esta é uma questão de
pouca ou de nenhuma importância para instigá-los a um mal tão grande,
Paulo mostra quão nociva é uma atitude displicente e descuidosa em casos
como este. Ele, porém, faz uso de um dito proverbial, no caso de uma cidade
toda ser infectada pela enfermidade de uma só pessoa. Pois, neste
contexto,14 este provérbio tem o mesmo significado destas palavras de
Juvenal (Sat.II.79ss): “Todo um rebanho nos campos é abatido por causa da
sarna de um porco; e uma uva é danificada por causa de outra.” Eu disse
“neste contexto” porque em outro lugar Paulo faz dele um sentido bem
distinto (bom, evidentemente), como veremos [Gl 5.9].
7. Expurgai-vos. Tendo adotado a metáfora do fermento, Paulo continua
usando-a, embora faça uma transição de um caso particular para um ensino
mais geral. Pois ele não mais está se referindo ao caso de incesto, mas está
fazendo um apelo aos coríntios para que busquem uma pureza de vida mais
plena, visto que não podem permanecer em Cristo a não ser que se
purifiquem continuamente. É plenamente normal para ele proceder assim,
ou, seja: quando afirma algo acerca de uma questão particular, então
aproveita a oportunidade para transitar disso para palavras de
encorajamento geral. Ele mencionara o fermento em outra conexão, como já
vimos, mas já que esta mesma metáfora se ajusta ao ensino geral que está
para apresentar, então repete o uso dela.
Nossa Páscoa [pascha] foi crucificada. Antes de tratar do conteúdo,
falarei um pouco sobre as palavras propriamente ditas. O “velho fermento”
se apresenta, nesta descrição, sob o mesmo princípio do “velho homem”;
porque a corrupção da natureza é nossa primeira condição antes de
nascermos de novo em Cristo. Portanto, o que trazemos conosco do ventre
materno diz-se ser “velho”, e o mesmo deve morrer quando somos
renovados pela graça do Espírito.15
O verbo crucificar (ἐτύθη), visto encontrar-se entre o nome de Cristo e a
palavra para sacrifício (πάσχα), pode ser considerado como uma referência a
outro. Tenho-o considerado como uma referência a sacrifício; entretanto,
isso não tem muita importância, visto que o significado não é afetado.
O verbo ἑορτάζωμεν, que Erasmo traduziu por “celebremos a festa”
[Festum celebremus], também significa tomar parte na festa solene depois de
o sacrifício ser oferecido. Este significado parece adequar-se melhor ao
presente contexto. Portanto, tenho seguido mais a Vulgata [epulemur] do
que Erasmo, visto que esta tradução está muito mais em consonância com o
mistério com o qual Paulo está tratando.
Voltemos ao conteúdo. Visto que Paulo deseja que os coríntios sejam
encorajados para a prática da santidade, ele propõe que o que fora há muito
tempo representado na páscoa, deve agora tornar-se uma realidade em nós;
explica qual é a relação existente entre a figura e a realidade. Em primeiro
lugar, visto que a páscoa tinha duas partes, o sacrifício e a festa sacra, ele
menciona ambas. Pois ainda que haja quem pense que o cordeiro pascoal
não era um sacrifício, não obstante a razão consegue provar que ele era um
sacrifício apropriado, porque neste rito o povo era reconciliado com Deus
por meio da aspersão de sangue. No entanto, não existe reconciliação sem
um sacrifício. O apóstolo, imediata e claramente, confirma isso; pois ele usa
o verbo θύεσθαι (sacrificar), o qual é o termo apropriado para sacrifícios, do
contrário estaria fora de propósito neste contexto. O cordeiro, pois, era
sacrificado a cada ano, e a festa costumava vir imediatamente depois, e
durava por sete dias sucessivos. “Cristo”, diz Paulo, “é nossa Páscoa”.16 Ele
foi sacrificado uma vez por todas, e, nesta condição, que o efeito de seu
único sacrifício dure para sempre. Nesse ínterim, o que devemos fazer é
comer;17 e que não seja apenas uma vez ao ano, mas perenemente.
8. Na celebração desta festa sacra devemos, naturalmente, abster-nos de
fermento, como Deus ordenara aos pais que se abstivessem; mas, de que
gênero de fermento? Exatamente como o rito da páscoa representava a
genuína páscoa para eles, assim seus elementos [accessiones] também
prefiguravam aquela realidade de Cristo, introduzamos sinceridade e
verdade na festa, permitindo-lhes que sejam nosso pão sem fermento. Que
haja um fim para toda a malícia e impiedade, já que é contra a vontade de
Deus introduzir fermento na páscoa. Em suma, ele assevera que só seremos
membros de Cristo quando abrirmos mão da malícia e do engano.
Entretanto, esta passagem requer nossa prestimosa atenção, pois ela
evidencia que a antiga páscoa não era só μνημοσυνον,18 isto é, o memorial de
uma bênção no passado, mas também um sacramento do Cristo que estava
para vir, o qual é o vínculo de nossa passagem da morte para a vida. De
outro modo não ficará confirmado que em Cristo está a substância das
sombras da lei [Cl 2.17]. Esta passagem será também eficaz para provar que
o sacrifício da hóstia papal é falso. Pois Paulo não ensina que Cristo é
oferecido todo dia, mas que o sacrifício, tendo sido efetuado uma vez por
todas, o que nos resta fazer é celebrar a festa espiritual ao longo de toda
nossa vida.

9. Escrevi-vos em uma epístola a não fazerdes companhia aos fornicadores;


10. não exatamente com os fornicadores deste mundo, ou com os avarentos e
extorsores, ou com os idólatras; porque então vos seria necessário sair do mundo.
11. Mas agora vos escrevi para não manterdes em vossa companhia a alguém que se
chama irmão for fornicador, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão ou
extorsor; com o tal nem mesmo comais.
12. Porque, que tenho eu em julgar os de fora? Não julgais vós os que estão dentro?
13. Mas Deus julga os que estão de fora. Expulsai de entre vós o ímpio.

9. Scripsi vobis in Epistola, Ne commisceamini scortatoribus:


10. Neque in universum scortatoribus mundi hujus, vel avaris, vel rapacibus, vel
idololatris: quandoquidem debuissetis ex hoc mundo exire.
11. Nunc autem scripsi vobis, Ne commisceamini: si is qui frater nominatur, vel scortator
sit, vel avarus, vel idoloatra, vel maledicus, vel ebriosus, vel rapax: eum tali ne cibum
quidem sumatis.
12. Quid enim mea refert extraneos iudicare? an non eos qui intus sunt indicatis?
13. Extraneos vero Deus iudicat: eiicite scelestum ex vobis ipsis.
9. Escrevi-vos em uma epístola. A epístola a que se refere não existe
hoje. Não há dúvida de que muitas outras se acham perdidas. Não obstante,
baste-nos que podemos descansar no fato de que o Senhor fez com que
fossem preservadas as que satisfariam nossas necessidades. No entanto, em
razão de sua obscuridade, esta passagem tem sido torcida com o fim de
sugerir diferentes significados. Em meu modo de entender, não devemos
gastar tempo em refutar tais interpretações, mas simplesmente declaro qual
me parece ser o genuíno significado. Paulo traz à memória dos coríntios que
já os avisara: que se abstivessem de manter qualquer tipo de relação com os
ímpios. Porque o significado da expressão traduzida por “vos absterdes da
companhia de” é viver em termos amigáveis com alguém e viver em
envolvimento íntimo com ele. Além disso, seu lembrete se presta a
desmascarar sua lentidão, porque, a despeito de sua advertência, não
haviam feito absolutamente nada.
Ele acrescenta uma exceção, para que pudessem entender mais
claramente que o que ele diz tem a ver, estritamente falando, com os de
dentro da Igreja, porquanto não havia necessidade que fossem advertidos19
quanto a evitar as pessoas de fora ou do mundo. Em suma, pois, ele proíbe
os coríntios de manterem relação social com aqueles que, professando ser
crentes, não obstante estavam vivendo de uma forma degradante e ofensiva
a Deus. Ele poderia ter dito: “Todos quantos desejam ser considerados
irmãos, ou vivam vidas santas e dignas, ou sejam excomungados da
sociedade dos piedosos; e que todos os justos evitem manter negócios e
relações sociais com eles. Seria supérfluo mencionar aqueles que não fazem
questão de dissimular suas vidas ímpias, pois estes poderiam evitar
espontaneamente, sem necessidade de qualquer aviso meu.” Mas esta
exceção só faz a acusação de negligência ser ainda mais séria, porque no
seio da própria Igreja, um homem infame está sendo estimulado. Pois é mais
vergonhoso negligenciar um membro da própria família do que alguém de
fora.
10. Porque então vos seria necessário sair do mundo. É especialmente
sobre esta frase que os intérpretes diferem. Pois alguns dizem: “Seria
preferível que vos emigrásseis da Grécia.” Ambrósio, porém, prefere: “É
preferível que morrais.” Erasmo o põe no optativo, como se Paulo dissesse:
“Realmente gostaria que vos fosse permitido deixar o mundo de uma vez
por todas;20 mas, visto que não podeis fazer isso, pelo menos podeis
romper as relações com aqueles que falsamente se dizem cristãos, cujas
vidas, ao mesmo tempo, são um péssimo exemplo.” A explicação de
Crisóstomo se aproxima mais da verdade. Segundo ele, o significado seria o
seguinte: “Quando vos digo que eviteis os fornicadores, não pretendo que
todos eles sejam dessa categoria, do contrário precisaríeis procurar outro
mundo. Porquanto seria preferível vivermos entre os espinheiros enquanto
somos hóspedes na terra. A única condição que faço é que não vos
mistureis com os fornicadores que vos obrigam a considerá-los como
irmãos; neste caso, ao tolerardes sua impiedade, poderíeis dar a impressão
de os estardes aprovando.” Daí a palavra mundo, aqui, deve ser considerada
como significando esta presente vida, como em João 17.15: “Não peço que os
tires do mundo, e, sim, que os guardes do mal.”
A seguinte objeção pode apresentar-se contra esta exposição: “Visto que
Paulo vem falando até aqui do tempo em que os cristãos se achavam ainda
misturados e espalhados por entre os ímpios, o que se deveria fazer agora,
quando todos se acham alistados sob a bandeira de Cristo? Pois precisaria
haver uma retirada do mundo também em nossos dias, caso queiramos
evitar a companhia dos ímpios; e não existe ninguém do lado de fora
quando todos reconhecem o nome de Cristo e lhe são consagrados no
batismo. “Caso alguém se sinta inclinado a seguir Crisóstomo, então não lhe
será difícil responder, com este resultado: que Paulo aqui admitiu um fato
verídico: onde existe o poder de excomunhão, ele é um mero paliativo para
separar o mal do bem, se as igrejas cumprirem seu dever. Os cristãos de
Corinto não exerciam jurisdição sobre os de fora, e ele [Paulo] não tinha
nenhum poder para controlar suas vidas dissolutas. Portanto, era
necessário que deixassem o mundo, caso pretendessem evitar os ímpios,
cujos vícios não podiam curar.
Eu mesmo não acho fácil adotar interpretações que não há como
concordar com as palavras, se estas não forem torcidas a fim de adequar-se
àquelas, e por isso sou favorável àquela que é um pouco diferente de todas
as demais. Tomo sair no sentido de “ser separado”; e mundo, no sentido de
“as coisas impuras do mundo”. É como se Paulo dissesse: “Que necessidade
tendes de advertência quanto aos filhos deste mundo [Lc 16.8], visto que
uma vez por todas renunciastes o mundo e deveis manter-vos longe de sua
sociedade? porquanto ‘o mundo inteiro está sob o poder do maligno’21 [1Jo
5.19].” Se alguém não se sente satisfeito com esta explicação, há outra
também provável: “Não escrevo com o fim de fazer-vos um apelo geral, para
que eviteis a companhia dos fornicadores deste mundo; não obstante,
provavelmente estais fazendo isso de vossa própria iniciativa, sem qualquer
advertência de minha parte.” Entretanto, eu mesmo prefiro a primeira
alternativa. Certamente que não sou o primeiro a pensar assim, por isso
apresento o que outros propuseram antes; outra coisa não tenho feito senão
buscar mais harmonia com o discurso de Paulo, se eu não estiver
equivocado. Há, pois,22 uma sorte de omissão intencional aqui, quando ele
diz que não está se referindo aos de fora, uma vez que os coríntios já tinham
se separado deles, para que soubessem que mesmo em casa23 requerer-se-ia
deles que conservassem esta disciplina de evitar-se os ímpios.
11. Alguém que se chama irmão. No grego temos um particípio24 sem
um verbo.25 Aqueles que consideram isso como se referindo ao que segue
introduzem um significado que é forçado e diferente do que Paulo tinha em
mente. Admito, naturalmente, que o ponto de vista correto e digno de
atenção é o seguinte: ninguém pode ser punido pelo veredito da Igreja, a
menos que seu pecado seja conhecido. Estas palavras de Paulo, porém, não
podem ser tomadas para produzirem esse significado. Portanto, sua
intenção era dizer o seguinte: “Se alguém, a quem considerais irmão, vive
uma vida vergonhosa e indigna de um cristão, então nada tendes a ver com
ele.” Em suma, a descrição de irmão aqui se refere a uma falsa profissão de
fé, a qual não corresponde à realidade. Além do mais, Paulo aqui não
apresenta uma lista completa de pecados, porém menciona cinco ou seis à
guisa de exemplo. Finalmente, ele sintetiza o lembrete nas palavras “o tal”; e
os pecados que ele menciona são aqueles dos quais as pessoas têm
consciência. Porque as impiedades da vida íntima, e tudo o que é secreto,
não são expostos ao tribunal da Igreja.
Entretanto, é incerto o que Paulo tinha em mente para idólatra. Pois,
como poderia alguém que vive sob o mandamento de Cristo se dedicar aos
ídolos? Há quem pense que entre os coríntios daquele tempo havia quem
abraçava Cristo parcialmente, e que, no entanto, ao mesmo tempo não se
desembaraçava das superstições. Assim foi com os primeiros israelitas, e
mais tarde com os samaritanos de outrora; não importa que gênero de
adoração a Deus praticavam, o certo é que costumavam contaminá-la com
vis superstições. Todavia, minha opinião é que se refere aos que, enquanto
desprezavam os ídolos, não obstante estavam fazendo uma encenação de
culto a eles com o fim de agradar os ímpios. Paulo está afirmando que a
fraternidade cristã não deve incluir pessoas desse gênero; e isso é
justificável ante o fato de que estavam cooperando para expor a glória de
Deus à ignomínia.
É preciso, porém, que atentemos bem para as circunstâncias do caso,
porque, enquanto tinham uma igreja ali, onde poderiam prestar a Deus um
culto puro, e legitimamente desfrutar dos benefícios dos sacramentos,
todavia se chegavam à igreja não com a intenção de desvencilhar-se da
comunhão impura com os incrédulos. Faço esta observação a fim de
ninguém pense que devamos empregar medidas igualmente severas contra
os que, enquanto nestes dias se deixam dispersar pela tirania do papa, se
contaminam com muitos ritos deteriorados. Estes, deveras, repito,
geralmente pecam neste aspecto e devem, reconheço, ser tratados com
severidade e diligentemente instados26 para que aprendam, por fim, a
consagrar-se totalmente a Cristo; porém não ouso avançar mais,
considerando-os dignos de excomunhão, porquanto seu caso é diferente.27
Com o tal nem mesmo comais. Precisamos saber, em primeiro lugar, se
Paulo aqui está dirigindo-se a toda a Igreja ou a indivíduos. A isso devo
replicar que certamente a referência é a indivíduos, mas, ao mesmo tempo,
está conectado com sua disciplina em comum. Porque o poder de
excomunhão não é concedido a cada membro, mas a todo o corpo. Quando,
pois, a Igreja exerce excomunhão sobre alguém, nenhum crente deve manter
relações de amizade com ele. Além disso, a autoridade da Igreja de nada
valeria se aos indivíduos fosse permitido convidar para suas próprias
mesas àqueles que foram excluídos da mesa do Senhor. Por participação de
alimento aqui está implícito ou a conservação da vivência ou a associação
familiar nas refeições. Pois se entro numa hospedaria e vejo alguém que
sofreu excomunhão sentado ali, não há nada que me impeça de sentar-me
com ele, porque não tenho poder para expulsá-lo. Paulo, porém, está
afirmando que, até onde estiver em nosso poder, devemos evitar relações
com aqueles a quem a Igreja eliminou de sua comunhão.
Não satisfeito com esta severidade, o anticristo romano tem-se
continuamente prorrompido com interditos, proibindo que alguém que se
acha em regime de excomunhão seja socorrido com alimento, com
abastecimento de bebidas ou outras necessidades da vida.28 Ora, isso não
equivale a autoridade na disciplina, mas arbitrariedade e cruel selvageria, o
que está em violento conflito com a intenção de Paulo. Visto que infligimos
este sinal de repúdio público sobre alguém com o fim de o mesmo cobrir-se
de vergonha e retome o curso de seu bom senso, arrependendo-se, Paulo
pretende que tal pessoa seja considerada, “não como inimigo, mas como
irmão” [2Ts 3.15]. E, em nome de Deus, desforram-se do inocente,29
desabafando sua ira com extrema crueldade! Finalmente, mesmo que às
vezes haja alguém que mereça esta punição, digo que este gênero de
interdição30 é completamente impróprio para o tribunal da Igreja.
12. Porque, que tenho eu em julgar os de fora? Não há nada que nos
impeça de julgá-los também, e, mais ainda, mesmo os demônios não se
isentam de julgamento por meio da Palavra da qual estamos incumbidos.
Neste contexto, porém, Paulo está falando da jurisdição específica da Igreja.
É como se dissesse: “O Senhor nos equipou com este poder para empregá-lo
contra aqueles que pertencem a sua família. Porque esta punição é parte da
disciplina que se confina à Igreja, e não se estende aos de fora. Portanto, não
anunciamos sobre eles sua sentença de condenação, visto que o Senhor não
os sujeitou a nossa competência e jurisdição no que respeita ao castigo e
censura. Somos, pois, constrangidos a deixá-los à mercê do juízo divino.” A
razão por que Paulo diz que Deus será seu Juiz é que Deus lhes permite que
perambulem31 desenfreadamente como bestas selvagens, visto que não há
ninguém capaz de controlar sua libertinagem.
13. Expulsai o ímpio. [eiicete Scelestum, ἐξάρατε τὸν πονηρόν]. A
explicação usual desta afirmação é que ela se refere ao homem que cometeu
incesto com sua madrasta. Pois os que entendem a expressão no sentido de
mal ou perversidade [malum] são refutados pelo grego de Paulo, no qual o
artigo (τὸν) é masculino. O que o leitor, porém, prefere fazer? Aplicá-la ao
diabo? Não há dúvida de que uma pessoa perversa e sem princípio32 se
anima a estabelecer seu trono em nosso meio. Porque ὁ πονηρος (o maligno),
por si só, sem qualquer adição, mais denota o príncipe de todos os crimes33
do que alguma pessoa má em particular. Se este significado é aceitável, então
Paulo está alertando para o fato de quão importante34 é que o ímpio não
seja tolerado, porque, se ele é afastado, então Satanás é expulso de seu
domínio. Mas ele persiste em nosso meio quando aos perversos se permite
fazer o que querem.35 Não obstante, não contendo com ninguém que queira
considerar isso como uma referência a uma pessoa. Além disso, Crisóstomo
compara o rigor da Lei com a clemência do evangelho, visto que Paulo se
sentia satisfeito quando o delito é tratado pelo prisma da excomunhão,
considerando que a Lei exigia em seu lugar a pena de morte. Mas não existe
justificativa para tal ponto de vista. Pois aqui Paulo não está falando a juízes
armados de espada, mas a um colegiado36 desarmado, autorizado a usar
somente a reprovação fraterna.

1. Veja-se página XXX.


2. “Et ne profitera pas.” – “E não fará o bem.”
3. “Et authorité.” – “E autoridade.”
4. “Offensent Dieu.” – “Ofendem a Deus.”
5. “Vous dissimulez.” – “Vossa conivência.”
6. “Qu’on appeloit le Presbytère.” – “O que chamam de Presbitério.”
7. “Puis apres la chose estoit renuoyee au peuple par eux, avec un advertissement touteffois de
ce qui leur en sembloit.” – “O assunto era depois trazido por eles diante do povo, contudo com
uma notificação de suas opiniões a respeito.”
8. “Le nom de Dieu.” – “O nome de Deus.”
9. “Contempteurs de Dieu.” – “Desprezadores de Deus.”
10. “En quelle crainte et obeissance.” – “Com que temor e obediência.”
11. “Mais c’est afin que Dieu leur espargne.” – “Mas é a fim de Deus os poupar.”
12. “Nostre Pasque, assavoir Christ.” – “Nossa páscoa, isto é, Cristo.”
13. “Avec pains sans leuain, c’est a dire, de syncerité et de verité.” – “Com pão não levedado, isto
é, de sinceridade e verdade.”
14. “Ha en ce passage un mesme sens comme ce qu’on dit communeement, Qu’il ne faut qu’vne
brebis rongneuse pour gaster tou le groupeau.” – “Há nesta passagem o mesmo significado
quando comumente se diz: “Só basta uma ovelha enferma para infectar todo o rebanho.”
15. Nosso autor fornece uma definição semelhante da expressão o velho homem ao comentar
Romanos 6.6. “Totam autem naturam significat, quam afferimus ex utero, quæ adeo regni Dei
capax non est, ut interire eatenus oporteat, quatenus in veram vitam instauramur.” – “Denota a
totalidade daquela natureza que trazemos conosco do ventre, e é também nesse sentido que o
reino de Deus quando somos renovados para uma vida genuína.”
16. Charnock faz as seguintes observações sobre a forma de expressão aqui empregada: “Cristo
a Páscoa, isto é, o cordeiro pascal. O cordeiro era chamado a páscoa. O sinal pela coisa
significada por ele [2Cr 35.11]. E matavam a páscoa, isto é, o cordeiro; pois a páscoa era
propriamente a passagem do anjo sobre Israel, quando ele foi enviado como executor da ira de
Deus sobre os egípcios. Assim Mateus 26.17. “Onde te prepararemos a páscoa para que a
comas? isto é, o cordeiro pascal. Nossa páscoa, isto é, nosso cordeiro pascal. Ele é chamado o
cordeiro de Deus [Jo 1.29].
17. “Il ne reste plus sinon que nous en soyons nourris.” – “Nada resta senão que somos nutridos
por ele.”
18. Nosso autor, mais provavelmente, alude a xodo 12.14: “E neste dia seremos para ti um
memorial” etc. O termo usado na Septuaginta é μνεμοσυνον, correspondendo ao termo hebraico
@wrkz.
19. “Ce seroit vne chose superflue de les admonester” &. – “seria uma coisa supérflua
admoestá-los” etc.
20. A tradução de Erasmo é como segue: “Alioqui utinam videlicet e mundo exissetis.” – “Do
contrário, de fato seria preferível que partísseis deste mundo.”
21. “Car tout le monde est mis a mal.” – “Pois o mundo inteiro é habituado ao mal.”
22. “En ceste sentence.” – “Nesta sentença.”
23. “C’est à dire, entr’eux.” – “Equivale dizer, entre eles.”
24. “Au texte Grec il y a de mot à mot, Si aucun frere nommé” &. – “No texto grego é literalmente:
Se alguém, chamado irmão” etc.
25. É assim segundo a redação comum, que é como segue: – ἐάν τις, ἀδελφὸς ὀνομαζόμενος, ἤ πόρνος,
ἤ πλεονέκτης, κ.τ.λ. – “Se alguém, chamado irmão – ou fornicador, ou cobiçoso” etc. Mas, como
afirma Bloomfield, “sete manuscritos, e muitas versões, e os pais, a Ed. Princ. e as de Beza,
Schmid e Beng., têm î (antes de πόρνος) que é aprovado por Wets. e Matth., e editado por
Griesb., Knapp., Vat. e Tittm.” E, na opinião de Bloomfield, “corretamente”.
26. “Il les faut redarguer auec seuerite, et les soliciter continuellement par admonitions.” –
“Devem ser reprovados com severidade e brandidos com constantes admoestações.”
27. “Car leur condition n’est pas telle comme estoit celle des Corinthiens.” – “Pois sua condição
não é como a dos coríntios.”
28. “Est venu furieusement jusques aux defenses et menaces, Que nul ne fust si hardi de donner
à boire ou à manger, ou de feu à celuy qui seroit excommunier, ou de luy aider aucunement des
choses necesaires à la vie presente.” – “Tem sua fúria ido tão longe ao ponto de emitir
proibições e ameaças: Que ninguém ouse dar alimento, bebida ou combustível à pessoa que
esteja excomungada, ou a ajude de alguma maneira com as coisas necessárias para a presente
vida.”
29. “Et ces bourreaux encore exercent ceste cruaute extreme, mesme contre les innocens.” – “E
esses carrascos, além do mais, exercem essa extrema crueldade mesmo contra o inocente.”
30. “Telle façon d’excommunier.” – “Tal é o método de excomunhão.”
31. “Et courir à trauers champs.” – “E corram pelos campos.”
32. “Quand on supporte un homme meschant et mal-vivant.” – “Quando se permite a um homem
perverso e sem princípio continuar.”
33. É bem observado por Witsius em seu Dissertations on the Lord’s Prayer (Biblical Cabinet, No.
xxiv, pp. 361-362) que a designação o Maligno é apropriadamente aplicada a Satanás, “porque
ele nada faz senão o que é mal – porque todo o mal que existe no universo se originou nele –,
porque ao fazer o mal e ao persuadir outros a fazerem o mal, ele acha seu único deleite, o
conforto perverso e maligno de sua desesperadora miséria.”
34. “Combien il est utile et necessaire.” – “Quão útil é e necessário.”
35. “Quand il y a vne license de malfaire, et les meschans sont soufferts.” – “Quando há licença
para se fazer o mal e os perversos são tolerados.”
36. “Desmuée de puissance externe.” – “Destituído de poder externo.”
Capítulo 6

1. Ousa algum de vós, tendo alguma questão contra outro, ir a juízo perante os injustos,
e não perante os santos?
2. Ou não sabeis que os santos julgarão o mundo? E se o mundo deve ser julgado por
nós, sois porventura indignos de julgar as questões menores?
3. Não sabeis que julgaremos os anjos? Quanto mais as coisas que pertencem a esta
vida?
4. Se, pois, havemos de julgar as coisas pertencentes a esta vida, pondes para julgá-las
os que são menos considerados na igreja.
5. Falo para vergonha vossa. Não há, pois, entre vós algum sábio que seja capaz de
julgar entre seus irmãos,
6. senão que um irmão vai a juízo contra outro irmão, e isso perante os incrédulos?
7. Ora, pois, há um completo fracasso entre vós, porquanto demandais uns contra os
outros. Por que não sofreis antes a injustiça? Por que não sofreis antes o dano?
8. Não só isto, mas vós mesmos fazeis a injustiça, fazeis o dano, e isso a vossos irmãos.

1. Audet aliquis vestrum, negotium habens cum altero, litigare sub iniustis, et non sub
sanctis?
2. An nescitis, quod sancti mundum iudicabunt? quodsi in vobis indicatur mundus, indigni
estis minimis indiciis?
3. An nescitis, quod angelos iudicabimus, nedum ad victum pertinentia?
4. Indicia ergo de rebus ad victum pertinentibus si habueritis, qui contemptibiles sunt in
Ecclesia,1 eos constituite.
5. Ad erubescentiam vestram dico: adeo non est inter vos sapiens, ne unus quidem, qui
possit iudicare inter fratres?
6. Sed frater cum fratre litigat, idque sub infidelibus.
7. Jam quidem omnino delictum in vobis est, quod iudicia habertis inter vos: cur non
potius iniuriam sustinetis?2
8. Sed vos infertis iniuriam, et fraudatis, et quidem fratres.

Aqui ele passa a censurar outro erro entre os coríntios, a saber, a


excessiva avidez por litígio, e esse vício era oriundo da ganância. Mas esta
repreensão consiste de duas partes. A primeira é que, ao exibirem suas
disputas perante os tribunais de incrédulos, estavam dando ao evangelho
uma péssima fama e expondo-o ao ridículo público. A segunda é que,
embora os cristãos, por um lado, devam enfrentar as injúrias, por outro
estavam causando prejuízo a outrem, em vez de se guardarem de
envolvimento em problemas de qualquer gênero. Assim, a primeira parte é
particular; a segunda, geral.
1. Ousa algum de vós. Esta é a primeira parte da repreensão. Se alguém
tem alguma disputa com um irmão, esta deve ser resolvida perante juízes
crentes, e não perante incrédulos. Se porventura alguém desejar saber o
porquê, já disse que a razão é porque o evangelho cai em descrédito e o
nome de Cristo é exposto, por assim dizer, ao escárnio dos ímpios. Pois os
ímpios, inspirados por Satanás, se acham em constante alerta,3 ávidos pela
oportunidade de descobrirem algo no ensino religioso que possa conduzir à
falsa interpretação. Mas quando os crentes lhes revelam os detalhes de suas
disputas, parecem estar lhes oferecendo, quase intencionalmente, uma
oportunidade de ouro para a calúnia. Pode-se apresentar uma segunda
razão, ou, seja: tornamos nossos irmãos desprezíveis quando nos dispomos
a sujeitá-los às decisões dos incrédulos.
Aqui, porém, pode surgir a seguinte objeção: “Já que é responsabilidade
do magistrado, no exercício de seu ofício, e como é peculiarmente sua
jurisdição administrar justiça a todos, e decidir sobre questões de disputa,
por que os descrentes, que detêm o ofício de magistrados não podem
também exercer esta autoridade? E se eles a possuem, por que somos
impedidos de proteger nossos direitos sem seus tribunais? Minha resposta
é que Paulo aqui não condena os que, por força de circunstâncias, precisam
entrar com recurso processual perante os juízes incrédulos,4 por exemplo, a
alguém que é intimado a comparecer em juízo; mas ele acha danoso quando
alguém, por sua própria conta, leva seus irmãos ali, e lhes faz injúrias, por
assim dizer, nas mãos de incrédulos, quando outro remédio lhes está
disponível. Portanto, é grave tomar a iniciativa para instaurar processos
contra irmãos diante de um tribunal de juízes incrédulos. Entretanto, é
correto comparecer perante um tribunal e manter sua causa, se a acusação é
feita contra sua pessoa.
2. Não sabeis que os santos. Este é um argumento do menor para o
maior; porquanto Paulo deseja demonstrar que se faz injúria à Igreja de
Deus quando decisões, em disputas sobre questões terrenas, são postas nas
mãos de incrédulos, como se não houvesse no colegiado dos santos alguém
qualificado para julgar. Então ele argumenta: “Visto que Deus considerou os
santos dignos de tal honra, quando são designados ao ofício de juizes do
mundo inteiro, por isso é intolerável que sejam eles impedidos de julgar em
questões triviais, como se não fossem capazes para isso.” Segue-se desse
fato que os coríntios se prejudicavam ao transferirem para os incrédulos a
honra5 que Deus lhes conferira.
O que se diz aqui sobre julgar o mundo deve retroceder a esta palavra de
Cristo: “quando, na regeneração, o Filho do homem assentar-se no trono de
sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze
tribos de Israel” [Mt 19.28]. Pois todo o poder de julgar foi delegado ao
Filho, de tal maneira que associará a si nesta honra a seus santos como seus
assessores. Além disso, eles julgarão o mundo, como de fato já começaram a
fazê-lo, porquanto sua piedade, fé, temor do Senhor, a consciência pura e
integridade de vida deixarão os ímpios sem escusa, justamente como se diz
de Noé [Hb 11.7], ou, seja: que por sua fé condenou todos os homens de seu
tempo. Mas a primeira interpretação se adequa melhor ao propósito do
apóstolo, pois se o ato de julgar, mencionado aqui, não for considerado por
esse prisma,6 parece ficar destituído de significação; pois, como disse
alguém: “Os santos são dotados de sabedoria celestial, a qual excede
incomensuravelmente a todas as áreas do conhecimento humano. Portanto,
eles podem tirar conclusões sobre as estrelas melhor do que os
astrônomos.” Mas ninguém concordaria com isso, e a razão para não admiti-
lo é óbvia: piedade e doutrina espiritual não nos suprem com o
conhecimento das ciências humanas. Minha resposta é que aqui existe a
seguinte distinção entre as demais ciências e a habilidade de julgar:
enquanto a primeira é adquirida pela acuidade do intelecto, por intermédio
do estudo e da erudição dos mestres,7 a segunda depende, sobretudo, da
eqüidade e da consciência.
Mas,8 “os jurisconsultos julgarão melhor e mais acuradamente do que
qualquer crente ignorante; do contrário não haveria necessidade de se
conhecer as leis.” A isto respondo que seu conselho não é de forma alguma
excluído aqui; pois se uma decisão sobre alguma questão obscura precisa
ser examinada à luz do conhecimento das leis, o apóstolo não proíbe os
cristãos de consultarem advogados.9 O único motivo que o leva a acusar os
coríntios é por suas disputas serem levadas perante o tribunal dos
incrédulos, como se não houvesse na Igreja alguém em condição de julgar. E
ele os lembra quão superior é o julgamento para o qual Deus designou seu
povo crente.
As palavras in vobis, “em vós” [por vós, outras versões], acredito que
equivalem a inter vos, “entre vós”. Porque, geralmente os fiéis que se reúnem
sob os auspícios de Cristo10 já antevêem em sua assembléia um certo
reflexo do juízo futuro, o qual se manifestará em sua plenitude no último
dia. Portanto, Paulo diz que o mundo é julgado na Igreja, onde já se acha
instalado o tribunal de Cristo, de onde ele exerce sua autoridade.11
3. Não sabeis que haveremos de julgar os anjos? Esta passagem é vista
por diferentes prismas. Crisóstomo informa que alguns a entendiam como
uma referência a sacerdotes,12 mas tal conceito é, sem dúvida, muito
forçado. Ainda outros a explicam como sendo os anjos celestiais; neste
sentido, aqueles anjos estão sujeitos a julgamento pela Palavra de Deus, e,
se preciso for, podem ser julgados por nós através desta Palavra. Gálatas 1.8
pode ser evocado à luz deste conceito: “Mas, ainda que nós, ou mesmo um
anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos tenho
pregado, seja anátema.” À primeira vista, esta explicação não parece estar em
harmonia com o argumento de Paulo. Porque, se todos a quem Deus
iluminou por meio de sua Palavra são possuidores de tanta autoridade que,
por meio dessa Palavra, julgam não só os homens, mas também os anjos,
não são todos eles os mais qualificados para julgarem a respeito das
questões triviais e desprezíveis? Mas, como Paulo usa aqui o tempo futuro,
referindo-se ao último dia, e como as palavras denotam a sugestão de um
juízo real (como um provérbio corrente), certamente me parece melhor
entender o que ele diz como uma referência a anjos apóstatas.13 Pois o
argumento será, não obstante, conclusivo se considerado desta forma:
“Julgaremos os demônios que começaram de maneira tão excelente, e
mesmo agora, depois de caírem de sua elevada posição, são ainda criaturas
imortais e superiores a este mundo de corrupção. E então? As coisas que
são subservientes ao ventre estão isentas de nosso juízo?
4. Se, pois, haveremos de julgar as coisas pertencentes a esta vida.
Devemos ter sempre em vista a forma específica de que tipo de causas Paulo
está tratando. Porque os julgamentos públicos estão além de nossa
jurisdição e não devem ser transferidos para nosso controle. É plenamente
normal, porém, estabelecer questão privativas sem o reconhecimento do
magistrado. Portanto, visto que não estamos detraindo a autoridade do
magistrado quando tomamos decisão por nós mesmos, o apóstolo
corretamente diz aos cristãos que se mantivessem afastados dos tribunais
profanos, ou, seja, os pertencentes aos juízes incrédulos. E diante da
possibilidade de alegarem que estavam sendo privados de um remédio mais
eficaz, ele então lhes diz que escolhessem juízes da igreja para estabelecer
as causas com justiça e eqüidade. Em caso de se justificarem, dizendo que
não dispunham de homens preparados para isso, ele afirma que mesmo a
pessoa de condição bem inferior poderia fazer o que é requerido. Portanto, a
autoridade do magistrado não é prejudicada aqui, quando ele mostra que
sua função é proteger as pessoas que são indefesas. Porque (como já disse)
isso é afirmado à guisa de antecipação, como se dissesse: “Ainda o mais
humilde e o mais insignificante entre vós poderá levar este ofício a bom
termo melhor que os juízes descrentes a quem estais recorrendo, quando
não existe a menor necessidade de procederdes assim.”
Crisóstomo chega bem perto desta interpretação, ainda que ele lhe
acrescente algo adicional. Pois ele acredita que o apóstolo tinha em mente
que, embora os coríntios não encontrassem ninguém em seu meio bastante
sábio para julgar, deveriam, contudo, escolher alguns, não importasse o que
fossem. Ambrósio não toca, como se diz, nem o céu nem a terra.14 Acredito
que me expressei fielmente o que o apóstolo tinha em mente, ou, seja, que
ele preferia o mais desprezível dentre os crentes a quaisquer descrentes, no
que tange à capacidade de julgar.
Alguns desenvolvem um significado completamente diferente. Pois
consideram o verbo καθιζετε no presente, ou, seja, “vós os pondes a julgar”;
e os “que não desfrutam de nenhuma consideração na Igreja” interpretam
como pessoas profanas.15 Mas isso é mais engenhoso do que racional,
porque esta seria uma pobre descrição de incrédulos.16 Finalmente, a frase
“se tendes” não se adequa muito bem com a repreensão, pois esta condição
a enfraquece; ao contrário, deveria ser usado “enquanto tendes”. Portanto,
sou mais inclinado a aceitar o ponto de vista de que está prescrito aqui um
remédio para o mal.
Não obstante, à luz de certa passagem de Agostinho deduz-se que esta
sentença foi incorretamente entendida pelos homens de outrora. Porque em
seu livro, Sobre a Obra dos Monges, onde menciona suas ocupações, ele
assevera que, indubitavelmente, o mais cansativo de todos seus deveres era
ser ele compelido a dedicar uma parte do dia a afazeres mundanos, mas que
o suportou pacientemente, porque o apóstolo17 lhe impusera esta
necessidade. Deduz-se desta passagem, e de certa carta, que os bispos
estavam acostumados, em tempos específicos, a assentar-se para resolver
disputas; como se o apóstolo estivesse se referindo a elas nesta passagem
em particular. Entretanto, as questões sempre se tornam piores, ou, seja, que
o erro ali, no processo do tempo, se desenvolveu na jurisdição que os
oficiais dos bispos assumiram para si em questões financeiras. Neste antigo
costume há duas coisas que são merecedoras de reprovação: primeiro, que
os bispos se envolviam em afazeres que nada tinham a ver com seu ofício; e,
segundo, faziam a Deus uma injustiça pretendendo que se desviavam de sua
própria vocação pela autoridade e mandamento divinos. Não obstante, o
mal era, em alguma extensão, justificável, mas seria o cúmulo da audácia
aviltar ou defender este costume mundano, o qual tem prevalecido no
papado.
5. Digo isso para incitar -vos ao pundonor. O significado é o seguinte: se
outras considerações vos deixam insensíveis, então pelo menos tenhais isto
em vossas mentes, a saber: quão desditoso é que dentre vós não haja
sequer um qualificado para resolver, de uma forma amigável, algumas
pendências que surgem entre os irmãos, porque concedeis esta honra a
descrentes. Ora, esta passagem não é inconsistente com aquela afirmação
com que nos deparamos antes, a saber: que ele não fez referência a seus
erros com o fim de deixá-los envergonhados [1Co 4.14]; porque aqui, ao
repreendê-los como faz, antes de tudo lhes recorda o infortúnio18 e mostra
que realmente se preocupa com a honra deles. Ele não deseja que pensem
tão miseravelmente de sua fraternidade e suprimam este privilégio de todos
seus irmãos e o entreguem nas mãos de incrédulos.
7. Ora, de fato já é completa deficiência. Agora chegamos à segunda
parte da repreensão que contém um ensino geral. Pois ele agora descobre os
erros deles, não com base no fato de que estavam expondo o evangelho ao
desdém e à difamação, mas porque estavam movendo processo legal uns
contra os outros. Paulo diz que este é um erro ou fracasso. Devemos
observar bem a justeza da palavra que ele usa. Porque ἥττημα, em grego,
significa “fraqueza mental”, por exemplo, quando alguém se despedaça19
sob a pressão das injúrias e não é bastante forte para suportar tudo. Mais
tarde foi usada para erros de qualquer gênero, quando todos eles emanam
de fraquezas e falta de determinação.20 Portanto, o que Paulo está
condenando nos coríntios é o sofrimento que causam uns nos outros por
recorrerem à lei. Ele lhes assegura que isso acontece porque não estão
preparados para suportar injúrias pacientemente. À luz da instrução do
Senhor [Mt 5.44; Rm 12.21], não devemos deixar-nos dominar pelo mal, mas,
ao contrário, devemos obter o melhor das injúrias através de atos de
bondade; e é certo que, os que não podem controlar-se ao ponto de sofrer
pacientemente as injúrias pecam por sua falta de paciência. Se a falta de
persistência ou paciência se revela nas disputas entre os crentes, a
conclusão é que tais disputas são nocivas.
Não obstante, agindo assim Paulo parece abolir completamente os
julgamentos legais nas atividades dos indivíduos. “Aqueles que recorrem à
lei estão completamente errados; portanto, labora em erro todo aquele que
busca proteger seus direitos perante um magistrado.” Há quem responda
esta objeção da seguinte forma: O apóstolo declara que onde há demandas,
a situação toda está completamente errada, porque uma ou outra das partes
necessariamente tem uma causa errônea. Mas eles não conseguem safar-se
com este sofisma, porque Paulo afirma que estão errados não só quando
cometem injúria, mas também quando não a suportam com paciência. No
que me diz respeito, respondo simplesmente: visto que ele apenas dera
permissão para se constituírem juízes, por meio do quê ele tem dado clara
indicação de que não é fora de propósito que os cristãos busquem seus
direitos com moderação, contanto que o amor não seja prejudicado. Daqui
podemos prontamente inferir que ele era severo demais em virtude de seu
conhecimento das circunstâncias em questão. Onde quer que as demandas
ocorram com freqüência, ou onde as partes se obstinem em discutir os
problemas uma com a outra com o máximo rigor da lei,21 é sobejamente
óbvio que seus espíritos se inflamam imoderadamente com disposições
ofensivas, e não estão preparados para, com eqüidade e serenidade de
espírito, a enfrentar com paciência as ofensas, em concordância com o
mandamento de Cristo.
Seja-me permitido falar mais claramente. Paulo condena as demandas
pela seguinte razão: devemos suportar as injúrias com um espírito
tranqüilo. Vejamos agora se é possível que alguém mova processo judicial
sem ser dominado pela impaciência. Pois se isso for possível, então não
haverá problema em mover ação legal em muitos casos, mas somente ἐπί τὸ
πολύ, ou, seja, geralmente falando. Confesso, porém, que, como o
comportamento humano é corrupto, a impaciência ou ausência de paciência
(como se diz) é o acompanhamento inevitável em quase todas as demandas.
Não obstante, isso não impede que façamos distinção entre a coisa
propriamente dita e sua circunstância negativa. Portanto, lembremo-nos de
que Paulo não condena as demandas com base no fato de que não é
propriamente errado defender uma boa causa nos valendo dos recursos de
um magistrado, mas porque quase sempre somos dominados por atitudes
mentais inadequadas, tais como a falta de domínio próprio, intenção
vingativa, hostilidade, obstinação e assim por diante.
É estranho que esta questão não tenha sido investigada mais
cuidadosamente pelos escritores eclesiásticos. Agostinho lhe deu mais
atenção do que outros, e esteve mais próximo do alvo; porém, até mesmo
ele não se desvencilhou da obscuridade, por mais veracidade exista no que
ele ensina. Os que desejam ser mais explícitos em seu ensino nos advertem
que devemos fazer certa distinção entre retribuição pública e privada.
Porque, visto que a retribuição pertence ao magistrado designado por Deus,
os que buscam seu auxílio não estão irresponsavelmente tomando a
vingança em suas próprias mãos, mas estão buscando os recursos de Deus
como vingador.22 Tudo isso é sábia e corretamente expresso, porém temos
de avançar mais. Pois se somos proibidos de buscar vingança, mesmo a de
Deus, da mesma forma seríamos impedidos de recorrer ao magistrado em
busca de retribuição.
Portanto, reconheço que toda e qualquer vingança é totalmente proibida
para o cristão, de modo que não deve praticá-la, seja por si mesmo ou por
meio do magistrado; aliás, nem mesmo deve desejá-la! Se um cristão, pois,
deseja defender seus direitos num tribunal, sem ir contra Deus, então deve
revestir-se de especial cuidado para não adentrar um tribunal nutrindo
algum desejo de vingança, algum sentimento negativo, algum rancor, numa
palavra, alguma atitude peçonhenta. Em tudo isso o amor será o melhor
regulador.23
Se porventura alguém objetar, dizendo ser algo muito raro alguém
recorrer ao tribunal inteiramente livre e isento de todo e qualquer afeto
corrupto, realmente o reconheço e ainda digo mais que é mui raro obter-se
um único exemplo de um litigante justo. De fato, por muitas e boas razões,
vale a pena enfatizar que a questão não é em si mesma ruim, mas que é
determinada pelo abuso. A primeira razão consiste em que não se deve dar a
impressão de que Deus perdeu seu tempo em instituir tribunais de justiça. A
segunda razão consiste em que os crentes devem saber exatamente o que
lhes é permitido fazer, a fim de que não façam nada que seja contra sua
consciência. Eis a razão por que muitos se precipitam em franco desrespeito
a Deus, uma vez que vão além dos limites que lhes são impostos.24 A
terceira razão consiste em que devem estar conscientes de que se deve
observar sempre as restrições, para que não deteriorem, por meio de sua má
conduta, o remédio que Deus lhes confiou. A última razão consiste em que a
ousadia dos ímpios deve ser reprimida por um zelo impoluto e genuíno; e
isso só se pode fazer se nos for permitido submetê-los a punições legais.
8. Não só isso, mas vós mesmos fazeis a injustiça. Deste versículo se
faz evidente por que Paulo os invectivava com tanto rigor; porquanto uma
inusitada cobiça por possessões os fascinava de tal modo que não eram
capazes de abster-se de ferir uns aos outros. Com o fim de realçar a extensão
do mal, ele declara que as pessoas que não sabem como suportar os erros
praticados contra si mesmas não são de fato cristãs. Aqui, pois, há uma
ampliação tirada de uma comparação; porque, se é errôneo não suportar
pacientemente as injustiças, quão pior é praticá-las.
E isso a vossos irmãos. Aqui está outra agravante do mal. Porque, se os
que defraudam os estranhos são indubitavelmente injustos, é algo
monstruoso um irmão defraudar ou roubar a seu irmão. Ora, todos nós
somos irmãos, nós que invocamos aquele que é Pai celestial [Mt 23.9]. Ao
mesmo tempo, se alguém age com más intenções contra estranhos, Paulo de
forma alguma ameniza o delito; porém ensina que os coríntios eram
totalmente cegos quando consideravam a irmandade sagrada como algo de
nenhuma importância.

9. Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis:, nem
fornicadores, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem quem abuse de si
mesmo com homens,
10. nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem extorsores
herdarão o reino de Deus.
11. E tais foram alguns de vós; mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes
justificados no nome do Senhor Jesus Cristo, e pelo Espírito de nosso Deus.

9. An nescitis, quod iniusti regnum Dei hereditate non obtinebunt? Ne erretis, neque
scortatores, neque idololatræ, neque mœchi, neque molles, neque pæderastæ.
10. Neque fures, neque avari, neque ebriosi, neque maledici, neque rapaces regnum Dei
hereditate obtinebunt.
11. Et hæc fuistis,25 sed abluti estis, sed sanctificati estis, sed iustificati estis in nomine
Domini Jesu, et in Spiritu Dei nostri.

9. Ou não sabeis? Por injustiça, aqui, entendemos o que é oposto à


estrita integridade. Os injustos, pois, isto é, os que causam injúria a seus
irmãos, que enganam e defraudam a outrem e, numa palavra, tripudiam a
terceiros na desenfreada busca de seus próprios interesses, são os injustos
que não herdarão o reino de Deus. Aqui é suficientemente óbvio que, quando
Paulo fornece exemplos de pessoas injustas, tais como adúlteros, ladrões,
avarentos e maldizentes, ele está se referindo àqueles que não se arrependem
de seus pecados, mas que obstinadamente persistem neles. O próprio
apóstolo, um pouco mais adiante, enfatiza esse fato em suas próprias
palavras, quando diz que os coríntios tinham vivido assim no passado.
Naturalmente, os ímpios herdarão o reino de Deus, porém só depois que se
converterem ao Senhor com genuíno arrependimento e dessa forma
cessarem de ser ímpios. Pois ainda que a conversão não seja a base do
perdão, não obstante sabemos que ninguém é reconciliado com Deus senão
aqueles que se arrependem. Não obstante, o uso da interrogação é para o
efeito de ênfase, porquanto ele faz evidente que está se referindo a algo com
que os coríntios estão plenamente familiarizado e que é uma trivialidade
entre todos os piedosos.
Não vos enganeis. Uma vez tendo ocasião de tratar de um vício, agora
prossegue falando de muitos. No entanto, sou de opinião que ele realçou
particularmente os vícios que prevaleciam entre os coríntios. Ele usa três
termos distintos em sua censura contra as paixões sexuais, as quais,
segundo toda a evidência histórica, governavam, aliás, corriam soltas ali.
Pois Corinto nadava em riquezas. Era um famoso centro comercial,
freqüentado por mercadores de muitas nações. A luxúria anda de braços
dados com a riqueza, e ela dá à luz a impudicícia e todo gênero de
licenciosidade. Além disso, uma nação já naturalmente inclinada para a
luxúria estava se inclinando para muitas outras corrupções.
A diferença entre fornicadores e adúlteros é suficientemente conhecida.
Por efeminados entendo ser aqueles que, embora não se entreguem
publicamente à impureza, não obstante mostram o quanto são impelidos
pelo uso de linguagem ignóbil, pela leveza de gesto e vestuário e outros
incitamentos. O quarto termo nesta categoria é o mais abominável de todos,
a saber, aquela monstruosa degeneração que era tão prevalecente na Grécia.
Ele emprega três termos ao reprovar a injustiça e as injúrias. Ele
denomina de ladrões àqueles que enganam seus irmãos através de alguma
sorte de fraude ou astúcia camuflada. Por extorsores ele quer dizer aqueles
que violentamente se apoderam dos bens alheios, ou, como harpias,26 os
atraem para si, de todos os lados, e os devoram. Mas, para que seu discurso
se estendesse sobre um campo bem amplo, em seguida acrescenta também
todas as pessoas avarentas. Por bêbados devemos também entender aqueles
que excedem na alimentação. Ele faz particular menção dos maldizentes,
porque é bem provável que aquela cidade estivesse repleta de mexeriqueiros
e caluniadores. Em suma, Paulo faz particular menção daqueles vícios que,
como ele os via, exerciam total domínio sobre a cidade.
Mas para que sua ameaça adquirisse mais peso, ele diz: não vos enganeis.
Com estas palavras ele os aconselha a não se embalarem com vãs
esperanças, da mesma forma que os homens acostumam fazer, atenuando
seus escândalos, permitem-se tratar a Deus com desdém. Portanto, nenhum
veneno é mais letal do que aquelas fascinações que nos estimulam em
nossos pecados. Portanto fujamos, não como dos cantos de sereias,27 mas
como se fossem mortais estiletes de Satanás – das palavras de homens
profanos que se desvencilham do juízo de Deus e das reprovações de
pecados causados pela zombaria. Finalmente, é preciso observar a
adaptabilidade do verbo κληρονομειν (herdar). Pois ele mostra que o reino
do céu é a herança de filhos, e portanto ela só nos é legada pela bênção da
adoção.
11. E tais foram alguns de vós. Alguns acrescentam um ermo de
peculiaridade: “alguns de vós foram assim”, visto que no grego se adiciona a
palavra τινὲς (algum). Mas sou antes de opinião que é mais provável o
apóstolo estar falando de todos eles. Realmente considero esta palavra
(alguns) como sendo supérflua, em consonância com a prática dos gregos
que às vezes faziam uso dela para efeito de ornamento, mas não como um
termo de restrição. Todavia, não devemos entendê-lo como se quisesse
dizer que todos se acham envolvidos, como um todo, como se quisesse
atribuir a cada um deles todos esses vícios. Ele, porém, deseja apenas
realçar que ninguém está livre desses males enquanto não experimentar o
novo nascimento operado pelo Espírito. Pois devemos crer que a natureza
humana universalmente contém a semente de todos os males, senão que
alguns vícios prevalecem e se revelam mais em algumas pessoas do que em
outras, à medida que o Senhor põe diante de nossos olhos a depravação da
carne realçada por seus frutos.
É por isso que no primeiro capítulo de sua Epístola aos Romanos Paulo
cataloga diferentes tipos de vícios e crimes, os quais são oriundos do fato
de o homem ignorar a Deus e daquela ingratidão da qual ele demonstrou
que todos os descrentes são culpados [Rm 1.21-32]; não que cada descrente
esteja infectado por todos esses vícios, mas porque todos são vulneráveis
aos mesmos, e ninguém está isento de todos eles. Porquanto a pessoa que
não é culpada de adultério, peca de alguma outra forma. Assim também, no
terceiro capítulo, ele faz com que esses textos se refiram universalmente a
todos os filhos de Adão: “sua garganta é sepulcro aberto; seus pés são
velozes para derramar sangue; sua língua é enganosa e peçonhenta” [Rm
3.13-15]. Não que todos sejam sanguinários e cruéis; que todos sejam
traiçoeiros e maldizentes; mas que, antes de se transformarem em novas
criaturas, pela ação divina, um tem a tendência para a crueldade, o outro
para a traição; este para a luxúria e aquele outro para a falsidade. A
conclusão é que não há um sequer em quem não exista alguma evidência da
corrupção comum a todos. Realmente todos nós, como se fôssemos um só
ser, estamos, por uma predisposição interior e secreta da mente, sujeitos a
todos os vícios, exceto quando o Senhor os refreia em nosso íntimo para
que não venham a lume em forma de atos.28 O significado, pois, é
simplesmente o seguinte: antes de receberem a graça da regeneração, alguns
dos coríntios tinham sido avarentos; outros, adúlteros; outros, extorsores;
outros, efeminados; outros, maldizentes; mas agora, visto que foram
verdadeiramente libertados por Cristo, já não são mais como o eram
outrora.
Não obstante, a intenção do apóstolo é humilhá-los, despertando sua
memória para sua condição de outrora, para em seguida incitá-los ao
reconhecimento da graça divina em seu favor. Porque a maioria de nós
reconhece a miséria da condição da qual a benignidade do Senhor nos
resgatou, e agora vemos muito mais nitidamente a rica plenitude de sua
graça. Ora, o enaltecimento da graça é uma fonte29 de exortações; porque
precisamos prestar diligente atenção para que a benignidade de Deus não
seja desmerecida, visto que ela deve ser tida na mais elevada estima. É como
se ele dissesse: “É bastante que Deus vos arraste para fora daquele lamaçal
no qual uma vez vivestes imersos.” Pedro fala em termos similares: “Porque
é bastante que no tempo da vida passada fizéssemos a vontade dos gentios”
[1Pe 4.3].
Mas fostes lavados. Paulo usa três expressões para transmitir uma só
idéia, com o fim de mais eficientemente detê-los de recaírem na condição da
qual haviam escapado. Daí, embora todos esses três termos se refiram à
mesma idéia geral, há, não obstante, grande força em sua própria variedade.
Porque há um contraste implícito entre lavagem e mácula; santificação e
contaminação; justificação e culpa. Sua intenção é dizer que, uma vez haviam
sido justificados, então não devem arrastar-se outra vez a uma nova
condenação; havendo sido santificados, não devem contaminar-se outra vez;
havendo sido lavados, não devem macular-se com as imundícias da carne.
Ao contrário, devem ir após a pureza, perseverar na genuína santidade e
abominar as coisas imundas de sua vida pregressa. E disto inferimos o
propósito para o qual Deus nos reconcilia consigo mesmo pela graciosa
remissão de pecados.
Embora eu tenha dito que uma coisa é expressa pelo uso de três termos,
com isso não pretendo dizer que não exista nenhuma diferença, seja qual for
sua importância, porque, propriamente falando, Deus nos justifica quando
ele nos purifica de nossas culpas, não levando em conta nossos pecados;
ele nos purifica quando apaga a lembrança de nossos pecados. Assim, a
única diferença entre estes dois termos é que um é literal, enquanto que o
outro é metafórico. A metáfora é a lavagem, porque o sangue de Cristo é
considerado como se fosse água. Em contrapartida, ele santifica ao
transformar nossa natureza corrupta pela ação de seu Espírito, e assim a
santificação tem a ver com a regeneração. Nesta passagem, porém, o único
propósito do apóstolo era expressar-se em mais de uma forma com o fim de
magnificar a graça de Deus, a qual nos libertou das cadeias do pecado, para
que viéssemos aprender deste fato o quanto devemos retroceder-nos de
tudo quanto incita a ira e a vingança de Deus contra nós.
No nome do Senhor Jesus. Paulo faz uma distinção apropriada e
judiciosa entre ofícios diferentes. Porque o sangue de Cristo é a causa de
nossa purificação; de sua morte e ressurreição obtemos justiça e
santificação. Visto, porém, que a purificação efetuada por Cristo, e a
obtenção da justiça, não são de nenhum préstimo exceto para os que se
fizeram participantes dessas bênçãos pela influência do Espírito Santo, é
com propriedade que ele faça menção do Espírito em conexão com Cristo.
Este, portanto, é a fonte de todas as bênçãos para nós; é dele que obtemos
todas as coisas. Mas Cristo mesmo, com todas suas bênçãos, nos é
comunicado pelo Espírito. Porque recebemos a Cristo pela fé; e é pela fé que
seus benefícios [gratiæ] nos são aplicados. O autor da fé é o Espírito.

12. Todas as coisas me são lícitas, porém nem todas as coisas são convenientes; todas
as coisas me são lícitas, porém não me submeterei ao poder de nenhuma.
13. Os alimentos são para o estômago, e o estômago para os alimentos; Deus, porém,
reduzirá a nada tanto aquele como estes. Ora, o corpo não é para a fornicação, mas
para o Senhor, e o Senhor para o corpo.
14. E Deus, que ressuscitou o Senhor, também nos ressuscitará por seu próprio poder.
15. Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? E eu, pois, tomarei os
membros de Cristo e os farei membros de uma meretriz? Que Deus nos livre!
16. Ou, não sabeis que aquele que se une a uma meretriz faz-se um corpo com ela?
Porque os dois, diz ele, se tornarão uma só carne.
17. Mas aquele que se une ao Senhor é um só espírito.
18. Fugi da fornicação. Todo pecado que um homem pratica é fora do corpo; mas aquele
que comete a fornicação peca contra seu próprio corpo.
19. Ou não sabeis que vosso corpo é o templo do Espírito Santo que está em vós, que
tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?
20. Porque sois comprados por preço; portanto glorificai a Deus em vosso corpo e em
vosso espírito, que são de Deus.

12. Omnium mihi est potestas, at non omnia conducunt: omnium mihi est potestas, sed
ego sub nullius 30 redigar potestatem.
13. Escæ ventri, et venter escis: Deus vero et has et illum destruet. Corpus autem non
scortationi, sed Domini, et Dominus corpori.
14. Porro Deus et Dominum suscitavit, et nos suscitabit per potentiam suam.
15. An nescitis, quod corpora vestra membra sunt Christi? tollens igitur membra Christi,
faciam membra meretricis? Absit.
16. An nescitis, quod qui adhæret meretrici, unum corpus est? erunt enim, inquit, duo in
carnem unam.
17. Qui autem Domino adhæret, unus spiritus est.
18. Fugite scortationem. Omne peccatum quod commiserit homo, extra corpus est: qui
autem scortatur, in proprium corpus peccat.
19. An nescitis, quod corpus vestrum templum est Spiritus sancti, qui in vobis est, quem
habetis a Deo, et non estis vestri?
20. Empti enim estis pretio: glorificate iam Deum in corpore vestro et in spiritu vestro,
quæ Dei sunt.

12. Todas as coisas me são lícitas. Alguns intérpretes envidam grandes


esforços para determinar a conexão dessas coisas,31 como parece ser o
desígnio do apóstolo. Omitirei as numerosas explicações e expressarei o
que, segundo meu ponto de vista, é o mais apropriado. É bem provável que
os coríntios retivessem, mesmo depois daquele tempo, uma grande porção
de sua antiga licenciosidade, e ainda saboreassem os costumes da cidade.
Mas onde os vícios correm a rédeas soltas e com impunidade,32 o costume é
considerado como lei. Então recorrem a pretextos indignos com o fim de se
protegerem. Isso estava acontecendo ali, onde estavam recorrendo ao
pretexto da liberdade cristã, de modo a se permitirem fazer quase tudo.
Entregavam-se ao excesso de luxúria. Com isso havia, segundo o costume,
uma grande porção de orgulho que se misturava a tudo isso. Visto que se
tratava de atos externos, não imaginavam que houvesse pecado envolvido
nesses atos. Ainda mais, tudo indica que, à luz das palavras de Paulo, os
coríntios abusavam de sua liberdade, numa extensão tal que permitiam a
inclusão da fornicação. Portanto, depois de haver falado sobre seus vícios, é
muito apropriado que passe agora à crítica daquelas escusas enganosas de
que faziam uso para iludir-se acerca dos pecados externos.
É evidente que Paulo está tratando de coisas externas que Deus deixou
para a discrição dos crentes. Todavia, falando em termos gerais, ele ou
censura sua excessiva licenciosidade de uma forma indireta, ou louva a
infinita generosidade de Deus, a qual é o melhor meio de mantermos nossas
paixões sob controle. Porque o leitor pode considerar como sinal de
intemperança quando as pessoas que se acham cercadas de uma grande
variedade de riquezas não se mantêm equilibradas por seus próprios
esforços nem impõem limites a si mesmas. Em primeiro lugar, de fato Paulo
caracteriza a liberdade33 com duas exceções. Então ele os adverte a não
favorecerem a fornicação em qualquer extensão. As palavras “todas as
coisas me são lícitas” devem ser tomadas como se ele fosse antecipar (κατ̕
ἀνθυποφορὰν) o que os coríntios poderiam dizer, ou como se fosse falar por
eles. É como se dissesse: “Estou a par do tipo de resposta que geralmente
apresentais quando quereis evitar uma reprimenda pelos vícios que afetam a
outrem. Vós, naturalmente, imaginais que todas as coisas vos são lícitas, sem
qualquer reserva ou limitação.”
Mas nem todas as coisas são convenientes. Esta é a primeira exceção
por meio da qual ele restringe o uso da liberdade – eles não devem entregar-
se a uma licenciosidade irrestrita, porque não podem perder de vista a
necessidade da edificação34 uns dos outros. Quer dizer: “Não basta que isto
ou aquilo nos seja permitido para usado segundo nossos gostos, pois
precisamos atentar bem para o que visa ao bem de nossos irmãos, cujo bem-
estar é nossa obrigação considerar” [1Co 10.23, 24]. Porque, como ele
posteriormente realçará mais plenamente e como já mostrou em Romanos
14.13 e seguintes, aos olhos de Deus cada um de per si é interiormente
livre,35 com base na seguinte condição: que todos devem limitar o uso de
sua liberdade com vistas à edificação mútua.
Mas eu não me submeterei a nenhuma. Esta é a segunda restrição para
a liberdade – fomos constituídos senhores de todas as coisas, porém de
uma forma tal que não devemos pôr-nos sob a servidão de nada. Este é o
procedimento daqueles que não conseguem controlar seus próprios
apetites. Porque tomo a palavra τινος (algum) como sendo neutra, e como
uma referência não a pessoas, mas a coisas. Daí o significado ficando assim:
“Somos senhores de todas as coisas, só que não devemos fazer mau uso
desse senhorio e sofrer uma servidão por demais ignóbil; de modo que, por
causa das paixões que são excessivas e incontroláveis, estamos sob o
controle das mesmas coisas externas que deviam estar sob nosso controle.
Realmente, quando alguém é indevidamente obstinado por se aborrecer de
ter de desistir de algo por causa de seus irmãos, o resultado é que o mesmo
inevitável e estupidamente se põe em cadeias.”
13. Os alimentos são para o estômago; e o estômago, para os
alimentos. Paulo aqui mostra como as coisas materiais devem ser usadas –
para satisfazer às necessidades desta presente vida, a qual se desvanece
rapidamente como uma sombra. Isso concorda com o que ele diz no
capítulo 7.31: “... e os que se utilizam do mundo, como se dele não
usassem.” E disto deduzimos também quão impróprio é que um cristão
terça armas em prol das coisas materiais.36 Portanto, quando surge alguma
disputa acerca de coisas corruptíveis, o crente não deixará que seus
pensamentos sejam dominados pela ansiedade oriunda delas. Porque
liberdade é uma coisa; o mau uso dela, outra. Daqui ecoa outra sentença: “O
reino de Deus não é comida nem bebida” [Rm 14.17].
Ora, o corpo não é para a fornicação. Tendo mencionado as exceções,
ele agora acrescenta também que nossa liberdade não deve de maneira
alguma ser expandida de forma a incluir a fornicação. Pois naquele tempo ela
era um mal de tal maneira prevalecente que era como se fosse permitida. A
mesma coisa pode ser lida também no decreto dos apóstolos [At 15.20],
onde os gentios são proibidos de fomentar a fornicação, e em tal proibição
se encontravam coisas indiferentes. Não há dúvida de que houve tal medida
em razão da qual geralmente essas coisas eram consideradas lícitas.
Portanto, Paulo agora diz que a fornicação e o alimento estão em condições
diferentes, porque Deus não destinou o corpo para a fornicação, assim
como destinou o estômago para o alimento. Ele confirma isso pelas coisas
que são opostas ou incompatíveis, porque o corpo é consagrado a Cristo.
Mas é impossível que Cristo seja ligado à fornicação. Sua adição, “e o Senhor
para o corpo”, contribui com boa medida de peso, porque, já que Deus o Pai
nos uniu a seu Filho, que coisa desditosa seria separar nossos corpos dessa
sacra união e entregá-los a coisas completamente indignas de Cristo.37
14. E Deus, que também ressuscitou o Senhor. Visualizando a posição
de Cristo, Paulo mostra quão inconveniente é a fornicação na vida de um
cristão. Porque, visto que Cristo foi recebido na glória celestial, o que ele
tem em comum com as contaminações deste mundo? Entretanto, dois
elementos estão contidos nessas palavras. O primeiro consiste em ser algo
deprimente e pecaminoso que nosso corpo, que foi dedicado a Cristo, seja
profanado pela fornicação, à luz do fato de que Cristo mesmo ressuscitou
dentre os mortos a fim de tomar posse da glória celestial. O segundo
elemento consiste em ser algo desditoso prostituirmos38 nosso corpo com
as imundícias da terra, uma vez que seremos participantes39 da bem-
aventurada imortalidade e da glória celestial junto a Cristo. Esta idéia é
semelhante em Colossenses 3.1: “Se fostes ressuscitados juntamente com
Cristo” etc.
Não obstante, a diferença que existe é que ali ele está se referindo
somente à ressurreição final, enquanto que nesta passagem ele faz referência
também à primeira ressurreição, ou, seja, a graça do Espírito Santo por meio
da qual somos transformados numa nova vida. Visto, porém, que a
compreensão humana crê ser a ressurreição algo quase inacreditável [At
26.8], a Escritura, nas passagens referentes a ela, nos lembra do poder de
Deus, com o fim de confirmar nossa fé nela [Mt 22.29].
15. Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? Esta é uma
explicação ou, se o leitor preferir, uma elucidação da sentença anterior.
Porque, por amor à concisão, a frase, “o corpo é para o Senhor”, pode
afigurar-se um tanto obscura. Assim, à guisa de explicação ele diz que Cristo
está tão unido a nós, e nós a ele, que nos tornamos um só corpo com ele.
Segue-se disso que, se me uno a uma meretriz, rasgo Cristo em pedaços, até
onde esteja em meu poder fazê-lo; porque é impossível que eu o force a
associar-se com tais impurezas.40 Ora, visto que tal coisa seria algo
absolutamente detestável, Paulo usa a frase com que geralmente repudia
algo inconcebível: Que Deus nos livre!41
É preciso que notemos bem que a união espiritual que temos com Cristo
não é uma questão só da alma, mas igualmente do corpo, de modo que
somos carne de sua carne etc [Ef 5.30]. A esperança da ressurreição seria
muito débil se nossa união com ele não fosse tão completa e plenária.
16. Ou não sabeis que aquele que se une a uma meretriz. Ele realça
ainda mais quão seriamente Cristo é injuriado por aquele que pratica ato
sexual com uma meretriz. Porque um outro corpo é formado, e assim ele
separa um membro do corpo de Cristo.
Não é definido em que sentido ele se acomoda a seu desígnio a citação
de Gênesis 2.24. Porque, se ele o cita com o fim de provar que duas pessoas
que cometem fornicação uma com a outra se tornam uma só carne, então
está distorcendo seu significado. Porque Moisés não está falando ali da
coabitação escandalosa e proibida de um homem e uma mulher, mas da
união matrimonial que Deus abençoa. Pois ele ensina que esse laço é tão
estreito e indissolúvel que vai além da intimidade que existe entre um pai e
seu filho; o que certamente não se pode dizer da fornicação. Esta
consideração às vezes me leva a pensar que esta citação não foi introduzida
em confirmação da frase imediatamente anterior, mas precisamente o
oposto, como segue: “Moisés afirma que o esposo e a esposa se tornam uma
só carne nos laços matrimoniais, mas aquele que se une ao Senhor não se
torna apenas uma só carne, mas também um só espírito com ele.”42 E assim
toda esta seção visa a tornar mais claro o efeito e a dignidade da união
espiritual [coningium] existente entre nós e Cristo.
Não obstante, se alguém entende que esta explicação não é inteiramente
satisfatória, visto parecer forçada, apresentarei outra. Visto que a fornicação
é a corrupção de uma instituição divina, existe alguma semelhança entre
ambas. E o que se diz do matrimônio, em alguma extensão pode-se aplicar à
fornicação, não com intuito de conceder-lhe o mesmo valor,43 mas para que
se exiba ainda mais nitidamente a hediondez do pecado. As palavras, “e os
dois se tornarão uma só carne”, referem-se, estrita e propriamente falando,
exclusivamente aos que são casados. No entanto, são aplicados aos
fornicadores que se encontram numa união corrupta e impura, de modo que
a contaminação passe de um para o outro.44 Pois não há nenhum absurdo
em dizer que a fornicação contém alguma semelhança com a sacralidade do
matrimônio, como sendo, por assim dizer, uma corrupção dele. A
fornicação, porém, está sob a maldição de Deus, enquanto que o
matrimônio está sob sua bênção: Esta é a natureza da semelhança entre
coisas que são contrastadas entre si. Entretanto, preferiria tomar essas
palavras como se referindo, primariamente, ao matrimônio, e então como
inapropriadamente45 aplicadas à fornicação. Eu o poria assim: “Deus declara
o esposo e a esposa como sendo uma só carne a fim de que qualquer um
deles tenha conexão com outra carne; de modo que o adúltero e a adúltera
se tornem uma só carne, e se envolvam em uma conexão maldita.” E isso
certamente é mais simples e concorda melhor com o contexto.
17. Aquele que se une ao Senhor. Ele adiciona isto com o fim de
mostrar que a união [coniunctionem] de Cristo conosco é mais íntima do
que a de esposo e esposa; e que a primeira é mais preferível do que a última,
de modo que a mesma deve ser cultivada através da mais estrita pureza e
fidelidade. Porque, se um homem que se une a sua esposa em matrimônio
não deve jamais unir-se a uma prostituta, no caso dos crentes é ainda muito
mais grave, pois não são apenas uma só carne com Cristo, mas também um
só espírito. E assim há aqui uma comparação entre o maior e o menor.
18. Fugi da fornicação. Todo pecado etc. Uma vez havendo tratado da
probidade da conduta, Paulo agora mostra como devemos olhar para a
fornicação com o mais extremo horror, tendo em mente quão desditosa e
imunda ela é. Ele se estende sobre o assunto, fazendo comparação entre ela
e todos os demais pecados, porque, de todos os pecados, este é o único que
mancha o corpo com estigma de desgraça. Naturalmente que o corpo é
também maculado pelo roubo, pelo homicídio e pela embriaguez, em
concordância com estes textos e outros similares: “Vossas mãos estão
manchadas de sangue” [Is 1.15]; “Assim como oferecestes vossos membros
como instrumentos da iniqüidade” [Rm 6.19]. Por causa disso, e a fim de
evitar essa confusão, alguns entendem as palavras “seu próprio corpo”
como uma referência a nós que estamos unidos a Cristo. Quanto a mim,
porém, isso parece mais engenhoso do que exato. Além disso, nem assim
eles escapam do problema, porque a mesma coisa pode se dizer tanto da
idolatria quanto da fornicação. Pois aquele que se prostra diante de um
ídolo peca contra a união com Cristo. Portanto, minha explicação é que ele
não nega completamente que há outros pecados, os quais também atraem
desgraça e desonra sobre nossos corpos, a mesma mácula repugnante que
causa a fornicação.46 Naturalmente que minhas mãos se mancham pelo
roubo ou pelo homicídio; minha língua, pela calúnia ou pelo perjúrio;47 meu
corpo todo, pela embriaguez; mas a fornicação deixa em nosso corpo um
estigma tão indelevelmente impresso, como nenhum outro pecado pode
fazê-lo. Em concordância com esta comparação, ou, em outros termos, no
sentido de menos ou mais, diz-se que outros pecados são fora do corpo;
porém não significa como se não afetassem absolutamente o corpo,
tomando cada um de per si.
19. Ou não sabeis que vosso corpo. Paulo usa mais dois argumentos
que provam que devemos abster-nos dessa imundícia. O primeiro é que
“nossos corpos são templos do Espírito”; e o segundo é que não vivemos
sob nossa própria jurisdição, visto que o Senhor nos adquiriu para si como
sua propriedade particular. Há uma ênfase implícita no uso do termo templo,
pois, visto que o Espírito de Deus não pode permanecer num ambiente
impuro, só nos tornamos sua moradia quando nos consagramos como seus
templos [Sl 132.14]. Que grande honra Deus nos confere em querer habitar
em nós! Portanto, devemos viver em pleno temor a fim de não o
expulsarmos, e ele, por sua vez, nos abandone, irado com nossos atos
sacrílegos.48
E que não sois de vós mesmos. Este é o segundo argumento, a saber:
que não estamos a nossa própria disposição, vivendo segundo nosso bel-
prazer. A razão que ele apresenta em prol desse fato é que o Senhor já pagou
o preço de nossa redenção, e nos adquiriu para ele mesmo. Paulo, em
termos similares, diz em Romanos 14.9: “Porque foi para isto que Cristo
morreu e ressuscitou, para ser Senhor tanto dos mortos como dos vivos.”
Ora, a palavra preço pode ser considerada de duas formas: ou
simplesmente entendê-la num sentido literal, quando comumente falamos
de algo como tendo “um preço”,49 quando desejamos deixar bem claro que
não o obtemos de graça; ou quando usamos, em vez do advérbio τιμίως,
“alto custo”, “muito caro”, quando costumamos descrever as coisas que nos
custam um valor muito alto. Em minha opinião, não há dúvida de que o
segundo é mais satisfatório. Pedro escreve em termos similares: “Sabendo
que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes
resgatados de vossa vã maneira de viver. Mas com o precioso50 sangue de
Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado” [1Pe 1.18, 19]. A
suma de tudo isso51 é: que a redenção nos mantenha sob limites, e com um
freio de obediência restrinja a licenciosidade de nossa carne.
20. Glorificai a Deus. À luz desta conclusão torna-se evidente que os
coríntios assumiam para si a liberdade, nas coisas exteriores, quanto ao que
era necessário restringir e refrear. Portanto, a censura consiste nisto: ele
mostra que o corpo está sujeito a Deus, não menos que a alma, e que,
conseqüentemente, é razoável que ambos sejam devotados à glória de Deus.
É como se ele quisesse dizer: “Como é conveniente que a mente do cristão
deva ser pura diante de Deus, assim também deve ser com sua conduta
externa diante dos homens, visto que o poder de ambas está nas mãos de
Deus, que redimiu a ambas [mente e conduta].” Com o mesmo propósito em
vista, ele assevera, no versículo 19, que não é só nossa mente que é templo
do Espírito Santo, mas também nosso corpo, de modo que não tenhamos
ilusão, nos inocentando diante dele, pois só poderemos fazer isso quando
nos dedicarmos a seu serviço, total e completamente, para que, por meio de
sua palavra, regulemos bem inclusive as ações externas de nossa vida.

1. “De moindre estime en l’Eglise, ou, de nulle estime, assauoir au pris des autres.” – “Da mínima
estima na Igreja, ou de nenhuma estima; isto é, em comparação com outros.”
2. “Pourquoy plustost n’endurez-vous l’inure? Pourquoy plustost ne receuez-vous dommage?” –
“Por que não sofreis antes a injúria? Por que não vos submetais antes à perda?”
3. “Espient incessamment et d’vne affection ardente.” – “Vigiam incessantemente e com desejo
ardente.”
4. “Qui sont necessairement contraints de maintenir et plaider leurs causes sous iuges
infideles.” – “Quem necessariamente se sente constrangido a manter e defender suas causas
legais perante juízes incrédulos.”
5. “L’honneur et la prerogatiue.” – “A honra e a prerrogativa.”
6. “Mais, dira quelqu’vn, encore à le prendrre ainsi.” – “Mas, dizem alguns, inclusive tomando-o
desta forma.”
7. “Sous precepteurs et maistres.” – “Sob preceptores e mestres.”
8. “Mais, dira qulqu’vn.” – “Mas diria alguém.”
9. “Ne defend point aux Chrestiens d’aller demander conseil aux Legistes.” – “Não impede os
cristãos de recorrerem ao conselho dos advogados.”
10. “Au nom de Christ.” – “No nome de Cristo.”
11. “Auquel estant comme assis, il exerce sa iurisdiction.” – “No qual, como se estivesse
assentado, ele exerce sua autoridade.”
12. “Des prestres et ministres.” – “De sacerdotes e ministros.”
13. “Apostats et rebelles.” – “Apóstatas e rebeldes.”
14. “Sainct Ambrose ne touche ne ciel ne terre (comme on dit) en l’exposition de ces mots.” –
“Santo Ambrósio nem toca o céu nem a terra (segundo a expressão corrente) na exposição
destas palavras.” A intenção de nosso autor parece ser que Ambrósio pairava em suspenso, ou
não decidia qual a opinião certa.
15. “Les gens profanes et indideles.” – “Pessoas profanas e incrédulas.”
16. “Car ce seroit vne façon de parler bien maigre et de peu de grace, d’appeler ainsi les
indideles.” – “Pois esse era um modo paupérrimo e desajeitado de falar, para descrever os
incrédulos dessa maneira.”
17. “Sainct Paul.” – “São Paulo.”
18. “Il les garde de tomber en reproche.” – “Ele os guarda de caírem em opróbrio.”
19. “Aiseement abbatu et irrité.” – “Facilmente se fere e se irrita.”
20. Alguns pressupõem que o termo grego, ἥττημα, se deriva originalmente do verbo hebraico
ttj, ser quebrado (o qual é traduzido por ἡτταομαι em vários exemplos na Septuaginta). Nosso
autor provavelmente estava olhando para este fato quando declara que o significado original do
termo é “fraqueza mental, quando alguém se vê facilemente espicaçado por injúrias.” O termo
propriamente denota defeito. É instrutivo observar que uma disposição de “recorrer à lei com
irmãos”, em vez de “suportar o erro”, é representado pelo apóstolo como indicativo de um
defeito, isto é, na mansidão cristã ou no amor fraternal; enquanto a disposição oposta,
recomendada pelo apóstolo, segundo o padrão da moralidade do mundo, descobre o defeito
com respeito ao desânimo.
21. “Et qu’ils veulent veoir le bout du proces (comme on dit).” – “E se sentem desejosos de ver o
resultado do caso (segundo a expressão).”
22. “Se retirent à Dieu comme à celuy à qui appartient la vengeance.” – “Têm recorrido a Deus,
como aquele a quem pertence a vingança” [Sl 94.1].
23. “Pour estre bien gouuerné en ceci, il faut estre gaeni d’vne vraye charité.” – “Para sermos
propriamente regulados nisto, devemos ser adornados com o genuíno amor.”
24. “Plusieurs tombent en ceste malediction, de mepriser Dieu ouuertement.” – “Muitos incorrem
nessa maldição por publicamente desdenharem de Deus” [Sl 10.13].
25. “Et telles choses auez-vous este”, ou “este aucuns.” – “E tais coisas tínheis vós”, ou “tinham
alguns de vós.”
26. “Comme bestes rauissantes.” – “Como animais vorazes.” As harpias, sabe-se muito bem,
eram monstros fabulosos, proverbiais por sua voracidade. Merece nota que seu nome, ἅρπυίαι, e
o termo usado por Paulo para denotar extorsores (ἅρπαγες), são ambos derivados de ἅρπάζω,
assenhorear-se ou tomar por meio de violência.
27. As sereias eram uma espécie de monstros marinhos que supostamente habitavam certas
ilhas rochosas na costa sudoeste da Itália, as quais atraíam, como se acreditava, com a
entonação de sua música, os marinheiros à destruição. Homero, em sua Odisséia (viii.45), fala
de seu melodioso cântico (λιγυρη̑ αἰοιδη̑). Nosso autor, se observará, na conexão em que alude a “os
cantos das sereias”, expressa veementemente sua convicção da realidade da influência satânica,
quando contrastada com o que é meramente fabuloso.
28. “Suiets a toutes sortes de vices, sinon entant que le Seigneur les reprime au dedans, afind
qu’ils ne sortent dehors, et vienent à estre mis en effet.” – “Vulneráveis a todos os tipos de vícios,
a não ser que o Senhor os restrinja interiormente, para que não prorrompam exteriormente e se
concretizem na prática.”
29. “Vne fontaine abondante.” – “Uma fonte abundante.
30. “D’aucune chose, ou d’aucun.” – “De nada ou de ninguém.”
31. “A le conioindre avec ce qui a este dit auparauant.” – “Para conectá-lo com o que foi expresso
antes.”
32. “Or où on peche à bride auallée, et là où les vices ne sont point corrigez.” – “Onde as
pessoas pecam a rédeas soltas e onde os vícios não são punidos.”
33. “La liberte Chrestienne.” – “Liberdade cristã.”
34. “L’edification du prochain.” – “A edificação de seu próximo.”
35. “En sa conscience.” – “Em sua consciência.”
36. “Il s’en faut que l’homme Chrestien se doyue soucier ne debatre pour les choses externes.” –
“Um cristão não deve ser solícito ou contender por coisas externas.”
37. “Choses du tout indignes de Christ.” – “Coisas totalmente indignas de Cristo.”
38. “C’est vne meschancete d’abandonner nostre corps, et le prostituer.” – “É uma perversidade
entregar nosso corpo e prostituí-lo.”
39. 293 “Estre vn iour participant.” – “Ser um dia um participante.”
40. “Vne pollution si fade et infame.” – “Uma poluição tão imunda e infame.”
41. “Pour ce que ce ceci est vne chose abominable, et que nous deuons auoir en horreur.” –
“Como essa é uma coisa abominável, e devemos enfrentá-la com aversão.”
42. “Mais nous sommes faits non seulement vne mesme chair auec le Seigneur, auquel nous
adherons,mais aussi vn mesme esprit.” – “Mas não nos tornamos meramente uma só carne com
o Senhor, a quem estamos jungidos, mas também um só espírito.”
43. “Non que la paillardise soit digne de estre ornee des louanges qui appartiennt a l’ordonnance
du marriage.” – “Não que a fornicação seja digna de ser honrada com os louvores que
pertencem à ordenança do matrimônio.”
44. “Pour monstrer que la contagion et vilenie passe de l’vn a l’autre.” – “Para mostrar que o
contágio e poluição passam de um para o outro.”
45. Nosso autor faz uso do advérbio abusive (impropriamente), provavelmente se referindo à
figura de linguagem chamada por Quintiliano (viii. 6) abusio – o mesmo que catacrese
(perversão).
46. “N’en demeure point tellement imprimee en nostre corps.” – “Não ficam impressos em nosso
corpo da mesma maneira.”
47. “Par mesdisance, detraction, et perinre.” – “Pela maledicência, detração e perjúrio.”
48. “Par nos vilenies plenes de sacrilege.” – “Por nossas máculas, saturadas de sacrilégio.”
49. Assim, ἐξευρίσκειν τιμη̑ς τι é empregado por escritores clássicos no sentido de obter algo por
preço, isto é, por preço elevado. Veja-se Heródoto vii.119.
50. Nosso autor evidentemente tem seus olhos voltados para o epíteto τιμίος (precioso), como
usado pelo apóstolo Pedro, em referência ao sangue de Cristo – τιμίω αἱματι, ὡς ἀμνου ἀμώμου κ.τ.λ.
– “precioso sangue, como de um Cordeiro sem mácula” etc.
51. “Le sommaire et la substance du propos revient là.” – “A suma e substância do discurso
equivalem a isto.”
Capítulo 7

1. Ora, no que se refere às coisas que me escrevestes, é bom para o homem não tocar
uma mulher.
2. Não obstante, por causa da fornicação, cada um tenha sua própria esposa, e cada
uma tenha seu próprio esposo.

1. Porro, de quibus scripsistis mihi, bonum est viro mulierem non tangere.
2. Propter fornicationes autem unusquisque uxorem suam habeat, et unaquæque
proprium maritum.

Uma vez que esteve falando de fornicação, ele agora faz uma transição
adequada para o tema do matrimônio, que é o remédio para se evitar a
fornicação. Ora, tudo indica que, a despeito das grandes dispersões na igreja
de Corinto, ainda restava algum respeito por Paulo, embora enfrentassem
ainda alguma dúvida acerca de alguns pontos. Não sabemos quais eram
exatamente as questões, exceto o que podemos deduzir de sua réplica. Não
obstante, sabe-se muito bem que, imediatamente após a primeira igreja ser
fundada, infiltrou-se nela através das artimanhas de Satanás, uma
superstição de tal vulto que uma grande proporção deles, movidos de tola
admiração do celibato, desprezou a sacra conexão do matrimônio. Não só
isso, porém muitos deles o consideravam como algo aversivo, como algo
até mesmo profano. É provável que esta infecção havia se espalhado
também entre os coríntios; ou, no mínimo, havia alguns espíritos
extremamente indispostos que, dando demasiada importância ao celibato,1
se esforçavam em alienar do matrimônio a mente dos crentes. Ao mesmo
tempo, diante do fato de que o apóstolo ministrava seu ensino em referência
a muitos outros assuntos, ele avalia que tinha examinado muitos deles. O
que é primordialmente importante é que atentemos bem para sua doutrina
acerca de cada um deles.
1. É bom para o homem. Sua réplica consiste de duas partes. Ele ensina,
antes de tudo, que seria bom se todo homem se abstivesse de mulher,
contanto que fosse capaz de o fazer. Em segundo lugar, ele modifica isso,
dizendo que, visto que muitos não podem agir assim em decorrência da
fraqueza de sua carne, tais pessoas não devem negligenciar o remédio que
se encontra a seu alcance como lhes foi designado pelo Senhor. Agora
devemos observar o que ele quis dizer pela palavra bom, ao asseverar que é
bom abster-se do matrimônio, a não ser que cheguemos à conclusão, oposta
ao que se pretende, que a união matrimonial é portanto nociva. Isso é o que
sucedeu no caso de Jerônimo, não tanto em virtude de ignorância, mas, em
minha opinião, mais motivado pelo calor das controvérsias. Pois embora
esse famoso homem fosse dotado de excelentes virtudes, não obstante ele
laborava sob um sério defeito, ou, seja, nos debates costumava vencer
recorrendo a excessivas extravagâncias, e assim nem sempre se preocupava
em manter-se dentro dos limites da verdade. Portanto, a inferência que aqui
extraímos é como segue: “É bom não tocar uma mulher, portanto é errado
tocá-la.”2 Certamente Paulo aqui não usa o termo bom nesse sentido, ao
ponto de realçar o que é mal ou saturado de vício. Ele apenas mostra o que é
mais vantajoso à vista de todos os problemas, aborrecimentos e
responsabilidades, os quais envolvem aqueles que contraem os laços
matrimoniais. Por isso devemos sempre prestar atenção à modificação que
ele adiciona. Portanto, as palavras de Paulo não podem permitir nada mais
que isto, a saber: que é deveras vantajoso e conveniente a um homem não
viver preso a uma esposa, contanto que ele seja capaz de viver sem ela.
Expliquemo-lo fazendo uso de uma analogia [similitudine]. Alguém diria:
“Seria bom que um homem não comesse, não bebesse, não dormisse”, sem
querer dizer que ele estaria condenando a comida, a bebida ou o sono como
coisas em si mesmas nocivas. Ao contrário, visto que todo o tempo que se
dá a essas coisas3 significa muito menos tempo para as coisas espirituais,
ele estaria querendo dizer que seríamos mais abençoados se pudéssemos
estar livres desses entraves e devotar-nos inteiramente4 à meditação sobre
as coisas celestiais. Portanto, uma vez que há muitos entraves na vida
matrimonial, os quais interferem na liberdade do homem, seria bom, por
essas razões, não se envolver em matrimônio.
Aqui, porém, surge outra questão; pois estas palavras de Paulo
aparentam inconsistência em relação às palavras do Senhor em Gênesis 2.18,
ou, seja, que “não é bom que o homem viva sem uma esposa”. A condição
expressa pelo Senhor, nesta passagem, é ruim; Paulo, aqui, ensina que é boa.
Respondo que, onde a esposa é uma auxiliadora de seu esposo, fazendo sua
vida feliz, então está em concordância com a intenção de Deus. Porque Deus
assim o ordenou no princípio, ou, seja, que o homem sem esposa é apenas a
metade de homem, por assim dizer [quasi dimidius homo], e se sente carente
do apoio que pessoalmente necessita; e a esposa é, por assim dizer, o
complemento do homem [quasi viri complementum]. Posteriormente, o
pecado atingiu e poluiu a instituição divina, pois em lugar de uma bênção
tão incomensurável, dolorosa aflição [pœna] nela perpetrou, de modo que o
matrimônio se transformou numa fonte e meios de muitos problemas.
Assim, todo o mal ou sofrimento que há no matrimônio é oriundo da
corrupção da instituição divina. Embora haja ainda algum resquício da
bênção original, de modo que a vida de uma pessoa sozinha às vezes é
muito mais miserável do que a de uma pessoa casada; todavia, à vista do
fato de que os casados se envolvem em muitos infortúnios, Paulo é
justificado ao aconselhar que seria bom que o homem se guarde dele [o
matrimônio]. Dessa forma, aquelas dificuldades que acompanham o
matrimônio não ficam encobertas. E, ao mesmo tempo, nenhum espaço se
permite a jocosidades vulgares, as quais geralmente se propõem a
desacreditar o matrimônio, tais como: “uma esposa é um mal necessário”; e
“uma mulher é o maior de todos os males”. Porquanto provérbios como
esses surgiram do laboratório de Satanás; e seu objetivo outro não é senão
macular a santa instituição de Deus como se fosse uma desonra; e assim, em
conseqüência, os homens se retraem do matrimônio, como se foge do
patíbulo [a capitali noxa] ou da peste.
A suma de tudo é: devemos lembrar de distinguir entre a ordenança de
Deus em sua pureza e o castigo do pecado, o qual entrou em cena em
decorrência da queda. Porque, de acordo com esta distinção, no princípio
era bom para o homem viver unido a uma esposa, sem qualquer exceção; e
mesmo agora é bom, mas somente até certo ponto, visto que a amargura é
mesclada com a doçura, em decorrência da maldição divina. Entretanto, para
aqueles que não possuem o dom da continência, ele é um remédio, o qual é
necessário e faz bem à saúde, como se verá em concordância com o que vem
a seguir.
2. Mas, por causa da fornicação. Ele agora requer daqueles que se
deixam influenciar pel vício da incontinência, que busquem o recurso desse
antídoto. Pois ainda que tal afirmação pareça ser de aplicação universal, ela
deve, contudo, restringir-se aos que se sentem premidos pela necessidade.
Cada pessoa deve ser seu próprio árbitro, caso isso deva aplicar-se também
a sua pessoa. Portanto, não importa quais são as dificuldades que
sobrevenham ao matrimônio, todos aqueles que não podem suportar os
impulsos da carne devem lembrar que este mandamento lhes foi imposto
pelo Senhor.
Mas alguém perguntará: “A cura da incontinência é a única razão para se
contrair o matrimônio?” Minha resposta é que isso não é o que Paulo
pretende dizer. Pois aos que desfrutam do dom da capacidade de suprimir o
matrimônio, ele dá a liberdade de se casarem ou não.5 Ordena, porém, aos
demais que queiram casar-se, que atentem bem para suas fraquezas. O que
importa é o seguinte: o que está em jogo aqui não são as razões pelas quais
o matrimônio foi instituído, e, sim, as pessoas para quem ele é
indispensável. Porque, se atentarmos para o primeiro matrimônio,
percebemos que ele não podia ser um remédio para uma doença, a qual
ainda não existia, senão que foi instituído para a procriação de filhos. É
verdade que depois da Queda acresceu-se este outro propósito.
Esta passagem também se opõe à poligamia [πολυγαμία]. Porque o
apóstolo deseja que cada mulher tenha seu próprio marido, notificando que
há obrigações mútuas. Portanto, uma vez que o homem tenha se
comprometido a ser leal a sua esposa, ele não deve separar-se dela, como
claramente ocorre no caso de segundas núpicias.

3. Que o esposo dê à esposa o que lhe é devido; e de igual modo também a esposa faça
ao esposo.
4. A esposa não tem poder sobre seu próprio corpo, e, sim, o esposo; e de igual modo
também o esposo não tem poder sobre seu próprio corpo, e, sim, a esposa.
5. Não defraudeis um ao outro, exceto por mútuo consentimento, por algum tempo, para
que possais dedicar-vos à oração, e vos ajunteis novamente, para que Satanás não vos
tente por causa de vossa incontinência.

3. Uxori vir debitam benevolentiam vicissim præstet, similiter et uxor marito.


4. Mulier corporis sui potestatem non habet, sed maritus: similiter et maritus corporis sui
potestatem non habet, sed uxor.
5. Ne fraudetis alter alterum, nisi ex mutuo consensu ad tempus, ut vacetis ieiunio et
orationi: et rursum in unum redite, ne tentet vos Satanas propter incontinentiam vestram.
3. Que o esposo dê à esposa. Ele agora estabelece as regras para a vida
dos casados, ou ensina quanto aos deveres de esposo e esposa. E em
primeiro lugar ele estabelece uma doutrina geral quanto à benevolência
mútua: que o esposo ame a sua esposa, e que a esposa ame a seu esposo.
Outros interpretam a expressão devida benevolência [debitam
benevolentiam] como sendo “as obrigações do matrimônio”, ou, seja, os
direitos conjugais. Não sei até onde isso seja correto. O que os impele a
formular este conceito é o que vem imediatamente a seguir: “o esposo não
tem poder sobre seu próprio corpo” etc. Mas talvez seja melhor se o
entendêssemos como sendo a conclusão da afirmação anterior. O esposo e a
esposa são, portanto, obrigados à boa vontade mútua, e daqui se segue que
nem ele, nem ela, tem poder [autoridade] sobre o próprio corpo, seja o dele,
seja o dela.
Mas alguém poderia perguntar: Por que o apóstolo os põe em pé de
igualdade, e não exige da esposa obediência e sujeição? Minha resposta é
que ele não pretende discutir todos seus deveres, senão só a obrigação
mútua que diz respeito ao ato sexual. Esposo e esposa, portanto, têm
diferentes direitos e deveres em outros aspectos; porém, na preservação da
fidelidade conjugal, eles estão em pé de igualdade. Pela mesma razão, a
poligamia [πολυγαμία] é novamente condenada, pois se é uma condição
constante do matrimônio que o homem renuncie o poder sobre seu próprio
corpo, e se dedique a sua esposa, como poderia ele em seguida agir como se
fosse livre, juntando-se a outra mulher?
5. Não defraudeis um ao outro. As pessoas profanas poderão concluir,
dizendo que Paulo não é suficientemente modesto em tratar das intimidades
de esposo e esposa; ou, pelo menos, que isso era inconveniente para a
dignidade de um apóstolo. Mas se considerarmos as razões que o
impeliram, descobriremos que ele se viu forçado a falar desses assuntos. Em
primeiro lugar, ele estava cônscio de quão poderosamente uma simulação de
pureza facilmente engana as mentes piedosas, como sabemos da própria
experiência. Porque Satanás nos hipnotiza, usando o que parece ser a coisa
certa a fazer, de modo que chegamos a pensar no ato sexual com nossas
esposas como algo que nos torna impuros, e chegamos a pensar em
desfazer nossa vocação e assumir outro estado de vida. Além disso, Paulo
sabia como cada um é inclinado ao amor próprio e ávido a satisfazer seus
próprios desejos. Esta é a razão por que um esposo, tendo satisfeito sua
paixão, não só negligencia sua esposa, mas ainda a despreza. E são poucos
os que às vezes não são surpreendidos pelo sentimento de aversão por suas
esposas. É por essas razões que ele trata tão criteriosamente da obrigação
mútua do matrimônio. É como se quisesse dizer: “Se em algum tempo
penetrar na mente dos esposos o desejo pela vida solitária, visto ser esta
mais santa, ou porque são tentados por desejos promíscuos,6 lembrem-se
de que estão obrigados por obrigação mútua. O homem é apenas a metade
de seu corpo, e o mesmo se dá com a mulher. Eles não têm, portanto, a
liberdade de escolha, senão que, ao contrário, devem manter-se limitados
por estes pensamentos: em razão de um ser dependente do apoio do outro,
Deus nos uniu para vivermos juntos, de modo a auxiliarmos um ao outro. E
assim, que cada um auxilie o outro em suas necessidades; e nem aja cada
um como se o outro devesse satisfazer seu próprio gosto.”
Exceto por mútuo consentimento. Ele requer “consentimento mútuo”,
em primeiro lugar porque a questão não é simplesmente de continência de
uma das partes, mas de ambas. Imediatamente ele também adiciona duas
outras exceções. A primeira é que só deve ser feito temporariamente, visto
que a continência não está em seu poder. De outra forma, poderiam tentar
de tudo para empreender mais do que seriam capazes, e assim cair nas
malhas de Satanás. A segunda exceção é que não devem abster-se do ato
sexual como se a abstinência fosse em si mesma uma obra boa e santa, ou
como se fosse um meio de cultuar a Deus;7 mas para que sejam capazes de
separar tempo para os empreendimentos de maior prioridade.
Ora, ainda que Paulo houvera feito uma bem cuidadosa provisão neste
sentido, Satanás, contudo, tinha a vantagem, ao ponto de convencer8 a
muitos da prática do divórcio ilícito, com base em um desejo corrupto por
uma vida solteira. Tendo abandonado suas esposas, os homens buscavam
refúgio em uma vida de solidão com o intuito de agradar melhor a Deus,
vivendo como monges. As esposas, contra a vontade de seus esposos,
punham o véu, a insígnia do celibato. Nem por um momento consideravam
que, ao violarem o voto de fidelidade a seus companheiros, estavam
desvencilhando-se do jugo do Senhor.
É verdade que este vício foi, em alguma medida, corrigido pelos antigos
cânones. Porque proibiam ao esposo de deixar sua esposa contra sua
vontade sob o pretexto de continência e, semelhantemente, à esposa de
negar seu corpo a seu esposo. Não obstante, estavam errados ao permitirem
a ambos de viver juntos em perpétuo celibato, como se os homens tivessem
todo direito de estabelecer algo que está em franca oposição ao Espírito de
Deus. Paulo expressamente ordena aos que são casados a não defraudarem
um ao outro exceto temporariamente. Os bispos lhes permitiam desistir para
sempre do ato sexual. Quem não perceberia o quanto isso é claramente
conflitante? Portanto, que ninguém se surpreenda com nosso franco
desacordo, nesta matéria, com os anciãos que certamente se desviaram da
clara afirmação da Palavra de Deus.
Para que possais entregar -vos ao lazer para jejum e oração. Notemos
bem que Paulo não está se referindo aqui ao jejum e oração, em geral, e sem
distinção. A sobriedade e temperança, que deve ser habitual por parte dos
cristãos, é uma espécie de jejum. A oração, por sua vez, deve ser uma prática
não só diária, mas também contínua. Paulo, porém, está se referindo àquele
gênero de jejum que é uma solene evidência de quebrantamento, que busca
desviar a ira de Deus; ou por meio do qual os crentes se preparam para a
oração antes de empreenderem alguma tarefa difícil. Semelhantemente, ele
sugere o gênero de oração que requer um maior e mais concentrado esforço
mental.9 Pois às vezes nos é necessário desprender-nos de tudo mais a fim
de jejuarmos e orarmos; por exemplo, quando alguma catástrofe nos
ameaça, o que se nos insinua como sendo um sinal da ira divina; ou quando
passamos a digladiar contra alguma dificuldade; ou quando algo muito
importante está para acontecer, tal como a ordenação de pastores.10 Ora, o
apóstolo é justificado ao enfeixar estes dois e mantê-los unidos, porque o
jejum é a preparação para a oração; e Cristo também os traz unidos ao dizer:
“Esta espécie de demônios não é expulsa senão por meio de jejum e oração”
[Mt 17.21].
Portanto, quando Paulo diz para que tenhais lazer, ele quer dizer que,
tendo-se desembaraçado de todas as distrações, tivessem condição de
ocupar-se dessa única coisa. Ora, se alguém objetar, dizendo que o ato
sexual é algo ruim porque interfere na oração, a resposta é fácil, ou, seja, ele
não se torna pior que comida e bebida que obstruem o jejum. Os crentes,
porém, devem ser discretos na decisão quanto ao tempo de comer e beber, e
quanto ao tempo de jejuar. E é também uma questão da mesma discrição
saber quando é o tempo certo para ato sexual com suas esposas, e quando
devem diminui-lo para se dedicarem a alguma outra ocupação que reclama
sua atenção.
E vos ajunteis novamente, para que Satanás não vos tente. Agora ele
apresenta a razão, com base na ignorância pela qual os homens de outrora
se equivocavam em fazer um voto irrefletido e inconsiderado de continência
vitalícia. Pois arrazoavam desta forma: “Se é bom para os casados
concordarem por algum tempo em não praticarem o ato sexual, então deve
ser muito mais preferível que se abstenham dele permanentemente.” Não
consideravam, porém, quão arriscado era que se deixassem envolver com
tal pensamento, porquanto a Satanás se oferece a chance de nos subjugar,
quando não atentamos para algo que está além dos limites de nossa frágil
resistência.11 “Mas Satanás deve ser resistido”,12 dirá alguém. Como, se não
há armas e nem armadura? “Então peçamo-las ao Senhor”, dirão eles. No
entanto, será em vão pedirmos que o Senhor venha em nossa defesa numa
batalha temerária. Por essa razão é que precisamos prestar particular
atenção à frase “por causa de vossa incontinência”, visto que as fraquezas
de nossa carne nos expõem às tentações de Satanás. Se porventura
quisermos expulsá-las e mantê-las fora de nosso curso de ação, então que
apliquemos o antídoto que o Senhor forneceu para nossa proteção.
Portanto, aqueles que evitam o ato sexual estão agindo impensadamente; na
verdade é como se fizessem um acordo com Deus para a obtenção de
perpétua resistência.13

6. Digo, porém, isto à guisa de permissão, e não por mandamento.


7. Porque eu gostaria que todos os homens fossem assim como eu sou. Seja como for,
que cada um tenha de Deus seu próprio dom, um de uma maneira, o outro de outra.
8. Digo, porém, aos solteiros e às viúvas: seria bom que permanecessem tais como eu.
9. Mas se não puderem conter-se, então que se casem, porque é melhor casar-se do
que abrasar-se.

6. Hoc autem dico secundum veniam, non secundum præceptum.


7. Optarim enim, omnes homines esse sicut me: sed unusquisque proprium donum
habet ex Deo, alius sic, alius autem sic.
8. Dico autem inconiugatis et viduis: bonum ipsis est, si maneant ut ego.
9. Si autem non continent, matrimonium contrahant: melius enim et matrimonium
contrahere quam uri.
6. À guisa de permissão. Para que não viessem tirar vantagem de uma
regra do gênero daquela que ele estabelecera, e soltassem as rédeas da
luxúria,14 Paulo adiciona um elemento restringente. Diz que escrevera estas
coisas com base nas fraquezas deles, com o fim de lembrá-los que o
matrimônio é um remédio para a ausência de castidade, para que não
abusassem desordenadamente da vantagem dela, de modo a gratificar por
todos os meios seus desejos, sem medida ou sem moderação. Ele tem
também em vista pôr a descoberto as cavilações dos perversos, para que
ninguém tivesse em seu poder apresentar uma objeção deste teor: “Ora, ora!
Então tendes medo de que os esposos e as esposas não tenham a mesma
opinião de uma suficiente inclinação para o deleite carnal para o qual estais
tão propensos?” Pois inclusive os papistas, aqueles poucos santos,15
também se ofendem com esta doutrina, e de bom grado terçam armas com
Paulo, com base em sua defesa de que os casados devem manter a
coabitação mútua, e não lhes permite que se afastem precipitadamente para
a vida de celibato. Ele, pois, apresenta a razão para ensinar tal doutrina, e
assevera que não recomendava o ato sexual aos que já eram casados com o
fim de induzi-los a entregarem-se ao deleite, ou como se nutrisse o maior
prazer em ordenar tal coisa, mas porque considerava o que se requeria da
fraqueza daqueles a quem se dirigia.
Os zelotes embrutecidos,16 defensores do celibato, erram ao fazer uso de
ambas as partes deste versículo porque, como Paulo dizia, ele fala “à guisa
de permissão” (Secundum veniacos), por isso concluem que o ato sexual no
casamento é pecaminoso; pois onde se requer o perdão17 [venia], o pecado
se faz presente. Por outro lado, deduzem de sua expressão, “não por
mandamento”, que o sinal mais proeminente de santidade é a isenção do
estado conjugal e a volta ao celibato.
Ao primeiro, respondo: embora eu reconheça que todas as afeições
humanas podem escapar seriamente ao controle, não nego que possa haver
também, nesta conexão, falta de disciplina (ἀταξία),18 o que admito ser
pecaminoso.19 E, ainda mais sério, concordo que este sentimento é mais
violento do que os outros, e quase bestial. Contra isso, porém, sustento
também que todo e qualquer vício ou infortúnio que porventura nele exista
será coberto pela dignidade do matrimônio, o que cessa de ser vício, ou,
pelo menos, cessa de ser considerado por Deus como tal. Este é o método
de Agostinho em tratar o assunto, e por sinal muito bem, em seu livro Das
Vantagens do Matrimônio, e às vezes em outras partes. Pode-se sumariá-lo
como segue:20
“O ato sexual entre esposo e esposa é algo puro, é legítimo e santo;
porque é uma instituição divina. A paixão incontrolável com que os homens
são inflamados é um vício oriundo da corrupção da natureza humana; mas,
para os crentes, o matrimônio é um véu que cobre essas falhas, de modo
que Deus não mais as vê.”
Eis minha resposta à segunda falsa interpretação deste versículo: Visto
que o termo ‘mandamento’ é apropriadamente dado a questões no que tange
a deveres de justiça e a coisas que em si mesmas agradam a Deus, Paulo, por
isso, nega que esteja falando “à guisa de mandamento”. Não obstante, ele já
mostrou com suficiente clareza que o remédio que havia prescrito deve ser
necessariamente usado.
7. Porque eu gostaria que todos os homens. Isto está conectado à
explicação da declaração anterior. Pois ele não deixa de notificar qual é para
o cristão o caminho mais conveniente; porém deseja que todos pensem
criteriosamente acerca do que Deus quer que cada um seja.21 Por que, pois,
Paulo não disse, como no versículo anterior, “à guisa de mandamento”? A
resposta é que ele não desejava constrangê-los à vida conjugal, mas achava
preferível que não sentissem qualquer necessidade dele. Entretanto, uma
vez que isso não é possível a todos, então ele leva em conta a incapacidade
deles. Além do mais, se esta passagem houvera sido adequadamente
avaliada, essa falsa superstição de defender o celibato, o qual tem sido a raiz
e a causa de males tremendos, nunca teria logrado sucesso no mundo. Aqui
Paulo faz sobejamente evidente que nem todos desfrutam de livre escolha
neste sentido, visto que a virgindade é um dom especial, o qual não é
outorgado a todos indiscriminadamente. E ele não está afirmando nada
diferente do que afirmou o próprio Cristo, quando diz que nem “todos os
homens têm a capacidade de receber esta palavra” [Mt 19.11]. Paulo,
portanto, é aqui intérprete das palavras de nosso Senhor, ao afirmar que a
capacidade de viver fora do estado conjugal não é concedida a todos.
E o que tem acontecido sempre? Todos, sem qualquer tirocínio quanto a
sua própria capacidade, têm procurado agradar a si próprios, fazendo um
voto de perpétua castidade. E não só as pessoas comuns e sem cultura têm
cometido esse erro. Pois eminentes doutores, os quais sinceramente têm
aprovado a virgindade, e ao mesmo tempo que passam por alto a fragilidade
da natureza humana, têm desconsiderado esta advertência de Paulo – sim,
do próprio Cristo. Jerônimo, levado por um zelo cego não sei de que
natureza, não simplesmente fracassa, mas se lança de ponta cabeça nesses
falsos conceitos. Concordo que a virgindade é um dom admirável, porém
não se deve esquecer que ele não passa de um dom. Que ouçam também o
que Cristo e Paulo dizem, isto é, que nem todos o recebem, senão apenas
uns poucos. Portanto, que ninguém faça um voto precipitado se não está em
seu próprio poder controlar-se, o qual não se obtém como um dom, caso
alguém se esqueça de sua vocação e aspire algo que esteja fora de seus
limites fazê-lo.
Não obstante, os antigos igualmente erraram na importância que davam
à virgindade, porque a exaltavam como se fosse a mais excelente de todas as
virtudes, e a desejavam que fosse considerada como um meio de prestar
culto a Deus.22 Mesmo nisto há um danoso erro; e então vem a lume outro,
porque, depois que o celibato começou a ser considerado como algo em
extremo excelente, muitos tentaram ultrapassar os demais, fazendo votos
temerários de perpétua castidade, quando dificilmente um por cento deles
tinha a capacidade e o dom para isso. Um terceiro erro desenvolveu-se
deste: aos ministros da Igreja se proibiu o matrimônio, visto que este não
parecia ser o modo de vida que conserva a santidade de sua ordem.23 Deus
puniu a presunção daqueles que menosprezaram o matrimônio e fizeram
votos temerários de perene castidade, primeiro por meio do fogo secreto da
luxúria,24 e em seguida por meio de práticas horríveis e imundas. Visto,
porém, que os ministros da Igreja foram excluídos do matrimônio lícito, o
resultado de tal tirania foi que a Igreja se viu privada de um grande número
de ministros bons e fiéis; porquanto homens honestos e sábios não se
deixariam enredar em tal armadilha. Finalmente, após um longo período de
tempo, a luxúria, que até então havia sido reprimida, expeliu seu abominável
odor. Não foi considerado como uma questão de pouca importância para
aqueles que mantinham concubinas, isto é, prostitutas, para os quais era
uma ofensa capital possuir uma esposa, e tudo isso impunemente, porém
nenhum lar estava suficientemente seguro das lascívias dos sacerdotes.
Mesmo isso era considerado uma questão de pouca importância, pois ali
coisas monstruosas e ultrajantes vinham à existência, coisas para as quais o
melhor é que sejam mergulhadas em perene olvido do que fazer delas
menção à guisa de exemplo.25
8. Digo, porém, aos solteiros. Isso depende do que vem antes, e é, em
certo sentido, uma dedução dele. Porquanto Paulo dissera que os dons de
Deus são distribuídos de diversas maneiras, que nem todos possuem o dom
da continência e que aqueles que o não possuem devem buscar seu
antídoto no recurso do matrimônio. Agora ele se volve para os que são
castos, a todos os que são solteiros, e às viúvas, e lhes concede a liberdade
de cultivarem a aspiração pelo celibato, caso tenham capacidade para tal;
mas, que cada um conheça sua capacidade de ação. O que equivale ao
seguinte: que o estado de solteiro desfruta de muitas vantagens, e que estas
não sejam subestimadas, contanto que cada um viva feliz com sua condição
pessoal.26 Portanto, ainda que a virgindade seja exaltada até ao terceiro céu,
não obstante ainda permanece sendo verdadeiro que ela não é praticável a
todos, senão apenas aos que a recebem como dom especial de Deus.
Os papistas apresentam uma objeção, dizendo que quando somos
batizados também fazemos a Deus uma promessa de que viveremos uma
vida de pureza, promessa esta que não temos capacidade de cumprir.
Questão fácil de resolver, ou, seja: nesse caso não prometemos mais do que
Deus requer de todo seu povo, senão que a continência é deveras um dom
especial, o qual Deus não concedeu a muitos. Portanto, aqueles que fazem
um voto de castidade agem precisamente como uma pessoa inculta,
ignorante, que afirma ser um profeta, ou um mestre, ou um intérprete de
línguas.
É preciso também atentar bem para o termo continuar. Pois é possível
que uma pessoa leve uma vida de continência íntegra por algum tempo, mas
que não deve nutrir o pensamento de ser isso de caráter perene. Isaque
viveu solteiro até os trinta anos, e permaneceu casto todos aqueles anos,
período esse em que o fogo da paixão é mais ativo; contudo, em seguida foi
chamado ao estado conjugal. Jacó é um exemplo ainda mais notável. O
apóstolo, portanto, desejaria que os que agora estão cultivando a castidade
prossigam e perseverarem nela. Visto, porém, que poderiam não ter certeza
de que este é um dom permanente, então diz a todos que ponderem sobre
qual de fato é seu dom.
Não obstante, esta passagem revela que o apóstolo era solteiro naquele
tempo. A dedução de Erasmo, de que ele era casado, visto fazer menção de
si mesmo em conexão com os casados, é frívola e absurda; poder-se-ia
deduzir também, usando um raciocínio similar, que ele era viúvo,27 visto
falar de si mesmo em conexão com as viúvas.28 Não obstante, todo o teor
das palavras revela que ele era então solteiro, pois não consigo aceitar a
conjetura de que ele se livrara de sua esposa em algum ponto de sua
história, e que voluntariamente se privara do leito do matrimônio. Que
direito, pois, diria ele aos casados:29 “e vos ajunteis
novamente”? Certamente seria absurdo não obedecer ele suas próprias
diretrizes, não observando a lei que ele mesmo impusera a outros. Paulo,
porém, é um exemplo notável de modéstia; pois enquanto ele mesmo é
dotado com o dom da castidade, não constrange outros a seguirem seu
procedimento, senão que lhes autoriza o uso do remédio contra a fraqueza,
do qual ele mesmo se privara. Seja ele um exemplo para nós, de modo que,
se formos poderosamente abençoados com algum dom específico, não
sejamos excessivamente severos, requerendo de outros a posse do mesmo
dom que não tiveram a bênção de possuir.
9. Mas, se não exercem a continência. Embora Paulo os aconselhe a
abster-se do matrimônio, ele sempre se expressa em termos condicionais:
“se possível”, “se forem capazes”. Mas quando a fraqueza da carne se põe no
caminho da liberdade, ele novamente os direciona rumo ao matrimônio,
como se este fosse uma questão sobre a qual não houvesse dúvida alguma.
Por isso ele diz: “à guisa de mandamento”, para que ninguém viesse a
concluir que tal não passava de um conselho; e ele não está simplesmente
impondo restrições aos fornicadores, e, sim, aos que são completamente
corrompidos aos olhos de Deus por paixões secretas. Pois não há dúvida de
que a pessoa que não é casta tenta a Deus negligenciando o reverso do
matrimônio. Esta é uma questão que requer não de conselho, mas de estrita
proibição.
Porque é melhor. Não há aqui uma comparação estrita, visto que, como
matrimônio lícito, ele é honroso entre todos [Hb 13.4], ao passo que abrasar-
se é algo excessivamente danoso. Entretanto, o apóstolo está seguindo a
forma costumeira de expressar-se, ainda que não estritamente preciso, como
costumamos dizer: “É melhor renunciarmos este mundo para que possamos
obter a herança do reino do céu junto a Cristo, do que perecermos
miseravelmente nos prazeres da carne.” Faço tal menção em razão de
Jerônimo construir nesta passagem um sofisma pueril:30 o matrimônio é
bom, porque é um mal menor do que viver abrasado. Diria que, se ele
dissera isso com o intuito de provocar hilaridade, então não teria
conseguido muito; visto, porém, que esta é uma questão muito séria e
importante, ela é um motivo de escárnio, e não o que se esperaria de um
homem de bom senso. Portanto, deve ficar bem explícito que o matrimônio
como antídoto é bom e produz bem-estar, já que abrasar-se é algo muito mais
repugnante e detestável aos olhos de Deus.
Todavia, abrasar-se precisa ser definido, porquanto muitos são atingidos
pelos desejos da carne, dos quais, não obstante, não se pode requerer que
busquem imediatamente refúgio no matrimônio. E, conservando a metáfora
de Paulo, uma coisa é abrasar-se; e outra, sentir calor. Conseqüentemente, o
que Paulo aqui chama abrasar-se não é de modo algum uma leve sensação,
mas significa sentir-se tão inflamado pelo desejo sexual que não se
consegue resisti-lo. No entanto, há aqueles que se iludem em vão,
acreditando que serão absolvidos de toda culpa se não se entregarem à
concupiscência; por isso devemos atentar bem para três graus de tentação.
(1) Às vezes os assaltos da luxúria são tão fortes, que a vontade é
subjugada; porque o pior tipo de excitamento é aquele que faz o coração
queimar-se de paixão.
(2) Às vezes somos tão molestados pelos aguilhões da carne, que
relutamos vigorosamente, e não permitimos que o genuíno apreço pela
castidade seja expulso de nós, senão que, ao contrário, repugnamos todos
os desejos inconvenientes e impuros. Portanto, todos precisam de
advertência, especialmente os jovens, no sentido que, à medida em que são
assaltados pela paixão sexual, devem opor-se a tais tentações no temor do
Senhor, sem propiciar qualquer oportunidade aos pensamentos impuros,
rogando ao Senhor que lhes dê firmeza para resistirem, empregando todos
seus esforços para apagar as chamas da luxúria. Se fizerem progresso nesta
batalha, então que dêem graças a Deus. Pois quantas pessoas conhecemos
cuja carne não lhes causou sofrimento em alguma medida? Mas se
conseguirmos reprimir o pleno vigor de seu ataque antes que possa triunfar
sobre nós, faremos bem; porque, assim não estaremos nos abrasando, ainda
que nos sintamos incomodados pelo calor. Não significa que não haja nada
de errôneo na sensação do calor, mas quando reconhecemos nossas
fraquezas diante do Senhor, com humildade e quebrantamento,31 então
podemos, a despeito de tudo, ter bom ânimo nos momentos críticos. Em
suma, enquanto, pela graça do Senhor, estivermos obtendo vantagem na
batalha, e os dardos de Satanás não estiverem penetrando fundo em nosso
ser, ao contrário estiverem sendo vigorosamente desviados de nós, não
fiquemos desanimados em meio ao conflito.
(3) Entre estas duas há um gênero intermediário de tentação,32 a saber:
quando uma pessoa está ainda em sua mente plenamente determinada a não
dar entrada às paixões, contudo se acha inflamada por alguma cega paixão, e
fica tão perturbada que não consegue clamar a Deus com paz de
consciência. Portanto, esse gênero de tentação, o qual impede que a oração
seja feita espontaneamente a Deus, e interfere na paz da consciência, é tão
abrasante que só pode ser extinto por meio do matrimônio. Agora vemos
que, ao deliberar sobre isso, alguém não deve meramente considerar se
pode manter seu corpo incontaminado, mas também deve preocupar-se com
sua mente, como veremos mais adiante.

10. Todavia, aos casados ordeno, não eu, mas o Senhor, que a esposa não se separe de
seu esposo;
11. mas, se ela separar-se, que permaneça sozinha, ou que se reconcilie com seu
esposo; e que o esposo não deixe sua esposa.
12. Mas, aos demais digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem uma esposa descrente,
e ela consente em viver com ele, não a deixe.
13. E a mulher que tem um esposo descrente, e ele consente em viver com ela, não
deixe seu esposo.
14. Porque o esposo descrente é santificado pela esposa, e a esposa descrente é
santificada pelo esposo; senão seus filhos seriam impuros; mas agora são santos.
15. No entanto, se o descrente quer separar-se, que se separe; o irmão ou irmã, em tais
casos, não está sujeito à servidão; Deus, porém, nos chamou à paz.
16. Porque, como sabes, ó esposa, se salvarás teu esposo? Ou, como sabes, ó esposo,
se salvarás tua esposa?
17. E assim, que cada um ande de acordo com o que Deus lhe distribuiu, cada um de
acordo com a vocação do Senhor. E assim eu ordeno em todas as igrejas.

10. Coniugibus denuntio, non ego, sed Dominus: Uxor a marito ne discedat.
11. Quodsi discesserit, maneat innupta, aut viro reconcilietur: et vir uxorem ne dimittat.
12. Reliquis ego dico, non Dominus: Si quis frater uxorem habet infidelem, et ipsa
consentit cum eo habitare, ne dimittat eam:
13. Et mulier si maritum habet infidelem, et ipse consentit cum ea habitare, ne relinquat
eum.
14. Sanctificatus est enim vir infidelis in uxore: et sanctificata est uxor incredula in viro:
alioque liberi vestri immundi essent: nunc autem sancti sunt.
15. Quod si infidelis discedit, discedat: non enim subiectus est servituti frater aut soror in
talibus, in pace autem vocavit nos Deus.
16. Quid enim scis, mulier, an maritum servatura sis? aut quid scis, O vir, an uxorem sis
servaturus?
17. Nisi unusquisque ut ei gratiam divisit Dominus, sic ambulet: et sic in Ecclesiis
omnibus præcipio.

10. Aos casados ordeno. Paulo agora discute outro princípio do


matrimônio, a saber: que ele é um contrato indissolúvel. Portanto, ele
condena todo e qualquer gênero de divórcio, o qual era uma ocorrência
diária entre os pagãos, e, no que dizia respeito aos judeus, não era punido
pela Lei Mosaica. Diz ele: “Que o esposo não mande embora sua esposa, e
que a esposa não se separe de seu esposo.” Por quê? Porque se acham
ligados simultaneamente por um vínculo indissolúvel [individuo nexo
coniuncti]. Não obstante, é surpreendente que ele não faça uma exceção ao
menos no caso de adultério, pois é provável que quisesse condensar um
pouco a doutrina de Cristo. Estou plenamente certo, porém, de que ele não
fez menção deste ponto em razão de referir-se brevemente a essas questões,
e preferiu remeter os coríntios de volta ao que o Senhor permite ou proíbe,
em vez de passar revista em tudo, ponto por ponto. Pois quando os mestres
planejam tratar de um assunto sucintamente, eles ensinam de uma forma
geral, e as exceções são tratadas de forma detalhada, bem como de forma
mais inclusiva e mesmo com uma abordagem mais precisa.
Ao interpor, porém, “não eu, mas o Senhor”, notifica que, por meio dessa
correção, o que ele ensina aqui é extraído da Lei de Deus. Sem dúvida, ele
recebeu também os demais elementos que estava ensinando através da
revelação do Espírito, porém declara que Deus é a fonte de tudo isso, diante
do fato de que tudo tinha sua origem na Lei de Deus. Se o leitor desejar ter
uma passagem específica, não a achará em parte alguma com tantas
palavras. Todavia, visto que Moisés declarou no início que a união de
esposo e esposa é algo extremamente santo, e que em razão disso um
homem deve deixar seu pai e sua mãe [Gn 2.24], daqui podemos deduzir
facilmente que ela [a união] não pode ser pervertida [inviolabilis]. Porque
um filho está naturalmente ligado a seu pai e a sua mãe, e não há como
livrar-se desse jugo. Visto que o laço conjugal é preferível àquele vínculo,
muito menos deve ser ele dissolvido.
11. Mas se ela separar -se. Não se deve considerar essa afirmação como
uma referência aos que eram separados por adultério. Isso é evidente à luz
da punição que era aplicada naqueles dias. Porque, mesmo sob a lei romana,
ele era uma ofensa capital, e do mesmo modo sob a lei comum das nações
[ins gentium]. Contudo, visto que os esposos amiúde se divorciavam de
suas esposas, fosse devido a que suas atitudes não se ajustavam, ou porque
sua aparência pessoal não lhes agradava, ou devido a qualquer outra forma
de ofensa;33 e visto que as esposas às vezes deixavam seus esposos
motivadas por crueldade ou, não seria demais, tratamento grosseiro e
inconsiderado, Paulo nega que o matrimônio seja anulado pelo divórcio ou
diferenças desse gênero. Porquanto ele é um pacto sagrado feito no nome de
Deus, o qual não fica de pé nem cai segundo o arbítrio humano, de modo a
ser invalidado de conformidade com nosso bel-prazer. O ponto é este: visto
que outros contratos dependem simplesmente do consentimento humano,
eles podem ser semelhantemente rescindidos mediante seu consentimento.
Mas, os que foram unidos em matrimônio e agora se arrependem do que
fizeram, então não são mais livres para quebrar o compromisso34 (segundo
o adágio) e percorrer seus próprios caminhos em busca de um novo
compromisso com outra pessoa. Porque, se os direitos naturais não podem
ser destruídos, muito menos este que, como já dissemos, tem precedência
sobre o principal laço da natureza.
Mas ao ordenar à esposa, que se acha separada de seu esposo, que
permaneça sozinha, ele não quer dizer que a separação é aceitável, nem
permite que a esposa viva separada de seu esposo. Mas se ela foi posta para
fora de casa, ou se foi rejeitada, então não deve concluir que mesmo em tais
circunstâncias se acha livre da autoridade do esposo; pois nenhum esposo
tem poderes para invalidar um casamento. Portanto, Paulo não está aqui
dando permissão às esposas de se separarem de seus esposos, segundo seu
próprio arbítrio, nem de viverem longe de seu lar comum, como se fossem
viúvas. Mas simplesmente declara que, mesmo aquelas que não são aceitas
de volta por seus esposos, permaneçam vinculadas a eles, de modo que não
podem unir-se a outros cônjuges.
O que fazer, pois, no caso de uma esposa lasciva ou incontinente? Não é
porventura desumano negar-lhe o antídoto do matrimônio, quando vivem
constantemente em abrasante desejo? A isso, minha resposta é que, quando
somos atormentados pelas fraquezas da carne, devemos buscar o antídoto.
Além do mais, é o Senhor mesmo quem deve refrear-nos e restringir-nos por
meio de seu Espírito, mesmo se as coisas não vão tão bem quanto
gostaríamos. Pois se uma esposa, por um longo tempo, cai em perene
enfermidade, nem por isso se justitica que o esposo busque outra esposa.
Semelhantemente, se após o casamento o esposo começa a sofrer de alguma
enfermidade, a esposa não pode, por esse motivo, fazer repentina transição
para outro estado. Em suma: visto que Deus designou o matrimônio lícito
como o antídoto para nossa incontinência, façamos dele uso, para que não
sejamos surpreendidos tentando-o, e venhamos a sofrer a penalidade de
nossa temeridade. Uma vez cumprido esse dever, tenhamos esperanças de
que ele nos seja de grande auxílio, se ao contrário as coisas não correrem de
acordo com nossas expectativas.
12. Mas, aos demais digo eu. Pela expressão os demais ele tem em mente
aqueles que constituem a exceção, de modo que a lei, comum a outros, não
lhes é aplicável. Pois um matrimônio incompatível está numa base diferente
quando as partes que o compõem não têm a mesma religião. Ele discute esta
questão em duas partes. A primeira é aquela em que a parte crente não deve
separar-se da parte descrente, e não deve recorrer ao divórcio, a menos que
ele ou ela se afaste [repudietur]. A segunda é esta: se a parte descrente
resolve afastar-se de seu cônjuge por causa de questão religiosa, então o
irmão ou irmã fica livre do compromisso conjugal em razão da rejeição do
cônjuge. No entanto, por que Paulo se faz a fonte dessas regras quando as
mesmas parecem conflitar-se em alguma medida com aquelas que ele mesmo
dera anteriormente como sendo do Senhor? Ele não pretendia que elas
fossem oriundas dele mesmo de tal maneira que o Espírito de Deus não
tivesse nada a ver com elas. Mas, já que não houve uma declaração direta e
explícita sobre este tema em parte alguma da Lei e dos Profetas, então ele
procurou evitar que os incrédulos viessem fazer falsas acusações contra ele
por assumir a responsabilidade pessoal pelo que estava para dizer. Todavia,
a fim de que sua afirmação não fosse levianamente descartada como sendo
produto do cérebro humano, subseqüentemente dirá que suas afirmações
não são meras fantasias subjetivas. Mas não há nada inconsistente com o
que foi escrito acima, ou, seja: visto que a sacralidade do voto conjugal
[sanctitas fidei coniugalis] depende de Deus, que mais necessita uma esposa
crente para permanecer com um esposo descrente, depois que ela foi
rejeitada por ele em decorrência de seu ódio a Deus?
14. Porque o esposo descrente é santificado pela esposa. Paulo
resolve uma dificuldade que poderia deixar os crentes preocupados. A
intimidade conjugal é singular, porque a esposa é a metade do homem e
ambos se tornam uma só carne; e o esposo é a cabeça da esposa e ela é a
companheira do esposo em todas as formas. Assim, aparentemente é
impossível a um homem crente viver com uma esposa descrente, ou vice-
versa, sem que haja contaminação numa relação tão íntima. Paulo, pois, aqui
declara que esse matrimônio não é em nada menos santo e legítimo, e que
não deve pairar qualquer temor de haver contaminação, como se a esposa
fosse poluir o esposo. Além disso, lembremo-nos de que ele aqui não está
falando de novos contraentes conjugais, e, sim, da manutenção daqueles
que já consumaram o contrato. Porque onde se indaga se um homem crente
se casaria com uma mulher descrente, ou se uma mulher crente se casaria
com um homem descrente, então este conselho se faz relevante: “Não vos
ponhais em jugo desigual com os incrédulos, porque não há harmonia entre
Cristo e Belial” [2Co 6.14, 15]. Mas o homem que já está casado não mais tem
a liberdade de escolha; por essa razão se torna distinto o conselho que ele
apresenta.
Embora haja quem interprete a santificação referida aqui em termos
diferentes, eu a considero como aplicável simplesmente ao matrimônio. Meu
ponto de vista é como segue: Em todos os aspectos, uma esposa crente
parece tornar-se impura no contato com o esposo descrente, de modo que a
parceria se torna ilícita. Todavia, isso é diferente, porque a piedade de um
faz o matrimônio mais santo do que a impiedade do outro em torná-lo
impuro. Conseqüentemente, um crente pode viver com um descrente com
sua consciência limpa, porque, no que diz respeito aos atos sexuais e às
relações ordinárias do dia-a-dia, o descrente é santificado, de modo que ele
ou ela não contamina o parceiro crente com sua impureza [pessoal].
Entrementes, esta santificação não é para o benefício pessoal do parceiro
descrente. Seu valor se limita ao fato de que o parceiro crente não é
contaminado pelo contato sexual com o parceiro descrente, e o próprio
matrimônio não é profanado.
No entanto, daqui surge uma dúvida. Se a fé de um esposo cristão, ou de
uma esposa cristã, santifica o matrimônio, segue-se que todos os
matrimônios entre os descrentes são impuros e se põem na mesma categoria
da fornicação. A isso respondo: para os descrentes nada é puro, visto que
conspurcam, através de sua impureza, até mesmo as mais excelentes e as
mais amáveis criações de Deus. Assim, é por esse mesmo prisma que eles
também conspurcam o matrimônio, visto que não reconhecem Deus como a
fonte do matrimônio, e por essa razão não possuem a mínima capacidade de
genuína santificação, e, com suas consciências culpadas, abusam do
matrimônio. Seria ingênuo concluir disso que o matrimônio, no caso deles,
está no mesmo nível da fornicação, visto que, não importa quão impuro seja
para eles, não obstante permanece puro em sua própria natureza, visto que
o mesmo foi ordenado por Deus. Ele cumpre as funções de preservar a
respeitabilidade na sociedade, e controla os desejos promíscuos. E assim, à
luz desses propósitos, ele é aprovado por Deus, como o são as demais
partes da ordem social [ordinis politici]. Portanto, deve-se fazer sempre uma
distinção entre a natureza de uma coisa e o uso abusivo dela.
Senão seus filhos seriam impuros. Este é um argumento com base no
efeito: “Se vosso matrimônio fosse impuro, então vossos filhos também
nasceriam impuros; no entanto, eles são santos, visto que vosso
matrimônio é também santo. Portanto, assim como a impiedade de um dos
pais não impede o filho de nascer santo, assim ela não impede o matrimônio
de ser inerentemente imaculado.” Alguns gramáticos explicam esta
passagem como uma referência à santidade civil [de sanctitate civili], ou,
seja, os filhos são considerados legítimos. Não obstante, precisamente a
mesma coisa pode-se dizer sobre os filhos dos descrentes. Daí esta
explicação cai por terra. Além do mais, é verdade que Paulo desejava aqui
mitigar as consciências atribuladas, de modo que ninguém concluísse que
ele estivesse restringindo a impureza, como já ficou expresso. Portanto, esta
passagem é mui notável e se acha fundamentada na mais profunda teologia.
Pois ela revela que os filhos dos crentes são separados dos demais por um
privilégio especial, de modo que são considerados santos na Igreja.
Entretanto, de que forma esta declaração se harmoniza com o que Paulo
ensina em Efésios 2.3 – que somos todos “por natureza filhos da ira” –, bem
como o clamor de Davi: “Eu nasci na iniqüidade” etc. [Sl 51.5]? A isso
respondo que há na semente de Adão uma propagação universal tanto do
pecado quanto da condenação. Daí, todos estão incluídos nessa maldição,
sejam eles nascidos dos crentes ou dos ímpios, pois não é na qualidade de
regenerados pelo Espírito que os crentes geram filhos segundo a carne.
Conseqüentemente, todos se acham na mesma condição natural, de modo
que são vassalos não só do pecado, mas também da morte eterna. Quanto
ao fato de o apóstolo aqui atribuir privilégio especial aos filhos dos crentes,
isso emana da bênção do concerto, por cuja intervenção a maldição da
natureza é destruída, e por isso os que por natureza eram impuros, agora
são consagrados a Deus em decorrência de sua graça. Assim Paulo argúi em
Romanos 11.16, dizendo que todos os descendentes de Abraão são santos,
visto que Deus consumou um concerto de vida com ele. “Se a raiz é santa,
então os ramos também o são”, diz ele. E Deus chama meus filhos a todos os
que descenderam de Israel. Agora que o muro divisório foi derrubado, o
mesmo concerto de salvação, o qual teve seu início na semente de Abraão,35
nos é comunicado. À luz do fato de que os filhos dos crentes são feitos
exemplos da comum condição da humanidade, para que sejam separados
para o Senhor, por que deveríamos subtrair deles o sinal [do concerto]? Se o
Senhor os admite em sua Igreja, através de sua Palavra, por que deveríamos
negar-lhes o sinal? Não obstante, precisamente como os filhos dos crentes
são santos, e como muitos deles, a despeito de tudo, se tornam
degenerados, o leitor encontrará o tema explicado nos capítulos 10 e 11 de
Romanos, onde trato deste assunto ao comentar estes capítulos.
15. Entretanto, se o descrente quer separar -se. Chegamos então à
segunda parte de sua discussão do problema do casamento misto. Neste
versículo, Paulo desobriga um esposo fiel que se prontifica a viver com a
esposa descrente, mas que é rejeitado por ela; e, semelhantemente,
desobriga uma esposa que é rejeitada por seu esposo, embora não haja falta
em sua conduta. Pois em tais circunstâncias o descrente ofende mais a Deus
do que mesmo a seu cônjuge. Aqui se nos depara uma razão especial, por
que o vínculo [vinculum] primário e principal não é meramente desfeito,
mas totalmente interrompido. Embora haja quem pense que estamos hoje
em quase similar relação com os papistas,36 devemos, contudo, considerar
cuidadosamente qual a diferença entre as duas situações, para que não
lancemos precipitadamente tudo abaixo.
À paz. Os intérpretes também diferem aqui. Pois alguns o interpretam
assim: “Somos chamados à paz, por isso evitemos tudo o que venha
provocar disputas.” Eu o vejo de forma mais simples: “Quanto estiver em
nosso poder, cultivemos a paz com todos, porque foi para isso que fomos
chamados [por Deus]. Não devemos, pois, separar-nos dos descrentes de
maneira arbitrária, a não ser que eles mesmos tomem a iniciativa e causem o
rompimento. Deus, portanto, nos tem chamado à paz, a fim de que
possamos cultivar relações pacíficas com todos, tratando bem a cada um
individualmente.” Assim, isso pertence à primeira parte de sua discussão do
problema, ou, seja: os crentes devem permanecer unidos aos descrentes,
caso estes concordem etc.; pois o anseio pelo divórcio é inconsistente com
nossa profissão de fé.
16. Porque, como sabes, ó mulher? Os que acreditam que esta alocução
confirma a segunda parte, explicam-na desta forma: “A vacilação da
esperança não deve deter-vos; porque, como sabeis etc.” Segundo minha
opinião, porém, o benefício a ser alcançado inspira esta palavra de
encorajamento, porque é uma grande e maravilhosa bênção poder a esposa
conquistar seu esposo. De fato, os descrentes não se acham numa condição
tão extremada que não possam ser movidos a crer. Certamente que estão
mortos; Deus, porém, pode ressuscitá-los dentre os mortos. Portanto,
quando a esposa crente nutre alguma esperança de ser eficiente, e não pode
falar mais do que deve, senão que por meio de sua conduta afetiva de vida
pode reconduzir seu esposo ao caminho,37 então ela deve tentar todos os
meios antes de deixá-lo. Porque, visto que paira dúvida sobre a salvação de
uma pessoa, devemos estar preparados e antes esperar o melhor.
Sua afirmação, porém, de que “o esposo pode ser salvo através de sua
esposa”, na verdade não é estritamente correta, visto que Paulo induz o
homem a fazer somente o que Deus pode fazer. Todavia, não há nada
incongruente nisso. Porque, visto que Deus age visando a um fim
proveitoso através do uso de seus instrumentos, ele lhes comunica seu
poder em alguma medida, ou, pelo menos, o associa de tal forma ao serviço
deles, que diz: o que eu faço é como se eles fizessem. E assim ele às vezes
atribui ao ser humano a honra que é devida exclusivamente a ele [Deus].
Lembremo-nos, contudo, que não somos capazes de fazer coisa alguma por
nós mesmos, mas só até ao ponto em que formos dirigidos por ele, como
seus instrumentos.
17. E assim cada um ande de acordo com o que Deus lhe dispensou
etc. Isto é o que consta o texto. Entretanto, tenho usado o nominativo38
(cada um) para que o sentido flua mais naturalmente. O significado é o
seguinte: “A única solução é que cada um leve uma vida em consonância
com a graça que lhe foi dada e com a vocação [divina]. Que cada um, pois,
se esforce nesta direção e procure com todo seu empenho servir a seu
próximo, especialmente quando ele deve ser levado a agir assim em
decorrência da função específica para a qual foi chamado.” Paulo menciona
duas coisas: “a vocação” e “a medida da graça”, e ele nos concita a
prestarmos atenção nelas quando ponderarmos sobre este assunto. Deveria
ser-nos um grande estímulo, impelindo-nos ao serviço, o fato de Deus nos
considerar dignos de sermos designados servos de sua graça para a
salvação de nossos irmãos; em contrapartida, nossa vocação deve nos
manter, por assim dizer, sob o jugo de Deus, mesmo quando alguém se
encontre em circunstâncias em extremo desagradáveis.
E isto é o que ordeno em todas as igrejas. Minha opinião é que Paulo
acrescentou isto a fim de refutar as más interpretações de alguns que
alegavam atribuir ele a si próprio mais autoridade sobre os coríntios do que
ele tinham coragem de fazer sobre outros. Todavia, ele poderia ter também
outros propósitos em mente, a saber, que este ensino podia ter mais peso
quando os coríntios entendessem que o mesmo já fora disseminado por
todas as igrejas. Porquanto abraçamos mais prontamente o que cremos ter
em comum com todos os santos. Entretanto, os coríntios devem ter ficado
aborrecidos por sentirem sua rédea segurada com mais vigor do que a dos
outros.

18. Foi alguém chamado, estando circuncidado? que permaneça circuncidado. Foi
alguém chamado, sendo incircunciso? que não se faça circuncidar.
19. A circuncisão não é nada, e a incircuncisão nada é; mas, sim, a observância dos
mandamentos de Deus.
20. Cada um permaneça na mesma vocação em que foi chamado.
21. Foste chamado sendo servo? não te preocupes; mas se ainda podes ser livre,
aproveita a ocasião.
22. Porque, o que foi chamado no Senhor, sendo servo, é livre no Senhor; e, da mesma
maneira, aquele que foi chamado, sendo livre, é servo de Cristo.
23. Fostes comprados por preço; não sejais servos dos homens.
24. Irmãos, que cada um de vós permaneça diante de Deus no estado em que foi
chamado.

18. Circumcisus aliquis vocatus est? ne arcessat præputium: in præputio aliquis vocatus
est? ne circumcidatur.
19. Circumcisio nihil est, et præputium nihil est, sed observatio mandatorum Dei.
20. Unusquisque in qua vocatione fuit vocatus, maneat.
21. Servus vocatus es? ne sit tibi curæ: at si etiam possis liber fieri, magis utere.
22. Etenim qui in Domino vocatus est servus, libertus Domini est: similiter et qui liber
vocatus est, servus est Christi.
23. Pretio empti estis: nolite fieri servi hominum.
24. Unusquisque in eo, in quo vocatus est, fratres, maneat apud Deum.

18. Foi alguém chamado, estando circuncidado? Visto que fizera


referência à vocação, Paulo aproveita a oportunidade, como faz com
freqüência, para uma curta digressão, partindo de um aspecto particular ou
específico, para uma exortação geral acerca da vocação. Ao mesmo tempo
confirma, fazendo uso de diferentes exemplos, o que dissera acerca do
matrimônio. Sua intenção é a seguinte: tendo uma vez recebido vosso
chamamento pelo exercício da vontade de Deus, não deveis fugir dela
temerariamente por causa de circunstâncias externas. Seu ponto de partida é
a circuncisão, pois ela se constituiu num tema de muita disputa entre
muitos de seu tempo. Contudo ele diz que ela não faz diferença alguma para
Deus, quer para o judeu, quer para o gentio; e então ele exorta a cada um a
viver contente com sua própria sorte. Devemos sempre lembrar que ele está
simplesmente tratando dos hábitos legítimos da vida, os quais Deus
instituiu e controla.
19. A circuncisão é nada. Afora o fato de que esta comparação era
adequada para o tema em disputa, Paulo parece tê-lo usado, contudo,
propositadamente, com o fim de criticar, de passagem, a escrupulosidade
[superstitionem] dos judeus e a arrogância que demonstravam em relação a
ela [a circuncisão]. Porque, já que os judeus se orgulhavam tanto da
circuncisão, era possível que muitos deles se sentissem preocupados com o
fato de que eles mesmos não eram circuncidados, imaginando que este fato
os pusesse em condição de inferioridade. Paulo, pois, coloca ambas as
condições no mesmo nível, para que a aversão por uma não conduzisse a
um desejo irracional pela outra. Mas o que ele expressa aqui deve ser
entendido como uma referência ao tempo em que a circuncisão já havia sido
abolida; pois se o concerto e o mandamento de Deus estivessem em sua
mente, sem dúvida ele teria dado maior valor à circuncisão. É verdade que
em Romanos 2.27-29 ele deprecia a circuncisão segundo a letra da lei, e
assevera que ela não significa nada aos olhos de Deus. Mas, neste ponto,
onde ele simplesmente põe a circuncisão e a incircuncisão frente a frente, e
então põe ambas no mesmo nível, é plenamente evidente que ele fala dela
como uma questão de indiferença, e de nenhuma relevância. Pois sua
anulação significa que o mistério [mysterium] que fora antecipadamente
comunicado sob ela agora não mais lhe pertence; ainda mais, significa que
ela não é mais um sinal, e, sim, algo sem qualquer utilidade. Pois, com base
nesse princípio, o batismo assumiu o lugar do símbolo legal, de modo que é
suficiente que sejamos circuncidados pelo Espírito de Cristo, enquanto
nosso velho homem é sepultado com Cristo.
Mas, sim, a observância dos mandamentos. Visto que este foi um dos
mandamentos enquanto a Igreja se via ainda atrelada às cerimônias legais,
percebemos ser uma questão axiomática o fato de a circuncisão ser abolida
com o advento de Cristo, de modo que, enquanto aos ignorantes e fracos se
permitia fazer uso dela, todavia isso não lhes trouxe benefício algum. Pois
aqui Paulo fala dela como algo insignificante. É como se quisesse dizer:
“Visto que essas são coisas meramente externas, não gastemos nosso tempo
com elas; mas, antes, tenhamos nossa atenção posta na piedade e nos
deveres requeridos por Deus, os quais são as únicas coisas valiosas a seus
olhos.”
No entanto, é uma infantilidade os papistas citarem este versículo com o
intuito de demolir a doutrina da justificação pela fé; porquanto aqui Paulo
não está discutindo a fonte da justiça, ou como obtê-la. Tudo o que lhe
interessa agora é que os crentes dirijam seus esforços na direção certa. É
como se dissesse: “Não gasteis vossas energias em coisas fúteis; ao
contrário, que vos ocupeis com os deveres que agradam a Deus.”
20. Cada um permaneça na vocação. Esta é a fonte da qual outras
coisas se derivam, a saber: cada um deve viver contente com sua vocação, e
persistir nela, e não viver ansioso nem recorrer a algo mais. Vocação nas
Escrituras é uma forma legítima de vida, pois se acha relacionada com o
Deus que realmente nos chama39 – para que ninguém use mal esta
afirmação40 com o fim de justificar os hábitos da vida que são
evidentemente profanos e pecaminosos.
Aqui, porém, alguém poderá perguntar se Paulo desejava impor alguma
obrigação41 sobre o povo, pois o que ele diz parece sugerir que cada um se
acha atado a sua vocação, e não pode descartá-la [por outra]. Ora, seria
pedir demais que a um alfaiate42 se permitisse aprender outro ofício, ou a
um mercador mudar para a agricultura. A isso respondo que essa não foi a
intenção do apóstolo, pois ele apenas deseja corrigir a irrefletida avidez que
impele alguns a mudar sua condição sem qualquer razão plausível, quer
sejam impelidos por alguma superstição ou por algum outro motivo. Além
do mais, ele desperta a cada um também para esta regra – que tenham em
mente o que se adequa a sua vocação. Portanto, ele não estabelece que cada
um deva manter determinado hábito de vida, uma vez o tenha adotado; mas,
por outro lado, condena o desassossego [de espírito]43 que impede os
indivíduos de permanecerem satisfeitos como estão, e aconselha: “Que cada
um se aferre a sua ocupação, como expressa o antigo provérbio.”
21. Foste chamado na qualidade de servo? Vejamos aqui que Paulo
almeja44 acalmar as consciências dos coríntios, pois insiste que os escravos
sejam otimistas, e não derrotistas, imaginando que a escravidão os
impediria de servir a Deus. Portanto, ele diz: “não vos preocupeis”; em
outros termos: “não vos deixeis dominar pela ansiedade sobre como
quebrareis vosso jugo, como se ele não fosse uma condição adequada para
se ser cristão; ao contrário disso, mantende vossa mente em repouso.” E
daqui inferimos não só que há, pela providência de Deus, posições e classes
distintas na sociedade, mas também que sua Palavra nos ensina a não
ignorá-las.
Mas se ainda podeis ser livres. Em minha opinião, a palavra ainda
simplesmente tem esta função: “Se em vez de seres servo, ainda podes
tornar-te livre, isso ser-te-ia mais conveniente.” Mas é duvidoso se Paulo
ainda está falando a servos, ou se agora se volta para os que são livres. No
último caso, tornar-se (γενέσθαι) teria sido simplesmente usado aqui pelo
verbo ser. Um e outro significados se ajustam muito bem, e ambos se
convergem para a mesma coisa. Paulo pretende mostrar não só que a
liberdade é boa, mas também que oferece mais oportunidade do que a
servidão. Se ele está se dirigindo a servos, então o sentido será: “Quando te
digo que serás livre de ansiedade, não te privo de desfrutares a liberdade, se
ela se puser em teu caminho.” Se ele está falando aos que são livres, será à
guisa de concessão, em palavras mais ou menos assim: “Meu conselho aos
servos é que sejam otimistas; embora ser livre seja melhor e mais
desejável,45 uma pessoa deve poder escolher entre ambas as condições.”
22. Porque, o que foi chamado no Senhor, sendo servo. Ser chamado
no Senhor, na condição de servo, significa ser escolhido dentre a classe
escrava, e tornar-se um participante da graça de Cristo. Ora, esta afirmação
tem sido usada para injetar ânimo nos servos e, ao mesmo tempo, refrear o
orgulho dos livres de nascença. Visto que os escravos acham sua condição
humilhante, porquanto aos olhos do mundo são indignos e desprezíveis, é-
lhes algo precioso que a amargura de sua servidão seja aliviada por algum
conforto. Aqueles que são livres, por outro lado, precisam ser mantidos sob
controle, para que não pensem de si mesmos de forma por demais altaneira
e se expandam em seu orgulho em razão de usufruírem de uma posição mais
honrosa. O apóstolo faz ambas as coisas. Porque, visto que a liberdade do
espírito é mais preferível que a liberdade do corpo, ele sugere que os servos
sejam capazes de elevar-se da amargura decorrente de sua situação, se ao
menos puderem refletir sobre o inestimável dom que foi derramado sobre
eles. Paulo ainda diz que os que desfrutam de liberdade não devem
vangloriar-se, uma vez que se acham em pé de igualdade com os servos
naquilo que mais importa. Naturalmente que não devemos concluir desse
fato que os homens livres devam assumir uma posição inferior à de um
servo, o que poria a ordem social [politicum ordinem] de ponta cabeça. O
apóstolo estava consciente de que ambas eram necessárias. Os que
desfrutavam de liberdade tinham de ser refreados, como já disse, para não
perderem o controle de si próprios e passarem a insultar os servos. Aliás,
algum ânimo tinha de ser injetado nos servos para que não se deixassem
dominar pelo desânimo. Ambas estas coisas têm muita importância na
estabilidade da ordem social, ao ensinar ele que a desvantagem física é
compensada pelo benefício espiritual.
23. Fostes comprados por preço. Encontramos estas palavras no
capítulo anterior [1Co 6.20], porém com um propósito distinto. Ali
apresentei minha explicação do termo preço. Aqui neste versículo seu
objetivo é certamente que os servos não têm que viver ansiosos com sua
situação, mas deseja que tomem cuidado para não se entregarem aos ímpios
ou viciosos desejos de seus senhores. “Pois somos consagrados ao Senhor,
visto que ele nos redimiu; portanto, não sejamos impuros com o fim de
agradar aos homens, e é precisamente o que fazemos quando nos
submetemos às coisas nocivas que eles impõem.” Esta advertência era
muitíssimo necessária naquele tempo, quando os servos eram forçados, por
meio de ameaças e açoites, e até mesmo pelo medo da morte, a submeter-se
a todo gênero de exigências, sem qualquer poder de escolha ou exceção, de
modo que os homens consideravam a procura de prostitutas, e outras
práticas deprimentes da mesma espécie, como sendo deveres de escravos,
no mesmo nível do trabalho honesto. Portanto, Paulo é justificado em fazer
esta acepção, ou, seja, que não obedecessem nem se entregassem a práticas
indecentes e ímpias. Gostaria que todos tivessem uma ampla e completa
noção disto em sua mente, e assim tantos não se prostituiriam para
satisfazer às inclinações dos homens, como se estivessem à venda. Mas,
quanto a nós, lembremo-nos de que pertencemos ao Senhor, que nos
redimiu.
24. Permaneça diante de Deus. Tenho proposto que nesta passagem os
homens aqui não são obrigados por uma necessidade perpétua, de forma
que nunca lhes é permitido mudar sua condição, ainda que naquele tempo
as chances fossem mínimas para se conseguir isso. Paulo está apenas
procurando refrear esses impulsos, desencontrados pela razão que empurra
muitos para lá e para cá, de modo a se sentirem confusos por seu constante
desassossego. Paulo, pois, diz que para Deus não faz diferença quais os
meios de sobrevivência de uma pessoa neste mundo, uma vez que essa
diversidade não impede a concordância na prática da piedade.

25. Ora, quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, meu veredito,
como alguém que obteve do Senhor a misericórdia para ser fiel.
26. Suponho, pois, que isso é bom por causa do presente sofrimento, a saber, que seria
bom para o homem permanecer como está.
27. Estás ligado a uma esposa? não procures separação. Estás livre de esposa? não
busques uma esposa.
28. Mas, se te casares, não estarás pecando; e se uma virgem casar-se, não estará
pecando. Todavia, os mesmos sofrerão tribulação na carne; e eu gostaria de poupar-
vos.

25. De virginibus autem præceptum Domini non habeo: sed consilium do, tanquam
misericordiam consequutus a Domino, ut sim fidelis.
26. Arbitror igitur hoc bonum esse propter instantem necessitatem, quod bonum sit
homini sic esse.
27. Alligatus es uxori? ne quæras solutionem. Solutus es ab uxore? ne quæras uxorem.
28. Quodsi etiam duxeris uxorem, non peccasti: et si nupserit virgo, non peccavit:
attamen afflictionem in carne habebunt eiusmodi. Ego autem vobis parco.

25. Quanto às virgens. Paulo agora volta à discussão sobre o


matrimônio, assunto que estivera discutindo na primeira parte do capítulo.
Ora, ele já fizera menção do tema que está para introduzir, mas de forma
abreviada e não muito explícita. Portanto, ele propõe apresentar uma
explicação mais nítida do que pensa sobre a virgindade. Mas, visto que este
tema se acha cercado de malentendido e dificuldades, ele sempre se
expressa em termos cordiais, como veremos. Ele aqui considera o termo
virgens no sentido de o próprio estado de virgindade. Ele diz que “não tem
mandamento do Senhor” sobre o assunto, visto que em parte alguma das
Escrituras Deus diz exatamente quem deve permanecer perenemente
solteiro. Mas, em contrapartida, visto que a Escritura diz que homem e
mulher foram criados concomitantemente [Gn 2.21], parece tratar todos, no
tocante ao matrimônio, em termos de igualdade e sem qualquer exceção.46
Pelo menos o celibato nunca foi estabelecido nem ordenado a alguém.
Ele diz que ministra um conselho, não como se houvesse nele alguma
dúvida, com pouca ou nenhuma estabilidade, mas como sendo certo e
merecedor de ser mantido sem qualquer controvérsia. E a palavra que usa,
γνώμη, não só significa conselho, mas também veredito decisivo.47 Além do
mais, os papistas deduzem erroneamente disto que é permitido ir além dos
limites da Palavra de Deus. Pois se alguém observar mais de perto verá que
Paulo não introduz nada aqui que Cristo não tenha incluído em suas
palavras, em Mateus 5.32 e 19.5-12. Paulo, porém, antecipando uma objeção,
reconhece que não tem um preceito expresso na lei, ressaltando quem deve
ou quem não deve casar-se.
Como alguém que obteve a misericórdia do Senhor para ser fiel. Ele
reivindica autoridade para seu veredito, no caso de alguém concluir que
poderia rejeitá-la se quisesse. Pois ele declara que não está falando como
mero homem, mas como fiel mestre da Igreja e apóstolo de Cristo. Segundo
seu costume, ele se declara em dívida para com a misericórdia de Deus,48
porquanto esta não é uma honra ordinária, senão que excede a todos os
méritos humanos. Daqui se faz evidente que, seja o que for que tenha sido
introduzido na Igreja pela autoridade humana,49 não tem nada em comum
com este conselho de Paulo. Além do mais, fiel aqui significa alguém que é
leal à verdade, ou, seja, não apenas que cumpre piedosamente os deveres a
ele impostos, mas também que se acha equipado com conhecimento para
ensinar com pureza e fidelidade. Pois não basta que um mestre seja
consciencioso, se ele também não for prudente e familiarizado com a
verdade.
26. Suponho, pois, que isto é bom. Embora eu traduza esta passagem de
Paulo de forma diferenciada de Erasmo ou da Vulgata, não obstante o
significado que dou é o mesmo deles. Eles dividem as palavras de Paulo de
tal forma que a mesma coisa se repete duas vezes. Em contrapartida, formo
uma única proposição, e não destituído de autoridade, pois estou seguindo
manuscritos antigos e confiáveis que trazem uma única proposição, com a
divisão feita unicamente por uma vírgula. Assim, o significado é o seguinte:
“Em via das ‘dificuldades’ [propter necessitatem] que sempre esmagam os
santos nesta vida, acredito que a melhor solução é que todos usufruam da
liberdade e vantagens do celibato, enquanto isso lhes for vantajoso.”
Entretanto, alguns consideram dificuldades [necessitatem] como um conceito
aplicável especificamente aos próprios dias e geração do apóstolo, quando
os crentes se vissem inevitavelmente envolvidos num grande volume de
necessidades; mas, parece-me que em vez disso ele está se referindo às
coisas preocupantes nas quais os crentes estão constantemente se
envolvendo nesta presente vida. Portanto, vejo-a como se estendendo a
todas as gerações, e o tomo neste sentido: no mundo, os santos são
freqüentemente empurradas de um lado para outro e expostos a muitos e
diferentes tipos de tormentos,50 a tal ponto que sua condição parece ser
ainda mais desfavorável no matrimônio. A frase “permanecer como está” [sic
esse] significa “permanecer solteiro” ou “abster-se do matrimônio”.
27. Estás ligado a uma esposa? Tendo declarado qual seria mais
vantajoso, ele acrescenta que não devemos deixar-nos influenciar
demasiadamente pelas vantagens do celibato, ao ponto que os que se acham
unidos pelos laços conjugais queiram se ver livres deles. Portanto, isso
modifica a sentença anterior, de modo que alguém que se deixasse
impressionar pela recomendação de Paulo, não daria ao celibato tanto valor
em detrimento do matrimônio, sem atentar bem para sua própria
necessidade e vocação. Além disso, com estas palavras ele não está
meramente proibindo o rompimento dos laços conjugais, mas também
procura reprimir os desentendimentos que geralmente rastejam no âmbito
conjugal, de modo que alguém possa continuar vivendo com sua esposa
espontânea e alegremente.
Estás livre de esposa? Esta segunda sentença deve ser tomada com certa
reserva, como se manifesta em todo o contexto. Daí, ele não concede a
todos a escolha do celibato perpétuo, mas somente àqueles a quem é ele
concedido. Portanto, que ninguém que não se vê constrangido por alguma
necessidade comupulsiva, se precipite prendendo-se com cadeias; pois a
liberdade não deve ser lançada fora levianamente.51
28. Mas, se te casares. Visto que havia o risco de alguém tomar a última
afirmação no sentido em que o mesmo estava tentando a Deus, caso se
dispusesse a unir-se a uma esposa, sábia e premeditadamente (pois isso
significaria renunciar sua liberdade), Paulo remove essa dúvida; pois ele
permite às viúvas [viduis] a liberdade de casar-se, e afirma que aqueles que
se casam não estão pecando. A palavra se parece enfática aqui, pois realça
que, embora nenhuma necessidade importuna seja imperativa, aqueles que
são solteiros não são barrados de contrair os laços conjugais, caso o
queiram.
E se uma virgem casar -se. Seja esta frase um acréscimo ao que já
dissera, ou simplesmente um exemplo, podemos dizer prontamente que não
há a menor sombra de dúvida de que Paulo esteja querendo estender a
todos a liberdade para o ato conjugal. Os que pensam ser ela uma ampliação
são levados a pensar assim porque ela parece aproximar-se mais de uma
ofensa, ou é mais passível à repreensão, ou, pelo menos, é mais uma ocasião
de vergonha soltar a cintura das virgens (como os antigos costumavam
dizer), do que contrair segundas núpcias após a morte de um dos cônjuges.
O argumento, portanto, seria: “Se é lícito para uma virgem casar-se, uma
viúva está em situação muito melhor.” Pessoalmente me sinto mais
inclinado a crer que ele as colocou em pé de igualdade; por exemplo:
“Permite-se a uma virgem casar-se, e da mesma forma a uma viúva.” Porque,
na antiga sociedade, algum desditoso estigma estava associado à segunda
núpcia, em razão do fato de que também costumavam conceder às matronas
um diadema de castidade,52 àquelas que vivessem felizes com uma só
núpcia durante sua vida; e tal honra tinha o efeito de pôr em situação
desfavorável aos que tivessem mais de uma experiência conjugal. Além do
mais, existe um adágio de Valério53 bem notório, que diz: “É um presságio de
legítimo excesso54 [intemperantia] quando explode um forte desejo por
segundas núpcias.” Conseqüentemente, o apóstolo não faz nenhuma
diferença entre virgens e viúvas no que diz respeito à liberdade de contrair
núpcias.
Todavia, os mesmos sofrerão tribulação na carne. Amiúde Paulo
reitera a razão por que ele tende a favorecer o celibato em suas exortações,
de modo a ficar evidente que prefere um estado ao outro, não por uma razão
pessoal, mas pela que ora ele lutava. Ele diz que muitos problemas são
inseparáveis da vida conjugal, e por isso desejava de todas as formas evitar
problemas no matrimônio. Quando diz que sofrerão “tribulações
[tribulationem] da carne”, ou “na carne”, sua intenção é dizer que as
responsabilidades e dificuldades, nas quais os cônjuges estão envolvidos,
surgem dos negócios do mundo. Portanto, carne aqui significa o homem em
suas relações com outros [homo externus]. Poupar significa “ter
consideração por eles”, ou desejar que pairem acima dos problemas que
estão associados ao matrimônio. É como se dissesse: “Desejo dar a devida
consideração a vossas fraquezas, e não gostaria que vossas vidas sejam
arruinadas pelos problemas. O matrimônio, porém, traz consigo muitos
problemas. A razão por que gostaria que não ambicionásseis o matrimônio é
para que sejais intocáveis por todos seus males.” Contudo não devemos
concluir desse fato que Paulo esteja encarando o matrimônio como um mal
necessário; porque as tribulações de que fala não nascem tanto do
matrimônio em si, mas de sua corrupção; porquanto tais sofrimentos são
frutos do pecado original.

29. Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; doravante, os que têm
esposas sejam como se não as tivessem;
30. e os que choram, como se não chorassem; e os que se alegram, como se não se
alegrassem; e os que compram, como se nada possuíssem;
31. e os que usam deste mundo, como se dele não abusassem, porque a aparência
deste mundo possa.
32. Mas gostaria que fôsseis livres de preocupações. Aquele que não é casado cuida das
coisas do Senhor, em como agradar ao Senhor;
33. mas aquele que é casado cuida das coisas do mundo, em como agradar sua esposa.
34. E há diferença também entre a mulher casada e a virgem. Aquela que é solteira cuida
das coisas do Senhor, em como ser santa, tanto no corpo como no espírito; aquela,
porém, que é casada cuida das coisas do mundo, em como agradar seu esposo.
35. E isto digo em vosso próprio proveito; não que eu pretenda lançar-vos em
dificuldade, mas visando à decência, e para que sirvais ao Senhor sem distração
alguma.

29. Hoc autem dico, fratres, quia 55 tempus contractum est: reliquum est, ut qui uxores
habent, sint tanquam non habentes:
30. Et qui flent, tanquam non flentes: et qui gaudent, tanquam non gaudentes: et qui
emunt, tanquam non possidentes:
31. Et qui utuntur hoc mundo, tanquam non utentes: præterit enim figura mundi hujus.
32. Velim autem vos absque solicitudine esse. Qui cœlebs est, curat ea quæ sunt Domini,
quomodo placiturus sit Domino:
33. Coniugatus curat ea quæ sunt mundi, qualiter uxori placiturus sit, et divisus est.
34. Et mulier cælebs, et virgo curat ea quæ sunt Domini, ut sancta sit corpore et spiritu: at
quæ maritum habet, curat ea quæ sunt mundi, quomodo placitura sit marito.
35. Hoc autem ad utilitatem vestram dico, non ut laqueum vobis iniiciam, sed ad
honestatem ac decorum, ut Domino adhaereatis absque ulla distractione.

29. Porque o tempo se abrevia. Uma vez mais Paulo discute o tema
matrimônio como algo sagrado, a fim de restringir a paixão lasciva daqueles
que, quando são casados, não pensam em nada mais senão no prazer físico,
não dando a Deus satisfação alguma. Portanto, Paulo insta com os crentes a
não soltarem as rédeas da paixão para que o matrimônio não os precipitasse
nas veredas do mundanismo. O matrimônio é o antídoto para a
incontinência. Isto é verdade, desde que sua utilização seja governada pela
temperança. Portanto, ele diz aos que são casados que vivam juntos de
maneira casta, no temor do Senhor. Tal coisa só pode ser alcançada pela
utilização do matrimônio da mesma forma como se utilizam das demais
coisas que se incluem na assistência da presente vida terrena, e elevem seus
corações em contemplação da vida celestial.
Ora, ele baseia seu argumento na brevidade da vida humana. Diz ele: “A
vida que vivemos aqui é breve e momentânea; por isso, não a
transformemos em obsessão. Portanto, os que têm esposa, sejam como se
não as tivessem. Todos têm, naturalmente, esta porção de sabedoria em seus
lábios; poucos a têm genuína e sinceramente esculpida em seus corações.
Em minha primeira tradução, segui um manuscrito existente em Paris, o
qual, como vim descobrir depois, não encontra qualquer apoio em muitos
outros que consultei. (Erasmo junta a frase τὸ λοιπόν ao que segue. Mas esta
redação é mais autêntica.) Eu, portanto, decidi acertadamente inserir porque
[quia] para fazer o significado mais claro, e isso concorda com a redação de
muitos dos antigos manuscritos. Diante do fato de que, quando fazemos
séria reflexão sobre algo, voltamos nossa atenção mais para o futuro do que
para o passado, Paulo nos adverte sobre a brevidade do tempo por vir.
Como se não as tivessem. Todas as coisas que contribuem para o
enriquecimento desta presente vida são santos dons de Deus, mas as
contaminamos com nosso mau uso delas. Se quisermos saber por que
razão, a resposta é porque estamos sempre entretendo as ilusões que
continuarão perenemente neste mundo. O resultado é que as mesmas coisas
que nos devem ser assistenciais em nossa peregrinação ao longo da vida, se
transformam em cadeias que nos escravizam. A fim de despertar-nos de
nosso torpor, o apóstolo corretamente nos convida a fazer uma
retrospectiva sobre a brevidade desta vida. Disto ele deduz que a maneira
pela qual devemos fazer uso de [uti] todas as coisas deste mundo é em
razão da consciência de que não as possuímos [utamur]. Pois aquele que
pensa de si próprio como sendo um estranho que atravessa este mundo,
usa as coisas pertencentes ao mesmo como se elas pertencessem a outro;
em outras palavras, as coisas que são em caráter de empréstimo por apenas
um dia. A questão é que a mente do cristão não deve entulhar-se de imagens
das coisas terrenas, ou encontrar satisfação nelas, porquanto devemos viver
a vida como se fôssemos deixar este mundo a qualquer momento.
Pelo termo chorar Paulo quer dizer quando as coisas vão mal; e pelo
termo regozijar, quando elas vão bem; pois é algo plenamente normal
descrever as causas por seus efeitos.56
Finalmente, aqui o apóstolo naturalmente não está aconselhando os
cristãos a livrar-se de seus pertences. Tudo o que ele pede é que o espírito
de posse não os absorva completamente.57
31. E os que usam deste mundo, como se dele não abusassem. O
particípio χρώμενοι (usando) é usado na primeira frase, enquanto o
composto καταχρώμενοι (abusando, usando mal) é usado na segunda. Mas a
preposição κατα, numa afirmação composta, geralmente é tomada em
sentido negativo, ou, pelo menos, denota intensidade.58 Paulo, pois, sugere
o uso das coisas de uma maneira moderada e disciplinada, de modo a não
nos atrapalharem ou a nos atrasarem em nossa jornada; ao contrário, que
sejamos aprressados rumo ao alvo.
Porque a aparência deste mundo passa. Paulo, com estas palavras,
apresenta uma descrição adequada da futilidade do mundo. Diz ele: “Não
existe nada estável e sólido;59 pois, como se diz, o mundo não passa de
fachada, de aparência visual. Mas as cortinas caem, as cenas são
interrompidas e o que estava diante dos olhos do auditório é imediatamente
arrebatado de sua vista. Não entendo por que Erasmo preferiu o termo
condição [habitus]. Como o entendo, ele está definitivamente obscurecendo
o ensino de Paulo; porquanto aparência [figura] se põe em tácito contraste
com substância [substantia].60
32. Mas eu gostaria que fôsseis livres de preocupações. Ele volta ao
mesmo parecer que já havia externado, mas que não fora ainda plenamente
explanado; e, segundo seu costume, ele começa recomendando o celibato, e
prossegue permitindo a liberdade individual de escolherem o que acreditam
ser-lhes adequado. Além disso, ele tem boas razões para reiterar a
recomendação do celibato, porque percebia que as responsabilidades
matrimoniais estão longe do discernimento. Se alguém pode livrar-se delas,
o tal não deve perder um benefício tão imenso. E é muitíssimo vantajoso
para os que estão pretendendo casar-se que sejam advertidos e
aconselhados acerca desses problemas, a fim de que, se os mesmos vierem
inesperadamente a seu encontro, não venha ele a sucumbir-se em
desespero. Vemos muitos enfrentando tal situação. Prometeram a si mesmos
o mais excelente mel, mas quando essa esperança não se concretiza na
prática, o mais leve infortúnio é bastante para sucumbi-los.61 Portanto,
procurem saber antecipadamente o que os espera, e assim estejam
preparados para enfrentar o previsto e o imprevisto. O significado, pois, é o
seguinte: “O matrimônio traz consigo muitos obstáculos, dos quais gostaria
que estivésseis livres, com toda isenção.”
Mas, visto que ele falou de tribulações, e agora faz menção de
preocupações ou ansiedades [v. 28], alguém com razão poderia perguntar se
há ou não algumas diferença entre ambas. Segundo meu ponto de vista, a
tribulação tem sua fonte ou causa em ocasiões ou circunstâncias ruins, tais
como a morte de um filho ou de um cônjuge; as disputas e pequenas
diferenças (como são chamadas pelos jurisconsultos)62 que resultam sendo
mui fastidiosas, tais como os malfeitos dos filhos; as dificuldades na
condução da família; e coisas afins. Ansiedades, penso eu, se relacionam
com circunstâncias prazenteiras, tais como as frivolidades de uma recepção
de núpcias, os momentos de diversões e outras coisas que a vida conjugal
tem de atender.63
Aquele que é solteiro cuida das coisas do Senhor. Daqui se faz
evidente que Paulo deseja que os cristãos se desvencilhem das ansiedades
para que tenham condições de devotar todos seus pensamentos e esforços
ao Senhor. Ele afirma que o celibato permite isso; e então deseja que todos
desfrutem dessa liberdade. Não obstante, ele não pretende que os solteiros
sejam sempre assim; pois sabemos de experiência própria que os casos dos
sacerdotes, dos monges e monjas apresentam algo bem diferente, pois não
conseguem ver nada mais que se relacione com Deus além de seu celibato.
Acrescente-se a isto também nosso conhecimento de tantos fornicadores
aversivos que usam o matrimônio para entregar-se às práticas
concupiscentes até ao fastio, e com o fim de manter seus vícios em segredo.
Onde o caso da paixão se faz presente, não pode haver nenhuma devoção a
Deus. Mas o que Paulo está realçando aqui é que o solteiro é livre, e nada se
antepõe no caminho de suas reflexões acerca das coisas de Deus. Os crentes
fazem uso desta liberdade; os demais não fazem outra coisa senão servir a
sua própria ruína.
33. Mas aquele que é casado se preocupa com as coisas do mundo.
“As coisas do mundo” devem ser entendidas como sendo “as coisas que
pertencem a esta presente vida”, pois aqui o termo mundo deve ser
considerado como que incluindo as circunstâncias desta vida terrena. Mas
corre-se o risco de alguém concluir daqui que todos os casados se acham
excluídos do reino de Deus,64 uma vez que estão envolvidos somente com
este mundo. A isso respondo: o apóstolo está expondo apenas uma parte de
seu pensamento. Ele poderia ter dito: “É como se eles estivessem olhando
para Deus com apenas um olho, mas, ao mesmo tempo, mantendo o outro
voltado para sua esposa. Além disso, a vida conjugal é como um fardo mui
pesado sobre os ombros do cristão, a toldar de tal forma a mente que não
consegue dar sequer um passo sem dificuldade em sua trajetória para
Deus.” Tenhamos, contudo, sempre em mente que tais males não são
inerentes ao próprio matrimônio, mas, sim, são oriundos do pecado
humano. Isso foi o que motivou as interpretações equivocados em que caiu
Jerônimo. Porquanto ele reúne todos estes fatores com o fim de
desprestigiar o matrimônio. Sendo assim, dever-se-ia condenar também a
agricultura, o comércio e outros meios de sobrevivência, visto que nenhuma
dessas áreas se vê livre de algum aspecto nocivo; e embora estejam tão
saturados pelas corrupções deste mundo, ninguém de bom senso os
descartaria com escárnio! Notemos bem, pois, que todos os males
existentes no matrimônio vêm de outra fonte. Pois nos dias atuais um
homem não estaria se afastando de Deus por viver com sua esposa; estaria
permanecendo num estado de pureza e não poluiria a sagrada instituição
divina; e a esposa estaria sendo sua auxiliadora em tudo o que é bom, como
de fato foi esse o propósito para o qual foi essa instituição criada [Gn 2.18].
Mas alguém dirá: “Se as ansiedades, que constituem uma falha e merecem
censura, estão conectadas à vida conjugal, como podem os casados invocar
a Deus e servi-lo em sã consciência? Minha resposta é que existem três
gêneros de ansiedade: (1) Há aquelas que são inerentemente nocivas e
pecaminosas, porque nascem da ausência de confiança. Cristo fala delas em
Mateus 6.25. (2) Há aquelas que são necessárias e não provocam o
desagrado de Deus, ou, seja: o chefe de família deve viver solicitamente para
sua esposa e filhos. E Deus não quer que sejamos cepos de madeira,
incapazes de raciocinar por nós mesmos. (3) O terceiro tipo é uma
combinação destes dois, ou, seja: quando nos vemos preocupados acerca
dessas coisas, as quais de fato despertam nossa solicitude, mas as levamos
longe demais em razão de nossa natural demência de querer avançar para
além dos limites de tudo. Portanto, tais ansiedades não são de forma alguma
nocivas em si mesmas, senão que são ruins em resultado de αταξια, ou, seja,
os excessos indevidos. O apóstolo não pretendia condenar meramente tais
vícios pelos quais contraímos culpa aos olhos de Deus; mas em termos
gerais deseja que nos livremos de todos os impedimentos, de modo que
estejamos totalmente livres para o serviço de Deus.
E está dividida. É surpreendente como tantos pontos de vista
divergentes tenham surgido concernentes a estas palavras. Pois a versão
grega comum não tem qualquer similaridade com a versão Vulgata, de modo
que a diferença não pode ser atribuída a algum equívoco ou inadvertência,
na forma em que um equívoco às vezes ocorre numa única carta ou numa
única palavra. Ora, as versões gregas geralmente a tomam literalmente; por
exemplo: “O homem casado tem sua mente posta nas coisas deste mundo,
em como agradar sua esposa. A mulher casada e a virgem estão divididas. A
que é solteira se preocupa com as coisas do Senhor” etc. E consideram
“estando divididas” no sentido de ‘diferindo’, como se quisesse dizer: “Há
uma grande diferença entre a casada e a virgem. Uma é livre para ocupar-se
exclusivamente das coisas de Deus, enquanto a outra está definitivamente
fora deste caminho e absorvida por questões variadas.” Visto, porém, que
esta interpretação não concorda muito com o sentido literal da palavra, não
me sinto de todo satisfeito com ela, ainda mais porque o significado da
outra redação é mais consonante e menos forçada (e também porque essa
redação se encontra em alguns manuscritos gregos). Portanto, nosso
raciocínio é o seguinte: um homem casado está dividido65 em seus
interesses, visto que se vê constrangido a dar uma parte de si a Deus e uma
parte a sua esposa, e sente não viver exclusiva e plenamente para Deus.
34. A solteira e a virgem. O que ele ensinou sobre os homens, agora
repete em relação às mulheres, ou, seja, que as virgens e as viúvas não estão
impedidas pelos afazeres deste mundo de dar sua sincera atenção e afetos a
Deus. Naturalmente que nem todos fazem isso, mas a oportunidade está aí,
contanto que tenham sua mente voltada para a mesma. A o dizer “que sejam
santas no corpo e no espírito”, Paulo deixa claro que o gênero de castidade
genuína e aceitável a Deus é aquela que leva a pessoa a ter a mente
imaculada para Deus. Gostaria que se desse mais atenção a este aspecto. No
que diz respeito ao corpo, vemos que tipo de devotamento ao Senhor
comumente há por parte das freiras, monges e toda a ralé de clérigos
papistas. Não há nada imaginável que possa ser mais repulsivo do que seu
celibato! Mas, para não falar agora da castidade do corpo, onde se
encontrará alguém entre os que são tidos em admiração em decorrência da
reputação de sua continência, que não viva inflamado com abomináveis
paixões obscenas? À luz desta expressão de Paulo, podemos concluir que a
castidade só é agradável a Deus se ela abrange a alma e o corpo. Gostaria
que todos os que estão sempre enaltecendo a castidade pudessem entender
que terão que tratar é com Deus pessoalmente; daí não teriam tanta
confiança em terçar armas conosco. Entretanto, nos dias atuais, aqueles que
falam com grandiloqüência acerca da continência são os mesmos que
pública e descaradamente se utilizam de prostitutas. Mas ainda que
vivessem a mais respeitável das vidas aos olhos humanos, tal coisa não
significaria absolutamente nada, se não mantiverem suas mentes puras e
intocáveis por impurezas de toda espécie.
35. Digo isto para vosso benefício. Prestemos atenção na moderação do
apóstolo. Ainda que estivesse bem consciente dos aborrecimentos,
problemas e dificuldades da vida conjugal e, por outro lado, das vantagens
do celibato, todavia não considera isso como algo pessoal para deitar tudo
abaixo. Ao contrário, tendo recomendado o celibato, e temendo que seus
leitores viessem a sentir-se impressionados ouvindo-o falar dele como algo
excelente, imediatamente declara-lhes o que os apóstolos disseram em
resposta a Cristo [Mt 19.10]: “Se essa é a condição do homem relativamente à
mulher, então não é bom que se case”, sem considerar se eram ou não
capazes de tal façanha, Paulo nos leva a entender claramente que, enquanto
realça o que é mais vantajoso, ele não pretende com isso obrigar a ninguém.
Aqui há duas coisa dignas de observação. A primeira é esta: com que
propósito o celibato deve ser almejado: não por sua própria causa; não
porque este estado fora posto num nível mais excelente; mas para vivermos
mais apegados a Deus, não tendo nada se interpondo entre nós e ele. Ora,
esta é a única coisa que mais deve preocupar um cristão ao longo de toda
sua vida. A segunda coisa é esta: que não se deve impor nenhuma restrição à
consciência do ser humano, com o funesto resultado que alguém venha a
esquivar-se do matrimônio; ao contrário disso, a liberdade de cada um deve
ser respeitada. Sabe-se muito bem quantos equívocos têm-se engendrado em
relação a estas duas questões. Certamente que, em relação ao segundo
princípio, aqueles que não hesitaram em criar uma lei para o celibato,
proibindo a todo o clero de contrair o matrimônio, eram muito mais
pretensiosos do que Paulo. O mesmo se aplica aos que fazem votos de
perpétua continência. Um número sem conta de pessoas tem sido arrastado
a eternas ruínas por essas cadeias. Ora, se o Espírito Santo falou pelos
lábios de Paulo, então os papistas não conseguirão redimir-se da acusação
de lutarem contra Deus [At 5.39] quando escravizam a consciência dos
homens, numa questão sobre a qual Deus quer que permaneçam livres.
Nesse caso, pode ser que ele66 tenha formulado um novo plano desde
então, pretendendo usar as mesmas cadeias que outrora havia reprovado.

36. Mas se alguém julga que trata indignamente sua filha virgem, se ela tiver passado a
flor da idade, e se a necessidade assim o requeira, que faça o que quiser; ele não peca;
que se casem.
37. Mas o que ele tem firme em seu coração, não tendo necessidade, mas tem poder
sobre sua própria vontade, e determinou isso em seu próprio coração, ou, seja,
conservar virgem sua própria filha, fará bem.
38. De sorte que, aquele que dá sua própria filha em casamento, faz bem; e aquele que
não a dá em casamento, faz melhor.

36. Si quis autem virgini suæ indecorum indicat, si excedat florem ætatis, et ita fieri
debet: quod voluerit faciat, non peccat: nubant.
37. Qui autem stat firmus in corde, necessitatem non habens, potestatem vero habens
supra sua voluntate, et hoc decrevit in corde suo, servare suam virginem, bene facit.
38. Itaque et qui nuptum collocat, bene facit; et qui non collocat, melius facit.

36. Mas se alguém julga que trata indignamente sua filha. Paulo agora
se volta para os pais que tinham filhos sob seu domínio. Pois tendo ouvido
os louvores entoados ao celibato, e tendo ouvido também acerca das
dificuldades que cercam o matrimônio, poderiam perguntar-se se era
humano permitir que suas filhas se envolvessem em tanta infelicidade, uma
vez que poderia parecer que eram os responsáveis pelo infortúnio delas.
Pois quanto mais profunda fosse sua afeição por suas filhas, mais ansiosos
deveriam viver por sua sorte quanto a qualquer coisa que lhes viesse
suceder.67 Paulo, pois, a fim de poupá-los dessas dificuldades, ensina que o
dever dos pais é cuidar dos interesses de suas filhas, precisamente como
alguém que se sente responsável por si próprio se vê obrigado a correr após
seus próprios interesses.68 Ele, porém, conserva a distinção que vem
fazendo durante todo o tempo. De um lado, ele recomenda o celibato; do
outro, porém, permite que o matrimônio seja uma matéria de livre escolha.
Além do mais, ele considera o matrimônio como um antídoto contra a
incontinência, e é um erro negá-lo a alguém que dele carece. Na primeira
parte desta seção, Paulo fala em dar as filhas em casamento. Nela ele
assevera que os pais que chegam à conclusão de que a vida solteira não é
adequada a suas filhas, não pecam em dá-las em casamento.
Seu uso do termo ἀσχημονει̑ν (ser inconveniente) deve ser entendido
como uma referência a uma propriedade especial de aptidão, a qual depende
do que é natural a cada pessoa. Porquanto existe uma propriedade geral que
os filósofos consideram como sendo um aspecto da temperança. Esse fator
pertence igualmente a todos. Existe outra que é especial, visto que o que é
adequado a uma pessoa pode não ser conveniente a outra. Portanto, cada
indivíduo precisa saber (como diz Cícero) qual é a parte [quam personam]
que a natureza lhe designou.69 O celibato poderá ser conveniente a uma
pessoa, porém não se deve usar o mesmo critério com outras.70 Além do
mais, outros não devem seguir o exemplo deste sem inquirir se estão
habilitados para tal; pois proceder assim é comportar-se como símios; e
certamente não estamos dispostos a tal papel. Portanto o pai, após haver
avaliado a disposição de sua filha e constatado que ela não tem o dom para
a vida celibatária, então que a dê em casamento.71
O que Paulo pretende dizer com “flor da idade” é a idade própria para a
vida conjugal. Os jurisconsultos definem a expressão como equivalendo
dos doze aos vinte anos de idade. Paulo realça, de passagem, quão
compreensivos e complacentes devem ser os pais ao fazerem uso do
antídoto nesses tenros e delicados anos, quando o rigor da ansiedade o
requeira.
E se a necessidade assim o requeira. Ele toma esta frase como uma
alusão às debilidades femininas, ou, seja, no caso de a moça não ter o dom
da continência; porque em tais circunstâncias ela se vê obrigada a contrair
matrimônio. Jerônimo toma as palavras “não peca” com o intuito de levar o
matrimônio ao descrédito, e o deprecia como se entregar uma filha à vida
conjugal não fosse algo louvável. Não obstante, seus conceitos são pueris.72
Porquanto Paulo considera suficiente isentar os pais do opróbrio, para que
não viessem julgar ser algo cruel sujeitar suas filhas às tribulações da vida
conjugal.
37. Mas aquele que tem firme em seu coração. Chegamos agora à
segunda parte da declaração, e nela Paulo trata das jovens que possuem o
dom de abster-se do matrimônio. Ele, pois, louva os pais que se preocupam
em ver se suas filhas jovens não estão enfrentando alguma desordem
pessoal. Mas é necessário que entendamos o que Paulo aqui requer. Sua
primeira condição é a força de vontade: “Se alguém mantém sua mente em
plena harmonia com seu propósito.” Todavia, não devemos permitir que
isso sofra o mesmo gênero de solução que os monges inventaram, ou, seja,
obrigar-se voluntariamente a uma servidão vitalícia. (Pois esse é o gênero de
voto que ele faz.) Paulo, porém, faz particular menção desta firme
determinação, visto que os homens amiúde esboçam planos
precipitadamente, de modo que no dia seguinte estão pesarosos de havê-los
feito. Visto que esta é uma questão de grande magnitude, ela demanda um
propósito totalmente amadurecido.
Em segundo plano, ele fala da pessoa como não tendo nenhuma
necessidade; porquanto muitos, quando chegam a deliberar, são mais
obstinados do que razoáveis. E nas circunstâncias que estamos
considerando aqui,73 renunciam o matrimônio, estando em poder fazê-lo,
sem prestar a mínima atenção se estão preparados para isso, porém julgam
ser bastante dizer: “Isso é precisamente o que quero.” Paulo requer deles
que tenham aptidão, a fim de não tomarem uma decisão precipitadamente,
mas que seja segundo a medida da graça que lhes foi dada. A ausência de
necessidade no caso, ele apropriadamente o expressa na sentença seguinte,
quando diz que tenham “domínio sobre sua própria vontade”. Pois é como
se ele quisesse dizer: “Não quero que resolvam antes que estejam certos de
que lhes foi dado o poder de cumpri-lo; porque é algo temerário, deveras
fatal,74 achar-se lutando contra a designação divina.” Mas alguém dirá: “À luz
deste sistema, os votos devem ser condenados, uma vez que a atenção é
voltada para as condições anexas.” A isso respondo que não temos
nenhuma certeza em relação à vontade de Deus quanto ao futuro; portanto,
no que diz respeito ao dom da abstinência, não devemos tomar uma decisão
que nos escravize ao longo de toda nossa vida. Façamos uso do dom desde
que nos sintamos livres para fazê-lo. Entrementes, confiemo-nos ao Senhor,
prontos a segui-lo para onde ele queira nos chamar [Ap 14.4].
E determinou isso em seu próprio coração. É provável que Paulo tenha
adicionado esta expressão com o fim de tornar mais claro que os pais devem
avaliar bem os vários aspectos antes de descartar suas preocupações e
intenções quanto a liberar suas filhas ao matrimônio. Pois elas às vezes se
recusam a casar-se, seja em virtude do pudor ou por ignorarem sua própria
natureza, enquanto que, ao mesmo tempo, continuam sensuais como
sempre e sujeitas a se desviarem.75 Nesta conexão, os pais devem considerar
o que é melhor para suas filhas, de modo que sua própria prudência venha
corrigir a ignorância ou os desejos irracionais de suas filhas.
Ora, esta passagem ajuda a estabelecer a autoridade dos pais, a qual deve
ser mantida inviolável, uma vez que ela deve sua origem à lei universal da
natureza [ex communi naturae inre]. Se aos filhos não se permite fazer outras
coisas – aquelas de somenos importância – sem a aprovação de seus pais,
seria obviamente mui incongruente que lhes fosse dada a liberdade de
contrair seus próprios matrimônios. E isso tem sido sancionado pela lei
civil [civili lege], mas mui especialmente pela Lei de Deus [Lege Dei]. Eis a
razão por que é extremamente detestável a perversidade do papa, porque,
ignorando o respeito devido à lei de Deus, bem como à lei dos homens, sua
ousadia tem chegado ao ponto de fazer os filhos isentos do jugo da sujeição
devida a seus pais. Entretanto, não vale a pena determinar aqui a razão. Diz
ele: “Isso se deve à dignidade do sacramento.” (Prefiro ignorar sua
ignorância em converter o matrimônio em sacramento!) Não obstante, que
gênero de honradez e dignidade há nisso, pergunto eu, quando,
contrariando o padrão comum da decência entre todas as nações, bem como
a eterna ordenação de Deus, os jovens se entregam com extrema liberdade a
suas paixões lascivas, ao ponto de correrem desenfreadamente sem
qualquer senso de pundonor,76 só porque contam com a escusa de que esse
é um sacramento. Portanto, lembremo-nos de que, com respeito à liberação
de suas filhas à vida conjugal, a autoridade dos pais é mais importante,
contanto que não abusem dela de forma tirânica; pois, para prevenir tal
possibilidade, a lei civil também lhe impõe restrições.77 O apóstolo, ao
requerer a isenção da necessidade,78 também notificou que as deliberações
dos pais devem ser reguladas com vistas ao que é melhor para os filhos.
Portanto, tenhamos em mente que este perfeito equilíbrio entre as partes é
um guia justo, ou, seja: que os filhos se deixem governar por seus pais; e
que os pais, em contrapartida, não forcem seus filhos a agirem contra sua
vontade, senão que usem sua autoridade unicamente no sentido de
promover o bem-estar de seus filhos.
38. De sorte que, aquele que dá sua filha em casamento faz bem. Aqui
temos a conclusão de ambas as partes da declaração, na qual ele expressa,
em poucas palavras, que os pais estão livres de qualquer constrangimento
caso liberem suas filhas à vida conjugal; todavia lhes assevera que fariam
melhor se as conservassem em casa, solteiras. Entretanto, aqui ele uma vez
mais não considera o celibato como sendo preferível ao matrimônio. Isso só
é possível na única exceção a nós imposta um pouco antes. Pois quando a
jovem não é capaz de abster-se do matrimônio, o pai que tenta subtraí-la79
dele está agindo irrefletidamente. Na verdade, tal nem mesmo é pai, mas um
cruel tirano. A discussão toda equivale a isto: (1) O celibato é preferível ao
matrimônio, visto que ele nos mantém livres e, em conseqüência, nos
propicia melhor oportunidade para o serviço de Deus. (2) Todavia, não se
deve usar qualquer atitude compulsiva com o fim de impedir os indivíduos
de contrairem o matrimônio, caso queiram fazê-lo. (3) Além do mais, o
matrimônio, intrinsecamente, é o antídoto que o Senhor providenciou para
nossas fraquezas;80 e todo aquele que não é abençoado com o dom da
continência deve se valer dele. Toda pessoa de são juízo concordará comigo
em dizer que todo o ensino de Paulo acerca do matrimônio se resume
nesses três pontos.

39. A esposa está comprometida durante todo o tempo que seu esposo viver; mas, se o
esposo morrer, ela fica livre para casar-se com quem quiser; contanto que seja no
Senhor.
40. Mas ela será mais feliz se permanecer como está, segundo meu parecer; e também
julgo que tenho o Espírito de Deus.

39. Mulier alligata est Legi, quamdiu maritus ejus vivit: si autem dormierit maritus ejus,
libera est, ut cui vult nubat, modo in Domino.
40. Beatior vero est, si sic maneat, secundum meam sententiam: existimo autem, me
quoque Spiritum Dei habere.

39. A esposa está comprometida [pela lei]. O que ele dissera


previamente se aplicava igualmente aos homens e às mulheres; visto, porém,
que as viúvas aparentemente tinham menos liberdade, em razão da modéstia
de seu caráter feminino, Paulo viu-se impelido a ministrar algumas diretrizes
especiais também a elas. Portanto, ele agora ensina que as mulheres, tanto
quanto os homens, estão livres para contrair segundas núpcias,81 após a
morte de seu primeiro cônjuge. Já mencionamos que aquelas que eram
solícitas por segundos cônjuges eram marcadas com o estigma da falta de
autodomínio, e era como se lhes dirigissem insultos, quando as que se
sentiam contentes com um só esposo costumavam receber uma “coroa de
castidade”. Ainda mais, esta primeira perspectiva granjeou uma boa porção
de espaço entre os cristãos a um só tempo, pois sobre suas segundas
núpcias não era pronunciada nenhuma bênção, e em alguns concílios não se
permitia que os ministros tomassem parte nelas. O apóstolo aqui condena
qualquer sorte de arbitrariedade, e diz que não se deve pôr qualquer
impedimento no caminho das viúvas com o fim de obstruir o matrimônio,
caso elas assim o queiram.
Certamente que não faz qualquer diferença para o significado, se
dissermos que a esposa está ligada à lei ou pela lei. Pois a lei certamente
afirma que a união de esposo e esposa é indissolúvel. Contudo, se o leitor
preferir o dativo, então significará a autoridade da lei e sua obrigação82 para
com ela. Ora, Paulo está argumentando através de antítese; pois se a esposa
é ligada a seu esposo durante a vida deste, então estará livre com a morte
dele. Após ver-se livre, ela poderá “casar-se com quem quiser”.
Quando se usa o verbo dormir no sentido de morrer,83 a referência não é
à alma, mas ao corpo. Isso é óbvio à luz do constante uso da palavra na
Escritura.84 Contudo, certas cabeças quentes não fazem outra coisa senão
demostrar sua ignorância, quando manipulam esta pequena palavra a fim de
provar que, após nossas almas se separarem de seus corpos, se privam de
sentimento e entendimento; em outros termos, de sua vida.
Somente no Senhor. Há quem considere isto como sendo de caráter
axiomático, ou, seja, que foi adicionado à guisa de advertência da parte de
Paulo, no sentido em que os cristãos não devem sujeitar-se ao jugo dos
incrédulos, nem devem cobiçar sua sociedade. Embora eu reconheça a
veracidade deste ponto de vista, minha opinião é que estas palavras
escondem mais que isso, ou, seja, que devem fazer isso de uma maneira
religiosa e no temor do Senhor.85 Pois esta é a forma pela qual se deve
começar favoravelmente a vida conjugal.
40. Mas ela será mais feliz se permanecer como está. Por quê? Seria
porque a viuvez desfrute de virtude inerente? Não, porque significa menos
distrações e mais liberdade contra as preocupações mundanas. Além disso,
“segundo meu parecer” não expressa outra coisa senão que Paulo não
desejava que houvesse alguma dúvida sobre sua opinião. Mas é como se ele
dissesse que isso era o que ele decidira sobre a matéria; pois imediatamente
acrescenta que possuía o Espírito de Deus; e que é suficiente para dar prova
de plena e perfeita autoridade. Ao usar o termo julgo, ele insinua uma nota
irônica. Porque, visto que os falsos apóstolos estavam reiteradamente
falando em termos megalomaníacos acerca do Espírito de Deus, com o fim
de reivindicar para si autoridade, e tentando, ao mesmo tempo, denegrir a
imagem de Paulo, ele diz que acredita ser também participante do Espírito
não menos que eles.

1. “C’est à dire, l’abstinence du mariage.” – “Equivale dizer, a abstinência do matrimônio.”


2. Nosso autor, quando comenta Mateus 19.10, critica em termos fortes a maneira de Jerônimo
tratar o tema do matrimônio, descobrindo “uma maliciosa e ímpia disposição”. Harmonia, vol. ii.
p386.
3. “C’est autant de perdu quant aux choses spirituelles.” – “Por isso muito se perde em relação
com as coisas espirituais.”
4. “Nous employer entierement et incessamment.” – “Empregam-se inteira e incessantemente.”
5. “Il laisse la liberté de se marier ou ne se marier point.” – “Ele dá liberdade de casar ou não
casar.”
6. “Ou qu’ils soyent tentez de se debaucher en paillardises.” – Ou são tentados a contaminar-se
com prostitutas.”
7. “Un seruice agreable à Dieu.” – “Um serviço agradável a Deus.”
8. “Solicité et induit plusieurs.” – “Fascinou e induziu a muitos.”
9. “L’affection du cœur plus ardente et extraordinarire.” – “Uma mais ardente e extraordinária
aflição mental.”
10. “Comme quand on veut elire ou ordonner des pasteurs et ministres.” – “Como quando as
pessoas desejam eleger ou ordenar pastores e ministros.”
11. “Par dessus nos forces, et la mesure de nostre imbecilité.” – “Além de nossa força e da
medida de nossa fraqueza.”
12. “Mais (dira quelqu’vn) il faut resister à Satan.” – “Mas (dirá alguém) devemos resistir a
Satanás.”
13. “Qu’il leur donnera tousiours la puissance de s’en passer.” – “Para que lhes desse sempre o
poder de agir sem ele [o ato sexual].
14. “Leurs affections desordonnees.” – “Seus afetos desordenados.”
15. “Les hypocrites qui veulent estre estimez de petis saincts.” – “Hipócritas, que desejam ser
considerados como os poucos santos.”
16. “Les sots et indiscrets zelateurs.” – “Zelotes loucos e inconsiderados.”
17. “Où permission et pardon ha lieu.” – “Onde a permissão e o perdão têm lugar.”
18. O termo ἀταξία é usado por nosso autor na Harmonia (vol. i, p. 320) no sentido de desordem,
como contrastado com a condição ordeira do reino de Deus. Ele contém uma alusão à conduta
desordenada dos soldados que abandonam suas posições. É usado neste sentido por Tucídides
(vii.43).
19. “Vn appetit desmesuré, lequel ie concede estre vicieux.” – “Um imoderado desejo, o qual,
admito, é vicioso.”
20. “Pour resolution donc de ce poinct en peu de paroles, disons en ceste sorte.” – “Para uma
solução deste ponto em poucas palavras, expressamo-lo desta forma.”
21. “Donné de Dieu.” – “Dado por Deus.”
22. “Comme vn service agreable à Dieu.” – “Como um serviço agradável a Deus.”
23. “Comme vn estat indigne et non conuenable à la sanctete de l’ordre.” – “Como uma condição
incoveniente e inadequada para a santidade de sua ordem.”
24. “De passions et cupiditez desordonnees.” – “De paixões e luxúrias desordenadas.”
25. O leitor encontrrará o mesmo tema amplamante tratado por nosso autor nas Institutas, vol. iii,
pp. 268-272.
26. “Se mesure a son aulne (comme on dit) c’est à dire, selon sa faculté.” – “Messam-se por sua
própria vara (como dizem), isto é, segundo sua capacidade.”
27. “Qu’il estoit sans femme.” – “Que ele era solteiro.”
28. “Entre ceux qui n’estoyent point mariez.” – “Entre os que eram solteiros.”
29. “Car comment se fust-il donc acquitté de ce qu’il commande yci aux gens mariez?” – “Ora
essa, nesse caso ele teria descartado o dever que ele ordena às pessoas casadas?”
30. “Vn sophisme plus que puerile.” – “Algo pior que um sofisma pueril.”
31. “Auec pleurs et humilité.” – “Com lágrimas e humildade.”
32. “Il y a vne autre espece de tentation moyenne entre les deux que i’ay dites.” – “Há outro
gênero de tentação intermediária entre as duas que já mencionamos.”
33. “Pource qu’elles n’estoyent asez belles, ou pour quelque autre despit ou desplaisir.” –
“Porque elas não eram bastante elegantes, ou com base em alguma outra ofensa ou
discrepância.”
34. A frase usada pelo autor – frangant tesseram – (quebra de compromisso) contém uma alusão
ao costume entre os romanos de ter, por ocasião da formação de uma aliança de hospitalidade,
um acordo (tessera) ou peça de madeira cortada em duas partes, das quais cada parte guardava
uma. Se ambas as partes agissem inconsistentemente com o parceiro, dele se dizia: confregisse
tesseram – ter quebrado o acordo.
35. “Auec Abraham, et auec la semence.” – “Com Abraão e com sua semente.”
36. “Que nous auons auiourd’huy semblable cause de nous departir d’avec les Papistes.” – “Que
temos nestes dias motivo semelhante para nos separarmos dos papistas.”
37. “Au bon chemin.” – “No bom caminho.”
38. Nosso autor se refere à palavra ἑκαστος (cada um), que ocorre na primeira cláusula do verso
no caso dativo, e na segunda cláusula no acusativo, e em ambos os casos traduzida no
nominativo unusquisque (cada um).
39. “Car d’autant que ce nom vient d’vn mot qui signifie Appeler, il ha vne correspondance
mutuelle à Diu, qui nous appelle a ceci ou à cela.” – “Pois como este termo provém de uma
palavra que significa chamar, ele tem uma mútua relação com Deus, que nos chama para isto ou
aquilo.”
40. “Ceque ie di, afinque nul n’abuse ceste sentence.” – “Coisa essa, digo eu, para que ninguém
use mal esta afirmação.”
41. “Vne obligation et necessite.” – “Uma obrigação e necessidade.”
42. “Vn cordonnier.” – “Um sapateiro.”
43. “Paisiblement et en repos de conscience.” – “Pacificamente e com a consciêncai tranqüila.”
44. “Tout le but a quoy tend Sainct Paul.” – “Todo o objetivo a que Paulo almeja.”
45. “Soit beaucoup meilleur.” – “É muito melhor.”
46. “Appelle indifferemment et sans exception tous hommes et femmes à se marier.” – “Chama
ao consórcio nupcial todos os homens e mulheres indiscriminadamente e sem exceção.”
47. Esse é o ponto de vista que Beza assume do significado do termo aqui – “Sententiam in hac
re meam dico.” – “Eu lhe dou minha decisão autoritativa quanto a esta questão.”
48. A palavra original, ἠλεημένος, a qual tem ocasionado não poucas dificuldades aos intérpretes,
é engenhosamente entendida por Granville Penn, sem seu Supplemental Annotaations, como sendo
uma variação dialética de ηλημενος, para ειλημενος, obrigado (de ειλεω, obrigar), em cujo caso o
significado seria este: “como alguém obrigado pelo Senhor a ser fiel.” Tomando a palavra neste
prisma, a expressão é muito semelhante à que encontramos empregada pelo apóstolo num
capítulo subseqüente desta Epístola (1Co 9.16).
49. “Du cerueau des hommes.” – “Do cérebro humano.”
50. “Diuerses affictions et orages.” – “Várias aflições e tempestades.”
51. “Car il ne faut pas quitter legerement sa liberté sans y bien penser.” – “Pois ele não deve
abandonar sua liberdade levianamente, sem muita ponderação.”
52. Em concordância com isso, Univira (a esposa de um só marido) é amiúde encontrado nas
inscrições antigas como um epíteto de honra.
53. “Autheur ancien.” – “Um antigo escritor.”
54. “C’est à dire, colorée et reglée par les lois.” – “Equivale dizer, colorido e regulado pelas leis.”
55. “Ou, Mais ie vous di ceci, mês freres, que le temps.” – “Ou, Mas eu vos digo isto, meus
irmãos, que o tempo.”
56. “Or de prosperite s’ensuit ioye, comme d’aduersitez pleurs.” – “Agora a alegria acompanha a
prosperidade, como as lágrimas acompanham as adversidades.”
57. “Enterrez en icelles.” –“Sepultado neles.”
58. “Tellement que le mot signifie yci, Abusans, ou Vsans trop.” – “De modo que a palavra
significa aqui abusando, ou usando demasiadamente.” O verbo χράομαι é usado com freqüência
pelos escritores clássicos no sentido de usar ao máximo, consumir ou usar mal.
59. “En ce monde.” – “Neste mundo.”
60. “Comme s’il disoit, que ce monde n’há point vn estre, mais seulement vne monstre et vaine
apparence.” – “Como se ele dissesse que este mundo não tem existência, mas apenas uma
exibição e mera aparência.”
61. Qu’ils puissent rencontrer” – “Para que encontrem.”
62. “Qui sourdent entre le mari et la femme.” – “Que surge entre esposo e esposa.”
63. A intenção de nosso autor é esta: enquanto θλιψις (tribulação) invariavelmente se relaciona
com o que é de uma natureza estressante, μεριμνα (cuidado) se aplica a tudo o que eleva a
atenção da mente.
64. “Forclos du royaume de Dieu.” – “Excluídos do reino de Deus.”
65. Kypke (em seu Observationes Sacræ) traduz a palavra original μεμέρισται como faz Calvino –
dividido ou perplexo, e apresenta uma passagem de Aquiles Tácito, na qual εμεμεριστο é usada
em um sentido afim. Na versão Siríaca, por outro lado, a redação é como segue: Discrimen autem
est inter mulierem et virginem – Há uma diferença entre uma esposa e uma virgem.
66. “Le Sainct Esprit.” – “O Espírito Santo.”
67. “Tant plus ils craignent qu’il ne leur adviene quelque inconvenient, et tanto plus sont ils
diligens à se donner garde pour eux.” – “Tanto mais deveriam temer que não se deparassem
com qualquer inconveniência, e tanto mais cuidadosos deveriam ser sobre seu bem-estar.”
68. “Quand il n’est point sous la puissance d’autruy.” – “Quando ele não está debaixo do poder
de outro.”
69. “La condition et propriete que nature luy a donnee.” – “A condição e a propriedade que a
natureza lhe designou.” Ver Cic. de Off. I.28.
70. “Comme on dit.” – “Como dizem.”
71. Calvino parece ter entendido o verbo ἀσχημονει̑ν aqui no sentido de ser inconveniente. O
significado ordinário da palavra é agir de uma maneira inconveniente. Neste sentido, ela ocorre em 1
Coríntios 13.5 e em vários casos nos clássicos (ver Eur. Hec. 407), e a construção da passagem
parece requerer que seja entendida no sentido em que o pai crê estar agindo impropriamente em
relação a sua filha virgem, ou concorrendo para a infelicidade dela.
72. “C’est vne cauillation puerile.” – “É uma cavilação pueril.”
73. “Et mesme quand il est question du propos dont il est yci fait mention.” – “E ainda quando
haja dúvida sobre o tema, do qual ele aqui fez menção.”
74. “Vne arrogance pernicieuse.” – “Uma arrogância perniciosa.”
75. “Elles ne sont de rien moins suiettes à affections desordonnees, ou à estre seduites et
abusees.” – “Não são de modo algum menos suscetíveis às afeições desordenadas, ou a serem
seduzidas ou enganadas.”
76. “S’esgayent et desbauchent.” – “Divertindo-se e debochando-se.”
77. “Comme aussi à ceste fin les loix ciuiles restraignent l’authorite d’iceux.” – “Como também
para este fim as leis civis restringem sua autoridade.”
78. “En requirant yci que les enfans sentent en eux ceste liberte et exemption de la necessite du
mariage.” – “Ao requerer aqui que os filhos sintam em si esta liberdade e isenção da
necessidade do casamento.”
79. “Car quand la puissance defaudra à la fille de s’abstenir de mariage.” – “Pois quando a filha
não tem poder para abster-se do matrimônio.”
80. “Pour subuenir à nostre infirmite.” – “Para auxiliar nossa enfermidade.”
81. “Apres auoir perdu leurs premiers maris.” – “Depois de haver perdido seu primeiro cônjuge.”
82. “Autorite ou puissance et suiection.” – “Autoridade ou poder e sujeição.”
83. “Comme en ce passage.” – “Como nesta passagem.”
84. A expressão original é ἐὰν δὲ κοιμηθῃ ὁ ἀνὴρ αὐτη̑ς: “Se seu esposo caiu em sono.” A metáfora não
é peculiar às Escrituras, mas dela se fazem uso também escritores pagãos, do quê temos um
belo exemplo em Calímaco: Ele dorme um sono sagrado – não se deve dizer que os homens bons
morrem.
85. “Auec reuerence, sagement, et en la crainte du Seigneur.” – “Com reverência, sabiamente e
no temor do Senhor.”
Capítulo 8

1. Ora, no tocante às coisas oferecidas aos ídolos, sabemos que todos nós temos
conhecimento. O conhecimento ensoberbece, porém o amor edifica.
2. E se alguém julga que conhece alguma coisa, esse ainda não sabe o que deve saber.
3. Mas se alguém ama a Deus, o mesmo é conhecido dele.
4. Portanto, no tocante ao comer das coisas oferecidas aos ídolos, sabemos que um
ídolo nada é no mundo, e que não há outro Deus senão um só.
5. Porque, ainda que haja alguns que se chamem deuses, quer no céu quer na terra
(como há muitos deuses e muitos senhores),
6. todavia, para nós, só há um Deus, o Pai, de quem são todas as coisas, e nós nele, e
um só Senhor, Jesus Cristo, por meio de quem todas as coisas existem, e nós por meio
dele.
7. Seja como for, esse conhecimento não está presente em todos; pois alguns, com a
consciência [da existência] dos ídolos, comem algo como oferecido aos ídolos; e sua
consciência, sendo fraca, fica contaminada.

1. De iis porro quæ idolis immolantur, scimus, quod omnes scientiam habemus: scientia
inflat, caritas autem ædificat.
2. Si quis autem videtur sibi aliquid scire, nondum quicquam scit, qualiter scire oportet.
3. At si quis diligit Deum, hic cognitus est ab illo.
4. De esu ergo eorum quæ idolis immolantur, novimus, quod idolum nihil est in mundo, et
quod non est alius Deus nisi unus.
5. Nam etsi sunt qui vocentur dii, sive in cœlo sive super terram, quemadmodum sunt dii
multi et domini multi:
6. Nobis tamen unus Deus Pater, ex quo omnia, et nos in ipso: et unus Dominus Iesus
Christus, per quem omnia, et nos per ipsum.
7. At non est in omnibus scientia: quidam autem cum idoli conscientia nunc quoque
tanquam idolo immolatum edunt, et conscientia eorum, infirma quum sit, polluitur.

Paulo então se move em direção a outra questão, à qual simplesmente


tocara no capítulo 6 sem desenvolvê-la plenamente. Pois quando falara
sobre a ganância dos coríntios, e concluiu essa parte de sua discussão
dentro do capítulo com a seguinte afirmação: “Os cobiçosos, os extorsores,
os fornicadores etc. não herdarão o reino de Deus”, ele partiu deste ponto
para falar da liberdade cristã: “todas as coisas me são lícitas.” Ele aproveitou
a oportunidade para passar deste ponto para o assunto da fornicação, e
desta para o matrimônio. E então, finalmente, segue em frente deixando a
referência que fizera às coisas conflitantes para realçar agora como nossa
liberdade deve ser modificada até onde as coisas intermediárias se
relacionam. Por “coisas intermediárias” quero dizer aquelas coisas que em
si mesmas nem são boas nem más, mas neutras, as quais Deus deixou a
nosso critério, mas em cujo uso devemos observar moderação, para que
não haja distinção entre liberdade e libertinagem. Ele, antes de tudo,
seleciona um tipo particular em preferência aos outros, pois neste os
coríntios estavam indo de mal a pior. Estavam freqüentando as festas
religiosas que os adoradores de ídolos promoviam em honra de seus
deuses, quando comiam indiscriminadamente das carnes que eram
sacrificadas a esses deuses. Uma vez que tal prática levava muitas pessoas a
erguerem suas mãos num gesto de louvor, o apóstolo ensina que estavam
errados em tirar vantagem pessoal da liberdade que o Senhor lhes
concedera.
1. No tocante às coisas sacrificadas aos ídolos. Ele começa fazendo-lhes
uma concessão, na qual voluntariamente lhes concede e admite tudo o que
estavam a exigir ou a objetar. Ele poderia ter dito: “Estou consciente do
modo como vos justificais; fazeis uso da liberdade cristã como escusa.
Alegais que tendes conhecimento, e que nenhum de vosso rol é tão
desorientado que não tenha consciência do fato de que existe unicamente
um Deus. Admito ser tudo verdade, mas que utilidade tem um conhecimento
que leva um irmão à bancarrota?” E assim ele concorda com a asseveração
deles, mas, ao mesmo tempo, esclarece que as escusas deles eram fúteis e
levianas.
O conhecimento ensoberbece. Ele mostra, a partir dos efeitos, quão
estúpido é gloriar-se no conhecimento quando o amor [caritas] está ausente.
Ele poderia ter-se expresso assim: “Que utilidade tem o conhecimento
quando tudo o que ele faz é deixar-vos convencidos e arrogantes, enquanto
que a edificação é própria da essência do amor?” Esta passagem, que de
outra forma seria obscura por causa de sua concisão, pode ser facilmente
compreendida da seguinte forma: “Qualquer coisa que careça no mínimo de
um vislumbre de amor é indigno aos olhos de Deus; mais ainda, lhe causa
desprazer – quanto mais aquilo que se põe francamente em batalha contra o
amor! Mas este conhecimento, do qual os coríntios se orgulhavam tanto, está
definitivamente do lado oposto do amor, pois satura os homens com
arrogância e os leva a mirar com desprezo a seus irmãos. O amor, em
contrapartida, nos move a preocupar-nos com a sorte de nossos irmãos, e
nos encoraja a buscar sua edificação. Não admira de eu dizer que maldito,
pois, seja o conhecimento que produz seres arrogantes e insensíveis para
com o bem-estar de outras pessoas!”
Paulo, contudo, não pretendia que tal erro fosse creditado na conta da
erudição, no sentido em que pessoas instruídas são mui freqüentemente
não só bem apessoadas, mas, ao mesmo tempo, também menosprezam os
demais. Além disso, ele não pretendia dizer que a cultura, por si só, produza
arrogância. Ele simplesmente queria mostrar o efeito que o conhecimento
produz nos homens, quando o temor de Deus e o amor [dilectio] aos irmãos
se acham ausentes. Porque os descrentes tiram vantagem de todos os dons
divinos a fim de se exaltarem. É assim que riquezas, honras, posições
oficiais, nobre nascimento, boa aparência e coisas semelhantes sobem à
cabeça do ser humano; pois são arrebatados por uma equivocada confiança
nessas coisas, tornando-se tão insolentes1 quanto podem. Naturalmente
que nem sempre é assim, pois cruzamos sempre com pessoas que possuem
riquezas, são bem apessoadas, envergam-se sob o peso das honras,
desfrutam de posição oficial, têm sangue nobre a correr em suas veias, no
entanto permanecem, ao mesmo tempo, humildes, e que não levam em si
sequer um laivo de orgulho. Mas sempre que a situação a que venho
descrevendo entra em cena, não devemos pôr a culpa na cultura, e, sim,
naquelas coisas que, todos concordam, são dons de Deus. Em primeiro
lugar, tal comportamento seria injusto e estúpido. Em segundo lugar, ao
transferir a culpa para as coisas, que na verdade são neutras, estaríamos
isentando o próprio ser humano, o único que deve levar a culpa. O que
estou dizendo é o seguinte: se a propriedade de riquezas é que torna os
homens orgulhosos, então, se um homem rico é orgulhoso, nenhuma culpa
se pode assacar contra ele, porquanto o mal tem sua origem nas riquezas.
Portanto, devemos aceitar como um princípio estabelecido que o
conhecimento em si mesmo é bom; mas, visto que a piedade é seu único
fundamento,2 ele se torna fútil e inútil nos perversos, porquanto o amor é
seu condimento essencial, e sem este aquele se torna ineficaz. De fato, onde
este conhecimento de Deus não se faz presente, o qual nos humilha e nos
ensina a nos preocuparmos com a sorte de nossos irmãos, o que se
descobre é algo que se imagina ser conhecimento, o qual de forma alguma é
conhecimento, mesmo naqueles que se consideram como os mais
instruídos. Tal conhecimento, porém, não deve ser de forma alguma culpado
de ser uma espada que é posta nas mãos de um louco. Tal poder-se-ia dizer3
de certos fanáticos que furiosamente protestam contra todas as artes e
ciências liberais, como se sua única função fosse animar os orgulhosos, sem
nenhuma contribuição valiosa a oferecer a nossa vida cotidiana.4 Mas, as
mesmas pessoas que as vituperam são tão vociferantes em seu orgulho que
se tornam vivos exemplos do antigo provérbio: “Nada é tão arrogante
quanto a ignorância.”
2. Se alguém julga. Aquele que julga saber alguma coisa é uma pessoa
que deposita um alto valor no conhecimento que julga ter, e, de maneira
arrogante, olha com desdém para os demais. Portanto, Paulo aqui está
condenando não o conhecimento propriamente dito, mas aquele egoísmo e
arrogância que são seu produto no tocante aos incrédulos. Em
contrapartida, ele não nos exorta a nos portarmos como céticos, sempre
incertos e dominados pela dúvida. Ele não aprova qualquer parcela de
modéstia falsa e simulada, como se fosse uma atitude positiva fingirmos
ignorância quando realmente temos conhecimento. Aquele homem, pois,
que pensa conhecer algo, ou, em outros termos, que é insolente com base
em noção vazia de seu próprio conhecimento, de modo que prefira a si
mesmo antes que outros, e que nutre um alto conceito de si mesmo, nada
sabe além do que deveria saber. Porque o fundamento do genuíno
conhecimento [verae scientiae] é o conhecimento [cognitio] pessoal de Deus,
o qual produz humildade e submissão; mais que isso: em vez de nos exaltar,
ele nos lança totalmente no pó terra. Mas onde o orgulho se faz presente não
há nenhum conhecimento de Deus.5 Esta é uma passagem mui preciosa, e
meu desejo é que todos a aprendam sinceramente, para que possam
conservar o domínio do sólido conhecimento [ritesciendi regulam tenerent].
3. E se alguém ama a Deus. Aqui temos a conclusão, na qual ele mostra
o que é especialmente recomendável nos cristãos e inclusive se converte em
conhecimento, e todos os demais dotes se tornam dignos de enaltecimento,
se amamos a Deus. Pois, neste caso, nele amaremos também a nosso
próximo. Assim, tudo o que fizermos será sempre feito dentro dos limites da
moderação, e receberá a aprovação de Deus. Paulo ensina, pois, à luz das
conseqüências, que nenhum ensino pode ser aprovado sem antes ser
‘batizado’ no amor de Deus [amore Dei intincta], pois somente este fato
pode assegurar que os dons que temos contam com o endosso divino. A
condição é encontrada na segunda epístola [5.17], ou, seja: “Se alguém está
em Cristo, é nova criatura [criação]” [2Co 5.17]. Com isso Paulo quer dizer
que, sem o Espírito de regeneração, tudo mais, não importa quão excelente
aparentemente seja, é sem valor. “Ser conhecido de Deus” significa
simplesmente estar de posse de certa condição, ou, seja, achar-se incluído
no número de seus filhos. E assim ele exclui todos os orgulhosos do livro da
vida [Fp 4.3] e do rol dos piedosos.
4. No tocante, pois, ao comer das coisas sacrificadas aos ídolos. Ele
agora volta à afirmação com a qual começara o capítulo, e expõe de maneira
mais explícita a justificativa que os coríntios apresentavam. Pois como toda
a conturbação tinha sua origem no fato de que eles agradavam a si mesmos
e miravam com desdém os demais, Paulo condenou, em termos gerais,
aquele conhecimento que é desdenhoso e não sazonado com amor.
Entretanto, agora ele chega ao ponto, explicando especificamente o gênero
de conhecimento que era a motivação do envaidecimento deles. Eis o
argumento deles: “Um ídolo não passa de mera invenção da mente humana,
e, por essa razão, deve ser considerado como não existente. Segue-se ser
absurda, imaginária e irracional a consagração efetuada no nome de um
ídolo. Portanto, o cristão que não nutre nenhum respeito pelo ídolo, e ainda
come da comida a ele oferecida, não se torna impuro.” Esta é a suma da
justificativa deles, e Paulo não descarta o que dizem como se fosse falso,
pois de fato há aqui um valioso ensino, porém o rejeita porque estavam
fazendo mau uso dele, ou, seja, viviam em oposição ao amor [fraternal].
Quanto às palavras, eis a tradução de Erasmo: “Um ídolo que não tem
existência” [nullum est simulacrum]. Quanto a mim, prefiro a tradução da
Vulgata: Um ídolo não é nada [nihil]. Pois o raciocínio é o seguinte: um ídolo
não é nada, visto não existir senão um único Deus. Pois uma coisa deduz-se
inevitavelmente da outra: se não existe nenhum outro Deus além de nosso
Deus, então um ídolo não passa de uma fútil fantasia e uma mera
inexistência. Quando Paulo diz: “e não existe senão um só Deus”, ele toma
causalmente a partícula ‘e’ no sentido de ‘porque’. Pois a razão por que um
ídolo não significa nada é que não se deve atribuir-lhe o valor que ele simula
ter. Ora, o propósito do ídolo é ser uma representação de Deus; mais ainda:
com o propósito de representar falsos deuses, já que não existe senão um
único Deus, que é invisível e incompreensível. Deve-se dar também
cuidadosa atenção à seguinte razão: “Um ídolo nada é porque não existe
senão um único Deus”, pois ele é o Deus invisível e não pode ser
representado por nehum sinal visível, e portanto tal coisa não pode ser
usada como objeto de adoração a Deus. Portanto, se os ídolos são
estabelecidos como representação do genuíno Deus, ou de falsos deuses,
em qualquer caso significa a criação de algo perversivo. Esta é a razão por
que Habacuque denomina os ídolos de “mestres de mentiras” [2.18]; pois
sua função é ludibriar o ser humano, primeiro por retratarem a figura ou
imagem de Deus; e segundo porque seu nome serve como desorientação.
Portanto, ούδεν (nada) não se refere à substância do ídolo, mas a seu caráter,
pois, afinal, um ídolo é fabricado de alguma matéria, seja ouro, madeira ou
pedra. Visto, porém, que Deus não pretende ser representado desta forma, o
ídolo é algo fútil e considerado como sendo uma nulidade no tocante a
possuir alguma importância ou valor.
5. Porque, ainda que haja alguns que se chamem deuses. Eis o que ele
pretende dizer: “Eles possuem um nome, porém não existe qualquer
realidade por trás dele.” Pois aqui “ser chamado” significa ser divinamente
considerado pelos homens. Ele igualmente faz uso da designação geral,
quando diz: “no céu ou na terra.” Os deuses descritos como sendo
procedentes do céu são as hostes celestiais, como a Bíblia os chama de sol,
lua e demais astros. Moisés, porém, mostra quão longe estão de posuir
honras divinas, pelo fato de terem sido criados para nosso uso. O sol é
nosso servo; a lua é nossa serva. Quão absurdo, pois, que lhes prestemos
nossas honras divinas! Pela expressão deuses que estão na terra, em minha
opinião são propriamente dito os homens e mulheres por quem os ritos
religiosos foram instituídos.6 Porque, segundo Plínio, os que prestavam
grande serviço à raça humana foram imortalizados pelas cerimônias
religiosas, de modo a serem cultuados como deuses. Por exemplo, Júpiter,
Marte, Saturno, Mercúrio e Apolo foram mortais, porém, após sua morte,
foram trasladados para a companhia dos deuses. Em seguida, o mesmo
sucedeu a Hércules, Rômulo e, finalmente, aos Césares, como se os homens
realmente possuíssem o poder de se fazerem deuses, segundo seu
beneplácito, quando, de fato, não podem conferir a si próprios nem vida
nem imortalidade! Na verdade, há outros deuses na terra, ou, seja, os
animais e outras coisas inanimadas, quer sejam o boi, a serpente, o gato, a
cebola e o alho, entre os egípcios; e entre os romanos, a pedra Terminus7 e a
pedra Verta. Estes, pois, são os deuses meramente nominais. Paulo, porém,
diz que não pretende desperdiçar tempo com divinizações desse gênero.8
6. Todavia, para nós só há um Deus, o Pai. Ainda que Paulo viesse a
dizer estas coisas à guisa de antecipação pelo que pudessem alegar, não
obstante ele faz alusão à justificativa dos coríntios, de tal forma que, ao
mesmo tempo, lhes ministra instrução. Porque, partindo do que constitui a
maior característica de Deus, ele prova que este é o único Deus: “Tudo
quanto tem sua origem em algum outro ou em algo mais, fora de si mesmo,
não pode ser eterno, e portanto não pode ser Deus. Tudo se origina de um
Ser, portanto somente tal Ser é Deus.” Repetindo: “eis aqui o único que
realmente é Deus, aquele que comunica existência a tudo e de quem tudo
emana como de uma única e suprema fonte; mas só existe um Ser de quem
todas as coisas emanam; portanto, não existe senão um único Deus.”
Ao adicionar: e nós nele (εἰς αὐτόν), ele quis dizer que subsistimos em
Deus, visto que foi ele que uma vez nos criou. Esta sentença parece propor
algo mais, ou, seja, já que confessamos que nossa origem se encontra nele,
devemos, pois, devolver-lhe nossa vida para que ela alcance seu verdadeiro
propósito. Este é o significado de εἰς αὐτόν usado em Romanos 11.36. Aqui,
entretanto, é usado em lugar do ablativo ἐν αυτÿ, que é bastante comum nos
escritos dos apóstolos. Portanto, ele quer dizer que, em nossas atuais
circunstâncias, devemos repousar no poder de Deus, já que uma vez fomos
criados por ele. Esta interpretação é endossada pela afirmação que ele faz
imediatamente a seguir sobre Cristo: que existimos por meio dele. Pois ele
desejava atribuir uma atividade comum ao Pai e ao Filho, adicionando,
contudo, uma distinção, a qual é apropriada às Pessoas. Portanto, ele diz
que subsistimos no Pai, e isso se dá através do Filhos; visto, porém, que o
Pai é realmente a fonte de toda existência, mas que estamos unidos a ele
através do Filho, por isso ele nos comunica, através dele, a realidade da
existência.
Um só Senhor. Estas coisas são afirmadas em relação à Pessoa de Cristo;
em outros termos, isso se refere à relação que ele mantém com o Pai. Pois
tudo o que se aplica a Deus é também aplicado a Cristo, quando não se faz
nenhuma menção específica a Pessoas. Mas, nesta passagem, onde a Pessoa
do Pai é considerada juntamente com a Pessoa do Filho, o apóstolo está
plenamente certo ao fazer distinção entre suas funções peculiares.
Ora, o Filho de Deus, depois de se manifestar na carne, recebeu do Pai o
senhorio e poder sobre todas as coisas, para que pudesse reinar sozinho no
céu e na terra; e para que o Pai pudesse exerce sua autoridade através de
suas mãos. Eis a razão por que nosso Senhor é referido como o Único.9 Mas
o fato de o Senhorio ser atribuído a ele só não deve ser tomado como se
significasse que são abolidas todas as distinções10 terrenas [mundi ordines].
Pois a referência de Paulo aqui é ao domínio espiritual, enquanto os
governos deste mundo são de caráter ‘político’ [dominia mundi politica].
Isto corresponde ao que dissera um pouco antes, ou, seja: “há muitos que se
chamam senhores” [v. 5], porém não pretendia dizer que eram reis, ou
outros que usufruíam de posição e autoridade superiores, mas de ídolos ou
demônios, a quem os homens estúpidos, sem quaisquer justificativas,
atribuíam preeminência e governo. Portanto, embora nossa religião
reconheça um só Senhor, tal fato não impede que o Estado tenha muitos
senhores, a quem se deva honra e respeito neste Único Senhor.
7. Mas esse conhecimento não está em todos. De uma só vez ele refuta
tudo o que introduzira previamente como se fosse produto de seus lábios,
mostrando que não é suficiente que saibam que o que fazem é correto, se ao
mesmo tempo não nutrem nenhum respeito para com seus irmãos. Ao dizer
previamente: “Sabemos que todos temos conhecimento” [v. 1], sua
referência é àqueles em quem ele reprovava por abusarem de sua liberdade.
Por outro lado, ele agora os convida a considerar que há muitas pessoas
fracas e ignorantes a eles associadas, a quem deveriam acomodar-se. É como
se dissesse: “Aos olhos de Deus, vosso ponto de vista é perfeitamente
correto, e se fôsseis uma única pessoa no mundo, poderíeis sentir-vos livres
para comer carne sacrificada aos ídolos como se fosse qualquer outra
comida. É preciso, porém, que vossos irmãos sejam levados em
consideração, a quem deveis alguma coisa. Vós tendes conhecimento; eles
são ignorantes. O que fazeis deve ser determinado não por vosso
conhecimento, mas também por sua ignorância.” Esta réplica merece
especial atenção: pois não há nada a que estamos mais inclinados11 do que
isto: que cada um de nós busca seu próprio interesse negligenciando os
demais. Por esta razão nos sentimos dispostos a dar atenção a nosso
próprio juízo, e a não considerar que a propriedade daquelas obras que
fazemos aos olhos dos homens depende não meramente de nossa própria
consciência, mas também da de nossos irmãos.
Alguns, com a consciência dos ídolos. Esta é sua ignorância: viviam
ainda sob a influência de algumas crenças supersticiosas, como se houvesse
alguma virtude no ídolo, ou alguma virtude na consagração ímpia e
idolátrica [de carnes]. Paulo, porém, não está referindo-se aos adoradores
de ídolos, os quais eram estranhos à verdadeira religião, mas a pessoas
ignorantes, as quais não estavam suficientemente informadas para
entenderem que um ídolo nada é, e que, conseqüentemente, a consagração,
que era feita em nome do ídolo, não tinha a menor importância. Eles
pensavam mais ou menos assim: “Visto que o ídolo é algo real, a
consagração, que é feita em seu nome, não é, portanto, destituída de
sentido. Além do mais, as carnes, uma vez oferecidas aos ídolos, não são
mais puras.” Daí, pensavam que, se comiam dessas carnes, contraíam algum
grau de contaminação, e que de alguma forma se tornavam participantes do
ídolo. Esse é o tipo de ofensa que Paulo reprova nos coríntios: quando, por
meio de nosso exemplo, induzimos nossos irmãos a viverem em suas
fraquezas, e a agirem contra sua consciência, estamos erigindo a mesma
pedra de tropeço.
E sua consciência, sendo fraca, fica contaminada. Deus não quer que
nossa mão toque qualquer coisa sem que antes estejamos plenamente
certos de que isso lhe é aceitável. Portanto, quem quer que seja, com uma
consciência hesitante em razão dessa mesma incerteza, está pecando aos
olhos de Deus. Isso é precisamente o que Paulo afirma em Romanos 14.23:
“Mas aquele que tem dúvidas, se come, está condenado, porque não come
pela fé; e tudo o que não é pela fé é pecado.” Portanto, há verdade no
provérbio popular, que diz: “Constrói para o inferno quem constrói contra a
consciência.” Portanto, em contrapartida, não importa quão boa uma ação
pareça ser, se há algo errado com a atitude mental por trás dela, então tal
ação é contaminada. Pois quem quer que ousadamente planeje algo que se
põe contra sua consciência, está revelando certo descaso em relação a Deus.
Pois quando respeitamos a vontade divina em todas as coisas, é assim que
provamos que tememos a Deus. Por isso, o leitor estará mostrando
desconsideração para com Deus sempre que, por exemplo, mover um dedo,
se houver dúvida em sua mente, se o que faz está ou não em harmonia com
a vontade dele. Há algo mais a ser lembrado sobre comidas, a saber: elas só
são santificadas para nosso uso através da Palavra [1Tm 4.5]. Se esta Palavra
está ausente, ali nada resta senão contaminação; não porque as coisas
criadas por Deus sejam impuras, mas porque o homem as usa de uma
maneira impura. Em suma, os corações humanos são purificados pela fé;
por isso, fora da fé nada é puro aos olhos de Deus.

8. Mas a comida não nos recomendará a Deus; porque, se não comemos, não ficamos
melhores; ou, se comemos, não ficamos piores.
9. Mas tomai cuidado para que, de alguma forma, essa vossa liberdade não se
transforme em tropeço para os fracos.
10. Porque, se alguém vir a ti, que tens conhecimento, sentado à mesa no templo dos
ídolos, não será a consciência do que é fraco induzida a comer das coisas sacrificadas
aos ídolos?
11. Pois através de teu conhecimento o irmão fraco perecerá, por quem Cristo morreu.
12. E assim, pecando contra os irmãos, e ferindo sua consciência que é fraca, vós pecais
contra Cristo.
13. Por isso, se a comida leva meu irmão a tropeçar, nunca mais comerei carne, para
que meu irmão não se escandalize.

8. Atqui esca nos non commendat Deo: neque si comedamus, abundamus, neque si non
comedamus, deficimur aliquo.
9. Sed videte, ne quo modo facultas hæc vestra offendiculo sit infirmis.
10. Si quis enim videat te, utcunque scientiam habeas, in epulo simulacrorum
accumbentem; nonne conscientia ejus, quum tamen infirmus sit, ædificabitur ad
edendum quæ sunt idolis immolata?
11. Et peribit frater, qui infirmus est, in tua scientia, propter quem Christus mortuus est?
12. Sic autem peccantes in fratres, et vuluerantes conscientiam illorum infirmam, in
Christum peccatis.
13. Quapropter si esca offendit fratrem meum, nequaquam vescar carnibus in
æeternum, ne fratri meo sim offendiculo.

8. A comida não nos recomendará a Deus. Este foi, ou poderia ter sido,
outro pretexto que os coríntios costumavam usar, ou, seja: que o culto
divino não consiste de alimentos, como Paulo mesmo ensina em sua
Epístola aos Romanos 14.17: “O reino de Deus não é comida nem bebida.”
Ele responde: “Entretanto, é preciso tomar cuidado para que o uso de nossa
liberdade não cause dano a nosso próximo.” Aqui ele tacitamente reconhece
que, aos olhos de Deus, não importa o que comamos, porque ele nos
permite servir-nos do alimento livremente, sem qualquer problema de
consciência; essa liberdade, porém, precisa ser temperada com o amor,
sempre que nos envolvermos com outras pessoas. Portanto, o argumento
dos coríntios era deficitário, visto que julgavam toda a situação pelo prisma
de apenas uma parte dela, porque, quando entram em cena os afazeres
práticos da vida, as reivindicações do amor devem receber especial
consideração. Não há dúvida, pois, de que o alimento não nos recomenda a
Deus, e Paulo reconhece esse fato; mas ele o modifica ao dizer que o amor
nos é recomendado por Deus, e que seria pecaminoso negligenciá-lo.
Porque, se comemos não ficamos melhores. Ele aqui não está se
referindo aos estômagos bem alimentados, porque a pessoa que recebe seu
alimento tem obviamente seu estômago melhor nutrido do que a pessoa que
está faminta. Ele, porém, tem em mente que nada ganhamos nem perdemos,
no tocante à justiça, se comemos ou não. Além do mais, ele não está se
referindo a todo gênero de abstinência, nem a todo gênero de alimento, sem
qualquer discriminação. Pois a indulgência e a extravagância excessivas, em
si mesmas, não granjeiam a aprovação de Deus, enquanto que a sobriedade
e a moderação o agradam. Tenhamos, porém, bem firme em nossa mente que
o reino de Deus, que é espiritual, não depende dessas práticas externas;
portanto, essas coisas neutras [resmedias], em si mesmas, não são de
nenhum valor aos olhos de Deus. Embora ele ponha isso nos lábios de
outrem, quando antecipa seus argumentos, não obstante admite que tal
coisa é verdadeira, pois ela se deriva de seu próprio ensino, o que
mencionamos brevemente no último parágrafo.
9. Tomai cuidado para que vossa liberdade. Ele deixa a liberdade deles
intata, porém lhe impõe restrições, contanto que seu uso não perturbe os
que são fracos. E ele é bem explícito em seu desejo de que os fracos sejam
tratados com consideração, ou, seja, aqueles que não estão ainda bem
fundamentados na piedade. Visto que em geral são vistos com menosprezo
por todos, o Senhor deseja, na verdade ordena, que nos preocupemos com
eles. Paulo, ao mesmo tempo, propõe que os gigantes obstinados, que
procuram agir com tirania e manter nossa liberdade sob seu controle,
podem ser seguramente ignorados;12 porque ninguém precisa ter receio de
ofender aos que não se deixam induzir a pecar pela fraqueza, mas que, ao
mesmo tempo, vivem ansiosamente de espreita a fim de encontrar algo para
censurar. Em breve veremos o que ele tinha em mente sobre pedras de
tropeço.
10. Se alguém te vir. À luz desta afirmação surge mais claramente até
onde foi a liberdade que os coríntios deram a si mesmos, ou, seja, quando
os incrédulos preparavam alguma sorte de festa sagrada em louvor dos
ídolos, não hesitavam13 um mínimo sequer em participar e comer dos
sacrifícios com eles. Paulo agora mostra quais foram os maus resultados
dessa prática.
Substitui “que tens conhecimento” por “aquele que tem conhecimento”.
Na segunda parte, onde se lê, “o que é fraco”, adicionei “não obstante”. Em
minha opinião, tal coisa era necessária a fim de clarificar o pensamento de
Paulo. Porque ele faz uma concessão, como se quisesse dizer: “Admita-se
que de fato tens conhecimento; mas alguém que olha para ti, e que não se
acha equipado com [o mesmo] conhecimento, é estimulado por teu exemplo
a aventurar-se a fazer o mesmo que estás fazendo, quando, na verdade, ele
jamais teria feito um movimento sequer se antes não lhe tivesses
estimulado. Agora, porém, que está tentando imitar alguém, ele acredita que
o exemplo desse alguém o mune de todo e qualquer pretexto, quando a
verdade é que em todo o tempo ele esteve sob o domínio de uma má
consciência acerca do que fazia.” Porquanto ‘fraqueza’, aqui, significa
ignorância, ou uma consciência oscilante. Estou bem ciente da forma como
outros o explicam. Consideram esta ‘pedra de tropeço’ [escândalo] no
sentido de pessoas ignorantes, as quais se deixam influenciar pelo exemplo
de outros, supondo que, agindo assim, estão oferecendo algum gênero de
culto a Deus. Todavia, tal noção está completamente fora de sintonia com a
intenção de Paulo. Pois ele achou falta neles (como já disse), visto que
estavam incitando o ignorante a agir contra sua consciência, o qual se
precipitava contra algo sobre o qual não tinha a menor idéia se era certo ou
não. Induzir significa aqui encorajar – ser confirmado.14 Mas o encorajamento
que não tem por fundamentado a sã doutrina é realmente algo nocivo.
11. E teu irmão perecerá. Notemos bem que, se o leitor fizer alguma
coisa nutrindo dúvida ou contra sua consciência, estará pecando
seriamente, mesmo que os homens tentem convencê-lo de que tal coisa é
algo sem importância. Todo nosso esforço, ao longo de toda nossa vida,
deve ser para satisfazermos à vontade divina. E estar contra essa divina
vontade é não só uma questão que envolve nossas ações externas, mas
também nossos pensamentos, quando nos permitimos agir contra nossa
consciência, mesmo que tal atitude não seja em si mesma errada.15 É só nos
lembrarmos de que estamos nos precipitando de ponta cabeça rumo a uma
hecatombe, toda vez que persistirmos em nosso próprio caminho, em
franca oposição a nossa consciência.
Fora este fato, leio esta afirmação na forma interrogativa: perecerá ele
através de teu conhecimento? É como se ele dissesse: “É provável que teu
conhecimento conduza teu irmão à ruína? Tens conhecimento do que é
certo simplesmente com o objetivo de destruir alguém?” Ele usou o termo
irmão com o fim de condenar os coríntios em seu orgulho e cruel
indiferença para com aqueles de sua consciência. Eis o que pretendia dizer:
“Aquele a quem menosprezas é deveras fraco, mas ele ao mesmo tempo é
teu irmão, porque Deus o adotou. Daí, teu coração se revela impiedoso
quando não demonstra qualquer consideração por teu irmão.” Mas existe
ainda mais força na afirmação subseqüente, ou, seja, que o ignorante ou
fraco também foi redimido pelo sangue de Cristo. Pois não se pode imaginar
nada mais mesquinho do que isto: enquanto Cristo não hesitou em morrer
para que o fraco não viesse a perecer, nós, de outro lado, não nos
importamos um mínimo sequer pela salvação dos homens e mulheres que
foram redimidos por tal preço. Eis um fato memorável, do qual descobrimos
quão preciosa a salvação de nossos irmãos deve ser a nossos olhos, não só
a de todos eles em conjunto, mas também a de cada indivíduo, diante do
fato de que o sangue de Cristo foi vertido por cada um individualmente.
12. E assim, pecando contra os irmãos etc. Pois se a alma de cada
pessoa fraca custa o preço do sangue de Cristo, então aquele que, por causa
de uma porção insignificante de comida, se faz responsável pelo rápido
regresso à morte de um irmão redimido por Cristo, mostra quão desprezível,
a seus olhos, é o sangue de Cristo. Daí, um descaso como este é um franco
insulto a Cristo. Já dissemos como uma consciência fraca pode ser
injuriada, a saber, quando é ela estimulada a proceder erroneamente [v. 10],
de modo que tal pessoa é indiferente e tola demais indo além do direito que
ela pensa ter.
13. Por isso, se a comida leva meu irmão a tropeçar. Com vistas a
reprovar mais severamente sua desdenhosa liberdade, ele assevera que não
devemos meramente nos afastar de uma festa em particular, mas, para não
ofender um irmão, devemos, inclusive, deixar de comer carne para o resto
da vida. Ele não prescreve meramente o que deve ser feito, mas afirma que
ele mesmo dará o exemplo. Naturalmente, a expressão é hiperbólica, pois
dificilmente seria possível que alguém se abstenha de carne durante toda
sua vida se continua a levar vida normal entre outras pessoas.16 Mesmo
assim, ele está dizendo que jamais se valerá da liberdade que possui, se esta
levar o fraco a tropeçar. Porquanto a liberdade só será útil se for controlada
pela regra do amor. Gostaria que uma cuidadosa atenção fosse dada a este
ponto por aqueles que se esforçam por reverter tudo em seu próprio
benefício, de maneira que não permitem que vigore sequer a menor parcela
de seus direitos, caso seja para o bem de um irmão. Também desejo que
atentem bem não só para o que Paulo ensina, mas também para o que ele
põe diante de nós através de seu próprio exemplo. Quão superior a nós é
Paulo! Quando ele, pois, não hesita a sujeitar-se a esse ponto por amor de
seus irmãos, qual de nós não se submeteria às mesmas condições?
Não obstante, por mais difícil que este ensino seja na prática, contudo,
até onde vai seu significado, não existe qualquer dificuldade exceto onde ele
foi corrompido por alguns com glosas irrelevantes, e por outros com
distorções nocivas. Ambos os grupos erram ao interpretar o termo ofender.
Pois tomam ofender no sentido de “incorrer no ódio ou desprazer dos
homens”; ou, o que é quase a mesma coisa, “fazer o que lhes desagrada, ou
não lhes é totalmente agradável”. O contexto, porém, é suficientemente
claro, a saber: que simplesmente significa obstruir o caminho de um irmão
através de um mau exemplo (como um obstáculo que lhe é posto no
caminho) para desviar seu curso, ou propiciar-lhe ocasião para cair.
Portanto, Paulo não está tratando aqui de conservar o favor dos homens,
mas de dar assistência ao fraco para evitar que fracasse, bem como lhe
fornecer diretrizes sábias para que se mantenha na vereda certa. Mas (como
eu já disse), no tocante à primeira classe, ela é constituída de tolos;
enquanto que a segunda classe é constituída de perversos impudentes.
Os primeiros são néscios, os quais raramente permitem que os cristãos
usem algumas das coisas indiferentes, com receio de que venham a
escandalizar aos que são supersticiosos. Dizem eles: “Paulo, nesta
passagem, está proibindo tudo quanto se presta a suscitar escândalo. Ora,
comer carne na sexta-feira é uma maneira segura de provocar escândalo.
Portanto, devemos abster-nos de fazê-lo, não só quando estamos na
presença de pessoas fracas, mas em toda e qualquer semana, sem exceção,
visto que nunca sabemos quando as teremos por perto enquanto
comemos.” Prefiro ignorar a forma errônea como entendem o verbo
escandalizar [Scandalizandi]. Mas estão completamente equivocados em não
dar atenção ao fato de Paulo aqui estar denunciando aos que fazem uso
inadequado de seu conhecimento, quando não deveriam proceder assim
diante dos fracos, as mesmas pessoas a quem não se preocupam em instruir.
Portanto, as causas da reprovação serão removidas se de antemão o ensino
foi ministrado. Além disso, Paulo não nos ordena a calcular se pode haver
ocasião de escândalo naquilo que fazemos, exceto quando o perigo estiver
diante de nossos olhos.
E agora passamos a analisar os componentes do outro grupo. São os
supostos seguidores de Nicodemos,17 os quais sob tal pretexto se
conformam aos perversos, participando de sua idolatria, e não contentes
em justificar o que fazem incorretamente, desejam também cegar os demais
para que não vejam a mesma necessidade. A condenação de sua ímpia
hipocrisia não poderia ser melhor expressa do que Paulo faz aqui, pois ele
mostra claramente que, por meio de seu exemplo, estavam estimulando os
fracos a tomarem parte nos cultos idolátricos, causando sérias ofensas
tanto a Deus quanto aos homens. Entretanto, energicamente se defendem
dessa denúncia, diligiciando-se em mostrar que as superstições devem ser
acalentadas nos corações dos ignorantes, e que devemos pôr-nos em seu
caminho como guias à idolatria, para que uma franca condenação por
idolatria não os escandalize. À luz de tal fato, não lhes darei a honra de
desperdiçar tempo em refutar suas impudentes sugestões! Simplesmente
aconselharia a meus leitores que façam comparação dos dias de Paulo com
os nossos, e decididam por si mesmos se é permissível estar presentes às
missas e outras abominações, dando assim tanta ocasião de escândalo para
os fracos.

1. “Et intraittables.” – “E intoleráveis.”


2. “La crainte de Dieu est le seul et vray fondement d’icelle.” – “O temor de Dues é seu único
fundamento.”
3. “J’ai bien voulu dire ceci.” – “Sinto-me preparado para dizer isso.”
4. “Moyens et instrumens tres-vtiles, tant à la cognoissance de Dieu, qu’à la conduite de la vie
commune.” – “Os meios e instrumentos mais úteis, tanto para o conhecimento de Deus, quanto
para a conduta da vida comum.”
5. “Là regne ignorance et faute de cognoissance de Dieu.” – “Ali reina a ignorância e a deficiência
na familiaridade com Deus.”
6. “Ausquels on a attribue diuinite, et en leur honnerur dressé quelque seruice diuin.” – “A quem
têm atribuído divindade, e têm designado algum serviço divino em sua honra.”
7. A alusão é a Terminus, o deus das fronteiras, de quem Levy faz menção (i.10 e v. 54).
8. “Telles consecrations faites à l’appetit des hommes.” – “Tais consagrações feitas ao sabor do
humor humano.”
9. “Pour ceste raison quando il est parlé de nostre Seigneur, il est dit que nous n’en auons qu’vn,
assauoir Christ.” – “Por esta razão, quando se faz menção de nosso Senhor, declara-se que
temos somente um, isto é, Cristo.”
10. “Les desgrez, estats, et gouuernemens du monde.” – “Posições, condições e governos do
mundo.”
11. “Il n’y a rien plus commun et ordinaire que ce vice.” – “Não há nada que seja mais comum e
ordinário do que esta falta.”
12. “Nous ne nous en devons point soucier, mais les laisser là.” – “Não devemos preocupar-nos
com eles, mas deixá-los para lá.”
13. “Les Corinthiens n’auoyent point de honte.” – “Os coríntios não se envergonhavam.”
14. A palavra original, οικοδομηθήσεται, será edificado, é usada aqui, na opinião de alguns críticos
eruditos, no sentido de encorajado ou animar, e uma passagem paralela é Malaquias 3.15, onde a
palavra hebraica, wbbk, é traduzida na Seputaginta ἀνοικοδομου̑νται, edificar ou animar. Merece nota,
contudo, que o apóstolo no começo do capítulo falou de amor como edificação, enquanto o
conhecimento ensoberbece, e não é provável que ele fizesse uso da mesma palavra ironicamente,
como diríamos: “Esta edificação não seria um caminho errado?”
15. “Quand nous entreprenons quelque chose contre ceste saincte volonte.” – “Quando tentamos
algo em oposição a essa santa vontade.”
16. “S’il demeure en la conuersation et communication auec les autres?” – “Se ele mantém
comunicação e comunhão com outros.”
17. Nosso autor fala da mesma classe de pessoas quando comenta João 7.50.
Capítulo 9

1. Não sou apóstolo? Não sou livre? Não vi a Jesus Cristo nosso Senhor? Não sois vós
minha obra no Senhor?
2. Se não sou apóstolo para outrem, ao menos o sou para vós; porque vós sois o selo de
meu apostolado no Senhor.
3. Esta é minha resposta aos que me julgam:
4. Não temos o direito de comer e beber?
5. Não temos o direito de levar conosco uma irmã como esposa, como fazem os demais
apóstolos, e como os irmãos do Senhor e Cefas?
6. Ou somente eu e Barnabé não temos o direito de abster-nos de trabalhar?
7. Quem em qualquer tempo vai à guerra a suas próprias custas? Quem planta uma
vinha e não come dela? Ou quem apassenta um rebanho e não come do leite do
rebanho?
8. Digo estas coisas como homem? Ou não diz a lei também o mesmo?
9. Porque está escrito na lei de Moisés: Não amordaces a boca do boi que debulha o
grão. Porventura é de bois que Deus se preocupa?
10. Ou não diz ele estas coias por nossa causa? Sim, é por nossa causa que está escrito:
aquele que lavra deve lavrar com esperança; e aquele que debulha com esperança deve
ser participante de sua esperança.
11. Se vos semeamos as coisas espirituais, será demais que de vós colhamos vossas
coisas carnais?
12. Se outros participam deste direito sobre vós, e não temos nós muito mais? Não
obstante, não usamos deste direito; antes suportamos todas as coisas, para não
pormos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo.

1. Non sum liber? non sum Apostolus?1 nonne Iesum Christum Dominum nostrum vidi?
nonne opus meum vos estis in Domino?
2. Si aliis non sum Apostolus, vobis tamen sum: sigillum enim Apostolatus mei vos estis in
Domino.
3. Hæc mea defensio est apud eos, qui in me inquirunt.
4. Numquid non habemus poestatem edendi et bibendi?
5. Numquid potestatem non habemus circumducendæ uxoris sororis, quemadmodum et
reliqui Apostoli, et fratres Domini, et Cephas?
6. An ego solus et Barnabas non habemus potestatem hoc agendi?2
7.Quis militavit suo sumptu unquam? quis plantat vitem, et ex fructu ejus non comedit?
quis pascit gregem, et lacte gregis non vescitur?
8. Num secundum hominem hæc dico?
9. Numquid lex quoque eadem non dicit? in lege enim Mosis (Deut. xxv.4) scriptum est:
non obligabis os bovi trituranti: numquid boves curæ sunt Deo,
10. Vel propter nos omnino dicit? Et sane propter nos scriptum est: quoniam debet sub
spe, qui arat, arare, et qui triturat, sub spe participandi. (Alias: quia debeat sub spe qui arat,
arare, et qui triturat sub spe, spei suæ particeps esse debeat.)
11. Si nos vobis spiritualia seminavimus, magnum, si carnalia vestra metamus?
12. Si alii hanc in vos sumunt potestatem, an non magis nos? atqui non usi sumus
facultate hac: sed omnia sufferimus, ut ne quam ofrensionem demus Evangelio Christi.

1. Não sou livre? Ele ratifica por vias de fato o que dissera
imediatamente antes, ou, seja, que jamais provaria carne em toda sua vida se
isso trouxesse escândalo a um irmão. Ao mesmo tempo deixa bem claro que
não poderia exigir coisa alguma deles o que ele mesmo não tivesse posto em
prática. E não há dúvida de que a justiça natural requer que todo aquele que
impõe alguma obrigação sobre outrem, deve antes sujeitar-se a ela. Todavia,
o mestre cristão deve, acima de todos, disciplinar-se de tal forma que todos
sempre vejam seu ensino ratificado pelo exemplo de sua própria vida
[prática]. Sabemos de nossa própria experiência que o que Paulo estava
pedindo dos coríntios é algo excessivamente difícil, a saber, que por amor a
seus irmãos deveriam restringir o uso da liberdade [potestas] que lhes fora
concedida. Ele não teria ido muito longe com isso caso não tivesse, ele
mesmo, sido de todos o primeiro a dar o exemplo. E deveras ele se
empenhava a agir assim, mas, visto que todos eles não confiaram na força
de uma mera promessa dele sobre o futuro, então lhes narra o que já havia
feito. Ele cita um notável exemplo de sua renúncia da liberdade, da qual em
outras circunstâncias teria usufruído, e ao proceder assim tira dos falsos
apóstolos a chance de criticá-lo. Isso se deu quando ele preferiu ganhar sua
própria subsistência por meio de seus próprios esforços, em vez de buscar
apoio às custas dos coríntios, aos quais oferecera o evangelho.
E agora prossegue discutindo com mais detalhes sobre os direitos que
pertenciam aos apóstolos, ou, seja, de receber alimentos e vestimentas. Uma
das razões por que agia assim foi para que tivessem maior incentivo de
seguir seu exemplo, ao resumir muitas coisas por amor de seus irmãos; pois
na verdade continuavam injustamente irredutíveis sobre as condições de
seus direitos. A outra razão que levou Paulo a abordar esta matéria foi para
pôr a descoberto a injustiça dos que queriam vê-lo em situação embaraçosa,
pois se aproveitavam de algo que jazia além da crítica como justificativa
para desmerecê-lo. Ele faz uso de perguntas retóricas com o fim de imprimir
maior força a seu argumento. A pergunta “Não sou livre?” é de caráter geral.
Quando aduz: “Não sou apóstolo?”, ele restringe a pergunta a uma espécie
de liberdade particular, como se quisesse dizer: “Se sou um apóstolo de
Cristo, por que minha situação deve ser pior que a dos outros?” Assim ele
prova sua liberdade com base no fato de ser apóstolo.
Não vi a Jesus Cristo nosso Senhor? Ele cuida em acrescentar este
ponto para que não viesse a ser de alguma forma considerado inferior ao
restante dos apóstolos. Pois aqueles que eram hostis e invejosos eram
altissonantes em suas reiteradas asseverações da idéia: tudo o que Paulo
possuía do evangelho ele o recebera das mãos de homens [segunda mão],
pois jamais vira a Cristo pessoalmente. É verdade que ele jamais estivera na
companhia de Cristo enquanto este esteve no mundo; mas Cristo lhe
aparecera após sua ressurreição. Ver Cristo em sua glória imortal, porém, é
um maior privilégio do que vê-lo vestido da humildade de sua carne mortal.
Paulo está se referindo a sua visão mencionada no capítulo 15.8 desta
epístola, e a menciona em Atos [caps. 22 e 26]. Nsta questão particular,
portanto, ele procura situar sua vocação além de qualquer disputa, porque,
mesmo que não tenha sido classificado como um dos doze, a escolha que
Cristo fez conhecida desde o céu não era menos autoritativa.
Não sois vós minha obra no Senhor? Em seguida ele assenta seu
apostolado sobre as bases de seu efeito, ou, seja, por meio de sua pregação
do evangelho ele conquista os coríntios para o Senhor. Ora, Paulo apresenta
uma forte defesa de si mesmo ao qualificar a conversão dos coríntios como
sendo obra dele, porquanto ela envolve uma espécie de nova criação da
alma.
Todavia, como isso se adequa ao que afirmou em 1 Coríntios 3.7, ou,
seja: “o que planta não é nada, e o que rega nada é”? Minha resposta é como
segue: visto que Deus é a causa eficiente, enquanto que o homem, com sua
proclamação, é apenas o instrumento, o qual por si só nada é, devemos
sempre referir-nos à eficácia do ministério de tal maneira que todo o louvor
da obra permaneça exclusivamente em Deus. Mas, às vezes, quando se faz
referência ao ministério, o homem é comparado a Deus, e então se torna um
fato que “o que planta não é nada, e o que rega nada é”. Pois o que pode ser
deixado ao homem se ele é, com Deus, participante da obra? Assim a
Escritura reduz os ministros a nada, ao compará-los com Deus; mas quando
se trata apenas do ministério, e não se faz nenhuma comparação com Deus,
sua eficácia é exaltada em termos candentes, como se faz aqui. Pois, em tais
circunstâncias, a questão não é o que o homem pode fazer por si próprio à
parte de Deus, mas, antes, que Deus mesmo, que é o agente, se junta ao
instrumento, e o poder do Espírito é adicionado ao labor do homem. Em
outros termos, a questão não é o que o homem por si só executa com o uso
de seus próprios recursos, mas o que Deus faz através do homem.
2. Se não sou apóstolo para outrem. A essência desta afirmação é que
Paulo deseja estabelecer a autoridade de seu apostolado entre os coríntios,
de modo que o mesmo seja posto acima de qualquer disputa. Diz ele: “Se há
alguém que nutre dúvidas acerca de meu apostolado, que este não seja
vosso caso, porque, visto que plantei vossa igreja por intermédio de meu
ministério, ou não sois crentes, ou sois obrigados a reconhecer-me como
apóstolo.” E para que não viesse a dar a impressão de escudar-se meramente
em palavras, ele os lembra que os fatos falam por si mesmos, pois Deus
pusera seu selo em seu apostolado na forma de fé dos próprios coríntios.
Mas se alguém alega que isso se aplica também aos falsos apóstolos, os
quais ajuntam seguidores a seu redor, respondo que a genuína doutrina está
acima de todas as coisas requeridas, a fim de que alguém tenha uma
confirmação de seu ministério à vista de Deus a partir de seus efeitos.
Portanto, se os impostores conseguem enganar algumas das pessoas
comuns, e até mesmo nações e reinos, com suas mentiras, não há nada aqui
que lhes propicie base com que atiçar seu orgulho. Mas ainda que as
pessoas que não proclamam o evangelho “com sinceridade” (como temos
em Fp 1.17) são às vezes os meios usados para a expansão do reino de
Cristo, Paulo é plenamente justificado em deduzir dos resultados de sua
obra que realmente ele fora enviado por Deus; pois as estruturas da Igreja de
Corinto eram de tal solidez que as bênçãos divinas eram nitidamente
visíveis nela; e tal fato deve ter servido para produzir a confirmação do
ofício de Paulo.
3. Minha defesa. Além do tema principal que ora discute, ele parece ter
tido o propósito subsidiário aqui de pôr um fim nas más interpretações dos
que protestam contra sua vocação, como se ele pertencesse a uma classe
ordinária de ministros. Diz ele: “Estou acostumado a valer-me de vós como
minha defesa, sempre que alguém procura denegrir a honra de meu
apostolado.” O resultado disso é que os coríntios estão prejudicando-se e
agindo contra seus próprios interesses, sempre que deixem de reconhecê-lo
como apóstolo. Porque, se sua fé fosse solene evidência do apostolado de
Paulo, e sua defesa contra os caluniadores, uma coisa não podia ser
subvertida sem que a outra se desmoronasse juntamente.
Enquanto alguns lêem “aqueles que me questionam”, eu traduzi “aqueles
que inquirem sobre minha situação”; porque ele visa aos que faziam de seu
apostolado3 uma questão contestável. Concordo com os escritores latinos
que falam de o acusado ser interrogado4 legalmente; mas o significado da
palavra ἀνακρίνειν, que Paulo usa aqui, parece-me ser melhor realçada por
minha expressão.
4. Não temos o direito de comer ou beber? À luz do que acabara de
dizer, ele conclui que tinha direito de receber deles alimento e vestuário,5
pois comia e bebia, porém não às custas da Igreja. Portanto, esta foi uma das
maneiras pelas quais ele então renunciara sua liberdade; a outra era o fato
de não ter esposa, cuja manutenção seria um peso sobre todos eles. Eusébio
infere destas palavras que Paulo era casado, mas que deixara sua esposa em
algum lugar particular, de modo que ela não constituísse qualquer ônus às
igrejas; mas esta é uma falsa conjetura, pois isso poderia ser facilmente
declarado por uma pessoa solteira.
Ao chamar uma esposa cristã de irmã, Paulo mostra, antes de tudo, quão
forte e amorável [amabilis] deve ser a união entre um esposo e uma esposa
crentes, pois a mesma é mantida por um duplo compromisso. Em seguida
propõe que sejam muito modestos e ponderados em seu trato recíproco. É
também oportuno inferir daqui que o matrimônio é tudo, menos algo
inadequado para os ministros da Igreja. Não menciono agora o fato de os
apóstolos fazerem uso dele, pois logo faremos referência ao exemplo deles.
Paulo, porém, está mostrando aqui, de forma geral, o que a todos era
permitido fazer.
5. Como fazem os demais apóstolos. Em adição à comissão do Senhor,
ele faz referência ao que os outros estavam habituados a fazer. E a fim de
expressar a renúncia de seus direitos de maneira ainda mais clara, avança
passo a passo. Antes de tudo cita o exemplo dos apóstolos. Então
acrescenta: “Mais que isto, os próprios irmãos do Senhor não tiveram
qualquer dificuldade em ter esposa; sim, e o que é mais [comprobatório], o
próprio Pedro, a quem, de comum acordo, é dado o primeiro lugar, admite
para si o mesmo direito.”
Por “irmãos do Senhor” ele quer dizer João e Tiago, que “era reputados
como colunas”, segundo expressou em Gálatas 2.9. E em harmonia com o
costume usual da Escritura, ele chama irmãos aos que estavam relacionados
a ele pelo nascimento.
Quem quer que se proponha encontrar nesta passagem apoio para o
papado estará se fazendo de tolo. Concordamos plenamente que Pedro era
de fato reconhecido como o primeiro entre os apóstolos, pois em toda
companhia de pessoas é sempre necessário que haja alguém que assuma a
liderança sobre os demais. E eles mesmos estavam prontos a respeitar
Pedro, por causa da riqueza de seus excelentes dons; pois é justo que todo
aquele que se sobressaia a outros nos dons da graça de Deus deve ser tido
em elevada consideração e honra. A primazia de Pedro, porém, não era
senhorio; aliás, não havia qualquer comparação entre esta e a autoridade
absoluta de um senhor [dominatio]. Porque, ainda que se distinguisse entre
os demais, ele era refutável em relação a seus colegas. Além disso, uma coisa
é ser particularmente o primeiro na Igreja; e completamente outra é
reivindicar para si a sabedoria ou preeminência sobre o mundo inteiro.
Ainda que concordássemos com tudo isso no tocante a Pedro, o que teria
isso a ver com o papa? Pois assim como Matias sucedeu a Judas [At 1.26],
também algum Judas pode muito bem assumir o lugar de Pedro. Sim, e agora
vemos, após um período de mais de 900 anos entre seis sucessores, ou, pelo
menos, os que se vangloriaram de ser seus sucessores, que nenhum deles é
em nada mais elevado do que Judas. Mas este não é o lugar apropriado para
se discutirem essas coisas (vejam-se minhas Institutas, 4.6).
Devemos notar um último ponto aqui, a saber: que os apóstolos não se
abstinham do matrimônio, como o fazem os clérigos papais que tanto o
detestam, visto que o mesmo não convém à santidade de sua ordem. Mas foi
depois dos apóstolos que os homens elucidaram o notável exemplo de
sabedoria, crendo que os sacerdotes do Senhor são contaminados caso
tenham ato sexual com suas legítimas esposas. Finalmente, foi assim que o
papa Sirício não hesitou em chamar o matrimônio “uma impureza da carne,
na qual ninguém pode agradar a Deus”. O que, pois, acontecerá aos
desafortunados apóstolos, que persistiram nesta impureza até sua morte?
Mas aqui os papistas procuram evadir-se do problema com um laivo sutil de
ladino raciocínio de sua própria maquinação. Pois afirmam que os
apóstolos se privaram do ato sexual, mas que levavam suas esposas para os
assistirem, de modo que pudessem colher os frutos do evangelho; em
outros termos, sua manutenção à expensa de outras pessoas. Como se eles,
na verdade, não pudessem ser sustentados pelas igrejas, senão que
vagassem de um lugar a outro! E ainda como se fosse possível crer que
aquelas esposas percorressem todos os lugares espontaneamente, e,
quando não houvesse mais necessidade, simplesmente com o fim de
viverem na ociosidade à expensa pública! A explicação de Ambrósio, de que
a referência é a esposas de outros homens, os quais seguiam solicitamente
os apóstolos para ouvir o que tinham a ensinar, é excessivamente forçada.
7. Quem vai à guerra a suas próprias custas? Usa-se aqui o presente do
indicativo do verbo usado6 neste sentido: “costuma-se ir à guerra.” Contudo
o pus no pretérito de modo a emitir um som mais abrupto. Ao fazer a
transição, com o uso de três comparações, todas elas extraídas da vida
cotidiana dos homens, Paulo agora afirma que estava plenamente disposto a
viver às custas da Igreja; e faz isso para mostrar que está reivindicando para
si não mais do que requer a consideração humana (humanitas) ordinária. A
primeira é tirada da lei militar, pois os soldados são geralmente assalariados
dos erários públicos. A segunda é derivada do viticultor, pois este planta
uma vinha, não como entretenimento, mas para colher dela seus frutos. A
terceira é extraída da pecuária, pois o pecuarista não trabalha por nada,
senão para desfrutar do leite do rebanho, ou, seja, o produto provê sua
manutenção. Quando a justiça natural estabelece isso como sendo a
maneira mais justa de se proceder, alguém seria tão injusto ao ponto de
negar ao pastor da igreja o suprimento de suas necessidades? Embora
pudesse suceder que alguns servissem como soldados a suas próprias
custas, como, por exemplo, os romanos dos tempos antigos, quando
nenhum tributo era ainda pago e não havia nenhuma taxa,7 isso não milita
contra o que Paulo está dizendo, pois ele está simplesmente tomando seu
argumento do costume comum e universalmente praticado.
8, 9. Digo estas coisas como homem? No caso de alguém recusar-se a
ser convencido, dizendo que é uma questão completamente diferente no
que se refere às coisas de Deus, e por isso Paulo desperdiçou seu tempo
introduzindo tantos símiles, ele agora acrescenta que a mesma coisa é
estabelecida pelo Senhor. Falar segundo o costume dos homens às vezes
significa falar segundo o entendimento pervertido da carne, como em
Romanos 3.5. Aqui, porém, significa lidar somente com aquelas coisas com
as quais os homens estão familiarizados, e as quais só são válidas nos
negócios humanos (como se diz). Mas o fato é que Deus mesmo queria que
os homens recebessem salários como recompensa de seus labores. Paulo
prova isso à luz da proibição divina de amordaçar o boi quando se debulha
o grão; e ao aplicá-lo às circunstâncias como está fazendo, ele diz que Deus
não estava preocupado com bois, e, sim, estava pensando nos homens.
Primeiro, pode-se perguntar por que Paulo faz uma escolha específica
deste texto-prova, quando ilustrações muito mais claras lhe estavam
disponíveis na lei; por exemplo, Deuteronômio 24.15: “Em seu dia lhe darás
seu salário, antes do pôr-do-sol.” Mas, quem prestar mais detida atenção a
esse fato compreenderá que há mais força neste texto, no qual o Senhor nos
pede que cuidemos do gado, porque disso pode-se ver, ao inferir do menor
para o maior, que quando deseja que os animais mudos sejam bem tratados,
ele requer que muito maior eqüidade seja demonstrada pelos homens em
seu trato recíproco. Quando ele diz que “Deus não se preocupa com bois”,
não devemos entendê-lo mal, como se sua intenção fosse deixar os bois fora
da providência divina, quando Deus não negligencia nem mesmo o mais
insignificante pardal [Mt 6.26; 10.29]. Além disso, não devemos cometer o
equívoco de imaginar que Paulo pretenda explicar este mandamento
alegoricamente; pois alguns espíritos de cabeça oca fazem disto uma escusa
para transformar tudo em alegoria, de modo que convertem cães em
homens, árvores em anjos, e convertem toda a Escritura num divertido jogo.
Mas o que Paulo realmente pretende é muito simples: ainda que o Senhor
ordene consideração para com os bois, ele assim o faz não por amor aos
bois, mas, antes, em consideração para com os homens, em favor de quem
os próprios bois foram criados. Portanto, esse tratamento humano
dispensado aos bois deve ser um incentivo, nos sensibilizando a tratar uns
aos outros com consideração e justiça, como Salomão o expressa em
Provérbios 12.10: “O justo atenta para a vida de seus animais, mas o coração
dos perversos é cruel.” O leitor deve entender, pois, que Deus não se
preocupa com bois, no sentido em que os bois eram as únicas criaturas em
sua mente quando promulgou a lei, pois ele estava pensando nos homens e
queria que se habituassem a ser atenciosos em seu modo de agir, de modo a
não defraudar o trabalhador de seu salário. Porque não é o boi que lidera a
aradura e a debulha, e, sim, o homem; e é pelos esforços do homem que o
próprio boi se põe a trabalhar. Portanto, o que adiciona em seguida – “o que
lavra deve lavrar com esperança” etc. – é uma interpretação do mandamento,
como se dissesse que ele se estende, em termos gerais, envolvendo
qualquer gênero de recompensa pelo trabalho.
10. Porque o que lavra deve lavrar com esperança. Há duas redações
neste versículo, mesmo nos manuscritos gregos, porém a que tenho
adotado é mais geralmente aceita: “Aquele que debulha na esperança de
compartilhar de sua esperança.” Ao mesmo tempo, a redação que não repete
esperança duas vezes na segunda sentença parece mais simples e mais
natural.8 Portanto, senti-me livre para escolher, e poderia ter preferência pela
redação nestes termos: “Aquele que lavra deve lavrar com esperança; e
aquele que debulha, com esperança de participar.” Não obstante, visto que
quase todos os manuscritos concordam em seguir a primeira redação, e o
significado não é afetado, não pretendi separar-me dela.
Entretanto, Paulo se põe a explicar o mandamento citado no versículo 9,
e nesta conexão diz que seria injusto que o lavrador exerça seu trabalho de
aradura e de debulha infrutiferamente, senão que todo o objetivo de seu
labor é sua esperança de recolher os frutos. Nesse caso, é correto inferir que
isso se aplica igualmente aos bois; mas a intenção de Paulo é estender-se
mais e fazê-lo aplicável particularmente aos homens. Ora, diz-se que o
lavrador “participa de sua esperança” quando desfruta do que produz, do
produto de sua colheita, o qual certamente esperava enquanto lavrava [a
terra].
11. Se vos semeamos as coisa espirituais. Restava ainda uma área para a
cavilação. Pois alguém poderia alegar que toda obra relativa à vida, neste
mundo, será definitivamente recompensada com alimento e vestuário; que a
aradura e a debulha produzem retorno do qual participam os que realmente
trabalham; mas que o evangelho faz parte de uma categoria completamente
distinta, pois seu fruto é espiritual; e assim o ministro da Palavra, caso
queira receber o fruto que corresponda a seu labor, não deve receber coisa
alguma material. Assim, na hipótese de surgir alguém com tal cavilação, o
argumento de Paulo é do maior para o menor. Poderia ter expresso assim:
“Embora o alimento e o vestuário pertençam a uma categoria distinta da
obra que o ministro realiza, não obstante, qual é o problema se tu estás
pagando por algo que está acima de qualquer preço, com algo muito barato
e desprezível? Pois assim como a alma é, em natureza, muito superior ao
corpo, também a Palavra de Deus pertence a uma classe muito mais elevada
do que o alimento material,9 uma vez que ela é o alimento da alma.”
12. Se outros participam desse direito sobre vós, não temos muito
mais? Uma vez mais ele apresenta defesa de seu próprio direito, referindo-se
ao exemplo de outrem. Pois, por que unicamente a ele se negaria o que
outros reivindicavam como lhes sendo de pleno direito? Porque, visto que
ninguém trabalhara mais intensamente do que ele entre os coríntios,
ninguém era merecedor de uma recompensa maior. Entretanto, ele não narra
o que fizera, e, sim, o que teria feito em virtude de seu direito, se não se
abstivera voluntariamente de usá-lo.
Não obstante, não temos usado desse direito. Ele agora se volve
diretamente para o cerne do assunto, ou, seja, que espontaneamente
renunciara a esse direito, o qual ninguém poderia negar-lhe; e que preferiu
suportar tudo em vez de fazer uso desta liberdade, de maneira a não impedir
o progresso do evangelho. Portanto, ele deseja que os coríntios sigam seu
exemplo e conservem esta meta diante de seus olhos: não colocar nenhum
obstáculo no caminho do evangelho, nem retardar seu progresso; porquanto
eles, de sua parte, tinham feito exatamente a mesma coisa que afirmavam ser
ele quem fazia. E aqui ele confirma o que já havia dito, a saber: que devemos
atentar bem para o que é mais proveitoso.

13. Não sabeis vós que os que ministram as coisas sagradas comem das coisas do
templo, e os que vivem junto do altar recebem sua porção do altar?
14. Assim também ordenou o Senhor aos que proclamam o evangelho, que vivam do
evangelho.
15. Mas de nenhuma dessas coisas tenho usado, e não escrevi isto para que se faça
assim comigo; porque melhor me fora morrer do que alguém me privar desta glória.
16. Porque, se eu prego o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é imposta
esta obrigação; pois ai de mim se não pregar o evangelho.
17. Portanto, se o faço de livre vontade, tenho galardão; porém, se não o faço de livre
vontade, é a responsabilidade de despenseiro que me está confiada.
18. Então, qual é meu galardão? Que ao pregar o evangelho, que o faça sem
remuneração, para não fazer pleno uso de meu direito no evangelho.
19. Porque, embora estivesse livre de todos os homens, eu trouxe a mim mesmo sob a
servidão de todos, para lucrar muito mais.
20. E para com os judeus me tornei um judeu, a fim de ganhar os judeus; para com
aqueles que se acham debaixo da lei,
21. como se vivesse debaixo da lei, não estando eu debaixo da lei; para com os que
vivem sem lei, como se vivesse também sem lei, não estando eu sem lei para com Deus.
Mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem sem lei.
22. Fiz-me fraco para com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me de tudo para com
todos, a fim de, por todos os meios, salvar alguns.

13. Nescitis, quod qui sacris operantur, ex sacrario10 edunt? et qui altari ministrant (ad
verbum: adstant) altaris sunt participes?
14. Sic et Dominus ordinavit, ut qui Evangelium annuntiant, vivant ex Evangelio.
15. Ego autem nullo horum usus sum: neque vero hæc scripsi, ut ita mihi fiat: mihi enim
satius est mori, quam ut gloriam meam quis exinaniat.
16. Nam si evangelizavero, non est quod glorier: quandoquidem necessitas mihi
incumbit, ut vae sit mihi, si non evangelizem.
17. Si enim volens hoc facio, mercedem habeo: si autem invitus, dispensatio mihi est
credita.
18. Quæ igitur mihi merces? ut quum evangelizo, gratuitum impendam Evangelium
Christi, ut non abutar potestate mea in Evangelio.
19. Liber enim quum essem ab omnigus, servum me omnibus feci, ut plures lucrifaciam.
20. Itaque factus sum Iudæis tanquam Iudæus, ut Iudæos lucrifaciam: iis qui sub Lege
erant, tanquam Legi subiectus, ut eos qui erant sub Lege Iucrifaciam;
21. Iis qui sine Lege erant, tanquam exlex, (tametsi non absque Lege, Deo, sed subiectus
Legi Christi,) ut eos qui sine Lege erant lucrifaciam.
22. Factus sum infirmis tanquam infirmus, ut infirmos lucrifaciam: omnibus omnia factus
sum, ut omnino aliquos servem.

13. Não sabeis vós? À parte do tema principal que ora ele discute, Paulo
parece ter gasto muito tempo na discussão deste ponto, visando a
repreender indiretamente os coríntios por sua ignóbil atitude em permitir
que os ministros de Cristo fossem injuriados em relação ao que têm justo
direito de receber. Porque, se Paulo não se abstivesse voluntariamente do
uso de sua liberdade, corria-se o risco de ser obstruído o caminho para o
evangelho. Os falsos apóstolos jamais teriam vencido essa batalha, se a
ingratidão, à qual os coríntios já se inclinavam, não tivesse aberto o
caminho para suas más interpretações. Por certo que os coríntios deveriam
tê-los repelido vigorosamente, porém o que fizeram foi demonstrar sua
extrema credulidade, de modo que já teriam se prontificado a rejeitar o
evangelho, se Paulo tivesse feito uso de seu direito. Tal desdém pelo
evangelho, bem como tal crueldade para com seu apóstolo, merecia uma
reprovação ainda mais severa do que esta; Paulo, porém, encontrou outra
ocasião de tocar no assunto indireta e brandamente, com sua costumeira
modéstia, para que pudesse admoestá-los sem afrontá-los.
Uma vez mais ele faz uso de um símile diferente para provar que não
tirara vantagem de um direito que o Senhor lhe outorgara. E não mais lança
mão de exemplos de outras fontes, porém mostra que o Senhor ordenou que
as igrejas supram seus ministros com os meios de subsistência. Há aqueles
que crêem que realmente há duas comparações neste versículo: sendo a
primeira uma referência aos sacerdotes do Senhor; a outra, porém, sendo
aqueles que ofereciam sacrifícios aos deuses pagãos. Não obstante, sinto-me
inclinado a crer que Paulo, como usualmente faz, usou de diferentes termos
para descrever a mesma coisa. Um argumento derivado do costume dos
pagãos certamente teria sido muito deficitário, pois os proventos dos
sacerdotes não eram destinados às necessidades tais como alimentos e
vestuário, mas a mobílias dispendiosas, a esplendor régio e luxo
extravagante. Estas coisas não teriam nenhum suporte no tema em questão.
Entretanto, não me oponho ao ponto de vista de que Paulo estava fazendo
alusão a diferentes tipos de ministros, pois havia sacerdotes de uma ordem
mais elevada (maioris ordinis), e posteriormente houve os levitas, que eram
seus inferiores, como se sabe muito bem. Mas dificilmente seria este o
ponto.
O ponto é o seguinte: os sacerdotes levitas eram os ministros da igreja de
Israel; e o Senhor ordenara que fossem supridos de seu próprio ministério
com o necessário para a vida. Portanto, o mesmo princípio de justiça
deveria ser observado hoje no caso dos ministros da Igreja Cristã; não
obstante, os ministros da Igreja de Cristã são aqueles que pregam o
evangelho. Este versículo é citado pelos romanistas quando querem provar
que aqueles que têm o estômago vazio devem ser saciados, para que tenham
como efetuar seus sacrifícios; mas prefiro deixar que as próprias crianças
decidam quão ridículo é este raciocínio. Estes homens lançam mão
avidamente de tudo o que a Escritura diz sobre os meios de subsistência
que devem ser atribuídos aos ministros, ou sobre o respeito que se deve ter
por eles, e torcem tudo para que se adéqüe a eles mesmos. Tudo o que
tenho a fazer, portanto, é instar com meus leitores a que prestem atenção no
que Paulo está realmente dizendo. Seu argumento é que os pastores, cujo
trabalho é a pregação do evangelho, devem ser sustentados, visto que
outrora o Senhor prescreveu certa assistência às necessidades dos
sacerdotes, diante do fato de que empregavam seus serviços em prol da
Igreja. Conseqüentemente, devemos nós manter uma distinção entre o
sacerdócio dos tempos de outrora e o de nossos próprios dias. Sob a lei, os
sacerdotes eram designados para o encargo dos sacrifícios, para servirem ao
altar e cuidarem do tabernáculo e depois do templo; em nossos dias, eles
são designados para a proclamação da Palavra e a ministração dos
sacramentos. O Senhor não designou os santos ministros para se ocuparem
de quaisquer sacrifícios; não há altares para que se ponham a oferecer
sacrifícios.
Os que aplicam esta analogia (anagoge), derivada dos sacrifícios, a
alguma outra coisa que não seja a pregação do evangelho, são patentemente
ridículos. E mais que isso, é fácil de inferir deste versículo que todos os
sacerdotes papistas, do principal deles ao membro menos importante, são
roubadores de templos (sacrilegos), pois vorazmente devoram os proventos
destinados aos legítimos ministros, sem executarem qualquer dos deveres
de sua responsabilidade. Pois a quais ministros o apóstolo manda que
sustentem? Devem sustentar os que se devotam à pregação do evangelho.
Que direito têm os sacerdotes papistas de reivindicar para si a remuneração
dos sacerdotes?11 Sua resposta é que entoam [os cânticos] e oferecem
sacrifícios.12 Todavia, Deus não requereu deles nenhuma dessas coisas;
portanto, faz-se evidente que se apropriam dos proventos que pertencem a
outrem.
Finalmente, quando Paulo diz que os sacerdotes levitas eram
“participantes do altar”, e “comiam das coisas do templo”, ele tem em mente,
pelo uso de metonímia, as oferendas que eram apresentadas a Deus. Pois
requeriam todos para si os sacrifícios de animais consagrados; e no caso
dos sacrifícios menos importantes, o pernil dianteiro direito, os rins e a
cauda, bem como os dízimos, as ofertas e as primícias dos frutos. Portanto,
a palavra ἱερόν, no segundo caso,13 é considerada como que significando o
templo.
15. E não escrevi estas coisas. Uma vez que poderia ficar a impressão de
estar solícito a que os coríntios o remunerasse no futuro, ele remove essa
possível suposição e assevera que, longe de pretender alguma coisa,
preferiria morrer do que perder essa glória, ou, seja, que ele prestara seus
serviços aos coríntios gratuitamente. E não há necessidade de perplexidade
ante o fato de ele pôr tal valor neste motivo de gloriar-se, porquanto estava
consciente de que a autoridade do evangelho, em certa medida, dependia
dele. Porque, nesse caso, teria dado aos falsos apóstolos uma chance de se
vangloriarem contra ele. Daí, havia o risco de, para que os coríntios não o
tratassem com desdém, o recebessem com ruidosos aplausos. Por essa
causa, ele preferiu aproveitar a chance para divulgar o evangelho, e não sua
própria vida.
16. Porque, se prego o evangelho. Para mostrar quão importante era
que não fosse privado da razão de gloriar-se, Paulo realça o que teria
sucedido caso não fizesse nada mais do que cumprir fielmente seu
ministério, ou, seja, que ele não teria feito mais do que aquilo que o Senhor
lhe impusera como uma necessidade imprecindível. Ao realçar esse fato, ele
está dizendo que não tinha, nesse aspecto, nenhuma razão para gloriar-se, já
que isto era algo em que não tomara parte.14 Mas alguém poderia perguntar
a que gênero de glória Paulo se refere aqui, pois em 2 Timóteo 1.3 ele declara
orgulhar-se na execução de seus deveres como mestre “com consciência
pura”. Minha resposta é que ele fala de um motivo para gloriar-se com o qual
possa desafiar os falsos apóstolos, quando se punham no posto de
observação com o fim de caluniá-lo, como veremos a seguir, de forma mais
clara.
Todavia, esta é uma afirmação notável. Aprendemos dela, em primeiro
lugar, a natureza da vocação que os ministros recebem, e quão fortemente se
acham unidos a Deus; e, em segundo lugar, o que o ofício de pastor envolve
e o que intrinsecamente inclui. O homem, uma vez chamado, deve pôr
indelevelmente em sua cabeça que ele não é mais livre para retroceder,
quando bem lhe convir, se porventura as frustrações arrebatarem seu
coração, ou as tribulações o esmagarem; porquanto ele está dedicado ao
Senhor e à Igreja, e se acha firmemente amarrado por um laço sagrado, o
qual lhe seria pecaminoso desamarrar.
No tocante ao segundo ponto,15 Paulo diz que uma ameaça de maldição
paira sobre sua cabeça, caso ele não pregasse o evangelho. Por quê? Porque
fora chamado para tal mister, e por essa mesma razão ele é dominado por
uma compulsão que o impele. Como, pois, poderia alguém que assume a
mesma responsabilidade evitar tal constrangimento? Que gênero de
“sucessão apostólica” é esse, no caso do papa e dos bispos mitrados, os
quais demonstram que nada há mais incompatível com seu papel do que a
responsabilidade de ensinar?
17. Se o faço de livre vontade. O galardão, a que me refiro aqui, é o que
o latim chama operae premium, “o prêmio do esforço”,16 e do qual falei antes
como sendo a base da glória. Há quem o explique de outra forma: que um
prêmio é oferecido a todos quantos levam a bom termo seu trabalho fiel e
sinceramente. Eu pessoalmente entendo “o homem que age de sua livre
vontade” como sendo aquele que sente tanto entusiasmo e transparência
em seu desejo de instruir a outrem, que nada mais lhe interessa que não vise
ao serviço da Igreja. Da mesma forma, ele pretende com “de má vontade”,
por outro lado, os que agem por necessidade premente, mas que o fazem de
má vontade visto que isso conflita-se com o que realmente desejava. Pois
sempre sucede que o homem que assume alguma tarefa com zelo e está
também disposto a submeter-se a qualquer situação, a negligência
significaria obstruir a concretização da obra. Assim Paulo, que fazia as
coisas espontaneamente, que não tinha o hábito de ensinar meramente de
maneira formal, fazia uso de tudo que imaginasse ser adequado para
corroborar e promover seu ensino. Este, pois, era seu “prêmio pelo
trabalho” e seu motivo de gloriar-se, ou, seja, que prontamente se privara de
seu direito, pois devotava ao que fazia com espontaneidade e real solicitude.
Mas se o fizer de má vontade, uma dispensação me está confiada. Seja
como for que outros expliquem estas palavras, o verdadeiro significado, a
meu ver, é que o serviço de um homem, que é feito de mau grado e, por
assim dizer, contra sua vontade, é totalmente inaceitável a Deus. Portanto,
sempre que Deus exigir de nós alguma coisa, enganamo-nos a nós mesmos
se imaginamos que o cumprimos satisfatoriamente, quando o fazemos de
mau grado. Pois o Senhor espera que seus servos sejam solícitos e
prazerosos em obedecê-lo, em demonstrar alegria e agindo sem qualquer
hesitação. Em suma, Paulo quer dizer que a única maneira em que faria
justiça a sua vocação seria desempenhando sua função com um coração
voluntário e uma solicitude sem embaraço.
18. Então, qual é meu galardão? Ele infere do precedente que sua base
para gloriar-se é esta: que trabalhou gratuitamente em favor dos coríntios
porque desse fato vem a lume que ele se devotara espontaneamente à tarefa
de ensinar, visto que, como vigorosamente se pusera à remoção de todos os
obstáculos postos no caminho do evangelho, e, não se sentindo satisfeito
com meramente ensinar, usava todos os métodos para que a doutrina dele
[o evangelho] não fosse obstada. Portanto, eis um sumário do que ele diz:
“Tenho me esforçado por pregar o evangelho. Se não o faço, quando está em
mim poder fazê-lo, estou resistindo à vocação divina. Mas não me basta
pregar, a menos que o faça espontaneamente, porque aquele que se
desincumbe da ordem divina com um coração constrangido não está à
altura do desempenho de seu ofício como deveria estar. Ora, se obedeço a
Deus de bom grado, então tenho o direito de gloriar-me. Portanto, era-me
forçoso proclamar o evangelho sem remuneração, para que minha
ostentação fosse justificada.”
Os papistas tentam encontrar neste versículo apoio para as obras de
supererrogação,17 as quais foram inventadas por eles. Dizem: “Paulo cumpriu
os deveres de seu ofício, a saber, proclamando o evangelho, mas também
adicionam algo mais. Portanto ele faz algo além do qual era obrigado a fazer.
E fazem distinção entre o que alguém faz voluntariamente e o que ele deve
fazer.” Minha resposta a tudo isso é que Paulo de fato foi além do que
normalmente era requerido dos pastores em sua vocação, visto que não
recebeu salário, o qual o Senhor permite que os pastores recebam. Mas,
como era parte de seu dever tomar medidas contra toda possível ocasião de
escândalo, tudo o que ele previa e como o via, para que o curso do
evangelho não fosse obstruído caso ele usasse de sua liberdade, embora
isso estivesse fora do curso ordinário, afirma que mesmo nesse caso ele
retribuía a Deus nada mais que o devido. Pois pergunto: “Não é dever de um
bom pastor suprimir aquilo que pode trazer escândalo, até onde isso está
em seu poder?” E novamente pergunto: “O que Paulo faz senão precisamente
isso?” Portanto, não temos o direito de supor que ele dava a Deus algo que
não lhe era devido, visto que só fez o que a exigência de seu ofício
demandava – mesmo que fosse exigência incomum. Não demos mais
ouvidos, pois, a esta perversa fantasia,18 ou, seja, que fazemos reparação
por nossos pecados aos olhos de Deus mediante as obras de
supererrogação.19 E ainda mais, que haja um fim ao próprio uso do termo,
pois o mesmo se acha carregado de um orgulho diabólico.20 Não há dúvida
de que este versículo é erroneamente torcido com o fim de produzir tal
interpretação.
Ora, o erro dos papistas é refutado, de maneira geral, no que segue: Sejam
quais forem as obras compreendidas sob a lei, são falsamente denominadas
supererrogação, como se manifesta nas palavras de Cristo: “Assim também
vós, depois de haverdes feito tudo quanto vos foi ordenado, dizei: Somos
servos inúteis, porque fizemos apenas o que deveríamos fazer” [Lc 17.10].
Ora, concordamos que não há obra alguma boa ou aceitável a Deus que não
esteja incluída na lei de Deus. Ponho esta segunda afirmação da seguinte
maneira: Não há duas classes de boas obras, pois todas elas podem ser
reduzidas ou ao serviço de Deus, ou ao amor. Mas nada pertence ao serviço
de Deus que não esteja incluído neste neste sumário: “Amarás, pois, o
Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma, de todo teu
entendimento e de toda tua força.” E não há também nenhum dever de amor
que não esteja requerido neste preceito: “Amarás teu próximo como a ti
mesmo” [Mc 12.30, 31]. Mas quanto à objeção que é apresentada pelos
papistas, de que não é possível que alguém seja aceitável a Deus sem que
pague os dez por cento de sua renda; e disto inferem que, se o tal vai além e
dá o equivalente à quinta parte, ele está fazendo uma obra de
supererrogação. Não é difícil destruir tal sofisma. Pois o fato de as obras dos
crentes serem aceitas, não é porque são de alguma forma perfeitas, mas é
porque sua imperfeição e inadequabilidade não são levadas em conta contra
eles. Portanto, se fizerem um cêntuplo além do devido, ainda assim não
estariam indo além dos limites do dever que devem [a Deus].
Para não fazer pleno uso de meu direito. Deste fato se torna óbvio que
tirar vantagem de nossa liberdade com o fim de criar escândalo equivale a
licenciosidade irresponsável e abuso da liberdade. Portanto, devemos aderir
à regra de não dar nenhum motivo de escândalo. Este versículo enfatiza o
que mencionei supra, a saber: que Paulo não foi além das exigências
impostas pela própria natureza de seu ofício, porque a liberdade que Deus
lhe concedera não seria de forma alguma mal utilizada.
19, 20. Porque, ainda que estivesse livre de todos. Εκ πάντων, isto é, de
todos, pode ser considerado ou como neutro ou como masculino; como
neutro, sua referência será a coisas; e como masculino, a pessoas. Prefiro o
masculino. Entretanto, ele mostrou apenas por um exemplo particular quão
prudente lhe fora acomodar-se aos fracos. Agora ele adiciona uma afirmação
geral e conclusiva, prosseguindo com exemplos particulares. A afirmação
geral é que, embora ninguém tivesse nenhuma autoridade sobre ele, no
entanto vivia como se estivesse sob o poder do mundo inteiro; e
voluntariamente sujeitou-se aos fracos, a quem ele não devia nenhuma
submissão. Os exemplos particulares são estes: entre os gentios ele vivia
como se fosse gentio; e entre os judeus se portava como um judeu. Em
outros termos: visto que era zeloso na observação das cerimônias religiosas
judaicas, quando vivia entre os judeus ele procurava não ofender os gentios
com a observância delas.
Ele usa a partícula como para notificar que sua liberdade de forma
alguma era prejudicada por essa conta, pois não importa o quanto ele
tivesse que acomodar-se aos homens, uma vez que, aos olhos de Deus,
interiormente ainda permanecia o mesmo. “Fiz de tudo” significa adotar toda
sorte de atitude segundo a exigência da situação, ou assumir diferentes
papéis em consonância com as diferentes maneiras entre os indivíduos.
Quando diz que procedia como se vivesse sem lei e como se estivesse
debaixo da lei, devemos compreender que ele está se referindo somente à lei
cerimonial, porquanto a lei moral era comum tanto a gentios quanto a
judeus; e Paulo não pretendia agradar aos homens até este ponto. Pois este
princípio só se aplica às coisas indiferentes, como já dissemos previamente.
21. Não estando sem lei em relação a Deus. Por meio deste parêntese
Paulo desejava abrandar a aspereza da expressão; porquanto pode parecer
duro, a princípio, ouvi-lo dizer que vivia sem lei. Daí, para que isso não
viesse a assumir um sentido errôneo, ele adiciona, à guisa de correção, que
sempre guardava em sua mente uma lei, a saber: ele era sujeito a Cristo. Com
isso também dá a entender que contra ele se fomentava o ódio, sem
fundamento e de forma irracional, porque era como se convidasse os
homens a viverem vidas desregradas, ao ensinar o livramento da servidão à
lei mosaica. Ele a descreve explicitamente como verdadeiramente “a lei de
Cristo” com o fim de erradicar a injusta reprovação com que os falsos
apóstolos estavam caracterizando o evangelho; pois ele tem em mente que
na doutrina nada é omitido, que pode servir para dar-nos uma norma
perfeita do viver justo.
22. Fiz-me fraco para com os fracos. Agora ele emprega uma vez mais
uma afirmação geral, na qual descreve o gênero de pessoas a quem se
acomodara, e com que propósito. Ele assumiu a forma judaica de vida na
presença de judeus, porém não diante de todos eles; pois muitos deles eram
obstinados, os quais, sob a influência do farisaísmo orgulhoso e malicioso,
gostariam muito de ver a liberdade cristã completamente suprimida. A tais
pessoas ele jamais se submeteria, pois Cristo não quer que nos
preocupemos com pessoas desse gênero. Nosso Senhor disse: “Deixai-os;
são cegos, guias cegos” [Mt 15.14]. Por isso devemos acomodar-nos aos
fracos, porém não aos obstinados.21
Seu propósito era levá-los a Cristo, não para promover seus próprios
interesses, nem granjear a boa vontade deles. A estes dois pontos adiciona-
se um terceiro, ou, seja, que somente nas coisas indiferentes, as quais sob
outros aspectos influem em nossa escolha, ele não se acomodava aos
fracos. Ora, se considerarmos quão grande homem era Paulo, cuja
condescendência chegava a tal ponto, devemos sentir-nos envergonhados,
nós que somos pouco mais que nada em comparação a ele, pois vivemos
tão preocupados conosco mesmos que olhamos para os fracos com
desdém, e não nos dignamos em dar-lhes coisa alguma. Visto, porém, ser
justo que ponhamos a ordem do apóstolo em ação, acomodando-nos aos
fracos, e agir assim em consonância com as coisas indiferentes e com vistas
à edificação deles, os que agem de maneira imprópria, cuja principal
preocupação é conservar suas vidas livres de problemas, e que, por essa
razão, também tomam cuidado em não ofender os outros, os ímpios,
obviamente, e não os fracos. Ademais, os que não distinguem entre as
coisas que são indiferentes e as que são proibidas estão indubitavelmente
errados. Visto que não fazem essa distinção, não hesitam em fazer coisas
que Deus tem proibido com o fim de agradar aos homens. Mas ao premiar o
pecado estão fazendo mau uso do pensamento de Paulo a fim de dissimular
sua própria ímpia hipocrisia. Entretanto, se alguém se lembra destes três
pontos, nos quais toquei de passagem, estará pronto a refutar tais pessoas.
Devemos igualmente prestar atenção à frase que Paulo usa na conclusão.
22 Pois mostra que, ao tentar conquistar a todos, ele almejava a salvação

deles. Entretanto, ele encerra aqui abordando a afirmação geral (a não ser
que o leitor prefira a redação da Vulgata: “para que eu salve a todos”, que é
também encontrada em alguns manuscritos gregos23); pois nesta passagem
ele ainda se restringe: “para que por todos os meios eu possa salvar
alguns.”24 Mas, por causa de a consideração pelos outros, sobre o quê Paulo
fala, ser às vezes menosprezada, até onde os resultados interessam, esta
suavização é muito adequada, ou, seja: embora não estivesse a serviço de
todos, não obstante não renuncia sua preocupação pelo bem-estar de pelo
menos uns poucos.25

23. E eu faço isso em prol do evangelho, para ser também participante dele.
24. Não sabeis vós que os que correm numa competição, todos correm, mas só um
recebe o prêmio? Assim correi também vós para que o alcanceis.
25. E todo aquele que se esforça nos jogos se domina em todas as coisas. Ora, eles o
fazem para receber uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível.
26. Pois eu assim corro, não com incerteza; assim luto, não dando golpes no ar.
27. Mas golpeio meu corpo, e o trago em sujeição, para que, tendo pregado aos outros,
eu mesmo não venha, de alguma maneira, a ser reprovado.

23. Hoc autem facio propter Evangelium, ut particeps eius fiam.


24. An nescitis, quod qui in stadium currunt, omnes quidem currunt, sed unus accipit
præmium? Sic currite, ut comprehendatis.
25. Porro quicunque certat, per omnia temperans est:26 illi quidem igitur, ut perituram
coronam accipiant, nos autem, ut æternam.
26. Ego itaque sic curro, ut non in incertum: sic pugilem ago, non velut aërem feriens:
27. Verum subigo corpus meum, et in servitutem redigo, ne quo modo fiat, ut, quum aliis
prædicaverim, ipse reprobus 27 efficiar.

23. Para ser também participante dele. Visto que os coríntios poderiam
ter em mente que o que Paulo fez era algo que só se aplicava a ele, em razão
do ofício que mantinha, ele argumenta, à luz do que o evangelho visa, que
todos os coríntios são participantes. Pois quando declara que desejava
“tornar-se participante do evangelho”, ele está sugerindo que os que não
procedem como ele são indignos da comunhão do evangelho. Tornar-se
participante do evangelho é receber seus frutos.
24. Não sabeis vós que os que correm numa competição. Ele lançou a
doutrina, e agora, querendo imprimi-la nas mentes dos coríntios, adiciona
uma exortação. Em suma, ele afirma que o que alcançaram até aqui não seria
nada, a menos que perseverassem firmes, visto não ser suficiente que, uma
vez iniciados no caminho do Senhor, não envidarem todo esforço para
atingir a meta. Isto corresponde à palavra de Cristo em Mateus 10.22:
“Aquele que perseverar até o fim, esse mesmo será salvo.”
E deveras ele toma por empréstimo um símile da pista de corrida.28 Pois
assim como muitos na verdade entram na arena, mas apenas aquele que
primeiro alcança o alvo recebe o louro da vitória, assim aquele que uma vez
se incluiu na competição a que o evangelho nos convoca, não tem motivo
para estar satisfeito consigo mesmo, a menos que prossiga até a morte.
Nossa luta, porém, não é como a do corredor: em sua corrida só um – aquele
que corre mais velozmente que os demais – é o vencedor e recebe o
prêmio;29 nossa condição, porém, é superior neste aspecto: pode haver
muitos ao mesmo tempo.30 Pois tudo o que Deus requer de nós é que
prossigamos incansavelmente ao longo de todo o caminho em direção ao
alvo.31 Assim, uma pessoa não invade o caminho da outra, mas, antes, os
que tomam parte na corrida cristã fazem tudo a seu alcance para estender a
mão de forma recíproca. Paulo apresenta a mesma idéia, de maneira distinta,
em 2 Timóteo 2.5: “Um atleta não é coroado se não competir segundo as
normas.”
Assim correi também vós. Aqui temos a aplicação da comparação. Não é
bastante que tenhamos iniciado a corrida, se não continuarmos a correr ao
longo de toda nossa vida. Porquanto nossa vida é semelhante a uma pista
de corrida. Daí, de nada nos adiantará se pararmos cansados depois de
algum tempo; por exemplo, meia jornada, porque nada mais senão a morte
marca o final da competição.
A partícula ὅυτω, assim, pode ser considerada de duas formas:
Crisóstomo a junta ao que vem antes, ou, seja: “Como os corredores não
param de correr até que tenham alcançado a linha de chegada, assim deveis
perseverar, e não deveis parar de correr durante vossa vida.” Entretanto, a
correspondência se aplica bem ao que vem a seguir: “Deveis correr, não de
maneira que interrompais em meio à competição, mas de tal maneira que
obtenhais o prêmio.”
Não tenho nada a dizer sobre o termo estádio (pista de corrida) e sobre
os diferentes tipos de corridas,32 visto que informação sobre eles podem ser
encontrada nos dicionários; e comumente se sabe que algumas corridas
eram em montarias e outras, a pé. Além do mais, não há muita necessidade
de se entender o que Paulo quis dizer sobre essas coisas.
25. E todo aquele que se esforça nos jogos. À luz do fato de que
estivera a encorajá-los a perseverarem, ele tinha que fazer ainda mais claro
sobre como perseverariam. Ele agora procede usando o símile de pugilistas,
não de uma forma radical,33 mas só até onde o problema com que ele está a
tratar o exigia, a saber, o problema de até que ponto devem penetrar nas
fraqueza de seus irmãos. Paulo mesmo se restringe a isso. Mas ele argúi do
menor para o maior, dizendo que devemos envergonhar-nos de nós mesmos
se nos achamos relutantes em resumir nosso direito, quando os pugilistas,
comendo seu coliphium34 e uma pequena porção dele, certamente não com
excesso, se dispõem a renunciar todas e quaisquer iguarias, de modo a
poderem sentir-se de todo preparados para a luta. E fazem isso por amor a
uma coroa corruptível. Não obstante, se dão tanta importância a uma coroa
de ramos, que murcha quase que instantaneamente, não deveríamos nós
pôr todo nosso mais intenso apreço numa coroa eterna? Portanto, não
sintamos nenhuma dificuldade em renunciar alguma parcela de nossos
direitos. Sabe-se muito bem que os atletas viviam tão satisfeitos com a mais
frugal dieta, que seu modo de vida se tornara proverbial.
26. Por isso eu assim corro. Paulo se volta para si mesmo a fim de, ao
chamar a atenção para seu próprio exemplo, dar mais peso a sua doutrina.
Há quem pense que o que ele diz aqui se refere à plena segurança da
esperança, como se dissesse: “Não corro em vão, nem estou correndo o
risco de ser visto como insensato no tocante à minha obra, porque tenho a
promessa do Senhor, e esta nunca falha.” No entanto, sou inclinado a crer
que ele desejava orientar os crentes em seu caminho, rumo a seu destino,
para que não perambulassem a esmo. Ele poderia ter dito assim: “O Senhor
nos mantém ocupados aqui a correr e a lutar, mas ele coloca um alvo diante
de nós rumo ao qual devemos correr; e estabelece normas confiáveis para o
pugilismo a fim de não nos cansarmos sem nenhum objetivo.” Porque ele
combina ambas as comparações que já usou. Diz: “Eu sei para onde estou
correndo, e estou ansioso como um pugilista experiente que não quer errar
seu golpe.” Estas coisas devem incitar o coração do cristão, injetando-lhe
coragem para tomar posse, com o maior entusiasmo, de todos os deveres da
fé cristã;35 pois é algo imensurável não nos deixarmos distrair, na
ignorância, por coisas que não nos levam a parte alguma.
27. Mas golpeio meu corpo.36 Budæus traduz: Observo (mantenho-me
sob vigilância). Eu, porém, entendo que aqui o apóstolo faz uso do verbo
ὑπωπιάζειν.37 no sentido de “persistir no trabalho como um escravo”.38 Pois
ele está nos contando que não tem sido indulgente consigo mesmo, mas
que tem reprimido seus desejos. Isso não é possível a menos que se tenha o
corpo sob controle, e que mantenha seus desejos refreados, de modo que,
como se faz a um corcel selvagem e indomável, seja ele reprimido e
acostumado a obedecer. Os monges de outrora, querendo sujeitar-se a esta
norma, engendraram muitos exercícios disciplinares; pois costumavam
dormir em bancos; obrigavam-se a manter excessivamente longas noites de
vigília; e em seu modo de vida, guardavam-se limpos de toda luxúria.
Todavia, omitiam o ponto principal, e não compreendiam a razão por que o
apóstolo nos diz que fizéssemos isso, visto que tinham outro preceito em
mente: “e nada disponhais para a carne, no tocante a suas concupiscências”
[Rm 13.14]. Porquanto o que Paulo diz em 1 Timóteo 4.8 sempre resulta bem,
a saber: que “o exercício físico para pouco é proveitoso”. Não obstante,
tratemos nosso corpo como se ele fosse um escravo, sim, a fim de não nos
subtrairmos dos deveres da religião em razão de sua inerente
concupiscência, porém façamos isso por uma outra razão ainda mais forte,
ou, seja, não provocarmos sofrimento nem escândalos a outrem, cedendo a
seus impulsos.
Para que, tendo pregado a outros. Há quem explique estas palavras da
seguinte maneira: “A fim de que, tendo ensinado a outrem fielmente e bem,
não incorra eu na condenação de Deus por levar uma vida nociva.” Mas a
leitura será melhor se se considerar esta frase como uma referência a sua
relação com outrem, da seguinte forma: “Minha vida deve gerar alguma sorte
de exemplo para outrem. Portanto, esforço-me para viver de tal maneira que
meu caráter e conduta não contradigam ao que eu ensino, e que, portanto,
não venha eu a negligenciar as próprias coisas que exijo dos outros, e com
isso envolvendo-me em grande infortúnio e trazendo graves ofensas a meus
irmãos. Esta frase pode também ser acrescida àquela que ele expressou
numa afirmação prévia, com este resultado: “Para que não venha eu a ser
privado do evangelho, do qual outros vieram a participar através de meu
trabalho.

1. “Ne suis-ie point Apostre? ne suis-ie point en liberte.” – “Não sou eu um apóstolo? Não sou eu
livre?” “A ordem das palavras na versão latina de Calvino é a ordem na qual são lidas na Vulgata,
Alex e em alguns manuscritos e versões antigas, e nos quais estão citadas por Orígines,
Tertuliano e Agostinho. ... O latim retém a ordem primitiva; lemos, pois, na versão de Wiclif: ‘Se
eu não sou livre? eu não apóstolo?’” – Penn.
2. “De ne trauailler point.” – “Restringir de trabalhar.”
3. “Ceux qui vouloyent mettre en debat son Apostolat, et le contreroller, commer on dit.” – “Os
que eram desejosos de levar seu apostolado à controvérsia, e à bancarrota, como dizem.”
4. A expressão é usada por Suetônio (Aug. 33). Reum ita fertur interrogâsse: Ele informa que o
criminoso era interrogado dessa maneira.
5. “Combien qu’il n’en ait pas usé.” – “Ainda que ele não tivesse feito uso dele.”
6. O verbo é στρατεύεται, ir a uma guerra, ou servir como soldado.
7. Os solados romanos não recebiam nenhum pagamento (stipendium) do erário público até 347
anos após a fundação de Roma (veja-se Liv. iv.59 e v.7).
8. A redação comum é καί ὁ ἀλοω̑ν τη̑ς ἐλπίδος αὐτου̑ μετέχειν επ ̓ ελπίδι: e aquele que debulha em
esperança seria um participante de sua esperança. Na outra redação, as palavras επ ̓ ελπίδι (em
esperança) são omitidas. A última é a redação em cinco manuscritos antigos, e a última, em
três. A redação comum é construída por Bloomfield, como segue: καὶ ὁ ἀλοω̑ν (ὀφείλει ἀλο÷ν) επ ̓
ἐλπίδι (του̑) μετέχειν τη̑ς ελπίδος αὐτου̑. “E aquele que debulha deve debulhar na esperança de
participar de (os frutos de) sua esperança.”
9. “Et le vestement.” – “E vestindo.”
10. “Des choses qui sont sacrifiees.” – “Das coisas que são sacrificadas.”
11. “De quel droict s’usurpent ces ventres paresseux le reuenu des benefices, qu’ils appelent?” –
“Por qual direito esses ventres preguiçosos reivindicam para si o provento dos benefícios, como
o chamam?”
12. “Pource qu’ils gringotent des messes et anniuersaires.” – “Porque cantarolam uma música
nas missas e nos aniversários.”
13. No original, as palavras τα ἱερὰ e του̑ ἱερου̑ ocorrem na mesma sentença, e a intenção de nosso
autor é que, no segundo caso, o substantivo ἱερον denota o templo.
14. “Veu qu’il y estoit contraint, et ne pouuoit euiter telle necessite.” – “Ainda que fosse
constrangido a isto, e não pudesse evitar tal necessidade.”
15. Isto é, o dever que envolve o ofício pastoral.
16. “Ce que nous appelons chef-d’œuure.” – “O que chamamos uma obra-prima.” A frase
idiomática, operæ pretium, é extraordinariamente empregada pelos escritores clássicos no
sentido de algo de grande importância ou vale a pena. Assim, Livy, em seu Prefácio, diz: “facturusne
operæ pretium sim.” – “Se estou para fazer uma obra de importância”; e Cícero (Cat. iv.8) diz:
“Operæ pretium est.” – “Vale a pena.” Calvino, contudo, parece fazer uso da frase aqui num
sentido mais perto de sua significação original e literal – recompensa pelo labor –, o que
amplamente recompensava a renúncia que ele tinha exercido – consistindo na satisfação
peculiar propiciando sua mente a refletir sobre a parte que ele tomara. O termo usado por ele
em sua tradução francesa – chef-d’œjuure [obra-prima] corresponde à frase latina, operæ pretium,
neste aspecto, que uma obra-prima é uma obra que o artista ou operário bem sucedido avalia, e
na qual ele sente satisfação, como amplamente recompensando as dores suportadas.
17. “C’est à dire, d’abondant.” – “Equivale dizer, além do mais.”
18. “Ceste pervedrse et mal-heureuse imagination.” – “Essa perversa e miserável fantasia.”
19. “C’est à dire, lesquelles nous faisons de superabondant.” – “Equivale dizer, o que fazemos
como extra.”
20. Nosso autor se expressa em termos semelhantes em outra parte quanto à palavra mérito.
21. O leitor encontrará esta afirmação mais plenamente elaborada na Harmonia vol. ii. p. 258.
22. “Afin que totalement i’en sauue quelques uns.” – “Para que por todos os meios alguns se
salvem.”
23. A tradução da Vulgata, indicada por Calvino, é: Ut omnes servarem (Para que eu possa salvar a
todos). Quatro manuscritos gregos antigos trazem ἵνα παντας σώσω – Para que eu possa salvar a
todos. A mesma tradução é dada na versão Siríaca, e é adotada por Mill, Benzelius e Pearce. Na
versão de Wiclif (1380), a tradução é: “Em favor de todos os homens tudo tenho feito para salvar
a todos.” Na versão Rheims (1582), a tradução é: “Para que eu possa salvar a todos.”
24. “Afin que ie seuue tous.” – “Para que eu possa salvar a todos.”
25. “Le profit et salut pour le moins de quelques uns.” – “O proveito e o bem-estar de pelo menos
alguns indivíduos.”
26. “Il s’abstient en toutes choses, ou – vit entierement par regime.” – “Ele se abstém em todas
as coisas, ou ele vive inteiramente de acordo com a norma prescrita.”
27. “Reprouué, ou, trouué non receuable.” – “Réprobos, ou não achado admissível.”
28. “De ceux qui courent à la lice pour quelque pris.” – “Daqueles que correm na pista de corrida
em busca de algum prêmio.”
29. “Qui a mieux couru que les autres, et est le premier venu au but.” – “Quem correu melhor que
os demais e chegou primeiro ao alvo.”
30. “Il y en peut auoir plusieurs de nous qui soyent couronnez.” – “Pode haver muitos de nós que
são coroados.”
31. “Que nous ne perdions point courage, mais que perseuerions constamment justques à la
fin.” – “Cujo coração não desfalece, mas persevera com toda firmeza até o fim.”
32. “Qui estoyent anciennement en vsage.” – “Que antigamente estavam em uso.”
33. “Non pas qu’il vuerille appliquer la similitude en tout et par tout.” – “Não que ele pretendesse
aplicar a similitude completamente.”
34. “C’estoit vne sorte de pain propre pour entretenir et augmenter la force, duquel vsoyent
ordinairement les lutteurs et telles gens. Les Grecs le nommoyent coliphium.” – “Esse era um
tipo de pão apropriado para manter e aumentar as forças, cujo uso comumente era feito pelos
lutadores e pessoas desse gênero. Os gregos o chamam coliphium.” O termo coliphium é
mantido por ser composto de κω̑λον, um membro, e ιφι, fortemente – um meio de fortalecer os
membros. É definido por Tymme, em sua tradução de Calvino sobre os Coríntios, como sendo “um
tipo de pão que os lutadores usavam outrora para comer e sentir-se mais fortes.”
35. “Toutes choses concernantes la piete et crainte de Dieu.” – “Todas as coisas que se
relacionam com a piedade e o temor de Deus.”
36. Mais ie matte et reduy en seruitude mon corps.” – “Mas eu mortifico meu corpo, e o trago em
servidão.”
37. Seu sentido original é golpear embaixo do olho, sendo composto de ὑπό (debaixo de) e ὤψ (o
olho), deixar roxo de pancada, como os lutadores costumavam fazer com a antiga manopla dos
atletas. (Ver Arist. Pac. 541.)
38. “Manier rudement et d’une façon seruile.” – “Manejar abruptamente e de uma maneira
servil.”
Capítulo 10

1. Além do mais, irmãos, não gostaria que fôsseis ignorantes quanto ao fato de que
todos nossos pais estiveram sob a nuvem, e todos passaram pelo mar;
2. e foram todos batizados em Moisés, na nuvem e no mar;
3. e todos comeram do mesmo alimento espiritual;
4. e todos beberam da mesma água espiritual; porque bebiam daquela Rocha espiritual
que os seguia; e aquela Rocha era Cristo.
5.Mas Deus não se agradou de muitos deles; por isso foram derrotados no deserto.

1. Nolo autem vos ignorare, fratres, quod patres nostri omnes sub nube fuerunt, et
omnes mare transierunt.
2. Et omnes in Mose fuerunt baptizati in nube et in mari,
3. Et omnes eandem escam spiritualem manducarunt,
4. Et omnes eundem biberunt spiritualem potum: bibebant autem e sprituali, quae eos
consequebatur, petra. Petra, autem, erat Christus.
5. Verum complures eorum grati non fuerant Deo: prostrati enim fuerunt in deserto.

O que ele previamente ensinou pelo uso de duas similitudes, agora


confirma pelo uso de dois exemplos. Os coríntios se mostraram dissolutos,
e se vangloriavam, como se fossem veteranos1 ou, pelo menos, tivessem
concluído sua trajetória, quando tinham apenas se afastado do ponto de
partida. Ele reprime essa fútil exultação e confiança da seguinte maneira:
“Vendo eu que estais tranqüilamente tomando vosso caso no próprio
nascedouro de vosso curso, não gostaria que fôsseis ignorantes acerca do
que sobreveio ao povo de Israel em decorrência disso mesmo, para que seu
exemplo vos desperte.” Não obstante, como, em exemplos que são
aduzidos, qualquer ponto de diferença destrói a força da comparação, Paulo
afirma que não há tal similaridade entre nós e os israelitas, ao ponto de fazer
nossa condição diferente da deles. Portanto, tendo em vista ameaçar os
coríntios com a mesma vingança que haviam enfrentado, ele começa nestes
termos: “Não vos vanglorieis de algum privilégio especial, como se vossa
situação em relação a Deus fosse melhor do que a deles.” Pois eles
desfrutavam dos mesmos benefícios que desfrutamos hoje. A Igreja de Deus
subsistia em seu seio, como é nosso caso hoje. Eles tinham os mesmos
sacramentos que lhes testemunhavam da graça de Deus.2 Mas, ao usarem
mal seus dons, então não puderam escapar do juízo divino.3 Portanto,
deveis encher-vos de temor, porquanto a mesma ameaça paira sobre vós.
Judas se utilizou do mesmo argumento em sua carta [Jd 5].
1. Estiveram todos sob a nuvem. A intenção do apóstolo é demonstrar
que os israelitas eram o povo de Deus, justamente como nós o somos, com
o fim de levar-nos a compreender que não escaparemos impunemente das
mãos divinas, as mesmas que os castigaram4 com dura severidade. A
questão é a seguinte: se Deus não os poupou, então também não nos
poupará, porquanto nossa situação e a deles são uma e a mesma. Paulo
prova esta similaridade partindo do fato de que haviam sido assistidos com
os mesmos sinais da graça de Deus. Porquanto os Sacramentos são
emblemas por meio dos quais a Igreja de Deus é distinguida. Ele trata
primeiro do batismo, e ensina que a nuvem, que protegia os israelitas do
calor do sol no deserto, e os guiava em sua marcha, assim como o fizera na
travessia do mar, realmente era como se fosse um batismo em relação a eles.
Ele diz que um sacramento se fazia presente no maná e na água que fluiu da
rocha, o qual correspondia à Santa Ceia.
Foram, diz ele, batizados em Moisés, isto é, sob o ministério ou diretriz
de Moisés. Pois tomo a partícula εἰς como sendo usada no lugar de ἐν,
concordando com o uso comum da Escritura, porque somos certamente
batizados no nome de Cristo, e não de algum mero homem, como ele já
expressou em 1 Coríntios 1.13, e isso por duas razões. São elas: primeiro,
porque pelo batismo somos iniciados5 na doutrina unicamente de Cristo; e,
segundo, porque somente seu nome é invocado, visto que o batismo está
fundamentado somente em sua influência. Foram, portanto, batizados em
Moisés, isto é, sob sua liderança ou ministério, como já foi afirmado. Como?
Na nuvem e no mar. “Foram, pois, batizados duas vezes”, alguém dirá.
Respondo que há dois sinais mencionados, os quais, contudo, equivalem
um só batismo, correspondente ao nosso.
Aqui, entretanto, suscita-se uma questão ainda mais difícil. Porque não
há dúvida de que os benefícios destes dons, sobre os quais Paulo faz
referência, foram temporários.6 Pois a nuvem os protegia do calor do sol e
mostrava-lhes o curso a seguir, e estes são benefícios físicos, tendo a ver
com esta presente vida. Da mesma sorte, a travessia do mar significava seu
escape da crueldade de faraó e seu livramento do iminente perigo de morte.
No entanto, o benefício de nosso batismo é espiritual. Por que, pois, Paulo
recorre a sacramentos de benefícios terrenos e busca neles algum mistério7
espiritual? Minha resposta é que ele tinha boas razões para buscar algo além
das vantagens físicas nos milagres desse gênero. Porque, ainda que Deus
estivesse disposto a socorrer seu povo relativamente à vida neste mundo,
contudo seu principal propósito era dar testemunho de si mesmo e revelar-
se como seu Deus, e a salvação eterna estava implícita neste fato.
A nuvem, em vários exemplos,8 é chamada o símbolo de sua presença.
Daí, ao declarar que, por meio da nuvem, Deus estava presente com eles, na
qualidade de seu povo eleito, não resta dúvida alguma de que eles tinham na
nuvem não só uma bênção terrena, mas também um emblema de vida
espiritual. Assim, a nuvem constituía um duplo propósito; e o mesmo se
deu em relação à travessia do mar. Visto que um caminho se lhes abriu pelo
meio do mar, de modo que escaparam das mãos de faraó, a única razão para
isso foi o fato de que o Senhor, tendo-os uma vez tomado sob seu cuidado e
proteção, determinou guardá-los de todas as formas. Portanto, deduziram
desse fato que eles se tornaram objetos do cuidado divino, e que Deus
estava preocupado com a salvação deles. Esta é também a razão da Páscoa, a
qual foi instituída para conservar a memória de seu livramento, e que,
concomitantemente, era, não obstante, um sacramento de Cristo. Como
assim? Porque Deus, sob um benefício temporário, se revelara como
Salvador. Aquele que atentar bem para estas coisas não verá absurdo algum
no que Paulo diz. Não só isso, mas perceberá, tanto na substância quanto na
forma visível, a mais estreita harmonia entre o batismo dos judeus e o
nosso.
Entretanto, alguém poderia apresentar mais uma objeção, dizendo que
não há sequer uma palavra sobre isso em todas as Escrituras. 9Admito tal
fato, porém não há dúvida de que, agindo por intermédio de seu Espírito,
Deus costuma ser moderado nas referências explícitas. Por exemplo,
percebemos tal fato no caso da serpente de bronze. E Cristo mesmo testifica
que este fato constituía um sacramento espiritual [Jo 3.14]. Todavia, não
encontramos nenhuma outra menção disso.10 Mas, a seu próprio modo, o
Senhor revelou o segredo que, de outra forma, permaneceria oculto dos
crentes de todas as épocas.
3. O mesmo alimento espiritual. Ele agora faz menção do outro
sacramento, o qual corresponde à Santa Ceia do Senhor. “O maná”, diz ele, “e
a água que fluiu da rocha, serviram não meramente para o alimento dos
corpos, mas também para a nutrição das almas.” É verdade que ambos foram
meios para a subsistência do corpo, mas isso não impede que sirvam
também a outro propósito. Portanto, embora o Senhor aliviasse as
necessidades corporais, ele ao mesmo tempo fez provisão para o eterno
bem-estar das almas. Estes dois aspectos são facilmente conciliados, não
suscitassem dificuldade alguma nas palavras de Cristo em João 6.31-65, onde
ele discute sobre o maná como alimento perecível para o estômago, e o
contrasta com o genuíno alimento da alma. Suas palavras parecem diferir um
bocado do que diz Paulo aqui. Este problema pode ser facilmente
solucionado. Quando os escritores da Escritura tratam dos Sacramentos, ou
de outros elementos neste mesmo sentido, às vezes eles falam de acordo
com a capacidade dos ouvintes, e nesse caso diz respeito não à natureza da
coisa em si, mas à idéia equivocada dos ouvintes. Assim, Paulo nem sempre
fala da circuncisão da mesma forma, pois quando tem em vista a designação
divina nela, ele diz que ela era um selo da justiça da fé [Rm 4.11]; mas
quando está discutindo com aqueles que se gloriavam no mero sinal
externo, e depositavam nela uma equivocada confiança para a salvação, ele
diz que ela é um emblema de condenação, porque por meio dela os homens
se obrigam a guardar toda a lei [Gl 5.2, 3]. Ele está tratando apenas do que os
falsos apóstolos pensavam dela, pois ele não se preocupa em argumentar
contra a instituição inalterável de Deus, mas contra a perversão que eles
fizeram da verdade. Assim, quando a multidão carnal preferiu Moisés a
Cristo, em razão de haver ele alimentado o povo no deserto ao longo de
quarenta anos, e estimavam o maná meramente como alimento para o
estômago, não visualizando nada mais além disso. Cristo, em sua réplica
dirigida a eles, não explica o significado do maná, senão que, ignorando
tudo mais, faz com que aquilo que tem a dizer se adeqúe à mentalidade de
seus ouvintes. Ele poderia ter dito mais ou menos assim: “Vós tendes
Moisés em elevado conceito, ao ponto de considerá-lo como o mais
renomado dos profetas, só porque ele saciou o estômago de vossos pais no
deserto. Por isso tendes esta única objeção contra mim, a saber: nada sou a
vossos olhos, só porque não vos supri com abundância de alimento para
vosso estômago. Não obstante, se considerais o alimento perecível como
algo tão valioso, o que tendes, pois, a dizer sobre o pão que produz vida e
nutre vossas almas para a vida eterna?” Vemos, pois, que o Senhor fala ali
não segundo a natureza da coisa em si, mas, antes, segundo a compreensão
de seus ouvintes.11 Paulo, em contrapartida, aqui visualiza não a ordenança
de Deus, mas o abuso dela pelos ímpios.
Além do mais, quando diz que os pais comeram do mesmo pão espiritual,
ele mostra, primeiramente, qual é a virtude e a eficácia dos Sacramentos; e,
em segundo lugar, declara que os antigos sacramentos da lei tinham a
mesma virtude que os nossos hoje têm. Porque, se o maná fosse alimento
espiritual, segue-se que o que nos é exibido nos Sacramentos não são meras
formas externas [figuras nudas], senão que a realidade figurada é genuína e
concomitantemente apresentada [rem figuratam simul vere dari]. Pois Deus
não praticaria tamanha fraudulência ao ponto de nutrir-nos com vãs
aparências [figmentis].12 Um sinal [signum] é realmente um sinal, e retém sua
própria substância [substantiam]. Mas, como os papistas, por um lado, são
ridículos sonhadores de alguma sorte de transformação, assim também, por
outro lado, não temos o direito de separar da figura a realidade [veritatem et
figuram], as quais foi Deus quem uniu. Os papistas confundem a realidade
com o sinal externo [rem et signum]; os incrédulos, tais como Schwenkfeld e
homens de sua estirpe, separam os sinais das realidades [signa a rebus].
Preservemos uma posição mediana,13 ou, seja: mantenhamos a conexão
designada pelo Senhor, porém, ao mesmo tempo, não ignoremos a distinção
existente entre elas, não cometendo o erro de transferir para uma o que
pertence à outra.
Temos ainda que tratar do segundo ponto, a saber: a semelhança
existente entre os antigos sinais e os nossos. É notório o dogma dos
escolásticos, ou, seja, que os “sacramentos da antiga lei simplesmente
figuravam [figurasse] a graça, enquanto que os nossos a conferem
[conferre]”. Esta passagem se presta mais para refutar tal erro. Pois ela prova
que a realidade do Sacramento [rem sacramenti exhibitam] era comunicada
tanto ao antigo povo [de Deus] quanto o é a nós agora. Portanto, é uma
inominável perversidade presumirem os homens da Sorbone que os santos
pais, sob a lei, possuíam os sinais destituídos de realidade. Francamente,
estou disposto a concordar em que a eficácia dos sinais nos é
imediatamente mais rica e mais abundante, desde a encarnação de Cristo, do
que o era para os pais sob a lei. Assim, a diferença entre nós e eles é apenas
de grau, ou, segundo a expressão popular, um “mais ou menos”, porque, o
que eles possuíam em pequena medida, nós o possuímos mais plenamente
[plenius]. Mas a questão não é propriamente que possuíam meros
emblemas, enquanto nós desfrutamos da realidade.14
Há quem explique estas palavras como se eles,15 reunidos, comessem o
mesmo pão, e não significam que eles devam ser comparados a nós. Tais
intérpretes, porém, não prestam a devida atenção no intuito do apóstolo.
Pois a alusão que ele está fazendo aqui é justamente esta: o antigo povo era
sustentado com os mesmos benefícios que nós, e participava dos mesmos
Sacramentos, de modo que não devemos concluir que, confiando em algum
gênero de privilégio especial, venhamos a menosprezar o castigo que eles
tiveram que suportar. Não obstante, não pretendo questionar com alguém
sobre isso; estou simplesmente declarando meu ponto de vista pessoal.
Contudo estou bem ciente do atraente raciocínio apresentado por alguns
que aceitam a explicação oposta, a qual concorda muito bem com o símile
que foi assim usado, a saber: que a mesma pista de corrida foi estabelecida
para todos os israelitas; que todos eles participam do mesmo ponto de
partida; que todos eles percorreram a mesma trajetória; que todos
participaram da mesma esperança, porém muitos deles foram impedidos de
receber o prêmio. Entretanto, quando examino tudo detidamente, não me
deixo induzir, por essas razões, a renunciar meu ponto de vista, porquanto o
apóstolo tem boas razões para fazer menção apenas de dois Sacramentos, e
do batismo em particular. Por que ele fez isso senão para contrastá-los
conosco? Inquestionavelmente, se ele tivesse restringido sua comparação à
corporação daquele povo, então teria citado a circuncisão e outros
sacramentos mais notórios e mais importantes. Preferiu, porém, considerar
aqueles que não foram tão notórios, visto que eram mais eficientes em
realçar o contraste entre nós e eles. De forma semelhante, a lição que ele
adiciona não seria muito apropriada, ou, seja: “todas essas coisas lhes
sucederam para nos servir de exemplo [in figuram], porque vemos os juízos
divinos caindo sobre eles, os quais também nos ameaçam caso nos
deixemos envolver nos mesmos delitos.”
4. E a rocha era Cristo. Algumas pessoas são tão estúpidas que chegam
a torcer estas palavras de Paulo, ao ponto de fazê-lo dizer que Cristo era a
rocha espiritual, sem ter nada a dizer sobre aquela rocha que era um
emblema visível; pois sabemos muito bem que Paulo está tratando de sinais
externos. A objeção deles, de que a rocha é realmente descrita como sendo
de caráter espiritual não passa de uma rematada futilidade, visto que este
epíteto só se aplica a ela, para que saibamos que a mesma era emblema de
um mistério espiritual. Não obstante, não há dúvida de que Paulo está
comparando nossos Sacramentos com aqueles dos israelitas.
Sua segunda objeção é muito mais tola e pueril. Perguntam eles: “Como
poderia uma rocha, que permanecia fixa em algum ponto, seguir os
israelitas?” Formulam esta pergunta como se não fosse bastante evidente
que a palavra rocha denota o manancial de água que jamais abandona o
povo. Porquanto Paulo enaltece16 a graça de Deus, visto que ele ordenou à
água que fluía da rocha a jorrar enquanto o povo peregrinava, como se a
própria rocha os acompanhasse. Ora, se ele tencionasse dizer que Cristo é o
fundamento espiritual da Igreja, por que então usou o verbo ser no
pretérito17 [imperfeito] – era? É suficientemente claro que ele está se
referindo a algo que só afetava os pais. Portanto, não demos mais ouvidos a
esta ficção pueril, a qual propicia aos homens amantes de disputa a chance
de mostrar-se o quanto são impudentes, em vez de deixarem que as formas
sacramentais se expressem.18
Não obstante, já afirmei que nos antigos sacramentos a realidade estava
anexada aos sinais e [era] comunicada ao povo. Portanto, visto que eram
emblemas [figuræ] de Cristo, segue-se que este se achava unido aos
mesmos, com certeza não localmente, e nem numa união de natureza ou
substância, mas sacramentalmente. Esta é a razão por que o apóstolo diz
que a rocha era Cristo, pois quando se fala dos sacramentos, comumente se
faz uso de metonímia. Por isso, aqui o nome da realidade é transferido para
o sinal externo, porque aquela é aplicada a este, não literalmente, mas
figuradamente, em virtude da união sobre a qual já me reportei. Visto,
porém, que isso será discutido mais detalhadamente no capítulo onze, faço
aqui uma mera alusão ao assunto.
Permanece aí outra questão. “Visto que agora na Ceia comemos o corpo
de Cristo e bebemos seu sangue, como podiam os judeus ser participantes
da mesma comida e bebida espirituais, sendo que a carne de Cristo ainda
não existia para que pudessem comê-la?” Minha resposta é que, embora sua
carne ainda não existisse, não obstante ela era alimento para eles.
Tampouco é isto uma sutileza fútil e sofística, pois sua salvação dependia
do benefício de sua morte e ressurreição. Daí, eles requeriam receber a carne
e o sangue de Cristo, para que pudessem ser participantes dos benefícios da
redenção. Esta recepção dela [redenção] era obra secreta do Espírito Santo,
o qual operava neles de tal maneira que a carne de Cristo, embora ainda não
criada, tornou-se eficaz neles. Não obstante, sua intenção é dizer que
comeram a sua própria maneira, que era diferente da nossa,19 e, como já
disse, que Cristo nos é agora comunicado mais plenamente em virtude do
maior grau de revelação. Porque, em nosso tempo, o comer é substancial
[substantialis est manducatio], o que não era possível no tempo deles. Em
outros termos, Cristo nos alimenta com sua carne, a qual foi sacrificada por
nós, e que foi destinada para ser nosso alimento, do qual extraímos nossa
vida.
5. Deus, porém, não se agradou de muitos deles. Agora percebemos a
razão por que o apóstolo começa como faz, a saber: que não pretendamos
ser, de alguma forma, inferiores ou superiores a eles, senão que procuremos
andar em humildade e temor. Porque esta é a única forma de assegurarmos a
luz da verdade, no que respeita a nós, e uma infinita grandeza de graciosos
favores não seja menosprezada. Diz Paulo: “Deus escolheu a todos eles
como seu povo, porém muitos deles apostataram da graça. Portanto,
estejamos em guarda para que o mesmo não nos suceda, quando temos aqui
o procedimento deles apontando para nós; pois assim como Deus os puniu
com terrível severidade, ele não nos deixará impunes por termos o mesmo
procedimento.”
Aqui vem a lume outra objeção. “Se é verdade que os hipócritas e
perversos, naquele tempo, comeram o pão espiritual, os incrédulos da
atualidade participam da realidade nos sacramentos?” Alguns, temendo que
os descrentes venham a afastar-se da verdade de Deus, ensinam que a
realidade é recebida pelos ímpios juntamente com o sinal. Seu temor, porém,
é completamente infundado, porquanto o Senhor oferece o que o sinal
representa [figurat] ao digno e ao indigno igualmente, porém nem todos são
capazes de desfrutar da realidade. Ao mesmo tempo, não se muda a natureza
do sacramento, nem se perde coisa alguma de sua eficácia. No mesmo
sentido, o maná, no que se refere a Deus, era alimento espiritual mesmo para
os incrédulos; visto, porém, que os mesmos possuíam bocas que eram
meramente [órgãos] carnais, não comiam o que lhes era oferecido. Transfiro
a discussão completa desta questão para o capítulo 11.
Por isso foram subvertidos. A evidência é produzida à guisa de prova de
que não agradaram a Deus, porque este, em sua ira, os tratou com muita
severidade,20 e os castigou por sua ingratidão. Alguns tomam esse fato
como uma referência à totalidade do povo que pereceu no deserto, com
exceção de apenas dois deles, a saber: Calebe e Josué [Nm 14.29].
Entretanto, meu ponto de vista consiste em que ele simplesmente focaliza
aqueles de quem fará menção em seguida, em suas diferentes categorias.

6. Ora, estas coisas vieram a ser exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as
coisas más, como eles cobiçaram.
7. Não vos façais idólatras, como alguns deles; como está escrito: O povo assentou-se
para comer e beber, e levantou-se para divertir-se.
8. E não pratiquemos a fornicação, como alguns deles o fizeram, e caíram num só dia
vinte e três mil.
9. Nem tentemos o Senhor, como alguns deles o fizeram, e pereceram pelas mordeduras
das serpentes.
10. Nem murmureis, como alguns deles o fizeram, e foram destruídos pelo exterminador.
11. Ora, estas coisas lhes sucederam à guisa de exemplo; e foram escritas para nossa
admoestação, a nós sobre quem os fins dos tempos têm chegado.
12. Por esse motivo, aquele que pensa estar de pé, preste atenção para que não venha a
cair.

6. Hæc autem typi nobis fuerunt, ne simus concupiscentes malorum, sicut illi
concupiverunt.
7. Neque idololatræ sitis, quemadmodum quidam eorum: sicut scriptum est. (Exod.
xxxii.6.) Sedit populus ad edendum et bibendum, et surrexerunt ad ludendum.
8. Neque scortemur, quemadmodum et quidam eorum scortati sunt, et ceciderunt uno
die viginti tria millia.
9. Neque tentemus Christum, quemadmodum et quidam eorum tentarunt, et exstincti
sunt a serpentibus.
10. Neque murmuretis, quemadmodum et quidam eorum murmurarant, et perditi fuerunt
a vastatore.
11. Hæc autem omnia typi contigerunt illis: scripta autem sunt ad nostri admonitionem, in
quos fines sæculorum inciderunt.
12. Proinde qui se putat stare, videat ne cadat.

6. Ora, estas coisas vieram a ser exemplos para nós. Ele nos adverte
em termos ainda mais contundentes, dizendo que os castigos que foram
infligidos sobre eles nos proporcionaram lições relevantes, a fim de que não
provoquemos a ira de Deus como eles fizeram. Diria Paulo: “Pela forma
como ele os castigou, Deus, por assim dizer, nos apresentou um quadro vivo
[in tabula] de sua severidade, para que atentemos bem e sinceramente para
ele e aprendamos a temê-lo.”
Mais adiante direi algo sobre o termo exemplo [typus]. Nesse ínterim,
pretendo apenas ressaltar a meus leitores que não me afastei da redação seja
da antiga tradução21 ou de Erasmo [in figura], sem a devida ponderação.
Uma vez que ambas as versões obscurecem ou, para dizer o mínimo, não
realçam claramente a intenção de Paulo, a saber: que na maneira de Deus
tratar o povo ele nos forneceu um quadro que deve nos ensinar uma lição
objetiva.
A fim de que não cobicemos as coisas más. Agora ele nos apresenta
certas instâncias, ou, melhor, define certos exemplos, de modo que lhe
propiciassem a chance de condenar certo número de pecados, que
forçosamente servisse para chamar a atenção dos coríntios.
Minha convicção é que o incidente aqui referido é aquele relatado em
Números 11.4, ainda que outros o relacionem com o que encontramos em
Números 26.64. Quando o povo passou a viver do maná, por algum tempo,
aos poucos foram tomando ojeriza por ele, e começaram a desejar outros
gêneros de alimento, tais como aqueles que costumavam ter no Egito. Ora,
eles passaram a pecar de duas formas: rejeitando algo que era uma dádiva
especial de Deus, e cobiçando desvairadamente uma enorme variedade de
comidas e iguarias, o que era contrário à vontade de Deus. Tal cobiça
ofendeu o Senhor, e ele infligiu sobre o povo uma praga muitíssimo severa.
Em conseqüência, aquele lugar passou a chamar-se “sepulcros da
concupiscência”22 [Quibrote-Ataavá, Nm 11.34], porque sepultaram ali os que
foram fulminados pelo Senhor. Por meio desse exemplo, o Senhor revelou o
quanto odeia os desejos que emanam da aversão que porventura sintamos
por suas dádivas, bem como de nossa cobiça; pois tudo quanto ultrapassa
os limites impostos por Deus é corretamente considerado nocivo e iníquo.
7. Não sejais idólatras. Paulo está fazendo alusão à história registrada
em xodo 32. Pois quando Moisés demorou no monte mais do que o
inconsiderado povo podia suportar em sua leviandade, Arão se viu forçado
a elaborar um novilho fundido, e o estabeleceu para o culto. Não significava
propriamente que o povo quisesse permutar seu Deus, mas foi para que
tivesse algum sinal visível da presença de Deus, e essa atitude estava em
consonância com sua mente carnal. Ao castigá-los de forma tão severa,
desta vez por essa idolatria, Deus evidenciou o quanto a idolatria lhe é
abominável.
Como está escrito: O povo assentou-se. Poucos interpretam esta
passagem corretamente, pois entendem que a intemperança entre o povo foi
o que deu ocasião à concupiscência,23 em concordância com o provérbio
popular: “A dança é acompanhada de um estômago empanturrado.”24
Moisés, porém, está falando de uma festa sagrada, a que eles estavam
oferecendo em honra de um ídolo. Portanto, o festejo e a diversão eram
ambos aspectos da idolatria. Pois ela era como tantas outras práticas do
povo de Deus, como, por exemplo, os que se devotavam aos falsos deuses,
para combinar a festa com o sacrifício, como parte de seu culto divino; e a
ninguém, que porventura fosse impuro ou indigno, se permitia apresentar-se
para o mesmo. Os gentios designavam também diversões sagradas em honra
de seus ídolos; e há pouca dúvida se nesta ocasião os israelitas estivessem
seguindo seu exemplo na adoração de seu bezerro.25 Pois os homens são,
por natureza, tão presunçosos que, sem qualquer justificativa, obrigam a
Deus a favorecê-los em tudo o que fazem. Portanto, os gentios chegam a uma
insensatez tal que acreditam estar agradando a seus deuses, por exemplo,
com os mais indecentes espetáculos, com as mais impudicas danças, com a
mais profana linguagem e com uma infinda diversidade de imoralidade.
Assim, seguindo após seu exemplo, o povo de Israel realizou sua festa
religiosa, e então prosseguiu com suas diversões, de tal modo que nada
podia ser deixado fora do culto a seu ídolo. Este significado é o único que
faz justiça ao texto.
Neste ponto, porém, pode-se formular a seguinte pergunta: Por que o
apóstolo faz menção da festa e das diversões, e não do culto, já que este,
afinal de contas, é a parte central da idolatria, enquanto que as outras duas
não passavam de aspectos acessórios? Indubitavelmente, o apóstolo
escolheu aquele aspecto que melhor se adequava à situação dos coríntios.
Pois é pouco provável que tivessem o hábito de freqüentar as reuniões dos
descrentes com o fim de prostrar-se diante de seus ídolos, senão que
costumavam participar das festas que os descrentes mantinham em honra
de seus deuses, e não se abstinham dos degradantes ritos que constituíam a
marca registrada da idolatria.
Por isso, não é sem boas razões que o apóstolo declara que a forma na
qual estão pecando é expressamente condenada por Deus. Em suma, ele
deixa claro que não podemos viver em contato com qualquer aspecto de
idolatria26 sem nos tornarmos também impuros, e os que se corrompem no
trato com coisas que levam quaisquer marcas externas de idolatria não
escaparão impunemente das mãos de Deus.
8. Nem pratiquemos a fornicação. Ele agora fala da fornicação, a
respeito da qual, como transparece dos relatos históricos, grande
licenciosidade prevalecia entre os coríntios, e prontamente podemos inferir
do que vem antes que os que tinham professado ser de Cristo não estavam
ainda completamente livres deste vício. O castigo deste vício deve também
alarmar-nos e levar-nos a ponderar bem quão odiosas são as paixões torpes
e as imundícies desse gênero, pois em apenas um dia vinte e três mil – ou,
segundo Moisés, vinte e quatro mil – pereceram. Mas ainda que difiram nos
números, é fácil de conciliar suas declarações. Pois não é um fato
desconhecido que, quando não há qualquer intenção de se fazer uma conta
exata de pessoas,27 existe o hábito de dar um número aproximado. Por
exemplo, havia aqueles a quem os romanos chamavam o Centumviri28 [Os
Cem], quando na verdade seu número era cento e dois. Portanto, visto que
cerca de vinte e quatro mil foram destituídos pelas mãos do Senhor, em
outros termos, mais de vinte e três mil, Moisés dá o número superior, e
Paulo, o inferior, e assim não existe nenhuma discrepância. Esta história
pode ser encontrada em Números 25.9.
Não obstante, paira aqui certa dificuldade, a saber: por que Paulo diz que
esta matança foi devido à fornicação, quando Moisés nos diz que a ira de
Deus recaiu sobre o povo porque este se permitiu fosse iniciado nos ritos
de Baal-Peor?29 A apostasia, porém, deu início à fornicação; e os filhos de
Israel caíram nessa desobediência, não tanto porque se deixaram influenciar
por alguma devoção que acariciassem pela falsa religião,30 mas, antes,
porque se deixaram cativar pelos afagos de prostitutas. Portanto, todo e
qualquer resultado da apostasia deve ser atribuído à fornicação. Pois Balaão
aconselhara os midianitas a darem aos israelitas suas filhas como
prostitutas, com o expresso propósito de aliená-los do genuíno culto divino.
Mais que isso, cegueira tão intensa como a deles, deixando-se arrastar à
impiedade31 mediante o maneirismo fascinante de prostitutas, foi o castigo
por sua concupiscência. Aprendamos, pois, que a fornicação não é um
pecado trivial, visto que, naquela ocasião, Deus lidou com ele tão
severamente e deveras de formas tão variadas.
9. Nem tentemos o Senhor. Esta parte da exortação se refere à história
que está registrada em Números 21.6. Pois quando o povo cansou-se da
longa jornada, então começou a queixar-se de sua sorte e a falar contra
Deus, dizendo: “Por que Deus nos fez de tolos” etc.? Paulo descreve este
resmungo do povo como sendo tentação [tentationem], e ele estava certo,
porque tentar é incompatível com tolerar. A razão por que o povo passou a
rebelar-se contra Deus, naquele tempo, foi porque se sentiam impulsionados
por um desejo irresistível,32 e não conseguiam esperar com paciência a
chegada do tempo determinado pelo Senhor. Notemos bem, pois, que a raiz
deste mal, sobre o qual Paulo nos adverte aqui, é a impaciência que se revela
quando queremos antecipar a ação de Deus, não nos pondo sob sua diretriz,
mas, ao contrário, esperando que ele concorde com nossas decisões e
exigências. Deus infligiu severo castigo sobre os israelitas por conta de tal
presunção. Ele, porém, permanece sempre o mesmo – um Juiz justo.
Portanto, a menos que queiramos sofrer o mesmo castigo, não o ponhamos
à prova.
Este versículo produz notável testemunho em prol da eternidade de
Cristo. A evasiva de Erasmo carece de peso, a saber: “Nem tentemos a Cristo
como alguns deles tentaram a Deus”, pois é demasiadamente forçada33 para
fazer o nome de Deus aparecer. Não é de forma alguma estranho ser Cristo
chamado o Líder do povo israelita, pois assim como Deus jamais revelou
sua benevolência a seu povo que não tenha sido através de Cristo como
Mediador, da mesma forma ele não conferiu nenhum benefício senão pelas
mãos dele. Aliás, o Anjo que primeiro apareceu a Moisés, e desde então
esteve sempre presente com o povo em sua peregrinação, é amiúde chamado
Jehovah34 [hwhy]. Devemos concluir, pois, que aquele Anjo era o Filho de
Deus, e que mesmo naquele tempo ele já era o Guia da Igreja, da qual era o
Cabeça. Visto que a designação Cristo traz um sentido que se adequa a sua
natureza humana, não podia ainda aplicar-se ao Filho de Deus naquele
tempo; porém lhe é atribuída aqui através da comunicação de propriedades,
assim como lemos em outro lugar que “o Filho do Homem veio do céu” [Jo
3.13].
10. Nem murmureis. Há quem pense que isto se refere à murmuração
suscitada por ocasião em que os doze enviados para espiarem a terra
voltaram e sublevaram o ânimo do povo. Visto, porém, que aquela
murmuração não foi castigada imediatamente por algum flagelo particular
infligido pelo Senhor, sendo que o único castigo infligido foi sua exclusão da
possessão da terra, este versículo precisa ser explicado de outra forma.
Certamente que negar a entrada do povo na terra35 constituía um severo
castigo; mas, ao dizer que foram mortos pelo exterminador, Paulo tem em
mente algum outro tipo de retribuição, obviamente de grande porte.
Refiro-me, pois, à história que temos em Números 16. Quando Deus
castigou o orgulho de Coré e Abirão, o povo moveu um grande tumulto
contra Moisés e Arão, como se fossem eles os responsáveis pela praga que
grassou a mando do Senhor. Este castigou a sublevação do povo com fogo
do céu, o qual devorou mais de quatorze mil pessoas. Assim, este fato
fornece uma clara e memorável evidência da ira divina operando contra os
rebeldes e perturbadores que fazem ecoar suas vozes contra ele.
É verdade que tais pessoas se queixavam de Moisés; visto, porém, que
não tinham base alguma para insultá-lo, e que a única razão que tinham para
arder-se em ira contra ele era o fato de fielmente levar a bom termo a tarefa
da qual Deus o incumbira, por isso estavam desferindo um franco ataque
contra Deus mesmo, ao murmurarem contra ele. Lembremo-nos, pois, de
que é com Deus mesmo que havemos de tratar, e não com os homens, caso
nos ponhamos contra os fiéis ministros de Deus. Lembremo-nos ainda de
que tal audácia não ficará impune.
O termo exterminador deve ser entendido como equivalente ao Anjo que
executava o juízo de Deus. Às vezes, ao punir os homens, ele ora emprega o
ministério de anjos maus, ora emprega os anjos bons, como vemos em
diferentes passagens da Escritura. Visto que Paulo aqui não faz nenhuma
distinção entre eles, o leitor se sinta à vontade para decidir a que classe ele
se refere.
11. Ora, estas coisas lhes sucederam à guisa de exemplo. Uma vez
mais ele reitera que todas as coisas sucederam aos israelitas para que nos
servissem de tipos; em outros termos, exemplos pelos quais Deus põe seus
juízos diante de nossos olhos. Estou a par de que outros engendram destas
palavras teorias por demais engenhosas; mas creio que consegui reter o que
estava na mente do apóstolo quando afirmo que estes exemplos nos lançam
luzes como se fossem quadros pintados por um bom artista, sobre que
sorte de juízo ameaça os idólatras, os fornicadores e outros tantos que
desprezam a Deus; pois estes são vivos quadros que nos revelam Deus em
sua ira contra pecados desse gênero. Esta explicação, além de simples e
realista, traz também a vantagem de silenciar certos desmemoriados36 que
torcem esta passagem com o fim de provar que as únicas coisas que foram
sempre praticadas entre o povo antigo eram aquelas que prefiguravam o que
estava por vir. Antes de tudo, tomam por irrefutável que o povo prefigura
[esse figuram] a Igreja. Daqui concluem que tudo quanto Deus lhes prometeu
ou lhes concedeu, sejam benefícios ou castigos,37 prefigurava apenas o que
seria trazido à plena realidade com a vinda de Cristo. Este é um exemplo de
injúria estapafúrdica, visto que lança grave ofensa aos santos pais, e
inclusive uma ofensa ainda mais grave dirigida contra Deus mesmo.
Porquanto os israelitas prefiguravam a Igreja Cristã de uma forma tal que
constituíam, ao mesmo tempo, a Igreja genuína. Suas circunstâncias são um
retrato tão nítido das nossas que as características essenciais de uma igreja
já estavam presentes naqueles dias. As promessas feitas a ela prenunciavam
o evangelho de tal forma que o mesmo já se achava incluso nelas. Seus
Sacramentos serviram para prefigurar os nossos, porém de uma forma tal
que permaneciam os Sacramentos genuínos com uma aplicação eficaz
também para seus dias. Em suma, os que fizeram uso adequado da Palavra
[doctrina] e dos Sacramentos [signis] naqueles dias eram dotados com o
mesmo Espírito de fé como o somos hoje. Estas palavras de Paulo, portanto,
não fornecem apoio algum a tais parvoíces, pois elas não significam que os
eventos daquela época eram tipos no sentido em que não comportassem
alguma importância real para aquele tempo, mas que eram uma espécie de
exibição vazia. Ao contrário disso, porém, já expliquei que elas nos ensinam
com toda clareza que, como num quadro para vermos com nitidez, há coisas
que devem constituir uma advertência.
E foram escritas para nossa admoestação. Esta segunda sentença realça
a primeira. Porque, o fato de que estas coisas foram entregues para que
fossem escritas38 prova que não eram vantajosas para os israelitas, e, sim,
para nós. Não obstante, não se deduz disto que aquelas retribuições não
eram castigos divinos reais, que efetivamente os disciplinavam naquele
tempo; Deus, porém, não só exerceu seus juízos naquela época, mas
também quis que houvesse um registro perpétuo delas para nossa
admoestação. Pois que utilidade seus juízos teriam se porventura se
destinassem aos mortos? E que utilidade teriam para os vivos, se
porventura não levassem em conta a advertência provinda do exemplo de
outras pessoas e para lhes servir de juízo? Paulo, porém, tem por infalíveis
os princípios sobre os quais todos os crentes devem estar de acordo, ou,
seja, que nada foi registrado nas Escrituras que não nos seja vantajoso
sabermos.
Sobre quem os fins dos tempos têm chegado. O termo fins [τέλη] às
vezes significa mistérios,39 e é provável que este significado se ajuste melhor
neste versículo. Não obstante, sigo a interpretação aceita, visto ser mais
simples. Paulo diz, pois, que os fins [terminos] de todas as eras chegou
sobre nós, porque a plenitude de todas as coisas é congruente com esta
presente era, visto que já atingimos os últimos tempos. Pois o reino de
Cristo é o alvo especial para o qual a Lei e todos os Profetas olhavam. Além
disso, esta declaração de Paulo se põe em conflito com a idéia popular de
que Deus foi mais inflexível durante o antigo Concerto, estava sempre em
guarda e pronto a punir as ofensas, mas que agora se tornou mais sensível e
muito mais disposto a perdoar-nos. E, com disposição semelhante,
estabelece que estamos sob a lei da graça, porque temos agora um Deus que
é muito mais facilmente conciliável do que aquele conhecido dos homens
de outrora. Entretanto, o que Paulo está realmente dizendo? Se Deus infligiu
castigo aos antigos, ele não nos deixará impunes em coisa alguma. Longe de
nós uma visão tão equivocada, ou, seja, que Deus é agora mais frouxo em
punir os pecados! Por certo que devemos reconhecer que a bondade de
Deus foi derramada sobre a humanidade muito mais gloriosa e ricamente
com a vinda de Cristo; mas, que isso tem a ver com a impunidade dos
dissolutos que abusam de sua graça?40
A única coisa que se deve observar é esta: que hoje existe um tipo
distinto de punição, porque, como Deus galardoou a fidelidade de outrora
mais com bênção material, com o fim de pôr seu amor paterno em maior
evidência para com eles, assim também lhes demonstrou sua ira mais por
meio de castigos físicos. Em contrapartida, na revelação mais plena que hoje
desfrutamos, ele não inflige castigos externos com muita freqüência, nem
trata os ímpios com freqüentes castigos físicos. O leitor poderá encontrar
mais razões sobre este tema em minhas Institutas (2.10.3).41
12. Por esse motivo, aquele que pensa estar em pé. O apóstolo
conclui, à luz do precedente, que não devemos nos ensoberbecer com
nossos primórdios ou progresso, ao ponto de nos tornarmos complacentes
e indolentes.42 Pois os coríntios nutriam uma vanglória tão intensa acerca
de sua própria situação, que se esqueceram de quão fracos eram, e
cultivaram muitas práticas vergonhosas e nocivas. Mergulharam de ponta
cabeça numa injustificada autoconfiança, semelhante à que os profetas
estavam sempre condenando no povo de Israel. Visto, porém, que os
papistas torcem este versículo com o fim de estabelecer seu ímpio dogma de
que devemos viver sempre num estado de incerteza no tocante à fé,43
notemos bem que existem dois gêneros de confiança.
O primeiro tipo de confiança repousa nas promessas divinas, de modo
que o crente se convence, em seu íntimo, que Deus jamais o deixará; e,
escudado nesta invencível convicção, ele enfrenta Satanás e o pecado, alegre
e destemidamente. Não obstante, ao mesmo tempo, rememorando suas
próprias fraquezas, ele se lança44 nas mãos de Deus, em temor e humildade;
e, em sua angústia, repousa nele de bom grado. Este tipo de confiança é
muito santo e saudável, e não pode alienar-se da fé, como se faz evidente à
luz de muitas passagens da Escritura, especialmente Romanos 8.33.
O segundo tipo de confiança tem suas raízes na indiferença, quando os
homens ardem em seu orgulho em virtude dos dons que possuem, e vivem
completamente despreocupados sobre sua própria situação, senão que, ao
contrário, aquiescem nela como se estivessem fora do alcance de qualquer
perigo; com o danoso resultado de se virem expostos a todos os ataques de
Satanás. É este tipo de confiança que Paulo deseja que os coríntios
renunciem, porquanto ele percebia que sua presunção repousava numa
convicção irracional. Não lhes diz, porém, que vivessem num estado de
ansiedade e incerteza quanto à vontade de Deus, ou que nutrissem medo de
que sua salvação não fosse algo definido e definitivo, segundo o sonho dos
papistas.45
Em suma, lembremo-nos de que Paulo está falando a homens que viviam
convencidos em razão de uma equivocada confiança no ser humano, e ele
está procurando pôr cobro a tal fraqueza, a qual teve sua origem na
dependência humana e não na divina. Porque, após louvar os colossenses
por sua solidez ou “firmeza na fé” [Cl 2.5], ele os convida a permanecerem
firmes, radicados em Cristo, e a serem “edificados nele e estabelecidos na fé”
[Cl 2.7].

13. Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; Deus, porém, é fiel, e não
permitirá que sejais tentados acima de vossa capacidade; e com a tentação vos dará a
via de escape, para que possais suportá-la.
14. Por esse motivo, meus amados, fugi da idolatria.
15. Falo como a sábios; julgai o que vos digo.
16. O cálice de bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão
que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo?
17. Visto que nós, que somos muitos, somos um só pão, um só corpo;
18. porque todos nós participamos do mesmo pão. Vede a Israel segundo a carne; os
que comem os sacrifícios não são participantes do altar?

13. Tentatio vos non apprehendit nisi humana. Fidelis autem Deus, qui non simet vos
tentari supra quam potestis: sed dabit una cum tentatione etiam exitum, ut possitis
sustinere.
14. Quapropter, dilecti mei, fugite ab idololatria.
15. Tanquam prudentibus loquor: indicate ipsi quod dico.
16. Calix bendictionis, cui benedicimus, nonne communicatio est sanguinis Christi?
panis, quem fragimus, nome communicatio est corporis Christi?
17. Quoniam unus panis, unum corpus multi sumus: omnes enim de uno pane
participamus.
18. Videte Israel secundum carnem: nonne qui edunt hostias, altari communicant?

13. Não vos sobreveio tentação que não fosse humana.46 Quem quiser
pode contentar-se com suas interpretações pessoais. Quanto a mim, penso
que isto foi escrito para encorajar os coríntios, para que, após ouvirem
acerca desses terríveis exemplos da ira divina, mencionados por Paulo, não
ficassem perturbados, nem assombrados, nem sucumbidos.
Conseqüentemente, a fim de que sua exortação tivesse algum efeito, ele
acrescenta que há oportunidade para arrependimento. Ele poderia ter posto
nestes termos: “Não há necessidade de desespero, e eu mesmo não tive a
intenção de deixar-vos desanimados. Naturalmente, o que vos sobreveio
não vai além do que usualmente sucede aos homens.” Outros são mais
inclinados a crer que aqui ele está recriminando a pusilanimidade dos
coríntios em ceder quando uma tentação47 leve os atingia; e não há dúvida
de que o termo humanus, traduzido por humana, às vezes significa
moderado.48 Portanto, o significado, segundo eles, é o seguinte: “É correto
que vos deixeis sucumbir diante de uma leve tentação?” Visto, porém, ser
mais adequado ao contexto olharmos este versículo em termos de
consolação, então sinto-me mais inclinado a adotar este ponto de vista.
Deus, porém, é fiel. Assim como lhes disse que tivessem bom ânimo
com relação ao passado, com o fim de movê-los ao arrependimento, também
os encoraja com uma esperança definida para o futuro, pois Deus não
permitirá que fossem tentados além de suas forças. Contudo os adverte a
que atentassem bem para o Senhor, porque, se pusermos nosso coração em
nossos próprios recursos, a tentação, não importa quão suave seja, levará a
melhor sobre nós e nos subjugará. Ele denomina o Senhor de fiel. Sua
intenção vai além da idéia de Deus ser verdadeiro em suas promessas. Ele
poderia ter posto nestes termos: “O Senhor é o Protetor comprovado de seu
povo, e em sua proteção estais seguros, porque jamais deixa os seus
entregues a sua própria sorte. Por isso, tendo-vos uma vez tomado sob sua
fidedignidade pessoal [in suam fidem], não tendes necessidade alguma de
temer, desde que dependais inteiramente dele. Pois indubitavelmente estaria
procedendo falsamente em relação a vós caso viesse a revogar seu apoio no
momento em que necessitássemos dele; ou, ao nos ver lutando em meio às
fraquezas, arqueados sob pesado fardo, permitisse se prolongassem nossas
lutas [tentações] por tempo indefinido.”49
Ora, Deus nos ajuda de duas formas, para que não sejamos vencidos em
meio à tentação: ele nos supre com força e põe limites à tentação. É da
segunda dessas formas que o apóstolo aqui principalmente fala. Ao mesmo
tempo, ele não exclui a primeira, a saber: que Deus alivia as tentações para
que não sucumbamos sob seu peso. Pois ele conhece a medida de nosso
poder, o qual ele mesmo conferiu. De acordo com esse fato, ele regula
nossas tentações. O termo tentação aqui tomo como que denotando, de uma
forma geral, tudo o que nos seduz.
14. Por esse motivo, meus amados, fugi da idolatria. O apóstolo agora
se volve para a pergunta particular, sobre a qual ele já fizera ligeira
observação, porque, temendo que o ensino franco, direto, viesse a deixá-los
desestimulados, ele então introduz as exortações gerais sobre as quais
temos lido. Agora, porém, ele resume o argumento que iniciara, a saber: que
um cristão não pode envolver-se ativamente nos ritos religiosos dos
incrédulos. Esta é a razão por que ele adverte: “fugi da idolatria.”
Antes de prosseguirmos, é preciso entender o que ele pretende com o
termo idolatria. Por certo que não ensinava que os coríntios fossem tão
ignorantes ou tão displicentes50 que chegasse a imaginar que praticassem
franca adoração a ídolos. Uma vez, porém, que não tinham escrúpulo de
freqüentar amiúde as reuniões dos incrédulos, e de tomar parte com eles em
certos ritos, então condena sua presunção como uma atitude que se
constituía num mal exemplo. Portanto, quando faz menção da idolatria aqui,
sem dúvida alguma ele está se referindo à idolatria externa, ou, se se preferir,
à pública profissão51 [de fé] no culto idolátrico. Pois assim como se diz ser
Deus adorado por genuflexão e outros sinais externos de reverência,
considerando que o modo fundamental e genuíno de adorá-lo está em
nossos corações, assim também se dá no caso dos ídolos, ou, seja: o
mesmo princípio deve aplicar-se aos opostos. Há hoje um grande número de
pessoas gastando seu tempo na busca de justificativa para suas práticas
externas,52 afirmando que não há perigo algum de seus corações se
envolverem, ao passo que Paulo, de fato, condena essas mesmas ações de
forma tão incisiva! Porque, diante do fato de que Deus deve possuir não só o
amor íntimo de nossos corações, mas também nossa devoção externa,
aquele que manifesta um sinal externa de culto [oferecido] a um ídolo está,
implicitamente, despojando Deus do que lhe é devido. O homem pode
protestar, como lhe agrade, dizendo que seu coração não está posto no
ídolo, no entanto ele não pode ocultar a própria ação, transferindo para um
ídolo a honra que é de Deus por direito [inalienável].
15. Falo como a sábios. Visto que Paulo estava preparando-se para
basear seu argumento no mistério da Ceia, ele usa esta pequena introdução
visando a imprimir-lhes algum ânimo, a fim de que fossem capazes de
atentar mais detidamente para a grandeza deste mistério.53 Ele poderia ter-se
expresso nestes termos: “Não estou falando a neófitos! Vós estais bem
cientes do poder da Santa Ceia, pois nela somos enxertados no corpo do
Senhor. Portanto, quão vergonhoso é vos iniciardes na comunhão dos
incrédulos a fim de vos tornardes unidos num só corpo com eles!” Ele,
porém, condena a ausência neles de meditação silenciosa, porque, depois
de serem instruídos na escola de Cristo, ainda envolviam-se irrefletidamente
em questões pecaminosas – e não havia como negá-lo!
16. O cálice de bênção. Ainda que a maior parte da sacra Ceia de Cristo
seja composta de dois elementos, pão e vinho, Paulo começa com o
segundo. Ele o chama “o cálice de bênção”, visto que estava destinado a ser
uma bênção mística [mysticam eulogiam]. Pois não concordo com aqueles
que entendem bênção [benedictio] aqui como sendo “ações de graças”, e
explicam o verbo abençoar no sentido de “dar graças”. Com certeza
concordo que às vezes ele é usado com este significado, porém jamais na
construção que Paulo adota aqui. A introdução que Erasmo faz de uma
preposição54 é muito forçada. Minha interpretação pessoal, não obstante, é
fácil e direta.
Abençoar o cálice, portanto, significa colocá-lo à parte para este
propósito singular, a saber, para que nos seja um sinal do sangue de Cristo.
Isto se dá pela Palavra da promessa, quando, de acordo com a diretriz de
Cristo, os crentes se reúnem para conservar o memorial de sua morte neste
sacramento. Em contrapartida, no caso dos papistas, a consagração é uma
espécie de mágica, a qual tem suas raízes no paganismo,55 pois não
conserva nenhuma semelhança com o rito integralmente genuíno que os
cristãos conservam. É verdade que tudo quanto comemos é igualmente
santificado pela Palavra de Deus, como Paulo mesmo nos ensina em 1
Timóteo 4.5. Neste contexto, porém, a bênção tem um propósito distinto, a
saber: para que o uso das dádivas divinas seja puro e sirva à glória de seu
Doador e a nosso próprio bem. Em contrapartida, o objetivo da bênção
mística na Ceia é que o vinho não seja mais uma bebida ordinária, e, sim,
seja separado como o alimento espiritual de nossas almas, ao transformar-
se num penhor [tessera] do sangue de Cristo.
Ele afirma que o cálice abençoado desta forma é coinonia [κοινωνίαν],
uma comunhão no sangue de Cristo. “O que isso significa exatamente?” –
perguntaria alguém. Exclua daqui a controvérsia, e tudo se fará plenamente
claro! É verdade que os crentes são estreitados pelo sangue de Cristo, de
modo a se tornarem um só corpo. É verdade também que tal união é
adequadamente denominada de comunhão [κοινωνία]. Dir-se-ia também o
mesmo sobre o pão. Além do mais, estou atento ao que Paulo adiciona logo
a seguir, à guisa de explicação, ou, seja: “todos nós somos feitos um só
corpo, porque participamos, juntos, do mesmo pão.” Mas, pergunto eu, qual
é a fonte dessa coinonia ou comunhão, que existe entre nós, senão que
estamos unidos a Cristo de tal sorte que “somos carne de sua carne e osso
de seus ossos”? [Ef 5.30.] Pois é indispensável que sejamos, igualmente,
unidos uns aos outros. Além disso, Paulo aqui não está discutindo uma
mera comunhão humana [non tantum de mutua inter homines
communicatione], e, sim, a união espiritual entre Cristo e os crentes [sed de
spirituali Christi et fidelium unione], a fim de fazer evidente que é um
intolerável sacrilégio tornarem-se eles contaminados pela comunhão com os
ídolos. À luz do contexto deste versículo podemos, pois, concluir que
coinonia ou comunhão no sangue é a aliança [societatem] que temos com o
sangue de Cristo quando este nos enxerta, a todos nós, em seu corpo, a fim
de que possa viver em nós e nós nele.
Ora, deveras concordo que a referência ao cálice como comunhão é uma
figura de linguagem, porém só até onde a verdade que a figura comunica não
fique destruída; em outros termos, contanto que a realidade mesma esteja
também presente e a alma receba a comunhão no sangue, assim como a boca
degusta o vinho. Os papistas, porém, não podem dizer que o cálice de
bênção é uma comunhão no sangue de Cristo, no caso deles, porque
observam uma forma desfigurada e mutilada da Ceia – se porventura o nome
Ceia ainda pode ser usado para essa estranha cerimônia que não passa de
um mosaico de infindáveis invenções humanas, e que mal conserva um
tenuíssimo traço daquela Ceia que nosso Senhor instituiu. No entanto,
mesmo que tudo mais se conformasse ao uso correto da Ceia, uma única
coisa estaria ainda em conflito com ela, a saber: que o cálice, que é a metade
do sacramento, é negado a todo o povo.
O pão que partimos. À luz desta expressão dá-se a entender que, na
Igreja Primitiva, o costume era que cada pessoa quebrava para si um pedaço
de um só pão, para que sua união no corpo de Cristo pudesse ser
claramente notada por todos os crentes. Partindo das evidências deixadas
por homens que foram eminentes na Igreja dos três séculos após os
apóstolos, faz-se também mui claro que esta prática foi mantida por longo
tempo. Depois, a superstição logrou vitória, com o danoso resultado de que
ninguém mais ousou tocar o pão com suas próprias mãos, senão que os
sacerdotes o põem em sua boca.
17. Visto que somos um só pão. Já ressaltei supra que a intenção de
Paulo aqui não foi estimular-nos ao amor mútuo, senão menciona isto de
passagem para que os coríntios pudessem entender que devemos também
cultivar nossa união com Cristo, em nossa pública profissão de fé, diante do
fato de que nos encontremos todos juntos com o fim de participarmos do
símbolo dessa sacra união. Nesta, a segunda parte de sua referência à Ceia,
Paulo menciona só o outro elemento do Sacramento, e é muitíssimo comum
o uso que a Escritura faz de sinédoque,56 ou, seja, descreve toda a Ceia
como “o partir do pão”. Que deste fato meus leitores sejam, de passagem,
precavidos, para que nenhuma pessoa inexperiente se sinta perturbada pelo
odioso sofisma de uns poucos, sim, porém poderosos e trapaceiros, ou,
seja: visto que Paulo só menciona o pão, então sua intenção era privar o
povo da metade do Sacramento.
18. Vede Israel segundo a carne. Paulo usa outro exemplo com o fim de
provar que a natureza de todos os ritos religiosos consiste em vincular-nos
a algum gênero de união [societas] com Deus. Pois a lei mosaica não admitia
ninguém à festa sacrificial, a menos que estivesse adequadamente
preparado; e naturalmente não me refiro apenas aos sacerdotes, mas a todos
os que comiam do que era deixado do sacrifício. Segue-se daqui que todo
aquele que comia da carne do animal sacrificado era participante do altar,
ou, seja, da santificação, da qual Deus considerava dignos seu templo e
todos os ritos efetuados ali.
Esta expressão, segundo a carne, pode dar a impressão de que foi
inserida para que os coríntios pudessem comparar os ritos israelitas e
cristãos, e viessem a ponderar da maneira a mais sublime possível sobre a
eficácia de nossa Ceia. Ele poderia ter posto nestes termos: “Se houve tanta
virtude nas figuras [figuris] antigas e naqueles rudimentos da antiga
instrução, descobriremos que há muito mais [virtude] em nossa Ceia, na
qual o Senhor se revela muito mais plenamente.” Não obstante, creio que é
mais simples entender que, ao usar estas palavras, Paulo só pretendia fazer
distinção entre os judeus que eram obedientes à lei e aqueles que se haviam
convertido a Cristo.
Outro contraste tinha ainda que ser traçado, a saber: se os sacrifícios
oferecidos a Deus santificam seus adoradores, de outro lado os sacrifícios
oferecidos aos ídolos57 produzem impureza. Pois é Deus, e unicamente ele,
quem santifica; portanto, todos os demais deuses produzem impureza.58
Além disso, se os crentes são introduzidos, através dos mistérios,59 à
comunhão e união com Deus, então os incrédulos são admitidos, através de
suas práticas supersticiosas, à comunhão60 com seus ídolos. Mas antes de
tratar disto, o apóstolo refuta, por antecipação [per anthypophoram],61 a
pergunta que poderia suscitar-se à guisa de objeção.

19. O que digo eu? Que o ídolo é alguma coisa? ou o que é oferecido em sacrifício ao
ídolo é alguma coisa?
20. Eu, porém, digo que as coisas que os gentios sacrificam, eles as sacrificam aos
demônios, e não a Deus; e não quero que tenhais comunhão com os demônios.
21. E não quero que bebais o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; sim, não podeis
ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.
22. Provocaremos zelos no Senhor? Somos mais fortes do que ele?
23. Para mim todas as coisas são lícitas, mas nem todas são convenientes; para mim
todas as coisas são lícitas, mas nem todas as coisas edificam.
24. Ninguém busque o que é propriamente seu, mas cada um o bem do outro.

19. Quid ergo dico? idolum, aliquid esse? aut idolo immolatum, aliquid esse?
20. Sed quæ immolant Gentes, dæmoniis immolant, non Deo: nolo autem vos participes
fieri dæmoniorum.
21. Non potestis calicem Domini bibere, et calicem dæmoniorum: non potestis mensæ
Domini communicare, et mensæ dæmoniorum.
22. An provocamus Dominum? numquid fortiores illo sumus?
23. Omnia mihi licent, sed non omnia conducunt: omnia mihi licent, at non omnia
ædificant.
24. Nemo quod suum est quærat, sed quisque quod alterius est.

19. O que digo eu? À primeira vista, pode parecer que o argumento do
apóstolo não tem fundamento, ou que está tentando provar que os ídolos
possuem alguma realidade e algum poder. Ora, é possível suscitar-se a
seguinte objeção: “Que sorte de comparação há entre o Deus vivo e os
ídolos? Deus nos traz à comunhão com ele por meio dos Sacramentos. Sim,
é verdade! Mas o que dizer dos ídolos que nada são, no entanto se revelam
tão poderosos que podem fazer a mesma coisa? [1Co 8.4]. Ou tu acreditas
que os ídolos são tudo ou podem fazer tudo?” Paulo responde que ele não
está visando ao ídolo propriamente dito,62 mas, ao contrário, tem em vista a
intenção dos que sacrificam aos ídolos. Porquanto esta era a fonte da
impureza a que ele se referia implicitamente. Portanto, ele reconhece que o
ídolo nada significa. Igualmente acusa que os gentios estão simplesmente
enganando a si próprios, ao entregar-se aos solenes ritos de dedicação,63 e
que as criaturas de Deus não se corrompem ao pôr-se em contato com essas
coisas fúteis. Visto, porém, que esses ritos visam a algo que vem saturado
de superstição, e da mesma forma condenado, e porque todos seus
procedimentos são ímpios, ele chega à conclusão que todo aquele que
ativamente se associa a eles [os ídolos] se fazem contaminados.
20. Mas as coisas64 que os gentios sacrificam. Para completar a
resposta, ela precisa ser discernida nesta forma negativa: “Eu não disse que
um ídolo é alguma coisa, nem penso que ele possua algum poder; estou,
porém, afirmando que o que os gentios sacrificam, eles o destinam ao diabo,
e não a Deus, e que esta é a razão por que considero o que eles fazem como
tendo sua fonte numa superstição perversa e repulsiva. Mas o que temos a
fazer é prestar muita atenção no motivo que jaz por trás de tudo isso.
Portanto, uma pessoa que se relaciona com eles [os ídolos] põe em pública
evidência que está tomando parte na mesma religião falsa que praticam.” O
apóstolo, pois, continua pressionando: Se na prática dessas coisas temos
que tratar somente com Deus, elas seriam de nenhum préstimo; mas quando
nosso envolvimento é com pessoas como nós, tais coisas se tornam
pecaminosas, porque todo aquele que toma assento numa festa idolátrica se
revela um autêntico adorador de ídolos.
Há quem considere demônios [dæmones], neste contexto, como sendo os
deuses imaginários dos gentios, visto que estes geralmente falam deles
[seus ídolos] neste sentido. Pois quando usavam o termo demônios, sua
referência era aos deus menores, tais como os heróis,65 e assim para eles o
termo produzia um bom sentido. Platão, numa variedade de exemplos,
emprega o termo para denotar genii ou anjos.66 Tal conceito, contudo, se
acha em completa discordância com o que Paulo tinha em mente, pois ele
pretende mostrar quão grave pecado é tomar parte em qualquer prática que
leve óbvias características de ser culto aos ídolos. Portanto, o que ele
pretendia não era propriamente minimizar, mas realçar o quanto possível a
desconsideração para com Deus envolvida nele. Quão inadequado, pois,
teria sido usar um termo denotando honra com vistas a acobertar uma
perversidade da mais elevada categoria! Certamente procede do profeta
Baruque [4.7] que todas as coisas que são sacrificadas aos ídolos, na verdade
são sacrificadas aos demônios [diabolis, Dt 32.17; Sl 96.5]. Naquela passagem
dos escritos do profeta, a tradução grega, que naquele tempo era de uso
comum, traz a palavra δαιμόνια [dæmonia], e este é seu uso comum na
Escritura. É muito mais provável, pois, que Paulo tivesse emprestado suas
palavras do profeta a fim de expressar a enormidade do mal, em vez de,
expressando-se segundo o costume pagão, ele teria externado o que
pretendia reforçar com a mais extrema execração!
Não obstante, tudo isso pode parecer conflitante com o que acabei de
afirmar, ou, seja, que Paulo tinha em mira a intenção dos adoradores,
porquanto a intenção deles não era adorar demônios, e, sim, divindades
imaginárias, de sua própria invenção. Minha resposta é que as duas coisas
estão em plena harmonia, pois quando os homens se tornam tão fúteis em
suas imaginações [Rm 1.21], ao ponto de prestar honras divinas a criaturas
no lugar do Deus único, este castigo está suspenso sobre suas cabeças,
porquanto servem a Satanás. Na verdade não existe aquela “posição
intermédia”67 entre Deus e Satanás que tanto buscam, senão que é o próprio
Satanás que pessoalmente se lhes apresenta como um objeto de adoração,
sempre que voltam as costas ao verdadeiro Deus.
E não quero que tenhais comunhão com os demônios. Se o termo
demônio fosse uma referência a coisas indiferentes, quão insípida seria esta
expressão do apóstolo, quando de fato ela está em extremo saturada de
severidade contra os adoradores de ídolos. E apresenta a razão que justifica
seu desejo, ou, seja: ninguém pode ter comunhão com Deus e com os ídolos
concomitantemente. Há, porém, pessoas que fazem promessa de comunhão
em todos os ritos sagrados. Lembremo-nos, pois, que só depois de
dizermos adeus a tudo quanto é de caráter sacrílego,68 e só então, é que
Cristo nos admite à santa festa de seu corpo e de seu sangue. Pois aquele
que deseja tomar posse desta [festa] deve também renunciar àqueles [ritos
pagãos]. Oh! mui miserável é a sorte daqueles69 que, com receio de ofender
ao próximo, não hesitam em corromper-se com os ritos supersticiosos e
ilícitos! Visto que insistem nesta vereda, fazem-se responsáveis por
suprimir-se da comunhão de Cristo, e por estabelecer barreiras à via de
acesso de sua própria aproximação à mesa de seu bem-estar espiritual.
22. Ou provocaremos o Senhor? Ele ministrara seu ensino; agora se
ergue para falar em termos ainda mais veementes, porque era consciente de
que uma ofensa contra Deus, da mais atroz espécie, estava sendo reputada
por eles como algo sem importância, ou, pelo menos, era considerada como
simples equívoco sem a menor conseqüência. Os coríntios imaginavam que
sua presunção era desculpável, assim como nenhum de nós pode suportar
crítica, senão que busca um subterfúgio70 após outro a fim de esconder-se.
Paulo, porém, está totalmente certo em dizer que, agindo assim, estamos
promovendo guerra contra Deus; pois ele requer isto de nós, e não menos
que isto: que façamos sincera adesão a tudo quanto ele faz conhecido em
sua Palavra. Daí, os que se esquivam do problema, imaginando que poderão
incólumes e sem qualquer conseqüência desobedecer ao mandamento de
Deus, não estão porventura abertamente terçando armas com Deus? E esta é
a razão por que o profeta pronuncia maldição sobre todos quantos chamam
ao mal bem, e às trevas luz [Is 5.20].
Somos mais fortes do que ele? O apóstolo adverte quão tremendo é o
risco de se provocar a ira divina, visto que ninguém pode fazê-lo sem
incorrer em sua própria destruição.71 Como se diz, quando os homens estão
envolvidos, ninguém pode prever que rumo tomará o destino da guerra; mas
aquele que luta contra Deus está voluntariamente acenando para sua
própria ruína – nada menos que isso! Portanto, se tememos ter a Deus por
inimigo, então devemos temer muito mais tentar apresentar justificativas em
prol de pecados flagrantes, a saber: tudo aquilo que se põe em conflito com
sua Palavra. Devemos ainda estremecer-nos ante a idéia de pôr em dúvida
coisas que Deus nos comunicou, porque isso nada mais é senão escalar o
céu como fizeram os gigantes72 [Gn 11.4].
23. Para mim todas as coisas são lícitas. Uma vez mais o apóstolo volta
ao princípio da liberdade cristã, por meio da qual os coríntios estavam
defendendo-se, e rebate sua objeção com a mesma explicação que dera
antes, a saber: estar presente numa festa [pagã] e comer da carne que fora
sacrificada era uma questão física externa, e portanto em si mesma
completamente inócua e permissível. Paulo assevera que de fato não há
problema algum, porém refuta sua objeção afirmando que devemos levar em
conta a edificação de alguém além de nós mesmos. “Para mim todas as
coisas são lícitas”, diz ele, “porém nem todas as coisas são benéficas”, a
saber: a nosso próximo; pois nenhum de nós deve agir visando unicamente
a si próprio, como o apóstolo adiciona no próximo versículo, porém
devemos discernir se algo porventura não seria nocivo a nossos irmãos.
Ele, em seguida, especifica o tipo de vantagem: quando há edificação,
pois não devemos atentar meramente para a vantagem da carne. “O que isso
implica?” – perguntará alguém. “Tu estás insinuando que aquilo que Deus,
em outras circunstâncias, permite cessa de ser permissível assim que deixa
de ser benéfico a nosso próximo? Se este, pois, é o caso, então nossa
liberdade estaria sob o controle dos homens.” Pondera atentamente nas
palavras de Paulo, e então perceberás que a liberdade, não obstante,
permanece sem prejuízo quando te adaptas a teu próximo, e que só o uso
dela é restringido, pois ele reconhece que ela é lícita, porém diz que não
deve ser usada caso não for para edificação.
24. Ninguém busque o que é propriamente seu. Ele escreve sobre o
mesmo tema em Romanos 14: “Sigamos, pois, as coisas que servem para a
paz e para a edificação mútua” [v. 19]. Este preceito é muitíssimo necessário,
porque nossa natureza é tão corrupta que cada um de nós busca
[naturalmente] seus próprios interesses e negligencia os de seus irmãos.
Pois assim como a lei do amor requer que amemos a nosso próximo como
amamos a nós mesmos, somos igualmente intimados a preocupar-nos com
seu bem-estar. Finalmente, o apóstolo não diz explicitamente que as pessoas
não devam pensar em seus próprios interesses – longe de nós tal coisa! Mas,
o que ele deseja é que não se prendam a eles, nem tampouco renunciem
parte de seus direitos toda vez que o bem-estar de seus irmãos o exija.

25. Comei de tudo quanto se vende no mercado, sem perguntar nada, por causa da
consciência;
26. porque do Senhor é a terra, e toda sua plenitude.
27. E se algum dos incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo que se puser
diante de vós, sem nada perguntar, por motivo de consciência.
28. Mas se alguém vos disser: Isto foi oferecido em sacrifício, não comais, por causa
daquele que vos adverte e por motivo de consciência.
29. Consciência, digo, não a tua propriamente, mas a de outrem. Pois, por que seria
minha liberdade julgada pela consciência de outrem?
30. Se pela graça sou participante, por que seria eu difamado por aquilo pelo que dou
graças?
31. Portanto, quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a
glória de Deus.
32. Não deis ocasião a escândalo, nem a judeus, nem a gentios, nem à igreja de Deus.
33. Como também agrado a todos em todas as coisas, não buscando meu próprio
proveito, mas o proveito de muitos, para que sejam salvos.

25. Quicquid in macello venditur, editte, nihil disceptantes propter conscientiam.


26. Domini enim est terra, et plenitudo eius. (Ps. xxiv.1.)
27. Si quis autem infidelium vos vocat, et vultis ire, quicquid vobis apponitur edite, nihil
disceptantes propter conscientiam.
28. Quodsi quis vobis dixerit, Hoc est idolo immolatum: ne edatis propter eum qui
indicavit, et propter conscientiam.
29. Consicentiam autem dico, non tuam, sed alterius: utquid enim libertas mea indicatur
ab alia conscientia?
30. Si ergo per gratiam sum particeps, quid in eo blasphemor, in quo gratias ago?
31. Sive ergo editis, sive bibitis, sive quid aliud facitis, omnia in gloriam Dei facite.
32. Nullis satis offendiculo, sive Iudæis, sive Græcis, et Ecclesiæ Dei:
33. Quemadmodum ego quoque per omnia comnibus placeo, non quærens quod mihi est
utile, sed quod multis, ut salvi fiant.

25. Tudo quanto se vende no mercado. Ele falou sobre o congregar-se


em conexão com a idolatria, ou, pelo menos, sobre as atividades nas quais
os coríntios não podiam tomar parte sem evidenciar que estavam se
associando aos ritos supersticiosos dos incrédulos. Ele agora requer deles,
não uma mera abstenção de toda a adesão à idolatria, mas também o dever
de evitar cuidadosamente todo e qualquer escândalo, o que costumava
surgir do uso indiscriminado de coisas indiferentes. Porque, embora
houvesse apenas um tipo de escândalo por parte dos coríntios,73 havia ao
mesmo tempo diferentes graus dele. Ora, no tocante ao alimento, ele começa
fazendo uma afirmação geral, a saber: podemos comer de tudo segundo
nosso aprazimento, com consciência pura, porque o Senhor o permite. Em
segundo lugar, ele modifica esta liberdade quando ela vem para a esfera da
prática, com o fim de evitar que fossem cometidos prejuízos contra pessoas
de consciência delicada. Com isso, a parte conclusiva da discussão se
constitui de duas partes: a primeira tem a ver com a liberdade e o poder que
temos em relação às coisas neutras; e a segunda é concernente à
modificação desta, de modo que o exercício da liberdade pode ser
controlado pela regra do amor.
Sem nada perguntar.74 ̕Ανακρίνεσθαι, o termo que Paulo usa, significa
arrazoar de ambos os lados,75 de uma forma tal, que a mente da pessoa
vacila, inclinando-se ora para este lado, ora para aquele.76
Conseqüentemente, no que diz respeito à distinção de alimentos, Paulo
isenta nossas consciências de toda preocupação e incerteza, porque é justo
que, quando a evidência nos vem da Palavra do Senhor de que o que
fazemos tem sua aprovação, nossas mentes estarão em paz e livres de
ansiedade.
Por motivo de consciência. Em outros termos, diante do tribunal de
Deus. Ele poderia ter posto nestes termos: “Visto ser Deus com quem
havemos de tratar, não há razão para questionardes convosco mesmos se
isto é ou não permissível. Pois garanto-vos que vos é seguro comerdes o
que quiserdes, porque o Senhor vos permite ter de tudo, sem qualquer
exceção.”
26. A terra é do Senhor. Ele estabelece, à luz do testemunho de Davi, a
liberdade que ele admitia [Sl 24.1 e 50.12]. Mas alguém poderia formar a
seguinte pergunta: “O que isto tem a ver com o presente assunto?” Minha
resposta é: Se a terra e sua plenitude pertencem ao Senhor, não há nada no
mundo que não seja sagrado e puro. Devemos sempre prestar atenção à
questão que o apóstolo está discutindo aqui. É possível que surja alguma
dúvida se as criaturas de Deus se tornam impuras ao serem usadas pelos
incrédulos em seus sacrifícios. Paulo nega tal conceito, porque o senhorio e
possessão de toda a terra permanecem nas mãos de Deus. Por seu poder,
porém, o Senhor sustenta as coisas que tem em suas mãos, e, por causa
disso, ele as santifica. Por isso, tudo o que os filhos de Deus usam é limpo,
visto que o tomam das mãos de Deus, e de nenhuma outra parte.
Pelo termo, plenitude da terra, o profeta tem em mente a riqueza das
boas coisas com as quais a terra é provida e enriquecida pelo Senhor. Pois
se a terra não fosse provida de árvores, plantas, animais e outras coisas,
seria semelhante a uma casa desprovida de móveis e utensílios de todo
gênero; ainda mais, seria algo mutilado e horrível de se contemplar. Uma
resposta simples pode ser formulada e dada a qualquer um que suscite a
objeção de que a terra permanece sob maldição em decorrência do pecado.
Paulo, porém, aqui está pensando na natureza pura e intata, visto que ele
está tratando com crentes, para quem tudo é santificado por Cristo.
27. E algum dos incrédulos vos convidar. Aqui segue uma exceção a
esse efeito, a saber: que se um crente, após ser advertido de que o que se
acha diante dele foi oferecido em sacrifício a algum ídolo, e intuir que há
risco de provocar escândalo, estará pecando contra seus irmãos se não se
abstiver. Numa palavra, Paulo, pois, ensina que não se deve causar injúria às
consciências sensíveis.
Ao dizer: “e quiserdes ir”, ele indiretamente notifica que não aprova
plenamente tal coisa, e que seria melhor se declinassem; mas, como se trata
de uma coisa indiferente, então decide não proibir em termos absolutos. E
por certo que não há nada melhor do que manter-se à distância de tais
ciladas – não que tais pessoas devam ser expressamente condenadas, as
quais se acomodam aos homens até onde a consciência permite,77 mas
porque nos é conveniente proceder com prudência78 onde percebemos que
corremos o risco de fracassar.
29. Consciência, digo, não a tua propriamente. Ele sempre age de forma
muito cuidadosa para não restringir a liberdade, ou para não subtrair dela
nenhum grau. “Deves transigir sobre a questão relativa à consciência frágil
de teu irmão, para que não tires vantagem de teu direito pessoal e lhe causes
escândalo através de teu procedimento; ao mesmo tempo, porém, tua
consciência permanece livre como sempre, visto que ela mesma é mantida
sob controle. Portanto, não permitas que a restrição que imponho sobre ti
no tocante ao uso externo venha a ser, de alguma forma, uma armadilha a
enredar tua consciência.”
Devemos observar que, neste versículo, a palavra consciência é usada em
seu sentido restrito, considerando que em Romanos 13.5 e 1 Timóteo 1.5 ela
tem um sentido mais amplo. Paulo diz ali: “Portanto, é necessário que lhe
estejais sujeitos, não só pelo castigo”; em outros termos: não por causa do
temor do castigo, mas porque o Senhor no-lo ordena, e é nosso dever
proceder assim. Não é justo que nos acomodemos a nossos irmãos fracos
sobre a mesma base também, a saber, visto que estamos sob a obrigação de
agir assim em relação a eles, aos olhos de Deus? Além disso, a finalidade do
dever é o amor que procede de uma boa consciência. A atitude do amor não
depende de uma boa consciência? Portanto, como já disse, o significado
aqui é mais restrito, ou, seja: visto que a alma de um crente divisa somente o
tribunal divino, e não alguma autoridade humana, e se alegra na bênção da
liberdade alcançada em Cristo, ele não está sob a obrigação em relação a
nenhum indivíduo, ou limitada a alguma condição de tempo e lugar.
Alguns manuscritos reiteram a frase “a terra é do Senhor”. Mas a
probabilidade é que algum leitor antigo a tenha escrito na margem, e então
se deslizou para o texto.79 Não obstante, esta é uma questão não de muita
importância.
Porquanto, por que minha liberdade seria julgada pela consciência
alheia? Não fica claro se aqui o apóstolo está falando de si mesmo ou se
está pondo esta objeção nos lábios dos coríntios. Se a tomarmos como
sendo uma afirmação dirigida a si próprio, então estará corroborando a
afirmação anterior. “Ao refrear-vos por causa da consciência de outra
pessoa, vossa liberdade não fica com isso sujeita a tal pessoa.” Se foi
dirigida aos coríntios, o significado poderia ser este: “Tu nos impuseste uma
lei injusta, ao exigir que nossa liberdade fique de pé ou caia ao capricho de
outras pessoas.” Minha opinião é que Paulo se dirige a si próprio, porém
explica em outros termos, porque até aqui estivera declarando os conceitos
de outros. Ser julgado, pois, eu o explico aqui no sentido de ser condenado,
concordemente com a aceitação da palavra na Escritura. Paulo nos adverte
sobre o perigo que resultaria, se fizermos uso de nossa liberdade sem
reservas, dando ocasião de escândalo a nosso próximo, e assim ele nos
condenará. Assim, através de nosso erro e nossa ação irrefletida, a
conseqüência será que este benefício especial da parte de Deus será
condenado. Se não nos pusermos em guarda contra tal perigo, corrompemos
nossa liberdade em virtude de a usarmos mal. Esta consideração, pois,
tende muito mais a confirmar a exortação de Paulo.
30. Portanto, se pela graça sou participante. Este argumento é o
mesmo, ou quase o mesmo. Já que é prerrogativa do favor divino que todas
as coisas me sejam lícitas, por que deveria eu, de minha parte, ser ainda
interpretado como transgressor? Naturalmente que não podemos impedir
que os ímpios nos difamem, e nem ainda os fracos de, de vez em quando, se
irarem contra nós; Paulo, porém, responsabiliza, por sua falta de domínio
próprio, aos que voluntariamente dão ocasião a que outros escandalizem e
firam as consciências sensíveis, sem qualquer justificativa e sem servir a
nenhum propósito altruístico. Daí, o apóstolo quer que façamos uso
adequado de nossos benefícios,80 de modo que, não transigindo em
licenciosidade irrefletida, não demos ao fraco nenhuma chance de maldizer-
nos.
31. Portanto, quer comais, quer bebais. Para que não tivessem a
impressão de que não havia nenhuma necessidade de preocupar-se em
evitar censura, imaginando que não passava de uma questão trivial, Paulo
ensina que não há parte alguma de nossa vida ou conduta, por mais
insignificante81 que seja, que não esteja relacionada com a glória de Deus, e
que devemos preocupar-nos, sim, ao comermos e bebermos, e tudo fazendo
para promovê-la. Esta sentença concorda com a que precede, a saber: se
formos zelosos pela glória de Deus, como de fato devemos ser, até onde
estiver em nosso poder, evitaremos que suas bênçãos se transformem em
objetos de abuso. Isto foi bem expresso no provérbio antigo: “Que não
vivamos para comer, e, sim, comamos para viver.”82 Desde que o propósito
da vida seja ao mesmo tempo mantido em nossa mente, em certo sentido
nosso alimento será, conseqüentemente, consagrado a Deus, porque ele
será destinado a sua honra [e glória].
32. Não deis ocasião a escândalo. Eis aqui o segundo elemento que
devemos almejar – a regra do amor. Portanto, zelar pela glória de Deus
assume o primeiro lugar; preocupação com a sorte de nosso próximo, o
segundo. Paulo faz menção de judeus e gentios, não só pelo fato de a Igreja
de Deus ser composta destas duas classes, mas para mostrar que devemos
algo a todos, mesmo aos estrangeiros, de modo que, se possível, façamos
tudo para ganhá-los.
33. Como também agrado a todos os homens em todas as coisas. Visto
que Paulo está falando em termos gerais, sem qualquer exceção, há quem
erroneamente estende isso de modo a envolver coisas que são proibitivas e,
portanto, são contra a Palavra de Deus, como se tivéssemos todo o direito,
no interesse de nosso próximo, de ousar fazer mais do que o Senhor no-lo
permite. Todavia, nada pode ser mais evidente de que Paulo aqui está
apenas acomodando-se aos homens em relação às coisas que, em si
mesmas, são indiferentes e plenamente permissíveis.
Finalmente, devemos atentar bem para o propósito de se fazer isso, a
saber: para que sejam salvos. Portanto, nenhuma concessão se deve
fazer -lhes em relação a tudo aquilo que opera em detrimento de sua
salvação, porém deve-se estabelecer, neste respeito, critério, e critério
espiritual.

1. “Comme feroyent des gendarmes, qui ont desia fidlement serui si long temps, que pour leur
faire honneur on lesd enuoye se reposer le reste de leur vie.” – “Segundo a maneira dos
soldados que já serviram com fidelidade por tanto tempo, que, com vistas a vestir-lhes com
honras, eram desobrigados, de modo que eram isentados do trabalho durante o resto de sua
vida.”
2. “Aussi bien qu’à nous.” – “Tanto quanto a nós.”
3. “Ils ont senti le jugement de Dieu, et ne l’ont peu euiter.” – “Eles têm sentido o juízo de Deus, e
não têm sido capazes de escapar dele.”
4. Eux, qui estoyent son peuple.” – “Os que eram seu povo.”
5. “Nous nous assuietissons et faisons serment.” – “Submetemo-nos e juramos.”
6. “Et terrien.” – “E terrenos.”
7. “Mystere et secret.” – “Mistério e segredo.”
8. “Par toute l’Escriture.” – “Ao longo de toda a Escritura.”
9. “Es Escrituras.” – “Nas Escrituras.”
10. “Nous n’en auons maintenant pas un seul mot en toute l’Escriture.” – “Não temos nenhuma
palavra sobre ele em toda a Escritura.”
11. Veja-se a discussão de Calvino deste tema no próprio comentário ao Evangelho de João,
nesta passagem (João 6).
12. “Choses qui ayent apparence sans effet.” – “Coisas que têm uma aparência destituída de
realidade.
13. “Entre ces deux extremitez.” – “Entre estes dois extremos.”
14. Nosso autor, tendo ocasião de referir-se ao mesmo “dogma escolástico” quanto aos
Sacramentos do Velho e do Novo Testamentos (quando comenta Rm 4.12), diz: “Illis enim vim
justificandi adimunt, his attribuunt.” – “Eles negam ao primeiro o poder de justificar, enquanto
validam o segundo.”
15. “Les Issraelites.” – “Os israelitas.”
16. “Celebre et magnifie.” – “Celebra e enaltece.”
17. “Estoit.” – “Era.”
18. “C’est à dire lesquelles il ne faut prendre cruëment, et à la lettre, comme on dit.” – “Equivale
dizer: que não deve ser tomado estritamente ou segundo a letra, como dizem.” O leitor
encontrará este tema discutido em alguma extensão na Harmonia dos Evangelhos.
19. “D’vne autre façon et mesure que nous ne faisons pas.” – “De uma maneira e medida
diferentes do que fazemos.”
20. “Il a fait vne horrible vengence sur eux.” – “Ele infligiu terrível vingança sobre eles.”
21. A tradução da Vulgata é em figura [in figure]. Wiclif (1380) traduz assim a sentença: “Mas estas
coisas são apresentadas em figuras para nós.”
22. Nosso autor dá aqui o sentido literal de Kibroth-hatta-avah.
23. “Et esgayement desbordé.” – “E desenfreado excesso.”
24. “Apres la panse vient la danse.” – “Depois do jantar vem a dança.”
25. “Et ne faut point douter que les Israelites n’ayent pour lors adoré leur veau auec telle
ceremonie et obseruation que les Gentils faisoyent leurs idoles.” – “E não podemos duvidar de
que os israelitas, naquela ocasião, adoraram seu bezerro com a mesma cerimônia e cuidado
que os gentios faziam com seus ídolos.”
26. “Tant petite soit elle.” – “Seja sempre tão pequeno.”
27. “De faire vn denombrement entier des personnes par testes, comme on dit.” – “Fazer uma
completa numeração de pessoas per capita, como dizem.”
28. “Les juges qui estoyent deputez pour cognoistre des matieres ciuiles, estoyent nommez les
cent, et toutes fois il y en auoit deux par dessus.” – “Os juízes que eram designados para fazer
reconhecimento de questões civis eram chamados Os Cem, e contudo havia acima de
duzentos.” Como o Centumviri era escolhido dentre as trinta e cinco tribos, nas quais o povo
romano era dividido, três de cada tribo, consistiam propriamente de 105 pessoas.
29. “Auoit sacrifié à Baalpheor.” – “Tinham sacrificado a Baal-Peor.”
30. “Non pas tant pour affection qu’ils eussent à la fausse religion.” – “Não tanto por eles terem
adquirido uma falsa religião.
31. “Vne impiete si vileine.” – “Uma impiedade tão vil.”
32. “Vn desir importun et desordonné.” – “Um desejo importuno e desordenado.”
33. Billroth, em seu comentário sobre as Epístolas aos Coríntios, alega que o conceito que é aqui
assumido por Calvino “só poderia ser sugerido por pessoas de um caráter dogmático”. A
objeção assim apresentada, contudo, é satisfatoriamente descartada em uma valiosa nota
formulada pelo Dr. Alexander, em sua tradução de Billroth. Ver Cabinet Biblical, no. xxi, pp. 246,
247. Ver também Henderson sobre Inspiração, pp. 553, 554.
34. “C’est à dire, l’Eternel.” – “Equivale dizer, o Eterno.”
35. “De n’entrer point en la iouissance de la terre promise.” – “Não entrar no desfruto da terra
prometida.”
36. “Elle ferme la bouche à vn tas d’enragez.” – “Fecha a boca de um bando de dementes.”
37. “Qui leur sont aduenues.” – “Que aconteceu a eles.”
38. “Car quant aux Israelites qui viuoyent lors, il n’estoit point requis que ces choses fussent
enregistrees et misses par escrit, mais seulement pour nous.” – “Para que, no que diz respeito
aos israelitas que viveram naquele tempo, não se requeria que essas coisas fossem registradas
e confiadas à escrita, mas somente a nosso respeito.”
39. O termo é aplicado, neste sentido, mais especialmente aos mistérios eleusianos, os quais
eram chamados τὰ μεγάλα τέλη – os grandes mistérios. Platão, República 560 E. Ver também
Eurípedes, Med. 1379.
40. “Dequoy sert cela pour prouuer que les meschans, et ceux qui abusent de la grace de Dieu
demeureront impunis?” – “De que uso é este para impedir que os ímpios e os que abusam da
graça de Deus sejam punidos?”
41. Nosso autor provavelmente se refere mais particularmente àquela parte das Institutas na qual
ele declara os pontos de diferença entre o Velho e o Novo Testamentos.
42. “Que nous-nous endormions comme gens asseurez, et sans grand soin.” – “Que nos
resignemos a dormitar, como pessoas que são confiantes e destituídas da devida prudência.”
43. “Par laquelle ils disent qu’il nous faut tousiours douter de la foy.” – “Pela qual dizem que
devemos duvidar sempre no tocante à fé.”
44. “Se remet du tout.” – “Entrega-se totalmente.”
45. O leitor observará que nosso autor já fez leve menção deste tema, em certa extensão,
quando comenta o capítulo 2.12.
46. “Tentation ne vous a point saissis, ou surprins.” – “Nenhuma tentação vos tomou, ou
sobreveio.”
47. “Pour si petites et legeres tentations.” – “Em tão pequenas e leves tentações.”
48. A palavra ανθρώπινος (humano) pode ser entendida aqui no sentido de proporcionado à força do
homem, ou adaptado à fraqueza do homem. Na tradução de Tyndale, bem como na de Crammer, é
traduzido assim: “Segundo a natureza do homem.” A maioria dos intérpretes entende num
sentido semelhante uma expressão que ocorre em 2 Samuel 7.14: “a vara de homens e os
açoites dos filhos de homens.”
49. Mr. Fuller de Kettering, ao comparar 1 Coríntios 10.13 com 2 Coríntios 1.8, com razão observa:
“A capacidade na primeira dessas passagens, e a força na última, longe estão de ser as mesmas.
Uma é a expressão daquele apoio divino que o Senhor prometeu dar a seus servos em todas as
provações; a outra é a expressão das faculdades que possuímos naturalmente como criaturas.
Podemos ser tentados além destas, como todos os mártires o foram, e contudo não além
daquela. O homem externo pode perecer; enquanto que o homem interior é renovado dia a dia.”
Obras de Fuller, vol. iii, p. 609.
50. “Tant despourueus de sens et cognoissance de Dieu.” – “Tão destituído de juízo e
conhecimento de Deus.”
51. “La profession et demonstrance.” – “A profissão e exibição.”
52. “Les actes ou gestes externes d’idolatrie.” – “Os atos ou gestos externos de idolatria.”
53. “L’excellence de ce mystere.” – “A excelência deste mistério.”
54. “Qu’on supplee Pour.” – “Que se deve suprir por.” As palavras originais, ὅ εὐλογου̑μεν, são tidas
por muitos intérpretes eminentes como tendo sido substituídas por καθ ̓ ὅ εὐλογου̑μεν τὸν Θεὸν –
pelo qual damos graças a Deus.
55. O leitor encontrará este tema mais amplamente desenvolvido na Harmonia dos Evangelhos.
56. Figura de linguagem em que uma parte é expressa pelo todo.
57. “Des sacrifices et autres ceremonies des idoles.” – “Sacrifícios e outras cerimônias
oferecidos aos ídolos.”
58. “Rendent profanes ceux qui les seruent.” – “Tornar profanos os que os servem.”
59. “Les sacremens.” – “Os sacramentos.”
60. “Vne conionction et union auec leurs idoles.” – “Uma conexão e união com seus ídolos.”
61. Antipófora (ἀνθυποφορα) é uma figura de linguagem por meio da qual quem fala antecipa as
objeções de seus oponentes, e lhes responde.
62. “Simplement, et en soy.” – “Simplesmente e em si mesmo.”
63. “Les ceremonies des dedicaces et consecrations solennelles desquelles les Gentils vsent, ne
sont que vent, et n’emportent rien.” – “As cerimônias de dedicações e consagrações solenes, das
quais os gentios fazem uso, são mero vento, e nada significam.”
64. “Mais ie di, que les choses.” – “Digo, porém, que as coisas.”
65. “Ils entendoyent ceux qui estans hommes de grand renom, auoyent este faits dieux.” –
“Queria significar aqueles que, sendo homens de grande renome, foram convertidos em
deuses.”
66. Os seguintes exemplos podem ser deduzidos de Platão: “Todo demônio mantém um lugar
intermédio entre Deus e o homem mortal”; Deus não mantém diálogo direto com o homem, mas
toda comunicação e relação são mantidas entre os deuses e os homens por meio dos
demônios”; um demônio é um intérprete e repórter dos homens aos deuses e dos deuses aos
homens.”
67. É bem provável que Calvino esteja de olho na posição de Platão já citada, a saber, que “todo
demônio mantém um lugar intermédio entre Deus e o homem mortal”.
68. “Quand auant que nous y presenter, nous auons renoncé à tous sacrileges, c’est a dire à
toute impiete et idolatrie.” – “Quando, antes de termos acesso a ela [a comunhão], tenhamos
renunciado a tudo quanto é sacrílego, ou, seja, toda impiedade e idolatria.”
69. “O plus que miserable la condition de ceux.” – “Oh! muito mais miserável é a condição
daqueles.”
70. “Qui ne veulent point venir au poinct.” – “A quantos não desejam convencer-se.”
71. “Ruine et condemnation.” – “Ruína e condenação.”
72. O leitor encontrará o mesmo incidente na Sagrada História referida pelo autor, em
considerável extensão na Harmonia dos Evangelhos.
73. “Car combien que les Corinthiens faissent en cela plusieurs fautes qui estoyent toutes
compriss sous vne generalite.” – “Pois embora os coríntios, neste caso, cometessem muitas
faltas, as quais estavam todas compreendidas sob uma só descrição geral.”
74. “Sans en enquerir rien.” – “Sem formular qualquer pergunta quanto a isso.”
75. “Debatre en son entendement pour et contre, comme on dit.” – “A mente de alguém a debater,
em prol e contra, por assim dizer.”
76. ̕Ανακρίνω, significa propriamente examinar detidamente. Bloomfield afirma que “os
comentaristas mais recentes consideram a expressão μηδὲν ἀνακρίνοντες como substituída por
μηδὲν κρέας (isto é, κρέατος γένος) ἀνακρίνοντες, sem examinar o tipo de alimento, para ver se
procede ou não do ídolo.” Esta interpretação é natural, e concorda particularmente bem com a
expressão como se acha reiterada no versículo 27.
77. “Seulement autant que faire se peut sans offenser Dieu.” – “Somente até onde podem agir
assim sem ofender a Deus.”
78. “Auec grand auis et prudence.” – “Com grande cuidado e prudência.”
79. Ela é omitida na versão de Alexandria e de Clermont e em todos os manuscritos mais antigos;
bem como nas versões Siríaca, Arábica e Vulgata.
80. “C’est a dire, de nostre liberte.” – “Equivale dizer, de nossa liberdade.”
81. “Qu’il n’y a rien en toute nostre vie, tant petit soit-il.” – “Que nada há em toda nossa vida que
seja pequeno demais.”
82. A expressão proverbial referida ocorre em Auctor. ad Herem. 4.28 – “Esse oportet ut vivas,
non vivere ut edas.” – “Você deve comer para viver; não viver para comer.”
Capítulo 11

1. Sede meus imitadores, assim como também eu o sou de Cristo.


2. Ora, eu vos louvo, irmãos, porque em tudo vos lembrais de mim, e mantendes firmes
as ordenanças como vo-las entreguei.
3 .Mas quero que saibais que a cabeça de todo homem é Cristo, e que a cabeça da
mulher é o homem, e que a cabeça de Cristo é Deus.
4. Todo homem que ora ou profetiza, tendo sua cabaça coberta, desonra sua cabeça.
5. Mas, toda mulher que ora ou profetiza com sua cabeça descoberta, desonra sua
cabeça, porque diante de todos é como se ela fosse rapada.
6. Portanto, se uma mulher não se cobre, então que seja também tosquiada; mas, se
para uma mulher é vergonhoso tosquiar-se ou rapar-se, então que se cubra.
7. Por isso o homem não deve cobrir sua cabeça, visto ser ele a imagem e glória de
Deus, porém a mulher é a glória do homem.
8. Pois o homem não provém da mulher, e, sim, a mulher do homem;
9. tampouco foi o homem criado para a mulher, e, sim, a mulher para o homem.
10. Por este motivo, a mulher deve ter autoridade em sua cabeça, por causa dos anjos.
11. Não obstante, no Senhor nem a mulher existe sem o homem, nem o homem, sem a
mulher.
12. Pois como a mulher provém do homem, assim também o homem provém da mulher;
porém todas as coisas provêm de Deus.
13. Julgai vós mesmos: é conveniente que a mulher ore a Deus descoberta?
14. Ou não vos ensina a própria natureza que, se um homem tem cabelos longos, isso
lhe constitui uma desonra?
15. Mas se uma mulher tem cabelos longos, isso lhe constitui uma glória, porque seu
cabelo lhe é dado como cobertura.
16 .Mas, se algum homem se revela contencioso, não temos tal costume, nem as igrejas
de Deus.

1. Imitatores mei estote, sicut et ego Christi.


2. Laudo autem vos, fratres, quod omnia mea meministis et traditiones 1 tenetis,
quemadmodum vobis traditi.
3. Volo autem vos scire, quod omnis viri caput est Christus, caput autem mulieris, vir:
caput autem Christi, Deus.
4. Omnis vir orans aut prophetans velato capite, dedecore afficit caput suum.
5. Omnis mulier orans aut prophetans aperto capite, dedecore afficit caput suum:
perinde enim acsi radatur.
6. Si enim non velatur mulier, etiam tondeatur: si autem mulieri turpe est tonderi aut radi,
veletur.
7. Vir quidem velato esse capite non debet, quum sit imago et gloria Dei: mulier autem
gloria viri est.
8. Non enim est vir ex muliere, sed mulier ex viro.
9. Etenim non est creatus vir mulieris causa, sed mulier causa viri.
10. Propterea debet mulier potestatem habere super caput suum, propter angelos.
11. Cæterum neque vir absque muliere, neque mulier absque viro in Domino.
12. Quemadmodum enim mulier ex viro, sic et vir per mulierem: omnia autem ex Deo.
13. In vobis ipsis iudicate, deceatne mulierem retecto capite Deum precari.
14. An ne ipsa quidem natura vos docet, quod si vir comam alat, dedecus illi sit?
15. Si vero mulier comam alat, gloria sit illi? quoniam illi coma instar velamenti data est.
16. Quodsi quis videtur contentiosus esse, nos talem consuetudinem non habemus,
neque Ecclesiæ Dei.

1. Sede meus imitadores. Isto nos revela quão prejudicialmente os


capítulos foram divididos, porquanto esta sentença foi separada das
precedentes, às quais pertence por direito, e reunida ao que vem a seguir,
procedimento este totalmente injustificável. Consideremos, pois, esta
sentença como parte do capítulo anterior. Nele Paulo introduziu seu
exemplo pessoal em abono do que vinha ensinando. Agora ele insta com os
coríntios a que imitassem seu procedimento, assim como ele, por sua vez,
era imitador de Cristo, de modo a poderem compreender que é precisamente
isso o que se esperava deles.
Duas coisas devem-se notar aqui: primeiro, Paulo não ordena que outros
façam o que ele mesmo não tivesse antes posto em prática; segundo, ele
aponta para si mesmo e para outros, à sombra de Cristo, como exemplos da
atitude correta. Porquanto, é próprio do caráter de um bom mestre não
ministrar qualquer instrução, em termos verbais, sem antes estar preparado
a transformá-la em atos, evitando ser excessivamente rigoroso ao ponto de
esperar que outros façam exatamente o que ele tem o hábito de fazer. Isto é
precisamente o que pessoas hiper-escrupulosas geralmente fazem, pois
procuram impor a outrem tudo aquilo que constitui seu deleite, e exigem
que seu exemplo pessoal seja considerado como um padrão
terminantemente obrigatório. E as pessoas mundanas também possuem
uma tendência mui natural de seguir toda sorte distorcida de exemplos
(κακοζηλίαν),2 e, assemelhando-se aos símios, esforçam-se por fazer
precisamente o que vêem fazer aqueles que exercem grande influência
[sobre outros]. Além do mais, estamos a par do volume de mazelas trazidas
para dentro da Igreja por esta irracional avidez de imitar-se tudo quanto é
praticado pelos santos, sem qualquer exceção. Eis a razão por que devemos
ser mui precavidos em conservar este ensino de Paulo, a fim de evitarmos
que sejamos encontrados seguindo tão-somente a homens, contanto que
tenham Cristo como seu protótipo (πρωτότυπον). Como resultado, os
exemplos dos santos devem ter o efeito, não de desviar-nos de Cristo, mas,
antes, de nos remeter a ele.
2. Ora, eu vos louvo. Ele então transita para outro tema. Prepara-se para
ministrar aos coríntios a instrução sobre o gênero de decoro que devem
manter em suas assembléias sacras. Pois, da mesma forma que as vestes
que uma pessoa usa, ou a atitude que ela adota, às vezes empanam e às
vezes realçam sua aparência, passando o decoro a trazer graça a todas suas
ações, enquanto que a ausência de decoro constitui sua ruína. Portanto,
uma grande parcela depende de τὸ πρεπον,3 ou, seja, de decoro, não só para
brindar com graça e atratividade nossas ações, mas também para fazer com
que nossas imaginações se habituem com o que é nobre. Se isso, falando em
termos gerais, resulta bem em todas as coisas, muito mais em se tratando
particularmente das coisas sacras.4 Pois se não nos mantivermos
dignamente na Igreja, conduzindo-nos de uma forma decente e condizente,
então será imprevisível qual o gênero de desprezo e, eventualmente, de
rudeza de conduta advirá disto. Paulo, pois, delineia certas coisas que têm a
ver com a disposição daquilo que é público, e que em si mesmo realça o
caráter das reuniões de culto [quo sacri coetus ornantur]. Mas, para que
pudesse fazê-los mais dispostos a praticarem o que ele diz, Paulo inicia
louvando sua obediência no passado, pois haviam realmente conservado as
ordenanças que lhes havia deixado. Pois havendo gerado aquela igreja para
o Senhor [1Co 4.15], ele legara-lhe uma certa organização para seu bom
funcionamento. Visto que se mantiveram neste rumo, os coríntios o levaram
a nutrir esperança de que também estariam acessíveis à instrução no futuro.
Mas é estranho que anteriormente os tenha reprovado em tantas coisas,
e agora passe a louvá-los. Mais que isso, se realmente nos pusermos a
observar o estado daquela igreja, como foi descrito no início desta carta,
descobriremos que longe estavam de merecer um encômio desse gênero. A
esta objeção replico que alguns deles se afligiam à vista desses pecados, dos
quais Paulo já fez menção, de fato alguns com um aspecto, outros com
outro. Entretanto, ao mesmo tempo a forma com que os elogiara fora
preservada por todo o grupo. Ora, não há inconsistência em tal situação, ou,
seja: que uma tão grande soma e mescla de pecados exerça domínio sobre
certas pessoas, de sorte que algumas são impostoras, outras roubadoras;
algumas são dominadas pela inveja, outras são amantes de disputas, e ainda
outras vivem na prática da fornicação; enquanto que, concomitantemente,
no que diz respeito à forma pública da Igreja, as instituições de Cristo e dos
apóstolos são conservadas em existência.
Isso se torna mais nítido à medida que retemos o que Paulo pretendia
dizer com παραδόσεις [tradições].5 À parte desse fato, algo precisa ser dito
sobre este termo em resposta aos papistas que se armam com este versículo
a fim de defenderem seu conceito de tradição. O princípio que eles defendem
já é bem gasto, a saber: que o ensino dos apóstolos consiste de duas partes,
ou, seja: escritos e tradições. A esta segunda classe incluem não só toda sorte
de crenças disparatadas e supersticiosas, mas também ritos pueris que
conservam em grande profusão, bem como toda sorte de abominações
estapafúrdias, as quais são contrárias à insofismável Palavra de Deus; e,
finalmente, [mantêm] leis tirânicas, fruto de suas próprias maquinações, as
quais outra coisa não fazem senão torturar a consciência humana. Daí, não
há nada tão fútil, nada tão absurdo, aliás, nada tão monstruoso que não se
encontre protegido sob este falso refúgio, ou, se se preferir, que não seja
alvo desse verniz. Portanto, já que Paulo aqui faz menção de tradições,
apoderam-se desta pequena palavra, em sua forma usual, com o fim de
transformar Paulo no inventor de todas as abominações, as quais nós, de
nossa parte, refutamos, apelando para a insofismável evidência da Escritura.
Ora, não nego que algumas das tradições6 dos apóstolos de fato não
foram deixadas em forma de registro escrito, porém discordo que se
constituíssem em elementos de doutrina, e que tivessem algo a ver com o
que é necessário para a salvação. Então, com o quê elas tinham a ver? A
resposta é que elas eram matéria relativa à ordem e à forma de governo.
Sabemos que cada igreja é livre para estabelecer a forma de governo que se
adeqúe bem a suas circunstâncias e busque seu benefício, porquanto o
Senhor não ministrou nenhuma instrução específica sobre esse tema. Assim,
foi Paulo o primeiro a lançar os fundamentos da Igreja em Corinto, e lhe deu
as diretrizes por meio de instruções justas e saudáveis [institutis quoque piis
et honestis], para que tudo fosse feito ordeira e decentemente, segundo
deixou pressuposto no capítulo 14.40.
Mas o que tem isso a ver com as cerimônias insípidas e despropositadas
que nos põem face a face com o papismo7 moderno? O que isso tem a ver
com uma superstição que excede em muito à dos judeus? O que de fato isso
tem a ver com uma tirania tal como a de Falaris,8 por meio da qual torturam
as consciências de indivíduos desventurados? O que isso tem a ver com
tantos exemplos de idolatria? Porque, se alguém tiver que ditar normas a
outrem, a forma correta de fazê-lo é pondo em prática a mesma moderação
de Paulo, a fim de não forçar ninguém a aceitar suas decisões,9 quando
passam todo seu tempo elaborando tudo o que se ajuste a eles próprios,
mas, ao contrário, que sejam imitadores daqueles que são, por sua vez,
imitadores de Cristo. Sob tais circunstâncias, em que tiveram a desfaçatez de
produzir as invenções de suas próprias maquinações, exigi-lo como
obediência de todos certamente está além de qualquer pilhéria. Finalmente,
devemos compreender que Paulo está elogiando a obediência inicial dos
coríntios com o fim de torná-los mais dispostos a instrução futura.
3. Quero, porém, que saibais. Diz um provérbio antigo: “Boas leis são
oriundas de más maneiras.”10 Visto que nenhuma dúvida havia ainda sido
suscitada sobre a prática [ritus] discutida aqui, Paulo não faz nenhum
pronunciamento sobre ela.11 O erro dos coríntios lhe fornece agora o ensejo
de ensinar qual era a maneira correta de agir nesta conexão. A fim de provar
que era inconveniente para uma mulher aparecer em reunião pública de
culto com suas cabeças descobertas, e, por outro lado, para o homem orar
ou profetizar com suas cabeças cobertas, Paulo inicia com as disposições
que são divinamente estabelecidas.
Eis o que ele diz: “Como Cristo está abaixo de Deus, como sua Cabeça,
assim o homem está sujeito a Cristo, e a mulher, ao homem.” Veremos mais
adiante como Paulo conclui disso que a mulher deve cobrir a cabeça. Nesse
ínterim, retenhamos estas quatro gradações a que ele faz referência. Deus,
pois, mantém a preeminência; Cristo mantém o segundo plano. Como
assim? A resposta é que ele se fez sujeito ao Pai, em nossa carne, porque,
afora este fato, sendo de uma só essência com o Pai, ele é igual ao Pai.
Tenhamos em mente, pois, que isso se refere a Cristo em sua função de
Mediador. Meu ponto de visto é que ele é inferior ao Pai em razão de ter-se
vestido com nossa natureza, de modo a tornar-se o Primogênito entre
muitos irmãos.
Há excessiva dificuldade no que segue. Aqui o homem é colocado numa
posição imediata entre Cristo e a mulher, de modo que Cristo não constitui a
Cabeça da mulher. Todavia, é o próprio apóstolo que em Gálatas 3.28 ensina
que “em Cristo... não há nem macho nem fêmea”. Por que ele conservou esta
diferença aqui, quando a eliminou na outra passagem? Minha resposta é que
a solução depende do contexto de ambas as passagens. Quando Paulo diz
que não há diferença entre homem e mulher, ele está falando do reino
espiritual de Cristo, onde as características externas [personae] não são
levadas em conta, pois esse reino não tem nada a ver com o corpo
[material], nada a ver com as relações físicas e recíprocas dos homens [ad
externam hominum societatem]; assim, toda sua preocupação gira em torno
do espírito. Eis a razão por que Paulo declara que não há diferença nem
mesmo entre escravo e livre. Contudo, ao mesmo tempo ele deixa intata a
ordem civil [civilem ordinem], bem como as distinções em honras, pois a
vida cotidiana ordinária não pode avançar sem estas. Aqui, por outro lado,
Paulo está preocupado com a propriedade externa e o decoro, e pertence à
esfera da ordem eclesiástica. Portanto, no que respeita à união espiritual [ad
spiritualem coniunctionem], aos olhos de Deus, e interiormente, na
consciência humana, Cristo é a Cabeça de ambos, homem e mulher, sem
qualquer distinção, porque, no reino espiritual, nenhuma consideração é
dada a macho ou fêmea. De igual forma, no que tange às relações externas e
adequação social, o homem segue a Cristo e a mulher, ao homem, de modo
que não estão no mesmo pé igualdade, mas, ao contrário, permanece essa
desigualdade.
Se alguém perguntar como fica o matrimônia em relação a Cristo,
respondo que Paulo está falando aqui daquela união sacra [de sancto
coniugio] de pessoas pias, união esta da qual Cristo é o sacerdote oficiante
[antistes] e a qual é sacralizada em seu nome.
4. Todo homem que ora. Das duas afirmações que ora seguem, a
primeira tem a ver com o homem, e a segunda, com a mulher. Paulo diz que o
homem dirige insulto a Cristo, sua Cabeça, caso ore ou profetizae com sua
cabeça coberta. Por quê? Porque ele se fez sujeito a Cristo, e isso inclui a
condição na qual ele assume o primeiro lugar no controle da família e seus
negócios. Porque, em seu próprio lar, o pai de família é considerado rei.
Portanto, ele reflete a glória de Deus, por causa do controle que se acha em
suas mãos. Se porventura cobre sua cabeça, ele se rebaixa daquela
preeminência na qual Deus o colocou, e se põe sob a autoridade de outrem.
Tal injúria é feita à dignidade que pertence a Cristo. Por exemplo,12 se
alguém é designado por determinada autoridade a agir em seu nome, e não
sabe como conservar seu posto,13 e faz pouco caso de sua posição, de
modo a cair em ridículo, e mesmo em situação em extremo degradante, não
estará tal homem trazendo descrédito àquela autoridade que o designara?
Semelhantemente, se o homem não conserva sua posição, e não se põe sob
a autoridade de Cristo, de maneira a exercer sua própria autoridade na
chefia de sua família, ele está, em certo sentido, obscurecendo a glória de
Cristo, a qual é refletida na ordem perfeitamente constituída do matrimônio.
Finalmente, a cobertura, como veremos mais adiante, é o emblema de uma
autoridade intermédia e interposta.
Considero profetizar, aqui, no sentido de explicar os mistérios de Deus
visando à instrução daqueles que ouvem, como deparamos no capítulo 14.
Semelhantemente, orar significa cogitar que forma a oração tomará e fornecer
diretrizes, por assim dizer, a todas as pessoas; e esta é a função do mestre
público,14 pois Paulo não está aqui discutindo oração em geral, e, sim,
oração no culto público. Lembremo-nos, porém, de que aqui a extensão do
erro dos coríntios consiste em que o decoro era prejudicado, e a diferença
de condição, imposta por Deus, obscurecida. Pois não devemos ser
excessivamente preconceituosos, motivados pelo escrúpulo, imaginando
que um mestre está invertendo tudo ao usar um solidéu em sua cabeça
enquanto fala do púlpito ao povo. Entretanto, tudo o que Paulo tem em vista
pode ser percebido claramente, ou, seja, que o homem está em posição de
autoridade, e que a mulher se acha em posição de submissão em relação a ele,
e que isso se dá quando o homem descobre sua cabeça diante da
congregação, mesmo que ele ponha novamente seu solidéu com o intuito de
não apanhar um resfriado. A súmula é: o princípio diretor é το πρέπον,
adequação; se isso for preservado, Paulo não pede nada mais.
5, 6. Toda mulher, porém, que ora e profetiza. A segunda proposição é
que a mulher deve manter sua cabeça coberta quando ora ou profetiza,
doutra sorte estaria desonrando sua cabeça. Pois o homem honra sua
cabeça manifestando publicamente que é independente; semelhantemente, a
mulher assim procede a fim de mostrar que ela está em submissão. Em
contrapartida, se a mulher descobre sua cabeça, ela estará se
desvencilhando da submissão devida, e com isso demonstra, ao mesmo
tempo, desconsideração por seu esposo. Não obstante, pode parecer
desnecessário a Paulo proibir uma mulher de profetizar com a cabeça
descoberta, visto que em 1 Timóteo 2.12 ele sumariamente priva a mulher de
falar na igreja. Portanto, as mulheres não têm o direito de profetizar, nem
mesmo com suas cabeças cobertas; e a conclusão óbvia é que para Paulo é
perda de tempo prossiguir discutindo aqui a questão da cobertura [da
cabeça]. A isso respondo que, ao desaprovar o apóstolo uma coisa, aqui,
não significa que está aprovando a outra, ali. Pois quando as censura de
profetizarem com a cabeça descoberta, ele não está absolutamente fazendo
uma concessão para profetizar, senão que está protelando a censura contra
este erro para outra passagem [cap. 14]. Esta é uma resposta perfeitamente
adequada. Entretanto, pode-se adequar a situação plenamente bem, dizendo
que o apóstolo espera das mulheres esta conduta modesta, não só no local
onde toda a congregação se reúne, mas também em qualquer outra das
reuniões mais formais, seja de senhoras, seja de senhores, como às vezes
sucede em reuniões domésticas privativas.
Porque é como se a tivesse rapada. Ele então se vale de outras razões
para ultimar sua tese de que é inconveniente às mulheres conservarem suas
cabeças descobertas. A própria natureza revela que isso é um horror, diz ele.
Uma mulher com sua cabeça rapada é algo asqueroso, deveras uma visão
que agride a natureza. Presumimos disto que à mulher foi dado seu cabelo
como uma cobertura natural. Se alguém contesta que seu cabelo, sendo sua
cobertura natural, é tudo quanto importa, Paulo diz que não, pois esta é
uma cobertura de tal gênero que requer outra para cobri-la. E daqui
podemos aventurar-nos a uma conjetura provável de que as mulheres que
possuíam uma invejável cabeleira tinham o hábito de aparecer em público
com a cabeça descoberta com o fim de exibir sua beleza. Portanto, Paulo,
intencionalmente, remedia tal erro, expressando um conceito
completamente oposto ao delas, a saber: que em vez de torná-las atraentes
aos olhos dos homens, e despertar sua luxúria, só serviam de espetáculo
indecoroso.15
7. Naturalmente, o homem não deve trazer sua cabeça velada. A
mesma questão suscitada sobre a cabeça pode agora suscitar-se sobre a
imagem. Pois ambos os sexos foram criados segundo a imagem de Deus [ad
imaginem Dei], e Paulo insiste que as mulheres, tanto quanto os homens,
são recriados segundo essa imagem. Entretanto, ao falar dessa imagem aqui,
ele está se referirindo ao estado conjugal [ad ordinem coniugalem].
Conseqüentemente, isso tem a ver com a presente vida, e, por outro lado,
não tem nada a ver com a consciência. A solução simples é a seguinte: Aqui
Paulo não trata da inocência ou santidade que a mulher, tanto quanto o
homem, pode ter; e, sim, da preeminência que Deus confere ao homem, de
modo a fazê-lo superior à mulher. A glória de Deus é percebida num estado
mais excelente através do homem, assim como é refletida em cada
autoridade superior.
A mulher é a glória do homem. Não há dúvida de que a mulher é um
esplêndido adorno na vida do homem. Pois Deus a dignificou muitíssimo,
designando-a para ser companheira e auxiliadora à vida do homem,16 e em
colocá-la sujeita a ele, como o corpo à cabeça. Pois a descrição que Salomão
faz [Pv 12.4] da esposa conscienciosa, como sendo a coroa de seu esposo, é
genuína no tocante a toda a classe feminina, se refletirmos sobre a
ordenação divina; pois isso é o que Paulo está corroborando aqui, ao
mostrar que a mulher foi criada com o expresso propósito de enriquecer
sublimemente a vida do homem.
8, 9. Porque o homem não provém da mulher. Ele agora faz uso de
dois argumentos em prol da superioridade que atribuía ao homem sobre a
mulher. O primeiro é que a mulher se originou do homem, e que portanto ela
tem uma condição inferior. O segundo é que a mulher foi criada por causa
do homem, e portanto está sujeita a ele, como um artigo concluído depende
do propósito por que foi feito.17 Que o homem é a origem da mulher, e a
razão por que ela foi criada, é evidente à luz da lei: “Não é bom que o homem
esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora idônea” [Gn 2.18]. Em seguida: “E da
costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e a trouxe
a Adão” [Gn 2.21, 22].
10. Por este motivo, a mulher deve trazer em sua cabeça o sinal de
poder.18 Dessa autoridade ele extrai um argumento19 em prol do decoro
externo. “A mulher está submissa”, diz ele, “portanto deve usar o emblema
de submissão.” No termo poder há um exemplo de metonímia,20 posto que
ele quer exibir um emblema por meio do qual a mulher declara que ela se
encontra sob o poder de seu esposo; e tal emblema está na cobertura, seja
um manto, um véu21 ou qualquer outra espécie de cobertura.22
Há quem inquira se Paulo está fazendo referência somente à mulher
casada, porquanto há aqueles que restrinjem o que Paulo ensina aqui, com
base no fato de que isso não diz respeito às virgens, porquanto elas não
estão sujeitas à autoridade de um esposo. No entanto, isso não passa de um
equívoco, porquanto a visão de Paulo vai além, ou, seja, atinge a lei eterna
de Deus, o qual criou o sexo feminino sujeito à autoridade dos homens. É
dessa forma que todas as mulheres nascem, para que reconheçam sua
inferioridade ao sexo masculino. Do contrário seria um argumento
inconclusivo que Paulo extraiu da natureza, ao afirmar que, se uma mulher
insiste em ter sua cabeça descoberta, então seria melhor rapá-la, e isso se
aplica igualmente às virgens.
Por causa dos anjos. Esta passagem é explicada de diversas maneiras.
Uma vez que o profeta Malaquias chama os sacerdotes de anjos de Deus
[2.7], alguns acreditam que Paulo aqui está se referindo a eles. Não obstante,
os ministros da Palavra em parte algum têm esse termo aplicado à sua
pessoa sem que algo mais seja acrescido; além disso, esse sentido seria um
tanto forçado. Portanto, eu o considero em seu sentido usual. Mas alguém
poderia perguntar por que Paulo queria que as mulheres tivessem suas
cabeças veladas por causa dos anjos. O que isso tem a ver com eles? Alguns
respondem que os anjos estão presentes quando os crentes se põem a orar,
e são por isso espectadores de algum indecoro que furtivamente tiver
ingresso em suas reuniões. Não obstante, que necessidade há de uma idéia
tão engenhosa? Sabemos que os anjos estão em constante assistência, ainda
mais sob Cristo como sua Cabeça, oferecendo-lhe seu ministério.23 Quando,
pois, as mulheres se aventuram a impor sua liberdade, ao ponto de usurpar
o emblema de autoridade tornam manifesta sua vileza aos olhos dos anjos.
Portanto, isso foi expresso à guisa de ampliação, como se ele quisesse dizer:
“Se as mulhres descobrem suas cabeças, não somente Cristo, mas
igualmente todos os anjos testemunharão tamanho ultraje.” E esta
interpretação se adequa muito bem ao propósito do apóstolo. Ele está
tratando aqui da posição social que cada classe mantém. E ele diz que,
quando as mulheres se põem numa posição mais elevada à que têm direito,
elas granjeiam isto para si: põem a descoberto aos olhos dos anjos
celestiais quão impudentes elas são.
11. Nem o homem existe sem a mulher. Isto é adicionado, em parte
para refrear os homens de tratarem suas mulheres24 de forma injuriosa, e em
parte para injetar consolação nas mulheres, a fim de que sua submissão não
lhes seja uma fonte de descontentamento. Ele está dizendo: “O sexo
masculino exerce distinção sobre o sexo feminino, com este discernimento:
que devem manter-se unidos em mútua benevolência; porquanto um não
pode subsistir sem o outro. Eles, separados, se assemelhariam a membros
mutilados de um corpo destroçado. Portanto, que vivam unidos um ao
outro pelo vínculo de deveres mútuos.”25
Ao dizer, “no Senhor”, ele está relembrando aos crentes que fora o Senhor
que o determinara; ao passo que a única coisa que os incrédulos percebem é
a pressão da necessidade.26 Pois se os ímpios não encontram nenhuma
dificuldade em viver a vida de solteiro, então olham com desprezo para o
sexo oposto e não atentam para o fato de que a determinação e o decreto de
Deus os puseram sob igual obrigação. Mas os crentes estão bem cônscios
de que o sexo masculino é apenas a metade da raça humana. Ponderam
sobre o significado que as seguintes palavras têm para eles: “Deus criou o
homem [hominem] ... macho e fêmea os criou” [Gn 1.27 e 5.2]. Assim
reconhecem francamente que devem alguma coisa ao sexo frágil. As
mulheres crentes, semelhantemente, ponderam sobre quais são seus
deveres.27 E assim o homem não possui vida sem a mulher, pois isso seria
uma cabeça decepada do corpo; nem possui a mulher qualquer existência
sem o homem, pois isso seria um corpo sem a cabeça. Que o homem, pois,
cumpra sua função como cabeça, mantendo a supremacia sobre a mulher; e
que esta exerça sua função como corpo, assessorando o homem. E que esta
seja a norma não só para os casados, mas igualmente para os solteiros; pois
aqui não me preocupo com o matrimônio, mas com as obrigações públicas,
as quais são atinentes também à vida daqueles que ainda não se casaram. Se
sua opinião era que isso seria mais aplicável a todos os sexos, não discuto.
Não obstante, como Paulo está dirigindo-se aos indivíduos, tudo indica
estar ele realçando a função de cada um.
12. Porque, como a mulher provém do homem. Se esta é uma das
razões por que o homem desfruta de superioridade, a saber, que a mulher
foi tomada dele, da mesma forma existe uma forte razão para sua relação
carinhosa com ela, a saber, os homens não são capazes de cuidar de si
mesmos e nem de se manter sem a cooperação das mulheres. Pois ainda
permanece um fato inegável, a saber: que “não é bom que o homem esteja
só” [Gn 2.18]. O que Paulo diz aqui pode sem dúvida ser considerado como
uma referência à propagação, visto que os seres humanos não são um
produto exclusivo do homem, senão que provêm da somatória
homem/mulher. Mas o entendo também no sentido em que a mulher é uma
ajudadora indispensável ao homem, visto que uma vida solitária não é
conveniente ao homem. Este decreto divino nos exorta a cultivarmos
relações mútuas.
Todas as coisas, porém, provêm de Deus. Deus é a Fonte de ambos os
sexos. Por isso, ambos devem humildemente aceitar e preservar a porção
que lhes foi designada por Deus. Que o homem, pois, exerça sua autoridade
com moderação, e não maltrate a mulher, a qual lhe foi dada como sua
companheira. Que a mulher viva contente com sua posição de submissão, e
não se sinta afrontada por ocupar uma posição inferior em relação ao sexo
mais distinguido. Caso contrário, ambos se livrariam do jugo do Deus que
fez tais diferenças em suas posições visando a que as mesmas lhes fossem
benéficas. Além do mais, é muito mais grave dizer que, quando o homem e a
mulher cessam de cumprir suas obrigações recíprocas, estão se rebelando
contra a autoridade de Deus, do que Paulo dizer que estão lançando injúria
um contra o outro.
14. Ou não vos ensina a própria natureza? Ele uma vez mais põe a
natureza diante deles como a mestra do decoro. Ora, ele indica, pelo termo
natural, o que estava naquele tempo em uso comum por consenso e
costume universais – isto é, entre os gregos –, ele fala como sendo natural,
porque nem sempre se reconhecia como uma infâmia ter o homem cabelos
longos. Obras históricas relatam que desde os primórdios os homens, em
muitos países, usavam cabelos longos.28 Daí os poetas cultivarem o hábito
de falar sobre os antigos, aplicando-lhes o epíteto popular de “não-
tosquiados”.29 Em Roma, o uso da barba não teve início senão num período
posterior, mais ou menos na época de Africanus o ancião [nascido em 235
d.C.]. No tempo em que Paulo escrevia estas palavras, a prática de cortar o
cabelo não havia ainda sido adotada na Gália ou na Germânia. Sim, e mais
que isso, certamente teria sido algo desastroso para os homens – tanto
quanto para as mulheres – terem seus cabelos tosquiados ou cortados. Mas,
visto que os gregos não consideravam ser muito viril ter cabelos longos, o
que caracterizava os que eram tidos na conta de efeminados, ele considera
como sendo conforme a natureza um costume que viera para ser
confirmado.30
16. Mas, se alguém é amante de contendas. Amante de contendas é
aquele que se deleita em instigar disputas, e de modo algum se preocupa
com a verdade. Incluídos nesta categoria estão todos os que destroem o
bem e os costumes benéficos, sem qualquer necessidade de o assim fazer;
que suscitam controvérsias sobre questões que são tão cristalinas como o
sol ao meio-dia; que não param para pensar; que não podem tolerar que
alguém lhes seja superior. Nesta classe de pessoas31 estão incluídos
também os anti-sociais (ἀκοινώνητοι) que acariciam um estranho conceito
que os leva a um inusitado modo de vida. Paulo não crê que tais pessoas
mereçam alguma resposta, porque o espírito polêmico é algo danoso, e por
isso deve ser mantido fora das igrejas. É por isso que Paulo nos ensina que
os que são obstinados e amantes de controvérsia devem ser reprimidos com
autoridade, em vez de serem submetidos a longos debates e assim provem
que laboram em erro. Pois se o leitor quiser satisfazer o contencioso de que
é superior a ele, as disputas nunca chegarão ao fim; porque, ainda que seja
refutado cem vezes, ele continuará argumentando cada vez mais
atrevidamente.
Portanto, prestemos muita atenção a este versículo a fim de não sermos
arrebatados por argumentos fúteis. Daí, tenhamos sempre diante de nós o
dispositivo que nos faça distinguir as pessoas contenciosas. Pois aquele que
não concorda com nossas opiniões, ou tem suficiente coragem de nos fazer
oposição, não significa que deva ser tido na conta de contencioso. Mas
quando ele nos olha de frente, com insistência e obstinação, então
afirmemos com Paulo que “as contenções estão em oposição aos costumes
da Igreja”.32

17. Ora, nisto que vos declaro, não vos louvo; porquanto vos reunis não para melhor, e,
sim, para pior.
18. Porque, antes de tudo, quando vos reunis na igreja, o que tenho ouvido é que há
divisões entre vós; e em parte acredito.
19. Pois é necessário que haja heresias entre vós, para que também os aprovados
dentre vós se manifestem.
20. Quando, pois, vos reunis em um lugar, isso não significa comer a ceia do Senhor;
21. porque, ao comerdes, cada um toma antes de outro sua própria ceia; e, assim, um
está faminto e outro, embriagado.
22. Será que não tendes casas onde comer e beber? Ou desprezais a igreja de Deus e
envergonhais os que nada possuem? Que vos direi eu? Louvar-vos-ei nisto? Não vos
louvo.

17. Hoc autem denuntians non laudo, quod non in melius, sed in peius convenitis.
18. Primum enim, convenientibus vobis in Ecclesiam, audio dissidia inter vos esse: et ex
parte credo.
19. Oportet enim hæreses quoque esse in vobis, ut qui probe sunt, manifesti fiant inter
vos.
20. Convenientibus ergo vobis in unum, non est Dominicam cœnam edere.
21. Unusquisque enim propriam cœnam præsumit edendo: atque hic quidem esurit, ille
autem ebrius est.
22. Numquid domos non habetis, ad edendum et bibendum, aut Ecclesiam Dei
contemnitis, et pudore afficitis eos qui non habent? Quid vobis dicam? Laudabo vos in
hoc? Non laudo.

A reprovação que ele externa, contra os erros descritos na primeira parte


do capítulo, não passa de uma gentil admoestação, visto que os coríntios
pecavam por uma questão de ignorância, e por isso era justo que fossem
prontamente perdoados. No início do capítulo, Paulo os elogia por terem
fielmente guardado as instruções que lhes ministrara [1Co 11.2]. Agora ele
inicia uma reprovação muito mais incisiva, porquanto estavam cometendo
certas ofensas de natureza muito mais grave; e desta vez não havia como
acusá-los de ignorância.
17. Ora, nisto que vos declaro, não vos louvo.33 Esta é minha solução
para a dificuldade existente aqui, porquanto tudo indica que Paulo
intercambiou o particípio e o verbo.34 A interpretação de Erasmo não se
adequa bem, ao traduzir παραγγέλειν no sentido de ordenar. O verbo
denunciar, porém, se adequa melhor ao contexto, porém quanto a isso não
polemizo.
Há uma antítese entre esta frase e o que ele diz no início do capítulo. Ele
poderia ter posto nestes termos: “Visto que vos tenho elogiado, não tireis
conclusão apressada pensando que não haja restrição em meu elogio, pois
tenho algo com que responsabilizar-vos, algo que deveras merece
reprovação.” Em minha opinião, porém, isto não se relaciona unicamente
com a Ceia do Senhor, mas também com outros pecados, os quais Paulo
mencionará. Portanto, consideremos isto como uma afirmação geral, ao
dizer que os coríntios são repreendidos em virtude de se reunirem, não para
melhor, e, sim, para pior. Os resultados específicos deste mal serão tratados
mais adiante.
A primeira queixa de Paulo contra eles é que se reuniam, não para
melhor; sua segunda queixa é que assim faziam para pior. Por certo que a
segunda é de caráter mais grave. Mas a primeira não deve, tampouco, ser
minimizada; porque, se prestarmos atenção no que sucede na Igreja, nem
uma única reunião do povo deve ser considerada sem algum fruto. Pois ali
ouvimos a instrução divina, oferecemos orações e os Sacramentos são
administrados. A Palavra produz fruto quando confiamos em Deus e seu
temor age e cresce em nosso interior; quando fazemos progresso na vida de
santidade; quando, paulatinamente, nos despimos do velho homem [Cl 3.9];
quando avançamos em novidade de vida [Rm 6.4]. O propósito dos
Sacramentos é que nos entreguemos à prática da devoção e do amor. As
orações, também, devem ser eficazes em promover todos esses propósitos.
Além de tudo isso, o Senhor opera eficazmente através de seu Espírito, visto
que não quer que as coisas que nos foram destinadas sejam infrutíferas.
Portanto, se não extrairmos algum benefício das reuniões de culto, e não
nos tornarmos pessoas melhores em decorrência delas, nossa ingratidão é
que merece vexame, e por isso merecemos ser reprovados. Pois nós mesmos
somos a causa daquilo que, por sua própria natureza e pelo desígnio divino,
deve trazer-nos benefícios ou privar-nos deles.
Então segue o segundo erro, a saber: os que se reúnem para pior. Este é
um problema muito mais sério, todavia é quase sempre resultante do
primeiro. Pois se não extraímos nenhum proveito das coisas de que Deus
nos proveu, a forma que ele usa para punir nossa indolência é permitindo
que nos tornemos piores. E esta é, geralmente, a razão por que a negligência
provoca tanta corrupção; e geralmente sucede que a negligência dá origem a
muitas corrupções, especialmente porque os que não observam o uso
natural das coisas de repente passam às invenções perniciosas.35
18. Quando vos reunis na igreja, o que tenho ouvido é que há
divisões. Há quem conclua que divisões e heresias se referem àquela
desordem (ἀταξίαν) sobre a qual ele discorrerá logo a seguir. Entendo que
elas abrangem mais do que isto. Aliás, é improvável que ele tivesse usado
termos como estes, não ajustáveis nem adequáveis, para descrever tal
abuso.36 Alguns defendem a opinião de que Paulo usou linguagem mais
severa com o intuito de realçar a gravidade do pecado deles e expô-lo de
forma ainda mais clara. Estaria disposto a concordar, se o significado das
palavras se adequasse a tal idéia. Portanto, sua reprovação aqui, em termos
gerais, visa a mostrar que não estavam, como cristãos, vivendo em
harmonia, e, sim, que todos estavam por demais envolvidos em seus
próprios negócios para envidar algum esforço em benefício da vida de
outrem. Esta a raiz desse abuso particular, o que percebemos quase de
imediato; esta era a origem de sua vaidade e arrogância, de modo que cada
um se colocava num pedestal elevado e olhava de cima para os demais; esta
era a origem de sua negligência na edificação [da Igreja] e em sua profanação
dos dons divinos.
Ele diz que em parte o crê, para que nem todos concluíssem que ele
considerava a ofensa como sendo em tal grau de gravidade que culpava a
cada um deles, sem distinção, sem dar-lhes a chance de reclamarem que
estavam sendo acusados por algo de que eram inocentes. Entretanto, ao
mesmo tempo ele alega que isso chegara a seus ouvidos, não através de um
mero ou vago rumor, mas através de um depoimento mui definido, cuja
fidedignidade não poderia descartar-se completamente.
19. Pois é necessário que até mesmo haja heresia entre vós. Ele já
havia mencionado as divisões; agora menciona as heresias, com o intuito de
tornar as coisas ainda mais claras. Além do mais, deduzimos esse fato do
uso que ele faz da palavra também [até mesmo], pois ela é inserida à guisa
de ampliação (προς αὔξησιν). É notório em que sentido os pais usaram estes
dois termos,37 e que gênero de distinção faziam entre herejes e cismáticos.
Sustentavam que heresia consiste em desacordo sobre doutrina; e cisma
consite mais em alienação do afeto; como, por exemplo, quando alguém
abandona a Igreja motivado por indisposição ou aversão que sente pelos
ministros, ou pela dificuldade em concordar com os demais. A despeito do
fato de o mal ensino só poder levar à cisão da igreja, de modo que a heresia
se torna a raiz e fonte do cisma; e a despeito do fato de a inveja ou orgulho
ser a mãe de quase toda heresia, não obstante é valioso que se faça
distinção entre estes dois elementos.
Entretanto, vejamos em que sentido Paulo os emprega aqui. Já descartei
o conceito daqueles que explicam heresia como sendo a divisão que ocorria
à mesa, ou em que o rico não partilhava sua ceia com o pobre; pois a
intenção de Paulo era realçar algo ainda mais ofensivo. Pondo de lado,
porém, outros pontos de vista, tomo cisma e heresia aqui como sendo uma
questão de posição em que um vai além do outro. Assim, o cisma será
sempre encontrado onde estão presentes animosidades secretas, onde está
ausente aquela harmonia que deve haver entre os crentes, ou onde
interesses conflitantes impõem sua presença; onde cada um pensa nos
próprios meios de assegurar seus direitos, não acalentando o mínimo
interesse no que os outros dizem ou fazem. A heresia aparece onde o mal é
por demais acentuado, e avança de uma forma tão solerte, que a hostilidade
se acentua de tal forma que os homens se dispõem francamente a dividir-se
em partidos opostos.
Daí, a fim de que os crentes não se sentissem desanimados ao verem os
coríntios se dilacerando em divisões, o apóstolo focaliza a causa das
ofensas de uma perspectiva totalmente diferente, dizendo que tudo isso
acontecia porque o Senhor estava pondo à prova a perseverança de seu
próprio povo por meio de experiências como estas. Que glorioso conforto!
Diz ele: “Quando o que vemos na Igreja nada tem a ver com a perfeita
unidade, mas, ao contrário, percebemos nitidamente certos traços de
fragmentação provinda do fato de seus membros não conseguirem viver
juntos em harmonia, então não nos fica dúvida alguma de que seremos
perturbados e como resultado nos dispomos a desistir; não obstante, ainda
que as seitas entrem em cena,38 devemos permanecer firmes e resolutos.
Porque é assim que não só os hipócritas são identificados, mas também, em
contrapartida, a sinceridade dos fiéis é comprovada. Pois, de um lado, assim
como isso nos evidencia a leviandade dos que não se acham radicados na
Palavra do Senhor e a desonestidade dos que se esnobam e se passam por
boa gente, assim também, do outro lado, isso propicia aos bons a chance de
fornecerem mais clara evidência de sua inabalabilidade e sinceridade.”
No entanto, é bom notar que Paulo diz ser necessário, pois, ao fazer uso
desta expressão, sua intenção é evidenciar que esta situação não surge
casualmente, mas que surge pela infalível providência divina, visto que o
Senhor visa a experimentar seu próprio povo como se faz com o ouro num
cadinho. Ora, se isso é agradável a Deus, segue-se que nos é igualmente
benéfico. Todavia, tal fato não nos deve servir de base para entrarmos em
espinhosos debates, ou, pior ainda, não serve para nos embrenharmos por
confusos labirintos sobre a questão da necessidade fatal. Sabemos que
jamais haverá um tempo em que não mais existam pessoas falsas. Sabemos
que tais pessoas são controladas pelo espírito de Satanás, e que o mal as
mantém verdadeiramente cativas. Sabemos que Satanás perseverantemente
faz de tudo para ver rompida a unidade da Igreja. Esta é a origem da
necessidade de que Paulo está falando,39 não de destino. Também sabemos
que em sua grandiosa sabedoria o Senhor reverte os perniciosos propósitos
de Satanás para a salvação dos fiéis.40 Assim sucede ao resultado que Paulo
descreve, ou, seja: “Para que, os que são retos, sejam percebidos muito mais
claramente.” Pois de forma alguma se deve imaginar que uma bênção tal
como esta tenha sua fonte na heresia, a qual sendo por si mesma má, não
pode produzir coisa alguma senão o que é nocivo; mas a bênção emana de
Deus, o qual reverte a natureza das coisas por sua infinita benevolência, de
modo que tudo quanto Satanás porventura maquine para a destruição dos
eleitos, isso mesmo se transforma em bênção para eles.
Ora, Crisóstomo argumenta dizendo que a partícula ἵνα indica não causa,
e, sim, efeito. Isso não é de muita importância. Pois a causa é o secreto
conselho de Deus,41 por meio do qual as coisas ruins são manipuladas de
tal sorte que tudo se reverte em bem. Finalmente, sabemos que os ímpios
são impelidos por Satanás, de tal maneira, que são não só movidos a agir,
mas também eles de bom grado agem movidos por vontade própria!42
Portanto, eles são deixados sem qualquer justificativa.
20. Não é possível comer -se a Ceia do Senhor. Uma vez mais, ele volta
a condenar o abuso que tivera acesso sorrateiramente na observância
corintiana da Ceia do Senhor, a saber: estavam confundindo banquetes
ordinários com aquela festa que é santa e espiritual; e, concomitantemente,
tratavam os pobres com desdém. Paulo afirma que, quando se age assim, já
não é a Ceia do Senhor que se come; não porque um abuso particular estaria
destruindo completamente e reduzindo a nada a mais sacra das instituições
de Cristo, mas porque estavam profanando o sacramento ao celebrá-lo
erroneamente. Em nossa conversação ordinária, costumamos dizer que uma
coisa não merece ser feita, a menos que seja feita corretamente. Ora, este
não era um abuso trivial, como veremos adiante.
Se tomarmos a expressão “não é possível” no sentido de “não é
admissível”,43 como fazem alguns, não fará diferença no significado, ou, seja,
que os coríntios não estavam preparados para comer a Ceia do Senhor, visto
que se achavam totalmente divididos. Não obstante, o que já expus é mais
simples, a saber: que Paulo condena a inclusão de coisas comuns que não
têm nenhuma relação com a Ceia do Senhor.
21. Porque cada um toma antes de outros sua própria ceia. É algo em
extremo fantástico, e inclusive quase um milagre,44 que Satanás tenha sido
capaz de fazer tanto, em tão pouco espaço de tempo. Isso serve de exemplo
para prevenir-nos sobre o quanto uma coisa antiga pode fazer quando não
endossada por qualquer razão; em outros termos, quanta influência tem um
costume bem estabelecido, quando a própria Palavra de Deus não fornece
sequer uma partícula de evidência que o justifique. Visto que tal costume se
tornara comum, concluíram que o mesmo era legítimo. Naquele tempo,
Paulo estava pronto para intervir. Mas, como ficou a situação após a morte
dos apóstolos? Bem podemos imaginar como a Satanás foi permitido
cometer excessos até à saciedade!45 Todavia, este é o mais forte fundamento
sobre o qual os papistas constroem: “Eis aqui algo bem antigo; foi elaborado
há muito tempo; portanto, que sua autoridade seja equivalente a um oráculo
celestial.”
Entretanto, não podemos afirmar com certeza o que deu origem a tal
abuso, ou o que o levou a vicejar tão depressa. Crisóstomo acredita que ele
deve sua origem às festas de amor46 (ἀπὸ τω̑ν ἀγαπω̑ν), cuja prática era a
seguinte: enquanto os ricos tinham por hábito47 trazer refeição de suas
casas, e a comiam juntamente com os pobres, sem haver qualquer
discriminação entre eles, mais tarde foram eliminando publicamente os
pobres e deglutindo suas iguarias sozinhos. E isso parece procedente, pois
Tertuliano explicita que esta era uma prática muito antiga.48 Ora, eles
costumavam descrever como agape (ἀγάπαι)49 aquelas refeições
comunitárias que mantinham entre eles, porque simbolizavam seu amor
fraternal, e consistiam daquilo que eles mesmos contribuíam. E estou
plenamente certo de que a origem de tal festa estava nos ritos sacrificiais
comuns tanto a judeus quanto a gentios. Pois estou consciente de que os
cristãos geralmente corrigiam as deformidades desses ritos, mas o faziam de
maneira que ainda retinham certa semelhança deles. É bem provável que, ao
verem que tanto judeus quanto gentios estavam suplementando seu
sacrifício com uma festa, mas que ambos pecavam pela futilidade, excessiva
tolerância e intemperança, então instituíram50 uma forma de festa que os
disciplinava bem mais em frugalidade51 e moderação. Ao mesmo tempo, o
fato de sua participação mútua lhe imprimia um aspecto de refeição
espiritual. Pois os pobres se alimentavam à expensa dos ricos, e todos se
sentavam à mesma mesa. Mas, se haviam recaído nesta prática mundana e
corrupta, como era no início, ou se uma instituição, que de outra forma não
seria tão ruim, havia se degenerado nesse estado, com o passar do tempo,
Paulo não quer de forma alguma que esta festa espiritual se associe a festas
ordinárias. “É certamente algo mui excelente ver tanto o pobre quanto o rico
comendo juntos as mesmas comidas que haviam sido subvencionadas, e o
rico partilhando sua abundância com o necessitado; porém, não devemos
pôr demasiada ênfase em algo que nos leve a profanar o santo
Sacramento.”52
E alguém fica faminto. Um péssimo aspecto da situação consistia em
que o rico, ao fazer ampla provisão para si mesmo, estava tomando a
extrema pobreza do pobre e lançando-a em seu rosto. Ao dizer que alguns se
embriagavam, enquanto que outros tinham fome, Paulo fazia uso de
hipérbole a fim de realçar a desigualdade deles; porquanto alguns tinham
comida suficiente para empanturrar-se excessivamente, enquanto que
outros mal tinham o suficiente para manter unidos corpo e alma. Assim, o
pobre se expunha ao ridículo diante do rico, ou, no mínimo, se sentia
humilhado. Portanto, presenciava-se um espetáculo repulsivo, em total
desacordo com a Ceia do Senhor.
22. Não tendes casas? Esta pergunta nos revela quão insatisfeito estava
o apóstolo com este costume coríntio de festejar, mesmo que jamais
houvessem praticado o abuso que já mencionara. Pois embora pareça
plenamente aceitável que toda a Igreja coma a Ceia numa mesa comum,
todavia, por outro lado, é definitivamente errôneo voltar a reunir-se para o
culto com outras práticas que são completamente estranhas à natureza da
Ceia. Sabemos o que a Igreja deve fazer ao reunir-se, ou, seja: ouvir os
ensinamentos; oferecer a Deus suas orações e cânticos; observar os
sacramentos;53 fazer confissão de sua fé; tomar parte nos ritos religiosos e
outros exercícios piedosos. Tudo o mais que ali se faz fica fora de propósito.
Cada pessoa tem um lar propriamente seu, o qual lhe é destinado para
comer e beber; portanto, é fora de propósito fazer essas coisas numa
reunião destinada ao culto divino.
Que vos direi eu? Uma vez discutido o assunto, ele agora os convida a
ponderarem se de fato merecem ser elogiados, porquanto não poderiam
defender-se de um abuso tão óbvio. Ele, porém, aplica mais pressão sobre
eles ao formular a pergunta nestes termos: “O que mais devo fazer? Direi que
não há base para condenar-vos?”
Alguns manuscritos conectam o termo nisto com o verbo que segue,
ficando assim construído: “Elogiar-vos-ei? Nisto não vos elogio”;54 nos
manuscritos gregos, porém, a outra redação é mais usualmente encontrada,
e é a mais adequada.

23. Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: Que o Senhor Jesus, na
mesma noite em que foi traído, tomou o pão;
24. e enquanto dava graças, o partiu, e disse: Isto é o meu corpo, que é quebrado por
vós; fazei isto em memória de mim.
25. Da mesma maneira, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este
cálice é o novo testamento em meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes,
em memória de mim.
26. Porque, todas as vezes que comerdes este pão, e beberdes este cálice, proclamais a
morte do Senhor até que ele venha.
27. Por isso, todo aquele que comer este pão, ou beber este cálice do Senhor,
indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor.
28. Assim, examine o homem a si mesmo, e então coma desse pão e beba desse cálice.
29. Pois aquele que come e bebe, indignamente, sem discernir o corpo do Senhor, come
e bebe juízo para si mesmo.

23. Ego enim accepi a Domino, quod etiam tradidi vobis: quod Dominus Iesus nocte qua
traditus est, accepit panem.
24. Et gratiis actis, fregit, et dixit, Accipite, edite: hoc est corpus meum quod pro vobis
frangitur: hoc facite in mei memoriam.
25. Similiter et calicem, postquam cœnaverant, dicens, Hic calix Novum testamentum est
in sanguine meo: hoc facite, quotiescunque biberitis, in mei memoriam.
26. Quotiescunque enim ederitis panem hunc, et biberitis hunc calicem, mortem Domini
annuntiabilitis, donec veniat.
27. Itaque quisquis ederit panem hunc, aut biberit panem hunc, aut biberit calicem
Domini indigne, reus erit corporis et sanguinis Domini.
28. Probet autem homo se ipsum, et sic de pane illo edat, et de calice bibat.
29. Qui enim ederit aut biberit indigne, iudicium sibi edit ac bibit, non discernens corpus
Domini.

Até aqui ele esteve mostrando o que estava errado;551 agora ele começa a
ensinar-lhes o melhor caminho para a correção dos transtornos. Pois a
instituição de Cristo segue um padrão determinado, de modo que o mais
leve desvio dele significa que se cai em erro. Visto que os coríntios tinham-
se afastado desse padrão, Paulo os chama de volta para o mesmo. Esta
passagem precisa ser criteriosamente estudada, pois ela revela que o único
remédio para a remoção e correção das deturpações é a volta à instituição
original de Deus. Isto foi o que o Senhor pessoalmente fez quando falou do
matrimônio [Mt 19.3]. Os escribas faziam referência ao costume e também à
concessão feita por Moisés, mas a única coisa que ele mesmo fez foi apontar
para a instituição do Pai; porque ela é um princípio inviolável. Ao
procedermos assim hoje, os papistas fazem estardalhante protesto, dizendo
que estamos manipulando e corrompendo tudo.56 O que fazemos não é só
deixar bem claro o fato de se terem afastado da instituição original de nosso
Senhor, de uma única forma, mas que a corromperam de mil formas. Não há
nada mais óbvio do que ser sua missa o oposto da Santa Ceia de nosso
Senhor. Vou um pouco além: Declaro em alto e bom som que ela está
saturada de ímpias abominações. Portanto, ela necessita de séria correção.
Nossa exigência, e é óbvio que Paulo teve de fazê-la também, é que a
instituição de nosso Senhor seja nosso padrão comum, e que ambos os
lados estejam de acordo sobre isso. Eles fazem violento protesto contra
isso. Ora, o leitor conhece a natureza da controvérsia em torno da Ceia do
Senhor nos dias atuais.
23. Porque eu recebi do Senhor. Com estas palavras Paulo tenciona
mostrar que a única autoridade que tem real valor na Igreja é a do Senhor.
Ele poderia ter posto nestes termos: “Não vos entreguei algo de minha
própria autoria. Quando vim a vós, não inventara uma nova ceia, produto de
minha própria imaginação; porém tenho a Cristo como seu autor, e dele eu
recebi o que pessoalmente vos entreguei. Portanto, recorro a esta fonte
única.”57 Por isso, quando voltamos nossas costas às normas que os
homens engendram, então a autoridade exclusiva de Cristo permancece
inabalável.
Na noite em que ele foi traído. A referência à ocasião nos lembra que o
propósito do sacramento é que sejamos confirmados na bênção que a morte
de Cristo confere. Porque o Senhor poderia ter confiado este selo do pacto58
aos discípulos em alguma ocasião anterior, porém aguardou o tempo de seu
sacrifício, para que os apóstolos não tivessem que esperar muito a fim de
verem que o que ele prefigurava no pão e no vinho realmente se cumpria em
seu corpo.
Se alguém inferir disto que então devemos celebrar a Ceia à noite, e após
comer a refeição ordinária, respondo que, quando olhamos para os atos de
nosso Senhor, devemos considerar o que ele pretendia que fizéssemos. O
fato é que ele não tinha nenhuma intenção de ministrar-lhes instrução sobre
ritos noturnos, semelhantes aos de Ceres,59 e nem pretendia convidar seu
povo para sua festa espiritual após terem comido uma refeição
substanciosa. Não somos solicitados a imitar tais atos de Cristo, como da
mesma forma não devem ser considerados pertencentes a sua instituição.60
Esta é a razão por que não há dificuldade em se refutarem os astutos
argumentos dos papistas, por meio dos quais eles se esquivam61 do que eu
disse sobre reter e preservar o que Cristo realmente instituiu, e somente
isso. “Portanto”, dizem eles, “só receberemos a Ceia do Senhor à noite, e
após termos tomado a refeição, nunca em jejum.” Tal discurso, digo eu, é um
desperdício de fôlego; porque é fácil determinar que o que o Senhor fez foi
com o expresso propósito de seguirmos seu exemplo; alguém deveria antes
dizer: o que ele fez foi com o intuito de nos ensinar a fazê-lo também.
24. Tendo dado graças. Paulo, em 1 Timóteo 4.5, afirma que toda dádiva
que recebemos das mãos de Deus nos é santificada através da Palavra de
Deus e da oração. Em parte alguma, pois, lemos de nosso Senhor comendo
com seus discípulos sem estar também registrado que ele dava graças [Jo
6.23]. É sem a menor sombra de dúvida que ele nos ensinou, através de seu
exemplo, a fazer o mesmo. No entanto, esta ação de graças é ainda muito
mais profunda, porquanto Cristo está dando graças a seu Pai por sua
misericórdia62 em favor da raça humana e seu inestimável dom redentivo; e
ele nos estimula, através de seu exemplo, a que toda vez que nos
aproximarmos da Santa Mesa elevemos nossos corações em
reconhecimento do incomensurável amor de Deus por nós, e sejamos,
assim, inflamados de genuína gratidão.63
Tomai, comei, isto é o meu corpo. Visto que o propósito de Paulo aqui
era instruir-nos de forma sucinta sobre a forma correta de se celebrar o
sacramento, nosso dever é considerar atentamente64 o que põe diante de
nossos olhos, não permitindo que algo passe desapercebidamente, visto
que, como ele diz, nada, senão o que é excessivamente necessário, merece
nossa mais estrita atenção.
Em primeiro lugar, notemos que Cristo aqui distribui o pão entre os
discípulos a fim de que todos eles o comessem juntos; e dessa forma todos
viessem a participar igualmente dele. Portanto, quando uma mesa comum
deixa de ser preparada para todos os que crêem, quando estes não são
convidados a partir o pão comum, e quando, em suma, os fiéis não têm
participação com reciprocidade, não há a menor base para dar-lhe o título de
Ceia do Senhor.
Com que propósito,65 porém, o povo é convocado a reunir-se para a
missa? Talvez a resposta seja simplesmente para que sejam despedidos
novamente insatisfeitos, depois de presenciarem uma exibição insípida.66
Portanto, tal ato não tem nada em comum com a Ceia [do Senhor]. À luz
deste versículo deduzimos igualmente que a promessa de Cristo não se
aplica à missa mais do que à festa dos Salii.67 Pois quando Cristo promete
que nos daria seu corpo, ele semelhantemente nos ordena que tomemos o
pão e o comamos. Se não obedecemos a este seu mandamento, toda nossa
vanglória de possuirmos sua promessa é de nenhuma valia. Coloquemos
isto em outros termos, em linguagem mais costumeira: a promessa está
intrinsecamente unida ao mandamento, como se o último fosse uma
condição; a promessa, pois, só se torna eficaz se a condição for também
cumprida. Evocando um exemplo, está escrito [Sl 50.15]: “Invoca-me; eu te
ouvirei.” O que temos a fazer é obedecer ao mandamento de Deus a fim de
que cumpra ele o que nos prometeu; de outra forma, nos privaremos de seu
cumprimento.68
E o que dizer dos papistas? Negligenciam a participação [do povo] e
consagram o pão para um fim totalmente diferente, ao mesmo tempo que se
vangloriam de ter o corpo do Senhor. Por provocarem um ímpio divórcio,
separando as coisas que Cristo juntou [Mt 19.6], evidentemente sua
vanglória não passa de palavrório fútil. Portanto, toda vez que citam as
palavras, “Isto é o meu corpo”, devemos revidar com outras palavras, as
quais precedem àquelas: “Tomai e comei.” Porquanto o significado das
palavras é este: “Ao participardes da quebra do pão, segundo a ordem e o
rito que ordenei, deveis também participar de meu corpo.” Assim, quando
uma pessoa come seu próprio pão, a promessa neste caso não se efetiva.
Além disso, estas palavras nos ensinam o que o Senhor quer que façamos:
Tomai, diz ele. Portanto, os que sacrificam a Deus recebem suas diretrizes de
algum outro mestre, e não de Cristo, pois ele, nestas palavras, não nos
ministra instruções para a realização de sacrifício.
Entretanto, o que os papistas realmente dizem sobre a Missa? Antes de
tudo, sua impudência os levou ao ponto de alegarem que ela era correta e
apropriadamente denominada um sacrifício. Ora, eles admitem que ela é
deveras um sacrifício comemorativo, mas que, dessa forma, por meio de seu
oferecimento diário,69 a bênção redentora é canalizada tanto para os vivos
quanto para os mortos. Seja como for, certamente apresentam algo que se
assemelha a um sacrifício70 [immolationis spectaculum]. Em primeiro lugar,
há nesse ato uma grande temeridade, visto que não há nenhum mandamento
de Cristo que o justifique. Cometem, porém, um pecado ainda mais grave ao
agirem dessa forma, porque, enquanto o propósito de Cristo na Ceia era que
a tomássemos e a comêssemos, eles a perverteram para um uso totalmente
diferente.
Isto é o meu corpo. Não recorrerei a desditosas controvérsias que têm
trazido tanta perturbação à Igreja de nosso tempo, no que tange ao
significado destas palavras. Gostaria simplesmente que me fosse possível
sepultar toda lembrança delas em esquecimento eterno! Darei minha própria
visão destas palavras, não só sincera e honestamente, mas também sem
qualquer reserva, como geralmente faço.
Cristo denomina o pão de meu corpo. Rejeito, sem argumento adicional, a
noção estapafúrdia de que nosso Senhor não exibiu o pão aos apóstolos, e,
sim, seu próprio corpo, o qual era algo concreto diante de seus olhos; pois
logo a seguir vêm as palavras: “Este cálice é a nova aliança em meu sangue.”
Consideremos, pois, como além de toda controvérsia que Cristo aqui está
falando do pão.
Agora, porém, voltamos à pergunta: o que ele quis dizer ao referir-se ao
pão? A fim de chegarmos ao significado genuíno, devemos ter em mente que
ele está falando figuradamente; porque, com toda certeza, negar tal coisa é
ser excessivamente desonesto.71 Por que, pois, é o termo corpo aplicado ao
pão? Creio que todos concordariam que é pela mesma razão que João
denomina o Espírito Santo de pomba [Jo 1.32]. Até aqui estamos de acordo.
Além do mais, no caso do Espírito Santo, a razão era que ele aparecera na
forma de uma pomba; daí o nome do Espírito ser transferido para o sinal
visível. Por que não poderíamos dizer que aqui se usa uma metonímia de
maneira semelhante, e que a designação corpo é dada ao pão por ser este um
sinal ou símbolo do corpo? Se algum deles desavier-se comigo, talvez me
perdoarão; mas parece-me que, persistir argumentando sobre a assunto,
outra coisa não é senão causar distúrbio. Portanto, tenho bem nítido em
minha própria mente que esta é uma forma sacramental de expressão72
[sacramentalem loquendi modum], quando o Senhor aplica ao sinal o nome
da realidade significada [rei signatae].
Agora devemos avançar um pouco mais, e perguntar por que aqui se usa
metonímia. Minha reposta é que o nome da realidade significada não é dado
ao sinal simplesmente porque ele a auxilia [sit figura]; mas, antes, porque é
um símbolo73 por meio do qual a realidade nos é confirmada [exhibetur].
Porquanto não aceito as comparações que alguns fazem com as coisas
seculares ou mundanas, porque estas pertencem a uma categoria distinta
dos sacramentos de nosso Senhor. A estátua de Hércules é chamada
Hércules; ela, porém, não passa de uma nua e vazia representação [figura]. A
pomba, porém, é descrita como sendo o Espírito, porque ela é um penhor
[tessera] definido da presença invisível do Espírito. Portanto, o pão é o
corpo de Cristo porque ele dá indubitável testemunho do fato de que todo o
corpo, que o simboliza, nos é comunicado; ou porque, ao oferecer-nos este
símbolo, o Senhor está nos dando também, ao mesmo tempo, seu próprio
corpo; pois Cristo não está nos enganando e nos fazendo de tolos com
representações fúteis.74 Conseqüentemente, a mim é tão claro como a luz
meridiana que aqui a realidade é associada ao sinal; em outros termos,
realmente nos tornamos participantes do corpo de Cristo, no tocante ao
poder espiritual, da mesma forma que comemos o pão.
Devemos então considerar o modo da participação. Os papistas nos
impõem seu sistema de transubstanciação. Sustentam que, quando a
consagração é efetuada, a substância do pão não mais permanece, mas
somente os acidentes.75 Contra tal fabricação estabelecemos não só as
límpidas palavras da Escritura, mas também a própria natureza dos
Sacramentos. Pois qual seria a significação [significatio] da Ceia se não
houvesse nenhuma analogia entre o sinal visível e a realidade espiritual [si
nulla sit inter signum visibile et rem spiritualem analogia]? Acreditam que o
sinal tem a falsa e ilusória aparência [speciem] de pão. Então, o que dizer da
realidade significada? Talvez não passe de um exemplar de simulacro.
Portanto, se deve haver uma relação [convenientiam] correspondente entre o
sinal e a realidade [veritate] por trás dele, então o pão deve ser verdadeiro
[verum] pão, não pão imaginário, a fim de representar o verdadeiro [verum]
corpo de Cristo. Além disso, este versículo revela que não é assim que o
corpo de Cristo nos é oferecido, senão que nos é oferecido como alimento.
Ora, o que nos nutre não é de forma alguma a aparência de pão, e, sim, sua
substância. Pondo-o em poucas palavras, se a realidade mesma deve ser uma
realidade genuína, então o sinal deve igualmente ser um sinal genuíno.
Portanto, uma vez rejeitado o sonho dos papistas, vejamos o modo
como o corpo de Cristo nos é oferecido. A explicação de alguns é que [o
corpo de Cristo] nos é dado quando nos tornamos participantes de todos
os benefícios que Cristo nos grangeou em seu próprio corpo; portanto,
quando pela fé abraçamos Cristo, crucificado em nosso favor e ressurreto
dentre os mortos, desta forma nos tornamos eficazmente participantes de
todos seus benefícios. Os que pensam assim têm muito de verdade em seu
ponto de vista. Pessoalmente, porém, declaro que tal coisa só é possível
depois de obtermos Cristo mesmo para então participarmos de seus
benefícios. E além do mais declaro que ele é obtido de forma apropriada não
só quando cremos que ele foi crucificado em nosso favor, mas quando ele
habita em nós; quando, enfim, nos tornamos unidos numa só vida e
substância (se o podemos afirmar nestes termos) com ele. Além disso,
devemos prestar atenção na implicitude das palavras, pois Cristo não só
nos oferece o benefício de sua morte e ressurreição, mas o mesmo corpo no
qual ele sofreu e ressuscitou. Minha conclusão é que o corpo de Cristo nos
é real [realiter], para usar a palavra usual, e verdadeiramente [vere] oferecido
na Ceia a fim de ser o alimento gerador de saúde para nossas almas. Estou
adotando termos usuais, mas o que quero dizer é que nossas almas são
alimentadas pela substância de seu corpo, de modo que nos tornamos
verdadeiramente [vere] um com ele; ou, o que equivale a mesma coisa, que o
poder gerador de vida da carne de Cristo [vim ex Christi carne vivificam] é
derramado em nós pela instrumentalidade do Espírito, apesar de estar a
uma grande distância de nós e de não estar entre nós76 [nec misceatur
nobiscum].
Só um problema ainda permanece: como é possível que seu corpo, que
se acha no céu, nos seja oferecido aqui na terra? Alguns acreditam que o
corpo de Cristo é ilimitado, e não pode confinar-se a um único lugar, senão
que permeia o céu e a terra, como o faz a essência divina. Tal noção é tão
estapafúrdia que nem merece refutação. Os escolásticos discutem a questão
de seu corpo glorioso com mais intensidade, porém todo seu ensino
simplesmente equivale ao seguinte: que Cristo deve ser encontrado no pão,
como se estivesse encarcerado [inclusus] nele. O resultado é que os homens
olham para o pão com espanto, e lhe rendem adoração como se fosse Cristo
mesmo. Alguém lhes poderia perguntar se o que adoram é o pão ou sua
substância [especiem], e convictamente lhe responderiam com um firme “a
nenhum dos dois”; a despeito de tudo, porém, quando vão oferecer a Cristo
sua adoração, se movem na direção do pão. Por isso digo, a questão não é
de meramente volver seus olhos e todo seu corpo, mas também todos seus
pensamentos. Ora, que outra coisa é isso senão pura idolatria? Mas,
segundo minha tese, a participação no corpo do Senhor, que nos é oferecido
na Ceia, exige não uma presença local, nem a descida de Cristo, nem uma
extensão infinita77 de seu corpo, nem qualquer outra coisa desse gênero;
porque, em vista de ser a Ceia um ato celestial, não há absurdo algum em
dizer que Cristo permanece no céu e, não obstante, é recebido por nós. Pois
o modo como ele mesmo se nos comunica é através do poder secreto do
Espírito Santo, poder esse que é capaz não só de manter-nos juntos, mas
também de juntar as coisas que são separadas pela distância – de fato, por
uma imensa distância.
Não obstante, a fim de estarmos habilitados para essa participação,
teremos que subir ao céu. Neste sentido, nossas faculdades físicas não são
de nenhuma valia; por isso é indispensável que a fé se intervenha em nosso
socorro. Quando falo em fé, não estou referindo-me a algum gênero de
opinião que dependa do que os homens elaborem, visto que há muitos que
constantemente se gloriam de sua fé, e que, no entanto, se acham
extremamente longe da questão em pauta. Então, que fé é essa? Você vê o
pão, e nada mais; porém você ouve dizer que ele é um símbolo78 do corpo
de Cristo. Esteja plenamente certo de que o Senhor realmente executará o
que o leitor entende ser o sentido das palavras, a saber: que seu corpo, o
qual o leitor de forma alguma vê, é o alimento espiritual para cada um de
nós. Parece inacreditável que somos alimentados pela carne de Cristo, a
qual se acha tão distante de nós. Lembremo-nos de que tal fato é uma obra
secreta e grandiosa efetuada pelo Espírito Santo, e seria algo pecaminoso
tentar medi-lo pelo tacanho padrão de nosso próprio entendimento.
“Entretanto, ao mesmo tempo livre-se das noções absurdas que porventura
conservem seus olhos grudados no pão. Que Cristo conserve sua carne,
que é carne real [veram carnis naturam], e que o leitor não defenda o
conceito equivocado de que o corpo de Cristo se estende por todo o céu e
terra. Tampouco o divida em partículas por meio de suas idéias
extravagantes, e nem o adore neste ou naquele local ou segundo sua
apreensão carnal [pro carnali tuo sensu]. Deixe-o em sua glória celestial;
aspire, pessoalmente, alcançar o céu, para que de lá79 ele possa comunicar-
se com você.”
Estas poucas coisas satisfarão as mentes das pessoas retas e humildes.
Aos curiosos, meu conselho é que volva sua atenção em outra direção, a fim
de satisfazer seus apetites.
Que é quebrado por vós. Há quem pense que isto se refere à
distribuição do pão, já que era necessário que o corpo de Cristo fosse
preservado intato, a fim de harmonizar-se com a predição constante em
xodo 12.46: “nenhum de seus ossos será quebrado.” Quanto a mim, embora
reconheça que Paulo está aludindo à quebra do pão, não obstante considero
o termo quebrado como sendo aqui usado no sentido de sacrificado;
certamente que este não é o uso apropriado do termo, porém não é fora de
propósito. Porque, embora “nenhum osso seu” fosse danificado, todavia,
visto que seu corpo foi, antes de tudo, exposto a tanta tortura e sofrimento,
e em seguida à punição de morte em sua forma mais cruel, não se pode dizer
que seus ossos saíssem ilesos. Eis o que Paulo pretende com o termo
quebrado. Esta contudo é a segunda parte da promessa, e ela não deve ser
passada por alto. Pois o Senhor não nos oferece seu corpo, só seu corpo e
nada mais além dele, porém seu corpo como tendo sido sacrificado em
nosso favor. A primeira parte, pois, nos diz que seu corpo nos foi
comunicado; esta segunda parte declara que desfrutamos dele, ou, seja,
nossa participação na redenção e na aplicação do benefício de seu sacrifício.
Esta é a razão por que a Ceia é um espelho a nos refletir o Cristo crucificado,
de modo que uma pessoa não pode receber a Ceia e desfrutar de seus
benefícios, a menos que abrace o Cristo crucificado.
Fazei isto em memória de mim. A Ceia, pois, é um memorial
(μνημόσυνον)80 designado com o fim de assistir-nos em nossas fraquezas;
porque, se de outra forma estivéssemos suficientemente imbuídos da morte
de Cristo, este auxílio seria de todo supérfluo. Isto se aplica a todos os
Sacramentos, porquanto eles nos ajudam em nossas fraquezas. No entanto
logo descobriremos que sorte de memorial de si mesmo Cristo queria que
conservássemos na Ceia.
Alguns extraem uma inferência desta frase, dizendo que, nestas
circunstâncias, Cristo não está presente na Ceia, visto que não pode haver
memorial [memoria] de algo [ou alguém] que se acha ausente. Isso pode ser
facilmente respondido: segundo esse raciocínio sobre a Ceia como
recordação [recordatio], Cristo realmente está ausente dela. Pois ele não se
acha presente visivelmente, e nem é visto por nossos olhos como vemos os
símbolos, os quais, por representá-lo, nos estimulam a lembrar-nos dele.
Finalmente, a fim de estar presente conosco, ele não deixa seu lugar, senão
que, do céu, nos envia a eficácia de sua carne para estar presente em nós.81
25. Depois de haver ceado, tomou também o cálice. O apóstolo parece
sugerir que houve um certo intervalo de tempo entre a entrega do pão e a do
cálice; e os evangelistas não deixam muito claro se tudo foi um ato
contínuo.82 É verdade que isso não importa muito, porque pode muito bem
ter ocorrido que o Senhor proferisse algum discurso, o qual poderia ter-se
encaixado entre a entrega do pão e a do cálice. Visto, porém, que ele nada fez
nem disse que não estivesse relacionado com o mistério, não há qualquer
necessidade de dizermos que sua administração era desordenada ou foi
interrompida. Não quero adotar a redação de Erasmo – “quando a ceia foi
concluída” –, visto que a ambigüidade precisa ser evitada numa questão de
tão grande relevância.
Este cálice é o novo testamento. O que é afirmado quanto ao cálice
aplica-se igualmente ao pão; e assim ele está usando estes termos para
expressar o que já dissera de uma forma mais abreviada, ou, seja, que o pão
é seu corpo. Porque o temos por esta razão: para que seja uma aliança em
seu corpo, a saber, uma aliança que foi uma vez por todas ratificada pelo
sacrifício de seu corpo, e que é agora confirmada pelo comer, ou, seja,
quando os crentes se deleitam nesse sacrifício. Daí, onde Paulo e Lucas
falam de o testamento em meu sangue, Mateus e Marcos falam de o sangue do
testamento, o que equivale a mesma coisa. Pois o sangue foi derramado a fim
de nos reconciliarmos com Deus, e agora o bebemos espiritualmente a fim
de termos participação nesta reconciliação. Portanto, na Ceia temos a
aliança [foedus] e um penhor que confirma a aliança.
Se o Senhor me poupar, pretendo discorrer sobre a palavra aliança ou
testamento [testamentum] no comentário à Epístola aos Hebreus. É bem
notório, porém, o fato de que os Sacramentos são descritos como
testamentos, visto que nos suprem com testemunhos do beneplácito de Deus
com o fim de fazer nossas mentes plenamente seguras dele.83 Pois o modo
como o Senhor trata conosco é semelhante ao modo como os homens fazem
suas alianças entre si através de ritos solenes. Este modo de falar não é de
forma alguma inadequado, porque, em razão da conexão existente entre
palavra e sinal, a aliança do Senhor realmente está jungida aos Sacramentos,
e o termo aliança [foedus] produz uma relação conosco ou nos enlaça. Isso
será de grande valor para entendermos a natureza dos Sacramentos, pois se
são alianças, então contêm promessas, as quais podem despertar a
consciência humana para a certeza da salvação. Segue-se desse fato que eles
não são simplesmente sinais externos da fé que professamos, para que os
homens vejam, mas também auxiliam nossa própria vida interior de fé.
Fazei isto todas as vezes que o beberdes. Cristo, pois, instituiu um
duplo sinal na Ceia. As coisas que Deus ajuntou, os homens não devem
separar. Portanto, distribuir o pão sem o cálice é mutilar a instituição de
Cristo,84 e nosso dever é dar crédito a suas palavras. Como ele nos ordena
comer o pão, assim nos ordena beber o cálice. Consentir com uma metade
do mandamento e desconsiderar a outra, outra coisa não é senão zombar
daquilo que ele estabeleceu. Impedir o povo de beber o cálice que Cristo
deu a todos, como sucede sob a tirania papal, é sem dúvida alguma uma
presunção diabólica. Seu sofisma de que Cristo estava falando aos
apóstolos, e não ao povo comum, é excessivamente pueril e facilmente
refutável por esta mesma passagem; porque aqui Paulo está se dirigindo aos
homens e mulheres, sem distinção, e de fato à Igreja toda, e diz que ele lhos
entregou em consonância com o mandamento do Senhor [v. 23]. Os que
ousaram anular esta ordenança, agiram movidos por qual espírito?
Contudo, ainda em nossos dias esta grosseira corrupção continua sendo
obstinadamente defendida. E que motivo há para surpresa, se
impudentemente tudo fazem para justificar, pelo uso de discurso e escritos,
o que é tão cruelmente mantido a fogo e espada?
26. Porque todas as vezes que comerdes. Ele agora adiciona uma
descrição do modo como o memorial deve ser observado, a saber: com
ações de graças. Não é que o memorial dependa completamente da confissão
de nossos lábios, porque o ponto básico é que o poder da morte de Cristo
deve estar selado em nossas consciências. Mas este conhecimento deve
mover-nos a louvá-lo publicamente a fim de que os homens saibam, quando
estamos em sua companhia, que em nosso íntimo temos consciência da
presença divina. A Ceia, portanto – se é que posso expressar-me assim –, é
uma espécie de memorial [quoddam memoriale] que deve ser conservado
perenemente na Igreja, até a vinda final de Cristo; e que foi instituída com
este propósito, a saber: para que Cristo nos lembre do benefício de sua
morte, e nós, de nossa parte, possamos reconhecê-la85 diante dos homens.
Esta é a razão por que ela é chamada Eucaristia.86 Portanto, a fim de que
possa celebrar a Ceia adequadamente, o leitor deve ter em mente que o
requerimento é que faça declaração de sua fé.
Isto nos revela mui claramente quão impudentemente motejam de Deus,
vangloriando-se de que na missa eles têm algo correspondente à natureza da
Ceia. Pois, o que é a missa? Eles admitem (pois não me refiro aos papistas, e,
sim, aos pretensos seguidores de Nicodemos) que ela está saturada de
superstições abomináveis. Por meio de gestos externos fazem uma pretensa
aprovação delas. Que sorte de exibição é esta de proclamar a morte de
Cristo? Não estão, antes, renunciando-a?
Até que ele venha. Uma vez que somos sempre necessitados de um
arrimo como este, enquanto ainda vivemos neste mundo, o apóstolo
salienta que fomos incumbidos deste ato de recordação [recordationem] até
que Cristo entre em cena para o juízo. Porque, já que ele não está presente
conosco de forma visível, carecemos de ter algum símbolo de sua presença
espiritual, com o qual exercitar nossa mente.
27. Por isso, todo aquele que comer o pão... indignamente. Se o
Senhor espera de nós gratidão, ao recebermos este sacramento; se ele quer
que reconheçamos sua graça de todo nosso coração e fazê-la conhecida
através de nossos lábios, então aquele que lhe dirigiu insulto em vez de
honra não escapará sem castigo; pois o Senhor não tolerará que seu
mandamento seja menosprezado.
Ora, para que possamos apreender o significado deste versículo, é
preciso que compreendamos o que “comer indignamente” significa. Alguns o
aplicam somente aos coríntios e à corrupção que grassava em seu seio.
Minha opinião pessoal, porém, é que Paulo, como geralmente faz, se move
do caso particular para o ensino geral, ou de um exemplo para toda uma
classe. Havia um erro que prevalecia entre os coríntios. Ele aproveita a
ocasião para falar de toda espécie de erro que porventura seja encontrado
na administração e recepção da Ceia. “Deus”, diz ele, “não permitirá que este
sacramento seja profanado sem severa punição.”
Portanto, comer indignamente é desonrar o uso puro e legítimo por
nosso próprio abuso. Esta é a razão por que há vários graus de indignidade,
por assim dizer; e alguns pecam muito mais gravemente, enquanto que
outros o fazem só levemente. Nenhum fornicador, perjuro, ébrio ou
impostor, sem indício de arrependimento, pode forçar caminho. Visto que
indiferença deste nível produz a caracterização de um cruel insulto a Cristo,
não há dúvida de que alguém, que recebe a Ceia nesse estado, recebe sua
própria destruição. Outros se chegam, e não se encontram sob o domínio de
algum erro óbvio e perceptível, no entanto em seu coração não estão
preparados como deveriam. Visto que esta displicência ou indiferença é
sinal de irreverência, ela também merece a punição de Deus. Por isso, visto
que há vários graus de “participação indigna”, o Senhor aplica castigos mais
leves em alguns, e mais severos em outros.
Ora, esta passagem tem suscitado uma inquirição que tem levado muitos
aos mais acirrados debates, a saber: aquele que participa indignamente está
de fato comendo o corpo de Cristo. Pois há quem se sente tão arrebatado
pela controvérsia que chega a dizer que ele [o corpo] é recebido igualmente
pelo bom e pelo mau; e, em nossos dias, muitos espalhafatosos estão
obstinadamente sustentando que na própria primeira Ceia Pedro não
recebeu mais do que Judas. E eu me sinto deveras relutante em entrar em
feroz debate com alguém sobre esta matéria, a qual, em minha opinião, é
uma questão periférica. Mas, como outros evocam sobre si a
responsabilidade, com ares de professor, seja o que for que lhes pareça
apreciável, fazendo trovejar para todos os lados e contra todos que
expressem algo em contrário, seremos justificados se calmamente
aduzirmos razões em abono do que consideramos como sendo a plena
verdade.
O fato de Cristo não poder separar-se de seu Espírito constitui para mim
um axioma, e não permitirei que eu mesmo seja alijado dele. Daí sustento
que seu corpo não é recebido como morto, ou ainda como inativo,
dissociado da graça e poder de seu Espírito. Não gastarei muito tempo em
provar esta afirmação.
Ora, se alguém não possui sequer um leve vestígio de fé vigorosa ou de
arrependimento autêntico, e nada do Espírito de Cristo,87 como poderia
receber o próprio Cristo? Mais que isso, visto que o tal se acha
completamente sob o controle de Satanás e do pecado, como estaria apto a
receber Cristo? Portanto, de um lado, concordo que haja pessoas que
verdadeiramente recebem Cristo na Ceia e que, ao mesmo tempo, são
indignas. Muitos dos fracos, por exemplo, pertencem a esta categoria. Em
contrapartida, não aceito o ponto de vista de que os que depositam fé
meramente nos eventos históricos do Evangelho88 [fidem historicam], sem
uma viva consciência de arrependimento e fé, recebem apenas o sinal. Pois
não posso suportar a idéia de partir Cristo89 em pedaços, e fico horrorizado
ante a noção absurda de que aos descrentes ele se oferece para ser comido
de forma exangüe, por assim dizer. Tampouco Agostinho quis algo mais que
isso quando disse que os ímpios recebem Cristo meramente no sacramento
[sacramento tenus] o que ele expressa mais claramente em outro lugar,
quando diz que os demais apóstolos comeram o pão – o Senhor [panem
Dominum]; Judas, porém, apenas o pão do Senhor [panem Domini].90
Mas a objeção aqui apresentada é que a eficácia dos Sacramentos não
depende da dignidade humana, e que as promessas de Deus não são de
maneira alguma comunicadas nem destruídas pela maldade humana.
Concordo com isso, e por essa mesma razão digo mais, e em termos bem
explícitos, que o corpo de Cristo é oferecido aos maus tanto quanto aos
bons, e que tudo isso é requerido no que diz respeito ao efeito do
sacramento e da fidelidade de Deus. Porque, na Ceia Deus não ludibria o
ímpio através de mera representação do corpo de seu Filho, mas realmente o
faz válido para eles; e o pão não lhes é um sinal vazio, mas um penhor
[tessera] da fidelidade divina. Sua rejeição em sentido algum prejudica ou
altera a natureza do sacramento.
Devemos ainda enfrentar uma objeção oriunda do que Paulo diz nesta
passagem. “Ele apresenta os indignos como sendo culpados, visto que não
discernem o corpo do Senhor; segue-se que recebem seu corpo.” Eu nego tal
inferência; porque, embora a rejeitem, contudo, como a profanam e a tratam
com desonra quando lhes é apresentada, merecidamente são tidos como
culpados, porquanto a lançam, por assim dizer, no chão e a pisam sob seus
pés. Um sacrilégio dessa proporção é algo trivial? Por isso não vejo
dificuldade nas palavras de Paulo, contanto que se tenha em vista o que
Deus apresenta e sustenta aos ímpios – não no que eles recebem.
28. Assim, prove o homem a si mesmo. A seguinte exortação é extraída
da ameaça que ele pronunciou. “Se os que comem indignamente são
culpados do corpo e do sangue do Senhor, então que ninguém se aproxime
da mesa sem antes estar devidamente preparado. Que todos, pois, cuidem
para que não caiam neste sacrilégio mediante negligência ou indiferença.”
Agora, porém, pergunta-se: Quando Paulo nos intima a fazermos um auto-
exame, qual seria a natureza disso? A conclusão dos papistas é que isso
consiste em confissão auricular. Ordenam a todos os que estão para receber
a Ceia a examinarem suas vidas cuidadosa e minuciosamente, a fim de que
aliviem-se de todos seus pecados aos ouvidos de um sacerdote. Eis seu
método de preparação!91 Mas, quanto a mim, defendo a tese de que o santo
exame de que Paulo está falando muito longe está de ser tortura. Tais
pessoas92 acreditam que ficam limpas depois de torturarem suas
consciências por algumas poucas horas e então permitem que o sacerdote
entre em seus recessos mais secretos e descubra suas infâmias.93 O que
Paulo aqui requer é outro gênero de exame, aquele que corresponde ao uso
apropriado da Santa Ceia.
Tenho um método de preparação mais eficaz ou mais fácil a apresentar-
lhe, a saber: se o leitor deseja extrair os benefícios próprios deste dom de
Cristo, então cultive em seu coração fé e arrependimento. Daí, para que o
leitor se apresente bem preparado, o exame precisa ter por base estes dois
elementos. No arrependimento incluo o amor, pois é indubitável que a
pessoa que aprendeu a renúncia a fim de devotar-se a Cristo e a seu serviço,
também se devotará de corpo e alma à promoção da unidade que Cristo nos
recomendou. Aliás, o que se exige não é fé perfeita ou arrependimento
perfeito. Isto é enfatizado por causa de algumas pessoas, pois ao insistirem
demais numa perfeição que não pode ser encontrada em parte alguma, outra
coisa não fazem senão estabelecer barreira perene entre cada homem e cada
mulher e a Ceia. Entretanto, se o leitor aspirar pela justiça de Deus e se,
humilhando-se ante a consciência de sua própria miséria, recorre à graça de
Cristo, e descansa nela, esteja certo de que é um convidado digno de
aproximar-se dessa Mesa. Ao afirmar que o leitor é digno, estou dizendo que
o Senhor não o exclui, ainda que em outros aspectos não esteja como
deveria. Porque a fé, ainda que imperfeita, transforma o indigno em digno.
29. Aquele que come indignamente, come juízo para si. Paulo já havia
ressaltado claramente a gravidade da ofensa ao dizer que quem “come
indignamente será culpado do corpo e do sangue do Senhor”. Agora ele lhes
apresenta a causa para que se alarmem diante da ameaça de castigo.94 Pois
muitos não se sentem perturbados diante do pecado propriamente dito, a
não ser que sejam visitados pelo juízo divino. E é isso que Paulo está
fazendo quando declara que esta refeição, que de outro modo é salutar, se
converterá em peçonha e causa de destruição para aqueles que a comerem
indignamente.
E ele adiciona a razão para isso, ou, seja, porque não discernem o corpo
do Senhor, o qual é santo e não algo vulgar. O que ele está querendo
comunicar é que os coríntios compulsavam o sagrado corpo de Cristo com
mãos impuras [Mc 7.2],95 e, pior ainda, tratavam-no como se fosse algo vil,
não dando qualquer importância a seu infinito valor.96 Portanto, teriam que
pagar o preço por uma profanação tão grave. Não obstante, que meus
leitores tenham em mente o que disse há pouco, ou, seja, que o corpo97 de
Cristo lhes é oferecido, ainda que sua indignidade os impeça de participarem
dele.

30. Por esta causa há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem.
31. Pois, se julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados.
32. Mas, quando somos julgados, somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos
condenados com o mundo.
33. Por isso, meus irmãos, quando vos ajuntais para comer, esperai uns pelos outros.
34. E se alguém tiver fome, coma em casa, para não vos ajuntardes para condenação.
Quanto às demais coisas, ordená-las-ei quando eu for.

30. Propterea inter vos infirmi sunt multi, et ægroti, et dormiunt multi.
31. Si enim ipsi nos indicassemus, non indicaremur.
32. Porro quum indicamur, a Domino corripimur, ne cum hoc mundo damnemur.
33. Itaque, fratres mei, dum convenitis àd edendum, alii alios exspectate.
34. Si autem quispiam esurit, domi edat, ne in iudicium edatis; cætera autem, quum
venero, disponam.

30. Por esta causa. Uma vez tendo tratado, em termos gerais, da questão
da “participação indigna”, e o gênero de punição que aguarda aqueles que
profanam este sacramento, ele agora fala da punição que por sua vez terão
que enfrentar. Não sabemos se nesse tempo alguma praga os atormentava,
ou se eram afligidos por outros gêneros de enfermidades. Seja como for,
deduzimos do que Paulo diz que o Senhor havia enviado algum tipo de
açoite para discipliná-los. E quando Paulo diz que estavam sendo punidos
porque comiam indignamente, com certeza não estava fazendo nenhuma
conjetura, senão que asseverava algo de que estava muito bem consciente.
Então declara que muitos haviam contraído doenças, que muitos se
achavam sob o domínio de um longo estado de enfraquecimento e que
muitos haviam morrido em razão do abuso que faziam à Ceia, pelo que
haviam ofendido a Deus. Desta forma, ele está pondo em realce o fato de que
somos advertidos através de enfermidades e de outros meios disciplinares
usados por Deus, a fim de meditarmos sobre nossos pecados; pois, visto
que Deus não tem nenhum prazer em nossas aflições, ele não nos fere a
menos que tenha boas razões para fazê-lo.
Este é um grande e multifário tema; porém, aqui o apresentamos apenso
a um comentário breve e superficial. Se na época de Paulo um abuso feito à
Ceia,98 que não era dos mais graves, podia despertar a ira de Deus contra os
coríntios, ao ponto de puni-los com tanta severidade, o que pensar da
situação em nossos próprios dias? Ao longo da série de papas, vemos não
só as horríveis profanações da Ceia, mas também algo profano e detestável
estabelecido em seu lugar.
(1) Em primeiro lugar, ela é prostituída para sórdidos fins lucrativos
[1Tm 3.8]. (2) Ela é mutilada, visto que o cálice foi suprimido. (3) Sua
forma99 foi totalmente alterada, visto que se tornou o costume de cada um
ter sua festa a seu próprio modo, de forma que a participação mútua é posta
de lado.100 (4) Não se apresenta nenhuma explicação do sacramento, mas
tudo é ouvido em som murmurante, o que se assemelha mais a
encantamentos de mágicos, ou a horríveis sacrifícios pagãos, do que mesmo
à instituição do Senhor. (5) Há incontáveis cerimônias, profusas não só de
coisas sem sentido, como também de superstição e, por isso, de claras
deturpações. (6) Há a diabólica invenção do sacrifício, o que equivale a uma
ímpia blasfêmia contra a morte de Cristo. (7) É bem projetada para levar os
homens ignóbeis a se embriagarem com uma confiança carnal, ao colocá-la
diante de Deus como expiação e ao imaginarem que, por meio deste fetiche,
estão expulsando tudo quanto poderia prejudicá-los, e isso sem fé e sem
arrependimento. Sim, e o que é ainda pior, quando se vêem tão seguros de
que estão armados contra o diabo e a morte, e que, no tocante a Deus, se
sentem seguramente protegidos contra ele, se tornam ousados para pecar
com muito mais liberdade,101 e se agigantam em sua obstinação. (8) Nela,
um ídolo é adorado no lugar de Cristo. Em suma, ela está saturada de toda
sorte de abominações.102
Ora, nós administramos a Ceia em sua pureza, na forma como nos foi
restaurada,103 como se tivesse, por assim dizer, regressado do exílio.104
Mesmo entre nós, porém, quanta irreverência existe! Quanta hipocrisia por
parte de muitos! Que desditosa mescla existe quando, sem qualquer
discriminação, pessoas perversas e publicamente dissolutas abrem
caminho para ela, pessoas com quem nenhuma outra pessoa decente e
respeitável teria quaisquer relações sociais e ordinárias!105 E ainda
indagamos qual seria a razão para tantas guerras, tantas pragas, quantas
colheitas abortivas, quantas desgraças e calamidades, como se a causa não
nos fosse tão óbvia como uma nuvem que percorre o céu. E certamente não
podemos antecipar o fim dos infortúnios, até que tenhamos removido sua
causa pela correção de nossos erros.
31. Se julgássemos a nós mesmos. Aqui temos outra notável afirmação,
ou, seja: que Deus não se ira contra nós repentinamente, punindo-nos tão
logo erramos, mas, na maioria das vezes, é em virtude de nossa negligência
que ele se vê forçado a punir-nos, ao notar que estamos despreocupados e
apáticos, ludibriando-nos a nós mesmos em relação a nossos pecados.106
Por isso, desviaremos de nós ou mitigaremos os castigos que nos ameaçam,
se antes de tudo fizermos um balanço de nós mesmos e, sinceramente
arrependidos, desviarmos a ira de Deus por meio de orações sinceramente a
ele dirigidas, infligindo-nos punições, de nosso próprio arbítrio.107 Numa
palavra, os crentes evitam o juízo divino por meio de arrependimento; e o
único antídoto pelo qual podem obter absolvição aos olhos de Deus é
através da autocondenação espontânea.
Entretanto, o leitor não deve deduzir (como geralmente fazem os
papistas) que há uma espécie de transação entre nós e Deus, nesta conexão,
de modo que, ao nos infligirmos nosso próprio castigo, de nossa própria
iniciativa, fazemos-lhe compensação, e em certo sentido nos redimimos a
nós mesmos de debaixo de sua mão. Portanto, não desviamos o juízo de
Deus antecipadamente só porque trazemos algo de natureza compensatória,
que o possa apaziguar. A razão é que quando Deus nos pune, sua intenção é
sacudir-nos de nossa letargia e incitar-nos ao quebrantamento. Se
procedemos assim, de nosso próprio arbítrio, então não existe mais razão
para ele prosseguir exercendo seu juízo contra nós. Mas se alguém que já
aprendeu a viver insatisfeito consigo mesmo e a praticar penitência se vê
ainda, não obstante, perseguido pelo azorrague divino, devemos deduzir
disso que seu arrependimento não é tão completo e tão forte que se exima
da necessidade de alguma reprovação a ajudá-lo a desenvolvê-la ainda mais.
Note-se como o arrependimento estanca o juízo divino como um antídoto
eficaz, mas não como algo que o substitua.
32. Mas quando somos julgados. Aqui temos uma consolação que é
imprescindivelmente necessária. Pois se alguém que se encontra em
dificuldade crê que isso se deve ao fato de Deus estar irado contra ele, seu
quebrantamento é suficiente para movê-lo à reparação. Paulo, pois, diz que,
quando Deus mostra aos crentes sua ira, ele o faz de tal forma que, ao
mesmo tempo, põe em relevo que não olvida sua misericórdia; e ainda mais,
ele diz que, quando Deus nos pune, isso se deve a sua particular
preocupação por nossa salvação. Constitui um inestimável conforto108 o
fato de que as punições, por meio das quais nossos pecados são corrigidos,
são prova, não da ira divina visando a nossa destruição, mas, antes, de seu
amor paternal; e que, ao mesmo tempo, elas nos ajudam a restabelecer
nossa salvação, pois Deus se ira contra nós como seus filhos, aos quais ele
não quer que pereçam.
Ao dizer: para não sermos condenados com o mundo, ele tem em
mente duas coisas. A primeira é que, quando os filhos deste mundo vivem
felizes e sem dificuldades, embalados por seus próprios deleites,109 estão
sendo engordados como suínos para o dia da matança [Jr 12.3]. Pois ainda
que o Senhor às vezes intime também os ímpios ao arrependimento, usando
neles seu azorrague, não obstante às vezes os toma por estranhos110 e lhes
permite que desçam seus declives sem qualquer freio, até que encham
transbordantemente a medida de sua final condenação. O privilégio de ser
arrancado das bordas da destruição, através de castigos, pertence
exclusivamente aos crentes.
A segunda coisa é esta: que as disciplinas [divinas] são remédios dos
quais os crentes necessitam, pois, do contrário, seriam também impelidos
rumo à destruição eterna,111 caso não fossem impedidos pelos castigos
temporais.
Essas considerações nos ajudam não só a sermos pacientes a fim de
suportarmos calmamente as aflições impostas por Deus, mas também para
aprendermos a gratidão; de modo que, dando graças a Deus nosso Pai,
submetamo-nos112 a sua disciplina em obediência espontânea. Há muitos
outros meios pelos quais esses pensamentos podem ser-nos de muita
utilidade, a saber: transformam nossas disciplinas em algo saudável para
nós, já que nos ensinam a mortificação da carne e a humildade diante de
Deus; nos fazem habituados a obedecer a Deus; nos convencem de nossas
próprias fraquezas; lançam chamas em nossos corações com solicitude pela
oração; nos fazem esperançosos de que realizaremos uma grande obra; de
modo que, seja longa ou breve, qualquer que seja a severidade que
porventura haja nesses pensamentos, é tudo absorvido pela alegria
espiritual.
33. Por isso, meus irmãos. Ele deixa de lado o ensino de natureza geral e
se volve agora para o caso particular com o qual começara. Ele termina
dizendo que na Ceia do Senhor a igualdade deve ser preservada, para que
haja genuína participação dela, e que cada um por sua vez não celebre sua
própria ceia; e finalmente diz que este sacramento não deve ser confundido
com festas ordinárias.
34. Quanto às demais coisas, ordená-las-ei quando for. É provável que
houvesse outros assuntos além destes, os quais não valiam a pena
acrescentar; mas já que eram de bem menos importância, o apóstolo adia
sua inclusão até que visite os coríntios. Ainda que se prove que nada disso
realmente existiu lá, todavia, visto que uma pessoa só tem pleno
conhecimento do que é necessário quando está presente, Paulo reserva para
si a liberdade de organizar as coisas pessoalmente, segundo as exigências da
real situação que porventura encontre.
Os papistas tomam isso também contra nós, como um escudo em defesa
da missa. Pois interpretam isto como equivalendo o pôr em ordem que Paulo
aqui promete; como se de fato tivesse assumido sobre si a liberdade113 de
interferir na imutável instituição de Cristo, a qual ele tão claramente
endossa nesta passagem. Ora, que semelhança pode haver entre a missa e a
instituição de Cristo? Não obstante, não ouçamos mais tal absurdo, visto
não haver dúvida de que Paulo aqui está falando apenas da adequação do
comportamento exterior. Mas como esta é uma questão que é deixada à
discrição da Igreja, assim, ao dispô-la, devem-se levar em consideração as
circunstâncias de tempo, de lugar, bem como as pessoas envolvidas.

1. “Mês ordonnances.” – “Minhas ordenanças.”


2. “Κακοζηλία, uma imitação absurda.” O termo é usado por Luciano neste sentido (v. 70). Nosso
autor faz uso do mesmo termo na Harmonia vol. i. p. 209, n. 2.
3. Τὸ πρέπον pode ser definido como a união de propriedade e graça. Sendo que πρέπον e καλὸν
são usados entre os gregos e entre os romanos, pulchrum e decorum, como termos sinônimos.
4. “Es choses qui concernent le seruice de Dieu.” – “Em coisas que dizem respeito ao serviço
divino.”
5. “Traditions ou ordonnances.” – “Tradições e ordenanças.”
6. “Quelques ordonnances.” – “Certos decretos.”
7. “Les sottes cedremonies et badinages, qu’on voit auiourd’huy en la Papaute.” – “As tolas
cerimônias e idiotices que são vistas no papado de nossos dias.”
8. “Ceste tyrannie plus que barbare.” – “Que é pior que crueldade bárbara.” Falaris, o tirano de
Agrigentum na Sicília, foi infame por sua crueldade. Cícero em mais de uma ocasião emprega o
termo Phalarismus para denotar excessiva crueldade. Ver Cic. Att. vii.12 e Fam. vii.11.
9. “Leurs arrests et determinations.” – “Seus decretos e determinações.”
10. Matthew Henry faz uso deste provérbio em seu Comentário, quando sumaria o conteúdo de
Lucas 15.
11. “Nen auoit rien touché es enseignemens qu’il auoit donnez.” – “De forma alguma tivesse
tocado sobre ela nas instruções que ministrara.”
12. “Mais afin de mieux entendre ceci, prenons vn exemple.” – “Mas, para que entendamos isso
melhor, lancemos mão de um exemplo.”
13. “Se maintenir, et vser de son authorite.” – “Conservar seu lugar e manter sua autoridade.”
14. “Du ministre et docteur de l’Eglise.” – “Do ministro e mestre da Igreja.”
15. “Sainct Paul pour remedier à ce vice, propose tout le contraire de ce qui leur sembloit; disant
s’en faut qu’en cela il y ait vne beaute pour attirer les hommes à connoitise, que plustot c’est vne
chose laide et deshonneste.” – “São Paulo, com vistas a remediar este viço, apresenta muito
bem o reverso do que lhes parecia – dizendo que, no lugar de haver beleza nessa atitude com o
intuito de seduzir os homens, ao contrário era uma coisa em extremo feia e inconveniente.”
16. “Pour estre compagne à l’homme, pour viure auec luy, et pour luy aider.” – “Ser uma
companheira ao homem, viver com ele e ajudá-lo.”
17. “Ainsi que l’œuure tendant à quelque fin est au dessous de as cause et fin pour laquelle on le
fait.” – “Como uma obra adaptada para algum desígnio é inferior a sua causa e o desígnio pelo
qual ela foi feita.”
18. “Doit auoir sur la teste vne enseigne qu’elle est sous puissance.” – “Ela deve ter sobre sua
cabeça um emblema de que ela está sob autoridade.”
19. “Vn argument et consequence.” – “Um argumento e inferência.”
20. “Il y a de mot à mot au Grec, La femme doit auoir puissance sur la teste. Mais au mot de
puissance il y a une figure appellee metonymie.” – “No grego temos literalmente: A mulher deve
ter poder sobre sua cabeça. Mas, na palavra poder há uma figura chamada metonímia.”
21. “C’est la couuerture de teste, soit un chapperon, ou couurechef, ou coiffe, ou chose
semblable.” – “É uma cobertura da cabeça, seja um capuz, ou um chale, ou uma coifa, ou algo
desse gênero.”
22. O termo εξουσία (exousia) é considerado por Bloomfield como sendo o nome de um artigo do
vestuário, do qual se faz menção em Rute 3.15 e Isaías 3.23, e consistia de “uma peça de roupa
de uma forma quadriculada lançada sobre a cabeça e amarrada debaixo do queixo”. Granville
Penn, em contrapartida, a considera como sendo nada mais que o (τι) κατα κεγαλης no terceiro
versículo do capítulo – algo sobre a cabeça, ou uma cobertura sobre a cabeça, e nota que era
algo notável, que na versão de Wiclif (1380) a tradução é a seguinte: “a mulher terá uma manta
em sua cabeça”, o que o dissionário explica como sendo uma cobertura.
23. “Et sont tousiours à son commandement et seruice.” – “E estão sempre a suas ordem e
serviço.”
24. “Qu’ils n’ayent les femmes en desdain et mocquerie.” – “Para que não tenham as mulheres
em desdém e desprezo.”
25. “Par ce lien d’aidede et amitie mutuelle.” – “Por este laço de assistência e amizade mútuas.”
26. “La necessite qui les presse et contraint.” – “A necessidade que os pressiona e constrange.”
27. “Pensent à leur deuoir, et que de leur costé elles sont obligees aux hommes.” – “Lembram-se
do dever e da obrigação, de sua parte para com os homens.”
28. O Presidente Edwards observa que “a ênfase usada, αὐτὴ ἡ φύσις, a própria natureza, mostra
que o apóstolo não está falando do costume, mas da natureza no sentido usual. É verdade que o
costume era tão antigo que ter a cabeça coberta tornou-se um emblema de submissão, e um
hábito ou aparência feminina, como o costume que faz com que alguma ação ou palavra
externa vem a ser um sinal do sexo feminino. A própria natureza mostra ser um opróbrio que um
pai se curve diante de seu próprio filho ou servo, porque, ao agir assim é, pelo costume, um
emblema estabelecido de sujeição ou submissão.” Edwards, em Original Sin, part ii., chap. iii.,
sec. 3.
29. Exemplos disso ocorrem em Ovídio, Fast. ii. 30, e em Horácio, Od. 2, 15, 11. A Gália, no norte
dos Alpes, era chamada Gália comata, em vista de seus habitantes usarem seus cabelos longos.
Homero aplica aos gregos de seu tempo o apelido de καρηκομόωντες – cabelos longos. Hom. Il., ii.
11.
30. “Il appelle Nature ceste coustume desia confermee par vn long temps et vsage commun.” –
“Ele dá a designação de Natureza a este costume, já confirmado por muito tempo e uso
comum.”
31. “Qui ne se veulent en rien accommoder aux autres.” – “Que não se dispôs a acomodar-se em
nada a outros.” A palavra grega usada por Calvino aqui (ακοινωνητος) é empregada pelos
escritores clássicos no sentido de não ter inter-relação, ou não preocupar-se em ter inter-
relação com outros.
32. “Que ce n’est point la coustume de l’Eglise d’entrer en debatis, et contentions.” – “Que não é
o costume da Igreja entrar em querelas e contendas.”
33. “Or ie vous rememore ceci, non point eu louant. Il y a au Grec mot à mot. Or rememorant ie
ne loue point.” – “Mas eu vos faço cônscios disto, que não vos louvo por isto. No grego lemos
literalmente: Mas faço-vos conscientes de que não vos louvo.”
34. Na explicação desta observação, observe-se que a redação no manuscrito alexandrino
temos: Του̑το δε παραγγέλω οὐκ ἐπαινω̑ν – Advirto-vos, porém, nestes termos: não louvando. Esta
redação é seguida das versões Latina e Siríaca. Em Wiclif (1380) a tradução é: “Mas esta coisa
ordeno, não louvando.” Na Rheims (1582): “E isto ordeno, não louvando.”
35. “Principalement pource que ceux qui ne regardeut à tenir le droit et naturel usage des
choses, sont suites à tomber incontinent en beaucoup d’inuentions peruerses et dangereuses.”
– “Principalmente porque os que não cuidam em observar o uso correto e natural das coisas,
são passíveis de cair de ponta cabeça em muitas invenções perversas e danosas.”
36. “Qu’il leur remonstrera qu’ils fout en la Cene.” – “Que ele mostrará que têm fracassado no
que concerne à Ceia.”
37. “Schisme et Heresie.” – “Cisma e Heresia.”
38. “De tous costez.” – “De todos os lados.”
39. “De là vient ceste necessite de laquelle S. Paul fait mention, et non pas de ce Fatum que les
Stoiques ont imaginé, que l’on nomme communeement Destine. Voyez l’Institution.” – “Disto
provém que a necessidade da qual São Paulo faz menção, e não daquele Fado de que os
estóicos têm sonhado e que é comumente chamado Destino.” Ver nas Institutas.
40. “Conuertit au profit et salut des fideles les machinations de Satan horribles et pernicieuses.”
– “Converte as horríveis e perniciosas maquinações de Satanás em benefício e salvação para os
crentes.”
41. “Car à parler proprement, la cause de ceci depend du secret conseil de Dieu.” – “Porque,
propriamente falando, a causa disto depende do secreto conselho de Deus.”
42. “Ce qu’ils font, et ce que Satan leur fait faire, ils le font volontairement, et non point par
force.” – “O que fazem, e o que Satanás faz neles, o fazem voluntariamente, e não movidos pela
força.”
43. Paraeus entre outros toma as palavras ὀυκ ἔστι, não é, como usada para ὀυκ ἔξεστι, não é
admissível.
44. “Quase incroyable.” – “Como era incrível.”
45. “A ioué ses tours.” – “Tem impingido seus ardis.”
46. Vne sorte de banquets qui se faisoyent par chyarite.” – “Um tipo de banquete que era
celebrado à guisa de amor.”
47. “Premierement.” – “A princípio.”
48. Supõe-se que é Plínio quem se refere à Αγαπαι (festas de amor) em sua 97ª carta a Trajano,
na qual ele diz dos cristãos em Bitínia da qual era ele governador, que, depois de examinados,
afirmavam que, que depois de tomar seu sacramentum – “morem sibi discedendi fuisse,
rursusque coëundi ad capiendum cibum, promiscuum tamen et innoxium.” – “era-lhes
costumeiro afastar-se e reunir-se novamente com o intuito de comer juntos um repasto
inocente.”
49. “Agapas, c’est à dire Charitez.” – “Agapae, isto é, Amores.”
50. “Par succession de temps.” – “Em processo de tempo.”
51. “Qu’autrement.” – “Do que de outra maneira.”
52. “Mais il n’y a consideration aucume qui nous doyue tant esmouuoir, que pour cela nous
venions à profaner ce sainct mystere.” – “Mas não há consideração que tenha tanta influência
sobre nós que nos faria por essa conta profanar seu santo Sacramento.”
53. “Pour receuoir et administrer les sacrements.” – “Receber e administrar os sacramentos.”
54. As versões inglesas mais antigas seguiram esta redação. Assim Wiclif (1380): “Que vos direi?
Eu vos louvo: mas na verdade não vos louvo. Cranmer (1539): “O que vos direi? Louvar-vos-ei?
Nisto não vos louvo.”
55. “Qu’ils commettoyent en la Cene.” – “No que tinham fracassado no tocante à Ceia.”
56. “Qued nous gastons tout, et ne laissons rien en son entièr.” – “Que estamos destruindo tudo,
e nada deixamos inteiro.”
57. Nosso autor parece referir aqui ao que dissera previamente, quando comenta 1 Coríntios 4.1,
quanto ao dever de incumbir nas administrações dos mistérios de Deus.
58. “Car le Seigneur pouuoit bien quelque temps deuant ordonner à ses Apostres l’obsedruation
de ce Sacrement.” – “Pois o Senhor poderia ter, em alguma ocasião prévia, incumbido seus
apóstolos à observância deste Sacramento.”
59. “Vne ceremonie, qui ne peust faire que de nuit, comme les Payens auoyent la feste de Ceres.”
– “Uma cerimônia que só podia ser observada à noite, como os pagãos que mantinham o
festival de Ceres.” O tempo em que o festival era celebrado estava em concordância com o
sigilo peculiar com que seus ritos eram observados.”
60. “Pour partie, ou de la substance de son institution.” – “Como uma parte de sua instituição, ou
da essência dela.”
61. “Ils se mocquent.” – “eles escarnecem.”
62. “Sa misericorde infinie.” – “Sua infinita misericórdia.”
63. “Et n’en soyons enuers luy ingrats, mais soyons enflambez à vne vraye recognoissance.” – “E
que não sejamos ingratos para com ele, mas sejamos movidos a um verdadeiro
reconhecimento.”
64. “Et bien poiser.” – “E ponderar bem.”
65. “Mais ie vous prie, à quel propos.” – “Mas, com que propósito você ora.”
66. “Comme s’il retournoit de voir vne bastelerie inutile et sotte.” – “Como se fossem voltar a ver
uma cena inútil e tola de charlatão.”
67. “Vn banquet de la confrairie des Sacrificateurs de Mars, lesquels les Romains nommoyent
Salii.” – “Ao banquete da fraternidade dos sacerdotes de Marte, à qual os romanos chamavam
Salii.” Receberam este título de seu costume de saírem pela cidade pulando e dançando. A festa
da qual participavam, após terminar sua procissão, era excessivamente suntuosa. Daí a
expressão: “Epulari Saliarem in modum” – “sutuosamente para a festa.” Cícero, Att. v.9.
68. “Nous reiettons l’effet, et luy fermons la porte.” – “Rejeitamos sua realização, e contra ela
fechamos a porta.”
69. “Par leur belle oblation qu’ils font tous les iours.” – “Por sua admirável oblação, a qual fazem
todo dia.”
70. “Vne apparence et representation de sacrifice.” – “A aparência e representação de um
sacrifício.”
71. “Ce seroit vne impudence et opinionastrete trop grande.” – “Isso era uma excessiva
impudência e obstinação.”
72. “C’est à dire, qui est ordinaire en matiere des Sacremens.” – “Isto é, o que é geralmente
conectado aos Sacramentos.”
73. “Vn gage et tesmoignage externe.” – “Um emblema e evidências externos.”
74. “Pour penser qu’il nous repaisse d’ombres et vaines figures.” – “Pensar que ele quisesse
nutrir-nos com sombras e representações fúteis.”
75. Pelo termo acidentes do pão estão implícitos sua cor, sabor, odor e forma.
76. Nesta passagem, como também em algumas outras partes de seus escritos, Calvino parece
afirmar a presença real de Cristo na Ceia do Senhor, de alguma maneira misteriosa, embora ele
se opusesse, como se sabe muito bem, à consubstanciação, bem como à transubstanciação. O
venerável Dr. Dick de Glasgow, enquanto trata da Ceia do Senhor – embora faça menção de
Calvino em termos do mais elevado respeito, como sendo “um dos mais brilhantes ornamentos
da Reforma”, o qual, “em erudição, gênio e zelo, teve poucos iguais e não superiores” – chama a
atenção para algumas expressões que ele usou em suas Institutas que parecem não estar em
plena harmonia com seu sistema geral de conceitos e referências à presença de Cristo no
Sacramento da Ceia. Dick’s Lectures on Theology, vol. iv. pp. 225, 226.
77. “Vne estendue de son corps infinie.” – “Uma extensão infinita de seu corpo.”
78. “Vn signe et tesmoignage.” – “Um sinal e evidência.”
79. “Esleve ton esprit et ton cœur jusques là.” – “Ele conduz sua mente e coração até lá.”
80. É digno de nota que nosso autor fez uso do mesmo termo grego (quando comenta 1Co 5.8)
em referência à Páscoa, a qual se destinava, em parte, a ser um memorial (μνημόσυνον). O termo
é ocorrência freqüente, no mesmo sentido, em Heródoto e, ocasionalmente, em outros autores
clássicos.
81. “Du ciel il fait descouler sur nous la vertu7 de sa chair presentement et vrayement.” – “Ele faz
com que a virtude de sua carne seja derramada sobre nós do céu presente e verdadeiramente.”
82. “Continuel et sans interualle.” – “Contínuo e sem um intervalo.”
83. “Confermer et seeller.” – “Confirmar e selar.”
84. “L’institution du Fils de Dieu.” – “A instituição do Filho de Deus.”
85. “Que de nostre part le recognoissions.” – “Para que nós, de nossa parte, a reconheçamos.”
86. De εὐχαριστήσας (tendo dado graças), a qual Paulo usa aqui, bem como os evangelistas em seu
relato da instituição original da Ceia. O termo é ao mesmo tempo uma expressão do espírito da
instituição com respeito às ações de graças.
87. “Veu que par consequent il n’há rien de l’Esprit de Christ.” – “Visto que ele,
conseqüentemente, nada tem do Espírito de Cristo.”
88. “Vne foy historique qu’on appelle; (c’est à dire pour consentir simplement à l’histoire de
l’Euangile.”) – “Uma fé histórica, como a chamam (equivale a dizer: dar um mero assentimento
ao evangelho histórico).”
89. “Car ie n’ose proposer et imaginer Christ à demi.” – “Porquanto não ouso apresentar e
imaginar a metade de Cristo.”
90. Este célebre dito de Agostinho (que ocorre na Hom. em João 62) é citado também nas
Institutas, onde nosso autor compendia em grande extensão o tema aqui discutido.
91. “Voyla leur belle preparation.” – “Ver sua admirável preparação.”
92. “Ces imiserables.” – “Aquelas criaturas miseráveis.”
93. “Et qu’ils on debagoulé leur turpitude à monsieur le prestre.” – “E quando tiverem balbuciado
sua vileza ao senhor sacerdote.”
94. “La punition que Dieu en fera.” – “A punição que Deus infligirá sobre eles.”
95. “Ils manient le corpos precieux de Christ irreueremment, c’est à dire, sans nettoyer leur
conscience.” – “Manuseiam o precioso corpo de Cristo irreverentemente, isto é, sem lavar sua
consciência.”
96. Na Vulgata e no manuscrito alexandrino, bem como na versão cóptica, a redação é
simplesmente μη διακρίνων τὸ σω̑μα – não distinguindo o corpo; enquanto as cópias mais recentes
têm τὸ σω̑μα του̑ Κυρίου – o corpo do Senhor. O verbo διακρίνω é empregado por Heródoto no sentido
de distinguir, na seguinte expressão: διακρίνων ουδενα – sem qualquer distinção de pessoas. (Herod.
iii.39.) Há quem suponha que a palavra, como empregada aqui, contém uma alusão à distinção
de alimentos sob a lei mosaica.
97. “Le corps de Christ.” – “O corpo de Cristo.”
98. “Vn tel abus de la Cene qui n’estoit pas des plus grans.” – “Tal abuso da Ceia, como não era
um dos maiores.”
99. “Vne forme estrange et du tout autre.” – “Uma forma estranha e totalmente diferente.”
100. “Sans en distribuer ne communiquer aux autres.” – “Sem distribuir ou comunicar dela aos
demais.”
101. Ils pechent plus audacieusement, et à bride auallee.” – “Pecam mais ousadamente e livres
de qualquer freio.”
102. O parágrafo supra é aptamente designado na antiga tradução inglesa de Thomas Tymme
(1573): “Da mentirosa descrição da Missa Papal.”
103. “Le pur vsage de la Cene en son entier, qui nous a este finalement rendu par la grace de
Dieu.” – “O uso puro da Ceia em sua completude, que por fim nos foi restaurada pela graça de
Deus.”
104. Calvino aqui emprega o termo postliminum (restauração do cativeiro) e de uma forma muito
feliz compara a restauração da pura observância das ordenanças religiosas, em decorrência da
Reforma, à recuperação, por um cidadão romano, de seus privilégios superiores, em sua
conversão do estado de cativeiro, durante o qual não perderam os direitos, mas dos quais foram
suspensos.
105. “Lesquels vn homme de bien, et qui auroit honnestete en quelque recommendation, ne
receuroit iamais à sa table.” – “O que um homem de princípios, que tivesse algum respeito pela
decência, jamais admitiria a sua mesa.”
106. “Quand il voit que nous ne nous soucions de rien, et que nous-nous endormons en nos
pechez, et nous flattons en nos ordures et vilenies.” – “Quando vê que estamos totalmente
descuidosos, e estamos dormitando em nossos pecados, e a nós mesmos gratificamos em
nossas impurezas e corrupções.”
107. “Prions nostre bom Dieu d’addoucir la rigueur de sa iustiice; par manier de dire nous
punissans nous-mesmes sans attendre qu’il y mette la main.” – “Suplicamos a nosso bom Deus
que mitigue o rigor de sua justiça – punindo-nos (por assim dizer) em vez de esperar até que ele
manifeste sua mão para fazer isso.”
108. “Y a-il plus grande consolation pour le Chrestien que ceste-ci?” – “Há para o cristão um
conforto maior que este?”
109. “Sont tout asseurez, et ne se soucians du ingement de Dieu s’endorment en leurs plaisirs et
voluptexz.” – “São totalmente confiantes e, não se preocupando com o juízo divino, se espojam
em seus prazeres e deleites.”
110. “Il aduient souuent qu’il les met en oubli comme estrangers.” – “Amiúde acontece que ele os
ignora como estranhos.”
111. “Ils tomberoyent aussi bien que les autres em ruine eternelle.” – “Cairiam, tanto quanto os
outros, em eterna destruição.”
112. “Voluntairement, à soustenir tel chastisement qu’il luy plaira nous enuoyer.” –
“Voluntariamente suportar tal disciplina segundo ele aprouver enviar-nos.”
113. “Mais c’est bien à propos, comme si ce sainct personnage se fust donne ceste license.” –
“Mas esta provavelmente seja uma coisa verdadeira! Como se aquele santo personagem se
permitisse tal liberdade.”
Capítulo 12

1. No tocante aos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes.
2. Sabeis que outrora, quando éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos ídolos mudos,
guiados de qualquer forma.
3. Por isso vos faço compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma:
Jesus é anátema; e ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo.
4. Ora, há diversidades nos dons, porém o Espírito é o mesmo.
5. E há diversidades nos ministérios, mas o Senhor é o mesmo.
6. E há diferenças nas administrações, porém é o mesmo Deus que opera tudo em
todos.
7. Mas a cada um é concedida a manifestação do Espírito, visando a um fim proveitoso.

1. Porro de spiritualibus, fratres, nolo vos ignorare.


2. Scitis, quum Gentes eratis, qualiter simulacra muta, prout ducebamini, sequuti sitis.
3. Quamobrem notum vobis facio, quod nemo in Spiritu Dei loquens, dicit anathema
Iesum: et nemo potest dicere Dominum Iesum, nisi per Spiritum Sanctum.
4. Divisiones autem donorum sunt, sed unus Spiritus.
5. Et divisiones ministeriorum sunt, sed unus Dominus.
6. Et divisiones facultatum sunt, sed Deus unus, qui operatur omnia in omnibus.
7. Unicuique autem datur manifestatio Spiritus ad utilitatem.

1. No tocante aos dons espirituais. Ele prossegue corrigindo outro erro.


Visto que os coríntios faziam mau uso dos dons de Deus, visando à
ostentação e pompa, havia pouca ou nenhuma preocupação com o amor.
Paulo então lhes ensina que a razão para os crentes serem enriquecidos por
Deus, com dons espirituais, é para que seus irmãos sejam edificados. Ele,
porém, divide o princípio em duas partes. Antes de tudo, ele realça que Deus
é a fonte dos dons; em seguida, uma vez estabelecido este fato, ele se põe a
discutir seu propósito. Partindo de sua experiência pessoal, ele prova que as
coisas em que eles se vangloriavam procedem da benevolência de Deus para
com os homens; pois ele os lembra quão ignorantes, estúpidos e
espiritualmente cegos eram diante do Deus que um dia os chamou. Daí ser
evidente que não tinham sido providos com estes dons, não através da
natureza, mas através da imerecida benignidade de Deus.
No tocante às palavras – “Não quero que sejais ignorantes” –, devemos
suplementá-las com “do que é correto”, ou “no que diz respeito a vossos
deveres”, ou uma expressão semelhante. Acerca do que vem a seguir há duas
redações possíveis: alguns manuscritos trazem ὅτι, somente, e outros
adicionam ὅτε. Usam ὅτι no sentido do que é explicativo. ὅτε significa
quando, e esta redação é muito mais adequada. Isolando essa variação, a
construção fica confusa nas outras formas; porém, o significado é bem claro.
Bem literalmente, pode-se ler: “Sabeis que quando éreis gentios, seguindo
após os ídolos mudos, precisamente como éreis guiados.” Não obstante,
segundo minha própria tradução, procurei manter fielmente o que Paulo
tencionava dizer.
Pela expressão ídolos mudos, ele pretende dizer que os coríntios não
podiam pensar nem mover-se.
Este versículo nos informa quão profunda é a cegueira da mente humana,
em sua carência da iluminação do Espírito Santo; uma vez que o homem se
pasma maravilhado diante dos ídolos mudos,1 ele não consegue elevar-se
além disso em sua busca de Deus; e, ainda pior, na verdade ele se deixa guiar
por Satanás como se fosse um bruto.2 Ele aqui usa o termo gentios no
mesmo sentido que Efésios 2.12. Neste texto, ele diz: “naquele tempo
estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos às
alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo.” Talvez
Paulo esteja também argumentando a partir do oposto, a saber: o que dizer
se3 agora, depois que Deus os tomou sob sua proteção a fim de serem
guiados por sua Palavra e pelo Espírito, eles se mostram menos dispostos
em seguir suas instruções do que era outrora sua prontidão em ceder às
insinuações de Satanás e em fazê-las concretas?
3. Por isso vos faço compreender. Tendo-os admoestado à luz da
experiência pessoal deles, ele prossegue ministrando-lhes instrução de
natureza geral, mas com base nela. Pois o que os coríntios experimentaram
em si mesmos é comum a toda a humanidade, ou, seja, transitar pelo erro4
depois de serem, pela benevolência divina, conduzidos à verdade. Daí ser
necessário que sejamos guiados pelo Espírito de Deus, do contrário
vagaremos sem rumo para sempre. Daqui se deduz igualmente que tudo
quanto diz respeito ao genuíno conhecimento de Deus é um dom do Espírito
Santo. Ele ao mesmo tempo extrai um argumenta partindo das causas
opostas para os efeitos opostos. Ninguém que fala pelo Espírito de Deus
pode injuriar a Cristo; em contrapartida, ninguém pode honrar a Cristo, a
não ser pelo Espírito de Deus. Afirmar que Jesus é maldito equivale a
pronunciar blasfêmia contra ele. Afirmar que Jesus é o Senhor equivale falar
dele com honra e reverência, visando a exaltar sua majestade.
Neste ponto alguém poderia perguntar se os descrentes possuem o
Espírito de Deus quando, oportunamente, cantam os louvores de Cristo em
termos magnificentes. Minha resposta é que indubitavelmente eles o
possuem, no que diz respeito a sua influência; no entanto, o dom da
regeneração é uma coisa, enquanto que o dom de mero conhecimento
factual [intelligentiae] é outra, porquanto até mesmo Judas era dotado com o
mesmo dom quando pregava o evangelho.
Também descobrimos, à luz deste fato, quão impotentes somos nós, já
que não podemos empregar nossas línguas para que expressem o louvor de
Deus, a menos que sejam governadas pelo Espírito Santo. As Escrituras
freqüentemente nos recordam este fato (Davi dá testemunho disso quando
dá louvores por esse dom: “Senhor, abre meus lábios” [Sl 51.15], e de todos
os recantos os santos reconhecem que, a não ser que o Senhor abra nossa
boca, não teremos capacidade de ser seus arautos. Entre outros, Isaías diz:
“Sou homem de lábios impuros” [6.5].
4. Ora, há diversidade de dons. A simetria da Igreja5 está no fato de ela
constituir-se, por assim dizer, numa unidade6 de muitas partes; em outros
termos, quando os diferentes dons são todos direcionados para um e o
mesmo fim, assim como na música partes diferentes são ajustadas umas às
outras, e tão bem combinadas que produzem uma peça harmoniosa. É certo,
pois, que os dons devem ser distinguidos uns dos outros, assim como os
ofícios, e que, não obstante, devem ser todos eles combinados numa só
harmonia. Conseqüentemente, Paulo, no capítulo 12 de Romanos, fala desta
variedade de dons, de modo que ninguém pode obscurecer a distinção que
o Senhor fez, usurpando alguém ousadamente o lugar do outro. Ele, pois,
insta com o indivíduo a que viva satisfeito com seus dons e a cultivar a
maioria deles. Ele os proíbe de ultrapassar seus próprios limites mediante
esforço carnal para obter algo mais. Numa palavra, ele estimula a cada um a
considerar o quanto tem recebido, a natureza da porção designada e para o
quê ele foi chamado a fazer.7
Aqui, de um lado, ele está instruindo indivíduos a trazerem o que
possuem como uma contribuição para o fundo comum, e não para guardar
para si os dons de Deus, o que significaria que os benefícios provindos dos
dons de cada pessoa se restringiriam somente a ela própria, em vez de
serem partilhados com outros;8 mas devem operar harmoniosamente para a
edificação de todos igualmente. Em ambas as passagens, ele usa a analogia
do corpo humano, mas com toda certeza por diferentes razões. A suma do
que ele diz equivale ao seguinte: os dons não são distribuídos aos crentes
em tal variedade para que os guardem isolados um do outro; mas existe
unidade na diferença, porque o Único Espírito é a fonte de todos os dons; o
Único Deus é o Senhor de todas as formas de servir [ministeriorum] e o
originador de todas as atividades. Deus, porém, que é o originador, deve
igualmente ser a finalidade.
Um só Espírito. Carinhosa atenção deve-se dar a este versículo a fim de
neutralizar os fanáticos9 que ensinam que a designação Espírito não tem
referência alguma a algo essencial, mas só aos dons ou atividades do poder
divino. Paulo, porém, aqui mostra com toda clareza que existe um poder
essencial de Deus, do qual procedem todas suas atividades. É verdade que o
termo Espírito e com freqüência transferido, à guisa de metonímia, para os
dons propriamente ditos, e assim lemos do Espírito de entendimento, de
juízo, de poder, de moderação.10 Contudo Paulo aqui traz a lume
plenamente que juízo, entendimento, lhaneza e tudo mais procedem de uma
única fonte. Pois é o ofício do Espírito Santo irradiar e exercer o poder de
Deus, conferindo esses dons aos homens e distribuindo-os entre eles.
Um só Senhor. Os Pais usaram estes versículos contra os arianos como
evidência em abono da Trindade de Pessoas. Pois aqui o Espírito é nomeado,
em seguida o Senhor e finalmente Deus, e uma e a mesma atividade é
atribuída aos Três. O que significa que consideraram Senhor como sendo
Cristo. Mas, embora eu não faça objeção a esta interpretação dos versículos,
não obstante estou certo de que este é um argumento bastante frágil para
alguém que esperava fechar a boca aos arianos; porquanto existe uma
relação entre as palavras serviço e Senhor. Ele diz que os serviços são
diferentes, porém só há um Deus a quem nos dispomos a servir, não
importa a que tipo de serviço nos comprometamos. Esta antítese, pois,
mostra qual é o significado simples, porquanto confiná-lo só a Cristo é por
demais forçado.
6. Um só Deus que opera. Onde usamos a palavra poderes, o termo
grego é ἐνεργήματα, termo esse que contém uma alusão ao verbo operar,
como em latim effectus [um efeito] corresponde ao verbo efficere [efetuar].
O que Paulo tem em mente é que, mesmo que os crentes estejam bem
equipados com diferentes poderes, todavia todos esses poderes têm sua
fonte no poder singular de Deus. Da mesma forma, as palavras “opera tudo
em todos”, neste versículo, não se referem à providência geral de Deus, mas
apontam para a liberalidade que ele exerce em nosso favor, nos concedendo
a cada um algum dom. O que equivale dizer que os homens nada têm de
bom ou louvável exceto o que emana unicamente de Deus. Por essa razão,
fica fora de lugar, aqui, suscitar a pergunta de que maneira Deus age em
Satanás e nos réprobos.
7. Mas a cada um é concedida a manifestação do Espírito. Ele agora
ressalta o propósito para o qual Deus destinou seus dons, pois ele não no-
los confere em vão e nem os destina para que sirvam ao propósito de
ostentação. Portanto, é indispensável que perguntemos com que propósito
os dons são conferidos? A este respeito, Paulo responde: πρὸς τὸ συμφερον
[com vistas à utilidade], ou, seja, para que a Igreja receba benefícios
provindos deles.
A manifestação do Espírito pode ser entendida tanto no sentido passivo
quanto no ativo. Pode ser tomada no sentido passivo, porque onde há
profecia, conhecimento ou algum outro dom, ali o Espírito de Deus está
presente e ativo. Pode ser tomada no sentido ativo, porque onde o Espírito
de Deus nos mune com algum dom, ele abre seus tesouros a fim de revelar-
nos coisas que, de outra forma, estariam ocultas e além de nosso alcance. A
segunda é a melhor interpretação. O ponto de vista de Crisóstomo é
bastante desalinhado e forçado, a saber: que o termo manifestação é usado11
aqui porque a única maneira de os descrentes obterem o conhecimento de
Deus é por via de milagres visíveis.

8. Porque a um é dada, através do Espírito, a palavra da sabedoria; a outro, pelo mesmo


Espírito, a palavra do conhecimento;
9. a outro, pelo mesmo Espírito, fé; a outro, pelo mesmo Espírito, dons de curar;
10. a outro, operação de milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos;
a outro, diversos tipos de línguas; a outro, interpretação de línguas.
11. Mas um só e o mesmo Espírito é quem opera todas estas coisas, distribuíndo-as
como lhe apraz, a cada um, individualmente.
12. Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros
desse único corpo, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito
a Cristo.
13. Pois, em um só Espírito, todos nós somos batizados em um corpo, quer judeus, quer
gentios, quer escravos, quer livres. E a todos foi dado beber de um só Espírito.

8. Huic quidem per Spiritum datur sermo sapientiæ, alteri datur sermo cognitionis,
secundum eundem Spiritum.
9. Alii fides in eodem Spiritu, alii dona sanationum in eodem Spiritu.
10. Alii facultates potentiarum, alii autem prophetia, alii autem discredetiones spirituum,
alii genera linguarum, alii interpretatio linguarum.
11. Porro omnia hæc efficit unus et idem Spiritus, distribuens seorsum cuique prout vult.
12. Quemadmodum enim corpus unum est, et membra habet multa: omnia autem
membra corporis unius quum multa sint, corpus autem est unum: ita et Christus.
13. Etenim per unum Spiritum nos omnes in unum corpus baptizati sumus, sive Iudæi,
sive Græci: sive servi, sive liberi: et omnes in uno Spiritu potum hausimus.

8. Porque a um é dada. Ele agora anexa uma lista; em outros termos, ele
detalha tipos particulares de dons, por certo não todos os dons, mas o
suficiente para seu presente propósito. Diz ele: “Os crentes são ricamente
equipados com diferentes dons, mas é preciso que cada um reconheça que o
Espírito de Deus lhe proporcionou tudo quanto possui, porquanto ele
derrama seus dons, assim como o sol difunde seus raios em todas as
direções.”
No tocante à diferença entre estes dons, conhecimento [ou entendimento
= scientia vel cognitio] e sabedoria são usados de diversas maneiras nas
Escrituras, aqui, porém, os tomo na forma de menor e maior, como em
Colossenses 2.3, onde também se acham juntos e onde Paulo ensina que
“todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão escondidos em
Cristo”. Conhecimento, pois, em minha opinião, significa familiaridade com
as coisas sacras; sabedoria, em contrapartida, significa a perfeição dele
[conhecimento]. Prudência é às vezes apresentada como uma espécie de
posição intermédia entre estes dois, e nesse caso significa a habilidade12 de
aplicar o conhecimento para algum propósito prático. Esses dois termos
estão indubitavelmente muito relacionados um com o outro; entretanto, é
possível alguém ver uma certa diferença entre eles, quando são postos lado
a lado. Tomemos, pois, conhecimento no sentido de informação ordinária; e
sabedoria, como incluindo revelações que são de uma ordem mais secreta e
sublime.13
9. O termo fé é aqui empregado para um gênero particular de fé, como
o contexto logo evidenciará. Este é o tipo de fé que não se limita a Cristo em
sua inteireza para a redenção, justificação e santificação, mas só no âmbito
em que os milagres são efetuados em seu nome. Judas possuía este gênero
de fé, e em sua instrumentalidade ele realizou milagres. Crisóstomo faz uma
distinção levemente diferente, chamando-a fé de milagres [signorum], e não
de doutrina [dogmatorum].14 Entretanto, não há muita divergência entre esta
e a interpretação que já apresentei. Quanto ao dom de curas,15 todos sabem
seu significado.
10. Entretanto, não há a mesma certeza quanto ao poder de operar
milagres [de facultatibus potentiarum], ou, como outros o traduzem,
“operações de influências” [operationibus virtutum]. Contudo, sinto-me
inclinado a crer que se trata do poder [virtutem] que é exercido contra os
demônios, bem como contra os hipócritas. Assim, quando Cristo e os
apóstolos, com toda autoridade, subjugaram os demônios, ou os puseram
em fuga, isto era ἐνέργημα [operação poderosa]. Outros exemplos temos no
fato de Paulo trazer cegueira ao mágico [At 13.11] e Pedro fazer Ananias e
Safira caírem por terra mortos, simplesmente lhes dirigindo a palavra [At 5.1-
11]. Portanto, os dons de cura e milagres são ambos canais da benevolência
de Deus para conosco. Em sua severidade, porém, ele usa os milagres para a
destruição de Satanás.16
Por profecia entendo aquele dom singular e selecionado de desvendar a
vontade secreta de Deus, de modo que o profeta é, por assim dizer, o
mensageiro entre Deus e o homem.17 Minhas razões para pensar assim serão
demonstradas depois, de forma mais completa.
O discernimento de espíritos era a clareza de percepção em formar juízo
quanto aos que professavam ser alguma coisa [At 5.36]. Não estou falando
da sabedoria natural, pela qual somos regulados para julgar. Era uma
iluminação especial com que alguns eram dotados pelo dom divino. O uso
dele era este: ele não podia ser imposto por máscaras nem por pretensões,18
mas por meio desse juízo espiritual; quem o possuísse podia distinguir,
como por uma marca particular, os verdadeiros ministros de Cristo dos
falsos.
Havia certa diferença entre o conhecimento de línguas e a interpretação
delas, pois os que eram dotados com o último, em muitos casos não
estavam familiarizados com a língua das pessoas com quem tinham que
tratar. Os intérpretes19 traduziam as línguas estrangeiras para a língua nativa.
Naquela época, não adquiriam estes dons através de árduo trabalho ou
estudo; ao contrário, os possuíam através de uma maravilhosa revelação do
Espírito.
11. Mas um só e o mesmo Espírito distribui a cada um. Daqui segue-se
que as pessoas laboram em erro quando não movem sequer uma palha pela
participação, porém quebram aquela santa harmonia em que todas as partes
se fundem – algo que só pode existir quando todos, sob a direção do mesmo
Espírito, trabalham juntos de comum acordo. Paulo uma vez mais intima os
coríntios à unidade, lembrando-os de que todos os dons que possuíam,
obtiveram-nos de uma única fonte; mas, ao mesmo tempo, ele prova que
ninguém possui tanto para que se sinta auto-suficiente, que não necessite
do auxílio de outrem. Pois é isso mesmo que ele pretende quando diz:
“distribuindo-os a cada um, individualmente, como lhe apraz.” O Espírito de
Deus, portanto, distribui esses dons entre nós, a fim de concentrarmos toda
nossa contribuição visando ao bem comum. Ele não distribui tudo a um só
indivíduo, para evitar que alguém fique tão satisfeito com sua porção, que
procure isolar-se dos demais, vivendo unicamente para si. O advérbio
individualmente é usado para o mesmo propósito, visto ser particularmente
importante que a diferença individual, pela qual Deus nos faz mutuamente
dependentes,20 seja por nós adequadamente preservada. Ora, quando boa
vontade é predicado do Espírito, juntamente com seu poder, é possível
concluir que o Espírito é genuína e legitimamente Deus.
12. Porque, assim como o corpo é um. Ele agora introduz o símile do
corpo humano, o qual também usa em Romanos 12.4, mas para um
propósito distinto, como já mostrei. Ali ele está levando cada pessoa a
sentir-se feliz com sua própria vocação, e a não invadir o território de
outrem, seja por ambição, curiosidade ou algum outro motivo egoístico que
leva muitas pessoas a se apropriarem mais do que lhes é conveniente. Nesta
passagem, porém, Paulo está estimulando os crentes a manterem-se unidos
pela associação de seus dons para o benefício recíproco; porquanto seus
dons haviam sido outorgados por Deus, não para que cada um nutrisse a si
próprio, mas para que tivesse com que auxiliar a outrem.
Além disso, é algo bem comum que uma associação ou um grupo de
pessoas se denomine corpo, como, por exemplo, um corpo de políticos, um
corpo governante e um corpo do povo. Certa vez, há muito tempo, quando
Menenius Agripa21 pretendia reconciliar o povo romano com o senado,
contra quem o povo se rebelara, ele contou uma fábula, a qual traz certa
similitude com o que Paulo ensina aqui.22 No caso dos cristãos, porém, a
situação é inteiramente distinta, pois não constituem um mero corpo
político, mas constituem o corpo espiritual e místico de Cristo, como Paulo
mesmo acrescenta [v. 27]. O significado, pois, é o seguinte: embora haja
diferentes membros no corpo, com diferentes funções, no entanto se acham
de tal maneira jungidos uns aos outros que formam uma unidade.23
Portanto nós, que somos membros de Cristo, mesmo estando equipados
com diferentes dons, não obstante devemos preocupar-nos com aquela
união mútua, que temos em Cristo.
Assim também com respeito a Cristo. O nome de Cristo é usado aqui
no lugar da Igreja, porque a comparação [similitudo] precisava ser aplicada,
não ao Filho Unigênito de Deus, mas a nós. Visto, porém, ele chamar a Igreja,
Cristo, este versículo se acha saturado de raro conforto. A razão por que
Cristo nos veste com esta honra, é que ele24 deseja ser discernido e
reconhecido, não só em sua própria Pessoa, mas também em seus membros.
Portanto, o mesmo apóstolo diz em Efésios 1.23 que a Igreja é sua plenitude
[complementum],25 como se quisesse dizer que, caso fosse separado de
seus membros, ele [Cristo] mesmo seria de alguma forma mutilado. E de
fato, como Agostinho com elegância o expressa em alguma parte de seus
escritos: “Visto que em Cristo somos uma videira frutífera [Jo 15.4], o que
somos fora de Cristo senão poucos ramos murchos?” Nosso conforto
repousa nesta verdade, a saber, que assim como ele e o Pai são um, também
somos um com ele. Eis a razão por que ele partilha seu nome conosco.
13. Pois em um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo. A
prova deste fato é fornecida pelo efeito do batismo. Diz ele: Através do
batismo somos enxertados no corpo de Cristo, de modo a vivermos unidos,
jungidos uns aos outros como membros, e nutrindo-nos de uma só vida.
Portanto, quem deseja permanecer na Igreja de Cristo deve necessariamente
devotar-se a esta comunhão.”
Ele, naturalmente, está falando do batismo de crentes, o qual se torna
eficaz pela ação da graça do Espírito. Porquanto para muitos o batismo não
passa de mera formalidade, um símbolo sem a realidade; no entanto, os
crentes realmente recebem a realidade com o sacramento. Portanto, no
tocante a Deus, sempre resulta verdadeiro que o batismo é um enxerto no
corpo de Cristo, porque tudo o que Deus anuncia no batismo ele está
pronto a pôr em obra, contanto que, de nossa parte, sejamos-lhe receptivos.
O apóstolo aqui também observa um meio muito admirável, ao ensinar que
a natureza do batismo consiste em conectar-nos com o corpo de Cristo.
Contudo, para que ninguém suponha que isso é efetuado pelo símbolo
externo, o apóstolo acrescenta que ele é obra do Espírito Santo.
Quer judeus quer gregos. Ele menciona estas duas classes a fim de
realçar que a diferença na condição das pessoas não é obstáculo a esta
unidade sagrada, a qual ele está recomendando. A inclusão desta frase é
apropriada e oportuna, pois duas coisas poderiam ter suscitado
ressentimento naquele tempo. A primeira é que os judeus estavam
relutantes em pôr outras pessoas no mesmo nível com eles. A outra, onde
alguém tivesse alguma excelência acima de outros, com vistas a manter sua
superioridade, o mesmo se afasta a uma longa distância de seus irmãos.
E a todos foi dado beber de um só Espírito. A tradução literal do grego
é: “temos bebido de um só Espírito”. Não obstante, tudo indica que, com o
fim de evitar que as duas palavras ἐν [em] e ἑν [um] viessem uma após a
outra, Paulo propositadamente mudou ἐν para εἰς [para], como costumava
fazer com freqüência. Daí, sua intenção parece antes ser que somos feitos
para beber através da influência, como disse antes, do Espírito de Cristo, e
não que temos bebido no mesmo Espírito.
Não obstante, é incerto se ele fala aqui do batismo ou da Ceia. Sou antes
inclinado a entendê-lo como se referindo à Ceia, ao fazer menção de beber,
pois não tenho dúvida alguma de que ele pretendia fazer alusão à similitude
do sinal [ad signi analogiam]. Certamente, beber não tem nenhuma conexão
com o batismo. Mas, mesmo que o cálice seja apenas uma metade da Ceia,
contudo isso não ocasiona nenhuma dificuldade, pois é bem comum nas
Escrituras o uso de sinédoque26 quando se trata dos Sacramentos. No
capítulo 10 [v. 7], ele menciona só o pão, omitindo qualquer referência ao
cálice. O significado, pois, seria que o propósito pelo qual participamos do
cálice é para que todos nós possamos beber da mesma bebida espiritual.
Pois nele [o cálice] bebemos o sangue de Cristo, o qual é gerador de vida,
para podermos ter vida comum com ele; e isso realmente sucede quando ele
habita em nós por meio de seu Espírito. Além do mais, este Espírito é Um só.
Paulo, pois, ensina que, logo que os crentes são iniciados através do
batismo de Cristo, eles já se sentem cheios de zelo pelo cultivo da unidade
mútua;27 em seguida, quando recebem a Santa Ceia, são conduzidos,
paulatinamente, à mesma unidade, porque estão todos sendo
simultaneamente vivificados pelo mesmo beber.

14. Porque o corpo não é um só membro, mas muitos.


15. Se o pé disser: Porque não sou mão, não sou do corpo, nem por isso deixa de ser do
corpo.
16. E se o ouvido disser: Porque não sou olho, não sou do corpo, nem por isso o deixa de
ser do corpo.
17. Se todo o corpo fosse olho, onde estaria a audição? Se todo ele fosse audição, onde
estaria o olfato?
18. Deus, porém, dispôs os membros, colocando cada um deles no corpo, como lhe
aprouve.
19. E se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo?
20. Mas o certo é que há muitos membros, porém um só corpo.
21. O olho não pode dizer à mão: Não precisamos de ti; nem mesmo a cabeça, aos pés:
Não preciso de vós.
22. Muito ao contrário, os membros do corpo que parecem ser mais débeis, são
necessários;
23. e os membros do corpo, que pensamos serem menos dignos, a estes atribuímos
muito mais honra; e nossas partes indecorosas revestimos de muito mais beleza;
24. enquanto que nossas partes nobres não têm necessidade disso. No entanto Deus
ajustou o corpo num todo harmonioso, concedendo muito mais honra àquela parte que
menos tinha,
25. para que não haja divisão no corpo; pelo contrário, que os membros suportem uns
aos outros com igual cuidado.
26. De maneira que, se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; ou, se um
membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele.
27. Ora, vós sois o corpo de Cristo, e individualmente membros desse corpo.

14. Etenim corpus non est unum membrum, sed multa.


15. Si dixerit pes: Quoniam non sum manus, non sum ex corpore: an propterea non este
ex corpore?
16. Et si dixerit auris: Quia non sum oculus, non sum ex corpore: an propterea non est ex
corpore?
17. Si totum corpus oculus, ubi auditus? si totum auditus, ubi olfactus?
18. Nunc vero Deus posuit membra, unumquodque ipsorum in corpore prout voluit.
19. Quodsi essent omnia unum membrum, ubi corpus?
20. At nunc multa quidem membra, unum autem corpus.
21. Nec potest oculus dicere manui: Ego te opus non habeo. Nec rursum caput pedibus:
Vobis opus non habeo.
22. Quin potius, quæ infirmiora corporis membra videntur esse, neccessaria sunt:
23. Et quæ iudicamus viliora esse in corpore, his abundantiorem honorem circundamus:
et quæ minus honesta sunt in nobis, plus decoris habent.
24. Quæ autem decora sunt in nobis, non habent opus, sed Deus contemperavit corpus,
tribuens honorem abundantiorem opus habenti,
25. Ut ne dissidium esset in corpore, sed ut membra alia pro aliis invicem eandem
sollicitudinem habeant.
26. Et sive patitur unum membrum, compatiuntur omnia membra: sive glorificatur unum
membrum, congaudent omnia membra.
27. Vos autem estis corpus Christi, et membra ex parte.

15. Se o pé disser. Esta frase é um desenvolvimento (ἐπεξεργασία) da


anterior; ou, expressando de outra forma, Paulo elabora e amplia a idéia com
o fim de elucidar o que condensara em poucas palavras. Além disso, tudo
nesta seção corresponde à fábula de Menenius Agripa. Se porventura se
deflagrasse uma rebelião no corpo, os pés dizendo que não tinham qualquer
obrigação de fazer tudo pelo resto do corpo; não só eles, mas o estômago,
os olhos e as mãos, o que resultaria? Não seria o caos para o corpo todo?
No entanto, Paulo aqui está forçando uma situação, ou, seja, que cada
membro deve viver contente com seu próprio lugar e posição relativa, não
nutrindo inveja dos outros [membros], posto que ele faz comparação entre
os membros superiores e os que desfrutam de menos valor. Porquanto, os
olhos assumem uma posição de maior honra no corpo do que as mãos, e as
mãos maior honra do que os pés. Imaginemos bem se a natureza o toleraria,
caso as mãos fossem incentivadas pelo ciúme a recusar-se a fazer seu
trabalho. Outro membro consentirá que a mão seja decepada do resto do
corpo?
Não sou do corpo significa aqui não ter nada a ver com o restante dos
membros, mas que seria capaz de viver por si mesmo, adaptando-se a sua
própria conveniência. Ele pergunta: “Porque a mão tem ciúme dos olhos,
isso lhe dá algum direito de negar aos demais membros seus serviços?”
Estas coisas são ditas em referência ao corpo físico, porém devem ser
aplicadas aos membros da Igreja, para que não brote em nosso ser aquela
indisposição28 que gera o egoísmo, o ciúme e a inveja, tendo como
conseqüência que alguém, ocupando uma posição inferior, não queira
prestar seus serviços aos que se acham em posição superior.
17. Se todo o corpo fosse olho. Ele repudia o estúpido esforço pela
aquisição da igualdade, mostrando que tal coisa é impossível. Diz ele: “Se
todos os membros ambicionassem a honra que pertence aos olhos, a
conseqüência inevitável seria a destruição de todo o corpo. Pois é
impossível que o corpo permaneça saudável e perfeito, a menos que seus
membros desempenhem suas diferentes funções e prestem serviços em
favor dos demais. A igualdade, portanto, se põe em franco conflito com o
bem-estar do corpo, visto que ela gera confusão, o que nos leva
sucessivamente a um desastre imediato. Que exemplo de demência seria,
pois, se um membro, mais do que outro,29 se fizesse responsável por
provocar não só sua própria ruína, mas a do próprio corpo como um todo!”
18. Deus, porém, dispôs. Este é outro argumento baseado na ordenação
divina. “Pareceu bem a Deus que o corpo fosse composto de diferentes
membros, e que estes fossem supridos com funções e dons diversos.
Portanto, qualquer membro que fica descontente com sua própria posição
está travando guerra contra Deus como fizeram os gigantes.30 Que
curvemos nossas cabeças, pois, diante da ordem que Deus mesmo
estabeleceu, a fim de não desperdiçarmos nossas energias opondo-nos a sua
vontade.”31
19. E se todos fossem um só membro. O que ele tem em mente é que
Deus não outorgou diferentes dons aos membros do corpo sem algum
propósito ou razão, senão que ele assim o fez porque o corpo tinha que ser
conservado em existência; pois se esse arranjo tão perfeitamente
equilibrado perdesse sua simetria, então se estabeleceria a confusão e total
desintegração. Todos nós devemos estar prontos a submeter-nos à
providência divina, posto que Deus conduz tudo de forma a servir a nosso
comum interesse. “Um só membro” produz o sentido de uma massa
uniforme, não assistida por quaisquer variações. Se Deus desse a nosso
corpo a forma de uma massa como essa, este não passaria de uma
protuberância inútil.32
20. Muitos membros, mas um só corpo. Ele procura inculcar isso com
muita freqüência, visto que o cerne de toda a questão se radica nestas
palavras: a unidade do corpo é de tal natureza que só pode ser preservada
pela variedade de membros; e, por outro lado, enquanto os membros
diferem uns dos outros em suas funções e habilidades, nada obstante se
acham de tal maneira conectados uns aos outros que alcançam o propósito
de preservar a unidade do corpo. Ele, pois, está ensinando que nenhum
corpo pode continuar existindo, como tal, a menos que suas partes estejam
combinadas em plena harmonia, de sorte que devemos ter consciência de
que cada um de nós é consultor tanto do bem comum quanto do seu
próprio, levando a bom termo sua própria função individual.
21. O olho não pode dizer à mão. Ao convergir-se para este ponto, o
apóstolo ressaltou qual é o dever dos membros menos dignos, ou, seja:
prestar seus serviços ao corpo, e não nutrir inveja dos membros mais
proeminentes. Ora, de um lado ele está instruindo os membros mais dignos
a não desprezarem os mais inferiores, pois nada podem fazer sem eles. O
olho é uma parte superior à mão, todavia não pode tratá-la com desdém,
nem pode escarnecer dela como algo sem utilidade.
22. Ele extrai um argumento da utilidade dos membros, dizendo que os
membros que são tidos como não muito valiosos são os mais necessários.
Por isso, em função do bem-estar de todo o corpo, tais membros não devem
ser menosprezados. Ele aqui prefere usar o termo “mais fraco” em vez de
desprezível, como faz em 2 Coríntios 12.9, quando diz que se gloria em suas
fraquezas, significando com isso as coisas que lhe eram motivo de desprezo
e humilhação.
23. E nossas partes indecorosas. Este é o segundo argumento: que a
desonra de um membro pode levar desgraça ao corpo todo; e isso se faz
evidente à luz do cuidado que tomamos para cobrir nossas partes
indecorosas. Diz ele: “Nossas partes graciosas não exigem adorno algum, no
entanto nos preocupamos muito mais em cuidar das partes mais modestas
ou não tão bem apresentáveis. A razão por que agimos assim é que o
constrangimento que essas partes nos causam afetaria o corpo todo.”
Revestir com honra significa vestir convenientemente, para que as partes,
cuja exposição traria vergonha, fiquem decentemente ocultas.33
24. Deus ajustou o corpo num todo harmonioso. Ele reitera o que
afirmou prieviamente, só que agora de uma forma bem mais explícita, ou,
seja: que Deus ordenou este arranjo harmonioso para o bem de todo o
corpo, porque este não poderia subsistir de outra maneira. Ora, por que
todos os membros são solidários em preocupar-se com a reputação de um
membro que não é suficientemente apresentável, e o único que deve velar
seu constrangimento? O instinto que os leva a proceder assim foi-lhes dado
por Deus porque, se não existisse essa forma de manter as coisas em
equilíbrio, a desarmonia logo decomporia todo o corpo. Deste fato se faz
evidente que, assim que alguém injustamente reivindica mais do que pode
ter, não só é o corpo destruído e o arranjo natural transtornado, mas
também a autoridade de Deus é publicamente rejeitada.34
26. Se um membro sofre. Existe no corpo humano uma tal simetria
[συμπάθεια]35 que, se um membro sofre alguma avaria, todo o resto do corpo
participa de sua dor; assim como também participa de seu bem-estar
quando se acha plenamente saudável. Portanto, não existe nele nenhum
espaço para a inveja ou para o desdém. Ser honrado é usado aqui num
sentido amplo de viver em prosperidade e felicidade. Ora, não há nada que
mais fomente a harmonia do que esta disposição recíproca, em que cada um
por sua vez compreende que é enriquecido pelos benefícios de cada
partícula que vem dos demais, e que, quando os demais sofrem alguma
avaria, aquela parte se empobrece juntamente com o todo.
27. Ora, nós somos o corpo de Cristo. Segue-se que tudo o que foi
expresso sobre a natureza e características do corpo humano deve aplicar-se
a nós, pois não somos apenas uma sociedade civil, mas também, tendo sido
implantados no corpo de Cristo, verdadeiramente somos membros uns dos
outros. Portanto, cada um de nós deve compreender que, seja qual for o
dom que possui, o mesmo lhe foi concedido para a edificação de todos seus
irmãos. Com isso em mente, ele deve dedicá-lo ao bem comum, não
suprimindo-o, nem sepultando-o em seu interior, por assim dizer, nem
tampouco usando-o como se ele fosse sua possessão particular. Aquele que
se sobressai porque possui dons mais excelentes, não deveria ser arrogante,
nem subestimar os demais; ao contrário, precisa ponderar sobre o fato de
que nada é tão insignificante que não venha a ser útil. Tomemos como
exemplo o seguinte: ainda o menos importante entre os crentes, na realidade
produz fruto, dentro de sua escassa capacidade, de modo que não existe
pessoa alguma que seja um membro inútil da Igreja. Os que não são
agraciados com uma distinção tão excelente não deveriam invejar os que lhe
são superiores, nem negar-lhes obediência; ao contrário, devem manter-se
na posição em que foram colocados. Que haja amor uns para com os outros,
simpatia e consideração uns pelos outros. Que seja o bem comum a
influenciar-nos para que não sejamos os que danificam a Igreja por meio de
malevolência, ciúme, orgulho, ou algum gênero de discórdia; ao contrário
disso, que cada um canalize toda sua energia em sua preservação. Este é um
tema mui rico e esplêndido,36 porém tenho-me limitado a realçar a forma
como a analogia [similitudo] anterior deve aplicar-se à Igreja.
E individualmente membros desse corpo. Crisóstomo entendia que
esta frase fora adicionada, já que os coríntios não constituíam a Igreja
Universal, mas esta interpretação me parecia um tanto forçada.37 Às vezes
tenho pensado que a frase foi a expressão de alguma impropriedade, como
costumam os latinos dizer: Quodammodo38 [de certa maneira].39 Mas, ao
avaliar tudo numa perspectiva mais precisa, então entendi que o apóstolo
fez esta menção em referência às diferenças existentes entre os membros,
como mencionou anteriormente. Portanto, eles são membros
individualmente, visto que cada um foi posto na Igreja para ter participação
pessoal e deveres definidos. O próprio contexto nos leva a este significado.
Portanto, individualmente e como um todo são termos correlativos.

28. E Deus estabeleceu alguns na Igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar


profetas, em terceiro mestres, depois milagres, depois dons de curar, socorros,
governos, diversidades de línguas.
29. Porventura são todos apóstolos? são todos profetas? são todos mestres? são todos
operadores de milagres?
30. têm todos os dons de curar? falam todos em línguas? interpretam-nas todos?
31. Desejai, porém, ardentemente, os dons mais excelentes. E eu passo a mostrar-vos
ainda um caminho mais excelente.

28. Et alios quidem posuit Deus in Ecclesia, primum apostolos, deinde Prophetas, tertio
Doctores, postea Potestates, deinde dona sanationum, opitulationes, gubernationes,
genera linguarum.
29. Numquid omnes Apostoli? numquid omnes Prophetæ? numquid omnes Doctores?
numquid omnes Potestates?
30. Numquid omnes dona habent sanationum? numquid omnes linguis loquuntur?
nusmquid omnes interpretantur?
31. Sectamini autem dona potiora.40

No início do capítulo, ele falou de dons [facultatibus]; agora ele prossegue


discutindo os ofícios, e devemos prestar especial atenção a esta ordem dos
elementos. Visto que o Senhor só designou os ministros depois de dotá-los
com os dons indispensáveis e capacitá-los para o cumprimento dos deveres
a que foram destinados. É preciso deduzir deste fato que as pessoas
completamente destituídas de qualificações, que se impõem na Igreja, não
passam de fanáticos, dominados por um espírito maligno. Por exemplo, há
muitos que se gabam de que foram movidos pelo Espírito a agir, e se
orgulham de haver recebido uma vocação secreta de Deus, quando todo o
tempo não vão além de obtusa e rematada ignorância. Mas de fato a ordem
natural é que os dons vêm antes do ofício efetivo. Como, pois, ele já
demonstrou supra, seja qual for o dom que um indivíduo receba de Deus, o
mesmo deve ser subserviente ao bem comum, ele agora declara que os
ofícios são distribuídos de tal maneira que todos possam juntos, por meio
de esforços combinados, edificar a Igreja, e cada indivíduo segundo sua
própria medida.41
28. Primeiramente, apóstolos. Ele não inclui em sua lista todos os tipos
de ofícios. E de fato isso não era necessário, pois tudo o que ele pretendia
era citar exemplos. Em Efésios 4.11 há uma lista mais completa dos ofícios
que são constantemente indispensáveis para o governo da Igreja.
Apresentarei a razão para isso quando tratar desta passagem, se o Senhor
mo permitir; não obstante, nem mesmo ali se faz menção de todos eles. No
tocante à passagem que se acha diante de nós, devemos observar que
alguns dos ofícios, aos quais Paulo está se referindo, são permanentes,
enquanto que outros são temporários. Os ofícios permanentes são aqueles
que são indispensáveis ao governo da Igreja. Os temporários, em
contrapartida, são aqueles que foram designados, no início, para a fundação
da Igreja e o estabelecimento do Reino de Cristo, os quais cessaram de
existir desde então.
O ofício de mestre [officium doctoris] pertence à primeira classe; e o de
apóstolo, à segunda. Pois o Senhor designou [creavit] os apóstolos para que
difundissem o evangelho pelo mundo todo. Não designa-lhes quaisquer
limites territoriais, nem paróquias, mas queria que agissem como seus
embaixadores, por onde quer que fossem, entre os povos de cada nação e
língua. Neste aspecto, eram diferentes dos pastores que estão limitados, por
assim dizer, a suas igrejas [locais]. Porquanto o pastor não tem um
mandado para pregar o evangelho no mundo inteiro, mas simplesmente
cuida da Igreja que lhe foi confiada. Em Efésios 4.11, Paulo inclui evangelistas
na lista, depois dos apóstolos, porém os omite aqui, pois o mesmo transita
diretamente da ordem mais excelente [a primo gradu] para os profetas.
Por este termo [profetas] (em minha opinião) ele tem em mente não os
que eram dotados com o dom de profetizar [vaticinar, predizer], mas os que
eram dotados com um dom peculiar, não meramente para interpretar a
Escritura, mas também para aplicá-la sabiamente para o presente uso.42
Minha razão para pensar assim é que ele prefere profecia a todos os demais
dons, porque ela é a fonte mais excelente de edificação, recomendação esta
que dificilmente pode aplicar-se à predição de eventos futuros. Além disso,
quando define a obra do profeta, ou ao menos trata daquilo que o profeta
deve principalmente fazer, ele declara que se dedicava à consolação, ao
encorajamento e à doutrinação. No entanto, essas atividades são
completamente distintas de predição.43 Este versículo, pois, nos ensina que
os profetas são (1) destacados intérpretes da Escritura; e (2) homens
dotados com extraordinária sabedoria e aptidão para compreender qual é a
necessidade imediata da Igreja e falar-lhe a palavra exata de que ela carece
para seu sustento. Eis a razão por que eles são, por assim dizer,
embaixadores para comunicar a vontade divina.
Pode-se traçar certa diferença entre eles e mestres, ou, seja: que a tarefa
dos mestres consiste em preservar e propagar as sãs doutrinas (sana
dogmata) para que a pureza da religião permaneça na Igreja. Não obstante,
este título é também usado de diferentes formas, e provavelmente se refira
aqui mais ao pastor; a não ser que o leitor prefira tomá-lo num sentido geral,
aplicando-o a todos aqueles que são dotados com a habilidade de ensinar,
como é o caso em Atos 13.1, onde Lucas também os agrupa com os profetas.
Tenho uma razão pessoal para não participar da opinião dos que restringem
a tarefa do profeta à interpretação das Escrituras, ou, seja: Paulo ordena que
somente dois ou três deles deviam falar [1Co 14.29], e isso sucessivamente,
o que não se harmoniza com a idéia de que não faziam outra coisa senão
interpretar as Escrituras. Em suma, meu ponto de vista é que os profetas
referidos aqui são homens habilidosos e experientes em notabilizar a
vontade de Deus, aplicando as profecias, ameaças, promessas e todo o
ensino da Escritura às necessidades vigentes da Igreja. Se porventura
alguém tiver outra opinião, estou disposto a reconhecer que há espaço para
a mesma, e não provocarei nenhuma controvérsia por causa disto. Pois é
difícil mudar a mente de alguém sobre os dons e os ofícios, dos quais a
Igreja foi privada por tanto tempo, a não ser aqueles leves traços ou
sombras deles que ainda podem ser percebidos.
No tocante a prodígios [milagres] e dom de curas, já fiz menção deles no
capítulo 12 de Romanos. Apenas que se observe que Paulo não está falando
dos dons propriamente ditos, mas, sim, do exercício deles. Visto que aqui o
apóstolo está detalhando os ofícios, não posso aceitar o ponto de vista de
Crisóstomo de que a palavra ἀντιλήψεις (a saber, assistência ou socorros)
significa dar assistência aos fracos. Então, o que ele tem em vista?
Indubitavelmente, tampouco era ele um ofício ou um dom na Igreja de
outrora, e do qual não temos nenhum conhecimento agora; ou talvez tenha
algo a ver com a obra do diaconato, ou, seja, o cuidado dos pobres. Prefiro a
segunda explicação.44 Paulo, porém, faz menção de dois gêneros de
diáconos em Romanos 12.8, e fiz relevante explanação sobre eles em meu
comentário sobre essa passagem.
Considero governos como sendo anciãos [seniores], os quais eram
responsáveis pela disciplina. Pois a Igreja primitiva tinha seu Senado
[senatus]45 ou “Concílio dos Anciãos” para manter o povo em retidão de
vida. Ele revela isso em 1 Timóteo 5.17, onde faz referência à dupla ordem
[duplicem ordinem] de presbíteros.46 O governo era, pois, realizado por
presbíteros que excediam aos demais em sobriedade, experiência e
autoridade.
Ele inclui à variedades de línguas tanto o conhecimento de línguas quanto
o dom de interpretá-las. Os coríntios, porém, tinham dois dons distintos,
visto que às vezes uma pessoa que falava muitas línguas não conhecia,
contudo, a língua da igreja local com a qual ela estava lidando; e os
intérpretes eram preparados para suprir tal deficiência.47
29. São todos apóstolos? É natural ter ocorrido que alguém fosse dotado
com muitos dons e exercesse os dois dos ofícios aos quais Paulo faz
referência; e de fato não há nenhum erro nisso. O que ele quer mostrar, antes
de tudo, é que ninguém está tão plenamente equipado com tudo, que se
sinta tão completo em si mesmo, e que não sinta nenhuma dependência de
outras pessoas. Em seguida, ele quer mostrar que os ofícios, assim como os
dons, são distribuídos de tal maneira que nenhum membro sozinho
constitui o corpo inteiro. Pois a intenção dele, nesta passagem, é desarraigar
tudo quanto fomente o orgulho, o ciúme, a arrogância e o menosprezo pelos
irmãos; a indisposição, o egoísmo e tudo o mais que pertença a esse gênero
de coisas.
31. Desejai ardentemente os dons mais excelentes. Esta frase pode ser
também traduzida “de valor mais elevado”, o que se adequa plenamente bem
ao contexto. Não obstante, isso não faz qualquer diferença no significado.
Pois ele está incitando os coríntios a valorizarem ou a lutarem, acima de
tudo, pelos dons que possuem mais eficácia para a edificação. Pois era
predominante entre eles o erro de se preocupar com a ostentação mais do
que com as coisas que trazem benefício. Eis a razão por que negligenciavam
a profecia. Ao mesmo tempo, todo o local estrugia com línguas; e embora
fizessem um grande estardalhaço sobre isso, o saldo real era mui pouco. O
apóstolo não está se dirigindo a indivíduos, como se quisesse que cada
pessoa devesse almejar ser profeta, ou mestre, mas que todo seu esforço é
no sentido de que os coríntios estivessem preocupados com a edificação
mútua, esperando que assim se devotassem com todo ardor às coisas que
se revelam mais eficientes para a edificação.

1. “Il demeure là abbruti apres les idoles.” – “Permanece ali, num afeto animalesco pelos
ídolos.”
2. Esta idéia é abordada mais amplamente por Bloomfield, que observa que ἀπάγεσθαι (ser
levado embora) é “um termo forte, denotando ser arrebatado por uma força que não pode ser
resistida; e aqui se refere à cega enfatuação pela qual os pagãos eram atraídos à idolatria e
vícios, como bestas brutas que não têm entendimento.” Adiciona ainda: “Isto é especialmente
mencionado em ὡς ἄν ἤγεσθε – como podeis ser levados, isto é, por costume, exemplo, ou
inclinação, justamente como pode acontecer.”
3. “Que ce sera une vilenie à eux s’ils” – “Será uma desgraça para eles se ...”
4. “D’estre errans et abusez en diuerses sortes.” – “De andar ao léu e iludidos de várias
maneiras.”
5. “La proportion et ordre bien compassé qui est en l’Eglise.” – “A proporção e ordem bem
regulada que existem na Igreja.”
6. “Consiste en vne vnite faite de plusieurs parties assemblees.” – “Consiste de uma unidade
feita de muitas partes bem ajustadas.”
7. “Il veut donc qu’un chacun se contentant du don qu’il a receu, s’employe a le faire valoir, et
s’acquitter de son deuoir.” – “Portanto, ele quer que cada um se contente com o dom que
recebeu, esforçando-se por aperfeiçoá-lo e cumprindo cuidadosamente seu dever.”
8. “Pour en iouyr à part, sans en communiquer à ses freres.” – “De modo a desfrutar deles sem
reparti-los com seus irmãos.”
9. “Vn tas d’esprits enragez.” – “Uma tropa de espíritos furiosos.”
10. “De discretion.” – “De discrição.”
11. “Que ceci estg appelé Manifestation.” – “Que isto é designado uma Manifestação.”
12. “Le sçauoir et la dexterite.” – “Habilidade e destreza.” Quanto ao termo prudência [prudence],
ver Cícero de Officiis, i.43.
13. Um dos pontos de vista mais satisfatórios deste tema é o do Dr. Henderson, em seu Lecture on
“Divine Inspiration” (pp. 193, 196), que entende por σοφία (sabedoria), nesta passagem, “as
sublimes verdades do evangelho, diretamente reveladas aos apóstolos, das quais λογος
(palavra) era a habilidade supernatural de comunicá-las corretamente a outros”; e por λόγος
γνώσεως (palavra de conhecimento) a faculdade de “infalivelmente explicar verdades e doutrinas
que foram previamente divulgadas.”
14. As palavras de Crisóstomo são: “Por esta fé ele tem em mente não a fé de doutrinas, mas a
de milagres.” Ela era chamada pelos escolásticos fides miraculorum (fé de milagres).
15. O uso de plural se manifesta para notificar o número e variedade das enfermidades que
foram curadas – os apóstolos foram revestidos com poder para curar todas as formas de
doenças e todas as formas de enfermidades [Mt 10.1].
16. Parece não haver base suficiente para entender os milagres aqui referidos como
necessariamente atos de terror, embora a conexão em que a expressão ocorre pareça notificar
que milagres aqui significavam mais que manifestações ordinariamente estupendas do poder
divino, tal como constrangeria poderosamente o espectador a exclamar: Este é o dedo de Deus!
Assim, “a ressurreição dos mortos, tornar serpentes inócuas, ou beber alguma bebida
envenenada, a expulsão de demônios e a cura de cegueira”, como no caso de Elimas, o mágico,
e da própria morte, como no caso de Ananias e Safira, foram feitos poderosos .”
17. “Apportant la volonte de Dieu aux hommes.” – “Comunicar a vontade de Deus aos homens.”
18. “Par la montre et belle apparence que les gens ont aucuneffois.” – “Pela boa aparência que
às vezes as pessoas têm.”
19. “Et en tel cas ceux que auoyent le don d’interpretation des laugues.” – “E em caso como esse,
os que tinham o dom de interpretar línguas.”
20. “Par laquelle Dieu nou conioint et oblite mutuellement les uns aux autres.” – “Por meio da
qual Deus nos conecta e obriga mutuamente uns aos outros.”
21. Menenius Agripa, cônsul romano, por ocasião de uma rebelião irrompida entre o populacho
contra os nobres e senadores, aos quais representavam como sendo inúteis e nauseabundos ao
paladar, foi bem sucedido em aplacar a insurreição, pelo feliz uso do apólogo referido,
fundamentado na conexão íntima e mútua dependência das diferentes partes do corpo. O leitor
encontrará este interessante incidente relatado por Livy, Livro ii. cap. 32.
22. “En remonstrant que les membres du corps ayans conspiré contre le ventre, et se voulans
separer d’auec luy s’en trouuerent mal les premiers.” – “Ao mostrar que os membros do corpo,
tendo conspirado contra o ventre, e desejando separar-se dele, foram os primeiros a
experimentar os maus efeitos disso.”
23. “Ils prenent nourriture et acroissement l’un auec l’autre.” – “Tomam nutrientes e crescem,
uns com os outros.”
24. “Ce bom Seigneur Jesus.” – “Este bom Senhor Jesus.”
25. Calvino, entre outros intérpretes, entende o termo πλήρωμα (plenitude), na passagem referida,
num sentido ativo. Teofilato observa que a Igreja é a Πλήρωμα – completude de Cristo, como o
corpo e os membros são da cabeça. O termo pode, contudo, ser tomado num sentido passivo,
significando uma coisa a ser preenchida ou completada.
26. Uma figura de linguagem, por meio da qual uma parte é expressa pelo todo.
27. “Si tost qu’ils sont amenez à Christ par le baptesme, desia leur est donné un goust de
l’affection qu’ils doyuent auoir d’entretenir entr’eux unite et conionction naturelle.” – “Tão logo
são conduzidos a Cristo pelo batismo, já lhes é dado algum sabor da disposição que devem
nutrir, para manter entre si uma unidade e conexão mútuas.”
28. “Nous face restraindre et espargner les vnes enuers les autres.” – “E nos faça restringir e
poupar-nos em relação a outros.”
29. “De s’accommoder et soumetre à l’un des autres membres.” – “Para acomodar-se e
submeter-se aos demais membros.”
30. “Comme les poetes ont dit anciennement des geans.” – “Como os poetas contaram dos
gigantes dos tempos de outrora.” A fábula da guerra dos gigantes com os deuses referida na
Odisséia de Homero, 7, 59, 206; 10, 120.
31. “De peur de perdre temps, and nous gaster en resistant à la volonté.” – “Para não perdermos
tempo e prejudicar-nos por resistirmos sua vontade.”
32. “Un amas de chair inutile.” – “Um amontoado de carne inútil.”
33. Raphelius observa que τιμὴν περιτιθέναι “significa, em geral, (honorem exhibere) dar honra; nesta
passagem, porém, à guisa de metonímia, cobrir com roupa aqueles membros do corpo que, se
vistos, seria desagradável e de aparência inconveniente; e este é um tipo de honra que os
veste.”
34. “Et que ne porte sa vocation.” – “E não se mantém nos limites de sua vocação.”
35. Os autores clássicos fazem uso do termo neste sentido.
36. “Voyci vne belle matgiere riche et abondance.” – “Aqui está um tema excelente, rico e
copioso.”
37. Billroth observa que “o ponto de vista de Crisóstomo está fora de lugar; pois tal noção não
pertence à argumentação do apóstolo”. Biblical Cabinet, No. xxii, p. 39.
38. Um exemplo disto pode ser encontrado em Cícero de Amicitia, 8.
39. “Comme nous disons en Langue vulgaire, Aucunement.” – “Como dizemos na linguagem
popular: de certa maneira.”
40. “Ou, Soyez couuoiteux des plus excellens dons, ou, estes-vous enuieux des plus excellens
dons?” – “Ou, Tende ambição pelos dons mais excelentes, ou, Vós sois envejosos dos dons mais
excelentes?”
41. “Selon sas portion et mesure.”– “Segundo sua porção e medida.”
42. “De l’accommoder prudemment, et l’appliquer en vsage selon les personnes et le temps.” –
“Para fazer uso dela sabiamente, bem como aplicá-la para o uso de acordo com as pessoas e
tempo.”
43. “Et advertissemens des choses à venir.” – “E notificações ou coisas futuras.”
44. Este ponto de vista da importância do termo αντιλήψεις (socorros) geralmente é aquiescido
por intérpretes modernos. O Dr. Dick observa (em sua Theology, vol. iv. p. 390) que “não há
pessoas que sejam tão razoavelmente obrigadas a entender que socorros significam diáconos”;
os quais “foram instituídos com o expresso propósito de ajudar os apóstolos, com o propósito de
aliviá-los do cuidado dos pobres, para que pudessem devotar-se exclusivamente ao ministério
da palavra.” Ele observa ainda (p. 389) que “isso não procede, visto que alguns dos ofícios e
ministrações enumeradas neste lugar eram miraculosos e extraordinários, os quais eram todos
dessa descrição.”
45. “Auoit comme son Senate, ou Consistoire.” – “Tinham seu Senado, por assim dizer, ou
Consistório.”
46. “Deux ordres de Prestres: c’est à dire d’Anciens.” – “Dois tipos de Presbíteros, ou, seja,
Anciãos.”
47. Nosso autor repete aqui o que foi afirmado onde comenta sobre o versículo 10.
Capítulo 13

1. Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos, mas não tiver amor, serei como o
bronze ressonante ou como o símbalo estridente.
2. E se eu tiver o dom de profecia e conhecer todos os mistérios e toda a ciência; e se
tiver toda a fé que faz remover montanhas, mas não tiver amor, nada serei.
3. E se eu doar todos meus bens para o sustento dos pobres, e se entregar meu corpo
para ser queimado, mas não tiver amor, de nada me aproveitará.

1. Et adhuc excellentiorem viam vobis demonstro. Si linguis hominum loquar et


Angelorum, caritatem autem non habeam, factus sum tympanum sonans, aut cymbalum
tinniens.
2. Et si habeam prophetiam, et noverim mysteria omnia omnemque scientiam, et si
habeam omnem fidem, adeo ut montes loco dimoveam, caritatem autem non habeam,
nihil sum.
3. Et si insumam in alimoniam omnes facultates meas, et si tradam corpus meum ut
comburar, cartatem autem non habeam, nihil mihi prodest.

E vos mostrarei um caminho muito mais excelente. Nada mais posso


fazer senão mudar a estranha divisão do capítulo, especialmente porque
acho impossível expô-lo adequadamente de outra forma. Pois o que haveria
de lucrar cortando a sentença e emendando-a ao capítulo anterior, quando
ela se harmoniza tão bem com o que segue, sendo deveras expandida e
completada por ele? É provável que isso se deu por um equívoco praticado
por copistas.
Seja como for, após ter ele atraído especial atenção para a edificação, ele
agora promete mostrar-lhes algo ainda de maior importância, a saber: que
tudo seja regulado segundo a regra do amor [caritas]. O caminho mais
excelente, pois, está onde o amor é o poder controlador de todas as ações. E
deveras ele começa de chofre afirmando que todas as axcelências1 nada
valem sem o amor. Porque nada existe, não importa quão maravilhoso ou
extraordinário possa ser, que não é arruinado, pelo prisma de Deus, pela
ausência do amor.2 E o que Paulo ensina aqui é um eco do que ele assevera
em outro lugar, ou, seja: que o amor é o alvo de tudo [1Tm 1.5], e “o vínculo
da perfeição” [Cl 3.14]; e igualmente baseia a santidade dos crentes
inteiramente no amor; pois o que mais Deus pede de nós em todo o
conteúdo da segunda tábua da lei? Portanto, não é de admirar que todas
nossas ações serão julgadas por meio de um padrão, a saber, se elas revelam
os sinais que emanam do amor. Nem é de admirar que esses dons, que são,
por outro lado, excelentes, só concretizam seu verdadeiro valor quando se
acham relacionados ao amor.
1. Se eu falar as línguas dos homens. Ele toma como ponto de partida a
eloqüência, a qual por si só é um dom muito excelente, mas quando se vê
divorciada do amor, de nada serve para alguém obter o favor divino. Ao
referir-se a línguas dos anjos, ele faz uso de hipérbole para algo notável ou
raro. Todavia, prefiro dar-lhe uma interpretação precisa, como se referindo
aos diferentes gêneros de idiomas. Pois os coríntios, que consideravam o
valor de todas as coisas pela reputação que lhes podiam dar, e não pelos
frutos3 que se produziam, davam muito valor à habilidade de falar muitos
idiomas. Paulo está dizendo: “Podeis ter a posse de todos os idiomas, não
só os de todos os homens, mas os dos próprios anjos, e ainda muito mais.
Contudo, a impressão que se tem é que Deus não vos considera como sendo
de mais valor que um símbalo, por assim dizer, se porventura não possuís o
amor.”
2. E se tiver o dom de profecia. Ele também reduz a nada a dignidade
deste dom,4 embora o classificasse acima de todos os demais, caso ele não
esteja sujeito ao amor. Conhecer todos os mistérios pode dar a idéia de
haver sido adicionado à profecia à guisa de explicação; visto, porém, que
conhecimento vem logo em seguida, e de haver feito menção separada do
conhecimento num contexto anterior [1Co 14.8], deve-se ponderar se
porventura o conhecimento de mistérios não é usado aqui em vez de
sabedoria. Ao mesmo tempo que não devemos ser dogmáticos aqui, todavia
sinto-me muitíssimo atraído para este pondo de vista.
A fé da qual ele faz referência aqui é de caráter especial, como se faz
óbvio à luz das palavras que a acompanham, ou, seja: “ao ponto de remover
montanhas”. Portanto, os sofistas estão desperdiçando seu tempo em
interpretar este versículo à revelia, ao ponto de roubarem da fé o poder. Por
isso, à luz do fato de a palavra fé [πολύημον] possuir muitos matizes de
significado, o leitor que possui discernimento deve observar bem o sentido
em que ela é usada aqui. Ora, ele se constitui em seu próprio intérprete
(segundo já realcei), porquanto aqui ele limita a fé a milagres. É a isso que
Crisóstomo chama “a fé de sinais ou milagres”; e nós, “a fé especial”, visto
que ela não se prende a Cristo em sua plenitude, mas somente a seu poder
de efetuar milagres. Esta é a razão por que os homens podem, às vezes,
exercer essa fé, mesmo não possuindo o Espírito de santificação, como foi o
caso de Judas.5
3. E se eu doar todas minhas possessões.6 Considerado em si mesma,
esta coragem certamente merece o mais elevado louvor. Visto, porém, que a
renúncia de coisas às vezes tem suas raízes no egoísmo, e não na genuína
generosidade; ou, por outro lado, porque um homem generoso às vezes se
vê destituído dos demais aspectos do amor (já que um sentimento generoso
é apenas um elemento do amor), pode suceder que uma ação, por mais
louvável que seja em outros aspectos, pode ser considerada pelos homens
como algo realmente esplêndido e fazê-la o objeto de seus louvores, e no
entanto ser considerada como de absoluta nulidade aos olhos de Deus.
E se entregar meu corpo. Indubitavelmente, ele está falando aqui do
martírio, o qual constitui o ato mais excelente e supremo de todos. Pois o
que é mais admirável do que aquela inabalável firmeza de caráter, quando
alguém não hesita em oferecer sua vida em testemunho do evangelho?
Todavia, até mesmo isto Deus também reputa como sendo de nenhum
préstimo, caso o coração seja destituído de amor. Não obstante, o gênero de
castigo que ele menciona aqui não era o único geralmente infligido aos
cristãos. Pois lemos que, naqueles dias, os tiranos que almejavam
desarraigar a Igreja procediam contra eles [cristãos] usando mais a espada
do que o fogo,7 excetuando Nero que, em sua demência, também recorria ao
incêndio. Mas tudo indica que o Espírito está a predizer, pela
instrumentalidade de Paulo, que gênero de perseguições estava se
avizinhando. Isto, porém, é acidental. O ponto-mestre deste versículo é o
seguinte: visto que o amor é a única regra que deve governar nossas ações, e
a única diretriz para o correto uso dos dons divinos, Deus não aprova nada
que esteja destituído de amor, não importa quão magnificentes sejam os
conceitos humanos. Pois, sem o amor, a mais bela de todas as virtudes não
passa de mera aparência, um ruído vazio de significação, não mais digna que
a moinha; em suma, não passa de algo grosseiro e ofensivo. Ora, os papistas
deduzem disso que o amor é, portanto, de mais valor para nossa
justificação do que a fé. Minha refutação virá mais adiante. No momento,
prossigamos com a passagem.

4. O amor é paciente, é bondoso; o amor não inveja, não se vangloria,


5. não se comporta inconvenientemente, não busca seus interesses, não se sente
provocado, não suspeita mal;
6. não se regozija com a injustiça, mas se alegra com a verdade;
7. tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
8. O amor nunca falha; mas, se houver profecias, serão suprimidas; se houver línguas,
cessarão; se houver conhecimento, será destruído.

4. Caritas patiens est, benigne agit, caritas non æmulatur, caritas non agit insolenter, non
inflatur;
5. Non agit indecenter, non quærit sua ipsius, non provocatur, non cogitat malum:
6. Non gaudet obiniustitiam, congaudet autem veritati.
7. Omnia fert, omnia credit, omnia sperat, omnia sustinet.
8. Caritas nunquam excidit: sive prophetiæ abolebuntur, sive linguæ cessabunt, sive
scientia destruetur.

4. O amor é paciente. Ele agora nos leva a descobrir quão excelente é o


amor, ao mostrar-nos seus efeitos ou seus frutos. Entretanto, estas
descrições não se propõem simplesmente a torná-lo atrativo, mas a levar os
coríntios a entenderem a forma como ele se expressa em ação e em sua
natureza. O objetivo primordial, porém, é mostrar quão necessário ele é na
preservação da unidade da Igreja. E não tenho dúvida de que o apóstolo
pretendia repreender os coríntios de forma indireta, confrontando-os com
uma situação completamente diversa daquela propriamente deles, para que
pudessem aperceber-se de seus próprios vícios, contrastando-se com o que
viam.
A primeira recomendação do amor é que ele, ao suportar pacientemente
muitas coisas, fortalece a paz e a harmonia da Igreja. A segunda excelência
do amor é bem semelhante, ou, seja, bondade e respeito, porquanto este é o
significado do verbo grego (χρηστεύεσθαι).8 A terceira excelência consiste em
que ele corrige a emulação, a qual constitui a causa originária de todas as
disputas. Ele inclui inveja que causa emulação, porquanto se assemelha
muito a ela; ou, antes, ele tem em mente a espécie de emulação que se
associa à inveja e freqüentemente se origina dela. Segue-se que onde a inveja
mantém influência, onde cada um é ávido por destaque pessoal, ao menos
na aparência, o amor não pode vicejar.
O grego endossa minha tradução: “não age insolentemente” [οὐ
περπερεύεται]. Erasmo o traduz como “não é impudente”.9 Sabe-se muito bem
que este termo grego tem diferentes significados, mas já que, às vezes, ele é
usado como “ser obstinado, tornar-se arrogante por causa da
autoconfiança”, este sentido parece adequar-se melhor a este versículo.10
Ele, pois, está reivindicando para o amor uma influência moderada, e mostra
que ele é um freio para manter o homem sob controle e impedi-lo de
prorromper em atos de ferocidade, de modo que todos venham a viver
juntos de maneira tranqüila e ordeira. Ele acrescenta mais, dizendo que não
existe nele a mínima sombra de orgulho.11 Que o homem, pois, que se deixa
governar pelo amor não se infla com orgulho, olhando para os outros com
desdém e sentindo-se satisfeito consigo mesmo.12
5. Não se comporta inconvenientemente (οὐκ ἀσχημονεú). Erasmo o
traduz por “não é desdenhoso”. Visto, porém, que ele não cita qualquer
autoridade em apoio deste significado, preferi reter seu sentido próprio e
usual. Minha explicação, pois, é a seguinte: o amor não se deleita com fútil
ostentação nem provoca grande espalhafato, mas sempre observa a
moderação e a conveniência. E assim o apóstolo uma vez mais se põe a
censurar os coríntios de maneira indireta, pois se portavam de forma tão
vergonhosa e com tal arrogância, ao ponto de não revelarem nenhum
escrúpulo em ignorar toda e qualquer conveniência.13
Não busca seus interesses. Disto podemos inferir que o amor está longe
de ser-nos algo inerente, pois todos nós somos portadores de uma natural
tendência de amar-nos e de cuidar de nós mesmos, buscando só o que nos
interessa. Sim, para falar com mais exatidão, nos atiramos de ponta cabeça
para alcançar o que nos interessa.14 O amor é o único antídoto15 que cura
essa tendência tão pervertida, pois ele nos faz ignorar nossas próprias
circunstâncias e a preocupar-nos sinceramente com a sorte de nosso
próximo, amando e cuidando dele. Além disso, “buscar as próprias coisas
de alguém”16 é viver devotadamente para ele e sentir-se completamente feliz
em ajudá-lo a cuidar de seus próprios interesses. A questão se é lícito que o
cristão se preocupe com seu próprio bem-estar é solucionada por esta
definição. Porquanto o apóstolo não pretende dizer que deixemos de
preocupar-nos conosco e de cuidar de nossos próprios negócios; senão que
condena a excessiva preocupação e ansiedade pelos mesmos, o que nasce
do amor excessivamente cego por nós mesmos. Mas tal excessividade
realmente consiste em negligenciarmos os outros e pensarmos demais em
nós mesmos, ou vivermos tão concentrados em nossos interesses que nos
abstraímos da consideração que Deus nos ordena ter por nosso próximo.17
Ele adiciona que o amor é também um freio que restringe as disputas; e isso
se deduz das duas primeiras afirmações deste versículo. Pois aquele que é
cortês e tolerante não explode em ira repentina e nem se lança
precipitadamente em controvérsias e contendas.18
7. Tudo sofre. O que ele pretende com todas as descrições deste
versículo é que o amor não é impaciente nem malicioso. Pois é parte da
tolerância sofrer e suportar tudo, enquanto que a essência da sinceridade e
espírito humanitário é crer e esperar tudo. Somos natural e demasiadamente
devotados a nós mesmos, e tal erro nos faz irritadiços e queixosos. O
resultado é que passamos a desejar que outros levem nossos fardos,
enquanto que, ao mesmo tempo, recusamos, de alguma forma, dar-lhes
assistência. O amor é o antídoto que cura esse tipo de enfermidade, pois ele
nos faz servos de nossos irmãos e nos ensina a carregar seus fardos em
nossos próprios ombros. Além disso, visto que somos por natureza
maliciosos, somos também desconfiados, e percebemos erro em quase tudo.
O amor, porém, nos arrasta de volta ao espírito humanitário, para que
cultivemos a sinceridade e a bondade no trato com os outros.
Ao dizer todas as coisas, devemos entender que essa é uma referência a
tudo quanto temos de suportar, e de uma forma correta. Pois não é pelos
maus hábitos que somos edificados, seja sancionando-os por meio de
gabolice, ou fechando-lhes os olhos e estimulando-os através de nossa
conivência. Além disso, essa tolerância não significa desistência de medidas
disciplinares e punições que são porventura merecidas. A mesma coisa se
aplica ao espírito humanitário em julgar as coisas.
O amor tudo crê. Não significa que o cristão consciente e
intencionalmente permite ser enganado; não que ele faça calar a sabedoria e
o discernimento com o fim de permitir que as pessoas o tripudiem mais
facilmente; não que ele tenha que ser daltônico! Então, o que é? Como já
disse, o que o apóstolo está pedindo aqui é que haja sinceridade e altruísmo
no julgamento das coisas; e aqui ele afirma que estes19 são os
acompanhantes invariáveis do amor. O que isso significará na prática é que
o cristão será melhor percebido através de sua própria bondade e altruísmo
do que provocando humilhação a seu irmão através da desconfiança
infundada.
8. O amor nunca falha. Aqui ele tem outra das excelências do amor, a
saber, que ele dura para sempre. Uma excelência como esta, que jamais falha,
é certamente digna de ser obtida com muito esforço. O amor, portanto, deve
ser preferido antes de todos os dons temporários e perecíveis. As profecias
passam; as línguas cessam; o conhecimento chega ao fim. Daí, o amor é mais
excelente que todos eles, por esta razão: enquanto eles falham, ele
sobrevive.
Os papistas torcem este versículo a fim de buscar apoio para o dogma
que, sem qualquer autoridade escriturística, inventaram, a saber: que as
almas dos mortos estão orando a Deus em nosso favor. Porquanto arrazoam
da seguinte forma: “Orar é um serviço eterno que o amor empreende; o amor
permanece nas almas dos santos que já morreram; portanto, elas continuam
orando por nós.” Embora não queira provocar um debate mordaz em torno
deste assunto, não obstante, para que não fique alguma impressão de que
granjearam uma boa parcela de vantagem através de minha concessão,
apresentarei uma réplica sucinta do ponto de vista oposto ao deles.
Em primeiro lugar, ainda que o amor dure para sempre, não se conclui
necessariamente que ele esteja (segundo a expressão) em constante
exercício. Porque, o que nos impediria de afirmar que os santos, vivendo
agora no usufruto de sua paz e descanso, não exercem amor nos ofícios da
presente vida?20 E pergunto: que incongruência os papistas vêem nisto? Em
segundo lugar, se eu fosse afirmar que não é o ofício perpétuo do amor fazer
intercessão pelos irmãos, como provariam o contrário? Para que uma
pessoa interceda por outra é necessário que esteja bem familiarizada com
suas necessidades. Se nos é permitido arriscar uma conjetura acerca do
estado dos mortos, é uma suposição mais provável que os santos falecidos
ignorem o que se passa por aqui, do que estão cônscios de nossas
necessidades. É verdade que os papistas imaginam que as almas vêem o
mundo todo no reflexo da luz que desfrutam na presença de Deus. Não
obstante, esta é uma suposição ímpia e totalmente pagã, a qual traz mais
laivos da teologia egípcia do que concordância com o pensamento cristão.
Portanto, à luz da ignorância dos santos no tocante a nossas circunstâncias,
suponhamos que eu dissesse que não estão preocupados conosco, que
argumento os papistas me apresentariam a fim de me forçarem a abandonar
meu ponto de vista? Na suposição de que eu sustentasse que se acham tão
ocupados e absortos, por assim dizer, com a visão de Deus, que não
conseguem pensar absolutamente em nada mais, como provarão que este
não é um ponto de vista lógico? Suponhamos que eu dissesse mui
explicitamente que a eternidade do amor, de que o apóstolo faz referência
aqui, virá a ser depois do Último Dia, e que não tem absolutamente nada a
ver com o período intermediário? Suponhamos que eu dissesse que a
responsabilidade pela intercessão mútua foi confiada única e
exclusivamente aos vivos, que ora peregrinam pelo mundo, e que, por essa
razão, não envolve absolutamente os mortos?
O que acabo de expor é mais do que suficiente; pois o ponto
propriamente dito, pelo qual os papistas digladiam tão renhidamente, deixo
sem decisão definida, a fim de não provocar controvérsia sobre uma questão
tão fora de propósito. Entretanto, vale a pena notar, de passagem, quão frágil
apoio este versículo de fato lhes proporciona, quando eles mesmos
acreditam que ele lhes fornece uma arma tão poderosa. Que nos seja
suficiente o fato de que sua asseveração é totalmente destituída do apoio de
qualquer evidência bíblica; portanto, ao sustentá-la, se mostram audaciosos
e temerários.21
Se houver conhecimento, será destruído. O sentido destas palavras já é
por demais óbvio; porém elas suscitam uma pergunta, que de forma alguma
é trivial, a saber: se os que neste mundo se destacam em cultura ou outros
dons terão a mesma condição dos ignorantes no reino de Deus. Antes de
tudo, gostaria de advertir22 meus leitores que são crentes a não se
torturarem demasiadamente em esquadrinhar estas questões. Devem
buscar, sim, a forma pela qual poderão alcançar o reino de Deus, em vez de
formularem perguntas sobre as condições que haverão de prevalecer nele [o
reino de Deus]; pois ao guardar silêncio sobre tais problemas, nosso Senhor
também nos ensinava a não transigirmos em tal curiosidade. Mas agora
respondo à pergunta, até onde posso conjeturar, bem como ante a escassa
informação que posso respigar desta passagem. Visto que cultura,
conhecimento das línguas e dons similares servem às necessidades
existenciais da presente vida, não me parece que estarão em vigor quando
esse tempo chegar. Contudo, os eruditos de forma alguma serão privados de
sua erudição, a despeito da destruição de seus dons, visto que receberão a
fruição deles, o que é muito mais desejável.23

9. Porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos.


10. Mas quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado.
11. Quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança, pensava como
criança; mas agora que me tornei adulto, desisti das coisas próprias da infância.
12. Porque agora vemos como em espelho, obscuramente; então veremos face a face;
agora conheço em parte; mas, então, conhecerei como também sou conhecido.
13. E agora permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém, o maior destes é
o amor.

9. Ex parte enim cognoscimus, et ex parte prophetamus:


10. At ubi venerit quod perfectum est, tunc, quod ex parte est, abolebitur.
11. Quum essem puer, ut puer loquebar, ut puer sentiebam, ut puer cogitabam: at
postquam factus sum vir, abolevi puerilia.
12. Cernimus enim nunc per speculum in ænigmate: tunc autem facie ad faciem: nunc
cognosco ex parte: tunc vero cognoscam, quemadmodum et cognitus sum.
13. Nunc autem manet fides, spes, caritas, tria hæc: sed maxima ex his est caritas.

Ele então mostra que a profecia e todos os demais dons desse gênero
serão destruídos,24 visto que nos são outorgados para auxiliar-nos em
nossa debilidade. Ora, um dia nossa imperfeição chegará ao fim; portanto, o
uso desses dons também cessará concomitantemente. Porquanto seria
absurdo que continuassem em vigor quando não haja mais nenhuma
necessidade deles; por isso, perecerão. O apóstolo retoma este argumento
no final do capítulo.
9. Em parte conhecemos. A maioria das pessoas explica este versículo
de forma equivocada, ou, seja: que nosso conhecimento não é ainda
perfeito; ao contrário, diariamente estamos fazendo progresso nele; e que o
mesmo se aplica à profecia. Mas a intenção do apóstolo é mostrar que o fato
de recebermos conhecimento e profecia é precisamente uma prova de que
somos imperfeitos. Portanto, em parte significa que não fomos ainda
aperfeiçoados. Conhecimento e profecia, portanto, terão lugar em nossas
vidas enquanto a imperfeição fizer parte de nossa existência terrena, pois
eles nos assessoram até que a plenitude nos atinja. É sem dúvida correto
que nos seja exigido progredir ao longo de nossa vida terrena, e tudo o que
temos está num estado inacabado. Mas precisamos compreender o que o
apóstolo deseja ressaltar, ou, seja: que os dons em questão são de caráter
temporário. Não obstante, a razão pela qual ele realça este fator é que o
benefício oriundo dos dons só é eficaz enquanto estivermos nos movendo
rumo ao alvo, evidenciando progresso dia a dia.
10. Quando vier o que é perfeito. O apóstolo poderia ter posto nestes
termos: “Quando tivermos alcançado o ponto de chegada, então as coisas
que nos ajudaram no percurso deixarão de existir.” No entanto, ele usa a
mesma forma de expressão anterior, ao pôr a perfeição em contraste com o
que é em parte. Ele está dizendo: “Quando a perfeição chegar, tudo quanto
nos auxiliou em nossas imperfeições será abolido.” Mas, quando tal
perfeição virá? Em verdade, ela começa na morte, quando nos despirmos
das inúmeras fraquezas juntamente com o corpo; ela, porém, não será
plenamente estabelecida até que chegue o dia do juízo final, como logo
veremos. Portanto, desse fato concluímos que é algo em extremo estúpido
alguém fazer toda esta discussão aplicar-se ao período intermediário.
11. Quando eu era criança. O apóstolo ilustra o que afirmou, usando
uma similitude. Pois muitas das coisas que são apropriadas à infância
desaparecem mais tarde, quando chegam os anos da maturidade.25 Por
exemplo, quando somos ainda crianças, temos necessidade de ir à escola;
isso, porém, seria ridículo para uma pessoa idosa. Ora, enquanto vivemos
neste mundo, precisamos de alguma instrução; pois ainda nos achamos
longe da plenitude de sabedoria. Portanto, a perfeição, que será uma espécie
de maturidade no desenvolvimento espiritual, porá fim à instrução e tudo
quanto a acompanha. Na epístola aos Efésios [4.14], o apóstolo insta
conosco a que não mais sejamos crianças; ele, porém, o faz com um
objetivo distinto, e falaremos disso ao tratarmos dessa passagem.
12. Porque agora vemos como em espelho. Aqui chegamos à aplicação
da similitude, ou, seja: o sistema de conhecimento que agora possuímos é
apropriado a nosso estado de imperfeição, e que pode ser denominado
nossa infância; porque não possuímos ainda uma nítida percepção dos
mistérios do reino do céu, e não usufruímos ainda da visão desnuda deles.
Com o fim de enfatizar isso, o apóstolo usa ainda outra similitude, a saber:
que a única maneira de vermos agora é através de um espelho, e portanto
não de forma concreta. Ele expressa tal obscuridade através do termo
enigma.26
Em primeiro lugar, não há dúvida de que ele está comparando a um
espelho o ministério da Palavra e os auxílios indispensáveis para seu
exercício. Pois Deus, que por outro lado é invisível, designou estes como
meios para revelar-se a nós. Naturalmente, isso pode também ser feito para
abranger toda a estrutura do universo, no qual a glória de Deus resplandece
para que nos contemplemos, como se acha expresso em Romanos 1.16 e 2
Coríntios 3.18. Em Romanos 1.20 o apóstolo descreve as coisas criadas
como espelhos27 através dos quais a majestade invisível de Deus possa ser
vista; mas já que o apóstolo está tratando aqui particularmente dos dons
espirituais, que são assistenciais no ministério exercido pela Igreja, e a
acompanham, não divagaremos mais.
O ministério da Palavra, repito, é como um espelho. Pois os anjos não
precisam da pregação, nem de outros auxílios inferiores, nem de
sacramentos. Eles possuem a vantagem de contemplar a Deus por outros
meios,28 porque Deus não lhes mostra sua face simplesmente através de um
espelho [in speculo], mas se apresenta publicamente diante deles [palam se
illis praesentem exhihit]. Nós, porém, que ainda não escalamos tais altitudes,
contemplamos a imagem de Deus [imaginem Dei speculamur] na Palavra,
nos Sacramentos e, em síntese, em todo o ministério da Igreja.
Aqui o apóstolo fala daquela visão, da qual participamos, como sendo
obscura [aenigmaticam], não porque ela seja dúbia ou ilusória, mas porque
não é tão nítida como eventualmente será no Último Dia. Ele ensina a mesma
coisa de forma distinta em 2 Coríntios 5.6, 7: “enquanto no corpo, estamos
ausentes do Senhor; visto que andamos por fé, e não pelo que vemos.”
Portanto, nossa fé agora contempla Deus que, de certa forma, está ausente
[tanquam absentem]. Como assim? Porque ela não mira sua face, porém se
sente feliz mirando sua imagem no espelho [in speculi imagine]. Mas quando
deixarmos o mundo para trás, e partirmos para Deus, a fé o contemplará,
por assim dizer, em contato direto e sem véu diante de seus próprios olhos.
Daí devermos entendê-lo por este prisma: o conhecimento de Deus, que
agora extraímos de sua Palavra é indubitavelmente confiável e genuíno, e
não há nele nada confuso, nem ininteligível, nem obscuro; senão que,
quando ele é qualificado de obscuro [aenigmaticam], este é num sentido
relativo, porquanto ele é muito lento em perceber aquela clara revelação que
aguardamos, quando veremos face a face.29 Portanto, este versículo não está
de forma alguma em conflito com outros que falam da clareza, quer da lei ou
da Escritura como um todo, principalmente de todos os Evangelhos. Pois há
na Palavra uma revelação franca e nítida de Deus (suficiente para satisfazer
nossas necessidades), e não há nela nada que seja recôndito [involutum],
segundo imaginam os descrentes,30 que nos mantenha num estado de
incerteza. Todavia, quão pequena é esta parte da visão em direção à qual
caminhamos! Portanto, o conhecimento é descrito como obscuro só no
sentido comparativo.
O advérbio então indica o último dia, antes do tempo imediatamente
após a morte. Entretanto, ainda que a plenitude da visão seja adiada até o
Dia de Cristo, começaremos a ter uma nítida visão de Deus assim que
morrermos. Então nossas almas se verão livres de nossos corpos, e não
terão mais necessidade nem do ministério externo nem de outros auxílios
inferiores. Paulo, porém (como já enfatizei), não está ansioso por discutir o
estado dos mortos, porque o conhecimento desta matéria é de pouco valor
para a piedade.
Agora conheço em parte, isto é, o conhecimento que agora temos é
incompleto. João diz a mesma coisa em sua carta [1Jo 3.2]: “Sabemos que,
quando ele manifestar-se, seremos semelhantes a ele, porque havemos de
vê-lo como ele é.” Então veremos a Deus, não em seu reflexo [imagine], mas
ele mesmo, de modo que haverá, por assim dizer, uma mútua visão.
13. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor. Esta é a
conclusão do que vem antes: que o amor é muito mais excelente que todos
os demais dons; mas, em vez do catálogo dos dons que Paulo apresentara
previamente, ele agora coloca fé e esperança lado a lado com o amor, pois
todos os outros estão compreendidos nestes três. Porque, com que
propósito todo o ministério foi dado senão para sermos treinados nestes
três dons?31 Daí, o termo fé tem aqui uma acepção muito mais ampla, mais
ampla do que nos exemplos anteriores de seu uso. Pois é como se o
apóstolo pretendesse dizer: “É verdade que há muitos e variados dons,
porém todos eles apontam para este objetivo, e o tem em mira.”
Portanto, permanecer comunica esta idéia: como ocorre no acerto de
contas, quando tudo estiver deduzido, este é o resultado que permanece.
Pois a fé não permanece depois da morte, segundo o apóstolo a contrasta
em outro lugar com a vista [2Co 5.7], e ensina que ela dura só enquanto
estamos ausentes do Senhor. Agora podemos entender o que está implícito
no termo fé neste versículo, ou, seja: o conhecimento de Deus e de sua
vontade, o qual obtemos através do ministério exercido pela Igreja; ou, se se
preferir, a fé universal e tomada em sua acepção própria.
Esperança nada mais nada menos é que a perseverança na fé. Pois assim
que tivermos crido na Palavra de Deus, resta ainda que perseveremos até a
concretização dessas coisas. Daí, visto que a fé é a mãe da esperança, esta é
também sustentada por aquela a fim de que não venha a perecer.
O maior destes é o amor. Isso é assim se estimarmos sua excelência
pelos efeitos que ele previamente enumerou; e mais, se tivermos a visão de
sua perpetuidade. Pois cada um extrai benefício de sua própria fé e
esperança, ao passo que o amor é derramado para o bem de outrem. A fé e a
esperança são os acompanhantes de nosso estado imperfeito, porém o amor
persistirá mesmo nas condições de perfeição.
Pois se examinarmos os frutos da fé, um a um, e os compararmos,
descobriremos que ela é superior em muitos aspectos. Sim, o amor
propriamente dito, segundo o testemunho do próprio apóstolo [1Ts 1.3], é
um efeito da fé; e o efeito é, sem dúvida, inferior a sua causa. Além disso, um
notável tributo é pago à fé, o que não se aplica no caso do amor, quando
João [1Jo 5.4] diz que a fé é a vitória que vence o mundo. Finalmente, é
mediante a fé que nascemos de novo, nos tornamos filhos de Deus, obtemos
a vida eterna e Cristo habita em nós [Ef 3.17]. Deixo de mencionar outras
incontáveis bênçãos, porém os poucos exemplos serão suficientes para
trazer a lume o que quero dizer quando afirmo que a fé é superior ao amor
em muitos de seus efeitos. É evidente, à luz do texto, que o amor é maior,
não em todos os aspectos, mas porque ele durará eternamente, e no
momento exerce um papel primário em conservar a Igreja em existência.
No entanto, é estranho como os papistas se mostram egoístas em
proclamar em alto e bom som que, se a fé justifica, então o amor, que é
descrito como sendo o maior, justifica muito mais. Ora, a solução de tal
objeção já foi fornecida pelo que já afirmei, porém admitamos que o amor é
em muitos aspectos superior. Que sorte de raciocínio é essa, a saber: visto
que o amor é maior, ele é mais eficaz para justificar os homens? Segundo
essa forma de pensar, um rei preparará a terra melhor que um agricultor; fará
um calçado melhor que um sapateiro, só porque é um homem de
nascimento mais nobre que ambos juntos. Semelhantemente, um homem
correrá mais rápido que um cavalo e carregará um fardo mais pesado que o
de um elefante, e isso porque ele é um ser superior aos dois animais! Além
do mais, sob o mesmo princípio, os anjos gerarão mais luz para a terra do
que o sol e a lua, só porque estão muito acima deles! Se o poder para
justificar dependesse da dignidade ou do mérito da fé, talvez devêssemos
prestar mais atenção ao que dizem. Nós, porém, não ensinamos que a fé
justifica em virtude de ser mais valiosa ou que ocupe um lugar de mais
honra, mas porque ela recebe a justiça que é oferecida gratuitamente no
evangelho. Grandeza, dignidade, não têm parte alguma nesta questão, e aqui
equivalem a nada. Esta é a razão por que este versículo não fornece mais
assistência aos papistas do que se o apóstolo tivesse realmente colocado a
fé antes de tudo mais.

1. “Quelles qu’elles soyent.” – “Tudo quanto elas são.”


2. Penn, em seu Annotations, dá o seguinte relato do termo charity [caridade], como usado em
nossa tradução inglesa: “Se a versão latina não tivesse traduzido αγαπη, neste lugar, por charitas,
em vez de amor [amor], não teríamos achado a palavra caridade em nossa versão. Wiclif, porém,
que só conhecia o latim bíblico, adotou dele essa palavra e traduziu: ‘e eu não tiver caridade.’
Quando o conhecimento do grego foi adquirido por nossos eruditos reformadores, os primeiros
revisores de Wiclif se ressentiram ante a falta de adaptabilidade dessa tradução, e traduziram
esta sentença: ‘e ainda que não tiver amor’, como está impressa em ‘Newe Testament in Englishe
and Latin, of 1548’; e traduziram αγαπη – amor. Nossos últimos revisores abandonaram esta sã
correção de seus predecessores imediatos, e trouxeram de volta a caridade latinizada de Wiclif, o
único desculpável pelo emprego daquela palavra, porquanto traduzira de um texto latino, em
sua ignorância de seu original grego.”
3. “Par le fruit qui s’en pouuoit ensuyure.” – “Pelo fruto que porventura resulte dele.”
4. “La dignite mesme de la prophetie.” – “A dignidade inclusive da profecia.”
5. O leitor observará que isto é em substância o que foi afirmado previamente por Calvino,
quando comenta 1 Coríntios 12.10.
6. “Et si ie distribue tous mês biens.” – “E se eu distribuir todos meus bens.”
7. “Les tyrans faisoyent plustot trancher la teste aux Chrestiens et vsoyent plustot du glaiue que
du feu pour destruire l’Eglise.” – “Os tiranos praticavam antes a deccapitação dos cristãos e
faziam uso da espada, mais que do fogo, para a destruição da Igreja.”
8. A distinção entre a primeira e a segunda dessas recomendações aqui, outorgadas ao amor, é
declarado por Bloomfield como segue: Μακροθυμεú, “denota clemência, como o oposto de paixão e
vingança; e χρηστεύεται, mansidão, como o oposto de severidade e misantropia.”
9. Esta tradução é seguida em duas antigas traduções inglesas, a saber: Tyndale (1534) e
Cranmer (1539). “O amor não age obstinadamente.”
10. Os intérpretes de modo algum concordam quanto à essência precisa do termo original
περπερεύεται. Os comentaristas mais antigos e muitos modernos o explicam neste sentido: “agir
precipitada e temerariamente” – e em concordância com isso é a tradução dada por nossos
tradutores na Marginal – não é temerário. Nenhuma expressão, contudo, parece realçar mais
satisfatoriamente a essência da palavra original do que nossos tradutores que inseriram no
texto: não se vangloria. Beausobre faz uso de dois epítetos: “N’est point et insolente.” – “Não é
fútil nem insolente.”
11. “Il dit consequemment que charite ne s’enfle point.” – “Ele diz, conseqüentemente, que o
amor não é enfatuado.”
12. Bloomfield considera a distinção entre esta sentença e a precedente como sendo esta: que a
primeira “se refere ao orgulho como demonstrado em palavras”; e a segunda como “a
carruagem e a paciência, para denotar o orgulho e arrogância por conta de certas vantagens
externas”. Um ponto de vista semelhante é assumido por Barnes, que considera a primeira
sentença como uma referência a “a expressão dos sentimentos de orgulho, vaidade” etc.; e a
última como “o sentimento propriamente dito.”
13. O sentido próprio do verbo ασχήμονειν é ofender contra o decoro.
14. “Nous sommes transportez-là, et nous-nous y iettons sans moderation aucune.” – “Corremos
apressadamente para ele, e avançamos sem qualquer freio.”
15. “Le remede unique.” – “O único remédio.”
16. “Car il y a ainsi à le traduire mot à mot.” – “Pois é o significado literal.”
17. Granville Penn traduz assim a sentença: “Não busca o que não é seu” – em concordância
com a redação do manuscrito vaticano: οὐ ζητεú τὰ μὴ εαυτη̑ς (Não busca as coisas que não são
suas.) Ele presume que μη̑ (não) “é um erro ou foi erroneamente omitido de todas as últimas
cópias.”
18. A última sentença do versículo, que está em nossa tradução, não busca o mal, é traduzida por
Pearce: “não medita no dano” – sentido em que a expressão λογιζεσθαι κακον ocorre na
Septuaginta, no Salmo 35.4 e 41.7. É lindamente traduzida por Bloomfield: “Não figura num
caderno de anotações para vingança futura.”
19. “Ceux vertus.” – “Estas duas virtudes.”
20. “En secourant et aidant presentement à ceux qui sont en ce monde.” – “Em presentemente
socorrer e ajudar os que estão neste mundo.”
21. “C’est folie et presomption grande à eux de l’affermer.” – “É grande tolice presunção o
afirmarem.”
22. “En premier lieu, i’admoneste et prie.” – “Em primeiro lugar, admoesto e rogo.”
23. “Qui est plus excellent sans comparaison.” – “Que é, além de comparação, mais excelente.”
24. “Seront un iour abolis.” – “Um dia serão abolidos.”
25. “Elle ne conuient point à ceux qui sont en aage de discretion.” – “Ela não vem enquanto não
chega a idade da discrição.”
26. O termo original, αἴνιγμα [enigma], significa propriamente um dito obscuro. É empregado pelos
escritores clássicos neste sentido. Ver Pind. Fr. 165. Aesch. Pr. 610. Presume-se que o apóstolo
tinha diante de seus olhos Números 13.8, que é traduzido na Septuaginta assim: Στόμα κατὰ στόμα
λαλήσω αὐτω̑ ἐν ἔιδει, καὶ οὐ δι ̕ αἰνίγματων. – “Eu lhe falarei boca a boca numa visão, e não por meio
de ditos obscuros.”
27. “Et l’Apostre, en l’onzieme aux Heb., d. 13, nomme les creatures, miroirs.” – “E o apóstolo, em
Hebreus 11.13, fala das criaturas como espelhos.” Há obviamente um equívoco aqui na citação.
Mais provavelmente Calvino tivesse diante dos olhos Hebreus 11.3, como uma passagem
semelhante, em substância, a Romanos 1.20, citada por ele em seu comentário em latim.
28. “Ils ont vn autre iouissance de la presence de Dieu.” – “Eles têm outro meio de usufruir da
presença de Deus.”
29. “A bendita manifestação que Deus faz de si mesmo”, diz Howe, “é enfaticamente expressa
em 1 Coríntios 13.12: veremos face a face, o que significa, de sua parte, graciosa concessão – o
oferecimento de seu bendito rosto para ser visto. Que ele não o oculte, nem o desvie, como às
vezes ele procede aqui, com justo desprazer. E sua face, ou seu rosto, significa, inclusive sua
glória mais conspícua tal como neste estado de mortalidade, que nos seria fatal se
contemplarmos. Pois nenhum ser humano, nem mesmo um homem santo como Moisés,
poderia contemplar seu rosto e viver. E significa da parte dos homens que são assim
aperfeiçoados.
30. “Comme imaginent les moqueurs et gens profanes.” – “Como os escarnecedores e profanos
imaginam.”
31. “En ces trois choses.” – “Nestas três coisas.”
Capítulo 14

1. Segui o amor, e desejai os dons espirituais, mas principalmente que profetizeis.


2. Pois quem fala em língua desconhecida, não fala a homens, mas a Deus, visto que
ninguém o entende, mas, no espírito, fala mistérios.
3. Aquele, porém, que profetiza fala aos homens para edificação, exortação e conforto.
4. Aquele que fala em língua desconhecida edifica a si mesmo; mas o que profetiza
edifica a Igreja.
5. Eu gostaria que todos vós falásseis em línguas, mas sobretudo que profetizásseis;
pois quem profetiza é superior ao que fala em línguas, salvo se as interpretar para que
a Igreja receba edificação.
6. Ora, irmãos, se eu for a vós falando em línguas, em que vos serei proveitoso, a menos
que eu vos fale por meio ou de revelação, ou de conhecimento, ou de profecia, ou de
doutrina?

1. Sectamini caritatem: æmulamini spiritualia, magis autem ut prophetetis.


2. Nam qui loquitur lingua, non hominibus loquitur sed Deo: nullus enim audit; Spiritu
vero loquitur mysteria.
3. Cæterum qui prophetat, hominibus loquitur ad ædificationem, exhortationem, et
consolationem.
4. Qui loquitur lingua, se ipsum ædificat; at qui prophetat, Ecclesiam ædificat.
5. Volo autem omnes vos loqui linguis, magis tamen ut prophetetis; maior enim qui
prophetat, quam qui linguis loquitur; nisi interpretetur, ut Ecclesia ædificationem
accipiat.
6. Nunc autem, fratres, si venero ad vos linguis loquens, quid vobis prodero, nisi vobis
loquar aut per revelationem, aut per scientiam, aut per prophetiam, aut per doctrinam?

Como previamente ele instara com os coríntios a desejarem


ardentemente os dons mais importantes [1Co 12.31], agora os aconselha a
seguirem o amor;1 porquanto esse fora a excelência2 mui distinta que
prometera lhes mostraria. Portanto, eles manterão seus dons sob controle,
enquanto o amor desfrutar de um lugar de proeminência em seu
relacionamento recíproco. Porquanto Paulo tacitamente os responsabiliza
pela carência de amor, o que saltava aos olhos na maneira como usavam mal
seus dons. E ele infere das coisas que sucederam no passado, quando não
haviam ainda dado ao amor o primeiro lugar, que não empreendiam sérios e
adequados esforços para usufruírem das coisas excelentes que realmente
possuíam. Ele, portanto, põe em relevo, diante dos olhos deles, quão sem
sentido é seu egoísmo, fazendo naufragar as esperanças e anseios dos
coríntios.
1. Desejai os dons espirituais. Para que os coríntios não suscitassem a
objeção de que Deus seria prejudicado se desprezassem seus dons, o
apóstolo antecipa a objeção asseverando que não pretendia privá-los desses
dons, os quais eles estavam usando de forma errônea. Ao contrário, ele os
encoraja a ardorosamente ir após os dons, e deseja que os mesmos tenham
um lugar na Igreja. E, sem a menor dúvida, sendo eles conferidos visando ao
benefício da Igreja, o modo abusivo como os homens os manipulavam não
devia dar ocasião a que fossem os mesmos descartados como algo inútil e
prejudicial. Não obstante, no ínterim ele enaltece a profecia acima de todos
os demais dons, visto que ela era, de todos os dons, o mais útil. Portanto,
ele observa um meio termo admirável, a saber, nada desaprovando que
fosse de alguma utilidade, enquanto, ao mesmo tempo, os encoraja a não
permitirem que um zelo absurdo os fizesse valorizar as coisas de somenos
importância acima daquelas de suprema importância. Com isso ele
estabelece a profecia como sendo primordial. Portanto, “cobiçai os dons
espirituais”, diz ele. Em outros termos: “Não negligencieis nenhum dom,
pois vos exorto a empenhar-vos por todos eles, contanto que a profecia
retenha sua posição de destaque.”
2. Pois quem fala em língua desconhecida,3 não fala aos homens. Ele
agora mostra pelo efeito por que preferia a profecia aos demais dons, e a
compara com o dom de línguas, no qual é bem provável que os coríntios
excedessem, visto ser o mesmo mais ostentoso, pois quando as pessoas
ouvem alguém a expressar-se em língua estrangeira, geralmente sua
admiração é excitada de uma forma incomum. O apóstolo, pois, mostra,
partindo de princípios já pressupostos, quão perverso é tal comportamente,
já que esse dom [de línguas] não vale absolutamente nada para a edificação
da Igreja. Seu primeiro ponto é este: “aquele que fala em língua desconhecida
está falando não a homens, mas a Deus”. Em outros termos (segundo um
provérbio), “ele fala a si próprio e às paredes.”4 Não há pleonasmo5 no uso
da palavra língua, como sucede nos seguintes casos: “ela falava com sua
própria boca”; “eu ouvi sua voz com estes ouvidos”; ao contrário, significa
uma língua estrangeira. A razão por que “ele não fala a homens” é que
“ninguém entende”, ou, seja, as palavras não podem ser distinguidas. Pois
os ouvintes ouvem um som, porém não entendem o sentido da linguagem.
Ele fala no Espírito, ou, seja, “por meio de um dom espiritual” (pois esta
é a forma como a explico, juntamente com Crisóstomo), “fala mistérios e
coisas que permanecem secretas, e que, portanto, não trazem nenhum
proveito”. Crisóstomo aqui toma mistério num sentido positivo, como
sendo revelações extraordinárias de Deus. Quanto a mim, porém, considero
o termo num sentido negativo, como certas expressões ininteligíveis,
confusas, enigmáticas, como se Paulo houvera escrito: “Ninguém entende
uma só palavra do que ele diz.”
3. Aquele que profetiza fala aos homens. “A profecia”, diz ele,
“enriquece a todos, enquanto que uma língua estrangeira é um tesouro
oculto no solo. Quão estúpido, pois, é desperdiçar alguém seu tempo com
algo que é inútil, e negligenciar algo que é obviamente o mais valioso de
todos! “Falar com o intuito de edificação” é ministrar ensinamentos próprios
para a edificação. Pois tomo este termo no sentido de um ensino que nos
educa na religião, na fé, no culto e no temor de Deus, bem como nas
responsabilidades de santidade e justiça. Visto, porém, que a maioria de nós
necessita de estímulos, enquanto que outros são acossados por tribulações,
ou assenhoreados por fraquezas, ele menciona exortação e conforto como
um adendo ao ensino. É evidente, à luz deste versículo e do precedente, que
a profecia não é o dom de predição; visto, porém, que já falei sobre isso, não
serei repetitivo.
4. Aquele que fala em outra língua edifica a si próprio. Ele afirmou no
versículo 2 que uma pessoa que possui este dom “fala a Deus”; agora,
porém, diz que ela “fala a si própria”. Não obstante, tudo o que se faz na
Igreja deve visar ao benefício comum. Fora, pois, com toda e qualquer
ambição que desencaminha, a qual propicia que se ponha obstáculos no
caminho daqueles que precisam ser beneficiados! Além disso, o apóstolo
está falando à guisa de concessão; pois quando a ambição derrama um
dilúvio de linguagem bombástica6 desse gênero, o coração se sente carente
de auxílio; todavia, é como se o apóstolo estivesse destacando as pessoas
exibicionistas, as quais só se preocupam com suas próprias pessoas, e não
nutrem nenhum interesse pelos crentes quando se acham reunidos em
assembléia.
5. Ora, gostaria que todos falassem em línguas. Ele volta a declarar que
não está dando preferência à profecia sem deixar qualquer espaço às línguas.
Devemos prestar muita atenção a este ponto, pois Deus jamais concedeu a
sua Igreja dom algum sem que tivesse algum propósito para o mesmo; e as
línguas eram de alguma utilidade7 naquele tempo. No entanto admitido que,
através de seu equivocado apetite por exibicionismo, os coríntios estavam
convertendo esse dom que era, em alguma extensão, supérfluo e sem valor,
e em certo sentido até mesmo nocivo; todavia, ao corrigir esse erro, ele está
dando, não obstante, sua aprovação às línguas. Daí, é fora de dúvida que seu
desejo era abolir as línguas ou mantê-las fora do ambiente da Igreja.
Em nossa própria época, quando se vê uma alarmante necessidade do
conhecimento de línguas, e quando, em nosso drama na história, Deus, em
sua maravilhosa condescendência, as resgatou das trevas e as trouxe para a
luz, há grandes teólogos8 que, confrontados por essa situação, são
espalhafatosos e violentos em seus protestos contra elas. Uma vez que não
há dúvida alguma de que o Espírito Santo se dignou revestir as línguas de
honras imperecíveis, neste versículo, é fácil chegar à conclusão de que
gênero de espírito move os críticos que fazem ataques estrondosos contra o
estudo de línguas, em linguagem tão insultuosa quanto possam. No entanto,
eles estão tratando de coisas diversas. Porque o apóstolo está se referindo a
todas as línguas, sem distinção, as quais eram de grande valia na
proclamação do evangelho entre todas as nações. Em contrapartida, os
críticos de nosso tempo estão condenando as línguas das quais, como
fontes, a genuína verdade da Escritura deve ser extraída. Não obstante, deve-
se acrescentar uma exceção, a saber: que não devemos tomar tempo
demasiado às línguas, enquanto damos pouquíssima atenção à profecia,
quando ela deveria desfrutar do primeiro lugar.
Exceto se as interpretar. Pois se a interpretação for adicionada, então
teremos profecia. Não obstante, não se deve concluir que o apóstolo esteja
aqui permitindo que alguém desperdice o tempo da Igreja com um
amontoado de palavras estranhas. Pois quão ridículo seria proclamar a
mesma coisa em muitas línguas, quando não há nenhuma necessidade de
assim procedermos! Mas, às vezes sucede que o uso de uma língua
estrangeira é oportuno. Finalmente, que nosso único objetivo seja este: que
tudo quanto fizermos, façamo-lo para a edificação da Igreja.
6. Ora, se eu for a vós. Ele se apresenta como exemplo, visto que sua
própria situação ilustrava o que ele tinha a dizer particularmente favorável.9
Os coríntios estavam conscientes do rico fruto que a doutrina paulina
produzira. Ele, pois, lhes pergunta que utilidade lhes seria se ele empregasse
línguas desconhecidas quando lhes falasse. Através deste apelo à
experiência, o apóstolo lembra aos coríntios que seria muito melhor que
voltassem sua atenção para as profecias. Além do mais, era menos ofensivo
reprovar tal vício em sua própria pessoa do que na de outros.
Entretanto, o apóstolo faz menção de quatro tipos de edificação:
revelação, conhecimento, profecia e doutrina. Visto que os intérpretes
defendem diferentes pontos de vista sobre estes elementos, seja-me
permitido apresentar também o que penso deles. No entanto, visto que este
é apenas um ponto de vista conjetural, deixo a meus leitores a liberdade de
formar seu próprio juízo.
Enfeixo revelação e profecia, e minha conclusão é que a profecia é serva
da revelação. E faço o mesmo com o conhecimento e a doutrina. Portanto,
tudo o que alguém tiver obtido por meio de revelação, ele difunde por meio
da profecia. Doutrina é a forma de chegar ao conhecimento. Assim, um profeta
será o intérprete e ministro da revelação. Isto apóia, em vez de gerar conflito,
a definição de profecia que formulei supra. Pois afirmei que profecia não
consiste na simples interpretação da Escritura, mas também inclui o
conhecimento para fazer aplicação às necessidades do momento, e isso só se
pode obter por meio da revelação e da inspiração especial de Deus.

7. E até as coisas inanimadas, como a flauta, ou a cítara, quando emitem sons, se não os
derem bem distintos, como se reconhecerá o que se toca na flauta, ou na cítara?
8. Pois se a trombeta der um som incerto, quem se preparará para a batalha?
9. Assim também vós, se com a língua não disserdes palavra compreensível, como se
entenderá o que estais falando? pois estareis como que falando ao ar.
10. Há, por assim dizer, muitos tipos de vozes no mundo, e nenhum deles é sem sentido.
11. Portanto, se eu não entender o sentido da voz, serei bárbaro para aquele que fala; e
o que fala será bárbaro para mim.
12. Assim também vós, visto que sois zelosos pelos dons espirituais, buscai exceder
naqueles que visam à edificação da igreja.
13. Por isso, aquele que fala em outra língua, ore para que a possa interpretar.
14. Porque, se eu orar numa língua desconhecida, meu espírito ora de fato, porém
minha mente fica infrutífera.
15. Que farei, pois? Orarei com o espírito, e também orarei com o entendimento;
cantarei com o espírito, e também cantarei com o entendimento.
16. E se bendisseres com o espírito, como o indouto dirá o amém após tua ação de
graças, visto que não entende o que dizes?
17. Porque tu de fato dás graças muito bem, porém o outro não é edificado.

7. Quin et inanimia vocem reddentia, sive tibia, sive cithara, nisi distinctionem sonis
dederint: quomodo cognoscetur, quod tibia canitur aut cithara?
8. Etenim si incertam vocem tuba dederit, quis apparabitur ad bellum?
9. Sic et vos per linguam, nisi significantem sermonem dederitis: quomodo intelligetur
quod dicitur? eritis enim in aërem loquentes.
10. Tam multa, verbi gratia, genera vocum sunt in mundo, et nihil horum mutum.
11. Itaque si nesciero vim vocis, erro ei qui loquitur, barbarus: et qui loquitur, apud me
barbarus.
12. Itaque et vos, quandoquidem sectatores estis spirituum, ad ædificationem Ecclesiæ
quærite, ut excellatis.
13. Quapropter qui loquitur lingua, oret ut interpretetur.
14. Nam si orem lingua, spiritus meus orat, mens autem mea fructu caret.
15. Quid igitur est? orabo spiritu, sed orabo et mente: canam spiritu, sed canam et
mente.
16. Alioqui si benedixeris spiritu, is qui implet locum idiotæ, quomodo dicturus est Amen
ad tuam gratiarum actionem? quandoquidem quid dicas, nescit.
17. Nam tu quidem bene gratias agis, sed alius non ædificatur.

7. E até as coisas inanimadas. Ele então introduz similitudes, primeiro a


dos instrumentos musicais, e em seguida a da natureza geral das coisas,
pois todo som tem seu próprio caráter peculiar, apropriado para fazer
distinção.10 “Até as próprias coisas sem vida”, diz ele, “nos ensinam uma
lição.” É verdade que há muitos sons ou estampidos que se ouvem ao acaso,
sem qualquer modulação,11 mas Paulo aqui fala de vozes nas quais há algum
indício de arte, como se quisesse dizer: “Uma pessoa não pode dar vida a
uma harpa ou flauta, porém a faz produzir um som, que é regulado de tal
sorte, que pode ser distinguido. Que disparidade, pois, quando pessoas
reais, dotadas que são de inteligência, produzem sons totalmente confusos,
sem qualquer distinção!”
Não obstante, aqui devemos gastar pouco tempo na discussão das
harmonias musicais, porquanto Paulo está tocando só de leve naquilo de
que todos tinham consciência, ou, seja, o som de trombeta,12 por exemplo, a
que ele se refere no versículo 8. Pois a trombeta se destinava a excitar o
sangue de tal maneira que agitava não só os homens, mas também os
próprios corcéis. Esta é a razão por que, como relatam os registros
históricos, os espartanos preferiam usar a flauta13 quando se reuniam para a
batalha, a fim de que, no primeiro assalto, o exército não se precipitasse
sobre o inimigo com fúria excessivamente violenta.14 Finalmente, todos
sabemos, pela própria experiência, quão tremendo é o poder da música para
agitar as emoções do ser humano; como corretamente ensina Platão, que de
uma forma ou outra a música é da maior importância para moldar o caráter
moral do Estado. Falar ao ar é golpear o ar. É como se dissesse: “Vossa voz
não alcançará nem a Deus nem aos homens, mas se perderá no ar.”
10. Nenhum deles é sem sentido.15 Agora ele se expressa em termos
gerais; pois evoca os sons naturais de todo o reino animal. Ele aqui usa o
termo sem sentido no sentido de ininteligível, ou, seja, como oposto do que é
nítido, um som distinto. Pois o latido dos cães é diferente do relincho dos
corcéis; o rugido dos leões, do zurro dos asnos. Cada espécie de pássaro
tem seu próprio modo particular de trinar, gorjear ou chilrear. Portanto, toda
a ordem da natureza, como desiganda por Deus, nos convida a observar
uma distinção.16
11. Serei bábaro17 para aquele que fala. Nossa linguagem deve ser o
reflexo de nossas mentes; não só como observa o provérbio, mas como nos
ensina Aristóteles no início de sua obra Da Interpretação.18 Portanto, é fora
de propósito e um crasso absurdo alguém falar numa assembléia da Igreja,
quando os ouvintes não entendem sequer uma palavra do que ele diz.
Paulo, pois, está plenamente certo em considerar como sendo o cúmulo da
absurdo quando alguém prova ser um bárbaro para seu auditório, “matando
o tempo”, por assim dizer, com sua verbosidade totalmente estranha. Ao
mesmo tempo, ele graceja da estapafúrdia ambição dos coríntios, porque, ao
procederem exatamente assim, estavam despertando o povo para louvá-los e
tê-los na conta de pessoas fantásticas. Paulo lhes diz: “Toda a recompensa
que granjeastes por meio de vossos esforços é a de serdes considerados
bárbaros.”
O termo bárbaro, quer seja algo manufaturado (como pensa Estrabo)19,
quer seja de outra derivação, é tomado num sentido negativo. Assim, os
gregos, que se consideravam o único povo constituído de bons oradores e
de linguagem refinada, denominavam todos os demais povos de bárbaros
em virtude de seu dialeto rude e rústico. Não importa, porém, quão refinada
uma língua seja, o fato é que uma pessoa será descrita como bárbara se
ninguém a pode entender! “O ouvinte”, diz Paulo, “será um bárbaro para
mim, e vice-versa.” O que ele tem em mente com essas palavras é que, se
alguém se expressa numa linguagem desconhecida, o mesmo não é
participante da comunhão da Igreja, mas, antes, se acha a longa distância
dela; e que os ouvintes são plenamente justificados se mantêm uma opinião
deficitária de alguém que procede assim, visto que cultivam um conceito
negativo de seus ouvintes.
12. Visto que buscais com zelo os espíritos [spiritus]. Ele conclui
dizendo que o dom de línguas não fora dado para que umas poucas pessoas
desfrutassem da chance de exibir-se, sem nada contribuirem para o
benefício da Igreja. Diz ele: “Se os dons espirituais vos constituem uma fonte
de deleite pessoal, vede que sejam eles direcionados para a edificação
[mútua]. Somente quando a Igreja obtém de vós algum benefício é que sereis
realmente destacados e merecedores de louvor.” Mas não significa que Paulo
permitia que alguém nutrisse o profundo desejo de exceder aos demais,
mesmo que esteja de alguma forma beneficiando a Igreja. Ao corrigir esse
erro, porém, o apóstolo mostra quão rápido decaíram do que inicialmente
almejavam. Ao mesmo tempo, ele gostaria de nutrir pensamentos mais
elogiosos. Quanto mais ansiosa uma pessoa esteja em devotar-se à
edificação, com mais nobreza o apóstolo deseja seja ela respeitada.
Entretanto, no que concerne a nós, este deve ser nosso alvo, aqui e agora, a
saber: que o Senhor seja a pessoa mais proeminente e de maior projeção, e
que seu domínio se amplie cada vez mais.
Paulo aqui usa o termo espíritos20 [ou espirituais] metonimicamente,
querendo indicar “os dons espirituais”, no mesmo sentido de Espírito de
doutrina, ou de entendimento, ou de juízo, querendo denotar doutrina, ou
entendimento, ou juízo espiritual. Todavia, devemos ter em mente o que ele
ensinou antes, ou, seja, que é “um só e o mesmo Espírito que distribui
diferentes dons, a indivíduos, segundo lhe apraz” [12.11].
13. Por isso, o que fala em outra língua. Ele aqui está respondendo, à
guisa de antecipação, a uma pergunta que facilmente poderia ser-lhe
formulada, ou, seja: “Portanto, se alguém for capaz de falar um idioma
estrangeiro, seu dom será sem valor? E por que seria mantido em segredo,
se pode ser trazido à luz para a glória de Deus?” Ele apresenta o remédio:
“Então”, diz ele, “que se peça também a Deus o dom de interpretação. E se
ele não o possuir, que se abstenha, no intervalo, da ostentação.”21
14. Porque, se eu orar em outra língua.22 Ainda que isso também sirva
como um exemplo adequado para confirmar o que ele tem realçado até este
ponto, acredito, contudo, que este é um novo tema. Pois é bem provável que
os coríntios estivessem igualmente equivocados neste aspecto, a saber:
assim como formaram o hábito de falar fazendo uso de línguas estrangeiras,
assim também faziam uso delas na oração. Não obstante, ambos os abusos
provinham da mesma fonte, pois pertenciam a uma e a mesma classe.
O significado de orar numa língua23 salta à vista à luz dos versículos
precedentes, deste mesmo capítulo, ou, seja, articular uma oração numa
língua estrangeira. Em contrapartida, não é tão fácil explicar o que significa
espírito, aqui. A referência que Ambrósio faz ao Espírito que recebemos no
batismo não possui nenhum fundamento, nem qualquer semelhança dele.
Agostinho, muito mais sutilmente, o considera como sendo aquela
apreensão que concebe idéias e sinais inferiores à percepção mental. Há
mais plausibilidade na opinião dos que o entendem como sendo a
respiração da garganta – em termos mais acessíveis, o fôlego. No entanto, a
forma como o apóstolo usa constantemente o termo nesta discussão está
em conflito com esta interpretação. Mais que isto, na verdade o termo parece
ter sido repetido com muita freqüência à guisa de concessão. Pois os
coríntios se orgulhavam daquela condição louvável que o apóstolo permitiu
que tivessem; ele, porém, por outro lado, põe em relevo quão arriscado seria
fazer mau uso24 de algo bom e excelente. É como se dissesse: “Vós vos
vangloriais, a mim, desse vosso espírito, mas, a troco de quê, se ele não
passa de algo sem valor?” Esta é a razão por que sou levado a concordar
com o raciocínio de Crisóstomo sobre esta palavra, pois ele lhe aplica o
mesmo significado que ela vem tendo, a saber: um dom espiritual. Assim,
meu espírito significará exatamente “o dom a mim conferido”.25
Aqui, porém, surge uma nova questão, pois é incrível (pelo menos nunca
lemos de algum caso) que houvesse alguém que falasse, pela influência do
Espírito, uma língua que ele mesmo desconhecia. Porquanto o dom de
línguas não foi concedido meramente com o propósito de produzir algum
ruído, mas certamente com o propósito de comunicar algo. Pois quão risível
teria sido que a língua de um romano fosse dirigida pelo Espírito de Deus a
pronunciar palavras gregas, quando ele mesmo não tinha qualquer
conhecimento de grego. Ele se assemelharia a papagaios, os quais podem
ser treinados pelo ser humano a emitir sons humanos! Mas se alguém era
dotado com o dom de línguas e falava de forma simples e inteligível, então
teria sido estranho que Paulo falasse de “o espírito ora, porém o
entendimento fica infrutífero”, pois o entendimento deve agir em sintonia
com o espírito.
Minha resposta a esta questão é a seguinte: à guisa de ilustração, o
apóstolo está levando em conta uma situação pura e simplesmente
hipotética, ou, seja: “Se o dom de línguas for algo discrepante do
entendimento, de modo que quem fala é bárbaro para si mesmo, tanto
quanto para outros, que bem estaria ele fazendo ao balbuciar dessa forma?”
Pois não é lógico que aqui se diga que a mente seja infrutífera [ἄκαρπον],
com base no fato de que a Igreja não recebe daí nenhum benefício, já que
aqui o apóstolo está falando de orações privativas e individuais. Portanto,
tenhamos em mente que as coisas que são mutuamente conectadas, aqui
são dissociadas à guisa de ilustração, e não porque é possível, ou
geralmente sucede ser assim. Então o significado se torna óbvio: “Portanto,
se formulo orações numa língua que não é conhecida, e o espírito me supre
com palavras, é evidente que o próprio espírito, que regula minha língua,
nesse caso orará, minha mente, porém, ou estará vagando sem rumo, ou, ao
menos, não tomará parte alguma na oração.”
É indispensável notarmos bem que o apóstolo considera um grande erro
se a mente não toma parte na oração. E não há que estranhar, pois o que
mais fazemos em oração senão derramar nossos pensamentos e desejos
diante de Deus? Além disso, diante do fato de a oração espiritual ser um
meio de adorar a Deus, o que poderia estar mais em desarmonia com sua
própria natureza do que vir ela estar presente só nos lábios, e não no mais
íntimo recesso da alma? E essas coisas seriam perfeitamente familiarizadas a
toda mente, não fosse o diabo privar o mundo de uma maneira tão extrema,
ao ponto de convencer os homens de que oram corretamente, quando
meramente movem seus lábios!
E a obstinação dos papistas os leva a tal demência, que não só
apresentam justificativas para formularem suas orações sem a participação
da mente, mas também preferem o ignorante aglomerado e murmúrio de
palavras vazias de todo e qualquer significado.26 Ao mesmo tempo, motejam
de Deus com um mordaz exemplo de sofisma,27 dizendo que “a intenção
final” é o que conta. Que se me permita ilustrar isso. Suponhamos que um
espanhol amaldiçoe a Deus em alemão, ao encontrar-se em um estado de
revolta mental em decorrência das muitas preocupações mundanas; em
seguida, faz uso de uma oração formal, e insinua paz com Deus com um
pensamento que logo se desvanece.28
15. Orarei com o espírito. Para que ninguém viesse a indagar à guisa de
objeção: “O espírito, pois, não será de nenhum préstimo na oração?”, o
apóstolo ensina que se deve orar com o espírito, desde que a mente, ou,
seja, o entendimento, esteja também em atividade. Portanto, ele permite e
aprova o uso do dom espiritual na oração; porém insiste em que a mente
não fique inativa, e que sem dúvida este é o ponto principal.29
Ao dizer: “Cantarei salmos”, ou cantarei, ele está falando em termos
específicos e não gerais. Porque, visto que os salmos continham como seu
tema os louvores divinos, ele usa “cantar salmos”30 (ψάλλειν) em vez de
bendizer ou dar graças a Deus. Pois em nossas orações, ou pedimos algo a
Deus ou reconhecemos as bênçãos divinas derramadas sobre nós.
Entretanto, deste versículo também deduzimos que naquele tempo o
costume de cantar já se achava em vigor entre os crentes. Este fato é também
estabelecido por Plínio que, escrevendo nos últimos quarenta anos, ou,
seja, logo após a morte do apóstolo, nos conta que os cristãos tinham o
hábito de cantar hinos a Cristo antes do crepúsculo.31 E de fato acredito que
desde o início adotaram o hábito da Igreja judaica de cantar Salmos.
16. E se bendisseres com o espírito. Até aqui ele esteve mostrando que
as orações de cada um de nós será fútil e inútil, caso o entendimento não
participar da voz. Ele agora avança mais e trata também das orações
públicas. Se aquele que compõe e recita as orações em lugar do povo não for
entendido pela assembléia, como o povo comum poderá participar delas de
maneira proveitosa e será capaz de perceber no final que a oração inclui o
que eles mesmos gostariam de pedir? Porquanto o povo não estará tomando
parte na oração a menos que todos estejam unidos de mente nos mesmos
desejos. A mesma observação se aplica à bênção, ou ações de graças a Deus.
Não obstante, a expressão de Paulo revela32 que um dos ministros
repetia ou oferecia as orações em voz audível, e que toda a congregação
seguia mentalmente o que o dirigente falava, até que chegasse ao término,
quando todos eles – o que é correto – diziam amém, a fim de notificar
publicamente que as orações, feitas por um, eram de fato de todos eles.33
Sabe-se que a palavra hebraica para amém se deriva do mesmo termo do
qual nos veio a palavra fidelidade ou veracidade.34 Portanto, ela indica a
confirmação35 não só daquilo que afirmamos na oração, mas também do
que pedimos nela.36 Além do mais, visto que os judeus foram se
familiarizando com a palavra através de uso prolongado, o resultado foi que
ela passou deles [judeus] para os gentios, e os gregos a usavam como se
fosse parte de sua própria língua. Portanto, o termo tornou-se comum entre
todas as nações. Paulo agora diz: “Se empregardes na oração pública uma
linguagem desconhecida, que não seja entendida pelas pessoas incultas, em
cuja presença estiverdes falando, ninguém participará de vossa oração, e
vossa oração, ou vossa bênção, não mais será pública.” “Por quê?”
“Ninguém”, diz o apóstolo, “poderá adicionar seu amém à oração ou salmo,
a menos que todos a entendam.”
Mas a mesma coisa que o apóstolo rejeita como fora de propósito, os
papistas a consideram como uma prática sagrada e legítima. Tal atitude só
serve para revelar sua espantosa impudência. Mais profundo ainda,
realmente este é um clássico exemplo que nos faz divisar a maneira como
Satanás tem tido carta branca para incrementar os dogmas papais.37 Pois, o
que existe de mais evidente do que estas palavras do apóstolo, a saber: que
uma pessoa inculta não pode tomar parte na oração pública, a menos que
entenda o que se diz nela? O que é mais evidente do que esta proibição, a
saber: “As ações de graças, ou as orações, não devem ser repetidas em
público exceto na língua que todos entendem, a língua nativa”? Quando
todos os dias fazem o que o apóstolo disse que não se fizesse, ou ainda que
não pode ser feito, não estão, porventura, tratando o apóstolo como se
fosse uma pessoa inculta? Quando não revelam nenhum escrúpulo em
observar o que Deus proíbe, não estão lançando a Deus um franco desafio?
Assim vemos como Satanás se diverte entre eles impunemente. Mas sua
diabólica obstinação é denunciada pelo fato de que, ainda depois de serem
advertidos, até hoje não se mostraram arrependidos; ao contrário, ainda
defendem uma corrupção grave como esta, com fogo e espada.

18. Dou graças a Deus porque falo em línguas mais do que todos vós.
19. Contudo, prefiro falar na igreja cinco palavras com meu entendimento, para que, por
meio de minha voz, eu possa instruir os outros também, a falar dez mil palavras numa
língua desconhecida.
20. Irmãos, não sejais crianças no juízo; na malícia, sim, sede criancinhas; quanto ao
juízo, sede homens.
21. Na lei está escrito: Falarei a este povo por meio de homens de outras línguas e por
lábios de estrangeiros; e nem assim me ouvirão, diz o Senhor [Is 28.11, 12].
22. De sorte que as línguas constituem um sinal, não para os que crêem, mas para os
incrédulos. A profecia, porém, constitui um sinal, não para os incrédulos, e, sim, para os
que crêem.
23. Se, pois, toda a igreja se reunir num lugar, e todos se puserem a falar em línguas, no
caso de entrarem indoutos ou incrédulos, não dirão, porventura, que estais loucos?
24. Mas se todos se puserem a profetizar, e ali entrar algum incrédulo ou indouto, ele é
por todos convencido, e por todos julgado.
25. E assim os segredos de seu coração se farão manifestos; e assim, prostrando-se
sobre seu rosto, adorará a Deus, declarando que Deus de fato está entre vós.

18. Gratias ago Deo meo, quod magis quam vos omnes linguis loquor:
19. Sed in Ecclesia volo quinque verba mente mea loqui, ut et alios instituam, potius
quam decem millia verborum, lingua.
20. Fratres, ne sitis pueri sensibus, sed malitia pueri sitis: sensibus vero sitis perfecti.
21. In lege scriptum est: (Ies. xxviii.11, 12:) Alienis linguis et labiis alienis loquar populo
huic: et ne sic quidem audient me, dicit Dominus.
22. Itaque linguæ signi vice sunt, non iis qui credunt, sed incredulis: contra prophetia non
incredulis, sed credentibus.
23. Ergo si convenerit Ecclesia tota simul, et omnes linguis loquantur, ingrediantur autem
indocti aut increduli, nonne dicent vos insanire?
24. Quodsi omnes prophetent, ingrediatur autem incredulus aut indoctus, coarguitur ab
omnibus, diiudicatur ab omnibus,
25. Et sic occulta cordis eius manifesta fiunt; atque ita procidens in faciem, adorabit
Deum, renuntians, quod Deus revera in vobis sit.

18. Dou graças a Deus. Como há muitos que depreciam as habilidades


de outros, simplesmente porque eles mesmos não podem destacar-se sobre
os demais, Paulo não quer deixar a impressão de que está aviltando o dom
de línguas pelo prisma da maledicência ou ciúme, e por isso antecipa uma
atitude suspeita desse gênero, afirmando que ele mesmo se sobressai a
todos. Diz ele: “Deveis compreender que o que vos estou dizendo não deve
ser considerado motivo de suspeita, como se eu estivesse denegrindo algo
de que pessoalmente sou carente, pois se fôssemos fazer uma competição
sobre as línguas, nenhum de vós seria capaz de me superar. Mas embora eu
pudesse fazer uma boa demonstração nesta esfera da vida, minha
preocupação primordial é com a edificação.” A doutrina de Paulo não deriva
pouco valor da circunstância, ou, seja, que ele não focaliza a si próprio. Mas,
para que não ficasse a impressão de ser insolente demais, ao ponto de
colocar-se na dianteira dos outros, ele atribui tudo a Deus e a seu dom.
Assim ele tempera sua auto-apreciação com a modéstia.
19. Prefiro falar cinco palavras. Isso é expresso hiperbolicamente, a
menos que consideremos “cinco palavras” no sentido de cinco orações
gramaticais. Visto, porém, que o apóstolo, caso o desejasse, podia ter falado
em línguas e feito uma deslumbrante demonstração de sua própria pessoa,
voluntariamente se refreia, e calmamente faz da edificação seu único alvo, e
assim francamente desmascara a cínica ambição daqueles que são por
demais ávidos por atrair sobre si a atenção [dos outros] através de meros
sons confusos [1Co 13.1]. Ao mesmo tempo, a autoridade do apóstolo deve
exercer não pouca influência em dissuadi-los de vaidade desse gênero.
20. Irmãos, não sejais crianças no entendimento. Agora ele dá mais um
passo, pois mostra que os coríntios são tão enfatuados que, de sua própria
iniciativa, atraem sobre si, e desejam ardentemente, como se fosse um
benefício singular, o que o Senhor ameaça enviar-lhes, quando deseja aplicar
a seu povo o mais severo castigo. Que terrível demência é esta: perseguir
avidamente, de todo o coração, o que, aos olhos de Deus, é tido como
maldição!
Não obstante, para que se entenda mais acuradamente a intenção de
Paulo, devemos observar que esta frase depende do testemunho de Isaías
[28.11], o qual ele acrescenta imediatamente a seguir. Visto, porém, que os
intérpretes têm se equivocado, não percebendo tal conexão, e para superar
todos os pontos de vista errôneos, antes de tudo faremos uma explanação
da passagem de Isaías, e então estaremos aptos a analisar as palavras de
Paulo.
Naquele capítulo, o profeta desfere um fulminante ataque contra as dez
tribos, as quais se haviam entregue a toda sorte de práticas perversas. A
única consolação é que Deus ainda tinha, dentro da tribo de Judá, um povo
que não se corrompera, porém logo ele estaria declarando sua corrupção
também, e da forma a mais amarga, porque não havia esperança para sua
recuperação. Pois ele fala em nome de Deus, dizendo: “A quem ensinarei o
conhecimento? Acaso aos desmamados, e aos que foram afastados dos
seios maternos?” O que ele pretende transmitir é que o povo não seria capaz
de ser instruído mais do que as crianças recém-desmamadas.
Então, prossegue: “Preceito sobre preceito, instrução sobre instrução,
mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, um pouco aqui, um
pouco ali.” Nestas palavras que ele expressa, utilizando-se da mímica,38 o
profeta põe em relevo a frouxidão e estupidez a que o povo se recuara. “Ao
instruí-los, perco meu tempo, pois não fazem nenhum progresso, porque são
excessiva e incuravelmente ignorantes, e o que lhes foi ensinado durante
um longo período, com incansável labor, esqueceram num piscar de olhos.”
Acrescenta-se ainda mais: “Aquele que fala a esse povo é como alguém
que faz uso de lábios gaguejantes e de uma língua estrangeira.” Esta é a
passagem que o apóstolo ora cita. Ora, o significado39 consiste em que o
povo se achava dominado por uma cegueira tal, e por insensatez de tal
proporção que, quando Deus lhes fala, eles não o entendem mais do que se
fossem bárbaros ou estrangeiros, e Deus estivesse emitindo sons
ininteligíveis de um idioma desconhecido; e esta é uma terrível maldição. O
apóstolo, porém, não citou as palavras do profeta com exatidão, visto que
lhe era suficiente realçar o teor do versículo para que os coríntios o
mantivessem na memória e o pudessem considerar mais atentamente.
Quanto a sua expressão, “está escrito na lei”,40 isto de forma alguma é
inconsistente com o modo usual de se expressar. Porque os profetas não
tinham um ministério desconectado com a lei, senão que eram de fato e na
verdade os intérpretes da lei, e todo seu ensino é, por assim dizer, um
suplemento da lei. Isto significa que a lei cobre todo o conteúdo da
Escritura em vigência até o evento de Cristo.
Ora, o apóstolo extrai a seguinte conclusão deste versículo: “Irmãos,
tende cuidado para que não vos assemelheis a crianças, situação esta que o
profeta condena com tanta veemência, pois significa que a voz de Deus
ressoa em vossos ouvidos sem qualquer resultado. Ora, quando rejeitais a
profecia que ressoa em vossos ouvidos, e preferis emudecer-vos com
espanto ante aquilo que nada mais é do que ruídos sem sentido, porventura
não significa que voluntariamente vos incorreis na maldição divina?”41
Além do mais, neste caso os coríntios poderiam protestar, dizendo que
em outras partes é considerado como algo louvável ser crianças
espiritualmente [Mt 18.4]; então Paulo os antecipa, e de fato insta a que não
sejam “crianças em seu entendimento”. Deste fato podemos inferir o
seguinte: quão insolentes são aqueles que fazem a simplicidade dos cristãos
consistir em ignorância. O apóstolo anseia pelo dia em que todos os
cristãos sejam, tanto quanto possível, maduros em seu entendimento. Visto
que é mais fácil guiar asnos do que homens, o papa, pretextando
simplicidade, orienta a todo seu povo a permanecer na ignorância.42 Em
razão disto, devemos fazer comparação entre o que está sob a direção do
papa e o que Cristo instituiu, e vejamos até onde concordam.43
22. De sorte que as línguas constituem um sinal. Este versículo pode
ser explicado de duas maneiras, dependendo se “de sorte que” for
considerado como uma referência só à oração precedente, ou, de maneira
geral, a toda a discussão que antecede. Se for uma conexão particular com a
frase anterior, o significado será: “Vós, irmãos, deveis compreender que
aquilo que tanto almejais não é um benefício que Deus concede aos crentes,
e, sim, um castigo pelo qual ele toma vingança contra os incrédulos.”
Quando é entendido desta forma, o apóstolo não estaria levando em conta o
uso permanente das línguas, mas, sim, estaria se referindo somente à real
situação que se precipitou. Entretanto, se alguém deseja estender-se e
incluir toda a discussão, não questionarei com ele, embora esteja
plenamente satisfeito com a explicação que já apresentei.
Se o tomarmos de maneira geral, o significado será: “As línguas, quanto a
serem dadas como sinal, ou, seja, como milagre, são destinadas aos
incrédulos, não aos crentes.” As línguas foram úteis em muitos aspectos.
Atenderam às necessidades da real situação, de modo que a diferença de
idiomas não impedisse os apóstolos de divulgarem o evangelho por todo o
mundo; e não houve, pois, nenhuma nação em que não o comunicassem. As
línguas foram igualmente úteis para mover ou assustar os incrédulos,
confrontando-os com o miraculoso. Pois este milagre, bem como os demais,
almejava preparar aqueles que ainda eram estranhos a Cristo, para que
viessem a obedecê-lo. Os crentes, que já haviam se devotado à doutrina de
Cristo, não necessitavam de preparação na mesma proporção. Portanto, os
coríntios estavam errando o alvo em dar indevida ênfase a esse dom,
enquanto punham a profecia de lado e a negligenciavam. A profecia,
naturalmente, era destinada especial e particularmente aos crentes, e por
esta razão deviam estar familiarizados com ela; pois, no que respeitava às
línguas, tudo o que interessava aos coríntios era seu elemento miraculoso.
23. Se, pois, toda a igreja se reunir num lugar. Os coríntios não tinham
consciência de seu próprio erro, porque suas mentes estavam
completamente dominadas por um desejo tolo e equivocado. O apóstolo,
pois, os adverte, dizendo que estariam se expondo ao ridículo perante os
incrédulos ou aos mal informados, ao entrarem estes em suas reuniões, e ao
ouvirem a emissão de sons confusos, porém não uma expressão inteligível.
Pois alguém, sendo completamente ignorante de tudo isso, não pensará que
tais pessoas são loucas, as quais emitem ruídos sem sentido em lugar de
conversação normal, gastando seu tempo com pias futilidades, quando
presumia que adentraria uma reunião para ouvir o ensino de Deus? Há muita
ferroada nesta frase: “Estais demasiadamente satisfeitos convosco mesmos,
em vossos próprios corações; os incrédulos e os desenformados, porém,
estão rindo de vossa estupidez. Significa que não estais cônscios de algo
que é perfeitamente óbvio para os que não têm qualquer conhecimento
acerca de tudo isso, e não crêem.”
Crisóstomo suscita um problema aqui, a saber: “Se as línguas foram
dadas como sinal aos incrédulos, por que o apóstolo está afirmando agora
que essas mesmas pessoas escarnecerão das línguas?” Sua própria resposta
é que, como sinal, seu propósito era encher os incrédulos de assombro, e
não para que lhes fosse um meio de instrução ou transformação. Não
obstante, ele também adiciona que se deve a sua própria pecaminosidade
que interpretem o sinal como sendo loucura. Esta sua explicação não conta
com minha aprovação. Admitido que um incrédulo ou ignorante se comova
ante o milagre e se encha de medo deste dom divino, não obstante tal fato
não o faz desistir de ridicularizar e de condenar o abuso deste dom44 e seu
uso no tempo errado. Além do mais, ele pensará consigo mesmo: “O que
essas pessoas pretendem, cansando a si mesmas e aos demais sem qualquer
propósito? A que leva o hábito de falar sem dizer nada?” Portanto, o que
Paulo pretende é que os coríntios poderiam ficar muito satisfeitos em seu
próprio íntimo, porém os incrédulos e ignorantes serão plenamente
justificados em condená-los por seu comportamento insensato.45
24. Se todos, porém, se puserem a profetizar. Assim como previamente
mostrara como a profecia é mais benéfica do que as línguas, aos que são da
família da fé [Gl 6.10], agora ele ensina que ela é também de grande valor
para os de fora [1Co 5.13]. Este é o argumento mais poderoso para provar
que os coríntios trilhavam a vereda do erro. Pois era extremamente perverso
de sua parte dar pouca importância a um dom que gera imenso benefício
aos que vivem fora da Igreja, tanto quanto aos que vivem dentro de seus
próprios muros; em contrapartida, é prejudicial deixar-se fascinar por outro
dom que resulta inútil aos que pertencem à família da fé, bem como colocar
uma pedra de tropeço no caminho daqueles que lhe são estranhos. Ele
realça o efeito que a profecia produz, ou, seja: ela intima as consciências dos
incrédulos a comparecerem perante o tribunal divino, e as satura de uma
mui vívida apreensão do juízo divino, de modo que qualquer um que em sua
indiferença costuma menosprezar a sã doutrina se vê constrangido a
glorificar a Deus.
Não obstante, este versículo nos será muito mais fácil à compreensão se
o compararmos com outro, a saber, Hebreus 4.12: “Porque a palavra de Deus
é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e
penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e apta para
discernir os pensamentos e propósitos do coração.”46 Pois em ambos os
textos lemos que a Palavra de Deus possui o mesmo tipo de eficácia, porém,
em Hebreus, a descrição é muito mais completa e clara. No tocante ao
versículo que se acha diante de nós, agora não resta a menor dificuldade em
entender o que significa ser convencido e ser julgado. As consciências dos
homens se encontram em estado de letargia,47 e não se comovem com o
senso de insatisfação em decorrência de seus pecados, enquanto se
desenvolvem nas trevas da ignorância. Em suma, a descrença é como a
sonolência que faz alguém impassível. Mas a Palavra de Deus penetra até os
recessos mais íntimos da mente, e, ao jorrar facho de luz, por assim dizer,
dissipa as trevas e expulsa a mortífera letargia. Portanto, esta é a forma em
que os incrédulos são reprovados, porque, assim que compreendem que é a
Deus que terão de enfrentar, ficam seriamente perturbados e deveras
assustados e dominados de pavor. É assim que também são julgados,
porque, enquanto viviam envoltos por trevas, enquanto não faziam a menor
idéia do estado miserável e vergonhoso de suas vidas, agora são trazidos à
luz e testificam contra si mesmos.
Ao dizer Paulo que são julgados e convencidos por todos, é preciso
entendê-lo como que falando por todos os que profetizam, pois ele dissera
no início do versículo [v. 24]: se todos profetizardes. Ele fez um uso
intencional do termo todos a fim de demovê-los do menosprezo que sentiam
pela profecia.48 O incrédulo, digo eu, é convencido, não como se o profeta
pronunciasse juízo sobre ele, quer silenciosamente em seu íntimo, ou
publicamente com os lábios, mas porque, ao ouvir, a consciência do ouvinte
apreende da doutrina seu próprio julgamento. Ele é julgado porquanto desce
às profundezas de seu próprio ego e, após examinar-se, chega a um
autoconhecimento, embora previamente não nutrisse tal disposição. Há
uma palavra de Cristo que contém a mesma idéia: “Quando ele [o Espírito]
vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo” [Jo 16.8]. Logo a
seguir Paulo adiciona: “Os segredos de seu coração se farão manifestos.”
Pois, em minha opinião, em qualquer caso, o apóstolo não quer dizer que se
torna manifesto a outros que sorte de pessoa ele é, mas, sim, que sua
consciência é despertada para que ele perceba seus pecados, os quais lhe
estiveram ocultos até então.
Neste ponto, Crisóstomo formula novamente uma pergunta: como se
pode dizer de forma consistente que a profecia é tão eficaz em influenciar os
incrédulos, quando o apóstolo diz um pouco antes que ela não deveria ser-
lhes ministrada? Segundo sua própria resposta, ela lhes é transmitida não
como um sinal inútil, mas como um meio de instruí-los. Eu pessoalmente
sinto que seria mais simples, e portanto mais adequado, dizer que ela não é
ministrada a incrédulos que estão perecendo, cujas mentes Satanás cegou
para impedi-los de contemplar nela a luz [2Co 4.3, 4]. E se adequará ainda
melhor se esta frase for associada à profecia de Isaías [28.11]; porque ali o
profeta está falando dos incrédulos, em cujo caso a profecia é sem valor e
improdutiva.
25. Prostrando-se sobre seu rosto, adorará a Deus. Pois somente o
conhecimento de Deus, e nada mais, é que pode reduzir o orgulho da carne. A
profecia leva isso à concretização. Por sua própria natureza, ela é
peculiarmente eficaz para derrubar os homens de seus pináculos e fazê-los
prostrar-se em adoração a Deus. Todavia, mesmo a profecia é para muitos
destituída de valor; aliás, ao ouvi-la, se tornam piores ainda. Além do mais,
ao atribuir este poder à profecia, o apóstolo não pretendia atribuir-lhe tal
efeito, como se fosse resultado dela. Seu intuito era simplesmente realçar
que dela advém grande benefício e qual a natureza de sua função. Portanto, é
uma singular acomodação o fato de ela arrancar dos incrédulos esta
confissão – que Deus está presente no meio de seu povo e sua majestade é
refletida em sua reunião.

26. Então, irmãos, o que fazer? Quando vos reunis, um tem salmo, outro doutrina; este
tem revelação, aquele tem línguas, e ainda outro, interpretação. Seja tudo feito para
edificação.
27. No caso de alguém falar numa língua desconhecida, que não seja mais do que dois,
ou quando muito três, e isso sucessivamente, e haja quem interprete.
28. Mas se não houver intérprete, guarde silêncio na igreja, e que fale consigo mesmo e
com Deus.
29. E que os profetas falem dois ou três, e os demais julguem.
30. Se alguma coisa for revelada a um que estiver assentado, que o primeiro fique em
silêncio.
31. Porque todos podereis profetizar, um após outro, para que todos aprendam e sejam
consolados.
32. Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas;
33. porque Deus não é o autor de confusão, e, sim, de paz; como em todas as igrejas dos
santos.

26. Quid igitur est, fratres? Quoties convenitis, unusquisque vestrum canticum habet,
doctrinam habet, linguam habet, revelationem habet, interpretationem habet: omnia ad
ædificationem fiant.
27. Sive lingua quis loquitur, fiat per duos, aut ad summum tres, idque vicissim, et unus
interpretetur.
28. Quodsi non sit interpres, taceat in Ecclesia: cæterum sibi ipsi loquatur et Deo.
29. Prophetæ autem duo aut tres loquantur, et caeteri diiudicent.
30. Quodsi alii fuerit revelatum assident, prior taceat:
31. Potestis enim singulatim omnes prophetare, ut omnes discant, et omnes
consolationem accipiant.49
32. Et spiritus prophetarum prophetis sunt subiecti:
33. Non enim seditionis est Deus, sed pacis, quemadmodum in omnibus Ecclesiis
sanctorum.50

26. Então, irmãos, o que fazer? Ele então lhes mostra uma maneira ou
um antídoto para corrigir estes males. Primeiramente, cada dom deve
desfrutar de seu espaço, porém sucessivamente e na devida proporção.
Além do mais, a Igreja não deve entregar-se às práticas inúteis e fúteis, mas
tudo o que fizer, que seja feito visando à edificação. No entanto ele começa
definindo edificação da seguinte forma: “Todo aquele que recebe algum dom
deve esforçar-se por empregá-lo visando ao bem de todos.” Pois o termo
todo aquele não deve ser entendido em sentido universal, como se todos os
homens fossem dotados com algum dom.
27. Se alguém falar em outra língua. Ele agora descreve a ordem e limita
a medida. “Se pretendeis falar em outras línguas, que só falem dois, e,
quando muito, não fale mais que três, e que haja concomitantemente um
intérprete por perto. Sem um intérprete, as línguas são inúteis, e portanto
devem ser dispensadas.” Deve-se observar que o apóstolo não está
promulgando um mandamento; simplesmente permite. Pois a Igreja pode
subsistir sem línguas, sem enfrentar inconveniências, exceto onde elas se
tornarem cooperadoras da profecia, como, por exemplo, o hebraico e o grego
o são hoje. Paulo, porém, faz esta concessão para não deixar a impressão de
estar reprimindo a congregação dos fiéis na prática de algum dom do
Espírito.
Ao mesmo tempo, pode parecer como se houvesse aqui alguma
inconsistência, uma vez que ele não disse previamente [v. 22] que as línguas,
até onde são um sinal, são oportunas para os incrédulos. Minha resposta
está fundamentada neste fato: ainda que um milagre seja realizado
especialmente para o benefício dos incrédulos, disto não se segue que ele,
em alguns aspectos, não afete também os crentes. Se levarmos em conta que
uma língua desconhecida é um sinal para os incrédulos, no sentido em que
as palavras de Isaías51 testificam, então o método que o apóstolo esboça
aqui é diferente. Pois ele admite que se deve dar espaço às línguas, desde
que haja concomitante interpretação, denotando, naturalmente, que nada
seja deixado obscuro. Portanto, ao corrigir o erro dos coríntios, o apóstolo
usa uma mistura bem equilibrada. De um lado, ele de forma alguma descarta
qualquer dom divino, qualquer que seja,52 de modo que todos seus
benefícios possam ser vistos entre os crentes. Do outro, ele impõe
restrições para impedir que a ambição furtivamente tome o lugar que
pertence à glória de Deus, e para evitar que algum dom menos importante
obstrua a ação dos que são mais importantes. E ainda adiciona o
condimento:53 para que não haja mera ostentação sem quaisquer resultados
[positivos].
28. E que fale consigo mesmo e com Deus. Ele está dizendo: “Que
desfrute de seu dom em seu próprio coração, e que dê graças a Deus.” Pois
considero “falar consigo mesmo e com Deus” no sentido de refletir em seu
íntimo sobre o dom que graciosamente lhe fora conferido,54 e dar graças por
ele em silêncio, bem como desfrutar dele como se fosse sua própria
possessão privativa, caso não haja oportunidade de fazer-se uso dele
publicamente. Pois o apóstolo esboça um contraste entre este modo secreto
de expressar-se e o que é feito publicamente na Igreja; e este último ele
proíbe.55
29. E os profetas falem apenas dois ou três. No tocante à profecia, ele
prescreve também restrições, porque multidão, como comumente se diz,
“cria confusão”. Eis uma grande verdade, pois estamos cientes disso por
nossas experiências diárias. Ele não limita o número com tanta precisão
como as línguas, pois há menos risco de se dar mais tempo às profecias;
aliás, o ideal seria se recebem atenção constante; Paulo, porém, ao mesmo
tempo leva em conta o que o homem pode suportar em suas fraquezas.
Entretanto, resta ainda uma pergunta: por que ele restringe as profecias e
as línguas ao mesmo número, exceto que no caso das línguas
particularmente acrescenta: “no máximo três”, pois se as línguas não são tão
valiosas, então deveriam ter um uso muito mais restrito? Minha resposta é
que a profecia está imbutida nas línguas, na forma em que o apóstolo
entende o termo, pois as línguas eram usadas ou para discursos56 ou para
oração. Nos discursos, o intérprete assumia o lugar do profeta, e assim esta
era a principal e a mais freqüente forma em que as línguas eram empregadas.
Ele lhe põe restrição só para evitar que elas fossem degradadas em
decorrência do orgulho humano e para evitar que os que eram menos
capazes fossem privados de sua disposição e oportunidade de falar. Pois a
intenção do apóstolo é que aqueles a quem ele designa a tarefa de falar
deveriam empregar seu máximo desempenho e ser aprovados pelo
assentimento geral.57 No entanto não há ninguém mais inclinado a impeli-
los para frente do que os que só têm uma leve noção de cultura, de modo
que o provérbio prova ser verdadeiro: “Os tolos entram de roldão onde os
anjos temem pisar”58 [audax inscitia]. O intuito do apóstolo, ao designar a
dois ou três a tarefa de falar, era neutralizar este mal.
E os demais julguem. A fim de não dar aos demais a chance de protestar,
concluindo que a intenção dele era que o dom divino59 fosse suprimido,
pondo um ponto final neste caso, o apóstolo lhes exemplifica que é possível
usar o dom para o bem da Igreja, mesmo quando tivessem que conservar-se
quietos, ou, seja, fazendo uma avaliação, em seus próprios corações, sobre
aquilo que era pronunciado por outros. Porquanto é um inestimável
benefício que haja alguns que sejam experientes em formular juízo, a fim de
que não se permitisse fosse a sã doutrina pervertida pelas imposturas de
Satanás, ou fosse de alguma forma corrompida por futilidades ridículas.
Portanto, o apóstolo está realçando que, mesmo permanecendo em silêncio,
os demais profetas estariam prestando relevante serviço à Igreja.
Não obstante, pode parecer algo inusitado que a homens se permita que
formulem juízos com relação à doutrina divina, a qual deve ser estabelecida
além de toda e qualquer controvérsia. Minha resposta a esta questão é que a
doutrina de Deus não está sujeita ao juízo humano, senão que a tarefa do
homem é simplesmente julgar, por meio do Espírito de Deus, se é sua
Palavra que está sendo proclamada, ou se, usando esta como pretexto, os
homens estão enganosamente exibindo o que eles mesmos engendraram;
como teremos ocasião de averiguar novamente sem muita delonga.
30. Se, porém, algo for revelado a outro. Aqui está outra vantagem –
que sempre que houver ocasião, o caminho lhes será também aberto.60 Daí
não mais terão razão de queixar-se, dizendo que o Espírito está preso ou sua
boca está fechada. Pois quando se deparar alguma ocasião, todos terão
oportunidade e liberdade de falar. A única condição é que ninguém se
precipite, satisfazendo mais a seu amor-próprio do que atendendo às
necessidades dos demais. Em contrapartida, o apóstolo exige que todos eles
ponham em prática esta auto-restrição: que cada um deles, por sua vez, dê
lugar a outro que tenha algo mais importante a comunicar.61 Pois somente
esta é a genuína liberdade do Espírito, não que a cada um se permita
tagarelar temerariamente o que bem quiser, mas que todos, do superior ao
inferior, voluntariamente permita ser controlado, e que o único Espírito seja
ouvido, pela boca de quem ele quiser usar. No que respeita à fidedignidade
desta revelação, veremos mais adiante.
31. Todos podereis profetizar, um após o outro. Antes de tudo, quando
o apóstolo diz todos, sua intenção não é incluir todos os fiéis, mas apenas
os que foram dotados com este dom. Além do mais, ele não quer dizer que
todos devem ter oportunidades iguais, mas que, de acordo com sua
possibilidade, e para o benefício do povo, cada um se apresentaria para
falar, com mais freqüência ou mais esporadicamente.62 O apóstolo poderia
ter posto em outros termos: “Ninguém ficaria a espera para sempre, mas a
chance de falar se apresentaria às vezes a um e outras vezes a outro.”
Ele acrescenta: para que todos aprendam, pois ainda que isso se
aplique a todas as pessoas, todavia diz respeito aos profetas; aliás, o
apóstolo aponta especialmente para eles. Pois ninguém jamais será um bom
mestre, se não revelar-se suscetível de aprendizado, bem como jamais se
achará alguém que tenha, unicamente em si mesmo, um transbordamento tal
de respeito pela perfeição da doutrina, ao ponto de nada lucrar ouvindo
outros. Portanto, todos devem executar seus deveres como mestres de
maneira a não declinarem de seu papel de aprendizes, ou de se sentirem
aborrecidos em proceder assim toda vez que a outros for propiciado os
meios de edificar a Igreja.
Em segundo lugar, Paulo diz: para que possam receber consolação.
Daqui podemos inferir que os ministros de Cristo, longe de invejarem,
deveriam antes alegrar-se sinceramente por não serem os únicos a se
distinguir, mas porque há tantos outros que são co-participantes do mesmo
dom, disposição essa que Moisés descobriu, como relatam os registros
sagrados [Nm 11.28]. Pois quando seu servo [Josué] inflamou-se com tolo
ciúme, sentindo-se profundamente indignado só porque o dom de profecia
fora igualmente conferido a outros homens, ele o censura, dizendo: “Tens tu
ciúmes por mim? Tomara todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor
lhes desse seu Espírito!” [Nm 11.28, 29]. E de fato é particularmente
consolador para os ministros piedosos verem o Espírito de Deus, em cujos
instrumentos eles mesmos foram constituídos, operando em e através de
outros. Esta é uma consolação que também contribui para a expansão da
palavra de Deus, cujo alvo principal são os ministros e testemunhas.
Visto, porém, que o verbo παρακαλεúσθαι, o qual o apóstolo usa aqui, é de
significação63 ambígua, pode-se traduzi-lo também “para que recebam
exortação”.64 Isto é plenamente plausível, pois às vezes é bom ouvirmos a
alguém mais a fim de recebermos incentivo e fazermos nosso trabalho com
disposição mais intensa.
32. E os espíritos dos profetas. Esta também é outra das razões por que
é necessário que esperem sua vez, porque é possível que suceda de outros
profetas encontrarem erro e terem que reprovar a doutrina de outro profeta.
Diz ele: “Não é razoável que alguém vá além da esfera do escrutínio. E assim,
poderá suceder que chegue a vez de uma pessoa falar, a qual estava presente
no auditório assentada e em silêncio.”
Há quem compreenda mal este versículo, como se o apóstolo estivesse
dizendo que os profetas do Senhor não eram “homens dotados”, que, uma
vez tomados de súbito frenezi, quando apoderados pelo impulso
(ἐνθουσιασμὸς) divino,65 perdiam seu equilíbrio.66 Sem dúvida, é verdade que
os profetas de Deus não perdiam o equilíbrio mental, mas isso nada tem a
ver com esta passagem dos escritos do apóstolo. Porque significa, como eu
já o declarei, que ninguém é isentado do escrutínio de outras pessoas, mas
que todos devem ser ouvidos, com esta condição: que sua doutrina seja,
não obstante, submetida a um exame.
Entretanto, isso não está isento de dificuldade, pois o apóstolo nos
declara que seus espíritos estão sujeitos. Embora esteja ele se referindo aos
dons, como pode a profecia, que é outorgada pelo Espírito Santo, ser julgada
pelos homens, de modo que o próprio Espírito se sujeita ao juízo deles?
Segundo este raciocínio, o apóstolo está sujeitando a própria Palavra de
Deus ao escrutínio humano, a qual é revelada pelo Espírito. Não há
necessidade de enfatizar quão intolerável é tal raciocínio, visto que por si
só ele sobejamente se evidencia. Não obstante, afirmo que nem o Espírito de
Deus, nem sua palavra, se restringe por um escrutínio desse gênero. Digo
mais que o Espírito Santo retém sua majestade inalterada, de modo que ele
“julga todas as coisas, sem ser julgado por ninguém” [1Co 2.15]. A santa
Palavra de Deus também retém o respeito que lhe é devido, de modo a ser
recebida sem qualquer disputa, tão logo seja ela apresentada.
“Então”, perguntará o leitor, “quem está sujeito a exame?” Eis minha
resposta: se alguém for agraciado com uma revelação completa,
indubitavelmente tal pessoa, juntamente com seu dom, está acima de
qualquer escrutínio. Digo ainda que não existe sujeição onde está presente
uma plenitude de revelação; visto, porém, que Deus tem distribuído seu
Espírito a todos numa determinada medida, há sempre alguma coisa
faltando, o que não deve causar surpresa se ninguém é elevado a uma
altitude tal que possa de lá olhar com desdém para os demais, e que não
tenha alguém que formule juízo sobre o mesmo.
Então percebemos, sem querermos absolutamente desonrar o Espírito
Santo, que seus dons admitem ser examinados. E mais ainda: quando tudo
estiver investigado, e nada for encontrado digno de reprovação, haverá
ainda algo que requeira polimento. A suma de tudo, pois, é esta: o dom é
submetido a tal exame que, não importa o que for publicado, os profetas
considerarão como tendo sua procedência no Espírito de Deus; pois se ficar
estabelecido que o Espírito é de fato seu autor, não haverá espaço para
qualquer hesitação.
Entretanto, ainda resta uma pergunta: Que regra se deve usar no exame?
Parte da resposta é fornecida pelos lábios do próprio apóstolo, que em
Romanos 12.6 mede a profecia “segundo a analogia da fé” [ad analogiam
fidei]. Mas no tocante ao julgamento real, é indiscutível que ele deve ser
controlado pela Palavra e pelo Espírito de Deus, para que somente o que se
perceber provir de Deus receba aprovação; que nada seja condenado exceto
no tribunal de sua Palavra, e que, em suma, unicamente Deus é quem pode
presidir neste julgamento, e que os homens sejam simplesmente seus
arautos.
À luz desta passagem podemos deduzir o quanto aquela igreja florescia
com uma notável riqueza e variedade de dons espirituais. Pois havia escolas
de profetas, para que houvesse esmero e cumprissem a tarefa de distribuir
seus respectivos turnos. Havia tão grande diversidade de dons, que havia
superabundância. Hoje vemos nossos próprios recursos reduzidos, pior
ainda, nossa pobreza; mas nisto temos um justo castigo, enviado como
recompensa de nossa ingratidão. Pois as riquezas de Deus não se exauriram,
nem sua liberalidade se arrefeceu; porém não somos dignos de suas dádivas
nem capazes de receber tudo o que sua generosidade tem para dar. Não
obstante, temos ainda uma ampla suficiência de luz e doutrina, contanto
que não haja deficiência com respeito ao cultivo da piedade e aos frutos que
dela emanam.
33. Porque Deus não é de confusão.67 Devemos subentender a palavra
autor ou algum termo desse gênero.68 Esta é uma frase valiosíssima, pois ela
nos ensina que a única maneira de podermos servir a Deus é tornando-nos
pessoas amantes da paz e solícitas em possuí-la. Daí, onde os homens amam
a disputa, estejamos plenamente certos de que Deus não está reinando ali. E
quão fácil é dizer isso! Não é o que baila constantemente nos lábios do
povo? Ao mesmo tempo, a maioria das pessoas realmente faz reboliço sobre
nada ou provoca motim na Igreja quando desejam de um modo ou de outro
ser tidas como proeminentes, e quando, depois de o conseguir, adquirem ar
de importância [Gl 2.6].
Portanto, ao formarmos juízo acerca dos servos de Cristo, tenhamos em
mente que se deve ter isto em vista: quer almejem ou não a paz e concórdia,
e, ao conduzir-se pacificamente, estão evitando contenda o quanto está em
seu poder, ainda mais porque entendem ser esta paz aquele vínculo que é a
verdade de Deus. Pois se formos chamados a contender contra as doutrinas
ímpias, mesmo que a terra e o céu se confundam, devemos, não obstante,
perseverar na disputa. Aliás, devemos primeiramente fazer dela nosso alvo,
para que a verdade divina, sem qualquer controvérsia, conserve seu
fundamento; mas se os perversos resistirem, devemos encará-los de frente
sem qualquer medo e sem qualquer receio de levar a culpa pelos distúrbios.
Pois maldita é aquela paz da qual a rebelião contra Deus é o emblema, e
benditas são aquelas contendas pelas quais se faz necessário defender o
reino de Cristo.
Como em todas as igrejas. A comparação69 não aponta meramente para
a primeira parte deste versículo, mas para tudo quanto o apóstolo esboçou
supra. É como se ele quisesse dizer: “Até aqui não vos apresentei quaisquer
diretrizes que não fossem seguidas em todas as igrejas, e esta é a razão por
que as mesmas igrejas estão qualificadas a manter-se unidas e em paz.
Portanto, devíeis tomar para vós o que as outras igrejas descobriram por
experiência, na busca de seu bem-estar, e que é mui valioso para a
preservação da paz.” Ele faz menção particular de os santos à guisa de
ênfase, como se pretendesse livrar todas as igrejas adequadamente
organizadas de algum estigma de desdita.70

34. Que as mulheres guardem silêncio nas igrejas, porque não lhes é permitido falar;
mas estejam em obediência, como também diz a lei.
35. E se elas desejam aprender alguma coisa, que interroguem seus esposos em casa;
porque para uma mulher é vergonhoso falar na igreja.
36. Porventura a palavra de Deus se originou no meio de vós, ou veio ela exclusivamente
para vós?
37. Se alguém se considera profeta, ou espiritual, então que reconheça que as coisas
que vos escrevi, são mandamentos do Senhor.
38. Mas se alguém é ignorante, então que permaneça ignorante.
39. Portanto, meus irmãos, cobiçai [o dom de] profetizar, e não proibais falar em línguas.
40. Que todas as coisas sejam feitas decentemente e em ordem.

34. Mulieres vestræ in Ecclesiis taceant; non enim permissum est ipsis loqui, sed
subiectae sint, quemadmodum et Lex dicit.
35. Si quid autem velint discere, domi maritos suos interrogent: turpe enim est
mulieribus in Ecclesia loqui.
36. An a vobis sermo Dei profectus est, aut ad vos solos pervenit?
37. Si quis videtur sibi propheta esse aut spiritualis, agnoscat, quæ scribo vobis, Domini
esse mandata.
38. Si quis autem ignorat, ignoret.
39. Itaque, fratres, æmulamini prophetiam, et linguis loqui ne prohibeatis.
40. Porro omnia decenter et ordine fiant.

Tudo faz crer que a Igreja de Corinto se encontrava também contaminada


por mais um erro, ou, seja: quando se reuniam, havia espaço para a
tagarelice feminina, ou, quem sabe, era-lhes permitido demasiada liberdade.
O apóstolo, conseqüentemente, as proíbe de falarem em público, seja com o
intuito de ensinar ou de profetizar. Não obstante, devemos entender isso
como uma referência ao serviço ordinário, ou onde haja uma igreja num
estado regularmente constituído; pois pode ocorrer a necessidade de tal
natureza que requeira que uma mulher fale em público; Paulo, porém, se
restringe ao que é conveniente numa assembléia devidamente organizada.
34. Estejam em submissão, como também diz a lei. O que tem a
submissão, sob a qual a lei coloca a mulher, a ver com o que o apóstolo está
ensinando agora? Pois alguém dirá: “O que as impede de ensinar, embora
estejam em submissão?” Minha resposta é que a tarefa de ensinar71 é uma
função que pertence a alguém incumbido da supervisão da Igreja, e é, por
esta razão, inconsistente com a condição de submissão. Pois quão
inconveniente seria para uma mulher, que vive em sujeição a um dos
membros, presidir72 sobre todo o corpo! Portanto, é um argumento baseado
em incompatibilidades; porque, se a mulher está em submissão, ela está,
pois, impedida de exercer autoridade para ensinar em público.73 E não há
dúvida74 de que onde quer que o próprio decoro natural tem tido seus
efeitos, as mulheres de todas as épocas têm sido excluídas do controle dos
negócios públicos. E o ditame do senso comum nos ensina que o governo
das mulheres é impróprio e inconveniente. Além do mais, quando nos dias
de Roma lhes foi permitido defender-se nos tribunais,75 a impudência de
Caia Afrânia76 resultou em ser ela proibida de fazer até mesmo isso. O
raciocínio do apóstolo, porém, é honesto: a autoridade de ensinar está
excluída da função da mulher, porque, caso ela venha a ensinar, logicamente
se colocará acima de todos os homens, embora ela devesse estar em
submissão.
35. E se elas desejam aprender alguma coisa. Portanto, para que não
desse a impressão, ao falar assim, de estar fechando as portas ao
aprendizado das mulheres, ele as instrui a fazerem suas inquirições
privativamente, caso tivessem dúvida sobre algum ponto, para evitar que
sua iniciativa suscitasse alguma discussão em público. Embora faça
referência a esposos, ele não está proibindo as mulheres de consultarem
pessoalmente os profetas, caso houvesse necessidade; porque nem todos
os esposos são capazes de formular uma resposta. Mas como ele aqui está
discutindo a organização externa [externa politia], é bastante, para seu
propósito, ressaltar o que é indecoroso, para que os coríntios o evitassem.
Não obstante, o leitor de discernimento deve tomar uma decisão, ou, seja,
que as coisas que o apóstolo está tratando aqui são neutras, nem boas nem
ruins; e que só são proibidas porque elas se põem contra o decoro e a
edificação.
36. A palavra de Deus procedeu de vós? Esta é uma reprovação um
tanto mordaz, porém era indispensável para coibir o orgulho dos coríntios.
Pois viviam desordenadamente satisfeitos consigo mesmos, e não toleravam
a idéia de que algum erro pudesse ser encontrado neles ou relacionado a
eles. Então o apóstolo inquire deles, se porventura são os únicos, se
realmente são o supra-sumo de todos os cristãos do mundo. Pergunta-lhes:
“Pretendeis dizer que a Palavra de Deus teve sua origem em vosso meio? Em
outros termos: ela procedeu de vós? Ela começou e termina em vós, ou, seja,
ela não será divulgada a ninguém mais?” Ao admoestá-los, a intenção do
apóstolo é dizer que, tendo ignorado as práticas de outros, não deviam
acomodar-se satisfeitos com seus vícios e costumes pessoais.
Mas esta doutrina é de natureza geral, pois nenhuma igreja deve existir
voltada para si mesma, negligenciando as demais. Ao contrário, todas elas
devem estender a destra umas às outras, buscando promover a comunhão
mútua, e acomodando-se uns aos outros até onde a harmonia o requeira.77
Neste ponto, porém, é possível que surja a perguntar se uma igreja que
fora estabelecida antes de outra78 [ordine praecessit] pode, por essa razão,
obrigá-la também aceitar suas instituições.79 Pois o apóstolo parece deixar
isso implícito no que está afirmando. Por exemplo, Jerusalém era a mãe de
todas as igrejas, visto que a Palavra do Senhor originara-se ali. Ela poderia
usar este dispositivo para reivindicar para si uma posição privilegiada e
submeter todas as demais igrejas à obrigação de agir como ela agia? Minha
resposta é que o apóstolo aqui não emprega um argumento de aplicação
universal, mas um que era especialmente aplicável aos coríntios, que
freqüentemente é o caso. Portanto, ele está de olho nos indivíduos, e não na
coisa propriamente dita. Eis a razão por que não se segue necessariamente
que as igrejas que nascem depois são obrigadas a adotar, em cada detalhe,
as práticas daquelas que se estabeleceram primeiro. Realmente, Paulo
mesmo serve de exemplo, pois ele não se prendia por este princípio com fim
de impor às outras igrejas os costumes que foram adotados em Jerusalém.
Tal atitude não subentende autopromoção, nem obstinação, nem orgulho,
nem menosprezo por outras igrejas; ao contrário, é para que haja solicitude
pela edificação; haja moderação e bom senso; e quando tal coisa acontece,
mesmo onde há grande volume de práticas diferentes, não haverá nada
digno de reprovação.
Lembremo-nos, pois, que era o orgulho dos coríntios que estava sendo
censurado aqui. Porquanto sua preocupação mirava exclusivamente80 suas
pessoas, sem demonstrar nenhum respeito pelas igrejas de origem mais
antiga, das quais tinham recebido o evangelho, e não buscavam acomodar-
se às demais igrejas das quais o evangelho fluiu para eles. Como eu gostaria
que em nossa época não existisse nenhuma Corinto no que respeita a estes
ou a outros erros! Todavia, percebemos como os homens cruéis, que jamais
provaram o evangelho, provocam distúrbios nas igrejas fiéis, impondo suas
próprias leis como autênticos tiranos.81
37. Se alguém se considera profeta. Aqui se caracteriza o critério que
ele previamente determinara para os profetas – que eles [coríntios]
recebessem o que eles [profetas] reconheciam como vindo de Deus. Ele,
porém, não está afirmando-lhes que fizessem investigações quando
nutrissem alguma dúvida sobre algum ponto, mas que abraçassem seu
ensinamento como a infalível Palavra de Deus; porque, se julgassem
corretamente, a reconheceriam como a genuína Palavra de Deus. Além disso,
é em virtude desta autoridade apostólica que ele a toma para si a fim de
prescrever-lhes a sentença que deveriam pronunciar.82
Há ainda maior confiança no que ele acrescenta imediatamente: Aquele
que é ignorante, que permaneça ignorante. Isso, na verdade, era lícito a
Paulo, o qual estava plenamente convicto quanto à revelação que recebera
de Deus, e também teria sido bem conhecida dos coríntios, de modo que
teriam olhado para ele de nenhum outro prisma senão através de sua
prerrogativa de apóstolo do Senhor. Não obstante, não cabe a qualquer um
ousar fazer para si tal reivindicação, ou, se o faz, por sua vanglória se exporá
a franco e merecido desprezo, pois então só haverá base para tal confiança
quando o que for afirmado por sua boca revele ser realidade. O que Paulo
afirmava nada mais nada menos era que a plena verdade, declarando que
suas determinações eram do próprio Senhor; em contrapartida, muitos
estavam preparados a afirmar a mesma coisa, porém sobre falsos
fundamentos. Seu grande objetivo era este: para que fosse claramente
percebido de que ele não se permitia estar sob controle, fala como
instrumento do Espírito Santo, não como produto de seu próprio cérebro.
Portanto, o homem que outra coisa não é senão um perfeito órgão do
Espírito Santo terá a coragem de declarar destemidamente, como Paulo, que
os que rejeitarem sua doutrina não são profetas nem pessoas espirituais; e
isso ele fará em virtude de um direito que lhe pertence, em concordância
com o que tivemos no início da Epístola: “aquele que é espiritual, julgue
todas as coisas” [1Co 2.15].
Neste ponto, porém, pode-se perguntar como poderia Paulo asseverar
que são determinações do Senhor quando não há nenhuma corroboração
delas nas Escrituras? Além disso, há também outra dificuldade que se
apresenta: se elas são mandamentos do Senhor, então sua observância é
imprescindível e cegam a consciência [humana]; e se porventura são meros
ritos vinculados à administração, então não existe necessidade de sua
observância. Não obstante, tudo o que o apóstolo está dizendo é que ele
não está impondo nada, senão aquilo que está em consonância com a
vontade de Deus. Além do mais, Deus o dotara com sabedoria para que ele
pudesse recomendar aos coríntios esta ordem das coisas externas [ordinem
istum in rebus externis] e em outros lugares – não para que fosse uma lei
inviolável, como as que se relacionam com o culto espiritual de Deus, mas
para que fossem um diretório útil a todos os filhos de Deus, e que não
fossem de forma alguma menosprezadas.
38. Mas se alguém for ignorante. A Vulgata traduz: “Aquele que não
sabe essas coisas, esse mesmo será desconhecido”;83 o que constitui um
equívoco. Pois a intenção de Paulo não era dar alguma oportunidade aos
amantes de controvérsia, que nunca se sentem exaustos em meio às
disputas, e sempre com o pretexto de saber mais, como se algo ainda não
estivesse claro para eles; ou no mínimo ele está realçando, em termos gerais,
que não tinha tempo a perder com aqueles que punham em dúvida o que ele
ensinava. É como se quisesse dizer: “Se alguém é ignorante, eu não tenho
tempo a perder com suas dúvidas; pois a infalibilidade de minha doutrina de
forma alguma é prejudicada com isso. Então que ele se vá, não importa
quem seja. Quanto a vós outros, não deixeis de forma alguma seja abalada
vossa confiança de que Cristo está falando por meu intermédio.” Em suma,
ele quer dizer que os céticos, os amantes de controvérsias e de detalhes [os
meticulosos] em seus questionamentos,84 não devem reduzir, sequer um
mínimo grau, a autoridade da sã doutrina e desta verdade sobre a qual os
crentes não podem nutrir dúvida alguma. Ao mesmo tempo, ele nos adverte
a não permitirmos que a incerteza dos coríntios seja algum obstáculo em
nosso caminho. Entretanto, essa grandeza da mente que despreza todos os
juízos humanos deve estar fundamentada na verdade averiguada. Daí, como
seria a parte de perversa temeridade, quer por manter pertinazmente, em
oposição aos pontos de vista de todos os demais, opinião que uma vez
assumida, ou por audazmente aderir a ela, enquanto outros nutrem dúvidas,
assim, por outro lado, quando temos sentido certeza de que é Deus quem
fala, destemidamente rompamos todos os impedimentos humanos e todas
as dificuldades.85
39. Portanto, meus irmãos. Esta é a parte conclusiva relativa à questão
principal, ou, seja: que a profecia deveria ter a preferência sobre os demais
dons, porque, de todos eles, ela é o mais proveitoso; enquanto, ao mesmo
tempo, os outros não devem ser negligenciados. Não obstante, deve-se
observar a maneira como ele o coloca. Pois ele notifica que a profecia é
digna de ser aspirada sincera e ardentemente, acima de todos os demais
[dons]. Entrementes, ele os exorta com os coríntios a não invejarem outros
que têm o dom mais raro,86 o qual não deve ser tão desejado; sim, mais
ainda, para conceder-lhes o louvor que merecem, se despem de toda inveja.
40. Todas as coisas sejam feitas com decência e ordem. Aqui temos
uma conclusão mais geral, a qual não inclui meramente, em breve extensão,
todo o caso, mas também as partes diferentes. Mais que isso, ela nos
fornece um padrão adequado para a avaliação87 de tudo o que se acha
conectado com a organização externa [ad externam politiam]. Como já
discursou, em vários casos, quanto aos ritos, ele deseja sintetizar tudo aqui
num breve sumário, ou, seja: que a decência seja preservada, e que a
desordem seja evitada. Esta afirmação revela que ele não estava disposto a
cegar as consciências pelos preceitos precedentes, como se eles fossem em
si mesmos necessários, mas até onde a decência e a paz se tornem
indispensáveis. Daqui devemos extrair (por assim dizer) um princípio geral,
a saber: que o propósito da organização da Igreja [Ecclesiae politia] é o
espírito de serviço.
O Senhor deixa ao sabor de nossa escolha os ritos externos com isto em
vista: que não podemos concluir que seu culto consiste totalmente dessas
coisas. Não obstante, ao mesmo tempo ele não nos concedeu uma liberdade
ilimitada e desenfreada, mas a fechou, por assim dizer, com uma cerca;88 ou,
de algum modo, restringiu a liberdade que nos deu, de tal maneira, que
somente à luz de sua Palavra é que podemos orientar nossas mentes sobre
o que é correto. Portanto, quando esta passagem for considerada de forma
apropriada, ela revelará a diferença entre os editos tirânicos dos papas que
subjugam as consciências humanas, através de uma detestável forma de
escravidão, bem como violentam as pias leis da Igreja, as quais preservam
sua disciplina e ordem. Além do mais, podemos facilmente inferir desse fato
que as leis da Igreja não devem ser consideradas como meras tradições
humanas, visto que se acham fundamentadas nesta injunção geral, e
claramente dão a impressão de receber, por assim dizer, a aprovação pessoal
dos lábios de Cristo.

1. “A palavra διώκετε”, diz Doddridge, “significa propriamente ir após algo com tanto ardor, como
o caçador que persegue sua caça. E é possível que ele quisesse notificar quão difícil é obter e
preservar um espírito tão verdadeiramente benevolente nas principais fases da vida.
Considerando, de um lado, quantas provocações iremos enfrentar; e, do outro, a força do amor
próprio que em tantos casos estará disposto terçar armas.”
2. “C’estoit ceste voye et vertu escellence.” – “Esta era aquela distinta maneira e excelência.”
3. Grannville Penn observa que “o contexto revela que o apóstolo tem em mente uma língua
estrangeira àquela dos ouvintes, e por isso desconhecida para eles” – como “aprendemos à luz do
versículo 21 que estamos para suprir com ἑτερᾳ, ‘outra’, não αγνωστῃ, ‘desconhecida’. Temos
tido”, acrescenta, “lamentável prova do abuso a que a última tradução prejudicial pode ter sido
pervertida nas mãos de ignorantes ou entusiastas insidiosos, presumindo que o termo significa
‘língua desconhecida de todo o gênero humano’; e daí, por meio de uma inferência ímpia,
supernatural ou divina; em vez de relativamente, ‘desconhecida de outras pessoas’. E no entanto,
depois de tudo, ‘desconhecida’ não a palavra do apóstolo, mas apenas um suplemente em
itálico sugerida pelos revisores ingleses do século dezessete.”
4. “Comme on dit en prouerbe – Il presche à soy-mesme et aux murailles.” – “Como dizem
proverbialmente: Ele prega a si mesmo e às paredes.” Crê-se que o provérbio, “Sibi canit et
Musis” – “Ele canta para si mesmo e para as musas”, originou-se de um dito de Antigenides, um
músico célebre de Tebes, que, quando sua Ismenia escolar cantava com bom gosto, mas não ao
ponto de granjear os aplausos do povo, excalamava: “Mihi cane et Musis” – “Canto para mi e
para as musas”, significando que nada era se agradasse os bons juízes.
5. Pleonasmo é uma figura de linguagem que envolve uma redundância de expressão.
6. “Iettent ainsi de grandes boufféés et se brauent en leur parler.” – “Fazem uso dessa forma de
extravagâncias e se gabam de seu modo de falar.”
7. “Les langues aidoyent lors aucunement à l’auancement des Eglises.” – “Línguas, naquele
tempo, eram de algum auxílio para o avanço das igrejas.”
8. “Ces gentils reformateurs.” – “Aqueles atraentes reformadores.”
9. “Estoit plus propre pour leur imprimer ce qu’il dit.” – “Era mais próprio para imprimir neles o
que ele dizia.”
10. “C’est à dire, pour signifier quelque chose.” – “Equivale dizer, para significar algo.”
11. “Sans mesure ou distinction.” – “Sem medida ou distinção.”
12. “Sabe-se bem que as trombetas eram empregadas em quase todos os exércitos antigos,
com o propósito de orientar os movimentos dos soldados e informá-los do que estavam para
fazer: como quando atacar, avançar ou retrair. Este era o costume mesmo nos exércitos judaicos
mais antigos, quando a lei exigiu que se fizessem duas trombetas de prata para esse propósito
(Nm 10.1, 2, 9). Naturalmente, a distinção de tons se fazia necessário para expressar as várias
convocações que eram assim comunicadas; e se a trombeta não desse a entonação certa, os
soldados poderiam não saber como agir, ou corriam o risco de entender mal e agir
erroneamente.”
13. Ils vsoyent plustost de fluste, que de trompette.” – “Usavam a flata, em vez da trombeta.”
14. Valério Máximo supõe que o uso da flauta em tais ocasiões pelos lacedemonianos visava a
“despertar a coragem dos soldados, para que começassem o avanço com maior violência e
fúria”. Mas a razão ressaltada por Calvino concorda com o relato dado por Tucídides (com quem
concorda os demais historiadores antigos).
15. “Que nesta passagem”, diz o Dr. Henderson, “φωνὴ, que significa propriamente som, então
voz, deve ser tomado no sentido de língua ou dialeto, é evidente, pois não seria verdade que não
há sons nem vozes no mundo (ἄφωνων) sem significação, como usualmente esses termos são
entendidos. Significa que toda língua é inteligível a uma ou outra nação. E é somente para
pessoas que lhe são ignorantes que suas palavras são destituídas de significação. Isto o
apóstolo ilustra de uma maneira enérgica.”
16. “C’est à dire nous monstre aucunement qu’il faut parler en sorte que nous soyons entendus.”
– “Equivale dizer, ela nos mostra, de certa maneira, que devemos falar para sermos entendidos.”
17. “Os gregos, segundo o costume dos egípcios, mencionados por Heródoto (lib. 2), chamavam
bárbaros a todos quantos não falassem seu idioma. No processo do tempo, contudo, os romanos,
tendo subjugado os gregos, se eximiram, pela força das armas, daquele epíteto vexatório; e se
juntaram aos gregos chamando bárbaros a todos quantos não falassem os idiomas grego e
latino. Mais tarde, bárbaro passou a significar alguém que não se expressava em linguagem
compreensível a outro. E assim o filósofo siciliano Anacarsis disse que para os atenienses os
sicilianos eram bárbaros; e para os sicilianos os atenienses eram bárbaros. E é assim que lemos
em Ovid. Trist. v.10: ‘Barbarus hic ego sum, quia non intelligor ulli.’ – ‘Eu sou um bárbaro aqui,
porque não sou compreendido por ninguém.’ Este é o sentido que o apóstolo afixa à palavra
bárbaro, na presente passagem.” – M’Knight.
18. “La langue doit estre comme vn image, pour exprimer et representer ce qui est en
l’entendement.” – “A língua seria como uma imagem que expressa e representa o que está no
entendimento.”
19. Ele considera o termo βάρβαρος (bárbaro) como sendo um termo construído em imitação do
sentido – comunicar a idéia de alguém que fala com dificuldade e de forma abrupta. Ver Strabo,
Book xiv. p. 62. Bloomfield considera o termo bárbaro como derivativo – “não”, como alguns
pensam, do árabe berber, murmurar, mas do púnico berber, um pastor – tendo originalmente
apropriado aos habitantes indígenas e pastoris da África; os quais, para seus companheiros
mais civilizados do outro lado do Mediterrânio, pareciam rústicos e bárbaros. Daí, o termo
βάρβαρος veio extensamente significar rústico ou caipira.”
20. “Les dons spirituels, il y a mot à mot, les esprits.” – “dons espirituais, literalmente falando, é
espíritos.”
21. “De parler à ostentation.” – “De falar por amor à ostentação.”
22. “O que significa”, diz Witsius (em seu ‘Da Sacred Dissertation’), “orar com a língua? com o
espírito? com a mente? (1Co 14.14, 15). Aqui língua significa um idioma desconhecido para outros
e empregado por alguém que é dotado com um dom supernatural do Espírito Santo. Orar com a
língua significa orar num idioma desconhecido de ourtras pessoas; como, por exemplo, orar no
idioma hebreu na presença de gregos. Nesse sentido, ele disse [v. 2]: ‘Aquele que fala com a
língua, fala não a homens, mas a Deus; porque ninguém o entende’, isto é, aquele que fala num
idioma estrangeiro, cujo conhecimento ele adquiriu por meio de um dom extraordinário do
Espírito, só tem a Deus por testemunha. Ele não pode considerar como suas testemunhas, ou
como pessoas cônscias do que ele está fazendo, os que são ignorantes do idioma e para cuja
edificação pouco ou em nada contribuiu. O espírito significa, aqui, aquele dom extraordinário por
meio do qual o homem é levado a agir de uma determinada maneira, assistido por emoções
quase estáticas, de modo que às vezes ele não está consciente do que diz, nem leva outros a
entenderem o que quer dizer. Orar com o Espírito significa orar de tal maneira que revele que
você sente a presença de um dom extraordinário do Espírito, o qual o move e o agiliza, de uma
forma poderosa, a fazer coisas que desperta espanto.
23. “Que c’est que prier de langue, (car il y a ainsi mot à mot, là où nous traduisons Prier en
langage incognu).” – “O que significa orar numa língua, pois esse é o significado literal, onde o
traduzimos orar numa língua desconhecida.”
24. “Quel danger il y a, quand on abuse.” – “Que risco há, quando alguém abusa.”
25. “O que o apóstolo tem em mente por τὸ πνευ̑μα μου (meu espírito) não é nem o Espírito Santo
agilizando-o a falar, nem algum dote espiritual com que ele foi dotado; mas, como a frase
significa em outras passagens em que ela ocorre [Rm 1.9; 1Co 5.3; 2Tm 4.22; Fm 25], sua própria
mente, com que ele se engajara no serviço.
26. “Mais qui plus est, aiment mieux que les idiots et ignorans barbotent des pationestres en
langage qui leur est incorgnu.” – “Mas, pior ainda, não passando de pessoas incultas e
ignorantes, murmuram o Pai Nosso em uma linguagem que eles não compreendem.”
27. “Ils ont vne solution bien aigue et peremptoire.” – “Apresentam uma solução muito perpicaz
e peremptória.”
28. “Vne pensee esuanouissante en l’air, qu’ils appellent Intention finale.” – “Um pensamento
que se desvanece no ar, o que chamam de intenção final.”
29. “Que ne soit point sans intelligence.” – “Para que não seja destituída de entendimento.”
30. A palavra original é ψαλω̑ – cantarei Salmos. É o mesmo verbo usado por Tiago [5.13], εὐθυμεú
τίς; ψαλλέτω. – Está alguém alegre, então cante Salmos.
31. Carta de Plínio mencionada por Calvino (escrita em 107 d.C.) é apresentada em plena
extensão (como traduzida pelo Dr. Lardner) na Introdução de Horne, vol. i. pp. 205, 206.
32. “Signifie et presuppose.” – “Insinua e pressupõe.”
33. Amém, ou Assim seja, era, entre os judeus, usado pela congregação no final de uma oração ou
bênção, para denotar seu assentimento ou apropriação do que uma pessoa pronunciara. Muitos
exemplos dessa prática ocorrem no Velho Testamento. Da sinagoga judaica este costume no
culto, entre muitos outros, passou para a Igreja Cristã, na qual é ainda retido.
34. A palavra a que Calvino se refere é @ma (Amém), verdade. O termo ocorre em Isaías 65.16, @ma
yjla (Elohe Amen), o Deus da verdade.
35. “Confirmation et approbation.” – “Confirmação e aprovação.”
36. “Amém”, diz Witsius, em seu Dissertation on the Lord’s Prayer, “é uma partícula judaica que
expressa tanto afeição forte quanto desejo ardente. Lutero, com seu costumeiro estilo vívido,
escreveu a Melancthon nos seguintes termos: ‘Eu oro por você, tenho orado e orarei, e não
tenho dúvida de que serei ouvido, pois tenho o amém em meu coração’.” – Biblical Cabinet, vol.
xxiv. p. 382.
37. “Par lequel nous voyons comment Satan a tenu ses rangs, et dominé en la Papaute
furieusement, et d’une license merueilleusement desbordee.” – “Do que vemos como Satanás
tem mantido seu lugar e com fúria tem governado no papado, e com liberdade espantosamente
temerária.”
38. Mimetice. Nosso autor, aqui, evidentemente tem diante de seus olhos o advérbio grego
μιμητικω̑ς – imitativamente.
39. Or le Prophete signifie.” – “Ora, o profeta quer dizer.”
40. “Está escrito na lei.” Na lei, isto é, na Escritura em oposição às palavras dos escribas. Pois
esta distinção era muito comum nas escolas. Isto aprendemos da lei, e isto das palavras dos
escribas. As palavras da lei (isto é, da Escritura) não carecem de confirmação, mas as palavras
dos escribas carecem de confirmação. Os Profetas anteriores, e os Profetas posteriores, bem
como os Hagiografa, são intitulados a lei.”
41. Henderson, sobre Isaías, ao comentar esta passagem citada pelo apóstolo [Is 28.9-11],
observa que ela “contém a linguagem sarcástica dos sacerdotes e juízes ébrios dos judeus, os
quais repeliam com escárnio a idéia de que deveriam requerer as claras e reiteradas lições que
Jeová ensinava através de seus mensageiros. Essa instrução elementar só era adequada (em
seu conceito) “para os recém-nascidos. Constituía-se num insulto a seu entendimento presumir
que ainda necessitavam dela. A linguagem do versículo 10 [preceito e mais preceito etc.] se
assemelha mais à de pessoas embriagadas do que a usada por pessoas em estado sóbrio. As
palavras são obviamente selecionadas para adequar-se ao caráter daqueles que supostamente
as empregavam.”
42. “En ignorance et bestise.” – “Em ignorância e estupidez.”
43. Calvino faz uma observação semelhante quando comenta Efésios 4.14: “Nam postquam
Christo nati sumus, debemus adolescere, ita ut non simus intelligentia pueri. Hinc apparet,
qualis sub Papatu sit Chrstianismus, ubi, quam diligentissime possunt, in hoc laborant pastores,
uto prebem to prima infantia detineant.” – “Pois depois de Cristo haver nascido, devemos
crescer e não permanecer crianças no entendimento [1Co 14.20]. Daí suceder que sorte de
cristianismo há em conexão com o papado, no qual os pastores trabalham tão exaustivamente
quanto podem para conservar as pessoas na infância.”
44. “Le sot abus de ce don, quand on le met en auant sans raison et consideration.” – “O tolo
abuso desse dom quando o exibem sem razão e consideração.”
45. “En ceste façon de faire.” – “Dessa maneira de agir.”
46. “Des pensees et intentions du cœur.” – “Dos pensamentos e intentos do coração.”
47. “Elles sont comme endormies et estupides.” – “Estão, por assim dizer, entorpecidos e
estúpidos.”
48. “Afin de monstrer qu’il ne se faut point lasser de la prophetie.” – “A fim de mostrar que não
deviam nutrir sentimento de desgosto pela profecia.”
49. “Que tous soyent consolez, ou, exhortez.” – “Para que todos sejam confortados ou
exortados.”
50. “Comme en toutes les Eglises des saincts, ou, comme on voit en toutes.” – “Como em todas
as igrejas dos santos, ou como alguém vê em tudo.”
51. As palavras referidas são aquelas que Paulo citara supra no versículo 21.
52. “Tant petit soit-il.” – “Mesmo que seja tão pequeno.”
53. “Ascauoir l’interpretatiton.” – “Isto é, a interpretação.”
54. “Le benefice et don de Dieu.” – “A bondade e dom de Deus.”
55. “En ce cas.” – “Neste caso.”
56. “Pour traiter de quelques matieres de la religião.” – “Para tratar de algumas matérias da
religião.”
57. “Par l’approbation commune de l’Eglise.” – “Pela aprovação comum da Igreja.”
58. Os latinos têm um provérbio similar: “Stater in lagena bis bis clamat.” – “Uma moeda num
vaso de barro está constantemente tinindo.”
59. “Le don de Dieu qu’ils ont receu.” – “O dom de Deus que têm recebido.”
60. “Que toutes fois et quantes qu’il sera besoin, eux aussi auront lieu de parler.” – “Sempre que
houver uma ocasião, eles também terão oportunidade de falar.”
61. “Mas se algo for revelado a outro que esteja sentado. Isso é freqüentemente afirmado dos
doutores judaicos, k`wy hyh. Ele sentou-se, significando não meramente que ele estava sentado,
mas ensinava sentado em sua cadeira de mestre, ou que, assentado, ensinava, ou se preparava
para ensinar. De forma que, ele sentou-se e ensinava, equivale a mesma coisa.”
62. “Ainsi qu’il sera auisé pour le mieux.” – “Quando for julgado pelo melhor.”
63. “Ha double signification.” – “Tem uma dupla significação.”
64. Assim em Atos 15.32, παρεκάλεσαν significa exortado, embora o substantivo παρακλήσις seja
usado no versículo imediatamente precedente no sentido de consolação.”
65. “Depuis que leur folie les prenoit, laquelle ils appeloyent vn mouuement Diuin.” – “Sempre
que apoderados de extravagância, o que denominavam impulso divino.”
66. A referência aqui é claramente aos que praticavam a adivinhação (Θεομαντεία), dos quais
havia entre os gregos três tipos, distinguidos por três formas distintas de receber a inspiração
(ἐνθουσιασμὸς) divina.
67. “Car Dieu n’est point Dieu de consusion.” – “Pois Deus não é um Deus de confusão.”
68. Granville Penn traduz o versículo assim: “Pois eles não são espíritos de desordem, mas de
paz.” Ele crê ser provável que “o singular ἐστι tem causado distorções desta passagem,
sugerindo a introdução de um singular nominativo para concordar com ela, isto é, ὁ Θεος: ‘Deus’;
enquanto na redação de Tertuliano, anterior ainda ao segundo ou terceiro século, ἐστι se referia
ao plural neutro, πνεύματα: ‘Et spiritus prophetarum prophetis subditi sunt – non enim eversionis
sunt, sed pacis.’ (E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas – pois não são de
desordem, mas de paz.) Portanto, o grego fica assim: οὐ γάρ ἐστιν ἀκαταστασίας (πνεύματα) αλλ̕
εἰρήνης. Este antigo testemunho externo, combinado com o testemunho interno do contexto, é
evidência suficiente de que Θεὸς foi displicentemente inserido aqui por filólogos, como Θεὸς,
Κὺριος, Χριστός foi introduzido em muitas outras passagens do Sacro Texto.”
69. “Ce mot, Comme.” – “Esta palavra Como.”
70. “Comme s’il vouloit dire qu’il n’y auroit point de propos d’auoir quelque souspeçon sur les
Eglises bien reformees.” – “Como se ele quisesse dizer: que não houve ocasião para nutrir
alguma suspeita no tocante às igrejas plenamente reformadas.”
71. “D’enseigner ou de prescher.” – “De ensinar ou de pregar.”
72. “Eust preminence et authorite.” – “Teria preeminência e autoridade.”
73. “Elle ne peut donc auoir authorite publique de prescher ou enseigner.” – “Ela não pode, pois,
ter autoridade pública para pregar ou ensinar.”
74. “Entre toutes les nationes et peuples.” – “Entre todas as nações e povos.”
75. “On les souffroit proposer deuant les iuges, et plaider publiquement.” – “Foi-lhes permitido
comparecer ante os juízes e pleitear publicamente.”
76. “Caia Afrânia era esposa de um senador, Licinius Buccio. A circunstância referida por Calvino
se relaciona com Valério Máximo (lib. 8. c. 3. n. 2), nos seguintes termos: “Muliebris verecundiæ
oblita, suas per se causas agebat, et importunis clamoribus judicibus obstrepebat; non quod
advocati ei deessent, sed quia impudentia abundabat. Hinc factum est, ut mulieres perfrictæ
frontis et matronalis pudoris oblitæ, Afraniæ per contumeliam dicerentur.” – “Esquecida da
modéstia conveniente ao sexo feminino, ela pleiteou pessoalmente sua própria causa, e
aborreceu os juízes com clamorosa insensibilidade – não por falta de advogados para tomar em
suas mãos a causa dela, mas em decorrência de sua excessiva impudência. Em conseqüência
disso, os homens que eram de fronte ousada, e esquecidos da modéstia que procede de uma
matrona que era, à guisa de reprovação, chamada Afrânia.”
77. “Autant qu’il est requis pour nourrir paix et concorde.” – “Até onde o requisito seja a
manutenção da paz e da harmonia.”
78. “Et est plus ancienne.” – “E é mais antiga.”
79. “A ses ordonnances et manieres de faire.” – “A suas ordenanças e métodos de ação.”
80. “Ne regardans qu’a eux mesmes, et se plaisans en leur façons de faire.” – “Olhando somente
para si, e deleitando-se em seu modo pessoal de agir.”
81. “En voulant d’vne façon tyrannique contraindre tout le monde à receuoir leurs lix.” – “Por tudo
fazer, de uma forma tirnânica, para constranger a cada um de receber suas leis.”
82. “En cest endroit.” – “Neste caso.”
83. Beausobre, quando chama a atenção para esta redação, diz: “La Vulgate porte, il sera ignoré,
Dieu le méconnóitra; ce qui veut dire, le punira. Ce sens est fort bom.” – “A Vulgata traduz assim:
ele será desconhecido – Deus o repudiará – significando: Ele o punirá. Este é um bom sinificado.” Em
um manuscrito grego, a redação é: ἀγνοεúται – é desconhecido.
84. “Les sophistes qui ne font iamais que disputer, sans rien resoudre ou accorder, ne les
contentieux, et subtils iaseurs.” – “Sofistas que nunca fazem outra coisa senão disputar, sem
chegar a nenhuma solução ou acordo, nem pessoas contenciosas e palradores sutis.”
85. “Sans nous en soucier aucunement.” – “Sem entregar-se a qualquer preocupação por eles.”
86. “Autres, qui ont le don des langues, qui est vne don plus rare.” – “Outros, que têm o dom de
línguas, que é o dom mais raro.”
87. “Este preceito é às vezes aplicado em apoio do uso de ritos e cerimônias no culto divino, não
ordenados na Escritura. Mas quem quer que considere o lugar que ele mantém neste discurso,
se tocará de que ele não tinha relação com ritos e cerimônias, mas com o exercício decente e
ordeiro dos dons espirituais.”
88. Cancellos (ut ita loquar) circumdedit. Calvino tem aqui, muito provavelmente, diante de seus
olhos uma expressão usada por Cícero: “Si extra hos cancellos egredi conaber, quos mihi
circumdedi” – “Se eu tentar ir além desses limites, os quais eu demarquei para mim mesmo.”
(Cic. Quint. 10.)
Capítulo 15

1. Além do mais, irmãos, vos declaro o evangelho que vos preguei, o qual igualmente
recebestes, no qual também permaneceis
2. e pelo qual também sois salvos, se retiverdes na memória o que vos preguei, a menos
que tenhais crido em vão.
3. Porque, antes de tudo vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por
nossos pecados, segundo as Escrituras;
4. e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras;
5. e que foi visto por Cefas, e depois pelos doze;
6. depois apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, dos quais a maioria
ainda vive, mas alguns já dormem;
7. depois disso ele foi visto por Tiago, e em seguida por todos os apóstolos;
8. e por fim, depois de todos, foi visto também por mim, como um nascido fora do devido
tempo.
9. Porque eu sou o menor dos apóstolos; aliás, nem mesmo digno sou de ser chamado
apóstolo, porque persegui a igreja de Deus.
10. Mas pela graça de Deus eu sou o que sou; e sua graça que me foi concedida não foi
em vão; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de
Deus que era comigo.

1. Notum autem vobis facio, fratres, evangelium quod evangelizavi vobis, quod et
recepistis, in quo etiam stetistis.
2. Per quod etiam salutem habetis: quo pacto annuntiarim vobis, si tenetis, nisi frustra
crediditis.
3. Tradidi enim vobis imprimis quod et acceperam, quod Christus mortuus fuerit, pro
pecatis nostris secundum Scripturas,
4. Et quod seputus sit, et quod resurrexit tertio die, secundum Scripturas.
5. Et quod visus fuit Cephæ, deinde ipsis duodecim:
6. Postea visus fuit plus quam quingentis fratribus simul, ex quibus plures manent adhuc
ad hunc usque diem: quidam autem obdormierunt.
7. Deinde visus fuit Iacobo: post apostolis omnibus:
8. Postremo vero omnium, velut abortivo, visus fuit et mihi.
9. Ego enim sum minimus apostolorum, qui non sum idoneus ut dicar apostolus:
quandoquidem persequutus sum ecclesiam Dei.
10. Sed gratia Dei sum id quod sum: et gratia ejus, quæ mihi collata est, non fuit imanis,
sed copiosius quam illi omnes laboravi: non ego tamen, sed gratia Dei quæ mihi aderat.

1 Além do mais, eu vos faço saber. Ele agora apresenta outro tema, a
saber, a ressurreição, convicção que entre os coríntios fora abalada por
algumas pessoas perversas. Entretanto, é incerto se sua dúvida era só no
tocante à ressurreição do corpo no último dia, ou se também envolvia a
imortalidade da alma. Sabe-se muito bem que havia muitos pontos de visto
equivocados a esse respeito. Alguns filósofos argumentavam que a alma
humana é imortal, porém a questão da ressurreição do corpo jamais entrava
em suas cogitações. Os saduceus, por exemplo, defendiam um conceito
muito vulgar acerca do corpo, pois o limitavam apenas a esta presente vida;
além disso, criam que a alma humana não passava de mero fôlego,
destituída de qualquer substância.
Portanto, não nos fica totalmente claro (como já afirmei) se nesse tempo
os coríntios já tinham atingido tal estágio de demência, que tivessem se
desvencilhado da expectativa de uma vida futura, ou se simplesmente
negavam a ressurreição do corpo; pois os argumentos de que Paulo lança
mão parecem subentender que estavam completamente fascinados pelo
demente sonho dos saduceus.
Por exemplo, quando ele diz: “Qual a vantagem de se batizar pelos
mortos? [v. 29]. Não seria preferível comer e beber? [v. 32]. Por que temos de
enfrentar perigos a toda hora?” [v. 30]. Seria muito mais fácil responder, de
acordo com o raciocínio dos filósofos: “Porque depois da morte nossas
almas sobrevivem ao corpo.” Conseqüentemente, alguns aplicam todo o
raciocínio de Paulo, contido neste capítulo, à imortalidade das almas. De
minha parte, embora eu deixe indeterminado qual era o erro dos coríntios,
contudo não posso ver as palavras do apóstolo como uma referência a algo
mais além da ressurreição do corpo. Portanto, que seja estabelecido, uma
vez por todas, que ele, neste capítulo, está tratando dela, e nada além dela.
É como se a heterodoxia [impietas] de Himeneu e Fileto já houvesse
chegado tão longe,1 pois ambos diziam que a ressurreição já era um fato do
passado [2Tm 2.18], e que não mais ocorreria no futuro. Semelhantes a eles,
há em nossos dias alguns dementes ou, preferivelmente, alguns demônios2
que se denominam os libertinos.3 Não obstante, tenho a impressão de estar
mais perto da verdade, arriscando-me a conjeturar que fossem arrebatados
por alguma fantasia4 que decepava sua esperança na ressurreição futura, da
mesma forma que os libertinos de nossos dias que imaginam alguma sorte
de ressurreição alegórica,5 eliminando de nós a verdadeira ressurreição que
nos é prometida.
O que quer que isso tenha sido, seguramente apresenta um caso
realmente terrível e que se aproxima de um prodígio, a saber: os que tinham
sido instruídos por um mestre tão eminente fossem capaz de cair tão
rapidamente6 em erros de natureza tão grosseira. Todavia, o que há de
surpreendente nisso, quando na Igreja israelita os saduceus tinham a
audácia de confessar publicamente que o homem não é diferente de um
bruto no que tange à natureza essencial da alma, e que ele não é mais ditoso
do que as bestas? Observemos, contudo, que tal cegueira é a recompensa do
justo juízo de Deus, pois aqueles que não aquiescem na verdade de Deus
são levados de um lado para outro pelas enganosas artimanhas de Satanás.
Entretanto, alguém poderia perguntar: por que ele deferiu ou adiou para
o fim desta carta um tema que merecia precedência sobre todos os demais?
Há quem responda que o apóstolo procedeu assim para deixar uma
profunda impressão em suas memórias. Preferivelmente, creio que o
apóstolo não tencionava fazer nenhuma menção de um assunto tão
importante até que tivesse defendido sua autoridade, a qual, em alguma
extensão, tinha perdido sua influência sobre os coríntios, e até que tivesse
reprimido seu orgulho e tivesse despertado seu anseio de receber com
docilidade sua doutrina.
Eu vos faço conhecer. Fazer conhecer não significa aqui ensinar algo do
qual não tivessem previamente o menor conhecimento, e, sim, despertar-
lhes a lembrança de algo que já haviam ouvido. É como se quisesse dizer:
“Evocai a vossa lembrança, juntamente comigo, daquele evangelho com o
qual vos tornastes tão familiarizados, antes de vos afastardes do caminho
certo.” O apóstolo se refere à doutrina da ressurreição como sendo o
evangelho, para que não viessem a imaginar que provavelmente ela fora
ensinada para o entretenimento de alguém, e em seguida ser descartada,
como se pode fazer com outros assuntos sem nenhum prejuízo à salvação.
Ao agregar, que vos preguei, ele amplia o que já havia dito: “Se me
reconheceis como apóstolo, com toda certeza eu vos ensinei isso.” Há outra
ampliação nas palavras que também recebestes, pois se agora concordam
em deixar-se persuadir do contrário, então teriam de ser acusados de
leviandade. Uma terceira ampliação é no sentido que agora precisam
perseverar nessa fé com uma inabalável e determinada resolução, uma
porção maior do que aquela que mantiveram em outro tempo. Mas, a mais
importante dessas afirmações ampliativas é a declaração que o apóstolo faz,
ou, seja, que é precisamente neste mesmo fato que consiste sua salvação.
Pois a conclusão que daqui se extrai é que, se a ressurreição for eliminada,
então não lhes é deixada nenhuma religião, nenhuma certeza de fé e, em
suma, não lhes é deixada espécie alguma de fé. Outros tomam o verbo
permanecer em sentido diferente, significando “estar apoiado” ou “agüentar-
se”. Mas a interpretação que tenho formulado é a mais correta.7
2. Se guardardes na memória ... a menos que em vão.8 Estas duas
sentenças condicionais trazem em si uma mordacidade cortante. Na
primeira, ele reprova a indiferença e leviandade deles, porque uma queda tão
súbita quanto a deles era prova de que jamais haviam entendido o que lhes
fora ensinado, ou que seu conhecimento não passava de algo frágil, sem
resistência, desvanecendo logo depois. Na segunda sentença, ele os exorta a
que empregassem seu tempo e gastassem seu fôlego declarando seu
compromisso de fidelidade a Cristo, caso não pretendessem conservar esta
doutrina fundamental.9
3. Porque, antes de tudo vos entreguei. Ele agora confirma o que
afirmara previamente, mostrando que a ressurreição fora anunciada por ele,
e sendo ela de fato um dos elementos primordiais e fundamentais do
evangelho. “Antes de tudo”, diz ele, significando que ela é como o
fundamento que normalmente lançamos quando erguemos um edifício.
E ao mesmo tempo ele solidifica a autoridade de sua pregação,
acrescentando que não entregara outra coisa senão aquilo que havia
recebido. Porque ele declara que relatou não simplesmente o que outros lhe
contaram, mas também o que o Senhor pessoalmente lhe confiara.10 Pois a
palavra11 deve ser explicada em concordância com a conexão da passagem.
Ora, é dever de um apóstolo não anunciar nenhuma outra coisa senão o que
ele recebeu do Senhor, visto ser ele diretamente [demanu, quod aiunt, in
manum – corpo a corpo12] responsável por transmitir [administret] à Igreja a
autêntica Palavra de Deus.
Que Cristo morreu etc. Agora o leitor pode ver mais nitidamente de que
fonte ele a recebeu, porquanto cita as Escrituras como evidência. Em
primeiro lugar, ele faz menção da morte de Cristo, e inclusive de seu
sepultamento, para que pudéssemos chegar à conclusão de que Cristo que,
em ambos os estágios, se assemelhou a nós; o mesmo se aplica em
referência a sua ressurreição. Portanto, ele mesmo participou da morte
juntamente conosco para que pudéssemos ressuscitar juntamente com ele.
A realidade da morte que ele participou conosco é realçada ainda mais
vividamente ao mencionar também seu sepultamento. Além disso, a morte e
a ressurreição de Cristo foram preditas em muitas passagens da Escritura,
mas em nenhuma mais claramente13 do que em Isaías 53, Daniel 9.26 e Salmo
22.
Por nossos pecados. Significa que ele tomou sobre si nossa maldição, a
fim de redimir-nos dela. Pois o que mais era a morte de Cristo senão um
sacrifício para expiar nossos pecados; um castigo satisfatório [poena
satisfactoria] por meio do qual somos reconciliados com Deus; a
condenação de alguém para a aquisição de nosso perdão? Ele fala também
nos mesmos termos em Romanos 4.25; ali, porém, em contrapartida, ele diz
que a ressurreição produz outro efeito, a saber: nela se nos confere justiça.
Porque, como o pecado foi destruído pela morte de Cristo, assim a justiça
foi adquirida por sua ressurreição. Esta distinção deve ser cuidadosamente
observada para que saibamos o que esperar da morte de Cristo, e o que
esperar de sua ressurreição. Finalmente, quando outras passagens da
Escritura faz alusão somente à sua morte, devemos entender que, em tais
casos, sua ressurreição está inclusa em sua morte; mas quando são
mencionadas separadamente, o ponto de partida [initium] de nossa
salvação se encontra em sua morte, como vemos aqui, e sua consumação
[complementum] se encontra em sua ressurreição.
5. E que foi visto por Cefas. Ele agora cita testemunhas oculares
(αὐτόπτας), como são chamadas em Lucas [1.20], que viram o cumprimento
do que as Escrituras predisseram sucederia. Entretanto, ele não fornece uma
lista completa, porquanto omite as mulheres. Portanto, quando ele diz que
antes de todos apareceu a Pedro, devemos entender que ele [Pedro] é o
primeiro entre os homens, de modo que a afirmação de Marcos [16.9] de que
Jesus apareceu primeiro a Maria não é de forma alguma inconsistente.
Todavia, como pode ele dizer que Jesus apareceu aos doze, quando só
ficaram onze deles após a morte de Judas? Crisóstomo é de opinião que isso
aconteceu após Matias ter sido eleito em seu lugar. Outros preferem corrigir
a expressão, considerando-a como se fosse um equívoco.14 Mas quando
compreendemos que foi pela ordenação do próprio Cristo que doze entre
eles fossem separados, mesmo que um deles fosse suprimido da lista, não
nos causa estranheza que o termo fosse conservado. Foi pela mesma razão
que um grupo de homens em Roma foi denominado Centumviri [Os Cem],15
quando de fato eram em número de cento e dois,16 pois o uso da designação
persistira também ali. Portanto, devemos simplesmente considerar os doze,
aqui, no sentido de os apóstolos escolhidos.
Não está muito claro quando se deu essa aparição a “mais de
quinhentos”. A única possibilidade é que essa grande multidão estivesse
reunida em Jerusalém, quando ele se lhes manifestou. Pois Lucas [24.33] fala
em termos gerais de discípulos que se encontravam reunidos com os onze,
mas não especifica seu número. Crisóstomo o aponta para a ascensão, e
explica ἐπάνω como “do alto”.17 Isso certamente poderia ter acontecido
depois da ascensão, em vista do fato de que Paulo nos diz que ele [Jesus]
apareceu a Tiago sozinho.
Pela expressão, por todos os apóstolos, entendo não só os doze, mas
também os discípulos a quem Jesus confiara a tarefa de pregar o
evangelho.18 À luz do fato de que nosso Senhor pretendia que sua
ressurreição contasse com muitas testemunhas oculares [Lc 1.1], que
falassem dela mais e mais, devemos, pois, ter em mente que nossa fé nela
deve ser a mais sólida possível. E visto que os apóstolos proclamavam a
ressurreição de Cristo a partir do fato de haver ele aparecido a muitos, ele
então realça que esta não foi nenhuma ressurreição simbólica, e, sim, uma
ressurreição genuína e física [naturalem], já que nossos olhos não podem
ser testemunhas de uma ressurreição espiritual.
8. Depois de todos, apareceu também a mim, como um nascido fora
do devido tempo. Ele agora se inclui no número das outras testemunhas,
pois Cristo se revelou a ele também, vivo, e revestido de glória.19 Uma vez
que esta aparição não foi fruto de alguma alucinação, ela veio a ser
igualmente valiosa20 para o fortalecimento da fé na ressurreição; e este é o
uso que Paulo faz deste argumento em Atos 26.8.
Visto, porém, que era importantíssimo que sua autoridade recebesse o
maior peso possível entre os coríntios, ele insere, de passagem, algo de
grande relevância em seu próprio favor. Ele, porém, o suaviza de tal forma
que, embora estar apresentando uma fortíssima reivindicação em seu favor,
contudo se mostra, ao mesmo tempo, muitíssimo modesto. Portanto, no
caso de alguém o desafiar, dizendo: “Quem és tu para que te demos algum
crédito?”, ele espontaneamente reconhece sua própria indignidade.
Primeiramente, ele se compara a uma criança prematura, e (em minha
opinião) esta é uma referência a sua súbita conversão. Pois assim como os
bebês não deixam o ventre materno até que tenham cumprido nele o
período determinado de tempo, e estejam plenamente formados, assim
nosso Senhor seguiu uma escala adequada ao criar, adotar e formar os
apóstolos. Paulo, em contrapartida, fora retirado do ventre materno antes
que a fagulha vital21 tivesse tempo de ser adequadamente concebida nele.
Há quem considere o termo abortivo, como empregado no sentido de
posthumous.22 A primeira idéia, porém, é muito mais adequada, visto que ele
foi gerado, nasceu e se fez adulto num só momento. Além disso, esse
nascimento abortivo torna a graça de Deus muito mais evidente no caso de
Paulo do que se ele tivesse crescido em Cristo, paulatinamente, até chegar à
maturidade.
9. Porque sou o menor. Não é certo se seus inimigos se expressavam
assim às pessoas com o intuito de enfraquecer sua confiança nele, ou se ele
procedeu assim numa confissão inteiramente extraída de seu próprio
arbítrio. Quanto a mim, embora eu não tenha dúvida de que ele em todo
tempo estava espontâneamente, e também alegremente, disposto a aviltar-
se, para que pudesse magnificar a graça de Deus, contudo suspeito que
nestes caso ele queria obviar calúnias. Em Corinto havia pessoas que se
ocupavam de minar sua autoridade, falando maliciosamente contra ele.
Podemos deduzir tal fato das muitas passagens precedentes, e também de
uma comparação que ele introduz um pouco mais adiante, o que jamais faria
se não fora forçado a assim fazer pela perversidade de algumas pessoas. Ele
poderia ter posto assim: “Insultai-me tanto quanto vos agrade, eu não me
importarei de ser lançado mesmo abaixo do próprio pó; não me importarei
de ser tido na conta de nulidade,23 para que a benevolência divina para
comigo esteja em muito maior evidência. Portanto, que eu seja considerado
como o menor dos apóstolos; na verdade tenho consciência de nem mesmo
merecer tal distinção. Pois que méritos tive eu para que fosse digno24 de tal
honra? Quando costumava perseguir a Igreja de Deus, o que então merecia?
Mas não há razão para me julgardes de acordo com minha própria
dignidade, pois o Senhor não olhou para o que eu era, porém, por sua graça,
me transformou completamente em outro homem.”
Eis a suma de tudo: Paulo não recusa ser o menos digno de todos, na
verdade quase uma nulidade, contanto que, ao ser assim considerado, não
constituísse, no mínimo grau, um obstáculo ao seu ministério, e nem
prejudicasse absolutamente sua doutrina. Ele se sente plenamente satisfeito
em seu íntimo ao ser considerado indigno de qualquer honra, contanto que
pudesse enaltecer seu apostolado em razão da graça que lhe fora concedida.
E Deus certamente não o adornou com dons tão excelentes para que sua
graça fosse sepultada ou negligenciada; seu propósito, porém, era tornar o
apostolado de Paulo mais eminente e mais confiável possível.
10. E sua graça... não foi em vão. Os que se põem o livre-arbítrio em
oposição à graça de Deus, temendo que não venhamos atribuir-lhe
totalmente todo o bem que fizermos, torcem estas palavras para que se
ajustem a sua interpretação, como se o apóstolo estivesse se vangloriando
de haver, por seus próprios esforços, cuidado para que a graça em seu favor
não fosse mal orientada. Conseqüentemente, chegaram à conclusão de que a
graça é certamente oferecida por Deus, mas o uso correto dela é algo que o
homem tem em seu próprio poder, e é dele a responsabilidade de obtê-la,
mantendo-a latente. Não obstante, nego que estas palavras do apóstolo
dêem qualquer apoio a seu ponto de vista equivocado, porque neste
versículo ele não está reivindicando para si absolutamente nada, como se
tivesse feito, independentemente de Deus, algo louvável. Então, o que ele
quer dizer? A fim de não dar a impressão de fazer vã ostentação, ele declara
que está afirmando aquilo que é público, para quem quiser ver. Finalmente,
admitido que estas palavras revelam que o apóstolo não fazia mau uso da
graça de Deus, e não a tornou sem efeito por sua própria negligência,
todavia sou de opinião que não temos nenhuma justificativa, por essa
conta, para dividir entre ele e Deus o louvor que se deve atribuir
exclusivamente a Deus, diante do fato de que Deus nos outorga não só a
capacidade de fazer o bem, mas também a inclinação e a habilidade.
Trabalhei muito mais. Alguns atribuem esta expressão aos fanfarrões25
que, ao denegrirem a pessoa do apóstolo, estavam promovendo a si
próprios e a seus próprios interesses futuros, porque, segundo este ponto
de vista, não seria digno de Paulo querer entrar em competição com os
apóstolos. Entretanto, quando se compara com os apóstolos, ele o faz
motivado por pessoas ímpias que tinham o hábito de confrontá-lo com eles
a fim de rebaixar sua reputação, segundo vemos na Epístola aos Gálatas
[1.11]. Daí, é bem provável que ele esteja falando dos apóstolos, quando
avalia seus próprios esforços acima dos esforços deles. E a plena verdade é
que ele se sobressaía nas demais áreas, não só em suportar as muitas
dificuldades, em passar por muitas provas e experiências, em abster-se de
muitas coisas para cujo uso ele tinha toda a liberdade, mas porque o Senhor
estava coroando seus esforços com uma maior medida de sucesso.26 Pois
considero labor no sentido de os frutos que deviam ser vistos em seu
trabalho.
Não eu, mas a graça de Deus. Ao omitir o relativo [que], a Vulgata deu
aos que não conhecem o grego uma oportunidade de se cometer equívoco.
Porquanto ela traz: “Não eu, mas a graça de Deus comigo”,27 o que leva à
conclusão de que só a metade do crédito é atribuído a Deus, enquanto que a
outra metade é atribuída ao homem. Portanto, seu raciocínio é que o
apóstolo não agia de moto próprio, porquanto nada poderia fazer sem a
graça cooperante,28 enquanto que, ao mesmo tempo, seu próprio livre-
arbítrio e seus próprios esforços tinham sua própria participação na ação.
Suas palavras, porém, vibram uma nota completamente diferente, pois
havendo dito que algo lhe era aplicável, ele corrige isso e o transfere
inteiramente para Deus; inteiramente, insisto, e não apenas uma parte; pois
ele afirma que, qualquer coisa que fosse como que feita por ele, na verdade
era totalmente obra da graça. Este é deveras um versículo notável, não só em
sua função de reduzir a pó o orgulho humano, mas também em pôr em
relevo como a graça divina age em nós. Porque, como se tivesse
indevidamente feito dele mesmo o autor de algo bom, o apóstolo corrige o
que dissera, e declara que a graça de Deus é a causa eficiente de tudo. Não
devemos imaginar que ele aqui está meramente simulando humildade.29 É
de bom grado que ele fale assim e por saber que essa é a plena verdade.
Devemos, pois, aprender que o único bem que temos é aquele que o Senhor
nos concede graciosamente; que o único bem que praticamos é aquele que
ele produz em nós [Fp 2.13]; que nada fazemos por nós mesmos, mas que só
agimos quando somos influenciados; em outros termos, quando estamos
sob a direção e influência do Espírito Santo.

11. Portanto, seja eu, ou [sejam] eles, assim pregamos, e assim crestes.
12. Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como é que alguns dentre
vós afirmam que não há ressurreição de mortos?
13. Mas, se não há ressurreição dos mortos, então Cristo não ressuscitou;
14. e, se Cristo não ressuscitou, então é vã nossa pregação, e vã também vossa fé.
15. Sim, e ainda somos tidos por falsas testemunhas de Deus, porque testificamos de
Deus que ele ressuscitou a Cristo, a quem ele não ressuscitou, se é certo que os mortos
não ressuscitam.
16. Porque, se os mortos não ressuscitam, então Cristo não ressuscitou;
17. e, se Cristo não ressuscitou, é vã vossa fé, e ainda permaneceis em vossos pecados.
18. Então os que também adormeceram em Cristo pereceram.
19. Se temos esperança em Cristo somente nesta vida, somos os mais miseráveis de
todos os homens.

11. Sive ego igitur, sive illi, ita prædicamus, et ita credidistis.
12. Si autem Christus prædicatur excitatus a mortuis, quomodo dicunt quidam,
mortuorum resurrectionem non esse?
13. Si autem mortuorum resurrectio non est, neque Christus resurrexit.
14. Quodsi Christus non resurrexit, inanis igitur est prædicatio nostra, inanis et fides
vestra.
15. Invenimur etiam falsi testes Dei, quia testati sumus a Deo, quod suscitaverit Christum;
quem non suscitavit, siquidem mortui non resurgunt.
16. Si enim mortui non resurgunt, neque Christus resurrexit.
17. Si autem Christus non resurrexit, vana est fides vestra: adhuc estis in peccatis vestris.
18. Ergo et qui obdormierunt in Christo perierunt.
19. Quodsi in hac vita solum speramus in Christo, miserrimi sumus omnium hominum.

11. Seja eu, ou [sejam] eles. Havendo se comparado com os demais


apóstolos, ele agora se põe lado a lado com eles, e vice-versa, em
concordância com o tema de sua pregação. É como se quisesse dizer: “Não
estou falando de mim mesmo, mas todos nós temos ensinado como se fosse
uma só boca, e ainda continuamos a ensinar assim.” Pois o verbo
κηρύσσομεν [pregamos] está no tempo presente, indicando ação contínua ou
persistência no ensino.30 “Se, pois, ele for diferente, nosso apostolado é sem
efeito; não só isso, assim crestes; vossa religião, pois, se pulveriza .”
12, 13. Ora, se Cristo. Ele então começa provando a ressurreição de
todos nós pelo prisma da ressurreição de Cristo. Pois uma inferência mútua
e recíproca é bem estabelecida de um lado e do outro, tanto afirmativa
quanto negativa. Em primeiro lugar, se considerarmos “de Cristo para nós”,
então temos: “Se Cristo ressuscitou, então também ressuscitaremos. Se
Cristo não ressuscitou, então também não ressuscitaremos.” Se mudarmos a
ordem, “de nós para Cristo”, teremos: “Se ressuscitarmos, é porque Cristo
ressuscitou. Se não ressuscitarmos, é porque também Cristo não
ressuscitou.”
Agora tomemos essas partes em sua ordem. Este é o raciocínio por trás
do argumento que é extraído do termo “de Cristo para nós”: “Cristo não
morreu nem ressuscitou por sua própria causa, mas por nossa causa;
portanto, sua ressurreição é a substância [hypostasis]31 da nossa; e o que foi
efetuado nele deve concretizar-se em nós também.” A forma negativa, por
outro lado, é a seguinte: “Do contrário, não haveria qualquer razão ou
propósito para sua ressurreição, visto que o resultado dela não deve ser
buscado em sua própria pessoa, mas em seus membros.”
Em contrapartida, o raciocínio por trás da conclusão precedente, do qual
se deve extrair o argumento “de nós para ele”, é o seguinte: “A ressurreição
não é um fato natural, e não se origina de nenhuma outra fonte, senão
unicamente de Cristo. Visto que em Adão morremos, somente em Cristo é
que voltamos à vida. Segue-se deste fato que sua ressurreição é a base da
nossa; portanto, se a sua for eliminada, então não nos ficará nada.”32 O
raciocínio por trás da conclusão negativa já foi apresentado; porque, uma
vez que ele ressuscitou unicamente por nossa causa, então, se não houver
benefício algum para nós,33 não haverá também nenhuma ressurreição de
sua parte.
14. Então é vã nossa pregação, não simplesmente porque ela inclua um
certo elemento de falsidade, mas porque é indigna e um completo logro.
Pois o que fica se Cristo foi devorado pela morte; se foi aniquilado; se
sucumbiu-se sob a maldição do pecado; se, finalmente, ficou cativo de
Satanás? Numa palavra, uma vez que o princípio fundamental foi removido,
tudo o que resta será de nenhum valor.
Pela mesma razão ele adiciona que a fé deles seria inútil; pois que
solidez de fé pode haver, quando nenhuma esperança de vida vigora? Mas
que na morte de Cristo, considerada em si mesma,34 nada descobrimos
senão motivo para desespero; pois aquele que foi completamente vencido
pela morte não pode efetuar a salvação de outros. Lembremo-nos, pois, que
o principal fundamento de todo o evangelho é a morte e ressurreição de
Cristo; de sorte que devemos dedicar especial atenção a ambas, caso
queiramos fazer bom e normal progresso no evangelho, ou, antes, se não
quisermos permanecer estéreis e infrutíferos [2Pe 1.8].
15. Somos ainda tidos por falsas testemunhas. Os outros resultados
negativos que ele já relatou são certamente muitíssimo sérios, no tocante a
nós, ou, seja: que a fé desvanece; que todo o ensino do evangelho é inútil e
sem valor; que somos privados de toda esperança de salvação. Mas também
não é uma questão trivial e sem importância o fato de os apóstolos
passarem por homens que estiveram enganando o mundo com suas
mentiras; pois tal coisa faria Deus repelível e o revelaria da pior forma
possível.
Podemos tomar a frase, falsas testemunhas de Deus, de duas formas: ou
que estavam mentindo ao fazerem mau uso do nome de Deus, simplesmente
como pretexto; ou que o povo descobriu que eram mentirosos quando
testificavam quanto ao que haviam recebido de Deus. A segunda exerce um
apelo mais forte sobre mim, visto ser uma questão mais grave do que a
outra; e Paulo já havia falado de como afetava os homens.35 Ele agora ensina
que, se a ressurreição de Cristo for negada, então Deus será culpado de
mentir na pessoa de testemunhas que foram apresentadas e contratadas por
ele.36 A razão acrescida também concorda muito com isso, visto que fizeram
falsa asseveração, não por sua própria iniciativa, mas pela de Deus.
Estou ciente de haver os que explicam a preposição κατα de forma
diferenciada. A Vulgata a traduz adversus, contra; enquanto Erasmo a traduz
de, concernente.37 Visto, porém, que ela em grego também produz o sentido
de από, ou, seja, de, este significado pareceu-me estar em mais harmonia com
a intenção do apóstolo. Porquanto ele aqui não está tratando da reputação
humana (como já afirmei), mas do fato de Deus ser exposto à acusação de
mentir, visto que aquilo que estavam proclamando tinha sua origem nele.
17. E ainda permaneceis em vossos pecados. Embora Cristo tenha feito
expiação por nossos pecados, de modo que não são mais levados em conta
para acusação contra nós ante o tribunal de Deus, e tenha crucificado nosso
velho homem para que suas paixões não mais reinassem em nós, e
finalmente ele, por meio de sua própria morte, tenha destruído o poder da
morte e do próprio diabo [Hb 2.14], contudo não haveria nenhuma virtude
nesses fatos caso ele não emergisse vitorioso por meio de sua ressurreição.
Assim, caso a ressurreição fosse anulada, a tirania do pecado seria outra vez
estabelecida.
18. Então os que adormeceram. Tendo em vista provar que, se a
ressurreição de Cristo fosse eliminada, nossa fé seria baldada e o
Cristianismo38 não passaria de uma ilusão, então ele disse que a existência
[humana] permaneceria em seus pecados; mas como há uma ilustração mais
clara desta matéria a ser vista nos mortos, ele então faz alusão a eles como
um exemplo. “Que vantagem teriam os mortos que uma vez foram cristãos?
Portanto, nossos irmãos que já enfrentaram a morte viveram na fé em Cristo
sem nenhuma objetividade.” Mas se se admitir que a essência da alma é
imortal, então este argumento, à primeira vista, parece conclusivo; porque
mui prontamente se replicará que os mortos não pereceram, visto que suas
almas continuam existindo num estado de separação de seus corpos. Daí,
alguns fanáticos concluem, à luz deste versículo, que não pode haver vida
alguma no período intermediário entre a morte e a ressurreição; mas não é
difícil refutar tal frenesi.39 Porque, embora as almas dos mortos estejam
agora vivas e felizes no bendito repouso, todavia a plenificação de sua
felicidade e consolação depende unicamente da ressurreição; pois há boas
razões para que estejam aguardando aquele dia quando serão convocados a
tomarem posse do reino de Deus. Daí, no que tange à esperança dos mortos,
tudo se desvanecerá, a menos que aquele dia chegue logo, ou chegue mais
tarde.
19. Se esperamos em Cristo somente nesta vida. Aqui temos outro
absurdo, não só pelo fato de estarmos desperdiçando baldadamente nosso
tempo e esforço, teimando em crer, uma vez que o benefício derivado de
nossa fé perece com a morte, mas também pelo fato de ser preferível não
crermos de forma alguma, pois os incrédulos estariam numa posição muito
mais consistente e muito mais desejável.
Esperar “somente nesta vida”, aqui, significa restringir a este mundo os
benefícios derivados de nossa fé, de modo que esta fé nada vê nem se
estende para além dos limites desta presente vida. Esta afirmação mostra
ainda mais claramente que os coríntios se deixaram influenciar por alguma
noção equivocada e fantasiosa de que a ressurreição era de caráter
simbólico, como aquela defendida por Himeneu e Fileto, naquele tempo,
como se o fruto final de nossa fé estivesse diante de nós apenas nesta vida
[2Tm 2.17, 18]. Porque, visto que a ressurreição é a completação de nossa
salvação, e como todas as bênçãos, por assim dizer, visam a um alvo mais
além,40 aquele que afirma que nossa ressurreição é assunto do passado não
nos deixa nada que valha a pena esperar depois da morte. Seja como for,
esta passagem não oferece qualquer apoio ao despropósito daqueles que
imaginam que nossas almas adormecem juntamente com nossos corpos até
o dia da ressurreição.41 Pois replicam que, se nossas almas continuam vivas
depois de serem separadas de nossos corpos, então Paulo não teria dito
que, se a ressurreição fosse eliminada, teríamos esperança somente nesta
vida, visto que nossas almas teriam em si alguma sorte de felicidade. Minha
resposta a esta questão é que o apóstolo não tinha em mente os campos
Elíseos42 nem algum outro disparatado absurdo desse gênero, mas ele
aponta para o indubitável fato de que os cristãos direcionam sua esperança
inteiramente para o dia do Juízo Final; que as almas crentes, hoje, também se
regozijam precisamente com a mesma expectativa; e, por essa razão, tudo
estaria perdido para nós se uma segurança dessa sorte nos fosse provada
ser falsa.
Por que, pois, nos disse ele que seríamos os mais miseráveis de todos
os homens, como se a sorte de um cristão fosse pior que a de um incrédulo?
“Tudo sucede igualmente a todos... ao justo e ao ímpio”, diz Salomão [Ec
9.2]. Replico que todos os homens, sejam eles bons ou maus, estão
indubitável e igualmente expostos às mesmas calamidades e experimentam
as mesmas frustrações e os mesmos infortúnios; entretanto, há duas razões
por que os cristãos sofrem mais, em todos os tempos; e há ainda outra
razão que pertenceu peculiarmente ao tempo de Paulo.
A primeira razão consiste em que, embora o Senhor pudesse com mais
freqüência castigar também os incrédulos com seus azorragues, e começar a
exercer seus juízos contra eles, contudo, particularmente, ele cuida de afligir
seu próprio povo, e isso de diferentes formas. Ele assim procede,
primeiramente, porque aqueles a quem ele ama também os disciplina; e, em
segundo lugar, a fim de treiná-los na paciência, para provar sua obediência,
ele os prepara, paulatinamente, pelo caminho da cruz, para uma genuína
renovação. Seja como for, o seguinte fato sempre se prova verdadeiro no
tocante aos crentes: “Pois chegou a hora de começar o julgamento pela casa
de Deus” [Jr 25.29; 1Pe 4.1743]; ainda: “Somos considerados como ovelhas
para o matadouro” [Sl 44.22]; e mais: “Porque já morrestes, e vossa vida está
escondida com Cristo em Deus” [Cl 3.3]. Conquanto isto, as circunstâncias
dos incrédulos são geralmente mais afortunadas, porque o Senhor os
engorda como suínos para o dia da matança.
A segunda razão consiste em que os crentes, ainda que possuam em
abundância riquezas e bens de toda sorte, todavia nem tudo corre bem em
sua esfera, e nem se saciam festivamente. Numa palavra, o mundo não os
satisfaz, como se dá com os incrédulos; ao contrário, seguem seu caminho
com corações ansiosos, suspirando todo o tempo [2Co 5.2], em parte
porque são cônscios de suas próprias debilidades, e em parte porque
sentem saudade da vida por vir. Os incrédulos, em contrapartida, vivem
completamente absortos pelos deleites intoxicantes desta presente vida.44
A terceira razão, como disse antes, a qual era peculiar ao próprio tempo
de Paulo, consiste em que o nome cristão era, naquele tempo, algo tão
odioso e desacreditado, que ninguém selaria seu compromisso de fidelidade
a Cristo sem se expor a imediatos riscos de morte. Portanto, Paulo tem boas
razões para dizer que os cristãos seriam “os mais miseráveis de todos os
homens” se sua confiança se limitasse a este mundo.

20. Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, e veio a ser as primícias dos que
dormem.
21. Porque, assim como a morte veio por [meio de] um homem, também por [meio de]
um homem veio a ressurreição dos mortos.
22. Pois assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão
vivificados.
23. Mas cada um em sua própria ordem: Cristo, as primícias; então os que são de Cristo,
em sua vinda.
24. Então virá o fim, quando tiver entregue o reino a Deus, sim, ao Pai; e quando tiver
abolido todo governo e toda autoridade e poder.
25. Porque importa que ele reine, até que ponha todos seus inimigos debaixo de seus
pés.
26. O último inimigo a ser destruído é a morte.
27. Porque ele pôs todas as coisas debaixo de seus pés. Mas quando diz que todas as
coisas lhe estão sujeitas, é evidente que excetua aquele que lhe sujeitou todas as
coisas.
28. E quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então o Filho também se sujeitará
àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.

20. Nunc autem Christus resurrexit a mortuis, primitiæ eorum qui domierunt, fuit.
21. Quandoquidem enim per hominem mors, etiam per hominem resurrectio mortuorum.
22. Quemadmodum enim in Adam omnes moriuntur, ita et in Chiristo omnes
vivificabuntur.
23. Unusquisque autem in proprio ordine. Primitiæ Christus, deinde, qui Christi erunt in
adventu ipsius.
24. Postea finis, quum tradiderit regnum Deo et Patri, quum aboleverit omnem
principatum, et omnem potestatem, et virtutem.
25. Oportet enim ipsum regnare, donec posuerit omnes inimicos sub pedes suos.
26. Novissimus destruetur hostis mors.
27. Omnia enim subjecit sub pedes eius: quum omnia dixerit, Clarum est, quod omnia
sunt subjecta præter eum, qui omnia illi subjecit.
28. Quum autem subjecerit illi omnia, tunc et ipse Filius subjicietur ei, qui omnia illi
subjecit, ut sit Deus omnia in omnibus.

20. Mas de fato Cristo ressuscitou. Uma vez demonstrado como tudo
ficaria completamente transtornado caso neguemos a ressurreição dos
mortos, o apóstolo agora toma como certo o que havia plenamente
comprovado antes, a saber: que Cristo ressuscitou, e acrescenta que ele é as
primícias,45 uma metáfora emprestada (ao que parece) da antiga prática sob a
lei. Pois assim como nas primícias toda a colheita anual era consagrada,
também o poder da ressurreição de Cristo se estende a todos nós; ou, se se
preferir uma explicação mais simples, que nele colheram-se os primeiros
frutos da ressurreição. Entretanto, eu mesmo prefiro entender o versículo
neste sentido, ou, seja: que o descanso dos mortos o seguirá, da mesma
maneira como sucedia com as primícias de toda a colheira;46 e isso é
confirmado pelo próximo versículo.
21, 22. Assim como a morte veio por [meio de] um homem. O ponto a
ser comprovado é este: que Cristo é as primícias e, em contrapartida, que ele
não ressuscitou dentre os mortos como um mero indivíduo. Ele produz sua
prova partindo dos contrários; visto que a morte não provém da natureza,
mas em conseqüência do pecado humano. Portanto, assim como Adão não
provou a morte só para si, senão que ela atingiu a todos nós, segue-se que
Cristo de forma semelhante, que é o antítipo,47 não ressuscitou
exclusivamente para si. Porque ele veio restaurar tudo quanto foi danificado
em Adão.
Deve-se observar, contudo, a força do argumento, pois ele não discute à
guisa de similitude, nem à guisa de exemplo, senão que se vale de causas
opostas com o propósito de provar efeitos opostos. A causa da morte é
Adão, e nós morremos nele; portanto, Cristo, cuja ofício é restaurar o que
perdemos em Adão, é para nós a causa da vida; e sua ressurreição é a
substância [hypostasis] e penhor de nossa própria [ressurreição]. E assim
como o primeiro [Adão] é o originador da morte, assim o último [Cristo] é o
originador da vida. No quinto capítulo de Romanos, ele usa o mesmo
contraste, mas com esta diferença: ali ele está tratando da vida e da morte
espirituais; aqui, porém, o ponto em questão é a ressurreição do corpo, a
qual é a recompensa da vida espiritual.
23. Cada um em sua própria ordem. Aqui temos uma antecipação de
uma dúvida que poderia ser formulada: “Se a vida de Cristo”, alguém poderia
perguntar, “alonga a nossa com ela, por que não temos a menor sombra de
evidência visível deste fato? Em vez disso, embora Cristo tenha saído vivo
do túmulo, nós nos decompomos nele.” A resposta do apóstolo é que Deus
designou outro meio de ordenar as coisas. Portanto, que nos seja suficiente
o fato de agora termos em Cristo as primícias,48 mas o tempo de nossa
ressurreição será no tempo de sua vinda.49 Pois nossa vida deve ainda
continuar escondida com Cristo [Cl 3.3, 4], porque ele ainda não se
manifestou. Portanto, seria muitíssimo errôneo querermos antecipar o dia
da revelação de Cristo.
24. Então virá o fim, quando ele tiver entregue. Ele põe um freio à
impaciência humana, ao asseverar que o tempo não seria plenificado para
nossa nova vida50 até à vinda de Cristo. Visto, porém, que este mundo é
semelhante a um mar tormentoso, no meio do qual somos constantemente
arremessados de um lado paro o outro, e visto que nossa porção é tão
incerta, ou antes cheia de lutas, e visto que tudo está sujeito a mudanças
súbitas, as mentes frágeis são precipitadas a um estado de agitação por
estas coisas. Por isso o apóstolo agora chama nossa atenção para aquele
dia, dizendo que, então, tudo será posto em ordem. O fim, pois, em outros
termos, será a meta final de nosso percurso, o céu de paz, a situação imune
de todo gênero de mudanças. Ao mesmo tempo nos adverte a que devamos
esperar por esse final, porquanto não é justo que sejamos coroados no meio
da trajetória.
Como Cristo entregará o reino ao Pai será explicado logo em seguida.
Ao dizer “a Deus o Pai”, isto pode ser considerado de duas formas: ou que
Deus o Pai é chamado o Deus e Pai de Cristo, ou que o título Pai é
adicionado à guisa de explicação. No segundo caso, a conjunção et (e)
significará isto é. Quanto ao primeiro, não há nada de incongruente ou
inusitado em dizer que Cristo está em sujeição a Deus no que se refere a sua
natureza humana.
Quando tiver abolido todo governo. Há quem considere esta expressão
como uma referência às potências que se põem em oposição ao próprio
Cristo. Pois quem assim pensa a associa ao conteúdo do próximo versículo:
“até que haja posto todos seus inimigos debaixo de seus pés.” Entretanto,
esta sentença reflete o que ele disse no início do versículo, ou, seja: que
Cristo não entregará o reino antes do fim. Daí, não há razão para limitarmos
esta sentença da forma como essas pessoas presumem. Por isso, procuro
explicá-la de uma forma geral, e entendo o termo como indicativo dos
poderes legítimos que foram ordenadas por Deus [Rm 13.1].
Em primeiro lugar, o que encontramos nos profetas sobre o
escurecimento do sol e da lua [Is 13.10; Ez 32.7], significa que somente a
glória de Deus resplandece; embora o cumprimento já teve início sob o
reinado de Cristo, não obstante não se consumará até que tudo esteja
plenamente cumprido naquele dia; mas então toda grandeza virá a baixo [Lc
3.5], para que a glória de Deus seja o único resplendor. Além do mais,
estamos cientes de que todos os principados e honras terrenos estão
conectados exclusivamente com a manutenção da presente vida, e,
conseqüentemente, são uma parte do mundo. Daí se segue que são de
caráter temporal.
Portanto, visto que o mundo caminha para um final, assim também será
com a sociedade, com a magistratura, com as leis, com as distinções
hierárquicas, com os graus de honra e tudo o mais desse gênero. O servo
não mais será diferente de seu senhor; o rei, do homem ordinário; e o
magistrado, do cidadão comum. Além disso, haverá então um fechar de
cortinas tanto para o governo que os anjos exercem no céu, quanto para os
ofícios dos ministros e supervisores das igrejas, a fim de que unicamente
Deus exerça seu próprio poder e domínio, pessoalmente, e não mais pelas
mãos de homens e anjos. Naturalmente, ainda haverá anjos, e eles também
manterão sua superioridade [excellentia]. Os justos também resplandecerão,
cada um segundo a medida da graça recebida. Os anjos, porém, renunciarão
o governo que agora exercem em nome e pela delegação divina. Os bispos,
os mestres e os profetas não mais desempenharão seus papéis, e
renunciarão o ofício que agora desempenham. Governo, autoridade e poder,
neste versículo, significam quase a mesma coisa; estas três palavras, porém,
se acham enfeixadas umas às outras com o fim de tornar seu significado
ainda mais pleno.
25. Porque importa que ele reine. O apóstolo mostra que ainda não
chegou o tempo de Cristo entregar o reino ao Pai, procurando enfatizar, ao
mesmo tempo, que o fim ainda não chegou, quando tudo será restaurado a
sua condição real e a um estado de paz, porquanto Cristo ainda não
subjugou todos seus inimigos. Mas tal deverá acontecer, visto que o Pai o
assentou a sua destra sob a condição de que ele não resigne a autoridade
que recebera até que todos sejam trazidos sob seu controle. Isto também foi
dito para que os crentes sejam consolados, de modo que sua impaciência
não cresça ante o fato de que o dia da ressurreição se faz tão demorado. Esta
declaração é tomada do Salmo 110.1.
Entretanto tudo indica que o apóstolo está se precavendo mais com a
palavra até do que sua simples e natural significação o requer. Pois neste
versículo o Espírito está anunciando, não o que ocorrerá após o fim, mas
somente o que tiver acontecido de antemão. Minha resposta a isso é que o
apóstolo não afirma que Cristo devolverá o reino ao Pai por isto estar
predito neste Salmo, mas porque ele fez uso da evidência do Salmo
simplesmente com o propósito de provar que ainda não chegou o dia para a
entrega do reino, porquanto Cristo terá ainda de enfrentar seus inimigos.
Finalmente, Paulo explica, de passagem, o que está implícito por “Cristo
assentado à destra do Pai”, porque, em vez dessa expressão metafórica, ele
meramente usa o verbo reinar.
26. O último inimigo ... a morte. Estamos cientes de que ainda há
muitos inimigos resistindo a Cristo e obstinadamente opondo-se a seu
reinado. A morte, porém, será o último inimigo51 a ser destruído, e assim
Cristo deverá continuar sendo o administrador do reino de seu Pai. Os
crentes devem, pois, criar coragem e não perder a esperança, até que todas
as coisas que devem vir antes da ressurreição realmente se concretizem.
Mas alguém poderia perguntar o que exatamente ele tem em mente ao
dizer que a morte será o último52 inimigo a ser destruído, quando já foi
destruída pela morte de Cristo, ou, sobretudo, por sua ressurreição, a qual é
a vitória sobre a morte e a conquista da vida? Minha resposta é que ela já foi
destruída de uma maneira tal que não mais será fatal para os crentes, mas
não de maneira que não mais lhes cause sofrimento. É verdade que o
Espírito de Deus, que habita em nós, é vida; não obstante, ainda possuímos
um corpo mortal [1Pe 1.24]. A subsistência da morte, que ainda subsiste em
nós, um dia será exaurida, porém tal coisa ainda não se concretizou. Já
nascemos da semente incorruptível [1Pe 1.23], todavia a perfeição
[perfectionem] ainda não chegou a sua plenitude. Ou, convertendo a questão
em símile, a espada da morte, que penetra nosso coração, se acha no
momento embotada. Ela ainda fere, naturalmente, mas sem qualquer risco53
[fatal]; é verdade que morremos, porém, ao morrermos, entramos na [posse
da] vida. Finalmente, como Paulo ensina em Romanos [6.12-14] acerca do
pecado, devemos encarar a morte por este prisma, a saber, que ela
indubitavelmente habita em nós, todavia já não exerce mais domínio sobre
nós.
27. Ele pôs todas as coisas debaixo de seus pés. Há quem pense que
esta citação foi extraída do Salmo 8.7, e estou de pleno acordo com isso,
embora não seja fora de propósito dizer que esta é uma conclusão a que
Paulo chegou ao considerar a natureza do governo de Cristo. Sigamos,
contudo, a opinião mais geralmente aceita.
Paulo mostra, à luz deste Salmo, que Deus o Pai conferiu a Cristo o poder
sobre todas as coisas, porquanto lemos: “Puseste todas as coisas debaixo
de seus pés.” As palavras por si sós são suficientemente claras, não fossem
a existência de duas dificuldades. A primeira é que o profeta ali não está
falando só de Cristo, mas de toda a raça humana. A segunda é que, pela
expressão “todas as coisas”, ele quer dizer somente aquelas coisas que
servem ao propósito de beneficiar nossa existência física, como
encontramos em Gênesis 2.19.
A primeira dificuldade é facilmente resolvida, porque, visto que Cristo é
o primogênito de toda a criação [Cl 1.15] e o herdeiro de todas as coisas [Hb
1.2], Deus o Pai não concedeu à raça humana o uso de todas as coisas
criadas de maneira a interferir no poder primordial e, por assim dizer, o
senhorio legítimo permanecendo nas mãos de Cristo. Sabemos, além do
mais, que Adão perdeu o direito que lhe fora outorgado, de modo que não
mais podemos chamar coisa alguma de nossa, porque a terra – bem como
tudo o que nela existe – foi amaldiçoada, e é tão-somente por meio de Cristo
que recuperamos aquilo de que fomos despojados. Há, pois, plena
justificativa de esta afirmação – de que o Pai pôs todas as coisas debaixo de
seus pés – ser aplicada particularmente à pessoa de Cristo, visto que não
temos qualquer direito de posse senão nele. Pois como podemos ser
herdeiros de Deus a não ser que sejamos filhos? E por meio de quem somos
feitos seus filhos senão por meio de Cristo?
A solução para a segunda dificuldade é a seguinte – o profeta deveras faz
menção específica às aves do ar, aos peixes do mar e aos animais do campo,
porque esta espécie de senhorio é plenamente visível e perfeitamente óbvia.
Mas, ao mesmo tempo, esta afirmação geral abrange muito mais do que isso,
ou, seja: céu e terra, e tudo o que eles contêm. Ora, as coisas sujeitas devem
adequar-se à pessoa do governante, ou, seja, as condições delas devem
assemelhar-se e corresponder às dele. Contudo, Cristo não exige animais
para alimento, nem quaisquer outras coisas criadas para suprir alguma de
suas necessidades. Portanto, ele governa para que todas as coisas venham a
servir a sua glória. Visto que ele nos elegeu a fim de participarmos de seu
domínio, vemos claramente os resultados disso na forma de algo mais que
flui desse domínio, algo que tem uma aplicação mais ampla, como já me
referi.
Todas as coisas... exceto aquele que lhe sujeitou todas as coisas. Paulo
apresenta dois pontos: (1) que todas as coisas devem estar em sujeição a
Cristo, antes que ele devolva ao Pai sua soberania sobre o mundo; e (2) que
o Pai passou tudo às mãos do Filho, para manter a principal autoridade em
suas próprias mãos.
Segue-se do primeiro ponto que a hora do juízo final ainda não chegou; e,
do segundo, que Cristo é agora o Mediador entre nós e o Pai, a fim de nos
conduzir a ele no final. E assim o apóstolo prossegue imediatamente em
direção à conclusão de que “depois de todas as coisas estarem sujeitas ao
Filho, o próprio Filho se sujeitará ao Pai” (v. 28). É como se quisesse dizer:
“Aguardemos tranqüilamente até Cristo ser vitorioso sobre todos seus
inimigos e trazer-nos, juntamente com ele, sob a soberania de Deus, para
que o reino de Deus seja levado à plenificação em nós.”
Todavia, o que várias partes das Escrituras asseveram sobre a eternidade
do reino de Cristo parece estar em conflito com esta frase. Pois, como estas
afirmações se coadunam entre si? ou, seja: “o reino eterno de nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo” [2Pe 1.11] e “tornando-se obediente até à morte” [Fp
2.8]. Ao resolvermos este problema, veremos mais claramente o que Paulo
quis dizer. Antes de tudo, devemos observar que todo o poder foi conferido
a Cristo, quando ele se manifestou na carne. Tão imensa majestade não se
adequaria a um mero homem, não obstante o Pai o exaltou na mesma
natureza em que se humilhou, e lhe deu o nome diante do qual todo joelho
se dobrará etc. [Fp 2.8]. Além disso, devemos notar que ele foi designado
Senhor e supremo Rei a fim de tornar-se o Vice-Regente do Pai, por assim
dizer, no governo do mundo. Não é o caso, contudo, que ele faça todo o
trabalho enquanto o Pai não faz nada. (Pois, como tal poderia ser, visto que
ele é a sabedoria e o conselho de Deus, que ele é de uma só essência com o
Pai e que, portanto, é também Deus?) Mas a razão por que a Escritura dá
testemunho do fato de que Cristo agora detém a soberania sobre o céu e
terra em lugar do Pai é porque não podemos imaginar nenhum outro no
governo, no senhorio, na defesa, nem no papel de julgar os vivos e os
mortos, senão conservando nossos olhos fixos nele, e tão-somente nele.54
Naturalmente, estamos cônscios de que Deus é o Governante, porém seu
governo está incorporado no Cristo-Homem [sed in facie hominis Christi].
Mas Cristo devolverá, pois, o reino que recebeu, de modo a unir-se
plenamente a Deus.55 Não significa que Cristo abdicará do reino, mas que o
transferirá de uma forma ou de outra [quodammodo] de sua Humanidade
para sua gloriosa Deidade, porque então nos abrirá uma via de acesso, da
qual estamos agora privados em razão de nossas fraquezas. Desta forma,
pois, Cristo se sujeitará ao Pai, porque, quando o véu for descerrado,
veremos a Deus nitidamente, reinando em sua majestade,56 e a Humanidade
de Cristo não mais se interporá entre nós para privar-nos de uma visão de
menos distância de Deus.57
28. Para que Deus seja tudo em todos. Isso se dará com o diabo e com
os homens ímpios? Em hipótese alguma! – a menos, quem sabe, que
estejamos dispostos a tomar o verbo ser no sentido de “ser conhecido e ser
contemplado publicamente”. Nesse caso, o sentido seria: “Visto que o diabo
está agora lutando contra Deus; visto que os ímpios transtornam a ordem
por ele instituída, lançando-a no caos; visto que incontáveis coisas, que nos
são ofensivas, nos encaram de frente, dificilmente pode-se dizer que
certamente Deus será tudo em todos. Mas quando Cristo exercer o juízo que
o Pai lhe confiou, e subjugar a Satanás e a todos os desobedientes, então a
glória de Deus será visualizada na destruição deles. O mesmo se pode dizer
também com respeito às potências que são sacras e legítimas em seu
próprio caráter, pois em certo sentido elas nos impedem de visualizar a
Deus corretamente tal como ele é. Mas quando Deus estiver governando céu
e terra pessoalmente, sem qualquer mediação, nesse sentido ele será tudo; e,
conseqüentemente, ele estará finalmente em todos, não meramente em
todas as pessoas, mas igualmente em todas as criaturas.”
Esta é uma interpretação fiel,58 e já que concorda plenamente com o que
o apóstolo tinha em mente, estou disposto a aceitá-la. Todavia, não estará
fora de propósito se esta frase for tomada como uma referência exclusiva
aos crentes, em quem Deus já iniciou seu reino, e então o conduzirá à
plenitude, e isso de tal forma que lhe aderirão completamente.
Cada uma destas interpretações é por si só suficiente para repelir os
conceitos ímpios e despropositados nutridos por certos indivíduos que
fazem uso errôneo deste versículo com o intuito de provar suas conjeturas.
Há quem imagine que Deus será tudo em todos no sentido em que tudo se
desvanecerá e dissolverá em nada. Não obstante, o único significado que as
palavras do apóstolo produzem é que todas as coisas devem ser restauradas
à relação com Deus como seu único princípio e fim, para que estejam
estreitamente ligadas a ele. Outros inferem disso que o diabo e todos os
desobedientes serão salvos, como se Deus não devesse, na verdade, ser
melhor conhecido na destruição do diabo do que em fazer-se amigo dele, e
até mesmo em fazer-se um com ele. Assim vemos quão impudentes são os
homens perversos desse gênero, quando torcem este dito do apóstolo com
o fim de sustentarem suas próprias blasfêmias.

29. Doutra sorte, que farão os que se batizam pelos mortos, se absolutamente os mortos
não ressuscitam? Por que, pois, se batizam eles pelos mortos?
30. E por que estamos nós em perigo a toda hora?
31. Eu protesto, gloriando-me em vós, irmãos, por Cristo Jesus nosso Senhor, que a cada
dia eu morro.
32. Se, segundo o costume dos homens, lutei com feras em Éfeso, que proveito isso me
traz? Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã
morreremos.
33. Não vos enganeis: as más conversações corrompem os bons costumes.
34. Atentai para a justiça, e não pequeis; porque alguns ainda não têm conhecimento de
Deus; digo isto para vergonha vossa.

29. Quid alioqui facient qui baptizantur pro mortus, si omnino mortui non resurgunt? quid
etiam baptizantur pro mortuis?
30. Quid etiam nos periclitamur omni hora?
31. Quotidie morior per nostrarm gloriam, fratres, quam habeo in Christo Iesu Domino
nostro.
32. Si secundum hominem pugnavi ad bestias Ephesi, quid mihi prodest? edamus et
bibamus: cras enim moriemur.
33. Ne erretis: Mores honestos corrumpunt mala colloquia.
34. Evigilate juste, et ne peccetis: ignorantiam enim Dei quidam habent: ad pudorem
vobis incutiendum dico.

29. Doutra sorte, que farão? Uma vez mais, ele retrocede às seqüências
absurdas do erro sob o qual os coríntios estavam vivendo. No início ele
começou tratando dessas pretensões, porém introduziu ensino e
consolação, interrompendo por um pouco o fio do argumento; e agora o
retoma.
Em primeiro lugar, ele apresenta esta objeção: o batismo, que é recebido
por pessoas já consideradas mortas, será destituído de qualquer proveito,
se não há ressurreição. Antes de explicar este versículo, vale a pena refutar a
exposição costumeira, a qual é apoiada pela autoridade dos Pais, e desfruta
do assentimento de quase todos. Daí Crisóstomo e Ambrósio, seguidos de
outros, acreditam que, quando alguém era privado do batismo por morte
súbita, os coríntios tinham o hábito59 de substituir a pessoa viva pela do
falecido, a qual era batizada em seu túmulo. De fato eles não negam que tal
costume era uma perversão e estava saturado de superstição. No entanto,
dizem também que, para refutar os coríntios, o apóstolo confiava neste
argumento,60 ou, seja: que embora negassem a existência de uma
ressurreição, ao mesmo tempo declaravam que criam nela. Não obstante, de
minha parte, não posso de modo algum me persuadir a crer nisso,61 pois é
inacreditável que os que negavam a existência de uma ressurreição
estivesse, juntamente com outros, fazendo uso de um costume como este.
Paulo, pois, teria enfrentado de imediato esta réplica que lhe fizeram: “Por
que nos pressionas com esta antiga superstição de viúvas, quando, na
verdade, tu mesmo não a aprovas?” Além disso, se esta fosse a prática deles,
teriam prontamente respondido: “Se tal coisa foi praticada até agora por nós
por uma questão de equívoco, então seria melhor que o equívoco fosse
corrigido do que ser usado para provar algo de tanta importância.”
Entretanto, admitindo que o argumento deles fosse conclusivo, podemos
presumir que, se uma prática corrupta como esta prevalecia entre os
coríntios, o apóstolo, depois de reprovar quase todos seus erros, teria
mantido silêncio sobre este? Nos capítulos anteriores ele condenou certas
práticas que não eram tão graves como esta. Ele não hesitou em dar
diretrizes quanto às mulheres e ao uso de cobrir a cabeça e outros
problemas dessa natureza. Não reprovou meramente a administração
errônea da Ceia, mas foi muito mais penetrante em sua crítica. Ao mesmo
tempo, não diria ele uma única palavra sobre tão horrível profanação do
batismo, quando esta era uma questão muito mais grave do que as outras?
Ele fora tão veemente em seu ataque contra aqueles que davam sua tácita
aprovação às crenças e práticas supersticiosas dos pagãos, freqüentando
seus banquetes. Teria ele permitido que esta abominável superstição pagã
fosse praticada publicamente na própria Igreja sob o nome de santo
batismo? Mesmo admitindo, pois, que ele tivesse guardado silêncio sobre
isso, qual deve ser nossa atitude diante do fato de que ele realmente faz
menção específica dele? Pergunto: seria provável que o apóstolo citasse, na
forma de argumento, um sacrilégio62 por meio do qual o batismo era
corrompido e convertido completamente num uso mágico e abusivo, e nem
assim tenha uma única sílaba a dizer em condenação de tal erro? Ao tratar
de coisas que não são da maior importância, ele, não obstante, introduz
parêntesis, insinuando que está falando como homem [Rm 3.5; 6.19; Gl 3.15].
No presente caso, não teria sido mais apropriado e conveniente que usasse
parêntesis? Ora, o fato de fazer ele menção de tal coisa sem qualquer palavra
de reprovação, quem não entenderia que tal coisa era permitida? De minha
parte, por certo que aqui o entendo como se estivesse falando do uso
correto do batismo, e não de um mal uso dele dessa natureza.
Ora, inquiramos agora quanto ao significado. Houve um tempo em que
eu costumava pensar que Paulo aqui estava realçando o desígnio universal
do batismo, porquanto o benefício do batismo não se restringe a esta
presente vida. Mas, no transcorrer do tempo, ao considerar mais
atentamente a terminologia, percebi que aqui Paulo está tratando de algo
peculiar. Pois ele não está falando de todos quando pergunta o que farão
aqueles que são batizados etc. Além do mais, não aprecio as interpretações
que são mais engenhosas do que sólidas. Então, o que ele quis dizer? Digo
que aqueles que eram batizados pelos mortos são os que eram
considerados como já mortos e perdido completamente qualquer esperança
de vida. E assim a partícula ὑπέρ terá a mesma função do latim pro [como],
por exemplo, na expressão habere pro derelicto, ou, seja, tido como
abandonado.63 Essa significação não é de forma alguma forçada. Ou, se o
leitor preferir outra significação, ser batizado pelos mortos significaria ser
batizado em benefício dos mortos, não dos vivos.64 Ora, sabe-se bem que
desde os primórdios da Igreja, quando os neófitos na fé [catechumeni],65
ainda não batizados, caíam enfermos,66 caso estivessem em iminente risco
de vida, então costumavam solicitar o batismo a fim de não partirem deste
mundo antes que pudessem professar a Cristo, e igualmente pudessem levar
consigo o selo de sua salvação.
À luz dos escritos dos Pais transparece que tal superstição infiltrou-se
mais tarde nesta prática também, pois os encontramos investindo-se contra
aqueles que delongavam seu batismo até o tempo de sua morte, para que,
uma vez purificados de todos seus pecados, pudessem, nesse estado,
aproximar-se do tribunal de Deus.67 Este é deveras um erro por demais
estapafúrdio, oriundo em parte de profunda ignorância, e em parte de
profunda hipocrisia. Aqui, porém, o apóstolo está meramente tocando de
leve um costume que era sagrado e que estava em concordância com a
instituição de nosso Senhor, a saber, que, se um catecúmeno já havia aceito
a fé cristã,68 e em seu coração percebia que a morte o rondava, então
solicitava o batismo, em parte para seu próprio conforto, e em parte para o
fortalecimento [aedificationem] de seus irmãos. Pois dar prova desta
salvação selada em seu próprio corpo não é um conforto de pouco valor. Há
também uma edificação que não se deve perder de vista, a saber, a de fazer
confissão de sua fé. Assim, aquelas pessoas eram batizadas pelos mortos,
visto que o batismo não lhes seria de nenhuma valia neste mundo, e a
ocasião propícia de se fazer seu batismo era destituída de qualquer
esperança nesta vida.
Agora entendemos que não foi sem boa razão que o apóstolo lhes
perguntou o que fariam se não lhes restasse nenhuma esperança depois da
morte.69 Este versículo é também uma prova de que aqueles impostores que
estavam subvertendo a fé dos coríntios tinham forjado uma ressurreição
simbólica, fazendo com que o alvo último dos crentes não estivesse além
deste mundo. Ele põe maior ênfase em sua pergunta, repetindo-a na seguinte
forma: “por que, pois, se efetua o batismo pelos mortos?” É como se
quisesse dizer: “Não só as pessoas que acreditam viver uma vida mais longa
que se batizam, mas também aquelas que sentem a morte de espreita; e estas
se batizam para que possam colher os benefícios de seu batismo após sua
partida.”
30. Por que estamos nós também em perigo a toda hora? Se a
ressurreição e a felicidade últimas não vão além deste mundo, por que, pois,
nós espontaneamente o abandonamos e de bom grado vamos de encontra à
morte? Seu raciocínio pode ser também explicado desta maneira: ser-nos-ia
fútil viver em perigo a toda hora, caso uma vida melhor não esperasse por
nós após nosso encontro com a morte. Ele, porém, está falando dos riscos
que cercavam suas vidas, os quais os crentes enfrentam espontaneamente,
em decorrência de confessarem a Cristo. “Esta magnanimidade de alma, em
desprezar-se a morte, seria o cúmulo da estupidez, e não mero sangue frio,
caso os santos perecessem com a morte, porquanto é uma diabólica
demência granjear uma fama imortal através da morte.”70
31. A cada dia morro. Ele declara que pessoalmente sentia desprezo
pela morte a fim de não deixar a impressão de estar falando com bravura
quando ele mesmo não corria nenhum risco pessoal. Diz ele: “A cada dia
sinto-me, de muitas formas, sob constante ameaça de morte. Quão insensato
seria atrair sobre mim mesmo tanta infelicidade, caso não esperasse receber
para mim nenhum galardão no céu! Sim, e mais ainda, se minha glória e bem-
aventurança não passassem deste mundo, por que não desfrutá-lo em vez
de renunciá-lo espontaneamente?” Ele diz que morria diariamente porque se
encontrava constantemente assediado pelos perigos, tão grandes e tão
opressivos, que a morte estava, em certo sentido, de espreita, a encará-lo. É
a mesma sorte de situação que encontramos descrita no Salmo 44.23, e com
que nos defrontaremos na próxima carta [2Co 11.23].
Gloriando-me em vós. A Vulgata traz propter [por causa de],71 mas isso
obviamente se deve à ignorância dos copistas, pois não existe ambigüidade
alguma na partícula grega.72 Portanto, temos aqui um juramento pelo qual o
apóstolo pretendia incitar os coríntios a prestarem mais atenção no que ele
tem a dizer em relação a este ponto em particular.73 Ele poderia ter-se
expresso assim: “Meus irmãos, não sou um filósofo que derrama no
discurso torrentes de verbosidade.74 Visto que me exponho à morte a cada
dia, é um imperativo que eu medite seriamente na vida celestial. Creio,
portanto, ser um homem profundamente experiente!”
É também uma inusitada forma de juramento, porém um [tipo de
juramento] que se ajusta ao tema em questão. O bem conhecido juramento
de Demóstenes, citado por Fábio,75 é semelhante a este [de Paulo], quando
jurou pelos espíritos dos homens que encontraram a morte na batalha de
Maratona, porém sua real intenção era que outras pessoas fossem incitadas
a defender a República.76 E assim Paulo aqui jura “pela glória que os
cristãos têm em Cristo”. Ora, essa glória está no céu. Ele mostra, pois, que
aquilo que despertava sua dúvida é de fato uma questão da qual ele está
plenamente certo de estar preparado para fazer uso de um sacro juramento –
a exibição de habilidade que merece ser cuidadosamente observada.
32. Se segundo o método dos homens. Ele menciona uma forma notória
de morte; e é evidente, à luz de sua própria natureza, que ao enfrentá-la ele
poderia ser considerado muito pior que um estúpido, se porventura uma
vida superior não nos aguardasse após a morte; pois ele se expôs a um
gênero de morte que era considerado como o mais ignominioso de todos.
Ele está dizendo: “Que vantagem haveria em granjear para mim um
infamante nome e ao mesmo tempo submeter-me à mais cruel das mortes, se
todas minhas esperanças se limitassem apenas a este mundo?” Segundo o
método dos homens significa, nesta passagem, com respeito à vida humana,
de modo a obtermos um galardão neste mundo.
Os que lutavam com feras não quer dizer aqueles que eram lançados
aos animais selvagens para lutarem com eles, como intuiu Erasmo
erroneamente, mas aqueles que eram condenados a apresentar um
espetáculo ao povo, sendo obrigados a lutarem com animais selvagens.
Havia, pois, duas espécies completamente distintas de castigo: (1) ser
lançado às feras e (2) lutar com elas. Pois os que fossem lançados a esses
animais eram instantaneamente feitos em pedaços; enquanto os que
lutavam com eles, costumavam entrar armados na arena, de modo que, se
desfrutassem da vantagem da força, da coragem e da agilidade, poderiam
sair ilesos, matando as feras. Além disso, havia uma escola de treinamento
para aqueles que lutavam com as feras, assim como havia uma para os
gladiadores.77 Contudo, bem poucos deles logravam escapar com vida,
porque aquele que liquidava um animal era forçado a lutar com um
segundo,78 até que a crueldade dos espectadores fosse saciada, ou, dir-se-ia,
até que encontrasse ele mercê [da parte do povo]. E ainda havia aqueles que
se sentiam tão infelizes e desesperados que se ofereciam para isso.79 E,
permita-me dizer de passagem, que este “espetáculo de caça” foi tão
severamente punido pelos cânones antigos quanto caracterizado pelas leis
civis como infame.80
Volto ao que o apóstolo tem a dizer.81 Vemos a que estado Deus permitiu
chegasse seu servo, e quão maravilhosamente também o resgatou. Lucas,82
porém, não faz menção deste contexto; e daqui podemos deduzir que Paulo
passou por muitas situações sobre as quais não se permitiu fossem escritas.
Comamos e bebamos. Esse era um provérbio dos epicureus, os quais
defendiam a tese de que o sumo bem do homem consiste em ter ele prazer
aqui e agora. Isaías também asseverou [22.13] que o mesmo é proclamado
pelos homens dissolutos, quando os profetas de Deus os ameaçam com
ruína83 com o fim de intimá-los ao arrependimento. Pois, escarnecendo
dessas ameaças, eles se entregam sem restrição ao comodismo e aos
prazeres; e para demonstrar sua arrogante independência, dizem: “Já que
temos de morrer, desfrutemos do tempo que agora é nosso, e não nos
torturemos com um sombrio medo antes mesmo que chegue a hora.” Em
contrapartida, atentemos bem para o que certo comandante disse a seu
exército:84 “Camaradas de armas, tomemos nosso desjejum com o coração
jovial, porque hoje mesmo jantaremos no inferno.”85 Ora, este era um
convite para que a morte fosse encarada com destemor, e nada tem a ver
com este tema. Sou de opinião que o apóstolo apropriara-se de um
provérbio que era de uso corrente entre os dissolutos e impudentes
imprestáveis; ou (para ser breve) de uma máxima comum aos epicureus, que
equivalia ao seguinte: “Se morte significa o aniquilamento do homem, este
nada tem melhor a fazer senão entregar-se aos prazeres, sem preocupar-se
com nada mais enquanto tiver alento de vida.” Sentimentos desse gênero
ocorrem com freqüência em Horácio.86
33. Não vos enganeis: as más conversações corrompem os bons
costumes. Visto nada haver mais fácil do que fomentar o método de fazer
especulações irreverentes, enquanto se pretende fazer investigações,87 o
apóstolo se depara com este perigo ao advertir que passar informação
errônea é mais eficaz do que podemos imaginar para contaminar nossas
mentes e corromper-nos moralmente.88 Para isso ele usa um adágio do
poeta Menander;89 pois somos livres para lançar mão de qualquer espécie
de fonte que venha de Deus. E como toda a verdade emana de Deus, não há
dúvida de que o Senhor tem posto nos lábios, mesmo de incrédulos, tudo o
que contenha uma lição genuína e sadia; porém prefiro considerar Oração
aos Jovens, de Basílio, para a abordagem deste tema. Portanto, visto que o
apóstolo sabia que este adágio era familiar aos gregos, ele decide fazer uso
dele, em vez de expressar a mesma idéia em suas próprias palavras, a fim de
que o ouvissem com mais disposição. Porquanto, era-lhes mais fácil receber
algo com o qual estavam familiarizados; e nós mesmos podemos concordar
com isso, à luz de nossa própria experiência com os adágios gastos pelo
uso.
Mas esta é uma frase que particularmente merece nossa atenção, visto
que, quando Satanás não pode dirigir-nos um ataque direto e franco,90 ele
nos ludibria insinuando que nada há de errôneo em diligenciarmos todo
gênero de especulações com o propósito de fazer investigação da verdade.
Portanto, falando do ponto de vista oposto, o apóstolo protesta
energicamente contra isso, dizendo que precisamos pôr-nos em guarda
contra a comunicação de informação errônea, assim como procedemos no
tocante a um veneno que pode matar instantaneamente; pois tal informação
penetra sutilmente em nossas mentes, para logo em seguida corromper todo
nosso ser. Notemos, pois, que nada há mais nocivo do que uma doutrina
perversiva e as especulações ímpias, que nos conduzem a um desvio,
mesmo em grau mínimo, da fé ortodoxa e pura.91 Portanto, não é sem razão
que o apóstolo nos exorta para não nos deixarmos enganar.92
34. Vigiai com retidão. Assim que ele percebeu que os coríntios haviam,
por assim dizer, caído no sono dos ébrios, através de um senso de
segurança excessivamente falsa, então se põe a sacudi-los de seu torpor.
Mas, ao adicionar o termo retidão, notifica de que maneira ele quer que eles
estejam quando acordarem. Pois eles mantinham-se alertas e bastante
lúcidos no que tange a seus afazeres; e, além do mais, não há dúvida de que
se orgulhavam de sua perspicácia; todavia, mantinham-se indolentes em
relação a algo que, mais que qualquer outra coisa, exigia que se
mantivessem plenamente despertos. Eis a razão por que ele diz “vigiai com
retidão”; em outros termos: “Volvei vossa mente e almejai as coisas que são
boas e santas.”
Ao mesmo tempo ele adiciona a razão para se proceder assim, dizendo:
“Alguns dentre vós”, diz ele, “não têm conhecimento de Deus.” Era
indispensável que isso fosse dito, pois de outra forma teriam considerado
sua advertência como algo completamente fora de propósito, já que eram
excessivamente sábios a seus próprios olhos. Mas ele os acusa de
ignorância em relação a Deus, de modo que ficassem cientes de que eram
deficitários naquilo que constituía a coisa mais importante de todas. Isso é
valioso como advertência contra os que são adeptos dos que flutuam no
espaço, mas que, ao mesmo tempo, são cegos em relação ao que está a seus
pés; e que são estupidamente estultos, quando deviam ser tão espertos
quanto possível.
Despertar -vos o pudor, ou, seja, da mesma maneira como os pais
despertam o brio de seus filhos, repreendendo-os por suas traquinagens, a
fim de que eles venham, por meio dessa vergonha, cobrir sua vergonha. Em
contrapartida, ao dizer que sua intenção não era humilhá-los, ele pretendia
informar que não desejava que se sentissem envergonhados caso ele viesse
fazer uma exposição pública dos escândalos deles de forma hostil e
desagradável. Mas, neste ponto, era do interesse deles que fossem
reprovados em termos bem severos, visto que ainda se deleitavam em males
de tal magnitude. Ora, quando o apóstolo os acusa de ignorância em relação
a Deus, ele os despe inteiramente de toda honra.

35. Mas alguém dirá: Como os mortos ressuscitam? e com que espécie de corpo eles
vêm?
36. Insensato! o que semeias não nasce, se primeiro não morrer;
37. e o que semeias, semeias não o corpo como há de ser, mas o simples grão, como de
trigo, ou de qualquer outra semente.
38. Deus, porém, lhe dá um corpo como lhe aprouve dar, e a cada semente seu corpo
apropriado.
39. Nem toda carne é a mesma; porém uma é a carne dos homens, outra a dos animais,
outra a das aves e outra a dos peixes.
40. Também há corpos celestiais e corpos terrestres; uma, porém, é a glória dos
celestiais, e outra a glória dos terrestres.
41. Uma é a glória do sol; e outra, a glória da lua; e ainda outra, a glória das estrelas;
porque até entre estrela e estrela há diferença de esplendor.
42. Assim também é a ressurreição dos mortos.
43. Semeia-se o corpo na corrupção, ressuscita em incorrupção; semeia-se em desonra,
ressuscita em glória; semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder.
44. Semeia-se um corpo natural, ressuscita um corpo espiritual. Se há corpo natural, há
também corpo espiritual.
45. Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente.
46. O último Adão, porém, foi feito espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, e,
sim, o natural; então é que vem o espiritual.
47. O primeiro homem, formado da terra, é terreno; o segundo homem é do céu.
48. Como foi o primeiro homem, o terreno, tais são também os demais homens terrenos;
e como é o homem celestial, tais são também os celestiais.
49. E assim como trouxemos a imagem do que é terreno, também devemos trazer a
imagem do celestial.
50. Isto afirmo, irmãos, que carne e sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a
corrupção herdar a incorrupção.

35. Sed dicet quispiam: Quomodo suscitabuntur mortui? quali autem corpore venient?
36. Demens, tu quod seminas, non vivificatur nisi mortuum fuerit.
37. Et quod seminas, non corpus quod nascetur, seminas, sed nudum granum: exempli
gratia, tritici, aut alterius cujusvis generis:
38. Deus autem illi dat corpus, quemadmodum voluerit, et unicuique seminum proprium
corpus.
39. Non omnis caro, eadem caro: sed alia caro hominum, alia vero caro pecudum, alia
volucrum, alia piscium.
40. Sunt et corpora cœlestia, sunt corpora terrestria: quin etiam alia cœlestium gloria,
alia terrestrium.
41. Alia gloria solis, alia gloria lunæ, alia gloria stellarum: stella a stella differt in gloria:
42. Sic et resurrectio mortuorum.
43. Seminatur in corruptione, resurgit in incorruptione: seminatur in ignominia, resurgit in
gloria: seminatur in infirmitate, resurgit in potentia:
44. Seminatur corpus animale, resurgit corpus spirituale: est corpus animale, est et
corpus spirituale.
45. Quemadmodum et scriptum est, (Gen. ii.7,) Factus est primus homo Adam in animam
viventem, ultimus Adam in spiritum vivificantem.
46. Sed non primum quod spirituale est: sed animale, deinde spirituale.
47. Primus homo ex terra terrenus, secundus homo, Dominus e cœlestes.
48. Qualis terrenus, tales et terreni, et qualis cœlestis, talesd et cœlestes.
49. Et quemadmodum portavimus imaginem terreni, portabimus et imaginem cœlestis.
50. Hoc autem dico, fratres, quod caro et sanguis regnum Dei hereditate possidere non
possunt, neque corruptio incorruptionem hereditate possidebit.

35. Como os mortos ressuscitam? Nada é mais repugnante à razão


humana do que este elemento da fé. Porque nenhum outro, senão Deus,
pode convencer-nos de que nossos corpos, que já se acham entregues à
deterioração, à decomposição, ou são consumidos pelo fogo, ou
despedaçados por animais selvagens, serão restaurados a sua inteireza,
porém com uma natureza muito superior. Todo nosso gênio não o rejeita
como incrível, até mesmo como o mais extremo absurdo?93 A fim de
desfazer este aparente absurdo, o apóstolo faz uso de antipófora, ou, seja,
como se, através dos lábios de um oponente, ele fizesse uma objeção que
aparentasse, à primeira vista, conflitar-se com a doutrina da ressurreição.
Pois esta pergunta particular não é a de alguém que está perguntando por
que ele nutre dúvida sobre como a ressurreição se dará, mas de alguém que
declara que não pode crer no que se ensina sobre a ressurreição, porque ela
é algo que não é possível acontecer. Eis a razão por que, em sua réplica, o
apóstolo refuta esse gênero de objeção com muita aspereza. Portanto,
notemos bem que aqueles que são representados como a falarem aqui são
pessoas que querem desdenhar da convicção acerca da ressurreição, que
dirigem gestos insultuosos, com base em sua suposta impossibilidade.
36. Insensato! o que semeias. O apóstolo poderia ter replicado, dizendo
que, embora a forma como a ressurreição se dá é algo que vai além de nossa
compreensão, para Deus, não obstante, não constitui problema algum.
Conseqüentemente, não devemos aqui formar nosso próprio juízo em
concordância com nosso próprio entendimento, mas que a honra de crer
deve ser atribuída ao estupendo e secreto poder de Deus, a saber: que se
efetuará o que não podemos de forma alguma compreender.
O apóstolo, porém, adota outro método. Pois ele mostra que, longe de a
ressurreição ser contrária à natureza [naturae adversitur], podemos ver um
claro exemplo dela todos os dias de nosso viver, no processo da própria
natureza, na forma como os frutos se desenvolvem. Pois onde os frutos que
colhemos da terra têm sua origem, senão na decomposição? Pois a semente,
uma vez semeada, não germinará a não ser que o grão morra. Portanto, pelo
fato de a decomposição ser a origem e a causa da reprodução, temos aqui
uma espécie de representação da ressurreição. Desse fato segue-se que
nossa avaliação do poder de Deus longe está de ser desrespeitosa e ingrata,
se apropriarmos dele o que já é evidente diante de nossos olhos.
37. Semeias não o corpo como há de ser. Esta comparação compõe-se
de duas partes: (1) que não deve surpreender-nos que os corpos
ressuscitem da decomposição, com base no fato de que o mesmo sucede no
caso da semente semeada; (2) que não é contrário à razão o fato de que
nossos corpos serão restaurados em um outro estado, visto que do simples
grão Deus produz tantas espigas, produto perfeito de uma habilidade que
arranca admiração e que gera grãos de uma qualidade superior.
Visto, porém, que, por assim dizer, aparentemente ele está sugerindo que
muitos corpos emanarão de um só corpo, então modifica o que disse,
acrescentando algo mais, a saber: que Deus forma o tipo de corpo que ele
quer, significando que nisso também há uma distinção de qualidade. Então
adiciona: a cada semente seu corpo apropriado, e esta frase modifica o que
dissera sobre o outro corpo; pois ele diz que o corpo não é tão diferente que
não retenha sua própria aparência [speciem].
39. Nem toda carne é a mesma. Esta é outra comparação, mas que
serve ao mesmo propósito, ainda que outros ofereçam uma explicação
diferenciada dela. Pois, ao dizer que o termo carne envolve o corpo tanto do
homem quanto do animal, e que cada um conserva ainda um tipo
diferenciado de carne, a intenção do apóstolo é dizer que há realmente uma
só substância [unam substantiam], porém uma diferença de propriedade [in
qualitatem]. O que equivale ao seguinte: seja qual for a diversidade que
percebemos em alguma espécie particular [in quoqua specie], é um tipo de
prefiguração da ressurreição, porquanto Deus claramente mostra que para
ele não há a menor dificuldade em renovar nossos corpos, transformando
seu presente estado.94
41. Uma é a glória do sol; e outra, a glória da lua. Há não só diferença
entre os corpos celestiais e corpos terrestres, mas inclusive os corpos
celestiais não são iguais em glória; pois o sol excede em radiância à lua, e as
demais estrelas diferem umas das outras. Conseqüentemente, essa
similaridade se dá95 na ressurreição dos mortos. Mas um equívoco
geralmente surge na aplicação deste fato,96 pois há quem pense que o
apóstolo quis dizer que, após a ressurreição, haverá para os santos
diferentes graus de honra e de glória. Isso é, naturalmente, perfeitamente
correto, e outras passagens da Escritura dão testemunho desse fato; porém
isso nada tem a ver com o que o apóstolo aqui tem em mente. Pois ele não
está discutindo como os santos se diferenciarão uns dos outros em sua
condição pós ressurreição, mas como os corpos que agora temos se
diferenciarão daqueles que receberemos no porvir.97
Portanto, ao fazer uso deste símile, ele remove toda e qualquer idéia
absurda, ou, seja: o sol e a lua são de uma só substância, porém diferem
grandemente um do outro em honra e esplendor. Há, pois, algum motivo de
espanto se nosso corpo se veste de uma propriedade muito mais
esplêndida?98 É como se ele dissesse: “Minha doutrina consiste em que
nada acontecerá na ressurreição que já não tenha sido apresentado aos
olhos de todo o mundo.” É evidente, à luz do contexto, que este é o sentido
das palavras. Pois o que levaria o apóstolo, e a que propósito serviria, fazer
um salto tão abrupto, se deveras estivesse agora comparando os santos uns
com os outros, em seus diferentes estados, quando, ao transitar para este
ponto, estivesse comparando o presente estado de todos com seu estado
futuro apropriado, e quando ele prossegue com essa comparação nos
versículos subseqüentes?
43. Semeia-se na corrupção. Para que não ficasse nenhuma dúvida, o
apóstolo se explica, estabelecendo a diferença entre nosso presente estado e
o que seguirá à ressurreição. Que sorte de consistência sua tese teria se
primeiro ele tivesse tentado fazer distinção99 entre os graus de glória que os
santos terão? Portanto, não há dúvida de que, seguindo para este ponto, ele
vem perseguindo um único tema.
Ele então volta ao primeiro símile que empregara, porém o ajusta mais
plenamente a seu propósito. Ou, se se preferir, retendo esse símile, ele
compara o tempo desta presente vida, metaforicamente, à época do plantio,
e o da ressurreição à época da colheita; e afirma que agora nosso corpo está
deveras sujeito à morte e desonra, mas, então, será glorioso e incorruptível.
Aos Filipenses, ele diz a mesma coisa em diferentes termos: “Nossa
cidadania, porém, está nos céus, de onde esperamos ansiosamente o
Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual, pelo poder que o capacita a colocar
as coisas debaixo de seu domínio, transformará nossos corpos humilhados,
para que sejam semelhantes a seu corpo glorioso [Fp 3.20, 21].”
44. Semeia-se um corpo natural. Como ele não poderia enumerar cada
aspecto isoladamente, ele os enfeixa todos numa só palavra, dizendo que o
corpo, agora, é natural [animale],100 e depois será espiritual [spirituale].
Além disso, a designação natural [animale] é dada ao que é determinado
[informatur] pela alma [anima]; a designação espiritual [spirituale], ao que é
determinado pelo Espírito.101 Pois é a alma que confere vida ao corpo e o
impede de tornar-se um cadáver; e assim é bem apropriado que ele fosse
descrito em termos de alma [anima]. Mas, após a ressurreição, esse poder
gerador de vida que o corpo recebe do Espírito será muito mais
excelente.102
Tenhamos sempre em mente, porém, o que já vimos, a saber: que não há
senão uma e a mesma substância do corpo,103 e o que é referido aqui é
somente à propriedade. Para torná-lo plenamente compreensível, que a
presente propriedade do corpo seja denominada animação;104 e sua futura
propriedade receba o nome de inspiração. Porque, no tocante à alma
comunicar vida ao corpo, no presente, tal fato envolve a intervenção de
muitos auxílios; pois precisamos beber, comer, vestir-nos, dormir e outras
coisas semelhantes a estas. Isso nos prova, além de qualquer sombra de
dúvida, que coisa frágil é esta animação. Mas o poder vivificante do Espírito
será muito mais pleno, e por essa razão independe de manutenção desse
gênero. Este é o sentido correto e natural das palavras do apóstolo; e deve
prevenir as pessoas de se extraviarem pelos labirintos das especulações
visionárias. Tal é o que sucede aos que acreditam que a substância do corpo
será espiritual; quando o fato é que nenhuma menção se faz de sua
substância, e que ele não sofrerá nenhuma mudança.
45. Como está escrito: O primeiro Adão foi feito alma vivente. Para que
aquilo que ele disse sobre o corpo animal105 não parecesse ser uma
invenção nova, o apóstolo cita a passagem da Escritura que diz que Adão foi
feito alma vivente [Gn 2.7], significando que seu corpo era então vivificado
pela alma, de modo que ele veio a ser um homem vivente. Alguém poderia
perguntar o que a palavra alma significa aqui. Sabe-se bem que a palavra
hebraica `pn [nephesh], que Moisés usa, tem muitas nuanças de significado;
mas, neste versículo, ela é considerada no sentido de o princípio vital [pro
motu vitali], ou a própria essência da vida [ipsa vita essentiale]; e o último
realmente me é muito mais preferível. Noto que a mesma coisa se diz sobre
os animais, os quais se tornaram almas viventes [Gn 1.20, 24]. Mas, como a
alma de todo animal deve ser julgada de acordo sua própria espécie
[secundum genussuum], não há nada que impeça que uma alma, isto é, o
princípio vital [motus vitalis] seja comum a todos; e contudo, ao mesmo
tempo, a alma do homem pode possuir algo peculiar e distinto, isto é, a
essência imortal, como a luz da inteligência e da razão.
O último Adão. Esta expressão em parte alguma é encontrada escrita na
Escritura.106 Daí a frase está escrito deve ser entendida como uma referência
só à primeira parte deste versículo; porém, após citar a evidência bíblica, o
apóstolo começa então a traçar, em sua própria pessoa, um contraste entre
Cristo e Adão. É como se quisesse dizer: “Moisés afirma que Adão recebeu
uma alma vivente; Cristo, porém, por outro lado, é dotado de um Espírito
vivificante. E é algo muitíssimo superior ser Vida, ou a Fonte de Vida, do que
meramente ter vida.”107
Devemos, porém, observar bem que Cristo era também uma alma vivente
como nós, mas que, além de sua alma, o Espírito do Senhor foi derramado
sobre ele, para que, pelo poder do Espírito, pudesse ressuscitar dos mortos,
bem como ressuscitar outros. Deve-se prestar bastante atenção a este fato, a
fim de que ninguém conclua que o Espírito tomou o lugar da alma de Cristo,
como chegou a imaginar Apolinário.108 E, afora isto, o significado deste
versículo pode ser encontrado em Romanos capítulo 8, onde o apóstolo
declara que “o corpo está de fato morto por causa do pecado”, e que
levamos em nós mesmos os elementos da morte; mas que “o Espírito de
Cristo, que o ressuscitou dos mortos”, também habita em nós; e que ele é a
Vida, para no porvir nos ressuscitar também [Rm 8.10, 11]. Deduzimos deste
fato que somos constituídos de almas viventes, visto que somos humanos,
mas que o Espírito vivificante de Cristo é derramado sobre nós através da
graça regeneradora. Em suma, a interpretação de Paulo é que a condição que
obtemos através de Cristo é muitíssimo superior à sorte do primeiro
homem, porquanto uma alma vivente foi conferida a Adão, em seu próprio
nome e no de sua posteridade, porém Cristo, em contrapartida, granjeou
para nós o Espírito que é Vida.
A razão pela qual Paulo denomina Cristo de o último Adão é a seguinte:
como a raça humana foi trazida à existência no primeiro homem, assim em
Cristo ela foi restaurada. Vou repetir a idéia de uma forma mais simples.
Todos os homens foram criados no primeiro homem, porque, tudo quanto
Deus designara dar a todos, ele conferiu àquele único homem, de modo que
a condição do gênero humano foi estabelecida em sua pessoa. Por sua
queda,109 ele trouxe ruína sobre si mesmo e sobre aqueles que lhe
pertenciam, visto que ele arrastou a todos eles, juntamente consigo, à
mesma ruína. Cristo veio restaurar nossa natureza da ruína, e a soergueu a
uma condição muito melhor do que antes. Eles,110 portanto, são por assim
dizer, as duas origens, ou raízes, da raça humana. Eis a razão por que é
plenamente justificável denominar um, o primeiro homem; e o outro, o
último. Mas isso não fornece apoio aos dementes que fazem de cada um de
nós um cristo, como se sempre houvesse somente dois homens; e que esta
multidão que contemplamos não passasse de mero fantasma! Em Romanos
5.12 nos deparamos com uma comparação semelhante.
46. Mas não é primeiro o espiritual. O apóstolo está dizendo: “É
indispensável que, antes de sermos restaurados em Cristo, assumamos que
nossa origem está em Adão e que somos semelhantes a ele. Esta é a razão
por que não devemos ficar surpresos de começar com uma alma vivente,
porque, como o nascer precede, em ordem, ao renascer, também a existência
precede à ressurreição.”
47. O primeiro homem, formado da terra, é terreno. A vida animal
vem antes, porque o homem terreno vem antes.111 A vida espiritual vem em
seguida, assim como Cristo, o Homem Celestial, veio depois de Adão.
Ora, os maniqueus perverteram esta passagerm, com seu desejo de
provar que Cristo trouxe do céu um corpo para o ventre da Virgem. No
entanto erraram ao concluir que Paulo aqui estava falando da substância do
corpo, quando, de fato, ele estava tratando, antes, de suas características ou
propriedades. Portanto, mesmo possuindo o homem uma alma imortal, a
qual de forma alguma se deriva da terra, ele, todavia, possui laivos de terra,
da qual seu corpo deve sua origem e na qual ele foi estabelecido para viver.
Em contrapartida, Cristo nos trouxe do céu o Espírito vivificante, a fim de
nos regenerar para uma vida muito melhor e mais elevada do que a
terrena.112 Em suma, nossa vida neste mundo devemo-la a Adão, como os
ramos estão para as raízes; Cristo, em contrapartida, é o princípio e autor da
vida celestial.
Não obstante, é possível que alguém chegue à seguinte conclusão: Diz-se
que Adão é da terra, e Cristo é do céu. A natureza da comparação113
existente entre ambos requer que Cristo tenha um corpo procedente do céu,
assim como o corpo de Adão foi formado da terra; ou, ao menos, que a alma
do homem tenha emanado da terra, enquanto que a alma de Cristo, por
outro lado, tenha vindo do céu. Minha resposta é que o apóstolo não fez
uma comparação dos dois homens tão minudente e estrita quanto possível
– pois isso não era necessário. Visto, porém, estar discutindo a natureza de
Cristo e de Adão, ele fez uma ligeira referência à criação de Adão, dizendo
que ele fora formado da terra; e, ao mesmo tempo, para que percebamos
quão valioso é Cristo, então declara que ele é o Filho de Deus, que desceu
do céu a nós, e que, por essa razão, retém sua natureza e poder celestiais.
Este é o sentido correto; em contrapartida, as sutilezas113 dos maniqueus
nada mais são do que interpretação solerte.
Devemos, não obstante, responder ainda a outra objeção. Porque,
embora Cristo estivesse no mundo, ele viveu nossa vida comum e, portanto,
terrena; daí, o contraste não é apropriado. A solução a este problema ajudará
ainda mais na refutação da fantasiosa114 noção dos maniqueus. Pois
sabemos que o corpo de Cristo era sujeito à morte, e que ele ficou livre de
corrupção, não devido a alguma propriedade inerente [essentiali proprietate],
segundo o modo de se expressar, mas pela providência de Deus, e nada
mais. Portanto, no tocante à substância de seu corpo, não só foi ele terreno,
mas também que, por algum tempo, participou de nossa condição terrena.
Porque, antes que o poder de Cristo pudesse manifestar-se, conferindo-nos
a vida celestial, era necessário que ele morresse na debilidade da carne [2Co
13.4]. Ora, esta vida celestial primeiro se manifestou na ressurreição, para
que nos vivificasse também.
49. E assim como trouxemos a imagem. Alguns acreditam que há aqui
uma exortação a uma vida piedosa e santa, ao quê o apóstolo foi levado à
guisa de digressão; e por essa razão eles mudaram o verbo, do tempo futuro
para o subjuntivo hortativo. Além do mais, alguns manuscritos gregos
trazem φορέσωμεν [portemos].115 Não obstante, visto que isso não se ajusta
bem, conservemos, antes, o que é apropriado ao contexto e ao propósito
imediato do apóstolo. À guisa de introdução, notemos que isso não
constitui uma exortação, e, sim, uma doutrina, pura e simplesmente; e aqui
o apóstolo não está tratando da novidade de vida, e, sim, está dando
segmento, sem interrupção, na fiação de seu argumento, sua discussão
sobre a ressurreição do corpo. Este, portanto, será o sentido: Visto que a
“natureza animal” que possuímos, antes de mais nada é a imagem de Adão,
nessa condição nos conformaremos a Cristo em sua natureza celestial; e
quando isso nos acontecer, nossa restauração será completa. Pois agora
começamos a ostentar a imagem de Cristo, e somos transformados nela
diária e paulatinamente; não obstante, esta imagem depende da regeneração
espiritual. Mas, depois, seremos restaurados à plenitude, quer em nosso
corpo, quer em nossa alma; o que agora teve início será levado à
completação, e alcançaremos, em realidade, o que agora apenas esperamos.
Ora, caso alguém ainda prefira a outra redação, este versículo teria tido o
efeito de inquietar os coríntios; e caso tivessem realmente viva em sua
memória a piedade e a nova vida, é provável que tenham-se inflamado, ao
mesmo tempo, com a esperança da glória celestial.
50. Isto afirmo. Esta frase indica que o que vem em seguida é uma
explicação da afirmação precedente. É como se Paulo dissesse: nossos
corpos precisam ser renovados, visto que os mesmos estão sujeitos à
corrupção, e não podem, como tais, possuir o reino incorruptível de Deus.
Portanto, a única maneira de entrarmos no reino de Cristo é por meio de
nossa renovação segundo a própria imagem de Cristo.” Finalmente,
devemos entender carne e sangue no sentido de carne e sangue como são
atualmente constituídos; pois nossa carne participará da glória de Deus,
mas só depois de ser ela renovada e restaurada à vida pelo Espírito de
Cristo.

51. Eis que vos digo um mistério: Nem todos dormiremos, mas transformados seremos
todos,
52. num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar a última trombeta. Pois a
trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados.
53. Porque é necessário que o corruptível se revista de incorruptibilidade, e o que é
mortal se revista de imortalidade.
54. E quando o corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir
de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela
vitória.
55. Onde está, ó morte, tua vitória? onde está, ó morte, teu aguilhão?
56. O aguilhão da morte é o pecado, e o poder do pecado é a lei.
57. Mas, graças a Deus que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.
58. Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e inabaláveis, e sempre abundantes na
obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, vosso trabalho não é vão.

51. Ecce, mysterium vobis dico: Non omnes quidem dormiemus, omnes tamen
immutabimur,
52. In puncto temporis, in nictu oculi, cum extrema tuba, (canet enim tuba ,) et mortui
resurgent incorruptibiles, et nos immutabimur.
53. Oportet enim corruptibile hoc induere immortalitatem.
54. Quum autem corruptibile hoc induerit incorruptibilitatem, et mortale hoc induerit
immortalitatem: tunc fiet sermo qui scriptus est: (Hos. 13, 14, vel Ies. 25, 8.) Absorpta est
mors in victoriam.
55. Ubi, mors, tuus aculeus? Ubi tua, inferne, victoria?
56. Aculeus autem mortis, peccatum est: virtus autem peccati, Lex.
57. Sed Deo gratia, qui dedit nobis victoriam per Dominum nostrum Iesum Christum.
58. Itaque, fratres mei dilecti, stabiles sitis, immobiles, abundantes in opere Domini
semper, hoc cognito, quod labor vester non sit inanis in Domino.

Até este ponto, o argumento do apóstolo consistiu de duas partes. Ele


demonstrou, antes de tudo, que haverá ressurreição dos mortos; e, em
segundo lugar, qual será a natureza da ressurreição. Agora, porém, ele
prossegue apresentando uma descrição mais completa de como ela terá
lugar, chamando sua descrição de mistério, visto que não havia a mesma
clareza sobre esta, como no caso dos outros aspectos, na ausência, até aqui,
de qualquer revelação de Deus sobre o assunto. Ele procede assim a fim de
levá-los a prestar mais atenção no que tem a dizer. Porque essa doutrina
perversa havia granjeado força provinda do fato de que estavam discutindo
este tema de uma forma displicente e, com naturalidade,116 como se fosse
algo que não lhes proporcionava a mais leve dificuldade. Portanto, ao fazer
uso do termo mistério, Paulo os está advertindo de que estão se tornando
familiarizados com algo, sobre o qual não só nada sabem, mas também que
deve ser considerado como parte dos segredos celestiais de Deus.
51. Nem todos dormiremos. Não há variante nos manuscritos gregos,
mas há três redações diferentes no latim. A primeira é: “Na verdade todos
morreremos, mas nem todos seremos transformados.” A segunda é: “Na
verdade todos ressuscitaremos, mas nem todos seremos transformados.”117
A terceira é: “Certamente, nem todos dormiremos, mas todos seremos
transformados.” Minha conjetura é que estas diferenças são oriundas do
fato de que alguns revisores, sendo um tanto obtusos, e achando a redação
genuína um tanto desenxabida, tomaram a iniciativa de substituir pela que
entendiam ser a mais provável.118 Porque, em face da dificuldade, parecia-
lhes inconsistente que “nem todos morreremos”, quando Hebreus [9.27]
afirma que “aos homens está determinado morrerem uma vez”. Portanto, o
alteraram para que significasse: “nem todos seremos transformados”, ainda
que “todos ressuscitaremos”, ou “todos morreremos”, e ser transformados,
para eles, significa a glória que somente os filhos de Deus receberão. À luz
do contexto, porém, podemos decidir qual é a redação genuína.
A intenção do apóstolo é explicar o que já havia dito, ou, seja, que
seremos feitos semelhantes a Cristo, porque “carne e sangue não podem
herdar o reino de Deus”. Mas isso traz a lume a pergunta:119 qual, pois, será
o destino daqueles que sobreviverem até o Dia do Senhor? O apóstolo
responde que, embora não morram, não obstante serão todos renovados,
para que a mortalidade e a corrupção sejam destruídas. Notemos, porém,
que ele está falando somente dos crentes; porque, ainda que haverá
ressurreição, e até mesmo transformação, dos incrédulos, todavia, diante do
fato de que são passados em silêncio aqui, devemos entender tudo o que se
disse até aqui como que se aplicando exclusivamente aos eleitos. Agora
percebemos o quanto esta frase se ajusta à precedente, porque, havendo
dito que levaremos a imagem de Cristo, agora ele esclarece que tal se dará
quando formos transformados, para que o que é mortal seja absorvido pela
vida [2Co 5.4], e também mostra que não se fará nenhuma diferença nesta
transformação e que a vinda de Cristo alcançará alguns que ainda estarão
vivos naquele tempo.
Mas ainda temos que encontrar uma solução para o problema, a saber:
que “está determinado que todos os homens morram”; e de fato esta não é
uma tarefa tão difícil, já que a transformação não pode concretizar-se sem a
destruição da natureza que existia previamente, e tal transformação é
corretamente considerada como uma espécie de morte; visto, porém, não
haver separação entre alma e corpo, esta não deve ser imaginada como
sendo uma morte ordinária. Será morte no sentido em que nossa natureza
corruptível será destruída; não será um adormecer, visto que a alma não se
separará do corpo; mas haverá uma súbita transição de nossa natureza
corruptível para a bendita imortalidade.
52. Num momento. Ele está ainda falando em termos gerais; em outros
termos, isto cobre tudo. Pois uma transformação se dará em todos,
subitamente, instantaneamente, porquanto a vinda de Cristo será súbita. E
para enfatizar a rapidez dela, ele então emprega a frase “num piscar de
olhos”, pois há duas redações no grego, ῥοπῃ̑ [guinada] ou ῥιπῃ̑ [piscar].120
Entretanto, nenhuma faz diferença de sentido. Paulo escolheu um
movimento específico do corpo, aquele que excede a todos os outros em
rapidez; pois não há nada mais rápido do que o movimento dos olhos. Ao
mesmo tempo, contudo, ele está fazendo uma alusão ao sono, em contraste
com uma piscadela dos olhos.121
Ao ressoar a última trombeta. Embora a repetição da palavra trombeta
pareça tornar plenamente definido que aqui ela deva ser considerada
literalmente, todavia prefiro considerá-la como uma metáfora. Em 1
Tessalonicenses 4.16, ele associa “voz do arcanjo” com “a trombeta de
Deus”. Assim como um comandante convoca seu exército para a batalha ao
som de trombeta, assim também Cristo chamará a si os mortos, mediante
sua retumbante proclamação, a qual será ouvida distintamente em todos os
recantos do mundo. Moisés nos fala do tipo de sons que ecoavam quando a
lei foi promulgada, e quão fortes eram [ x 19.16]. Quão diferente situação
será quando não só uma nação, mas o mundo inteiro, for convocado a
comparecer perante o tribunal de Deus! E não serão somente os vivos a
serem congregados, mas também os mortos serão convocados desde seus
túmulos.122 Não só isso, mas ainda uma ordem será publicada aos ossos
secos e ao pó, para que, recuperando sua forma primitiva, e recebendo de
volta seus espíritos, surjam imediatamente como seres humanos vivos na
presença de Cristo.
Os mortos ressuscitarão. Havendo falado em termos gerais sobre todos,
Paulo agora mostra explicitamente como isso se aplica a ambos: mortos e
vivos. Portanto, esta divisão nada mais é do que uma explicação da frase
anterior, ou, seja: “nem todos morreremos, mas transformados seremos
todos.” Ele está dizendo: “Aqueles que já morreram ressuscitarão
incorruptíveis.” Observe-se a mudança que os mortos sofrerão! Então ele
diz: “Aqueles que estiverem vivos também serão transformados.” Mortos e
vivos também serão transformados. Então o leitor percebe que todos
sofrerão a mesma transformação, mas de forma alguma todos adormecerão.
Mas quando diz, seremos transformados, ele se inclui no número daqueles
que estarão vivos na vinda de Cristo. Visto que já eram os últimos tempos
[1Jo 2.18], os santos esperavam esse dia como se fosse aquela hora [2Tm
1.18]. Embora em sua carta aos Tessalonicenses [2Ts 2.3] ele faça essa
notável profecia sobre a dispersão da Igreja concretizar-se antes da vinda de
Cristo, isso não o impede de confrontar os coríntios com o evento aqui e
agora, por assim dizer, e de colocar a si e aos coríntios lado a lado com
todos aqueles que estiverem vivos durante o dia final.
53. Porque é necessário que o corruptível. Observe como viveremos
no reino de Deus, no corpo e na alma; e ao mesmo tempo permanece
verdadeiro que carne e sangue não herdarão o reino de Deus, porque terão
antes que desvencilhar-se de toda corrupção. Nossa natureza, pois,
corruptível e mortal como é, não é admissível no reino de Deus; mas quando
desprender-se de sua corruptibilidade e vestir-se da incorruptibilidade,
então esta última a dominará totalmente. E este versículo confirma
plenamente que ressuscitaremos na mesma carne que agora possuímos,
pois o apóstolo lhe especificou uma nova propriedade, como se a mesma
fosse uma vestimenta. Se ele tivesse dito: “Esta corruptibilidade deve ser
renovada”, não teria liquidado tão clara e eficazmente o erro daqueles
fanáticos que engendraram a noção de que os homens haverão de receber
novos corpos. Mas, ao dizer aqui que esta corruptibilidade será revestida de
glória, não sobra espaço algum para mais cavilação.
54, 55. Então se cumprirá a palavra. Isto não é uma simples ampliação
(ἐπεξεργασία),123 mas uma confirmação da frase anterior, pois o que foi
preanunciado pelos profetas preanunciaram seguramente se cumpre. Ora,
esta predição não se cumprirá, até que nossos corpos não tenham se
despido de sua corrupção e se vestido de incorrupção; daí, este último
resultado é também necessário. Ora, se cumprirá é usado aqui no sentido de
consumar-se plenamente; pois o que o apóstolo menciona já teve início em
nós, bem como caminha diariamente para sua completação, mas não terá
seu pleno cumprimento senão no último dia.
Entretanto, não transparece com nitidez de qual passagem ele extraiu
esta citação, visto que há muitas afirmações desse teor nos profetas. A única
probabilidade é que a primeira sentença foi extraída ou de Isaías 25.8, onde
lemos: “A morte será destruída pelo Senhor para para sempre”,124 ou (e esta
é a preferência de uma grande maioria, de fato de quase todos) Oséias 13.14,
onde o profeta, deplorando a obstinação e perversidade de Israel, lamenta
que este era semelhante a uma criança prematura que se vê lutando contra
os esforços de sua mãe em fazê-la sair da madre. E daqui conclui o profeta
que Israel não tinha ninguém, a não ser ele mesmo, a quem responsabilizar
pelo fato de não se haver isentado da morte. Diz ele:

“Eu os remirei do poder do inferno;


eu os resgatarei da morte.”

Não importa muito se tomarmos os verbos no futuro do indicativo ou no


subjuntivo,125 porque de qualquer forma o significado é o mesmo, a saber:
que Deus estava disposto a conceder-lhes a bênção de sua salvação, uma
vez provado que estavam dispostos a aceitá-la; e que, pois, era por sua
própria culpa se viessem a perecer. Então acrescenta:

“Onde estão, ó morte, tuas pragas?


Onde está, ó inferno, tua destruição?”

Nestas palavras Deus notifica que ele só concretiza a salvação de seu fiel
povo126 quando a morte e o sepulcro são reduzidos a nada. Assim, não
haverá ninguém que porventura negue que este versículo nos forneça a
descrição de um estado plenificado de salvação. Portanto, enquanto não
virmos a morte destruída assim, segue-se que não podemos ainda tomar
posse da plenitude da salvação que Deus prometeu a seu povo, a qual, pela
mesma razão, é adiada para aquele dia. Conseqüentemente, é então que a
morte será tragada e, noutros termos, será reduzida a nada;127 para que
tenhamos sobre ela completa e final vitória.128
No tocante à segunda parte da profecia, na qual o apóstolo escarnece da
morte e do túmulo, não fica claro se ele está usando suas próprias palavras,
ou se sua intenção é citar também as palavras do profeta. Pois onde as
traduzimos,

“Onde estão, ó morte, tuas pragas?129


Onde está, ó túmulo, tua destruição?”,
o grego (ou, seja, a LXX) traduz:
“Onde está, ó morte, tua acusação?
Onde está, ó inferno, teu aguilhão?” [Os 13.14].

Embora o erro dos amanuenses gregos pudesse ser compreendido


levando em conta a semelhança de palavras,130 alguém, estudando
judiciosamente o contexto, perceberá que tal idéia longe estava daquilo que
o profeta tinha em mente. O sentido genuíno, pois, é que o Senhor destruirá
a morte e porá fim à sepultura [hades]. Não obstante, há também a
possibilidade de que, como a tradução grega estava em uso popular, Paulo
estava fazendo alusão a ela; e não há nenhum inconveniente nesta sugestão.
Entretanto, ele nem mesmo citou palavra por palavra, pois, em vez de
vitória, usou uma causa ou processo penal.131 Tenho plena convicção em
minha própria mente que ele nem mesmo pretendeu fazer aqui uso do
testemunho do profeta, com o intuito de tirar vantagem de sua autoridade,
mas, a propósito, simplesmente adaptou, com um objetivo pessoal, uma
expressão que passou para o uso popular, visto que, fora isso, ela era de
cunho religioso. O mais importante é que devemos compreender que, com
este brado de confiança, Paulo pretendia injetar ânimo nos coríntios, como
se quisesse confrontá-los com a realidade da ressurreição, agora e no porvir.
Ora, embora ainda divisemos a vitória com nossos próprios olhos, e o dia
do triunfo ainda não chegou (não só isso, os perigos de guerra são a cada
dia noticiados), contudo a certeza de fé, como teremos ocasião de observar
com mais vagar, de forma alguma é diminuída com isso.
56. O aguilhão da morte é o pecado, ou, seja, “A morte não possui
outra arma senão o pecado, com o qual nos fere, visto que a morte procede
da ira de Deus. Ora, Deus só está irado contra nosso pecados; destruamos,
pois, o pecado, e a morte não mais será capaz de nos causar dano.” Isso está
em harmonia com o que ele diz em Romanos [6.23], ou, seja: “O salário do
pecado é a morte.” Não obstante, aqui ele usa outra metáfora, pois compara
o pecado a um aguilhão, a única coisa com que a morte está equipada para
infligir-nos um golpe fatal. Se ele for eliminado, então a morte fica
desarmada, e não pode mais infligir nenhum dano. Ora, com que intuito o
apóstolo diz isso será explicado por ele antes de terminar.
O poder do pecado é a lei. É a lei de Deus que comunica a esse aguilhão
[espinho ou ferrão] seu poder mortal, porque ele não meramente desnuda
nossa culpa, mas também a incrementa. A interpretação mais clara desta
expressão pode ser encontrada em Romanos [7.9], onde Paulo nos mostra
que estamos vivos enquanto vivemos sem a lei, porque, em nossa opinião,
está tudo bem conosco, e não sentimos nossa miséria, até que a lei nos
convoque a comparecer diante do tribunal de Deus, e dilacere nossa
consciência com o senso de morte eterna. Além disso, ele ensina que o
pecado ficou, em certo sentido, adormecido, porém foi despertado pela lei,
fazendo-o ainda mais ultrajante e arbitrário. Entretanto, ao mesmo tempo ele
protesta contra a má compreensão da lei, afirmando que ela é santa e justa, e
que em si mesma não é a geradora do pecado nem a causadora da morte. E
assim sua conclusão é que a culpa de todo o mal que existe deve ser
encontrada em nossa própria porta, visto que por certo ela é produto da
corrupção de nossa natureza. A lei, pois, só fornece os meios pelos quais o
dano é feito; a causa real do sofrimento está em nós mesmos. A razão por
que ele a chama, neste versículo, força ou poder do pecado, é que ela evoca
sobre nós o juízo divino. Ao mesmo tempo, ele não está negando que o
pecado inflige a morte mesmo sobre aqueles que são ignorantes da lei,
porém diz que, no caso deles, ele não é tão violento no exercício de seu
domínio escravizante. Porque a lei veio para que o pecado se avolumasse
[Rm 5.20], ou para que ele extrapolasse toda medida [Rm 7.13].
57. Mas, graças a Deus. À luz desta atitude transparece por que ele fez
menção do pecado e da lei concomitantemente, enquanto trata da morte.
Esta não teria aguilhão para ferir-nos se não fosse o pecado, e a este
aguilhão a lei adiciona seu poder letal. Cristo, porém, venceu o pecado, e
através de seu triunfo nos granjeou vitória e nos redimiu da maldição da lei.
Segue-se, portanto, que não mais estamos debaixo do poder da morte.
Conseqüentemente, mesmo que todas as bênçãos envolvidas não nos foram
ainda reveladas, podemos confiadamente gloriar-nos nelas, porque o que já
foi plenificado na Cabeça deve necessariamente ser plenificado nos
membros. Temos plenos direitos, pois, de desdenhar da morte como um
poder vencido, porque a vitória de Cristo é a nossa própria.
Portanto, quando ele diz que “a vitória nos foi dada”, devemos entender,
antes de tudo, que em sua própria pessoa Cristo destruiu o pecado, satisfez
as exigências da lei, carregou a maldição, aplacou a ira de Deus e conquistou
a vida; e, em segundo lugar, ele começou a fazer-nos desde já participantes
de todas as bênçãos. Porque, embora sejamos portadores de resquícios do
pecado, todavia ele não mais reina em nós; embora ainda nos fira, todavia
seus golpes não são mais fatais, porquanto seu gume está embotado, para
que não mais penetre as partes vitais da alma. Conquanto a lei continua a
nos ameaçar, todavia, em contrapartida, desfrutamos dos benefícios da
liberdade que Cristo nos granjeou e que neutraliza os terrores da lei.
Embora os restos da carne habitem em nós, todavia o Espírito, que
ressuscitou a Cristo dentre os mortos, é vida por causa da justiça [Rm 8.10].
58. Portanto, meus amados irmãos. Satisfeito em haver provado
satisfatoriamente a doutrina da ressurreição, o apóstolo agora conclui seu
argumento com uma exortação; e isto foi muito mais eficaz do que se ele
tivesse concluído de forma corriqueira, confirmando o que disse, ou, seja:
“Já que vosso trabalho, no Senhor, não é em vão, sede firmes e vos
transbordeis de boas obras.” A razão por que ele diz que o trabalho deles
não é vão é que Deus tem um galardão entesourado para eles. Eis a única e
suficiente esperança que anima os crentes no ponto de partida, e os
sustenta ao longo do percurso, de modo que não caiam durante a corrida.
Então lhes ordena a permanecerem firmes, visto que repousam sobre um
fundamento inabalável, quando estão conscientes de que uma vida muito
superior está preparada, aguardando-os no céu.
E acrescenta: abundantes na obra do Senhor, pois a esperança na
ressurreição produz o efeito de fazer-nos incansáveis na prática do bem,
como o apóstolo mesmo ensina em Colossenses [1.10]. Porque, em face dos
obstáculos que temos de enfrentar constantemente, quem não perderia o
alento ou se desviaria do caminho, não fosse o fato de sua constante
meditação numa vida superior, mantendo-se no caminho e no temor de
Deus? Mas, em contrapartida, ele realça que, se a esperança na ressurreição
fosse desfeita, então toda a estrutura da religião entraria em colapso e ruína,
como se o fundamento tivesse ruído.132 Não há dúvida de que, se a
esperança de galardão fosse removida e destruída, a ambição de prosseguir
a corrida não só esmoreceria, mas também se esvairia completamente.

1. “Iusques a Corinthe.” – “À longínqua Corinto.”


2. “Possedez d’autres diahles.” – “Possuídos por outros demônios.”
3. “Os libertinos de Genebra eram mais uma súcia de devassos do que um grupo de fanáticos;
pois não defendiam nenhum sistema religioso, mas apenas pleiteavam a liberdade de levar
vidas voluptuosas e imorais. Essa súcia se compunha de determinado número de cidadãos
licienciosos que não podiam suportar a severa disciplina de Calvino, o qual punia com rigor, não
só os costumes dissolutos, mas também tudo que levava o aspecto de irreligião e impiedade.” –
Paterson’s History of the Church, vol. ii. p. 383.
4. “Par quelque opinion fantastique.” – “Por alguma noção fantástica.”
5. “Vne ie ne scay quelle resurrection allegorique.” – “Uma ressurreição alegórica, não sei de que
gênero.”
6. “Si soudainement seduits.” – “Tão subitamente seduzidos.”
7. Bloomfield observa que “em ἑστήκατε (que significa tendes perseverado e perseverais), há
uma metáfora agonística (como em Ef 4.13) ou alguém arquitetural, como ἑδραúοι γίνεσθε (sede
inabaláveis), em 1 Coríntios 15.58.”
8. “Nossa versão não expressa inteligivelmente o sentido de ἐκτὸς εἰ μὴ εὶκῃ̑ ἐπιστεύσατε, traduzindo-
o muito literalmente – a menos que tenhais crido em vão. Crer em vão, segundo o uso de
idiomas antigos, é crer sem justa razão e autoridade, dando crédito a notícias infundadas como
sendo verídicas e autênticas.”
9. “Ce principal poinct de la foy.” – “Este artigo principal de fé.”
10. “Que le Seigneur mesme luy auoit enseignee et commandee.” – “O que o Senhor mesmo lhe
ensinara e lhe ordenara.”
11. “Le mot de receuoir.” – “A palavra recebida.”
12. O leitor encontrará nosso autor fazendo uso da mesma expressão proverbial quanto
comenta 1 Coríntios 4.1 e 11.23.
13. “Il n’y en a point de plus expres, et où il en soit traitté plus apertement.” – “Nenhuma delas é
mais explícita, ou onde seja tratada com mais clareza.”
14. Granville Penn supõe que a redação comum, εßτα τοι̑ς δώδεκα – então aos doze –, é uma
corruptela para εßτα τοι̑ς δε δεκα – e então aos dez –, entendendo o apóstolo como querendo dizer
que Cristo apareceu primeiramente a Cefas, e então aos outros dez. O Dr. Adam Clarke, depois
de afirmar que “em vez de δώδεκα, doze, ἕνδεκα, onze, é a redação de D* E F G, Síríaca na
margem, algumas das versões Eslavônica, Armênia, Vulgata, Itala e vários dos pais”, e que “esta
redação é apoiada por Marcos 16.14”, e observa: “Talvez o termo doze seja usado aqui
meramente para ressaltar a sociedade dos apóstolo, que, embora nesse tempo eles fossem apenas
onze, eram ainda chamados os doze, porque esse era seu número original, e um número que foi
mais tarde preenchido.” “Doze era um título, não de número, mas de ofício.” – M’Knight.
15. “C’est a dire, les Cents.” – “Equivale dizer, os Cem.
16. O leitor achará o mesmo termo referido por Calvino quando comenta 1 Coríntios 10.8.
17. “Este uso peculiar de ἐπάνω para πλεúον (que parece ter sido popular ou provincial, não sendo
encontrado nos escritores clássicos), ocorre também em Marcos 14.5, porém com um genitivo.
Entretanto, é provável que ele não tenha propriamente nenhum regime, mas seja usado como
parêntese, como o latim plus trecentos, 300 e mais.” – Bloomfield.
18. O ponto de vista de Calvino concorda com o de Crisóstomo, que diz: Ûσαν γὰρ καὶ ἄλλοι
ἀπόστολοι, ὡς ὁι ἑβδομήκοντα – “pois houve também outros apóstolos, tais como os sententa.”
19. “En sa vie et gloire immortelle.” – “Em sua vida e glória imortal.”
20. “Elle estoit suffisante et receuable.” – “Era suficiente e admissível.”
21. Em concordância com o ponto de vista assumido por Calvino, Bloomfield considera o termo
original, ἔκτρωμα, no sentido de uma criança nascida antes do devido tempo (em cujo sentido o termo
abortivus é empregado por Horácio, Sat. i. 3. 46), o apóstolo “se denomina assim como sendo um
apóstolo não formado e qualificado por prévia preparação e instrução”. Penn, depois de citar a
definição dada por Eustátio do termo ἔκτρωμα – τὸ μήτω τετυπώμενον – an unformed fœtus –, observa:
“A todos os demais apóstolos nosso Senhor apareceu depois de sua ressurreição, quando já
tinham adquirido sua forma adulta em seu ministério; a Paulo, porém, ele apareceu no primeiro
momento de sua concepção espiritual, e antes de ser formado ou modelado.” O mesmo ponto
de vista, em substância, é dado por M’Knight. “Embora ele (Paulo) se denomine um apóstolo
abortivo, isso não se deu por ser ele sensível a alguma imperfeição em sua comissão, ou a
alguma fraqueza em sua qualificação como apóstolo; pois em 2 Coríntios 11.5 ele afirma que em
nada se considerava inferior aos super apóstolos”; porém se denominava apóstolo abortivo,
porque, segundo nos diz [v. 9], ele havia perseguido a igreja de Deus, e porque fora feito
apóstolo sem que um prévio curso de instrução e preparação, que os demais apóstolos haviam
recebido na companhia de Jesus Cristo durante seu ministério terreno; de modo que, no sentido
próprio do termo, ele era ἔκτρωμα – um nascido antes de haver chegado à maturidade.
Entretanto, essa carência foi ricamente suprida pelas muitas revelações que seu Senhor lhe
comunicou depois de ser feito apóstolo.”
22. “C’est a dire qui est nay apres là mort de son pere.” – “Equivale dizer, alguém que nasceu
depois da morte de seu pai.”
23. “Estre estimé moins que rien.” – “Ser estimado menos que nada.”
24. “Par ma petite et basse condition.” – “Por minha ínfima e humilde condição.”
25. “Thrasones.” O apelo é emprestado de Thraso, um capitão tolo de Terence (Eun. iii.1).
26. “Dieu donnoit plus heureuse issue à ses labeurs, et les faisoit proufiter plus amplement.” –
“Deus deu a seus labores um resultado mais próspero, e os fez muito mais bem sucedidos.”
27. “No manuscrito alexandrino, a redação é: Οὐκ ἐγὼ δε, ἀλλ̕ ἡ χάρις του̑ Θεου̑ σὺν ἐμοί. “Porém não
eu, mas a graça de Deus comigo.” – Correspondendo a isto a tradução de Wiclif (1380): “Porém
não eu, mas a graça de Deus comigo.”
28. Ele faz menção disso nas Institutas.
29. Heideggerus parece ter tido a exposição de Calvino diante dos olhos nas seguintes
observações sobre a expressão usada pelo apóstolo: “Non Gratia Dei mecum, ut vetus Itala
vertit, quasi effectus inter Gratiam Dei, et Pauli arbitrium distribueretur; nihil enim habuit ipse,
quod non acceperit; sed ἡ σὺν ἐμοί, quœ mecum, ut totum et in solidum omne gratiæ soli acceptum
feratur. Neque ita loquitur solius humitatis et modestiæ explicandæ ergo, quanquam et hanc
testari voluit; sed quia potens illa gratia demonstratio et testmonium irrefragabile erat
resurrectionis Domini.” – “Não a graça de Deus comigo, segundo o traduz a antiga versão itálica,
como se o efeito fosse dividido entre a gaça de Deus e o livre-arbítrio de Paulo; pois ele nada
tem que não fosse recebido, mas ἡ σὺν ἐμοί, que é comigo, para que cada coisa seja total e
inteiramente atribuída à graça somente. Tampouco fala assim simplesmente com o propósito
de demonstrar humildade e modéstia, embora ele tivesse também em vista testificar desse fato,
mas porque a graça era uma poderosa demonstração e irrefutável testemunho da ressurreição
de nosso Senhor.” – Heideggeri Labores Exegetici in Cor. (Giguri. 1700), p. 154.
30. “Perseuerance à enseigner ceste mesme chose.” – “Perseverança em ensinar a mesma
coisa.”
31. “La substance et le fondement de la nostre.” – “A substância e fundamento da nossa.”
32. “Si ce fondement est osté, nostre resurrection ne pourra consister.” – “Se este fundamento
for removido, nossa ressurreição não pode de modo algum permanecer.”
33. Billroth, ao citar a afirmação supra de Calvino, observa que “Calvino parece ter se enganado
com o duplo significado das palavras que ele usa – ‘nulla ejus resurrectio foret’; elas podem
significar ou ‘ejus resurrectio non est’, ou ‘ejus resurrectio non est vera resurrectio’ – ‘sua
ressurreição não é uma ressurreição real, e de fato só a última [expressão] se adequa a seu
ponto de vista sobre o argumento de Paulo.” Entretanto, é bem observado pelo Dr. Alexander,
em sua tradução de Billroth, que Calvino pode ser considerado como tendo “usado a palavra
nulla aqui no sentido de nossa palavra nula, vazia, inútil” sendo sua asseveração com este
propósito – que “se não ressuscitarmos, então a ressurreição de Cristo se tornou nula.” Ver
Biblical Cabinet, vol. xxiii. p. 86.
34. “C’est à dire, sans la resurrection.” – “Equivale dizer, à parte de sua ressurreição.”
35. “Et aussi il auoit desia parlé du deshonneur qui en reuindroit aux hommes, c’est à dire aux
Apostres et autres preschurs.” – “E além disso ele falara previamente da desonra que resultava
dela para os homens – isto é, aos apóstolos e aos demais pregadores.”
36. “Comme subornez.” – “Como se fossem alugados.”
37. Raphelius adiciona dois exemplos de κατα sendo empregado pelos escritores clássicos no
sentido de concernente. Ταυ̑τα μὲν δὴ κατα πάντων Περσω̑ν ἔχομεν λέγειν – “E estas são coisas que
podemos afirmar concernentes a todos os persas.” (Xen. Cyrop., Livro i. p. 6, linha 33). ʻΟ κατα τω̑ν
τεχνω̑ν καὶ ἐπιστημω̑ν λέγειν εἰώθαμεν ταυτὸν καὶ κατα τη̑ς ἀρετη̑ς φατέον ἐστίν – “Que estamos
acostumados a dizer em referência às artes e ciências, pode também ser dito em referência à
virtude.” (Plutarco, cap. 4). Bloomfield sugere que o apóstolo provavelmente empregou κατα no
sentido “muito raro” de concernente, “como que desejando incluir o sentido “em prejuízo de”, o
que ocasionaria falsificação, visto que quase implicaria uma carência de poder em Deus para
ressuscitar os mortos, pois os filósofos gentios o negavam.”
38. “La profession de Chrestiente.” – “A profissão [de fé] do Cristianismo.”
39. Beza menciona em seu livro Vida de Calvino, o qual antes de deixar a França, em 1534,
“publicou seu admirável tratado, intitulado Psychopannychia, contra o erro dos que, revivendo uma
doutrina que fora defendida nos primeiros séculos, ensinavam que a alma, quando se separa do
corpo, permanece dormente.” Calvin’s Tracts, vol, ii, p. xxvi.
40. Esta afirmação quanto à ressurreição está notavelmente em contraste com o célebre
sentimento de Horácio (Epístola i. 16, 79): “Mors est ultima linea rerum.” – “A morte é a fronteira
final das coisas.” Os filósofos pagãos negavam a possibilidade de uma ressurreição. Assim Plínio
(Hist. Nat. L. ii. c. 7) diz: “Revocare defunctos ne Deus quidem potest.” – “Chamar de volta os
mortos é algo que o próprio Deus não pode fazer.”
41. Pareus, ao comentar esta passagem, chama a atenção, nos seguintes termos, para o
princípio infra-referido: “Nequaquam vero hinc sequitur, quod Psychopannychitæ finxerunt:
animas post mortem dormire, aut in nihilum cum corporibus redigi. Perire enim dicuntur
infideles quoad animas, non physicà, quod corruptæ inereant; sed theologicèd, quod viventes
felicitatem cœlestem non consequantur; sed in tartara ad pænas solæ vel cum corporibus
tandem detrudantur.” – “Entretanto, de modo algum se segue disto, segundo as maquinações
dos que acreditam que as almas dormem, que de fatos as almas dormem depois da morte, ou
que são reduzidas a nada juntamente com o corpo. Pois lemos que os incrédulos perecem no
tocante a suas almas, não fisicamente, como se elas se deteriorassem e morressem, mas
teologicamente, porque, embora vivam, não alcançam a felicidade celestial, mas são, por fim,
lançadas no inferno para castigo, sozinhas ou juntamente com o corpo.”
42. Descrito em maior extensão por Virgílio (Eneida, 6, 637-703).
43. Calvino, ao comentar 1 Pedro 4.17, ao falar do juízo que começa pela casa de Deus, diz: “Ideo
dicit Paulus, (1 Cor. xv. 19,) Christianos sublata fide resurrectionis, comnium hominum
miserrimos fore: et merito, quia dum alii absque metu sibi indulgent, assidue ingemiscunt
fideles: dum aliorum peccata dissimulat Deus, et alios torpore sinit, suos sub crucis disciplina
multo rigidius exercet.” – “Daí Paulo dizer, e com justiça [1Co 15.19], que os cristãos, caso a
esperança numa ressurreição fosse apagada, seriam todos eles homens em extremo miseráveis,
porque, enquanto outros se refestelam sem temor, os crentes desnecessariamente gemem;
embora Deus pareça permitir que os pecados dos outros passem desapercebidamente, e
permitir que ainda outros vivam em estado de torpor, ele exercita seu próprio povo de forma
mais severa sob a disciplina da cruz.”
44. “Es voluptez et delices de ce monde.” – “com os prazeres e deleites desta vida.”
45. “Embora a ressurreição de Cristo, comparada com as primícias de qualquer espécie, mantenha
plena harmonia com elas, contudo mais especialmente concorda com o oferecimento da gavela
[feixe], comumente denominada rmw[, ômer, não só como a coisa em si, mas também quanto às
circunstâncias do tempo. Pois primeiramente houve a Páscoa, e o dia seguinte foi o dia sabático, e
no dia seguinte a esse ele, as primícias dos que dormiam, ressuscitou. Todos os que morreram
antes de Cristo, e ressuscitaram para a vida, morreram novamente; Cristo, porém, é as primícias
de todos os que ressuscitarão dentre os mortos para nunca mais morrerem.” – Lightfoot.
46. “As primícias lhe era, por ordem divina, apresentadas numa determinada estação do ano, não
só como um emblema da gratidão dos israelitas por sua liberalidade, mas como uma garantia
da próxima colheita. Neste sentido, ele é chamado as primícias dos mortos. Ele foi o primeiro na
ordem de tempo, pois embora alguns foram restaurados à vida, pela instrumentalidade dos
profetas, e por ele próprio durante seu ministério pessoal, nenhum deles saiu de seu túmulo
para voltar para aqueles que ainda viviam depois da ressurreição dele; e como ele foi o primeiro
no tocante ao tempo, assim ele foi o primeiro na ordem de sucessão. Todos os santos que o
seguiam como a colheita, seguiram a apresentação das primícias no templo. O intervalo é longo,
e a lúgubre esterilidade do túmulo poderia justificar a conclusão de que a semente que lhe foi
entregue pereceu para sempre. Nossa esperança, porém, repousa em seu poder, o qual pode
transformar o deserto em ramalhetes de rosas; e ainda esperamos que as influências celestiais
desçam como o orvalho sobre as ervas, quando o solo estéril exibirá toda a exuberância da
vegetação, e a própria morte se esvaziará com a vida.” – Dick’s Theology, vol. iv. pp. 50, 51.
47. “Le premier patron de la resurrection pour opposer à la mort d’Adam.” – “O primeiro modelo
da ressurreição, em oposição à morte de Adão.”
48. “Les premices de la resurrection.” – “As primícias da ressurreição.”
49. “Quand il viendra en juízo.” – “Quando ele vier para o juízo.”
50. “C’est à dire, de la resurrection.” – “Equivale dizer, da ressurreição.”
51. “Não pode ser impróprio observar que há uma inexatidão em nossa versão comum, a qual
vicia tanto sua implicação que não parece manter a conclusão a que chegou o apóstolo. Seu
propósito era estabelecer a perfeição da vitória de nosso Salvador, o avanço de seus triunfos e a
prostração de seus inimigos totalmente sob seu poder. Ora, dizer que ‘o último inimigo a ser
destruído é a morte’, de modo algum propicia uma prova dessa posição. Embora a morte possa
ser destruída, e o último inimigo a ser destruído será ela, desse fato não pareceria senão que os
outros inimigos podem permanecer sem ser destruídos. Mas a tradução adequada é: ‘a morte, o
último inimigo, será destruída’.” – R. Hall’s Works (Londres, 1846), vol. vi. pp. 140, 141.
52. “Ultimum vero seu novissimum hostem cur vocat? Chrysostomus putat, quia ultimo accessit.
Primus fuit Satan, solicitans hominem ad peccatum. Alter voluntas homimis, sponte se a Deuo
avertens. Tertius peccatum. Quartus demique mors, superveniens peccato. Sed haud dubie
Apostolus novissimum vocat duratione, respectu aliorum externorum hostium Ecclesiæ, quos
Christus in fine abolebit omnes. Postremo et mortem corporalem pellet, suscitando omnes
exmorte: ut hoc mortale induat immortalitatem.” – “Mas, por que ela chama a morte, o mais
ferrenho e último inimigo? Crisóstomo crê por ter ela vindo por último. O primeiro foi Satanás,
tentando o homem a pecar. O segundo, a vontade humana voluntariamente se voltando contra
Deus. O terceiro, o pecado. Então por fim vem o quarto, a morte, seguindo na retarguarda do
pecado. Entretanto, não pode haver dúvida de que o apóstolo a denomina o último no que tange
à duração em relação a outros inimigos externos da Igreja, tudo quanto no fim Cristo abolirá.
Depois de tudo, ele eliminará a morte do corpo, levantando a todos da morte, para que este que
é mortal seja vestido de imortalidade.” – Pareus in loco.
53. “Mais c’est sans danger de mort;” – “mas é sem risco de morte.”
54. “Mais que nous fichions les yeux de nostre entendement en luy seul.” – “Mas para que
possamos fixar os olhos de nosso entendimento tão-somente nele.”
55. “O reino medianeiro de Cristo ... terminará quando seu desígnio for consumado; ele cessará
de exercer uma autoridade que não mais tem nenhum objetivo. Quando todos os eleitos se
converterem pela verdade e se unirem a um só corpo, apresentando ao Pai uma igreja gloriosa,
sem qualquer mancha ou ruga ou qualquer coisa indigna; quando a idolatria, a superstição e a
heresia forem subjugadas e todo o mal for repelido do reino de Deus; quando os planos e os
esforços dos espíritos ímpios forem derrotados e encerrados em sua prisão, da qual não haverá
escape; quando a morte tiver devolvido o que despojou e depuser o cetro aos pés de seu
Vencedor; quando o grande julgamento for completado, sua sentença imparcial tiver anunciada
a sorte da raça humana e suas moradas eternas forem distribuídas entre os justos e os ímpios,
nada restará a ser feito pelo poder com que nosso Salvador foi investido em sua ascensão; e
sua obra sendo completada, sua comissão expirará. Sobre este tema não podemos falar com
certeza, e corremos grande risco de cometer erros, visto que o evento será ainda no futuro e
nossa informação é imperfeita. Aqui falha qualquer analogia e requer-se a máxima prudência,
emprestando uma ilustração das atividades humanas; mas sem insinuar que os dois casos são
exatamente afins, não podemos dizer que, como regente ou vice-regente de um Rei a quem a
autoridade régia fora confiada por algum tempo, a resigna, e o próprio soberano reassume as
rédeas do governo; assim nosso Redentor, que agora empunha o cetro do univerno, devolverá
seu poder delegado sob o qual a dependência que os homens têm da Deidade será imediata; e
o Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só em essência e conselho e operação, reinarão para todo o
sempre sobre os habitantes do céu. Este é o provável significado das palavras: Então o próprio
Filho se lhe sujeitará, para que ponha todas as coisas debaixo de seus pés.” – Dick’s Theology,
vol. iii. pp. 250, 251.
56. “Nous contemplerons nostre Dieu face à face, regnant en sa maieste.” – “Contemplaremos a
Deus face a face, reiando em sua majestade.”
57. “Pour nous empescher de veoir de pres la maieste de Dieu.” – “Para deter-nos de aproximar
a vista da majestade de Deus.”
58. “Ce sens contient dectrine saincte.” – “Este conceito contém doutrina sacra.”
59. “Esta”, declara Barnes, “era a opinião de Grotius, Michaelis, Tertuliano e Ambrósio.”
60. “De ce seul argumento.” – “Com este único argumento.”
61. “Mais ie ne voy rien qui me puisse amener à suyure ceste coniecture.” – “Porém nada vejo
que pudesse me induzir a seguir tal conjetura.”
62. “Ce sacrilege horrible.” – “Este horrível sacrilégio.”
63. A forma da expressão referida é usada por Cícero (Att. 8.1).
64. “Proufite apres la mort, et non pas la vie durant.” – “Proveito após a morte, não durante a
vida.”
65. “Estans encore sur la premiere instruction de la doctrine Chrestienne.” – “Estando ainda nos
primeiros rudimentos da doutrina cristã.”
66. “Quelque maladie dangereuse.” – “Alguma doença perigosa.”
67. Cornelius à Lapide, em seu Comentário sobre as Epístolas Canônicas (Paris, 1631), p. 423,
adverte, nos termos seguintes, para o costume referido por Calvino: “Inter conversos alim multi
erant qui Baptismum diu differebant, etiam usque ad mortem, adeoque ægri in lecto
baptizabantur, ut per Baptismum expiati ab omni culpa et pœna illico puri evolarent in cœlum.” –
“Entre os convertidos antigamente havia muitos que deferiam o batismo por muito tempo,
mesmo para o tempo de sua morte, e eram conseqüentemente batizados quando no leito de
enfermidade, crendo que pelo batismo eram lavados de toda falta e do castigo [eterno],
podendo ir para o céu puros.” Milner, em seu Church History (vo. ii. 276), quando trata de Gregório
Nazianzeno, diz: “Em outro discurso, ele protesta contra a prática tão em voga de delongar o
batismo, o que, à luz do exemplo de Constantino, tinha estado muito em voga, por razões
igualmente corruptas e supersticiosas. Os homens viviam no pecado enquanto criam que
estavam seguros, e deferiam o batismo até que a morte se avizinhasse, sob uma infundada
esperança de lavar imediatamente todas suas culpas.” Ver também em Turretine’s Theology
(Genebra, 1690), vol. iii. p. 435.
68. “Si celuy qui n’ estoit pas encore parfaitement instruit en la doctrine Chrestienne, et
toutesfois auoit desia de vraye affection embrassé la foy.” – “Se alguém, que não tinha ainda
como ser plenamente instruído na doutrina cristã, mas já havia abraçado a fé com verdadeira
afeição.”
69. “O batismo”, diz o Dr. Dick em seu Lectures on Theology (vol. iv. pp. 183, 184), “implica nosso
interesse na ressurreição de Cristo e suas conseqüências. Ele foi chamado pelos antigos ‘o
penhor das boas coisas futuras”, e ‘o tipo da ressurreição futura’. Não poderia ser esse o
significado daquela passagem no capítulo 15 de sua primeira Epístola aos Coríntios,
concernente à qual há havido uma tão grande diversidade de opiniões?”
70. “Quand quelques fois les mondaines s’exposent à la mort seulement pour acquerir vn bruit
immortel.” – “Quando pessoas mortais em alguns casos se expõem à morte, meramente para
granjear uma fama imortal.”
71. A tradução de Wiclif (1380) traz para sua glória.
72. A partícula νὴ, usada como um protesto solene.
73. “Veu qu’il parloit à bom escient, ayant luy-mesme les mains à la besongue, ainsi qu’on dit.” –
“Visto como ele falou em boa disposição, tendo suas próprias mãos na obra, como dizem.”
74. “Quelque Philosophe qui triomphe de dire, estant loin de la prattique.” – “Alguns filósofos,
que falam suavemente, embora longe da cena de ação.”
75. “Lequel Quintilian allegue.” – “O qual Quintiliano Cita.”
76. “Quid denique Demosthenes? ... non illud jusjurandum per cæsos in Marathone ac Salamine
propugnatores reipublicæ, satis manisfeto docet. præceptorem ejus Platonem fuisse?” – “Que
fim levou Demóstenes? ... não que celebrou juramento por esses defensores da República que
foram mortos em Maratona e Salamina, oferece ampla evidência de que Platão era seu
preceptor?”
77. “Et mesme comme il y auoit le ieu de l’escrime pour duire des gens à combatre les vns contre
les autres, pour donner passetemps au peuple, aussi il y auoit vn ieu auquel on façonnoit des
gens à combatre contre les bestes es spectacles publiques.” – “Mais ainda, como havia um jogo
de esgrima para treinar pessoas para a luta entre si, propiciando entretenimento às pessoas;
por isso havia um jogo no qual pessoas eram postas a lutarem com animais selvagens em
shows públicos.”
78. “N’estoit pas quitte, mais il luy faloit retourner au combat contre la seconde.” – “Ele não era
socorrido, porém tinha que voltar a lutar com um segundo.”
79. “Às vezes homens livres, de circunstâncias desesperadoras, buscavam uma precária
subsistência, aventurando suas vidas nessa profissão; mas ela era exercida principalmente por
escravos e prisioneiros de guerra, os quais seus senhores ou conquistadores os devotavam; ou
por pessoas condenadas, a quem assim se oferecia um prolongamento incerto de existência,
dependendo de sua própria bravura, atividade e habilidade.” – Illustrated Commentary.
80. “O que era chamado venatio” (caça), “ou a luta de animais selvagens entre si, ou com homens
chamados lestiarii (lutadores com animais selvagens), que eram ou forçados a isso à guisa de
castigo, como às vezes acontecia aos cristãos primitivos, ou induzidos por salário (auctormento),
Cic. Tusc. Quæst ii.17. Fam. vii. 1., Off. ii. 16, Vat. 17. Um número incrível de animais de várias
espécies era trazido de todos os quadrantes, para o entretenimento do povo e de despesas
imensas. Cic. Fam. viii. 2, 4, 6. Eram mantidos fora da vista, em um lugar chamado vivaria, até o
dia da exibição.”
81. “Le retourne maintenant à parler de Sanct Paul.” – “E agora volto a falar de São Paulo.”
82. “Sainct Luc aux Actes.” – “São Lucas nos Atos.”
83. “De reuine et perdition.” – “Com ruína e perdição.”
84. “Car quant a ce qui on trouue entre les histoires anciennes que quelqu’vn disoit aux doldats.”
– “Pois como se acha registrado nas histórias antigas, que alguém disse a seus soldados.”
85. A alusão é a Leônidas, rei de Esparta, quando, conduzindo 300 espartanos ao Passo de
Thermopylæ, por ato de intrepidez, com raro paralelo na história, se puseram a defender aquele
Passo em oposição a uma tropa persa de 20.000 soldados, e durante a noite espalharam
terrível confusão e consternação entre os persas, porém de manhã, descobrindo por fim seu
pequeno número, foram imediatamente cercados e massacrados.” – Robertson’s History of Greece,
p. 151.
86. Os seguintes exemplos podem ser citados como um espécimen:
“O beate Sesti!
Vitæ summa brevis nos vetat inchoare longam,
Jam te premet nox, fabulæque Manes
Et domus exilis Plutonia:
Ó feliz Sestius! a breve extensão da vida humana nos coíbe de ceder à fascinação de uma
esperança distante. Logo a noite descerá sobre ti, e o fabuloso Manes, e a sombria mansão de
Pluto.” – Hor. Carm. I. 4, 13-17.
87. “De douter et s’enquerir.” – “De duvidar e inquirir.”
88. “Les bonnes mœurs.” – “Bons costumes.”
89. “Menander foi um célebre poeta cómico de Atenas, educado aos pés de Theophrastus. Seus
escritos eram repletos de elegância, espírito refinado e observações judiciosas. De cento e oito
comédias que escreveu, nada resta senão uns poucos fragmentos. Diz-se que ele afogou-se
quando tinha cinqüenta e dois anos de idade, em 293 a.C., porque as composições de seu rival
Filemom granjearam mais aplausos que as suas. “ – Barnes.
90. “Pour nous seduire.” – “Em desviar-nos.”
91. “De la simplicite de la foy.” – “Da simplicidade da fé.”
92. “A conexão não é aquela que teríamos esperado de uma máxima inserida. Ela está no meio
de um conceito sensitivo e instrutivo sobre a ressurreição dos mortos e a vida eterna; mas a
concessão dela foi esta: os coríntios tinham recebido, a partir da intrusão de falsos mestres,
princípios que militavam contra a grande doutrina. Tinham sido ensinados a modificá-la e a
resolvê-la meramente por um processo que se dá no presente mundo; interpretando o que se
diz da ressurreição dos mortos de uma maneira mística e figurativa. O apóstolo insinua que se
deu por meio de uma mistura das comunicações corrompidas de tais homens com a Igreja
Cristã.”
93. “Comme la plus grande absurdite du monde.” – “Como o maior absurdo do mundo.”
94. Quase aliados a estes são os exemplos de transformações peculiares experimetnadas por
vários insetos, e o estado de repouso e insensibilidade que precede tais transformações; tais
como as crisálidas ou estado aurélio das borboletas, moscas e bichos da seda.”
95. “Ceste diuersite de qualite se monstre.” – “Esta diferença de qualidade se mostra.”
96. “En l’application de ceste similitude.” – “Na aplicação desta similitude.”
97. “Comment different nos corps que nous auons maintenant de ceux que nous aurons apres.”
– “No que respeita a nossos corpos, os quais temos agora, diferirão dos que teremos depois.”
98. “Qu’il n’há maintenant.” – “Do que ele tem agora.”
99. “Au propos precedent.” – “Na afirmação precedente.”
100. “É geralmente aceito pelos expositores que ψυχικὸς aqui, como sendo oposto a πνευματικὸς
(espiritual), especialmente como a expressão é usada com uma referência às palavras de
Moisés acerca do corpo de Adão, ἐγένετο εἰς ψυχὴν ζω̑σαν (tornou-se alma vivente), deve significar
animal (literalmente aquilo que inala o fôlego de vida, necessário à existência de todos corpos
animais), aquilo que é dotado com faculdades de sentido e necessita de alimento, bebida e sono
para seu sustento.” – Bloomfield.
101. “Au reste là où nous traduisons, Sensuel, il y auroit à le trourner au plus pres du Grec,
Animal: c’est à dire, gouuerné et viuiflé de l’ame. Voyla donc que signifie Le corps sensuel. Le
corps spirituel est celuy qui est fiuiflé de l’Esprit.” – “Mas o que traduzimos sensual poderia ser
traduzido mais estritamente do grego, animal; isto é, governado e vivificado pela alma.
Caracteriza, pois, o que está implícito pelo corpo sensual. O corpo espiritual é aquilo que é
vivificado pelo Espírito.”
102. “Sera vne chose beaucoup plus excellent.” – “Será uma coisa muito mais excelente.”
103. “La substance du corps sera tousiours vne.” – “A substância do corpo será sempre a
mesma.”
104. “Animation, qui est nom descendant de ce mot Ame.”Animação, que é um nome derivado
desta palavra Alma.”
105. “Vne nouuelle imagination qu’il ait forgee.” – “Uma nova fantasia que ele teria inventado.”
106. “Ceci n’est point trouué en lieu quelconque de l’Escriture.” – “Isto não se encontra em
nenhuma passagem da Escritura.”
107. “Como se diz, Adão a princípio era uma alma vivente (pois Deus lhe soprou o fôlego de vida
– aquele fôlego puro, divino e celestial), e ele veio a ser alma vivente. Então, depois de haver
perguntado: O que é o homem?, a resposta deve ser esta: Ele é uma alma vivente; ele é todo
alma, e toda essa alma é vida. Mas agora esta alma vivente é sepultada em carne, algo que
perdeu os fins e propósitos verdadeiros, grandes e nobres daquela vida que a princípio lhe fora
dada. Aliás, é verdade que isto é algo muito menos do que se diz do Segundo Adão, em 1
Coríntios 15.45. ‘O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o segundo Adão foi um Espírito
vivificado.’ Este último é muito maior. Para ele uma alma vivente significava viver por si mesmo;
mas o espírito vivificante significa poder para fazer outros viverem. Isso o primeiro Adão não
podia fazer; o mais excelente tipo de vida que possuía (pois houve uma complicação de vidas na
primeira criação desse homem) ele não podia perder; porém não podia dar. Ele não podia perdê-
la de si mesmo; mas também nunca poderia dá-la a outro por meio de algum poder ou eficiência
imediata propriamente sua. Aqui o segundo Adão – a constituição do segundo Adão – estava
muito acima daquela do primeiro, a saber, que ele podia vivificar outros – um espírito vivificante,
não apenas vivificado passivamente, mas vivificado ativamente, um espírito tal como pudesse
gerar espírito e vida difusa.” – Howe’s Workes (Londres, 1834), p. 1209.
108. Os pontos de vista mantidos por Apolinário eram como seguem: “Christum corpus
assumpsisse sine anima, quod pro anima ei fuerit deitas illudque corpus consubstantiale fuisse
deitati, nec ex substantia Mariæ efformatum.” – “Que Cristo assumiu um corpo sem uma alma,
porque a Deidade era para ele no lugar de uma alma, e que o corpo era co-essencial com a
Deidade, e não foi formado da substância de Maria.” – Ver Mastricht’s Theology (1698), vol. ii, p.
975.
109. “Le poure mal-heureux par sa transgression.” – “As pobres e miseráveis criaturas com sua
transgressão.”
110. “Adam donc et Christ.” – “Adão e Cristo, portanto.”
111. “La vie sensuelle, ou animale, c’est à dire, que nous auons par le moyen de l’ame, precede.”
– “A vida sensual ou animal, isto é, o que temos por meio da alma, vem primeiro.
112. “Plus haute et excellente que la terre.” – “Mais elevada e mais excelente do que a terra.”
113. “La nature de l’antithese et comparison.” – “A natureza do contraste e comparação.”
114. “La meschante imagination.” – “A perversa fantasia.”
115. “Pourtant en lieu de Nous porterons, aucuns ont traduit Portons. Et mesme aucuns liures Grees
le lisent ainsi.” – “Daí, em vez de suportaremos, alguns o traduziram que suportemos. E mesmo
alguns manuscritos gregos contêm essa redação.”
116. “Par maniere de passe-temps, et tout à leur aise.” – “À guisa de passa-tempo, e com
naturalidade.”
117. Esta é a redação da Vulgata.
118. “Qui leur estoit plus probable.” – “A que lhes parecia a mais provável.”
119. “Il y auoit sur ceci vne question qu’on pouuoit faire.” – “Havia uma questão quanto a isso, a
qual poderia ser apresentada.”
120. Semler declara que alguns nos dias de Jerônimo preferiram ῥοπῃ, mas o próprio Jerônimo
preferiu ῥιπῃ. ̔Ροπῃ é derivado de ῥέπω, tender ou inclinar para. Significa força ou ímpeto.
121. “Pour ce que quand on se resueille, on cleigne ainsi des yeux.” – “Porque, quando as
pessoas despertam, piscam dessa forma com seus olhos.”
122. “A trombeta soará [1Co 15.52], diz o mestre profeta. E quão notável, quão estupenda
convocação! Nada igual a ela, nada semelhante já foi ouvido por todas as regiões do universo, ou
todas as revoluções dos tempos. Quando os exércitos em conflito descarregam o estampido da
artilharia de guerra, ou quando os exércitos vitoriosos fazem soar seu grito de triunfo ante a
vitória, os mares e as praias são cercados, as montanhas e planícies fazem ecoar. Mas o brado
do arcanjo e a trombeta de Deus ressoarão de um a outro polo – traspassará o centro e abalará
as colunas do céu. Cada vez mais forte, e ainda mais forte penetrará mesmo os mais profundos
recessos do túmulo! Derramará seu espantoso trovão em todas as moradas do silêncio. Os
mortos, os próprios mortos, ouvirão.” Hervey’s Theron and Aspasio, Vol. ii. p. 66.
123. “Vne declaration ou amplification.” – “Uma declaração ou ampliação.”
124. “As palavras, como alegado por Paulo” (de Is 25.8), “são encontradas na versão de
Teodocião, como que o Targum e a Siríaca concordam em redigir o verbo como passivo. [lk em
Piel, como aqui, comumente significa destruir, destruir totalmente; em Kal., a significação mais
usual é a de tragar, a qual, infelizmente, a maioria das versões adotou. Os tradutores gregos
traduziram j[nl por ἰσχύσας, εἰς τέλος, εἰς νúκος; anexando ao termo a idéia de que é irrestível, durável,
completo. As significações da raiz hebraica, j[n, usada somente em Niphal e Piel, são brilhar, guiar,
guiar sempre, ser completo; em caldaico, ultrapassar, exceder, sobrepujar; daí a idéia de vitória,
eternidade etc., anexada a j[n, e de completamente, inteiramente, para sempre etc., a j[n, j[nl.
Portanto, as palavras são equivalentes a ὁ θάνατος ὀυκ ἐσται ἐτι (a morte não mais existirá),
Apocalipse 21.4, onde parece haver uma alusão a nosso texto; e onde o tema é, como aqui, não
um estado milenial da Igreja, mas o estado de glória depois da ressurreição do corpo.” –
Henderson on Isaiah.
125. “Ie les eusse rachetez – ie les eusse deliurez.” – “Eu os poderia ter remido – eu os poderia
ter resgatado.”
126. Lors vrayement et à bom escient il sauue les fideles.” – “Ele então real e eficazmente salva
os crentes.”
127. “Esta vitória não será apenas gradual, mas total e final. Cada coisa que pertence à
mortalidade, que estava pendente sobre esses gloriosos vencedores, será tragada pela vida
perfeita e infindável. Primeiro, o ferrão da morte é arrancado – desarmado –, e então será
facilmente vencida. Lemos que seu ferrão é o pecado – o que é mais letal na morte. O apóstolo
tinha em mente também a morte no sentido moral. E a insultante inquirição: ‘Onde está?’
implica que esta não pode ser encontrada em parte alguma; e significa sua total abolição, e,
conseqüentemente, deve-se inferir que cada coisa que pertence à morte deve para sempre
cessar de existir.” – Howe’s Works (Londres, 1834), p. 1035.
128. “En sorte que nous aurons plene et parfaite victoire à l’encontre d’elle.” – “De modo que
teremos uma plena e completa vitória sobre ela.”
129. “Où est ton plaid, c’est à dire, le proces que tu intentes contre nous, ó mort?” – “Ó morte,
onde está tua praga? – isto é, o processo que tu moveste contra nós?”
130. “A passagem (diz o Dr. Bloomfield) é de Oséias 13.14, e as palavras do apóstolo só diferem
das antigas versões na transposição de νúκος (vitória) e κέντρον (aguilhão); exceto que para νúκος a
Setenta tem δίκη (processo).”
131. “Car en lieu du mot diki, qui signifie plaid ou proces, il a mis nicos, qui signifie victoire.” –
“Pois em lugar da palavra δίκη, que significa uma ação ou processo, usaram νúκος, que significa
vitória.
132. “D’autant que ceste esperance en est le fondement.” – “Uma vez que a esperança é o
fundamento dela.”
Capítulo 16

1. No tocante à coleta para os santos, fazei vós também o que ordenei às igrejas da
Galácia.
2. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha à parte, conforme sua
prosperidade, e vá juntando, para que não se façam coletas quando eu for.
3. E quando eu chegar, enviarei, com cartas, para levarem vossas dádivas a Jerusalém,
aqueles que aprovardes.
4. E, se valer a pena que eu também vá, os levarei comigo.
5. Ora, eu irei a vós, quando passar por Macedônia; porque devo percorrer a Macedônia.
6. Mas é provável que convosco me demore, ou mesmo passe o inverno, para que me
encaminheis nas viagens que eu tenha de fazer.
7. Porque não quero ver-vos agora apenas de passagem, pois espero permanecer
convosco algum tempo, se o Senhor o permitir.

1. Cæterum de collecta quæ fit in sanctos, quemadmodum ordinavi Ecclesiis Galatiæ, ita
et vos facite.
2. In una sabbatorum unusquisque vestrum apud se seponat, thesaurizans quod
successerit, ne, quum venero, tunc collectæ fiant.1
3. Ubi autem affuero, quos probaveritis per epistolas, eos mittam, ut perferant
beneficentiam vestram in Ierusalem.
4. Quodsi fuerit operæ pretium me quoque profisci, mecum proficiscentur.
5. Veniam autem ad vos, quum Macedoniam transiero: Macedoniam enim pertransiturus
sum.
6. Apud vos autem forte permanebo, aut etiam hibernabo, ut vos me deducatis
quocunque proficiscar.
7. Nolo enim vos nunc in transcursu videre: sed spero me ad aliquod tempus mansurum
apud vos, si Dominus permiserit.

1. No tocante à coleta. Lucas nos fala em Atos 11.28 que a profecia de


Ágabo, de que haveria fome no reinado do imperador Cláudio, propiciou aos
santos a oportunidade de coletar esmolas para a assistência dos irmãos em
Jerusalém. Pois, embora o profeta haja declarado que quase o mundo todo
seria participante nesta hecatombe, todavia, visto que os habitantes de
Jerusalém se encontravam afetados por terrível pobreza, e visto que todas
as igrejas gentílicas, se quisessem evitar a acusação de ser ingratas, estavam
na obrigação de socorrer o lugar donde haviam recebido o evangelho, o
resultado foi que os crentes esqueceram de si mesmos e se preocuparam em
prover assistência a Jerusalém. O fato de que viviam uma vida difícil,
enfrentando terrível necessidade em Jerusalém, faz-se evidente, à luz da
Epístola aos Gálatas [2.10], onde Paulo declara que os apóstolos o
incumbiram da tarefa de animar os gentios a proverem assistência.2 Os
apóstolos, porém, jamais lhe confiariam tal incumbência se de fato sua
carência não fosse em extremo premente. Além do mais, este versículo realça
a verdade do que Paulo também assevera naquela outra passagem, a saber,
que ele se esforçara para encorajar os gentios a doarem para o alívio de
necessidades desse gênero. Agora, porém, ele ministra instruções sobre a
maneira de prestarem esse auxílio. Para que os coríntios pudessem
concordar com tudo prontamente, ele menciona o fato de que já havia
prescrito o mesmo às igrejas da Galácia; pois um exemplo teria causado
forte influência sobre eles, visto que somos por natureza inclinados a não
ter nada a ver com algo que não foi ainda suficientemente experimentado.
Em seguida vem o método pelo qual ele pretendia livrar-se de todas as
delongas e entraves.
2. Num dos sábados. O que Paulo almeja é que os coríntios tivessem
suas esmolas prontas a tempo. Ele, pois, lhes diz que não esperassem sua
chegada, porque tudo o que é feito inadvertidamente e às pressas
geralmente não é bem feito; mas que contribuíssem segundo sua intenção,
cada um segundo suas posses, no dia de descanso; em outros termos, no
dia em que se reuniam para o culto.
Crisóstomo explica a frase κατὰ μίαν σαββύτων, como significando “no
primeiro sábado”. Não concordo com ele; pois a intenção do apóstolo é
antes que uma pessoa deveria contribuir sábado após sábado; ou cada um
deles em cada sábado, se assim o desejassem. Pois o apóstolo está
pensando, antes de tudo, em termos de conveniência; e, em segundo lugar,
que a reunião para o culto, quando os crentes se regozijavam na comunhão
dos santos, poderia ser-lhes um incentivo adicional.
Não há necessidade de aceitar-se a opinião de Crisóstomo de que o
sábado aqui foi substituído pelo Dia do Senhor; pois é bem provável que no
princípio os apóstolos retivessem o dia que já lhes era familiar, mas que
mais tarde as observâncias escrupulosas dos judeus os forçaram a desistir
dele e substituí-lo por outro [dia]. Ora, o Dia do Senhor foi escolhido em
preferência a todos os demais, visto que a ressurreição de nosso Senhor pôs
fim às sombras da lei. Portanto, este dia nos leva a recordar de nossa
liberdade cristã.
Finalmente, é-nos fácil inferir deste versículo que os fiéis sempre tiveram
um dia específico para descansarem de suas obras, não porque a inatividade
seja uma forma de servir a Deus, mas porque ele é importante na
preservação da concórdia, ou, seja, que um dia específico fosse designado
para a reunião de culto, visto que a mesma não pode realizar-se todos os
dias. Porque, embora Paulo, em outra passagem, proíba que se faça qualquer
distinção entre dia e dia, devemos entendê-lo procedendo assim no
interesse da religião, e não em virtude do governo e da ordem externos.3
Entesourando. Preferi reter o particípio grego (θησαυρίζειν), porque ele
pareceu-me expressar a idéia de forma muito mais enfática.4 Pois embora
θησαυρίζειν signifique armazenar, entretanto, em minha opinião, o apóstolo
pretendia ressaltar aos coríntios que sempre que pudessem contribuir para
os santos, seria melhor e mais seguro que armazenassem o que pudessem.
Pois se foi possível a um poeta pagão dizer: “As riquezas que você distribuir
são as únicas que você possuirá para sempre”,5 tal princípio não deveria ter
uma influência ainda maior entre nós, por não dependermos da gratidão
humana, e, sim, de Deus que se coloca no lugar do pobre como devedor,
para que um dia venha a restituir-nos, com maior interesse, tudo quanto
distribuímos? Esta é a razão por que a palavra de Paulo é um eco do dito de
Cristo: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e
a ferrugem corroem, e onde os ladrões escavam e roubam” [Mt 6.19].
Conforme sua prosperidade. Em lugar disto a Vulgata tem: “segundo
sua própria discrição”; certamente que o tradutor entendeu mal a similitude
das palavras.6 Erasmo, por outro lado, traduziu: “segundo a conveniência.”7
Nenhuma das duas me satisfaz, por esta razão: que o próprio significado da
palavra é muito mais adequado, a saber, “continuar prosperamente”. Daí ele
chamar a cada um deles a considerar sua capacidade: “Que cada um de vós
dê em proporção a sua renda, segundo Deus o tenha abençoado.”
3. E quando eu chegar. Visto que somos mais propensos a dar quando
temos uma noção definida de que nossos donativos serão bem
administrados, o apóstolo mostra aos coríntios como poderão ter certeza
de que seus donativos estarão em boas e dignas mãos, ou, seja, escolhendo
eles pessoas cuja dignidade já tenha sido comprovada, e confiando-lhes este
santo mister. Mais que isso, ainda lhes oferece seus serviços pessoais, caso
precisem deles; o que revela que o apóstolo tinha tal propósito em seu
coração.
5. Quando passar por Macedônia. A opinião geralmente aceita é que
esta carta foi enviada de Filipos. Se alguém quisesse fazer a viagem dali para
Corínto, por via terrestre, era necessário passar por Macedônia; porque a
colônia de Filipos ficava situada na região mais afastada, contornando os
montes ematianos. É verdade que Paulo poderia ter ido lá por via marítima
em vez de viajar por terra, mas ele queria visitar as igrejas da Macedônia a
fim de confirmá-las com sua visita. Esta é uma forma usual de agradar.
Todavia, parece-me mais provável que a carta foi escrita de Éfeso, porque
pouco depois ele diz que “ficarei, porém, em Éfeso até ao Pentecoste” [v. 8].8
Da mesma forma, ele saúda os coríntios, não em nome dos filipenses, e, sim,
das igrejas da Ásia [v. 19].9 Além do mais, ele faz uma afirmação muito clara,
na segunda carta, ou, seja, que após ter enviado esta carta ele passaria por
Macedônia [2Co 2.13]. E, depois de passar por Macedônia, ele estaria
desimpedido de Éfeso, mas, por outro lado, vizinho da Acaia. Portanto, não
tenho dúvida de que nesse tempo ele estava em Éfeso. Dali alguém poderia
cruzar o mar direto a Acaia; enquanto que alguém, ao visitar a Macedônia,
tinha que tomar uma rota mais difícil e um longo desvio. Paulo, pois, os faz
saber que não iria ter com eles tomando uma rota direta, porque ele tem que
“passar por Macedônia”.
Não obstante, ele promete aos coríntios que ficará muito tempo com
eles; e é assim que revela seu grande amor [amorem] por eles. Pois, que
outra razão o levaria a fazer uma visita tão extensa, a não ser o fato de estar
preocupado com o bem-estar deles? Em contrapartida, ele está mostrando o
quanto está convencido, além de qualquer sombra de dúvida, da afeição
[caritate] que eles, de sua parte, têm para com ele, ao dar por admitido que
lhe farão a gentileza de escoltá-lo com o intuito de ajudá-lo no caminho;
porquanto diz isso com base na confiança que depositara na amizade
deles.10
Mas, após dizer tudo isso, ele o modifica com o adendo: se o Senhor mo
permitir. Os crentes devem adicionar esta cláusula a todos seus planos e
intenções. Pois é muito temerário comprometer-se e traçar planos definidos
para muitos eventos futuros, visto que não temos um único momento sob
nosso próprio controle. Não obstante, embora o passo mais importante seja
submeter a Deus, em sua providência, todas nossas intenções,11 em nossos
próprios corações, todavia, ao mesmo tempo, é saudável que nos
habituemos a usar expressões como esta, para que, ao tratarmos de eventos
futuros, façamos tudo depender da vontade de Deus.12

8. Mas ficarei em Éfeso até o Pentecoste;


9. pois uma porta grande e oportuna se me abriu; e há muitos adversários.
10. Ora, se Timóteo for, vede que esteja convosco sem receio, porque trabalha na obra
do Senhor, como também faço;
11. ninguém, pois, o despreze. Mas encaminhai-o em paz em sua viagem, para que
venha ter comigo, pois o espero com os irmãos.
12. No tocante a nosso irmão Apolo, muito lhe tenho recomendado que fosse ter
convosco em companhia dos irmãos, mas de modo algum era a vontade dele ir agora;
porém irá quando se lhe deparar boa oportunidade.

8. Commorabor autem Ephesi usque ad Pentecosten.


9. Nam ostium mihi apertum est magnum et efficax, et13 adversarii multi.
10. Quodsi venerit Timotheus, videte, ut absque metu sit apud vos: opus enim Domini
operatur, quemadmodum et ego.
11. Ne quis igitur eum spernat: sed prosequamini eum cum pace, ut veniat ad me:
exspecto enim eum cum fratribus.
12. Porro de Apollo fratre, multum hortatus sum illum, ut veniret ad vos cum fratribus, at
omnino non fuit voluntas nunc eundi: veniet autem, quum opportunitatem nactus erit.

8. Ficarei. Tenho usado este versículo em abono de meu argumento de


que esta carta foi enviada de Éfeso, e não de Filipos. Pois é provável que o
apóstolo estivesse se referindo ao lugar onde vivia ao tempo em que
escreveu, e não ao lugar onde teria chegado por uma via de atalho. Além
disso, passar por Macedônia seria preciso desviar-se de Corinto, ao
aproximar-se dela, e atravessar o mar de navio a fim de alcançar Éfeso.
Portanto, o apóstolo lhes está dizendo da vantagem de permanecer em
Éfeso até a chegada do Pentecoste; e outra razão para proceder assim era
fazê-los esperar por ele com muita paciência.
Erasmo preferiu “até ao qüinquagésimo dia”. Ao adotar esta tradução, ele
estava sob a influência de conjeturas malogradas, e não de um raciocínio
sólido. Ele alega que o dia de Pentecoste, como ora observado, não havia
ainda sido estabelecido como uma festa cristã. Concordo com ele no tocante
a este fato. Ele nega que isso deva ser entendido como uma referência à festa
judaica, visto que, mais de uma vez, Paulo condena e renuncia a
observância escrupulosa de dias. Entretanto, dou-lhe razão, não que o
apóstolo observasse esse dia em Éfeso porque estivesse obrigado pelo
escrúpulo relativo a ele, mas que o fez porque haveria um grande
ajuntamento de pessoas na ocasião, e assim ele esperava apresentar-se-lhe
uma boa oportunidade de proclamar o evangelho. Semelhantemente,
quando se sentiu solícito de chegar em Jerusalém, a razão que apresentou
para justificar sua pressa foi que assim ele estaria lá para o Pentecoste [At
20.16]. Enquanto outros foram lá com o intuito de oferecer sacrifícios
segundo os ritos da lei, ele foi com um intuito bem diferente em seu espírito,
pensando que, quanto maior o número de pessoas presentes, também maior
seria a eficiência de seu ministério. No entanto, seria totalmente fora de
propósito sugerir que ele aqui estivesse pensando num período exato de
cinqüenta dias. Posto que ele diz explicitamente τὴν πεντηκοστήν (o
Pentecoste), isto só pode ser considerado no sentido de um dia específico.
Se o leitor desejar saber mais sobre esta festa, então que leia Levítico 23.16.
9. Pois uma grande porta se me abriu. Paulo tinha duas razões para
ficar mais tempo em Éfeso: (1) porque uma oportunidade lhe está
despontando para pregar o evangelho; e (2) porque sua presença é
particularmente necessária devido à presença de um grande número de
adversários. Portanto, é como se dissesse: “Ao prolongar-se minha estada
aqui um pouco mais, eu poderei realizar uma porção de obras valiosas; ao
passo que, se eu não estiver lá, Satanás poderá fazer enormes danos.
Na primeira parte deste versículo, ele usa uma metáfora bem comum, ao
tomar a palavra porta no sentido de uma oportunidade, pois o Senhor estava
lhe abrindo uma via de acesso para a proclamação do evangelho. Ele
qualifica esta porta de grande, porque poderia ganhar muitas pessoas. Ele a
qualifica de oportuna, porque o Senhor estava abençoando seu trabalho e
fazendo seu ensino eficaz pelo poder de seu Espírito. Vemos, pois, que este
santo homem divisava a glória de Cristo em toda parte, e não escolhia um
lugar que se adequasse a sua própria conveniência ou seu bel-prazer; senão
que sua única preocupação era onde pudesse ser mais útil e onde pudesse
servir o Senhor e pudesse pôr em evidência uma maior extensão de seu
trabalho.
A isto ele acrescenta que de maneira alguma se esquivava das
dificuldades, senão que voluntariamente se colocava onde via que a batalha
estava para deflagrar mais violentamente e a carga era mais pesada. Ele
estava ficando em razão das ameaças de muitos adversários, e porque era
ele o mais bem equipado para resistir seus ataques, então sentia-se obrigado
a apresentar-se bem preparado e disposto a começar a luta.
10. Ora, se Timóteo for. Ele fala como se ainda não estivesse certo se
Timóteo iria. Mas o recomenda ao cuidado deles, para que pudesse chegar
entre eles sem qualquer dano, não porque estivesse em perigo de vida, mas
porque certamente encontraria a oposição de muitos inimigos de Cristo.
Portanto, ele deseja que cuidem bem dele para que não sofra nenhum mal.
E apresenta o motivo: “porque ele trabalha na obra do Senhor.”
Deduzimos disto que a Igreja de Cristo deve preocupar-se em preservar as
vidas de seus ministros; e é sem dúvida justo que aquele que é mais rico
faça ofertas mais generosas, e assim participe da edificação dos piedosos; e
quanto mais dedicado é ele, ainda mais preciosa nos é sua vida.
A frase, “como também faço”, foi adicionada ou para pôr em relevo sua
dignidade, ou simplesmente para realçar o fato de que ambos estavam
incumbidos da mesma sorte de lide, labutando no ministério da Palavra.
11. Ninguém, pois, o despreze. Aqui ele lhes dirige uma diretriz
adicional sobre Timóteo: que ele não fosse desprezado – talvez porque fosse
ainda jovem, visto que os jovens geralmente não são respeitados de maneira
tão honrosa. Paulo, pois, queria que estivessem atentos para que nada
obstruísse o caminho de um fiel ministro de Cristo de receber ele as honras
que merece. É provável que Paulo tivesse em mente que, se os coríntios não
se preocupavam com a vida de Timóteo, como deviam, então tal atitude era
um sinal de que o desprezavam. Entretanto, este exemplo de recomendação
parece ir mais além, e significa também que não pensavam pouco de
Timóteo por não saberem nada de sua dignidade.
Em terceiro lugar, ele os instrui a encaminharem Timóteo em paz em sua
jornada, ou, seja, a salvo de todo mal. Porque paz aqui significa segurança.
12. No tocante ao irmão Apolo. Apolo sucedera a Paulo na tarefa de
edificar os coríntios, e o apóstolo se referiu a ele antes como aquele que
realizava a tarefa de regar [1Co 3.6; At 19.1]. Ele agora o justifica por não ter
vindo com os demais, e assim o faz a fim de que os coríntios não viessem a
suspeitar de que o mantinha escondido. Porque, visto que Apolo era então
bem conhecido deles, sentiam-se todos bem relacionados com ele; e assim
era-lhes fácil supor que, uma vez que Paulo se sentia ofendido com eles,
então arquitetara intencionalmente que Apolo permanecesse ausente.14 Por
certo que poderiam ter perguntado nestes termos: “Por que ele nos enviou
os outros, e não Apolo?” O apóstolo responde que certamente não foi por
culpa sua, porque ele insistira com Apolo que fosse, porém ele mesmo
prometera que iria assim que uma chance lhe surgisse.

13. Vigiai e permanecei firmes na fé; portai-vos varonilmente; sede fortes.


14. Que todas vossas coisas sejam feitas com amor.
15. Rogo-vos, pois, irmãos (sabeis que a casa de Estéfanas, que é as primícias da Acaia,
e que se dedicaram ao ministério dos santos),
16. que também vos sujeiteis a esses tais, bem como a todo aquele que coopera e luta
na obra.
17. Regozijo-me com a vinda de Estéfanas, de Fortunato e de Acaico; porque estes
supriram o que de vossa parte faltava.
18. Porque trouxeram refrigério a meu espírito e ao vosso. Reconhecei, pois, a homens
como estes.
19. As igrejas da Ásia vos saúdam. Aquila e Priscila vos saúdam no Senhor e, bem assim,
a igreja que está na casa deles.
20. Todos os irmãos vos saúdam. Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo.
21. A saudação escrevo-a eu, Paulo, de próprio punho.
22. Se alguém não ama ao Senhor, seja anátema. Maranata!
23. A graça do Senhor Jesus Cristo seja convosco.
24. Meu amor seja com todos vós em Cristo Jesus. Amém.

13. Vigilate, state in fide, viriliter agite, robusti estote.


14. Omnia vestra in caritate fiant.
15. Hortor autem vos, fratres, nôstis domum Stephanæ, primitias esse Achaiæ, atque ut
se in ministerium sanctorum ordinaverint:
16. Ut etiam subiecti sitis talibus, et omnibus qui cooperantur et laborant.
17. Gaudeo autem de præsentia Stephanæ, et Fortunati, et Achaici: quia quodo deerat a
vobis, ipsi suppleverunt.
18. Refocillârunt enim spiritum meum et vestrum: agnoscite ergo tales.
19. Salutant vos Ecclesiæ Asiæ: salutant vos multum in Domino Aquila et Priscilla cum
domestica eorum Ecclesia.
20. Salutant vos fratres omnes: salutate vos invicem in osculo sancto.
21. Salutatio mea manu Pauli.
22. Si quis non amat Dominum Iesum Christum, sit anathema maranatha.
23. Gratia Domini Iesu Christi sit vobiscum.
24. Dilectio mea cum vobis omnibus in Christo Iesu. Amen.

13. Vigiai. Uma exortação breve, porém muito importante. Ele os


convoca à vigilância para que Satanás não os colha de surpresa quando
porventura baixarem a guarda. Pois assim como a guerra é incessante, a
vigilância também requer que seja sem interrupção. Ora, esta é a vigilância
de espírito: quando, livres e desembaraçados das preocupações terrenas,
meditamos nas coisas de Deus. Pois como o corpo é vergado pelos excessos
e embriaguês [Lc 21.34], ao ponto de para nada servir, assim os cuidados e
paixões do mundo, a indolência ou displicência, são como excessos
espirituais que subjugam a mente.15
A segunda chamada de atenção é que perseverem na fé, ou que
conservem uma fé imperturbável, para que permaneçam firmes, visto que
ela [a fé] é o fundamento sobre o qual repousamos. Entretanto, é indubitável
que ele ressalta os meios da perseverança – descansar em Deus com uma fé
inabalável.
Em terceiro lugar, visto que por natureza somos fracos, ele insta com eles
a se fortalecerem ou a obterem força. Pois onde traduzimos sede fortes,
Paulo usa apenas uma palavra, que é equivalente em significado a fortalecei-
vos [roborari].
14. Que todas vossas coisas sejam feitas com amor. Uma vez mais, o
apóstolo reitera a regra que deve governar todo nosso comportamento
mútuo. Ele deseja, pois, que o amor esteja no controle, visto que o maior
erro dos coríntios era que cada um se preocupava com seus próprios
negócios, ignorando os dos outros.
15. Sabeis que a casa de Estéfanas. Sabemos de nossa própria
experiência cotidiana qual é um bom critério, a saber: que aqueles a quem
Deus equipou com os dons mais excelentes se revestem de maior
autoridade. Portanto, se quisermos assegurar o bem-estar da Igreja, então
devemos cuidar para que os homens bons sejam honrados. Que seus
conselhos tenham maior peso. Que nos empenhemos por sua tranqüilidade
e que nos deixemos guiar por sua sabedoria. O apóstolo está fazendo isso
neste versículo, ao aconselhar os coríntios a mostrarem respeito para com a
casa de Estéfanas. Alguns manuscritos adicionam e Fortunato.16 Pois Deus se
nos manifesta quando ele nos exibe os dons de seu Espírito. Daí, se não
quisermos ser tidos como desprezadores de Deus, então que
voluntariamente nos submetamos àqueles a quem Deus conferiu dons
superiores.
Ora, para que se inclinassem mais a revestir de honra aquela casa (pois,
neste versículo, a mim me parece que a adição, ao menos neste lugar, é
espúria), ele lhes traz à lembrança que eram “as primícias da Acaia”; em
outros termos, os membros da casa de Estéfanas foram os primeiros a
abraçar o evangelho. Por certo que nem sempre é o caso de a pessoa que é a
primeira no campo seja por isso melhor que os demais; mas onde a
perseverança se faz acompanhar, aqueles que, em certo sentido, abriram
caminho para o evangelho, pela prontidão com que creram, geralmente
merecem ser honrados. Deve-se observar, contudo, que ele dignifica com
este honroso título os que tinham consagrado aos crentes seus serviços e
recursos. Pela mesma razão ele fala bem de Fortunato e de Acaico mais
adiante dizendo que, quanto melhor é uma pessoa, quanto mais
excelentemente17 é considerada, tanto mais capaz é ela de prestar um
serviço ainda mais prestimoso. Além do mais, a fim de que os coríntios se
sentissem mais inclinados a amá-los, ele diz que esses homens tinham sido
compensados pelos serviços vicários, naquilo que a Igreja não pudera lhes
oferecer.
19. Com a igreja que está na cada deles. Um elogio magnificente, visto
que o nome da Igreja é aplicado a uma única família! Ao mesmo tempo, é mui
apropriado que todas as famílias crentes sejam organizadas de tal forma que
se transformem em muitas pequenas igrejas. Em contrapartida, o título
congregação, que Erasmo preferiu, não está em harmonia com o que o
apóstolo tinha em mente. Pois ele não pretendia descrever um mero grupo
de pessoas e usar uma palavra comum para isso, senão que faz referência,
com grande respeito, à organização de uma casa cristã particular [de
christiana oeconomia]. O fato de lhes enviar saudações em nome de Aquila e
Priscila confirma o que já frisei, ou, seja, que esta carta foi escrita de Éfeso e
não de Filipos. Pois Lucas nos informa que eles permaneceram em Éfeso
enquanto Paulo foi a outros lugares [At 18.19].
20. Saudai uns aos outros com ósculo santo. Oscular era um costume
muito popular entre os judeus, como a Escritura fornece evidência. Na
Grécia, embora o hábito não fosse tão costumeiro e comezinho, todavia não
era de todo desconhecido. No entanto, é provável que o apóstolo aqui esteja
falando de um ósculo solene, com o qual saudavam uns aos outros na santa
assembléia. Pois minha convicção é que desde os tempos dos apóstolos um
ósculo já era praticado em relação à administração da Ceia.18 Mas entre as
nações que não quiseram de forma alguma adotar a prática do ósculo,
começou-se ali, em seu lugar, o costume de oscular a pátena.19 Seja como for,
visto que ele era um emblema de amor recíproco, não tenho dúvida de que
Paulo tencionasse exortá-los ao cultivo da boa vontade, entre eles, não só
em suas mentes20 e nos deveres que eram obrigados a realizar, mas também
com esse emblema, conquanto fosse santo, por assim dizer, não lascivo nem
fingido.21
22. Se alguém não ama ao Senhor Jesus. A conclusão da carta consiste
de três partes. Ele ora para que os coríntios possuíssem a graça de Cristo.
Faz uma declaração de seu amor para com eles, com a mais severa das
ameaças arremetida contra aqueles que faziam uma falsa confissão do nome
do Senhor, quando não o amavam de coração. Pois ele não está se referindo
a estranhos, os quais não ocultavam seu mais intenso ódio pelo nome
cristão, mas a pretensiosos e hipócritas que perturbavam as igrejas em prol
de seus próprios ventres ou movidos por vã ostentação.22 Sobre tais
pessoas ele pronuncia anátema, bem como maldição. Entretanto, não é certo
se ele deseja sua destruição na presença de Deus, ou se deseja torná-las
odiosas – sim, ainda execráveis aos olhos dos crentes. Por exemplo, em
Gálatas 1.8, ao declarar anátema23 alguém que corrompe o evangelho, ele
não quer dizer que tal era rejeitado ou condenado por Deus, mas afirma que
o tal deve ser tido por nós na conta de repugnante. Eu o explico de uma
maneira simples, a saber: “Que sejam eles desarraigados e pereçam, pois são
uma peste na Igreja.” E de fato não há nada mais pernicioso do que esse
gênero de pessoas que tiram proveito da profissão religiosa em busca de
seus próprios interesses corruptos. Então ele põe em relevo a origem deste
mal, ao dizer que não amam a Cristo, pois um amor sincero e ardente por
Cristo não nos permitirá dar ocasião para escandalizar os irmãos.24
O que ele adiciona imediatamente – Maranatha – é um tanto mais difícil.
Quase todos os antigos pais concordam que esses são termos siríacos.25
Jerônimo, contudo, a explica nestes termos: O Senhor vem; enquanto outros
a traduzem assim: Na vinda do Senhor; ou, Até que o Senhor venha.
Entretanto, cada um deles, creio eu, deve perceber quão tolo e pueril é a
idéia de que o apóstolo falou aos gregos no idioma siríaco, quando queria
dizer: O Senhor vem. Os que a traduzem como: Na vinda do Senhor estão
apenas aventurando-se numa mera conjetura; e, além disso, não há muita
plauzibilidade nessa interpretação. Quanto mais provável é que esta era uma
forma costumeira de expressão entre os hebreus, quando queriam
excomungar alguém. Pois os apóstolos nunca se expressam em línguas
estrangeiras, exceto quando repetem algum pensamento na pessoa de outro,
como, por exemplo: Eli, Eli, lama sabachthani [Mt 27.46]; Talitha cumi [Mc
5.41]; e Ephphatha [Mc 7.34], ou quando fazem uso de uma palavra que já
havia passado para o uso popular, como Amém e Hosana. Vejamos, pois, se
Maranatha se adequa à excomunhão. Ora, Bullinger,26 na autoridade de
Teodoro Bibliander, afirmou que, no dialeto caldaico, Maharanata tem o
mesmo significado do termo hebraico, !rj [cherem, isto é, maldito];27 e eu
mesmo, em certo tempo, me certifiquei da mesma coisa através de Walfgang
Capito,28 homem de memória bendita. Entretanto, nada é inusitado se o
apótolo escreveu tais termos de forma diferenciada da forma na qual eles
são pronunciados no idioma do qual têm sua origem; como podemos ver
inclusive de exemplos supra-apresentados. O apóstolo, pois, após
pronunciar um anátema sobre os que não amam a Cristo,29 profundamente
afetado com a seriedade da matéria, como se sentisse que não dissera o
bastante, adicionou um termo que era do uso corrente entre os judeus, e do
qual faziam uso quando pronunciavam uma sentença de anátema –
justamente como se, falando em latim, eu dissesse: “Eu te excomungo”’; mas
se eu acrescentasse: “e te declaro anátema”, esta seria uma expressão do
mais intenso sentimento.30

1. “C’est qu’en vn des Sabbaths (ou, que chacun premier iour de la sepmaine) chacun de vous
mette à part par deuers soy, thesaurisant de ce qu’il aura prosperé, afin que (ou, serrant ce qu’il
pourra par la benignite de Dieu, afin) lors que ie viendray, les collectes ne se facent point.” –
“Isto é, que num dos sábados (ou que em cada primeiro dia da semana) cada um de vós ponha
pessoalmente à parte, entesourando segundo tem prosperado (ou, pondo o que ele puder fazer
pela bondade de Deus), para que não se faça coleta quanto eu for.”
2. “D’inciter les Gentiles à subuenir à la pourete qui y estoit.” – “Incitar os gentios a aliviar a
pobreza que existia ali.”
3. “Quand on le fait pour deuotion, comme cela estant vn seruice de Dieu, et non pas pour la
police externe.” – “Quando é feito pela causa da devoção, como se fosse um serviço feito a
Deus, e não com vistas à administração externa.”
4. “On a par ci deuant traduit, amassant; mais i’ay mieux aimé retenir la propriete du mot Grec.”
– “A palavra diante de nós foi traduzida por depositar; mas preferi reter a força peculiar da
palavra grega.”
5. “Quas dederis, solas semper habebis opes.” (Martial. Ep. v.42.) Uma idéia afim ocorre nos
escritos do poeta Rabirius. “Hoc habeo, quodcunque dedi.” – “Eu tenho tudo quanto tenho dado.”
(Ver Sêneca, lib vi. de Benef.) Alexandre o Grande (como declarado por Plutarco), quando
interrogado onde depositava seus tesouros, respondeu: “Apud amicos” – “Entre meus amigos.”
6. “S’abusant a l’affinite des deux mots Grecs.” – “Entendeu mal pela semelhança entre as duas
palavras gregas.” A intenção de Calvino parece ser que o verbo εὐοδόομαι (ser próspero) usado
aqui por Paulo fora confundido com εὐδοκέω (parecer bem).
7. “C’est a dire selon sa commodite.” – “Isto é, segundo sua conveniência.”
8. “Paulo agora estava em Éfeso; pois quase todos admitem, em oposição à subscrição no final
da Epístola, que isso expressa ter ela sido escrita de Filipos, que ela foi escrita de Éfeso; e isso é
apoiado por muitos e fortes argumentos; e o versículo 8, aqui, parece colocar a questão fora de
toda e qualquer dúvida..” – Dr. Adam Clarke.
9. “As igrejas da Ásia vos saúdam, isto é, às igrejas da Ásia Menor. Éfeso estava nesta Ásia, e é
evidente à luz deste fato que o apóstolo não estava em Filipos. Estivesse ele em Filipos, como o
título expressa, teria dito: As igrejas da Macedônia, não as igrejas da Ásia, vos saúdam.”
10. “Ils le conduiront par tout où il ira.” – “Eles o conduzirão por onde quer que ele vá.”
11. “Tout ce que nous entreprenons et consultons.” – “Tudo o que empreendermos e
resolvermos.”
12. “De remettre à la volonte de Dieu tout ce que nous entreprrendrons pour le temps aduenir.” –
“Ao ponto de atribuirmos à vontade de Deus tudo o que empreendermos pelo tempo por vir.”
13. “Et, ou mais, il y a.” – “E, ou mas, há.”
14. “Que sainct Paul se sentant offensé par les Corinthiens, auoit attitré cela tout expres, qu’
Apollos n’allast point vers eux.” – “Que São Paulo, sentindo-se ofendido com os coríntios,
intencionalmente tinha decidido que Apolo não fosse ter com eles.”
15. “Sont comme vne yurongnerie sprituelle, qui assopit et estourdit l’entendement.” – “São como
a embriaguez espiritual, que faz a mente entorpecida e estúpida.”
16. Os manuscritos Alexandrino e Copta lêem: e Fortunato. A Vulgata lê: Fortunatum et Achaicum; em
concordância com a qual está a tradução de Wiclif (1380): “Que reconheceis a casa de Estéfanas
e de Fortunato.” A versão de Rheims (1582) lê: “Vós conheceis a casa de Estáfanas e de
Fortunato.”
17. “Selon que chacun stoit plus homme de bien et vertueux.” – “Em proporção quando um
indivíduo era homem honrado e virtuoso.”
18. “É evidente que o apóstolo”, diz o Dr. Brown em seu comentário sobre 1 Pedro, “tinha em
mente os membros das igrejas, quando recebessem esta Epístola, para que saudassem uns
aos outros; que não era improvável que sua intenção fosse que em todas suas reuniões
religiosas agissem assim. Que ele tinha a intenção de fazer disto uma ordenança perene em
todas as igrejas cristãs, ainda que às vezes é asseverado, nunca foi provado, e de forma alguma
é provável. Que a prática prevalecia extensamente, talvez universalmente, em seus primórdios,
é estabelecido sobre evidência satisfatória. ‘Depois das orações’, diz Justino Mártir que viveu na
primeira parte do segundo século, dando um relato em sua Apologia dos costumes religiosos
dos cristãos – ‘depois das orações abraçamos uns aos outros com ósculo.’ Tertuliano fala dele
como uma parte ordinária dos serviços religiosos no dia do Senhor; e nas Constituições
Apostólicas, como são denominadas, a maneira como ele era praticado é particularmente
descrita. ‘Então que cada homem à parte, e que cada mulher à parte, se saúdem
reciprocamente com um ósculo no Senhor.’ A Nota de Orígenes sobre Romanos 16.16, lemos: ‘À
luz desta passagem, o costume foi liberado às igrejas, para que, depois da oração, os irmãos
saudassem uns aos outros com ósculo.’ Este emblema de amor era geralmente praticado na
Santa Ceia. Era provável, à luz da prevalecência deste costume, que teve origem a calúnia de
que os cristãos se entregavam à licenciosidade em suas reuniões religiosas; e não é improvável
que, com o fim de remover tudo como uma ocasião aos caluniadores, a prática que, embora em
si mesma inocente, deixando de ser um costume edificativo, sofreu descontinuação.” – Brown’s
Expository Discourses on 1ª Peter, vol. iii. pp. 309, 310. “É notável que, pelo testemunho de Suetônio,
um édito foi publicado por um dos imperadores romanos, para a abolição desta prática entre
seus súditos – talvez com o fim de refrear abusos foi que nosso apóstolo ordenou que ela fosse
uma saudação santa.” – Chalmers sobre Romanos, vol. iii. p. 428.
19. A pátena era era um prato ou salva na qual a hóstia ou pão era colocado na observância da
missa. O termo é usado pelo Dr. Stillingfleet em seu “Preservative from Popery” (title vii.chap. v),
ao falar da prática da Igreja de Roma na adoração da hóstia: “O sacerdote em toda missa, assim
que ele tenha consagado o pão e o vinho, com genuflexos, ele adora o sacramento; aquilo que
ele mesmo consagrou, tudo aquilo que está diante dele na pátena e no cálice; e dá a mesma
adoração e sujeição, tanto do corpo quanto da mente, que ele poderia oferecer a Deus ou ao
próprio Cristo.”
20. “Par affection interieure.” – “Por afeição íntima.”
21. “Ou consistast en mine seulement.” – “Ou consistisse em mera aparência.”
22. “Ne cherchans que le proufit de leurs ventres, et leur propre gloire.” – “Apenas buscando o
proveito de seus ventres e sua própria glória.”
23. Calvino, ao comentar Gálatas 1.8, observa que o termo original ali empregado, anátema,
denota maldição, e corresponde à palavra hebraica !rj; e explica a expressão “que seja madito”
no sentido de “que seja tido por vós como maldito”.
24. “Car si nous aimons Christ purement, et à bom escient, ce nous sera vne bride qui nous
retiendra de donner scandale à nos freress.” – “Pois se amamos a Cristo sinceramente e de bom
grado, isto será um freio a restringir-nos de ofender nossos irmãos.”
25. “Que ce sont mots empruntez de la langue Syrienne.” – “Que são palavras emprestadas do
idioma siríaco.”
26. Beza, em seus poemas, registrou o seguinte tributo à memória desse homem eminente:
“Henrici Bullingeri, Ecclesiastæ Tigurini, spectatiss, doctrinæ pietatis, et eximii candoris viri,
memoriæ.” – “À memória de Henrique Bullinger, eclesiástico de Tigurum, homem eminentíssimo
por sua erudição e piedade, e extraordinária candura.”
27. Assim em 1 Reis 20.42 temos a expresão ymrjA`ya (ish cheremi), o homem de minha maldição, ou o
homem a quem eu anatematizo. Ver também Isaías 34.5; Zacarias 14.11.
28. Calvino, ao comentar Filipenses 3.5, tendo ocasião de falar da etimologia do termo fariseus,
diz que o considerava derivado – não como comumente se presumia, de uma palavra que
significava separado –, mas de um termo que denota interpretação, sendo este o ponto de vista de
Capito sobre ele – “sanctæ memoriæ viro” –, “um homem de memória sacra”. Beza declara, em
seu livro, Vida de Calvino, que quando em Basle Calvino viveu de uma maneira íntima com esses
dois homens eminentes, Simon Grynæus e Wolfgang Capito, e devotou-se ao estudo do hebraico.
– Calvin’s Tracts, vol. i. p. xxvii.
29. “Ayant excommunié, et declaré execrables ceux-la qui n’aiment point Iesus Christ.” –
“Havendo excomungado e declarado execráveis os que não amam a Jesus Cristo.”
30. “Μαρὰν ἀθὰ (Maran atha) é uma expressão siro-caldaica, significando ‘o Senhor vem’, isto é,
virá tomar vingança sobre os desobedientes e viciosos. Daí, com as palavras Anátema Maranata,
os judeus começavam seu processo de excomunhão.” – Bloomfield.

Você também pode gostar