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João Calvino - Comentário Bíblico - 1° Coríntios - 2
João Calvino - Comentário Bíblico - 1° Coríntios - 2
João Calvino
Título do Original: Calvin’s Commentaries: The First Epistle of Paul the Apostle to the Corinthians
Edição baseada na tradução inglesa de T. A. Smail, publicada por Wm. B. Eerdmans Publishing
Company, Grand Rapids, MI, USA, 1964, e confrontada com a tradução de John Pringle, Baker
Book House, Grand Rapids, MI, USA, 1998.
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária
Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores,
salvo em breves citações, com indicação da fonte.
A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil
(SBB)
ISBN: 978-85-8132-172-1
Dados Internacionais de Catalog aç ão na Publicaç ão (CIP)
(Câmara Bras ileira do Liv ro, SP, Bras il)
Capítulo 1
Versículos 1 a 3
Versículos 4 a 9
Versículos 10 a 13
Versículos 14 a 20
Versículos 21 a 25
Versículos 26 a 31
Capítulo 2
Versículos 1 a 2
Versículos 3 a 5
Versículos 6 a 9
Versículos 10 a 13
Versículos 14 a 16
Capítulo 3
Versículos 1 a 4
Versículos 5 a 9
Versículos 10 a 15
Versículos 16 a 23
Capítulo 4
Versículos 1 a 5
Versículos 6 a 8
Versículos 9 a 15
Versículos 16 a 21
Capítulo 5
Versículos 1 a 5
Versículos 6 a 8
Versículos 9 a 13
Capítulo 6
Versículos 1 a 8
Versículos 9 a 11
Versículos 12 a 20
Capítulo 7
Versículos 1 a 2
Versículos 3 a 5
Versículos 6 a 9
Versículos 10 a 17
Versículos 18 a 24
Versículos 25 a 28
Versículos 29 a 35
Versículos 36 a 38
Versículos 39 a 40
Capítulo 8
Versículos 1 a 7
Versículos 8 a 13
Capítulo 9
Versículos 1 a 12
Versículos 13 a 22
Versículos 23 a 27
Capítulo 10
Versículos 1 a 5
Versículos 6 a 12
Versículos 13 a 18
Versículos 19 a 24
Versículos 25 a 33
Capítulo 11
Versículos 1 a 16
Versículos 17 a 22
Versículos 23 a 29
Versículos 30 a 34
Capítulo 12
Versículos 1 a 7
Versículos 8 a 13
Versículos 14 a 27
Versículos 28 a 31
Capítulo 13
Versículos 1 a 3
Versículos 4 a 8
Versículos 9 a 13
Capítulo 14
Versículos 1 a 6
Versículos 7 a 17
Versículos 18 a 25
Versículos 26 a 33
Versículos 34 a 40
Capítulo 15
Versículos 1 a 10
Versículos 11 a 19
Versículos 20 a 28
Versículos 29 a 34
Versículos 35 a 50
Versículos 51 a 58
Capítulo 16
Versículos 1 a 7
Versículos 8 a 12
Versículos 13 a 22
Prefácio à Edição em Português
Saudação a um fidalgo, mais excelente por suas virtudes do que por seu
nobre nascimento, senhor Galliazo Carracciolo, filho único e legítimo
herdeiro do Marquês de Vico.
Quando este comentário foi pela primeira vez publicado, eu não tinha
conhecimento ou não estava totalmente familiarizado com o homem cujo
nome anteriormente apareceu nesta página, e agora sou obrigado a suprimi-
lo. Certamente, não me sinto temeroso de que venha ele a acusar-me de
leviandade ou de queixar-se de mim por ter subtraído dele o que outrora lhe
dera; pois, tendo ele deliberadamente procurado não só manter-se tão longe
quanto possível de mim, pessoalmente, e também por deixar de entender-se
com nossa igreja, ficou sem qualquer justificativa para protestar. Entretanto,
é com relutância que renuncio minha costumeira prática e elimino de meus
escritos o nome de alguém; e lamento muito que tal pessoa tenha caído da
elevada posição que eu lhe tenha dado, o que significa que ela deixou de dar
bom exemplo a outrem, precisamente como eu esperava dele. Porém, visto
que a cura deste mal não se acha em minhas mãos, então que tal pessoa, no
que me diz respeito, fique em total olvido, pois ainda agora sinto-me
ansioso por calar-me sobre ela, e portanto sem mais trazer qualquer
prejuízo a sua reputação.
Mas, no que concerne a vós, mui honrado senhor, eu teria que encontrar
algum pretexto para então substituir o outro nome pelo vosso, embora não
me aventurei a tomar tal liberdade, confiando em vossa insuspeitável
bondade e amor para comigo, o que é notoriamente conhecido de todos os
nossos amigos. Voltando a mencionar meus desejos, gostaria deveras de ter-
vos conhecido há dez anos atrás, porque não teria tido motivo algum para
fazer agora tal mudança. E esta se presta agora tanto para o bem quanto para
servir de exemplo à Igreja como um todo, não só pelo fato de que não vamos
sentir que sofremos alguma perda ao esquecermo-nos daquele que se
afastou de nós, mas porque seremos compensados, em vós, por um exemplo
ainda mais rico, e deveras preferível, em todos os sentidos. Porque, ainda
que não estais correndo após os aplausos do povo, vivendo satisfeito em
ter Deus como vossa única testemunha; e ainda que não tenho nenhuma
intenção de cantar-vos louvores, todavia meus leitores não devem ser
deixados completamente em trevas acerca do que lhes é proveitoso e
benéfico saber. Sois um homem nascido numa família nobre; gozais de
grande prestígio e de grandes riquezas; fostes abençoado com uma esposa
da mais nobre origem e da mais elevada virtude, com muitos filhos, com paz
e harmonia em vosso lar; na verdade tendes sido abençoado em todas as
circunstâncias de vossa vida. Mas para que passásseis para o campo de
Cristo, deixastes espontaneamente vossa terra natal, abandonastes
propriedades férteis e aprazíveis, esplêndida herança e uma casa tanto
deleitosa quanto espaçosa; privastes-vos de um habitual e magnificente
estilo de vida; separastes-vos de pai, esposa, filhos, parentela e congêneres;
e após dizer adeus a tantas atrações mundanas, e sentindo-vos feliz com
nossas depauperadas circunstâncias, adotastes nosso frugal modo de vida,
o padrão de gente simples, assim vos tornastes um de nós.
Enquanto relato todas estas coisas a outros, não posso de modo algum
esquecer-me dos benefícios que pessoalmente recebo. Pois embora eu
exponha vossas virtudes ante os olhos de meus leitores, aqui, como num
espelho, para que possam imitá-las, ser-me-ia deprimente, tendo-as diante de
meus próprios olhos, não para ser mais profundamente influenciado, à luz
do fato de que as vejo mui claramente todos os dias. Mas, visto que
realmente sei de experiência própria o quanto vosso exemplo significa para
o fortalecimento de minha própria fé e devoção, e visto que todos os filhos
de Deus que estão aqui reconhecem, juntamente comigo,que têm extraído
extraordinário benefício desse vosso exemplo, considerei, quanto a mim,
fazê-lo notório, para que um círculo cada vez mais amplo de pessoas
pudesse usufruir da mesma bênção. Outrossim, seria estultície falar
detalhadamente em louvor de um homem, cuja natureza e temperamento
são tão despidos de ostensividade quanto se pode imaginar, e, ainda mais,
proceder assim na presença de estranhos e em lugares longínquos. Portanto,
se tantas pessoas, que nada sabem de vossa vida pregressa, por viverem
distantes de vós, têm este admirável exemplo diante de si e se prepararam
para deixar seu comodismo, ao qual são tão inclinadas, e imitar vosso
exemplo, serei amplamente recompensado pelas coisas que tenho escrito.
Os cristãos, realmente, devem sempre considerar como algo mais do que
meramente comum e costumeiro, não só deixar estados, castelos e posições
nobres, sem pesares, se porventura é impossível seguir a Cristo de outra
forma; mas também estar sempre prontos e dispostos a desprezar, em
comparação a ele [Cristo], tudo quanto é reputado como por demais
precioso sobre a terra. Todos nós, porém, somos por demais negligentes,
ou, antes, tão indiferentes que, enquanto muitos acenam suas cabeças em
formal assentimento ao ensino do evangelho, raramente um em cem, talvez
possuidor de um insignificante sítio, permitirá ser arrancado dele por causa
do evangelho. A não ser em meio à mais profunda relutância, dificilmente
alguém se persuadiria a renunciar a menor vantagem que seja, o que revela
quão longe estão os homens de sentir-se preparados a renunciar a própria
vida, como devem fazê-lo. Acima de tudo, meu desejo é que todos se
espelhem em vosso espírito de renúncia, a primeira de todas as virtudes.
Pois sois a pessoa mais bem indicada a testificar de mim, e eu de vós, quão
pouco deleite encontramos no companheirismo daqueles que, ao deixarem
sua terra natal, acabam revelando nitidamente que trouxeram consigo as
mesmas perspectivas que alimentavam lá. Porém, visto que é melhor para
meus leitores refletirem sobre estas coisas em sua própria mente, em vez de
verbalizá-las, eu agora me ponho em oração ao Deus que até aqui vos tem
encorajado através do portentoso poder de seu Espírito, visando a que vos
muna ele perenemente de invencível disposição. Pois estou bem cônscio do
modo como Deus vos disciplinou com muitas e duras lutas, porém, com
notável percepção, percebestes que severas e renhidas hostilidades ainda
permanecem diante de vós. E visto que muitas experiências vos têm
ensinado quão realmente necessário é que do céu se vos estenda uma
[benfazeja] mão, deveis prontificar-vos a juntar-vos a mim em fervente
oração a Deus pelo dom da perseverança. Quanto a mim, particularmente,
orarei a Cristo, nosso Rei, a quem o Pai conferiu suprema autoridade, e em
cujas mãos foram colocados todos os tesouros das bênçãos espirituais,
rogando-lhe que vos guarde em segurança, a fim de que venhais a
permanecer longo tempo conosco para a expansão de seu Reino; e para que
ele prossiga a usar-vos na obtenção da vitória sobre Satanás e seus
seguidores.
24 de janeiro de 1556
(dez anos após a primeira publicação deste comentário)
Análise da Primeira Epístola
de Paulo aos Coríntios
1. Paulo, chamado para ser apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus, e Sóstenes,
nosso irmão,
2. à igreja de Deus que está em Corinto, aos que são santificados em Cristo Jesus,
chamados para serem santos, com todos os que em todos os lugares invocam o nome
de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso:
3. graça seja a vós, e paz da parte de Deus e do Senhor Jesus Cristo.
1. Paulus, vocatus apostolus Jesu Christ per voluntatem Dei, et Sosthenes frater,
2. Ecclesiæ Dei quæ est Corinthi, sanctificatis in Christo Jesu, vocatis sanctis, una cum
omnibus qui invocant nomen Domini nostri Jesu Christi in quovis loco tam sui quam
nostri:1
3. Gratia vobis et pax a Deo Patre nostro, et Domino Jesu Christi.
4. Dou sempre graças a meu Deus a respeito de vós, pela graça de Deus que vos foi
concedida em Cristo Jesus;
5. que em todas as coisas fostes enriquecidos por ele, em toda palavra e em todo
conhecimento;
6. assim como o testemunho de Cristo foi confirmado em vós;
7. de maneira que não vos venha faltar nenhum dom; esperando pela vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo,
8. que também vos confirmará até o fim, para serdes irrepreensíveis no dia de nosso
Senhor Jesus Cristo.
9. Deus é fiel, através de quem fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo,
nosso Senhor.
4. Gratias ago Deo meo semper de vobis propter gratiam Dei, quæ data vobis est in
Christo Jesu.
5. Quia in omnibus ditati estis in ipso, in omni sermone,9 et in omni cognitione.
6. Quemadmodum testimonium Christi confirmatum fuit in vobis.
7. Ut nullo in dono destituamini, exspectantes revelationem Domini nostri Jesu Christi.
8. Qui etiam confirmabit vos usque in finem inculpatos, in diem Domini nostri Jesu
Christi.
9. Fidelis Deus, per quem vocati estis in communionem Filii ipsius Jesu Christi Domini
nostri.
4. Dou sempre graças a meu Deus. Após mostrar, na saudação, que sua
autoridade repousa sobre a função que lhe fora designada, Paulo agora
busca granjear a aceitação para sua doutrina, expressando seu afeto por
eles. Agindo assim, de antemão abranda suas mentes, para que pudessem
ouvir pacientemente sua reprovação.10 Ele deveras os persuade a confiar em
seu amor: primeiro, regozijando-se com as bênçãos com que foram
contemplados, como se ele mesmo as recebesse; e, em segundo lugar, ao
declarar que seu coração lhes era favorável e que nutria por eles boa
esperança quanto ao futuro. Além disso, ele caracteriza suas
congratulações, de modo que os coríntios não tivessem nenhuma ocasião
para vangloriar-se, visto que ele aponta para Deus como a fonte donde
emana todas as bênçãos que haviam recebido, todo o louvor deve ser-lhe
dirigido, já que tudo era fruto de sua graça. Em outros termos, Paulo está
dizendo: “Congratulo-me convosco com toda sinceridade, porém de modo a
atribuir louvor somente a Deus.”
Já expliquei, em meu comentário à Epístola aos Romanos [Rm 1.8], o que
Paulo quis dizer quando denomina Deus de meu Deus. Além do mais, como
Paulo não pretendia lisonjear os coríntios, por isso não os enaltece por
motivos falsos. Porque, embora nem todos merecessem tal louvor, e embora
tivessem corrompido muitos dos dons excelentes de Deus por meio de
ambição, contudo não podia ignorar os próprios dons deles, como se
fossem de pouco valor, os quais, em si mesmos, mereciam o mais elevado
apreço. Finalmente, porque os dons do Espírito são concedidos para a
edificação de todos, ele tinha boas razões para considerá-los como dons
comuns a toda a Igreja.11 Vejamos, porém, o que Paulo recomenda neles.
Por conta da graça etc. Graça é um termo geral, porque ela abrange toda
espécie de bênçãos, as quais eles tinham obtido por meio do evangelho.
Pois a palavra graça significa, aqui, não o favor de Deus, mas, à guisa de
metonímia12 (μετωνυμικω̑ς), os dons que graciosamente Deus derramou
sobre os homens. Portanto, Paulo prossegue especificando os casos
particulares quando diz: “em tudo fostes enriquecidos”, e explica tudo como
sendo a doutrina e Palavra de Deus. Pois os cristãos devem ser plenificados
com essas riquezas, as quais devem também receber de nós as mais
elevadas honras e o mais elevado apreço, à medida que forem sendo
desconsideradas pelo povo como um todo.
Preferi conservar o termo in ipso (nele) em vez de mudá-lo para per ipsum
(por ele), porque, em minha opinião, é mais expressivo e vigoroso. Pois
somos enriquecidos em Cristo porque somos membros de seu corpo e fomos
enxertados nele; e ainda mais, visto que fomos feitos um com ele, ele
compartilha conosco tudo quanto recebeu do Pai.
6. Assim como o testemunho de Cristo foi confirmado em vós. A
tradução de Erasmo é diferente: “por meio dessas coisas, o testemunho de
Cristo foi confirmado entre vós”, significando: pelo conhecimento e pela
Palavra. As palavras têm em si uma ressonância distinta, e se não forem
torcidas, o significado é simplesmente este: Deus selou a verdade de seu
evangelho entre os coríntios, com o propósito de confirmá-la. Ora, isso pode
ser feito de duas maneiras – ou por meio dos milagres, ou por meio do
testemunho interno do Espírito Santo. Crisóstomo parece tê-lo entendido
como uma referência aos milagres, porém considero-o em um sentido mais
amplo. Antes de tudo, é certo que o evangelho deve ser propriamente
confirmado, em nossa experiência pessoal, por meio da fé, porque, tão logo
é ele recebido por nós, pela fé, então realmente “por sua vez certifica que
Deus é verdadeiro” [Jo 3.33]. E embora eu admita que os milagres devam ser
de valor para sua confirmação, não obstante uma origem mais elevada deve
ser buscada, a saber: que o Espírito de Deus é o penhor [arrha] e selo. Por
isso, explico estas palavras da seguinte maneira: que os coríntios exceliam
em conhecimento, porquanto desde o princípio Deus fez seu evangelho
produzir frutos neles. Demais, ele não fez isso de uma única forma, mas o
fez pela operação interna do Espírito e pela excelência e variedade dos dons,
pelos milagres e por todas as demais coisas que cooperam. Ele chama o
evangelho de o testemunho de Cristo ou concernente a Cristo, porque toda a
soma dele é desvendar Cristo a nós, “em quem estão ocultos todos os
tesouros do conhecimento” [Cl 2.3]. Se alguém prefere considerá-lo num
sentido ativo, em razão de o autor primário do evangelho ser Cristo, de
modo que os apóstolos nada mais são senão testemunhas secundárias, ou
menos importantes, não discordarei dele. Contudo, para mim a primeira
explicação é mais satisfatória. Admito que, logo depois [cf. 2.1], “o
testemunho de Deus” deve, além de toda controvérsia, ser considerado num
sentido ativo, porquanto o sentido passivo seria inadequado. Entretanto,
aqui o caso é diferente; outrossim, esta passagem corrobora minha opinião,
porque imediatamente ele adiciona seu significado: nada saber senão Cristo
[cf. 2.2].
7. De maneira que não vos venha faltar nenhum dom ̔Υστερεισθαι
significa estar em falta de algo que você realmente necessita. Portanto, Paulo
quer dizer que os coríntios eram ricos em todos os dons de Deus, e deveras
não careciam de nada. É como se dissesse: “O Senhor não só vos considerou
dignos da luz do evangelho, mas também vos proveu ricamente de todas as
graças que auxiliam os crentes a fazerem progresso no caminho da
salvação.” Pois ele intitula dons [charismata] aquelas graças espirituais que
são, por assim dizer, os meios de salvação para os santos. Em contrapartida,
pode-se objetar que os crentes nunca são tão ricos que não se sintam
carentes, em certa extensão, de graças, de modo que sempre se vêem
forçados a ter “fome e sede” [Mt 5.6]. Pois, quem não está longe da
perfeição? Minha resposta é a seguinte: visto que são suficientemente
providos dos dons necessários, e sempre que estão necessitados, o Senhor
vem oportunamente satisfazê-los, Paulo, pois, atribui-lhes tais riquezas. Pela
mesma razão, ele acrescenta: “aguardando a manifestação”, significando que
ele não está pensando neles como quem possui tais riquezas, nada restando
para desejar-se, senão que possuem somente o que lhes bastará até que
tenham alcançado a perfeição. Entendo o gerúndio, aguardando, neste
sentido: “durante o tempo em que estais esperando.” Assim, temos o
seguinte significado: “Portanto, neste ínterim não tendes carência de
nenhum dom, enquanto estiverdes aguardando o dia da perfeita revelação,
mediante a qual Cristo, nossa sabedoria, se fará plenamente manifesto.”
8. Que também vos confirmará. O relativo [que], aqui, não se aplica a
Cristo, e, sim, a Deus, mesmo quando o nome de Deus seja o antecedente
mais remoto. Porque o apóstolo prossegue expressando sua alegria, e como
lhes disse previamente o que sentia sobre eles, portanto agora mostra que
nutre esperança quanto ao futuro deles; e isso em parte para fazê-los sentir-
se ainda mais certos de sua afeição por eles, e em parte também para exortá-
los, por seu próprio exemplo, a nutrirem a mesma esperança. É como se
dissesse: “Ainda que estejais num estado de alarma por estardes esperando
a salvação que ainda está por vir, não obstante deveis estar certos de que o
Senhor jamais vos abandonará, mas que, ao contrário, completará o que
começou em vós, de modo que, quando esse dia chegar, quando todos nós
compareceremos diante do tribunal de Cristo [2Co 5.10], possamos, pois,
ser encontrados irrepreensíveis.”
Irrepreensíveis. Paulo ensina, em suas Epístolas aos Efésios e aos
Colossenses, que o fim de nossa vocação é para vivermos de maneira pura e
livres de mancha na presença de Deus [Ef 1.4; Cl 1.22]. Entretanto, devemos
observar que tal pureza não se completará em nós imediatamente; ao
contrário, para nosso próprio bem, devemos continuar exercitando a prática
diária da penitência, e prosseguir sendo purificados dos pecados [2Pe 1.9],
os quais nos fazem passíveis do castigo divino, até que, finalmente, sejamos
despidos, juntamente com “o corpo de morte” [Rm 7.14], de toda a impureza
do pecado. Acerca do dia do Senhor falaremos no capítulo 4.
9. Deus é fiel. Quando a Escritura fala de Deus como sendo fiel, com
freqüência significa sua perseverança e sua constante uniformidade de
caráter [perpetuum temorem], de modo que tudo o que Deus começa, ele
sempre leva a sua consumação.13 Paulo mesmo diz que “a vocação de Deus
é irrevogável” [Rm 11.29]. Portanto, em minha opinião, o que esta passagem
significa é que Deus é inabalável em seu propósito. Sendo este o caso, ele
não zomba de nós quando nos chama, mas que cuidará de nós para
sempre.14 Conseqüentemente, visto experimentarmos as bênçãos de Deus
no passado, tenhamos bom ânimo e esperemos que ele aja sempre assim no
futuro. Paulo, porém, volve sua atenção para um ponto mais elevado, pois
seu argumento é que os coríntios não podem ser lançados fora, porque uma
vez foram chamados pelo Senhor “à comunhão com Cristo”. Entretanto, a
fim de compreendermos que valor tem este argumento, notemos antes de
tudo que cada um deve ver em sua própria vocação a evidência de sua
eleição. Portanto, embora nem sempre alguém possa julgar com a mesma
certeza acerca da eleição de uma outra pessoa, todavia podemos sempre
decidir, julgando com base no amor, que tantos quantos são chamados, é
para a salvação que são chamados; eu quero dizer tanto eficaz quanto
frutiferamente. Paulo estava dirigindo estas palavras a pessoas em quem a
Palavra de Deus havia formado raízes, e em quem alguns frutos se
despontavam como resultado.
Alguém poderia objetar, dizendo que muitos dos que uma vez receberam
a Palavra, mais tarde apostatam. Minha resposta é que só o Espírito é a fiel e
infalível testemunha da eleição de cada pessoa, e que sua perseverança
depende desse fato. Responderia ainda que, não obstante, esse fato não
impedia Paulo de estar persuadido, no tribunal do amor, de que a vocação
dos coríntios seria uma firme e inabalável prova, já que ele via entre eles os
emblemas do beneplácito paternal de Deus. Além disso, tais emblemas de
forma alguma visavam a produzir um mero senso de segurança carnal; pois
as Escrituras com freqüência nos advertem quanto a nossa real fraqueza,
mas simplesmente visa a confirmar nossa confiança no Senhor. Ora, isso era
necessário a fim de que suas mentes não se vissem desnorteadas ao
descobrirem tantas falhas, como mais adiante ele as poria diante de seus
olhos. Tudo isto pode ser sumariado da seguinte forma: “Os cristãos
sinceros devem nutrir boas esperanças acerca de todos quantos têm tido
acesso ao caminho inconfundível da salvação, e perseveram em seu curso,
ainda que ao mesmo tempo sejam assediados por muitas enfermidades.
Desde o tempo em que é iluminado [Hb 10.32] pelo Espírito de Deus, no
conhecimento de Cristo, cada um de nós, na verdade, é plenamente
convencido de que foi adotado pelo Senhor na herança da vida eterna. Pois
a vocação eficaz deve ser para os crentes a evidência da adoção divina. Não
obstante, nesse ínterim devemos todos nós andar “em temor e tremor” (Fp
2.12). Farei posterior referência a este assunto no capítulo 10.
À comunhão. Em vez disso, Erasmo traduziu à participação [consortium].
A Vulgata traz sociedade [societatem]. Eu, contudo, preferi comunhão
(communionem), porque expressa melhor a força da palavra grega
κοινωνιας.15 Porque todo o propósito do evangelho consiste em que Cristo
se fez nosso e somos enxertados em seu corpo. Mas quando o Pai nos dá
Cristo como nossa possessão, também se nos comunica em Cristo, e por
causa disso realmente alcançamos a participação de cada bênção. O
argumento de Paulo, portanto, é como segue: Visto que fomos trazidos à
comunhão com Cristo através do evangelho, o qual recebemos pela fé, não
há razão para temermos o risco de morte,16 já que fomos feitos participantes
daquele [Hb 3.14] que ressuscitou dos mortos, o Vitorioso sobre a morte.
Em suma, quando o cristão olha para si mesmo, ele só vê motivo para
tremor, ou, melhor, só vê desespero. Mas pelo fato de ter sido chamado à
comunhão com Cristo, ele não deve pensar de si mesmo, no tocante à
certeza da salvação, de nenhuma outra forma senão como membro de
Cristo, tornando assim suas todas as bênçãos de Cristo. Dessa forma, ele se
assegurará da esperança da perseverança final (como é chamada) como algo
certo, caso ele se considere membro de Cristo, aquele que não pode jamais
fracassar.
10. Ora, rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que falem todos a
mesma coisa, e que não haja divisões entre vós, senão que sejais perfeitamente unidos
na mesma mente e no mesmo parecer.
11. Meus irmãos, me foi anunciado acerca de vós, pelos que são da casa de Cloe, de que
há contendas entre vós.
12. Ora, quero dizer com isso que cada um de vós afirma: Eu sou de Paulo; e eu de Apolo;
e eu de Cefas; e eu de Cristo.
13. Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vós? Ou fostes batizados em
nome de Paulo?
10. Observo autem vos, fratres, per nomen Domini nostri Jesu Christi, ut idem loquamini
omnes, et non sint inter vos dissidia: sed apte cohæreatis in una mente et in una
sententia.17
11. Significatum enim mihi de vobis fuit, fratres mei, ab iis qui sunt Chloes, quod
contentiones sint inter vos.
12. Dico autem illud,18 quod unusquisque vestrum dicat, Ego quidem sum Pauli, ego
autem Apollo, ego autem Cephæ, ego autem Christi.
13. Divisusne est Christus? numquid pro vobis crucifixus est Paulus? aut vos in nomen
Pauli baptizati estis?
10. Ora, rogo-vos, irmãos. Até aqui Paulo esteve tratando os coríntios
com mansidão, porquanto sabia o quanto eles eram sensíveis. Contudo
agora, após preparar suas mentes para receberem correção, agindo como um
bom e experiente cirurgião que toca a ferida gentilmente quando um
doloroso medicamento precisa ser aplicado, então Paulo passa a tratá-los
com mais severidade. Não obstante, mesmo aqui ele usa uma boa dose de
moderação, como veremos mais adiante. Eis a substância do que ele está
para dizer: “Minha ardente esperança é que o Senhor não vos tenha
concedido em vão tantos dons, sem antes querer conduzir-vos à salvação.
Por outro lado, deveis também sofrer aflições para impedir-vos que graças
tão excelentes sejam poluídas por vossos vícios. Portanto, esforçai-vos para
que vos concordeis uns com os outros, pois eu tenho boas razões de pedir-
vos que haja concordância entre vós, porquanto tenho sido informado de
que a desarmonia que há entre vós equivale mesmo a hostilidade; que as
facções e o partidarismo são fomentados entre vós de tal forma que estão
destroçando a genuína unidade da fé. “Visto, porém, que, neste caso, uma
simples exortação pode às vezes não ser tão persuasiva, Paulo volta a rogos
enérgicos, pois ele os conjura, em nome de Cristo, a quem amam, a que
promovam a harmonia.
Que todos faleis a mesma coisa. Ao estimulá-los à harmonia, Paulo
emprega três formas distintas de expressão. Primeiramente, ele solicita que a
concordância entre eles fossem em termos tais, que tivessem todos uma só
voz. Em segundo lugar, ele exige a remoção do mal pelo qual a unidade é
espicaçada e destruída. Em terceiro lugar, ele desvenda a natureza da
genuína harmonia, a saber, que a harmonia recíproca fosse na mente e na
vontade. O que Paulo põe como segundo é de fato o primeiro em ordem, a
saber, que nos guardemos das divisões, porque, quando somos
[precavidos], então alguma outra coisa virá, ou, seja, a harmonia. Então,
finalmente uma terceira coisa certamente resultará, a qual é mencionada em
primeiro lugar aqui, a saber: que todos falemos como se tivéssemos uma só
voz; e isso deveras é muitíssimo desejável, como fruto da harmonia cristã.
Portanto, observemos bem: nada é mais inconsistente por parte dos
cristãos do que o cultivo do antagonismo entre si. Pois o princípio mais
importante de nossa religião é este: que vivamos em harmonia uns com os
outros. Demais, a segurança da Igreja repousa sobre esta concordância e
dela depende.
Vejamos, porém, o que Paulo requer da unidade cristã. Se alguém almeja
distinções mais refinadas, ele deseja que, antes de tudo, sejam eles unidos
numa só mente [pensamento]; em seguida, num só parecer [juízo]; em
terceiro lugar, ele deseja que os coríntios declarem verbalmente sua
concordância. Entretanto, visto que minha tradução difere um pouco da de
Erasmo, devo, de passagem, chamar a atenção de meus leitores para o uso
que Paulo faz de um particípio aqui, o qual significa coisas que são
adequada e apropriadamente enfeixadas.19 Pois o verbo καταρτιζεσθαι, do
qual o particípio κατηρτισμένος se origina, significa, propriamente, ‘estar
amarrado’ e ‘estar unido’, da mesma forma que os membros do corpo
humano se acham jungidos uns aos outros numa simetria admiravelmente
perfeita.20
Para parecer [sententia], Paulo tem γνώμην. Considero-o, porém, aqui
como uma referência à vontade, de modo que há uma completa divisão da
alma, sendo a primeira sentença (numa só mente) uma referência à fé, e a
segunda (num só parecer), ao amor. Portanto, a unidade cristã será
estabelecida em nosso meio, não só quando estamos em estreita harmonia
quanto à doutrina, mas também quando estamos em harmonia em nossos
esforços e disposições, e assim nos tornamos de uma só mente em todos os
aspectos. Neste mesmo sentido, Lucas testifica da fidelidade da Igreja
Primitiva, dizendo que todos tinham “um só coração e uma só alma” [At
4.32]. Certamente que isso será sempre encontrado onde o Espírito de
Cristo reina. Ao dizer-lhes que falassem a mesma coisa, ele notifica ainda
mais plenamente o fruto da unidade, quão completa deve ser a
concordância, a saber, que não haja qualquer divergência nem mesmo em
palavras. Certamente que isso é algo muito difícil, porém mesmo assim é
indispensável entre os cristãos, de quem se tem requerido que tenham não
só uma única fé, mas também uma única confissão.
11. Me foi anunciado acerca de vós. Visto que as observações gerais às
vezes surtem pouco efeito, Paulo então notifica que o que ele está dizendo
de fato também se aplica particularmente a eles. Portanto, ele faz esta
aplicação a fim de que os coríntios soubessem que não foi sem motivo que
ele fez menção da harmonia. Pois ele mostra que não só se afastaram da
santa unidade,21 mas que também entraram em controvérsias, as quais se
tornaram mais sérias22 do que diferenças de opinião. Em caso de ser ele
acusado de ser por demais crédulo em dar ouvidos tão prontamente a
informações inverídicas,23 ele fala bem dos que lhe passaram tais
informações. Provavelmente fossem tidos na mais elevada consideração,
visto que Paulo não hesitou em citá-los como testemunhas competentes
contra a Igreja toda. Ainda que não seja de todo certo se Cloe é o nome de
lugar ou de mulher, parece-me mais provável, porém, que fosse o nome de
uma mulher.24 Portanto, em minha opinião é que foi uma família bem
familiarizada com Paulo que lhe falou deste distúrbio na Igreja de Corinto,
com o propósito de que dele proviesse a cura. Mas concluir, como fazem
muitos, seguindo a opinião de Crisóstomo, que Paulo evitou o uso de
nomes reais com o intuito de evitar que fossem molestados, parece-me
absurdo. Pois ele não diz que alguns membros particulares da família o
informaram; ao contrário, faz menção de todos eles, o que não deixa lugar a
dúvida de que estavam bem dispostos a ser citados nominalmente. Além do
mais, para que suas mentes não se exasperassem por indevida severidade,
ele mitigou a reprovação falando de uma maneira como se quisesse angariar
o respeito; e ele procedeu assim não para amenizar seu problema, mas para
fazê-los ainda mais dóceis e entender melhor a gravidade de seu mal.
12. Ora, o que eu quero dizer é que cada um de vós. Alguns acreditam
que haja aqui um caso de imitação (μιμησις), como se Paulo estivesse aqui
repetindo as palavras reais dos coríntios. Ora, ainda que os manuscritos
variem na avaliação da partícula ὅτι, sou de opinião que ela é a conjunção
porque, em vez do pronome relativo que, de modo que temos aqui
simplesmente uma explicação da sentença anterior, como segue: “A razão
por que digo que há controvérsias entre vós, é porque cada um de vós se põe
a gloriar-se no nome de um homem. Mas alguém poderá objetar que essas
afirmações não fornecem em si mesmas qualquer indicação de
controvérsias. Minha resposta é que onde as divisões predominam na
religião, outra coisa não sucede senão que o que se acha na mente dos
homens logo se irrompe em franco conflito. Pois enquanto nada é mais
eficaz para manter-nos unidos, e não há nada que mais une nossas mentes,
conservando-as em paz, do que a harmonia na religião, todavia, se por
alguma razão suscita-se desarmonia em conexão com ela, o resultado
inevitável é que os homens são imediatamente instigados a digladiar-se de
forma ferrenha, e não existe outro campo onde as controvérsias sejam mais
ferozes.25 Portanto, Paulo é justificado em apresentar como evidência
suficiente de controvérsias o fato de que os coríntios estavam criando
seitas e facções.
Eu sou de Paulo etc. Ele agora menciona nominalmente os servos fiéis
de Cristo – Apolo, que fora seu sucessor em Corinto, e também o próprio
Pedro. Então adiciona seu próprio nome ao deles, com receio de que
pudesse, de alguma forma, parecer estar fazendo mais por sua própria causa
do que pela causa de Cristo. Todavia, é improvável que houvesse alguns
partidos que estivessem atacando um desses três ministros em particular,
em detrimento dos outros dois, visto que se achavam limitados, em seu
ministério, por um acordo sagrado.26 Mas, como sugere mais tarde (1Co
3.4ss), ele transferiu para si e para Apolo o que era aplicável aos demais. Ele
procedeu assim a fim de que pudessem ter mais facilidade em avaliar o
próprio problema, dissociado da avaliação dos personagens envolvidos.
Mas alguém poderia apontar para o fato de que Paulo também menciona,
aqui, aqueles que publicamente confessavam que “eram de Cristo”. Isto
também reclamava censura? Respondo que nesta forma a expressão mais
clara é dada para a situação realmente negativa que se desenvolve de nosso
erro em prestarmos nossa devoção aos homens. Se tal acontece, então
Cristo deve necessariamente governar só uma parte da igreja, e os crentes
não têm outra alternativa senão separar-se dos demais, isso se não desejam
negar a Cristo.
Entretanto, como este versículo é torcido de várias maneiras, o único
caminho certo é decidirmos mais exatamente o que Paulo quer dizer aqui.
Seu objetivo é dizer que na Igreja a autoridade pertence unicamente a Cristo,
de modo que todos nós somos dependentes dele; que unicamente ele é
chamado Senhor e Mestre entre nós, de modo que o nome de quem quer que
seja se exibe como rival de Cristo. Portanto, Paulo condena aqueles que
atraem seguidores após eles [At 20.30], a ponto de dividir a Igreja em seitas,
porque ele os condena como inimigos que destroem nossa fé.
Conseqüentemente, Paulo não permite que os homens exerçam tal
preeminência na Igreja, que usurpem a supremacia de Cristo. Os homens,
pois, não devem ser honrados de tal maneira que venham a prejudicar,
mesmo que seja um ínfimo grau, a dignidade de Cristo. É verdade que existe
certo grau de honra que é devida aos ministros de Cristo, e que eles são
igualmente mestres em seu devido lugar; mas é preciso ter sempre em mente
que a qualificação que pertence a Cristo deve ser mantida intocável, ou,
seja, que ele continuará sendo, não obstante, o único e verdadeiro Mestre, e
deve ser contemplado como tal. Por essa razão, o alvo dos bons ministros é
este: servir a Cristo, todos eles de forma idêntica, reivindicando para ele o
domínio, a autoridade e a glória exclusivos; lutar sob sua bandeira; obedecê-
lo acima de tudo e de todos e submeter os outros a seu domínio. Se alguém
se deixa influenciar pela ambição, ele conquista seguidores, sim, não para
Cristo, mas para si próprio. Portanto, eis aqui a fonte de todos os males, eis
aqui a mais danosa de todas as enfermidades, eis aqui a peçonha mais letal
em todas as igrejas: quando os ministros se devotam mais a seus próprios
interesses do que aos interesses de Cristo. Em suma, a unidade da Igreja
consiste primordialmente nesta única coisa: que todos nós dependemos
unicamente de Cristo, e que, portanto, os homens sejam tidos e
permaneçam em posição inferior, para que nada venha a prejudicar Cristo,
um mínimo sequer, em sua posição de preeminência.
13. Cristo está dividido? Este mal intolerável provinha das diversas
divisões prevalecentes entre os coríntios. Porquanto Cristo é o único que
reina na Igreja. E já que o propósito do evangelho é que sejamos
reconciliados com Deus por intermédio de Cristo, é necessário, antes de
tudo, que estejamos todos seguros e unidos nele. Somente uma pequena
parte dos coríntios, mais sábios que os outros,27 continuava a reconhecer
Cristo como seu Mestre, enquanto todos os demais se orgulhavam de ser
cristãos. E assim Cristo estava sendo feito em pedaços. Pois é mister que
todos sejamos mantidos juntos dele e sob ele como nossa Cabeça. Pois se
vivermos divididos em diversos corpos, também dissolveremos o [corpo]
dele. Gloriarmo-nos em seu nome em meio a desavenças e partidos é rasgá-
lo em pedaços. Na verdade, tal coisa não pode ser feita, pois ele jamais
perderá a unidade e a harmonia, porque “ele não pode negar a si mesmo”
[2Tm 2.13]. Paulo, pois, colocando esta situação absurda diante dos
coríntios, se propõe a levá-los a entender que estavam alienados de Cristo
em razão de suas divisões. Pois Cristo só reina em nosso meio quando ele
constitui os elos que nos ligam a ele numa unidade sacra e inviolável.
Foi Paulo crucificado por vós? Mediante duas poderosas
considerações, Paulo mostra quão vil28 é arrebatar a Cristo de seu lugar de
honra como única Cabeça da Igreja, único Mestre, único Senhor; ou extrair
alguma parte da honra que lhe pertence e transferi-la para os homens. A
primeira razão é que fomos redimidos por Cristo com base no princípio de
que não estamos sob nossa própria jurisdição. Paulo usa este mesmo
argumento em sua Epístola aos Romanos [14.9], quando diz: “Pois para este
fim foi que Cristo morreu e ressuscitou, para que pudesse ser Senhor tanto
dos vivos quanto dos mortos.” Portanto, vivamos para ele e morramos para
ele, porque lhe pertencemos para sempre. Novamente nesta mesma Epístola
[7.23], ele escreve: “Fostes comprados por preço; não vos torneis escravos
de homens.” Portanto, visto que os coríntios haviam sido adquiridos pelo
sangue de Cristo, eles estavam, em certo sentido, renunciando as bênçãos
da redenção, já que estavam transformando outras pessoas em seus líderes.
Eis aqui uma notável doutrina que merece especial atenção: “que não temos
a liberdade de pôr-nos sob a sujeição de seres humanos,29 já que somos
herança do Senhor.” Portanto, Paulo aqui acusa os coríntios da mais grave
ingratidão, visto que estavam alienando-se desta Cabeça por cujo sangue
haviam sido redimidos; contudo, talvez agissem assim inadvertidamente.
Além do mais, esta passagem milita contra a ímpia invenção dos
papistas, a qual usam em apoio de seu sistema de indulgências. Pois do
sangue de Cristo e dos mártires eles engendraram o falso tesouro da Igreja, o
qual, ensinam eles, é distribuído pelas indulgências. Assim pretendem que,
por sua morte, os mártires30 meritoriamente ganharam algo para nós aos
olhos de Deus, para que pudéssemos recorrer a essa fonte e obter a
remissão de nossos pecados. Certamente negarão que os mártires nos
redimem. Todavia, nada é mais claro do que um fato proceder do outro. É
uma questão de poderem os pecadores reconciliar-se com Deus; é uma
questão de obterem eles o perdão; é uma questão de fazerem eles expiação
pelas ofensas. Gloriam-se de que tudo isso é feito em parte pelo sangue de
Cristo e em parte pelo sangue dos mártires. Portanto, fazem dos mártires os
participantes de Cristo na conquista de nossa salvação. Paulo, porém, aqui
está negando energicamente que alguém mais, além de Cristo, tenha sido
crucificado em nosso favor. De fato, os mártires morreram para nosso
benefício, mas (no dizer de Leo)31 foi para dar-nos o exemplo de firmeza, e
não para adquirir-nos o dom da justiça.
Ou fostes batizados em nome Paulo? Seu segundo argumento é extraído
da profissão do batismo. Pois nos alistamos sob sua bandeira, em cujo
nome somos batizados. Desta forma somos unidos32 a Cristo, em cujo nome
nosso batismo é celebrado. Daqui se segue que os coríntios podem ser
acusados de perfídia e apostasia, caso se rendam em sujeição aos homens.
Note-se aqui que a natureza do batismo é como um bônus de contrato33
de mútua obrigação, pois como o Senhor, por meio deste símbolo, nos
recebe em sua família, e nos introduz no seio de seu povo, e assim
penhoramos nossa fidelidade a ele de que jamais teremos qualquer outro
senhor espiritual. Conseqüentemente, como Deus, de sua parte, faz um
pacto de graça conosco, no qual promete a remissão de pecados e uma nova
vida, assim também, de nossa parte, fazemos um voto de empreendermos
guerra espiritual, por meio da qual lhe prometemos ser seus perenes
vassalos. Paulo aqui não trata da primeira parte, visto que o contexto não o
requer; ao tratar do batismo, porém, a segunda parte não poderia ficar
omitida. De fato, Paulo não está propriamente acusando os coríntios de
deserção, por terem abandonado a Cristo e se voltado para os homens; está,
porém, realçando o próprio fato de que, não se mantendo firmes em Cristo,
e tão-somente em Cristo, se constituíram em transgressores do pacto.
Suscita-se uma pergunta: o que significa ser batizado em nome de Cristo?
Minha resposta é que essa maneira de se expressar significa não só que o
batismo se acha fundamentado na autoridade de Cristo, mas também que
ele repousa em seu poder, e em certo sentido consiste nisso; e finalmente
que todo o efeito dele depende do fato de o nome de Cristo ser invocado
nele. Pode-se suscitar, porém, outra pergunta: por que Paulo diz que os
coríntios haviam sido batizados em nome de Cristo, quando o próprio Cristo
ordenara [Mt 28.19] que os apóstolos batizassem em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo? Minha resposta é que, ao tratarmos do batismo, nossa
primeira consideração consiste em que Deus o Pai, tendo-nos introduzido,
por sua imerecida mercê, em sua Igreja, recebe-nos, por meio da adoção, à
comunhão de seus filhos. Em segundo lugar, visto que nenhuma união com
ele nos é possível a não ser por meio da reconciliação, é indispensável que
Cristo nos restaure ao favor do Pai, por meio de seu sangue. Em terceiro
lugar, visto que somos consagrados a Deus pelo batismo, precisamos
também da intervenção do Espírito Santo, cuja função é transformar-nos em
novas criaturas. Realmente, sua obra especial é lavar-nos no sangue de
Cristo; mas, visto que só obtemos a misericórdia do Pai, ou a graça do
Espírito, tão-somente por meio de Cristo, temos boas razões para denominá-
lo o próprio objeto [scopum] do batismo, e associamos o batismo com seu
nome em particular. Todavia, isso de forma alguma suprime os nomes do Pai
e do Espírito. Pois quando desejamos falar brevemente da eficácia do
batismo, mencionamos só o nome de Cristo. Quando, porém, desejamos ser
mais precisos, então devemos também incluir os nomes do Pai e do
Espírito.
14. Dou graças a Deus porque não batizei a nenhum de vós, salvo Crispo e Gaio;
15. para que ninguém diga que fostes batizados em meu próprio nome.
16. E batizei também a casa de Estéfanas; além destes, não me lembro se batizei algum
outro.
17. Porque Cristo não me enviou a batizar, mas a pregar o evangelho; não em sabedoria
de palavras, para que a cruz de Cristo não ficasse sem efeito.
18. Porque a pregação da cruz, para os que perecem, é loucura; mas para nós, que
somos salvos, é o poder de Deus.
19. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios; E reduzirei a nada a prudência
dos prudentes.
20. Onde está o sábio? onde está o escriba? onde está o inquiridor deste mundo? Não
tornou Deus em loucura a sabedoria do mundo?
14. Gratias ago Deo meo, quod neminem baptizaverim vestrûm, nisi Crispum et Gaium:
15. Ne quis dicat, quod in meum nomen baptizaverim.
16. Baptizavi autem et Stephanæ familiam; præterea nescio, num quem alium
baptizaverim.
17. Non enim misit me Christus ut batizarem, sed ut evangelizarem: non in sapientia
sermonis, ne inanis reddatur crux Christi.
18. Nam sermo crucis iis, qui pereunt, stultitia est; at nobis qui salutem consequimur,
potentia Dei est.
19. Scriptum est enim; (Ies. xxix.14); perdam sapientiam sapientum, et intelligentiam
intelligentum auferam e medio.
20. Ubis sapiens? ubi scriba? ubi disputator hujus saeculi? nonne infatuavit Deus
sapentiam mundi hujus?
21. Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua sabedoria, foi do
agrado de Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação.
22. Visto que os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria,
23. para os que são chamados, porém, tanto judeus como grego,
24. [pregamos] Cristo, o poder de Deus, e a sabedoria de Deus.
25. Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais
forte que os homens.
21. Quoniam enim in sapientia Dei non cognovit mundus per sapientiam Deum, placuit
Deo per stultitiam prædicationis salvos facere credentes.
22. Siquidem et Judaæ signum petunt et Græci sapientiam quærunt.
23. Nos autem prædicamus Christtum crucifixum, Judæis quidem scandalum, Græcis
autem stultitiam:
24. Ipsis autem vocatis, tam Judæis, quam Græcis, Christum Dei potentiam, et Dei
sapientiam.
25. Nam stultitia Dei sapientior est hominibus, et infirmitas Dei robustior est hominibus.
21. Visto que o mundo não conheceu. A ordem correta das coisas era
precisamente esta: que o homem, contemplando a sabedoria de Deus em
suas obras, pelo auxílio da luz do entendimento que lhe fora fornecida pela
natureza (ingenita sibis injenii luce), pudesse chegar a uma familiaridade
com ele. Mas em razão desta ordem ter-se invertido pela perversidade do
homem, a vontade de Deus, antes de tudo, é tornar-nos loucos a nossos
próprios olhos, antes de começar a instruir-nos no conhecimento da
salvação [2Tm 3.15]. Daí em diante, como evidência de sua sabedoria, ele
põe diante de nossos olhos aquilo que tem certa aparência de loucura. A
ingratidão dos homens mereceu esta inversão das coisas. Paulo descreve
como sabedoria de Deus as belezas do mundo todo, as quais são esplêndida
evidência de sua sabedoria, pois elas se nos afiguram de maneira
demasiadamente clara. Portanto, nas coisas que ele criou, Deus mantém
diante de nós nítido espelho de sua esplendorosa sabedoria. Em resultado,
qualquer indivíduo que desfrute de pelo menos uma leve fagulha de bom
senso, e atenta para o mundo e para outras obras divinas, se vê dominado
por ardente admiração por Deus. Se os homens chegassem a um genuíno
conhecimento de Deus pela observação de suas obras, certamente viriam a
conhecer Deus de uma forma sábia, ou daquela forma de adquirir sabedoria
que lhes é natural e adequada. Mas porque o mundo todo não aprendeu
absolutamente nada do que Deus revelou de sua sabedoria nas coisas
criadas, ele, pois, passou a instruir os homens de outra maneira. Deve-se
atribuir a nossa própria culpa o fato de não alcançarmos um conhecimento
salvífico de Deus antes de sermos esvaziados de nosso próprio
entendimento.
Paulo faz uma concessão ao chamar o evangelho de loucura da pregação,
pois esta é precisamente a luz na qual ele é considerado por aqueles “sábios
insensatos” (μωροσόφοις) que, intoxicados por falsa confiança,53 não temem
subjugar a inviolável verdade de Deus a sua própria e medíocre censura. E,
além do mais, não há dúvida de que a razão humana não acha nada mais
absurdo do que a notícia de que Deus se tornou um homem mortal; que a
vida está sujeita à morte; que a justiça foi velada sob a aparência de pecado;
que a fonte de bênção ficou sujeita à maldição; que por esses meios os
homens podem ser redimidos da morte e tornar-se participantes da bendita
imortalidade; que podem obter a vida; que, sendo o pecado destruído, a
justiça volta a reinar; e que a morte e a maldição podem ser tragadas. Não
obstante, sabemos que o evangelho é, nesse ínterim, a sabedoria oculta [1Co
2.7] que excede os céus e suas alturas, e diante do qual até mesmo os anjos
ficam pasmos. Esta é uma passagem muito excelente, e dela podemos ver
nitidamente quão profunda é a obtusidade da mente humana que, em meio à
luz, nada percebe. Pois é uma grande verdade que este mundo se assemelha
a um teatro no qual o Senhor exibe diante de nós um surpreendente
espetáculo de sua glória. Entretanto, quando tais cenas se descerram diante
de nossos olhos, nos revelamos cegos como pedras, não porque a revelação
seja obscura, mas porque somos “alienados no entendimento” (mente
alienati, Cl 1.21), significando que não só a inclinação, mas também a
habilidade nos são falhas. Porque, a despeito de Deus se nos revelar
publicamente, todavia é só pelos olhos da fé que podemos contemplá-lo,
tendo em mente que recebemos só uma leve noção de sua natureza divina,
mas o bastante para pôr-nos na posição de seres sem justificativa [Rm 1.20].
Conseqüentemente, visto que Paulo aqui diz que Deus não pode ser
conhecido pelo prisma das coisas que ele criou, devemos entender com
isso que não se pode obter o conhecimento absoluto de Deus. Para que
ninguém apresente pretexto em prol de sua ignorância, os homens fazem
progresso na escola universal da natureza ao ponto de serem afetados com
alguma consciência da deidade, porém não têm idéia do que seja a natureza
de Deus. Ao contrário, seu pensamento se dissolve em nada [Rm 1.21].
Dessa forma a luz brilha nas trevas [Jo 1.5]. Portanto, segue-se que os
homens não vivem no erro por mera ignorância, a fim de ficarem isentos da
acusação de menosprezo, negligência e ingratidão. Portanto procede que
“todos têm conhecimento de Deus” [Deum novisse], porém “não lhe dão
glória” [Rm 1.21]; e que, em contrapartida, ninguém, à luz da mera natureza,
jamais fez tanto progresso que chegasse a conhecer a Deus [Deum
cognosceret]. Alguém poderia apresentar os filósofos como exceção a essa
regra; replico, porém, que é especialmente em seu caso que há um
conspícuo exemplo de nossa fraqueza. Pois não se pode encontrar sequer
um que constantemente não tenha se afastado daquele princípio de
conhecimento que já mencionei, vagueando54 pelos meandros de
especulações ilusórias. São na maioria das vezes mais tolos do que
espertos! Quando Paulo diz que “os que crêem são salvos”, isso
corresponde ao versículo 18, ou, seja, que “o evangelho é o poder de Deus
para a salvação” [Rm 1.16]. Além disso, ao contrastar os crentes, cujo
número é diminuto, com um mundo cego e louco, Paulo está nos lembrando
de que nos equivocamos quando nos sentimos perturbados ante o pequeno
número dos salvos, visto que, pela ação de Deus, eles foram divinamente
separados “para a salvação”.
22, 23. Visto que os judeus pedem sinais. Isso explica as sentenças
anteriores, ou, seja, Paulo está mostrando de que maneira a pregação do
evangelho é considerada uma loucura. Ao mesmo tempo ele não só explica,
mas também expande, dizendo que os judeus fazem mais que reputar o
evangelho como sendo de pouco valor, eles, além disso, o detestam. “Os
judeus”, diz Paulo, “querem, através dos milagres, ter a evidência do poder
divino ante seus olhos. Os gregos amam aquilo que possui o encanto da
sutileza e se deleitam na engenhosidade humana. Nós, na verdade, pregamos
o Cristo crucificado, e, à primeira vista, não há nada de extraordinário nisso
senão fraqueza e loucura. Portanto, ele não passa de pedra de tropeço para
os judeus quando o vêem aparentemente esquecido por Deus. Quando os
gregos ouvem qual foi o método da redenção, acreditam ouvir uma fábula.”
Em minha opinião, Paulo quer dizer pelo termo gregos não simplesmente os
pagãos ou gentios, mas todos aqueles que eram educados nas ciências
liberais, ou que eram de projeção em razão de sua inteligência superior. Ao
mesmo tempo, à guisa de sinédoque, todos os outros estão igualmente
incluídos aqui. Entre judeus e gregos, contudo, ele traça uma distinção,
dizendo que os primeiros, furiosos contra Cristo movidos por um zelo
irracional pela lei, trovejavam em tormenta de fúria contra o evangelho,
como os hipócritas costumam fazer quando estão lutando por suas
próprias crenças equivocadas [superstitionibus]. Os gregos, em
contrapartida, intumescidos de orgulho, desprezavam-no como sendo algo
insípido.
O fato de Paulo descobrir culpa nos judeus por serem eles tão ansiosos
em querer sinais, não significa que, em si mesmo, seja errôneo desejá-los.
Mas ele mostra onde estavam errados, à luz dos seguintes pontos: (1) em
sua repetida insistência em exigir milagres, estavam, em certo sentido,
prensando Deus sob suas leis; (2) através do embotamento de seu
entendimento, queriam manter contato palpável55 com Deus por meio de
milagres públicos; (3) sendo hipnotizados pelos próprios milagres, olhavam
para eles com estupor; (4) em suma, nenhum milagre poderia satisfazê-los,
mas a cada dia aguardavam, ansiosos, ver um novo. Ezequias não é
censurado só porque prontamente consentiu ser confirmado por meio de
um sinal [2Rs 19.29; 20.8]. Inclusive Gideão não foi reprovado, embora
solicitasse um duplo sinal [Jz 6.37, 39]. No entanto, em contrapartida, Acaz é
condenado por recusar o sinal que o profeta lhe ofereceu [Is 7.12]. Em que
os judeus, pois, estavam errados quando pedem milagres? Estava nisto: não
os buscavam para um bom propósito; não punham nenhum limite a suas
exigências; não faziam bom uso deles. Pois enquanto a fé deve ser auxiliada
pelos milagres, sua única preocupação era permanecer o máximo possível
em sua descrença. Embora seja ilícito prescrever leis para Deus, expandiam
sua monstruosa e irrefreada libertinagem. Enquanto os milagres devem nos
conduzir a uma maior familiaridade com Cristo e com a graça espiritual de
Deus, para os judeus não passava de obstáculos. Por essa razão também
Cristo os repreende, dizendo: “Uma geração perversa busca sinais” [Mc
8.12]. Porquanto não havia limites para sua curiosidade e suas persistentes
exigências; e tão logo obtinham milagres, nenhum benefício viam neles.
24. Tanto gregos como judeus. Paulo mostra, através desta antítese,
quão pessimamente é Cristo recebido, e que isso não era devido a alguma
falha dele, nem pela natural inclinação do gênero humano, mas que sua
causa consiste na depravação daqueles que não foram iluminados por Deus.
Pois nenhuma pedra de tropeço impede os eleitos de Deus de irem a Cristo
com o fim de encontrarem nele a certeza da salvação. Paulo contrasta poder
com pedra de tropeço que advém da humildade de Cristo, e confronta
sabedoria com loucura. A essência disso, pois, é a seguinte: “Eu sei que
nenhuma coisa, a não ser sinais, pode exercer algum efeito na obstinação
dos judeus, e que na realidade só um fútil gênero de sabedoria pode aplacar
o desdenhoso menosprezo dos gregos. Não devemos, contudo, dar
demasiada importância a este fato, visto que não importa o quanto nosso
Cristo ofende os judeus com a humildade de sua cruz e é tratado com o
máximo desprezo pelos gregos; não obstante, ele é para todos os eleitos, de
todas as nações, o poder de Deus para a salvação, para remover essas pedras
de tropeço, e a sabedoria de Deus para afastar toda e qualquer dissimulação
[larvam] no campo da sabedoria.”56
25. Porque a loucura de Deus. Quando Deus trata conosco, de certa
forma parece agir de maneira absurda só pelo fato de não exibir sua
sabedoria; não obstante, o que aparenta ser absurdo excede em sabedoria a
toda a engenhosidade humana. Além do mais, quando Deus oculta seu
poder e parece agir como se fosse frágil, o que se imagina ser fragilidade é,
não obstante, mais forte do que todo o poder humano. Devemos, contudo,
observar sempre, ao lermos estas palavras, que existe aqui uma concessão,
como já fiz notar um pouco antes.57 Pois alguém pode notar mui claramente
quão impróprio é atribuir a Deus, seja loucura, seja fraqueza; mas era
indispensável, por meio dessas expressões irônicas, rebater a insone
arrogância da carne, a qual não hesita espoliar a Deus de toda sua glória.
26. Irmãos, vede que vossa vocação não inclui muitos sábios segundo a carne, nem
muitos poderosos, nem muitos nobres são chamados.
27. Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para confundir as sábias; e Deus
escolheu as coisas fracas do mundo para confundir as que são poderosas;
28. e as coisas insignificantes do mundo, e as coisas que são desprezadas, sim, Deus
escolheu as coisas que não são para reduzir a nada as coisas que são;
29. para que nenhuma carne se glorie em sua presença.
30. Vós, porém, sois dele em Cristo Jesus, o qual foi feito para nós sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção.
31. Para que, como está escrito, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
26. Videte (vel, videtis) vocationem vestram, fratres, quod non multi58 sapientes
secundum carnem, non multi potentes, non multi nobiles:
27. Sed stulta mundi elegit Deus, ut sapientes pudefaciat: et infirma mundi elegit Deus,
ut patefaciat fortia:
28. Et ignobilia mundi et contempta elegit Deus, et ea quæ non erant, ut quæ erant
aboleret;
29. Ne glorietur ulla caro coram Deo.
30. Ex ipso vos estis 59 in Christo Jesu, qui factus est nobis sapientia a Deo, et justitia, et
sanctificatio, et redemptio.60
31. Ut (quemadmodum scriptum est) Qui gloriatur, in Domino glorietur (Jer. ix.24).
26, 27. Olhai para vossa própria vocação. Em razão de haver dúvida
sobre o modo do verbo grego βλέπετε, o indicativo adequar-se ao contexto
tão bem quanto o imperativo, deixo ao leitor a liberdade de decidir segundo
sua preferência. Entretanto, o significado é obviamente o mesmo em ambos
os modos, pois ao usar o indicativo – “vós vedes”–, Paulo estaria chamando-
os a testemunharem, por assim dizer, algo óbvio, e estaria confrontando-os,
por assim dizer, com algo imediato. Em contrapartida, porém, ao usar o
imperativo, ele estaria incitando-os, como se estivessem desatentos, a
considerarem este mesmo fato.
Chamados pode ser tomado coletivamente como a companhia dos
chamados, mais ou menos assim: “Vede o tipo de pessoas, em vossa
assembléia, a quem o Senhor tem chamado.” Sou, porém, mais inclinado a
deduzir que a forma de sua vocação é por indicação. E este é um argumento
mais forte, porque segue-se daí que, se menosprezam a humildade da cruz,
então, em certo sentido, estão anulando sua própria vocação; pois em seu
chamado Deus tinha mantido seu método de excluir toda honra, poder e
glória humanos. Portanto, Paulo tacitamente acusa-os de ingratidão, porque,
olvidando tanto a graça de Deus, como a si próprios, tratavam o evangelho
de Cristo com escárnio.
Entretanto, duas coisas devem ser observadas aqui. Primeiro, ele
desejava usar o exemplo dos coríntios para confirmar a verdade do que
dissera. Segundo, ele desejava adverti-los de que deviam estar
completamente despidos de todo orgulho, caso estivessem prestando
adequada atenção ao gênero de procedimento que o Senhor seguira ao
chamá-los. Paulo diz que Deus “expôs a sabedoria e a nobreza de
nascimento à humilhação”, e “destruiu as coisas que são”. Ambas as
expressões são mui adequadas, pois a força e a sabedoria se desvanecem
quando expostas ao descrédito, e o que possui existência deve ser
destruído. Ele quer dizer que Deus preferiu chamar o pobre e o tolo, o de
nascimento obscuro, diante do grande, do sábio e de nobre nascimento. Se
Deus não tivesse posto a todos no mesmo nível, nada teria sido suficiente
para abater a arrogância humana. Daí, aqueles que pareciam eminentes, ele
lançou por terra, a fim que o mesmo fosse realmente reduzi-lo a nulidade.
Entretanto, alguém seria insensato se deduzisse desse fato que Deus
dessa maneira estava aviltando a glória da carne, a fim de que o grande e o
sábio fossem excluídos da esperança da salvação. É por isso que alguns
irresponsáveis não só transformaram isso em pretexto para triunfarem sobre
os grandes, como se Deus os houvera abandonado, mas inclusive os
desprezaram como se estivessem muito abaixo deles. Lembremo-nos,
contudo, de que isso foi dito aos coríntios, ou, seja, que eles, embora não
desfrutassem de nenhuma posição importante no mundo, no entanto eram
soberbos, ainda quando não tivessem razão de o ser. Portanto, ao expor os
fortes, os sábios e os grande ao ridículo, Deus não exalta os fracos, os
indoutos e os indignos, senão que reduz a todos eles a um nível comum.
Portanto, que todos quantos são desprezíveis aos olhos do mundo pensem
bem nisto: “Quão modestos deveríamos ser diante do fato de que os que
são tidos em alta estima pelo mundo são reduzidos a nada!64 Se a radiância
do sol é eclipsada, qual é a sorte das estrelas? Se a luz das estrelas é extinta,
o que se espera dos objetos opacos? O desígnio dessas observações
consiste nisto: que aqueles que foram chamados pelo Senhor, ainda que
destituídos de qualquer valor aos olhos do mundo, não podiam abusar
dessas palavras de Paulo enfunando suas cristas! Ao contrário, tendo em
mente a exortação de Paulo em Romanos 11.20 – “por sua incredulidade
foram quebrados, e mediante a fé tu estás em pé” – podiam andar
prudentemente na presença de Deus com temor e humildade.
Em contrapartida, Paulo não diz aqui que nenhum nascido em “berço de
ouro” ou poderoso seria chamado por Deus, e, sim, que haveria poucos
deles. E nos fornece o motivo disso: que o Senhor, ao preferir os
desprezíveis aos grandes, estaria destroçando o orgulho humano. O mesmo
Deus, pelos lábios de Davi, exorta os reis a beijarem a Cristo61 [Sl 2.12]; e
igualmente anuncia pelos lábios de Paulo [1Tm 2.1-4] que ele deseja que
todos os homens sejam salvos, e que seu Cristo é exibido a todos os
homens, tanto ao insignificante quanto ao grande, tanto ao rei quanto ao
cidadão comum. Ele mesmo nos deu prova real disso: os pastores são os
primeiros a ser chamados a Cristo; em seguida vêm os filósofos; pescadores
incultos e menosprezados desfrutam de um espaço mais honroso; porém,
mais tarde, seguem os reis e seus conselheiros, os senadores e oradores são
também recebidos em sua escola.
28. As coisas que não são. Ele usa termos afins em Romanos 4.17, porém
com um sentido distinto. Pois nessa passagem, descrevendo a vocação
universal dos crentes, ele diz que não somos nada antes de sermos
chamados. E isso deve ser entendido como sendo uma referência à realidade
aos olhos de Deus, mesmo quando parecemos ser algo importante aos
olhos dos homens. Contudo, o nada (οὐδενεια) de que Paulo fala deve ser
considerado como uma referência à opinião dos homens. Isso é evidente à
luz da sentença correspondente, na qual ele diz que isso é feito a fim de que
as coisas que são sejam reduzidas a nada. Pois nada existe senão na
aparência, porque na realidade todos nós somos nada. Portanto, devemos
entender “as coisas que são” no sentido de “as coisas que aparecem”; de
modo que esta passagem corresponde a estas afirmações: “Ele ergue do pó o
desvalido; e do monturo, o necessitado” [Sl 113.7]; “O Senhor levanta os
abatidos” [Sl 146.8]; e outros de natureza semelhante. Destas citações fica
perfeitamente em evidência que as pessoas são demasiadamente insensatas
quando presumem existir algum mérito ou dignidade nos homens anterior à
eleição divina.
29. Para que nenhuma carne se glorie. Mesmo que aqui, e em muitas
passagens da Escritura, o termo carne signifique toda a humanidade, todavia
nesta passagem ele contém uma conotação particular, porque o Espírito, ao
falar do gênero humano em termos de desdém, abate seu orgulho; como em
Isaías 31.3: “Pois os egípcios são carne, não espírito.” Eis um sentimento
digno de ser lembrado: que nada nos é deixado em que podemos com razão
nos gloriar. Por esta razão Paulo adiciona a frase: “na presença de Deus.”
Porque na presença do mundo muitos se deleitam, por breve momento, num
falso esplendor, o qual, contudo, rapidamente se desvanece como a fumaça.
Ao mesmo tempo, por meio desta expressão todo gênero humano guarda
silêncio quando tem acesso à presença de Deus; como diz Habacuque: Que
toda carne esteja em silêncio diante de Deus [Hc 2.20]. Portanto, que tudo
quanto mereça algum louvor, seja considerado como procedente de Deus.
30. Mas vós sois dele em Cristo Jesus. No caso de concluírem que
alguns de seus ditos não se aplicam a eles, Paulo então mostra como tais
ditos têm a ver com eles sim, no sentido em que não têm vida senão em
Deus. Pois a expressão vós sois é enfática, como se quisesse dizer: “Vossa
origem está em Deus, que chama as coisas que não são [Rm 4.17], passando
por alto as coisas que parecem ser. Vossa existência [substentia] está de fato
alicerçada em Cristo, de modo que não deveis ter motivo algum para serdes
soberbos.” E ele está falando não meramente de nossa criação, mas daquela
existência [essentia] espiritual na qual nascemos de novo pela graça de
Deus.
O qual foi feito para nós sabedoria de Deus. Visto que há muitos que,
quando não querem afastar-se deliberadamente de Deus, não obstante
buscam algo fora de Cristo, como se ele só não abrangesse em si todas as
coisas,62 Paulo nos diz, de passagem, quão grandes são os tesouros com
que Cristo está munido; e ao agir assim ele procura descrever, ao mesmo
tempo, nosso modo de existência [modus susbsistendi] em Cristo. Pois
quando Paulo chama Cristo nossa justiça, uma idéia correspondente deve
ser entendida, a saber: que em nós nada mais há do pecado; e o mesmo
ocorre com os demais termos nesta oração. Pois aqui ele atribui a Cristo
quatro títulos que somam toda sua perfeição e todos os benefícios que nos
advêm dele [Cristo].
Primeiro. Paulo afirma que Cristo foi feito nossa sabedoria. Com isso quer
dizer que alcançamos a plenitude da sabedoria em Cristo, porque o Pai se
revelou plenamente nele para nós, de modo que não podemos desejar saber
coisa alguma fora dele. Existe uma expressão semelhante em Colossenses
2.3: “em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão
ocultos.” Diremos algo mais sobre isso no próximo capítulo.
Segundo. Ele afirma que Cristo foi feito nossa justiça. Com isso quer dizer
que em seu Nome fomos aceitos por Deus, porque ele fez expiação por
nossos pecados por meio de sua morte, e sua obediência nos é imputada
para justiça. Porque, visto que a justiça da fé consiste na remissão de
pecados e na livre aceitação, nós obtemos ambas através de Cristo.
Terceiro. Ele o chama nossa santificação. Com isso quer dizer que nós,
que por natureza somos imundos, nascemos de novo pela ação do Espírito,
para a santidade, para que tenhamos condição de servir a Deus. Daqui
deduzimos também que não podemos ser previamente justificados pela
exclusiva instrumentalidade da fé, se concomitantemente não vivermos em
santidade. Porquanto esses dons da graça vão juntos como que atados por
uma vínculo indestrutível, de modo que, se alguém tentar separá-los, em
certo sentido estará fragmentando a Cristo. Conseqüentemente, que aqueles
que almejam ser justificados pela livre bondade de Deus, através de Cristo,
reconheçam que tal coisa não pode absolutamente ser concretizada, a
menos que, ao mesmo tempo, se apegue a ele para a santificação; em outros
termos, ele deve nascer de novo pela instrumentalidade do Espírito, para a
irrepreensibilidade e pureza de vida. Os homens descobrem falhas em nós,
porque, ao pregarmos a graciosa justiça da fé, evidentemente estamos
afastando os homens das boas obras. Mas esta passagem os refuta de forma
clara, mostrando que a fé está jungida à regeneração assim como o perdão
de pecados está em Cristo.
Por outro lado, note-se que, enquanto os dois ofícios de Cristo se acham
unidos, todavia são distintos um do outro. Portanto, não temos a liberdade
de confundir o que Paulo expressamente distingue, o que seria um grave
erro.
Quarto. Ele ensina que Cristo nos foi dado para a redenção. Com isto
quer dizer que somos libertados, por sua graciosa bondade, de toda a
escravidão do pecado e de toda a miséria que flui deste. Assim, a redenção é
o primeiro dom de Cristo que teve início em nós, e o último a ser
consumado ou completado. Pois a salvação começa quando somos
desembaraçados do labirinto do pecado e da morte. Nesse ínterim, contudo,
suspiramos pelo dia da ressurreição final, ansiando pela redenção, como é
expresso em Romanos 8.23. Mas se alguém pergunta como Cristo nos é dado
para a redenção, respondo: “Porque ele se fez um resgate.”
Finalmente, de todas as bênçãos que são aqui enumeradas, devemos
buscar não a metade, ou meramente uma parte, mas a plenitude. Porquanto
Paulo não diz que ele nos foi dado como forma de enchimento, ou para
suprir a justiça, a santidade, a sabedoria e a redenção; senão que ele atribui
exclusivamente a Cristo a plena realização da totalidade. Ora, visto que o
leitor raramente encontrará outra passagem na Escritura que forneça uma
descrição mais clara de todos os ofícios de Cristo, ela pode também
propiciar-nos a melhor compreensão da força e natureza da fé. Portanto,
visto que Cristo é o próprio objeto da fé, todos quantos sabem quais são os
benefícios que Cristo nos confere, ao mesmo tempo aprenderam a entender
o que a fé significa.
31. Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. Note-se o propósito de
Deus em nos dar generosamente tudo em Cristo – para que não aleguemos
qualquer mérito para nós mesmos, mas para que lhe tributemos todo o
louvor. Porque Deus não nos despoja com vistas a deixar-nos nus, mas de
antemão nos veste com sua glória, porém com esta única condição: sempre
que desejarmos gloriar-nos, que então nos desviemos de nós mesmos. Em
suma, o homem reduzido a nada em sua própria estima, sabendo que a
bondade não provém de nenhuma outra fonte senão só de Deus, deve ele
renunciar todo anseio por sua própria glória, e com toda sua energia aspirar
e almejar exclusivamente a glória de Deus. E isso se faz ainda mais evidente
à luz do contexto da passagem do profeta de quem Paulo emprestou este
texto. Pois ali o Senhor, depois de despir a todo gênero humano do direito
de gloriar-se em sua força, sabedoria e riquezas, nos ordena a gloriar-nos
somente no conhecimento dele [Jr 9.23, 24]. Mas ele deseja ser conhecido
[cognosci] por nós de tal maneira que saibamos [sciamus] que ele é quem
exerce a retidão, a justiça e a misericórdia. Pois este conhecimento produz em
nós imediata confiança nele e temor a ele. Portanto, se uma pessoa
realmente tem sua mente tão bem regulada, não reivindicando para si
nenhum mérito, então seu desejo é tão-somente exaltá-lo; se tal pessoa
descansa satisfeita em sua graça; e põe toda sua felicidade em seu amor
paternal; e, por fim, se sente feliz tão-somente em Deus, então tal pessoa
realmente “se gloria no Senhor.” Sinceramente digo isso, pois mesmo os
hipócritas sobre falsas bases se glóriam nele, como declara Paulo [Rm 2.17],
quando, ensoberbecidos com seus dons, ou presumidos em sua ímpia
confiança na carne, ou mercadejam sua Palavra, contudo usam seu Nome
como proteção sobre si.
1. “Le leur et le nostre”, ou “le Seigneur (di-ie) et de eux et de nous.” – “Tanto deles, quanto
nosso”, ou, “o Senhor (digo) tanto deles, quanto nosso.”
2. “Constitué, ordonné, et establi.” – “Designado, ordenado e estabelecido.”
3. “Et aujour d’huy, qu’est ce qu’entonnent à plene bouche les Romanisques, sinon ces grous
mots, Ordination de Dieu, La saint et sacrée sucession depuis le temps mesme des Apostres.” –
“E, em nossos dias, o que os romanistas gritam com bocas escancaradas senão aqueles
grandes temas: Ordenação de Deus – A santa e sacra sucessão dos apóstolos até nossos dias?”
4. Αποστολος (um apóstolo), derivado de αποστελλειν (enviar), significa literalmente mensageiro. O
termo é empregado pelos escritores clássicos para denotar o comandante de uma expedição, ou
um delegado ou embaixador. (Veja-se Heródoto, v.38.) No Novo Testamento, ele é em vários casos
empregado em um sentido geral para denotar um mensageiro. [Veja Lc 11.49; Jo 13.16; Fp 5.38.]
Em um caso é aplicado a Cristo mesmo (Hb 3.1). Mais freqüentemente, contudo, é aplicado aos
mensageiros extraordinários que eram (para usar as palavras de Leigh em seu Critica Sacra) “os
legados (a latere)” de Cristo, de sua parte.”
5. “Mais (dira quelqu’un).” – “Mas (alguém diria).”
6. “Tu te pourras bien entretenir en l’Eglise tellement quellement, estant meslé parmi les
autres.” – “Podeis muito bem ter uma permanência na Igreja, de algum modo, estando
entremeados entre outros.”
7. Sinédoque, figura de linguagem por meio da qual a parte é tomada pelo todo.
8. “Nids et cachettes.” – “Ninhos e esconderijos.”
9. Parole’, ou ‘éloquence’. – ‘Enunciação’ ou ‘eloqüência’.
10. O mesmo ponto de vista do desígnio de Paulo aqui é apresentado por Teodoreto: “Visto que
ele está para censurá-los, suaviza de antemão o órgão de audição para que o remédio a ser
aplicado seja recebido o mais favoravelmente possível.”
11. “Que chacun ha en son endroit.” – “Que cada um tem severamente.”
12. Figura de linguagem por meio da qual um termo é expresso por outro – a causa pelo efeito, o
efeito pela causa etc.
13. Calvino provavelmente se refere às seguintes passagens (entre outras): 1 Tessalonicenses
5.24; 2 Tessalonicenses 3.3; Hebreus 10.23.
14. “La vocation donc qu’il fait d’un chacun des siens, n’est point un jeu, et en les appellant il ne
se mocque point, ainsi il entretiendra et pour suyura son œuvre perpetuellement.” – “A vocação,
portanto, que ele faz de cada um dos seus não é mera diversão; e ao chamá-los ele não está a
brincar, mas incessantemente manterá e dará curso a sua obra.”
15. Calvino, depois de falar de ser Cristo apresentado por Paulo como “a nós oferecido no
evangelho com toda abundância de bênçãos celestiais, com todos seus méritos, toda sua
justiça, sabedoria e graça, sem exceção”, observa: “E o que está implícito pela comunhão
(κοινωνια) de Cristo o qual, segundo o mesmo apóstolo [1Co 1.9], nos é oferecido no evangelho –
todos os crentes sabem.”
16. “La mort et perdition.” – “Morte e perdição.”
17. “Et en une mesme volonte”, ou “et mesme avis”. – “E na mesma disposição”, ou “e no mesmo
critério.”
18. “Et ie di ceci”, ou “Or ce que ie di c’est qu’un chacun.” – “E isto eu digo”, ou “Ora, o que digo é
isto: que cada um.”
19. “Et assemblés l’une à l’autre.” – “E associadas umas às outras.”
20. O verbo καταρτιζω propriamente significa: reparar, readaptar ou restaurar a sua condição
original o que fora desordenado ou quebrado; e nesse sentido se aplica à reparação de redes,
navios, muros etc. [veja-se Mt 4.21; Mc 1.19]. Podemos com plena propriedade entender o
apóstolo fazendo aqui alusão à reparação de um navio que fora quebrado ou danificado, e como
a informar que uma igreja, quando dispersa por divisões, não é, por assim dizer, um mar
confiável, e deve ser cuidadosamente reparada, antes que possa estar preparada para os
propósitos de comércio, comunicando às nações da terra as “genuínas riquezas”. Entretanto, a
alusão, mais provavelmente, é como se Calvino estivesse pensando nos membros do corpo
humano, os quais são tão admiravelmente ajustados uns aos outros. Merece nota o fato de que
Paulo faz uso de um derivativo do mesmo verbo (κατάρτισις) em 2 Coríntios 13.9, sobre o qual
Beza observa “que a intenção do apóstolo é que, enquanto os membros da Igreja estavam
todos, por assim dizer, deslocados e desconjuntados, agora uma vez mais seriam enfeixados em
amor, e tudo fariam para fazer perfeito o que estava defeituoso entre eles, quer na fé, quer na
conduta.”
21. “La sancte union qui doit estre les Chrestiens.” – “Aquela santa unidade que deve haver entre
os cristãos.”
22. “Bien plus dangereuses.” – “Muito mais perigosas.”
23. Beza observa que o verbo aqui empregado, δηλοω (declarar) contém uma significação mais
forte do que σημαινω (insinuar), assim como há uma diferença de sentido entre as palavras latinas
declarare (declarar) e significare (insinuar), exemplo esse que é fornecido em uma carta de Cícero a
Lucrécio: “tibi non significandum solum, sed etiam declarandum arbitror, nihil mihi esse potuisse
tuis literis gratius.” – “Creio que não se deve simplesmente insinuar-lhe, mas declarar que nada
poderia ser-me mais agradável do que suas cartas.” A palavra enfática, εδηλωθη (foi declarado),
parece ter sido usada pelo apóstolo para comunicar mais plenamente à mente dos coríntios
que ele não lhes transmitira uma mera notícia.
24. Alguns chegaram à conclusão que por τω̑ν Χλόης (os de Cloe) o apóstolo quer dizer pessoas
que estavam em florescente condição na religião; de χλόη, erva verde (Heródoto, iv.34, Eurípedes,
Hipp. 1124). Certo escritor supõe Paulo querendo dizer seniores (anciãos), derivando a palavra
χλόη de jlb, idoso. Entretanto, tais conjeturas são claramente mais engenhosas que sólidas. É
verdade que o nome Χλόη (Cloe) era freqüente entre os gregos como um nome feminino. É mais
natural entender por τω̑ν Χλόης, os de Cloe, como equivalente a των Χλοης σικειων – os da casa de
Cloe.
25. “Et n’y a en chose quelconque debats si grans ni tant à craindre que sont ceux-là.” – “E em
nenhum departamento há disputas tão fortes, ou tão terríveis como aquelas.”
26. “Autrement veu que ces trois estoyent d’un sainct accord ensemble en leur ministere, il n’est
point vray-semblable, qu’il y eust aucunes partialitéz entre les Corinthiens pour se glorifier en
l’un plustost qu’en l’autre.” – “De outra forma, visto que aqueles três estavam unidos em seu
ministério por um laço sacro, não é provável que houvesse alguns partidos entre os coríntios
que estivessem preparados a gloriar-se neles mais que em outros.”
27. “Mieux avisez que les autres.” – “Melhor avisados do que outros.”
28. “Combien c’est vne chose insupportable.” – “Quão insuportável coisa é.”
29. “Addicere nos hominibus in servitutem” – “de nous assuiettir aux hommes en seruitude.” –
“Entregar-nos a homens, ao ponto de nos tornarmos seus escravos.” Calvino mui provavelmente
tinha em mente o celebrado sentimento de Horácio (Epist. i.1.14): “Nullius addictus jurare in verba
magistri.” – “Obrigado a jurar fidelidade a nenhum senhor”, enquanto impõe o sentimento por
uma poderosa consideração, à qual o poeta pagão era totalmente estranho.
30. “Du sang de Christ, et des martyrs tous ensemble.’ – “Do sangue de Cristo e de todos os
mártires juntos.”
31. Leo, ad Palæstinos, Ep. 81. A passagem supramencionada é citada livremente nas Institutas.
“Ainda que a morte de muitos santos fosse preciosa aos olhos do Senhor [Sl 116.15], contudo
nenhum inocente assassinado era a propiciação do mundo. Os justos recebiam coroas, porém
não as davam; e a fortaleza dos crentes produzia exemplos de paciência, não dons de justiça. Pois
suas mortes eram para si mesmos; e nenhum deles, ao morrer, pagava a dívida de outro, com a
exceção de Cristo nosso Senhor, em quem unicamente todos somos crucificados, todos mortos,
sepultados e ressurretos.” Leo, de cujos escritos foi extraída esta admirável passagem, foi um
bispo romano que viveu no quinto século, e foi um dos mais eminentes homens de sua época.
Ele foi o mais zeloso defensor das doutrinas da graça, em oposição ao pelagianismo e outras
heresias.
32. “Obligez par serment.” – “Atados por juramento.”
33. “Syngrapha (o termo empregado por Calvino) era um contrato ou vínculo, formalmente
endossado entre duas partes, assinado e selado por ambas, e uma cópia dada a cada uma.”
Cic. Verr. i.36. Dio. xlviii.37. Deriva-se de um termo grego, συγγραφὴ (um instrumento ou obrigação
legal). Heródoto, i.48; e Demóstenes, cclxviii.13.
34. Ironie, c’est à dire, mocquerie.” – “Ironia, isto é, zombaria.”
35. “Seulement en les arrousant d’euau: c’est à dire, baptizant.” – “Simplesmente por aspergi-los
com água, ou, seja, batizando-os.”
36. “Toute la charge et la pesanteur du fardeau.” – “Toda a carga e peso do fardo.”
37. “Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou declamador.”
38. “Ces vaillans docteurs.” – “Aqueles mestres valentes.”
39. Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou declamador.”
40. O termo λογοδαιδαλία propriamente denota linguagem engenhosamente inventada. É
composto de λογος (fala) e Δαιδαλος (Dædalus), um artista engenhoso de Atenas, celebrado por
sua habilidade em estatuário e arquitetura. Daí tudo quanto era habilidosamente inventado
passou a chamar dedaliano.
41. “Eloquence et rhetorique.” – “Eloqüência e retórica.”
42. “Vne bonne erudition, et sçauoir solide.” – “Bom aprendizado e sólida sabedoria.”
43. “Les Corinthiens auoyent les oreilles chatouilleuses, et estoyent transportez d’vn fol appetit
d’auoir des gens qui eussent vn beau parler.” – “Os coríntios tinham coceira nos ouvidos [2Tm 4.3],
e se deixavam levar por tola ansiedade de ver pessoas que tinham bom gosto em vestir-se.”
44. “Les humbles.” – “Os humildes.”
45. “Ni à offusquer de sa pompe la croix de Christ, comme qui mettroit vne nuée au deuant.” –
“Nem turvar a cruz de Cristo com sua fútil exibição, como se fosse atrair uma nuvem sobre ela.”
46. “Brief, à seruir comme de trompette.” – “Em suma, para servir de trombeta.”
47. “Combien que j’aye vne raixon encore plus valable, qui m’a induit à changer ceste
translation.” – “Ao mesmo tempo, tenho uma razão ainda mais forte que me tem induzido a
alterar esta tradução.”
48. “As palavras de Paulo em 1 Coríntios 1.20 não constituem, como alguns imaginavam, uma
citação das palavras deste versículo” [Is 33.18]. “Os únicos pontos de concordância entre elas
são meramente a ocorrência de γραμματεὺς, e a repetição da interrogativa που̑. Não é impossível,
contudo, que a estrutura de uma passagem esteja sugerida na outra.” – Henderson sobre Isaías.
49. A frase hebraica mencionada ocorre em 2 Reis 12.10, ^lmh rps, o escriba do rei. É traduzida
pela Septuaginta ὁ γραμματεύς του̑ βασιλέως. O termo grego correspondente, γραμματεύς, é
empregado pelos escritores clássicos para denotar um clérigo ou secretário (Demosth. 269.19).
Os notários (γραμματεις) “tinham a custódia da lei e dos registros públicos que tinham por dever
escrever e repetir para o povo e senado quando assim requerido.” – Potter’s Grecian Antiquities, Vol.
I, p. 103.
50. Calvino aqui evidentemente tem diante dos olhos o significado original de συζητητης, que se
deriva de συν e ζητεω (inquirir juntos) e chegou naturalmente a significar alguém que se entrega a
argumentos ou disputas. O termo era aplicado aos sofistas sutis, ou os que disputavam nas
academias gregas.
51. “La prudence civile, c’est à dire la science des lois.” – “Prudência civil, isto é, a ciência das
leis.”
52. Veja-se Institutas, vol. i, pp. 323, 324.
53. “Et outrecuidance.” – “E presunção.”
54. “Extreuagantes.” – “Extravagantes.”
55. Não pode haver dúvida de que Calvino se refere aqui a uma expressão usada por Paulo em
seu discurso aos atenienses [At 17.27]: “se porventura, tateando, o pudessem achar.” A alusão é
a um cego que anda tateando em seu caminho. A mesma palavra é empregada por Platão:
“Neste aspecto, muitos me parecem estar tateando como se estivessem no escuro.”
56. “Pour oster et faire esvanoir ceste vaine apparence, et masque de sagesse.” – “Para remover
e fazer desaparecer aquela fútil exibição e máscara de sabedoria.”
57. Veja-se página XXX.
58. “Que vous n’estes point beaucoup.” – “Que não sois muitos.”
59. “Or c’est de luy que vous estes.” – “Agora é dele que sois.”
60. “Redemption, ou rançon.” – “Redenção ou resgate.”
61. “Dieu ne permet de presumer d’eux mesmes.” – “Deus não lhes permite confiança em si
mesmos.”
62. “A faire hommage à Christ.” – “A fazer homenagem a Cristo.”
63. “Toute plenitude.” – “Toda plenitude.” [Cl 1.9]
Capítulo 2
1. E eu, irmãos, quando fui ter convosco, proclamando-vos o mistério de Deus, não fui
com excelência de linguagem, ou de sabedoria.
2. Porque determinei nada saber entre vós, a não ser Jesus Cristo, e este crucificado.
1. Et ego, quum venissem ad vos, fratres, veni non in excellentia sermonis vel sapientiæ,
annuntians vobis testimonium Dei.
2. Non enim eximium duxi, (vel, duxi pro scienti,) scire quicquam inter vos,1 nisi Iesum
Christum, et hunc crucifixum.
1. E eu, quando fui ter convosco. Tendo iniciado a falar de seu próprio
método de ensino, Paulo continuou quase imediatamente a tratar do caráter
geral da pregação evangélica. Agora ele volve outra vez para sua própria
pessoa com o fim de mostrar que tudo quanto é desprezado nele pertence à
natureza do próprio evangelho, e em certo sentido é inseparável dele.
Portanto, ele admite que não usufruiu do auxílio da eloqüência ou sabedoria
humana, de cuja provisão poderia capacitar-se para realizar algo. Prossegue,
porém, acrescentando que, a partir do próprio fato de admitir sua carência
de tais recursos, o poder de Deus, que não carece de tais auxílios, se faz
plenamente evidente em seu ministério. Ele introduz esta verdade um pouco
depois. Mas, nesse ínterim, tendo admitido que era carente de sabedoria
humana, não obstante sustenta que proclamava o “testemunho de Deus”
[testemonium Dei]. Ainda que alguns intérpretes expliquem o “testemunho
de Deus” num sentido passivo, contudo não tenho dúvidas de que o oposto
é precisamente o que o apóstolo tem em mente: que o “testemunho de Deus”
é aquele que tem sua origem em Deus, a saber, o ensino do evangelho, do
qual Deus é o Autor e Testemunha. Paulo, pois, faz distinção entre
linguagem e sabedoria (λύγον ἀπὸ τη̑ς σοφίας). Isso confirma o que mencionei
anteriormente,2 ou, seja, que até então ele esteve falando não sobre mera e
fútil tagarelice, mas sobre toda a cultura das ciências humanas.
2. Porque determinei nada saber entre vós etc. Visto que o grego,
κρίνειν, às vezes significa εκλεγειν, ou, seja, selecionar algo como valioso,3
penso que ninguém em são juízo negará que minha tradução é mais
plausível, visto ser consistente com a construção [do grego]. Todavia, se o
traduzirmos “não estimei nenhum tipo de conhecimento”, não haveria
qualquer discordância nisso. Mas se o leitor completa algo que está
faltando, a oração ficará plenamente bem, como esta: “Nada valorizei em
mim mesmo como importante para eu conhecer, ou como base de
conhecimento.” Ao mesmo tempo, de forma alguma rejeito uma
interpretação diversa, ou, seja, considerando Paulo como que afirmando
que nada estimou como conhecimento, ou como merecedor de ser chamado
conhecimento, a não ser exclusivamente Cristo. Se este é o caso, a
preposição grega, αντι, teria de ser suprimida, como às vezes sucede. Mas, se
a primeira interpretação não for reprovada, ou se a segunda for a mais
satisfatória, equivale ao seguinte: “Quanto à ausência de ornamentos em
minha linguagem, e também a ausência de mais elegância em meus
discursos, a razão se deveu ao fato de não haver corrido após tais coisas;
aliás, desdenhei delas, porquanto uma só coisa ocupava meu coração – que
eu pudesse proclamar Cristo com simplicidade.”
Ao adicionar o termo, crucificado, Paulo não pretendia dizer que ele nada
proclamava com respeito a Cristo senão a cruz, mas que todo o vilipêndio
da cruz não o impedia de proclamar a Cristo. É como se quisesse dizer: “A
ignomínia da cruz não me impedirá de contemplar Aquele4 de quem provém
a salvação, ou me leve a envergonhar-me de ter toda minha sabedoria
compreendida nele – Aquele a quem os soberbos tratam com desdém e
rejeitam em razão da ignomínia de cruz.” Portanto, o que ele diz deve ser
explicado da seguinte maneira: “Nenhum tipo de conhecimento, a meu ver,
foi tão importante para mim que me fizesse desejar algo mais além de Cristo,
ainda que continuasse crucificado.” Esta pequena frase é adicionada à gusa de
adição (αὔξησιν), com o fim de causar ainda mais irritação àqueles mestres
arrogantes, para quem Cristo era alvo de desprezo, pois seu maior desejo
era ser aplaudidos pela reputação de possuírem alguma sorte de sabedoria
superior. Este é um versículo muitíssimo belo, e dele podemos aprender o
que um ministro fiel deve ensinar, e o que devemos cultivar ao longo de
toda nossa vida; e comparado a isso tudo o mais deve ser considerado a
esterco [Fp 3.8].
6. Seja como for, falamos sabedoria entre os que são perfeitos; não, porém, a sabedoria
deste mundo, nem a dos príncipes deste mundo, que se reduzem a nada;
7. mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, sabedoria essa que esteve oculta, a
qual Deus ordenou antes dos mundos para nossa glória;
8. a qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a tivessem
conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória;
9. mas, como está escrito: Nenhum olho viu, nem ouvido ouviu, nem penetrou em
coração humano, as coisas que Deus preparou para aqueles que o amam.
6. Porro sapientiam loquimur inter perfectos: sapientiam quidem non sæculi hujus,
neque principum sæculi hujus, qui abolentur.
7. Sed loquimur sapientiam Dei in mysterio, quæ est recondita: quam præfinivit Deus
ante sæcula in gloriam nostram,
8. Quam nemo principum sæculi hujus cognovit: si enim cognovissent, nequaquam
Dominum gloriæ crucifixissent.
9. Sed quemadmodum Scriptum est (Ies. lxiv. 4.) “Quæ oculus non vidit, nec auris audivit,
nec in cor hominis ascenderunt, quæ præparavit Deus iis, qui ipsum diligunt.”
6. Falamos sabedoria. Para que ele não fosse visto como alguém que
desdenha da sabedoria, assemelhando-se a pessoas incultas e ignorantes
que menosprezam o saber com a ferocidade dos bárbaros, ele acrescenta
que não era destituído daquela genuína sabedoria que era digna do nome,
mas que só era apreciada por aqueles que são competentes para julgar. Pela
expressão os que são perfeitos ele quer dizer não aqueles que se apossam de
uma sabedoria plena e completa, mas aqueles que possuem um juízo sólido
e imparcial. Pois o termo hebraico !t, que é sempre traduzido na Septuaginta
por τελειος, significa completo.10 Entretanto, de passagem ele censura os que
não nutriam qualquer inclinação para sua pregação, e lhes dá a entender que
a culpa era deles. É como se quisesse dizer: “Se minha doutrina desagrada a
alguns dentre vós, tais pessoas provam suficientemente que seu
entendimento é depravado e viciado, visto que ela [a doutrina] é
invariavelmente reconhecida como a mais excelente sabedoria entre os que
possuem intelecto saudável e bom senso.” Em contrapartida, ainda que o
ensino de Paulo fosse apresentado a todos, nem sempre era estimado por
seu real valor, e esta é a razão por que ele apela para juízes idôneos e
imparciais,11 para que pudessem declarar que a doutrina, a qual o mundo
reputava como sendo insípida, era a expressão da genuína sabedoria.
Entrementes, pelo termo falamos ele notifica que punha diante deles um
elegante exemplo de admirável sabedoria, a fim de que ninguém
questionasse que ele se vangloriava de algo desconhecido.
Não a sabedoria deste mundo. Uma vez mais ele reitera, à guisa de
antecipação, o que já havia admitido – que o evangelho não era sabedoria
humana, para que ninguém objetasse, dizendo que havia poucos que
apoiavam tal doutrina. Mais ainda, que ela era desdenhada por todos
quantos eram intelectualmente eminentes. Daí ele reconhecer
espontaneamente o que poderia ser apresentado à guisa de objeção, mas de
tal sorte que de forma alguma se dava por vencido.
Os príncipes deste mundo. Pela expressão, príncipes deste mundo, Paulo
tinha em mente aqueles que são eminentes no mundo por causa de algum
dote. Pois alguns há que nem sempre possuem acuidade intelectual, todavia
são tidos em admiração em razão da dignidade de sua posição pessoal.
Entretanto, para que não nos alarmemos diante de suas aparências externas
[larvis], o apóstolo acrescenta que eles serão reduzidos a nada ou perecerão.
Pois não é justo que algo de importância eterna dependa da autoridade
daqueles que estão de passagem e perecendo, incapazes de oferecer
perpetuidade até mesmo a si próprios. É como se quisesse dizer: “Quando o
reino de Deus se manifesta, que a sabedoria deste mundo se retraia, e o que
é transitório ceda lugar ao que é eterno. Pois os príncipes deste mundo têm
sua distinção, porém é de uma natureza tal que se extingue num instante.
Que é isso em comparação com o reino de Deus, que é celestial e
incorruptível?
7. A sabedoria de Deus em mistério. Ele assinala a razão por que a
doutrina do evangelho não é tida em alta estima pelos príncipes deste
mundo: é que ela está envolta em mistério e, conseqüentemente, oculta. Pois
o evangelho transcende muitíssimo à perspicácia do intelecto humano, de
tal forma que aqueles que são reputados como sendo de intelecto superior
podem erguer sua vista ao máximo que jamais poderão chegar a tal altitude.
Entretanto, menosprezam sua insignificância como se ele estivesse lançado
a seus pés. Em decorrência disso, quanto mais arrogantemente o desprezam,
mais terão eles de conhecê-lo; além do mais, eles se acham numa posição
tão eqüidistante dele, que são impedidos inclusive de vê-lo.
A qual Deus ordenou antes dos mundos para nossa glória. Havendo
Paulo afirmado que o evangelho era algo oculto, havia o risco de os crentes,
ouvindo isso e sentindo-se enfraquecidos em meio às dificuldades, fugirem
dele e viessem a sucumbir pelo desespero. Por isso, ele encara este perigo e
declara que, não obstante, o evangelho foi designado para nós, para nosso
deleite nele. Para que ninguém, digo, concluísse que não tinha nada a ver
com uma sabedoria oculta, ou imaginasse ser ilícito dirigir seus olhos para
ele, visto que o mesmo não se achava dentro dos parâmetros da
compreensão humana, Paulo ensina que ele nos foi comunicado pelo eterno
conselho de Deus. Ao mesmo tempo, ele tinha algo maior em mente, pois,
por meio de uma comparação tácita, ele expõe à luz ainda mais meridiana a
graça que foi posta diante de nós por intermédio da vinda de Cristo, a qual
nos pôs numa posição mais excelente do que a de nossos pais que viveram
sob o regime da lei. Eu disse mais sobre isso no final do último capítulo de
Romanos. Antes de tudo, pois, ele parte do fato de que Deus ordenou. Pois
se Deus nada designou sem um propósito, segue-se que nada perderemos
em ouvir o evangelho, o qual ele destinou a nós, pois quando nos fala, ele se
acomoda a nossa capacidade. O que Isaías diz se relaciona a este fato
[45.19]: “Não falei em segredo, em algum canto escuro12 da terra; não disse à
descendência de Jacó: Buscai-me em vão!” Em segundo lugar, a fim de tornar
o evangelho atrativo, e a fim de despertar em nós o desejo de conhecê-lo, ele
extrai ainda outro argumento do desígnio que Deus tinha em vista conceder-
nos: para nossa glória. Nesta expressão ele também parece extrair uma
comparação entre nós e os pais, a quem nosso Pai celestial não considerou
dignos de tal honra, a qual ele reservou para a vinda de seu Filho.13
8. A qual nenhum dos soberanos deste mundo conheceu. Se o leitor
acrescentar: “por seu próprio discernimento”, a afirmação não seria mais
aplicada a eles do que aos homens em geral, e às próprias pessoas mais
humildes; pois qual de todos nós, do mais ao menos importante, alcança
tais obtenções? Naturalmente podemos, talvez, dizer que os soberanos
devem ser censurados por cegueira e ignorância, mais do que outros, pela
seguinte razão: que quando falam parecem ser perspicazes e sábios.
Contudo prefiro entender a expressão de forma mais simples, seguindo o
uso freqüente da Escritura que costuma falar em termos da universalidade
daquelas coisas que acontecem επι το πολυ, isto é, [acontecem] comumente,
e também para usar uma afirmação negativa em termos de universalidade
quanto àquelas coisas que só acontecem ἐπι ἔλαττον, isto é, [acontecem]
mui raramente. Neste sentido, nada houve de inconsistente nessa afirmação,
ainda que houvesse achado poucos homens de distinção e elevados acima
dos demais em dignidade, os quais era, ao mesmo tempo, dotados com o
puro conhecimento de Deus.
Porque, se tivessem conhecido. A sabedoria de Deus resplandeceu
visivelmente em Cristo, e no entanto os príncipes não a perceberam ali. Na
crucificação de Cristo, a direção foi assumida, por um lado, pelos líderes
dos judeus, cuja reputação em justiça e sabedoria era excelente; e, por
outro, por Pilatos e pelo império romano. Este é um claro exemplo da
extrema cegueira de todos os que só são sábios segundo os padrões
humanos. Entretanto, este argumento do apóstolo pode parecer frágil. “Ora,
não vemos todos os dias pessoas que não estão familiarizadas com a
verdade de Deus, contudo se lhe opõem com deliberada malícia? Mesmo
quando essa rebelião franca não fosse percebida por nossos olhos, que
outro é o pecado contra o Espírito Santo senão a espontânea obstinação
contra Deus, quando uma pessoa, consciente e voluntariamente, não só age
contra sua Palavra, mas também levanta os braços contra ele? Eis a razão
por que Cristo testifica que os fariseus e seus associados o conheciam [cf.
Jo 7.28], quando ele os despoja do pretexto de ignorância, e os acusa de
cruel impiedade em persegui-lo, o fiel Servo do Pai, sobre nenhuma outra
base a não ser seu ódio contra a verdade.”
Minha resposta é que existe dois gêneros de ignorância. Um deles tem
por origem o zelo irrefletido, não rejeitando expressamente o bem, mas, ao
contrário, pensa que ele é mau. Embora ninguém peque por ignorância ao
ponto de não ser acusado de má consciência aos olhos de Deus, há sempre
uma mistura, ou de hipocrisia, ou de orgulho, ou de escárnio; contudo, às
vezes o juízo e todo o entendimento são tão reprimidos na mente de uma
pessoa que nada é evidente a não ser a clara ignorância, não só aos olhos
dos outros, mas também a seus próprios olhos. Paulo era assim antes de ser
iluminado. O motivo de seu ódio a Cristo, e sua hostilidade a sua doutrina,
era que, por ignorância, ele se viu devorado por um perverso zelo pela lei.14
Naturalmente que ele não era isento de hipocrisia, nem inocente de orgulho,
de modo que fosse justificado aos olhos de Deus, mas aqueles vícios
estavam tão completamente sepultados pela ignorância e cegueira, que ele
nem mesmo os notava nem os sentia.
O outro gênero de ignorância é mais danoso e perigoso do que uma mera
ignorância. Pois aqueles que voluntariamente se levantam contra Deus são,
por assim dizer, frenéticos, porquanto vêem e ao mesmo tempo não vêem
[Mt 13.13]. Na verdade, a conclusão geral deve ser que a infidelidade é
sempre cega. Mas o que importa é o seguinte: às vezes a cegueira subscreve
a malícia, de modo que uma pessoa não tenha qualquer consciência de seu
próprio mal, como se ela fosse completamente insensível. Esta é a posição
daqueles que se enganam com uma boa intenção, como a chamam, o que é
de fato fútil fantasia. Em alguns casos a malícia tem uma tal ascendência
que, a despeito das restrições da consciência, uma pessoa se arroja em
direção à impiedade desse tipo assemelhando-se a demência.15 Portanto,
não surpreende que Paulo declare que os príncipes deste mundo não teriam
crucificado a Cristo, se porventura tivessem conhecido a sabedoria de Deus.
Porque os fariseus e escribas não sabiam que a doutrina de Cristo era
verdadeira, de modo que vagueavam, como homens entorpecidos, em meio
a suas próprias trevas.
9. Mas como está escrito: O que olhos não viram etc. Todos
concordam que esta passagem é tomada de Isaías 64.3 (na LXX é 4); e visto
que à primeira vista o significado é óbvio e fácil, os intérpretes não se dão
muito ao trabalho de explicá-la. No entanto, ao atentar para ela mais de
perto, duas diferenças bem sérias aí surgem. A primeira consiste em que as
palavras, como usadas por Paulo, não concordam com as palavras do
profeta. A segunda consiste em que Paulo parece estar operando em linhas
diferentes das do profeta, e assim a declaração do profeta parece ter um
propósito totalmente estranho a seu desígnio.
Então trataremos primeiramente das palavras. Uma vez que são
ambíguas, os intérpretes explicam-nas de diferentes formas. Alguns as
traduzem nesta forma: “Desde os primórdios do mundo os homens não têm
ouvido nem percebido com os ouvidos, e nenhum olho tem visto Deus além
de ti, que age [faciat] de tal maneira em favor daquele que espera nele.”
Outros interpretam as palavras como direcionadas para Deus, como segue:
“Olhos não viram, nem ouvidos ouviram além de ti, ó Deus, as coisas que
fizeste por aqueles que esperam em ti.” Literalmente, contudo, a intenção do
profeta é esta: “Desde o princípio do mundo os homens não têm houvido,
nem têm percebido com os ouvidos, não têm visto deus [ou ó Deus] além de
ti, que fará [ou preparará] para aquele que espera nele.” Se lermos !yhla
[Deus] no acusativo [Deum], o relativo que [qui] terá de ser aplicado. Em
primeira instância, esta exposição parece adequar-se melhor ao contexto do
profeta, porque o verbo que segue está na terceira pessoa,16 porém ele vai
além da intenção de Paulo, e que deve levar mais peso em relação a nós do
que outras razões. Pois quem melhor que o Espírito de Deus será um
infalível e fiel intérprete desta declaração profética, a qual ele mesmo ditou a
Isaías, visto que era ele quem o explicava pelos lábios de Paulo? Não
obstante, a fim de podermos resistir as acusações dos ímpios, declaro que a
natureza da construção hebraica permite este como o genuíno significado
do profeta: “Ó Deus, nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, mas tu
somente sabes as coisas que tens costume de fazer por aqueles que
esperam em ti.” A mudança súbita de pessoa não traz dificuldades. Sabemos
ser tão comum nos escritos dos profetas, que nem precisamos ser detidos
aqui. Se a primeira interpretação agrada mais a alguns, eles não estarão em
posição de nos culpar ou culpar o apóstolo de partir do simples significado
das palavras, pois completamos menos do que eles fazem, porque serão
forçados a adicionar um termo de similitude ao verbo agir (formando a
frase: “que ages de tal maneira”).
Ainda que o profeta não inclua o que segue sobre “a entrada daquelas
coisas no coração humano”, a frase não imprime uma nota distinta da outra
frase “além de ti”. Pois ao atribuir este conhecimento só a Deus, ele exclui
dele [conhecimento] não só os sentidos físicos do homem, mas também a
habilidade da mente. Portanto, embora o profeta faça diferença só à visão e à
audição, ao mesmo tempo ele implicitamente inclui todas as faculdades da
mente. Por certo que aquelas são as duas membranas por meio das quais
obtemos conhecimento daquelas coisas que alcançam o entendimento. Ao
usar a frase “aqueles que o amam”, Paulo está seguindo os intérpretes
gregos, que a traduziram assim, porém se equivocaram por causa da
similaridade de uma carta para a outra;17 mas como isso não faz nenhuma
diferença para o ponto deste versículo, ele não quis partir da tradução
comum, porque paulatinamente vemos o quanto ele dá forma ao texto
aceito. Portanto, ainda que as palavras não sejam as mesmas, não há real
diferença de significado.
Passo agora à abordagem do tema. Nesta passagem, o profeta recorda
quão maravilhosamente Deus veio ao encontro de seu povo para assisti-lo
nos momentos de profundas necessidades, e exclama que o favor divino em
prol dos piedosos excede à compreensão da mente humana. Mas alguém
poderia dizer: “O que isso tem a ver com o ensino espiritual e com as
promessas de vida eterna, os quais Paulo está discutindo aqui?” Há três
maneiras como essa pergunta pode ser respondida. Não estará fora de
propósito dizer que o profeta, tendo mencionado os benefícios terrenos, foi
arrebatado pela reflexão destes para uma afirmação geral, e naturalmente
para gloriar-se na bem-aventurança espiritual, a qual está reservada no céu
para os crentes. Prefiro, não obstante, entendê-lo simplesmente como
fazendo referência aos dons da graça de Deus, os quais são diariamente
conferidos aos crentes. Ao tratarmos deles, devemos sempre observar sua
fonte, não limitando nossa visão a seus aspectos presentes. Ora, sua fonte é
o gracioso beneplácito de Deus, por meio do qual ele nos adotou no número
de seus filhos. A pessoa, pois, que deseja avaliar essas coisa corretamente,
não as contemplará em seu aspecto despido, porém as vestirá com o amor
paternal de Deus como se fosse um vestuário, e assim tal pessoa será
conduzida dos dons temporais para a vida eterna. Pode-se dizer também
que este é um argumento do menor para o maior. Pois se o intelecto humano
não pode chegar à medida dos dons terrenais de Deus, muito menos atingirá
ele as altitudes celestiais [Jo 3.12]. Entretanto, já dei a entender que
interpretação prefiro.
10. Deus, porém, no-las revelou pelo Espírito; pois o Espírito perscruta todas as coisas,
sim, as coisas profundas de Deus.
11. Pois qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem que
nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus.
12. Ora, nós recebemos, não o espírito do mundo, e, sim, o Espírito que vem de Deus;
para que pudéssemos conhecer as coisas que nos são dadas gratuitamente por Deus.
13. Coisas essas das quais também falamos, não em palavras que a sabedoria humana
ensina, mas que o Espírito Santo ensina, comparando coisas espirituais com espirituais.
10. Nobis autem Deus revelavit per Spiritum suum: Spiritus enim omnia scrutatur, etiam
profundditates Dei.
11. Quis enim hominum novit, quæ ad eum pertinent, nisi spiritus hominis, qui est in
ipso? Ita et quæ Dei sunt, nemo novit, nisi Spiritus Dei.
12. Nos autem non spiritum mundi accepimus, sed Spiritum qui est ex Deo: ut sciamus
quæ a Christo donata sunt nobis:
13. Quæ et loquimur, non in eruditis humanæ sapientiæ sermonibus, sed Spiritus sancti,
spiritualibus spiritualia coaptantes.
10. Deus, porém, no-las revelou. Tendo concluído que todos os homens
são cegos, e tendo despojado o intelecto humano do poder de obter o
conhecimento de Deus, Paulo agora mostra como os fiéis são isentados
desta cegueira, a saber, honrando-os o Senhor com a iluminação especial do
Espírito. Portanto, quanto mais obtuso é o intelecto humano para
compreender os mistérios de Deus, e quanto mais profunda é a incerteza
sob a qual labora, tanto mais segura é nossa fé, a qual tem seu apoio na
revelação do Espírito de Deus. Nisso reconhecemos a infinita bondade de
Deus que faz com que nossa imperfeição contribua para nosso benefício.
Pois o Espírito perscruta todas as coisas. Isso é acrescido para a
consolação dos piedosos, para que descansem com mais tranqüilidade na
revelação que eles possuem da parte do Espírito de Deus. É como se
dissesse: “Que nos seja suficiente ter o Espírito de Deus como testemunha,
pois nada existe em Deus tão profundo que ele não possa atingir.” Pois esse
é o sentido que perscrutar tem aqui. Pela expressão, “as coisas profundas”,
deve-se entender não pensamentos secretos, os quais não nos é permitido
investigar, mas toda a doutrina da salvação, a qual as Escrituras teriam
posto diante de nós sem qualquer objetividade, se Deus, por intermédio de
seu Espírito, não conduzisse nossas mentes a ela.
11. Pois qual dos homens sabe? Paulo pretende ensinar duas coisas
aqui: Primeiramente, que a doutrina do evangelho só pode ser assimilada
pelo testemunho do Espírito Santo; e, segundo, que aqueles que possuem
um testemunho de tal natureza, provindo do Espírito Santo, também
possuem uma certeza tão sólida e firme, como se pudessem realmente tocar
com suas próprias mãos o que crêem, pois o Espírito é uma testemunha fiel
e confiável. Isso ele prova pela similitude [similitudine] extraída de nosso
próprio espírito. Pois cada um de nós é cônscio de seus próprios
pensamentos; e, em contrapartida, o que vai escondido no coração humano
é desconhecido a outros. Semelhantemente, o conselho e a vontade de Deus
são de tal natureza que se acham ocultos de todos os homens; pois “quem
foi seu conselheiro?” [Rm 11.34]. Portanto, ele [coração de Deus] é um
recesso secreto e inacessível a todo o gênero humano. Mas, se o próprio
Espírito de Deus nos introduzir a ele, ou, em outros termos, nos fizer mais
familiarizados com aquelas coisas que são, por outro lado, ocultas de nossa
percepção, então não deve haver motivo para hesitação, porquanto não
existe nada em Deus que escape à observação de seu Espírito.
Entretanto, esta similitude não aparenta ser totalmente apropriada.
Porque, visto que falar é uma atividade caracteristicamente mental, o ser
humano comunica suas disposições uns aos outros para que se tornem
familiarizados, cada um com o pensamento do outro. Por que, pois, não
poderíamos assimilar na Palavra de Deus qual é sua vontade? Pois embora o
gênero humano, por pretensão e falsidade, às vezes obscureçam, em vez de
revelarem, seu real estado mental, o mesmo não se dá com Deus, cuja
Palavra é a verdade absoluta e sua genuína e viva imagem. Não obstante,
devemos observar cuidadosamente até que ponto Paulo pretendia estender
esta similitude. O pensamento mais íntimo de uma pessoa, acerca do qual
ninguém nada sabe, só é percebido por ela mesma. Se depois ela o revela a
outrem, tal coisa não altera o fato de que seu espírito só conhece o que está
em seu íntimo. Pois é possível que tal pessoa não use uma linguagem
persuasiva; é possível ainda que ela não expresse convenientemente a
realidade de sua intenção. Se ela, contudo, alcança ambos os objetivos, esta
afirmação não entra em conflito com a outra, a saber: que exclusivamente
seu próprio espírito é que mantém o verdadeiro conhecimento dela. Existe,
entretanto, esta importante diferença entre os pensamentos de Deus e os
dos homens: de um lado, os homens se entendem reciprocamente; do outro,
a Palavra de Deus é uma espécie de sabedoria oculta, a cuja altitude o frágil
intelecto humano não pode alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas [Jo 1.5],
até que o Espírito abra os olhos do cego.
O espírito do homem. Note-se que aqui o espírito de uma pessoa
significa a alma [anima] na qual reside a faculdade intelectual, como é
chamada. Porquanto Paulo se teria expresso de forma imprecisa se tivesse
atribuído esse conhecimento ao intelecto humano, ou, em outros termos, á
própria faculdade, e não à alma, a qual é dotada o poder do discernimento.
12. Ora, nós temos recebido, não o espírito do mundo. Ele intensifica,
à guisa de contraste, aquela certeza de que fizera menção. Diz ele: “O
Espírito de revelação que recebemos não é proveniente do mundo, ao ponto
de aderir ao pó e converter-se em tema de futilidade; ao ponto de deixar-nos
em suspenso; ou a enfrentar variação ou flutuação; ou a deixar-nos em
incerteza e perplexidade. Ao contrário, ele tem sua origem em Deus; e daí,
paira acima de todas as nuvens; ele é a verdade sólida e invariável, e está
posto acima de toda e qualquer possibilidade de dúvida.”
Esta é uma passagem muitíssimo clara para refutar o princípio diabólico
dos sofistas de que os crentes vivem num contínuo estado de hesitação.
Porque seu intuito é suscitar dúvidas na mente dos crentes, se de fato vivem
ou não na graça de Deus; e não admitem nenhuma certeza da salvação,
porém dependem da aprovação moral ou de conjetura provável. Não
obstante, ao agirem assim eles destroem a fé de duas maneiras: Em primeiro
lugar, seu intuito é que nutramos dúvida se de fato estamos em estado de
graça; em seguida, sugerem uma segunda ocasião a dúvidas – a incerteza
quanto à perseverança final.18 Aqui, porém, o apóstolo declara, em termos
gerais, que o Espírito foi dado aos eleitos, por cujo testemunho lhes é
assegurado que foram adotados para a esperança da salvação eterna.
Indubitavelmente, se os sofistas mantivessem sua doutrina,
necessariamente privariam os eleitos do Espírito Santo e fariam o próprio
Espírito também sujeito à incerteza. Ambos estes pontos estão em franco
conflito com a doutrina de Paulo. Daí podermos saber ser esta a natureza da
fé, a saber: que a consciência tem, pela operação do Espírito Santo, uma
testemunha infalível do beneplácito de Deus para com ela, e, apoiando-se
neste fato, confiadamente invoca a Deus na qualidade de Pai. É assim que
Paulo eleva nossa fé acima deste mundo, para que ela contemple com
majestoso desdém toda a soberba carnal. Porque, do contrário, ela será
sempre tímida e vacilante, porque vemos quão audaciosamente a
engenhosidade humana se exalta; e os filhos de Deus devem pisar com a
planta de seus pés este orgulho, através de um gênero oposto de altivez: a
heróica magnanimidade.19
Para que pudéssemos conhecer as coisas que foram dadas por Cristo.
A palavra conhecer é usada a fim de externar mais plenamente a convicção
da confiança. Não obstante, notemos bem que a mesma não é obtida por
vias naturais, nem é assimilada por nossa capacidade mental de
compreensão, senão que depende completamente da revelação do Espírito.
As coisas de que ele faz menção como dadas por Cristo são as bênçãos que
granjeamos através de sua morte e ressurreição – que sendo conciliados
com Deus, e tendo obtido a remissão de pecados, sabemos que já fomos
adotados para a esperança da vida eterna, e que, sendo santificados pelo
Espírito de regeneração, fomos feitos novas criaturas a fim de podermos
viver para Deus. Paulo diz em Efésios 1.18 o equivalente à mesma coisa:
“Para que saibais qual seja a esperança de sua vocação.”
13. Coisas essas das quais falamos, não em palavras ensinadas pela
sabedoria humana, mas pelo Espírito Santo. Paulo está fazendo referência
a si próprio, pois está ainda empenhado em enaltecer seu ministério. Ora, é
um notável tributo que ele presta a sua própria pregação quando diz que ela
contém a revelação do segredo de questões muitíssimo importantes: a
doutrina do Espírito Santo; a plenitude de nossa salvação; e os inestimáveis
tesouros de Cristo. Ele age assim para que os coríntios soubessem quão
sublimemente ela deve ser valorizada. Nesse ínterim, ele volta à concessão
que previamente fizera, ou, seja, que sua pregação não havia sido adornada
com qualquer esplendor de palavras; que ela não possuía um estilo
elegante; senão que ela simplesmente continha a doutrina do Espírito Santo.
Pela expressão, ensinadas pela sabedoria humana, ele quer dizer aquelas
palavras que contêm sabor de erudição humana e são polidas segundo as
regras dos retóricos; ou bafejadas com imponência filosófica, com vistas a
excitar a admiração dos ouvintes. Mas as palavras “ensinadas pelo Espírito”
se amoldam a um estilo repassado de sinceridade e simplicidade, ao
contrário de fútil e ostentoso, e que correspondem à dignidade do Espírito.
Porque, para que a eloqüência esteja presente, devemos cuidar sempre a fim
de impedir que a sabedoria de Deus venha sofrer degradação por uma
excelência emprestada e profana. Mas o método de ensino adotado por
Paulo era de um gênero tal que o poder do Espírito resplandecia nele de uma
forma singular e destituído de atavios humanos, sem qualquer assistência
estranha.
Coisas espirituais com espirituais. Συγκρινεσθαι é usada aqui, não tenho
a menor dúvida, no sentido de adaptar [aptare]. Este é às vezes o significado
da palavra (segundo uma citação de Aristóteles feita por Budæus), e daí
συγκριμα é também usada para o que é entrelaçado ou colado junto, e
certamente se adequa bem melhor ao contexto de Paulo do que comparar ou
equiparar, como alguns a têm traduzido. Ele, pois, diz que adapta coisas
espirituais com espirituais, ao acomodar as palavras ao tema. Em outros
termos, ele tempera aquela sabedoria celestial do Espírito com um estilo de
linguagem simples, e de uma natureza tal ao ponto de levar em sua dianteira
a energia natural do próprio Espírito. Nesse ínterim, ele reprova outros que,
com afetada elegância de expressão, e demonstração de refinamento, se
empenhavam pela obtenção dos aplausos dos homens, como pessoas
completamente carentes que são ou destituídas da sólida verdade ou, por
meio de ornamentos inconvenientes, corrompem a doutrina espiritual de
Deus.
14. O homem natural, porém, não recebe as coisas do Espírito de Deus; porque lhe são
loucura; nem pode entendê-las, porque elas são discernidas espiritualmente.
15. Aquele, porém, que é espiritual julga todas as coisas, contudo ele mesmo não é
julgado por ninguém.
16. Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Nós, porém,
temos a mente de Cristo.
14. Animalis autem homo non comprehendit quæ sunt Spiritus Dei. Sunt enim illi stultitia;
nec potest intelligere, quia spiritualiter diiudicantur.
15. Spiritualis autem diiudicat omnia, ipse vero a nemine [vel, nullo] diiudicatur.
16. Quis enim cognovit mentem Domini, qui adjuvet ipsum? nos autem mentem Christi
habemus.
1. “Car je n’ay point eu en estime de sçauoir aucune chose ou rien deliberé de sçauoir entre
vous.” – “Eu nada tive em estima como conhecimento; ou, Determinei nada saber entre vós.”
2. Calvino se refere ao que ele dissera ao comentar uma expressão que ocorre em 1.17 – não em
sabedoria de palavras. Veja-se página 51.
3. Xenofonte usa κρινω no sentido de selecionar ou preferir – Mem. iv.4, sec. 16, ουχ ο̒πως τους αυτους
χορους κρινωσιν οἱ πολιται, “não que os cidadãos prefiram as mesmas danças.” Veja-se também
Menander, p. 230, linha 245, edit. Cleric. No Novo Testamento encontramos κρινω usada no
sentido de estimar, em Romanos 14.5.
4. Ne fera point que ie n’aye en reuerence et admiration.” – “Não me impedirá de o ter em
reverência e admiração.”
5. “En infirmité ou foiblesse.” – “Em fraqueza ou debilidade.”
6. “Ne cognoissent ni eux ni la chose qu’ils ont entre mains.” – “Não conhecem nem a si mesmos
nem aquilo que têm em mãos.”
7. Esta passagem tem ampliado os horizontes dos críticos, à luz da circunstância de que o
adjetivo πειθοι̑ς, não ocorrendo em nenhum outro lugar no Novo Testamento, ou em qualquer dos
escritos dos autores clássicos, supõe-se que houve alguma correção da redação. Há quem
presume ser ela uma contração ou corrupção de πείθανοις ou πίθανοις, e Crisóstomo, em um ou
dois casos, ao citar a passagem, usa o adjetivo πίθανοις, quando em outro caso ele usa πειθοι̑ς.
Talvez seja em alusão aos casos em que Crisóstomo faz uso do adjetivo πίθανοις que Calvino
emprega a frase το πίθανον (persuasão).
8. “Secrettement et doucement.” – “Secreta e suavemente.”
9. Uma figura de linguagem por meio da qual as palavras invertem seus casos entre si.”
10. Assim lemos que Jacó [Gn 25.27] era !t `ya, “um homem perfeito”, isto é, sem qualquer falha
ostensiva. Veja-se também Jó 1.8. A palavra correspondente, !ymt, é amiúde aplicada às vítimas
sacrificiais, para denotar que eram sem defeito [ x 12.5; Lv 1.3].
11. “Il ne s’en rapporte pas a vn chacvn, mais requiert des iuges entiers.” – “Ele não submete a
causa a cada um, mas apela para os juízes competentes.”
12. Essa alusão geralmente leva o leitor a pensar nas cavernas profundas e escuras, de cujo
antro os oráculos pagãos apresentavam suas respostas.
13. Locke, em concordância com o conceito de Calvino, entende Paulo como se ele dissesse:
“Por que provocais divisões, vos vangloriando em vossos eminentes mestres? A glória que Deus
ordenou a nós mestres e professores cristãos é para que sejamos expositores, pregadores e
crentes daquelas verdades e propósitos divinos revelados, os quais, ainda que estejam contidos
nas Escrituras Sagradas do Velho Testamento, não eram entendidos nas eras anteriores.”
14. “Vne zele de la loy desordonné et mal reglé.” – “Um desordenado e desequilibrado zelo pela
lei.”
15. A distinção traçada por Calvino é ilustrada por uma afirmação de Salomão em Provérbios
21.27: “O sacrifício do perverso é abominação; quanto mais quando ele a associa com uma mente
perversa.” hmzb – “com um desígnio perverso.”
16. “Assauoir, Fera, ou Preparera.” – “Isto é – Ele fará, ou Ele preparará.”
17. A palavra usada por Isaías é hkjm, que é uma parte do verbo hkj, aguardar, e a intenção de
Calvino mais provavelmente é que os “intérpretes gregos” foram (devido à semelhança entre b e
k) levados ao equívoco de concluir que ela era parte do verbo bbj, amar, enquanto a parte
correspondente do último verbo, bbwjm, claramente difere muito da palavra usada pelo profeta.
18. O leitor encontrará este tema tratado numa forma mais extensa nas Institutas, vol. ii., p. 143.
19. “Fondée en vne magnanimité heroique.” – “Fundamentada em uma heróica magnanimidade.”
20. “Or l’homme naturel. A le traduire du Grec mot a mot, il y auroit l’homme animl.” – “Mas o
homem natural. Traduzindo o grego literalmente, significa o homem animal.”
21. “Les facultés et graces.” – “As faculdades e dons.”
22. A definição que Beza faz do termo é muito semelhante: “Homo non aliâ quam naturali animi
luce præditus.” – “Um homem que não é dotado com nada mais do que a luz natural da mente.”
23. A alma (anima) corresponde ao termo grego ψυχη e o termo hebraico `pn, enquanto que spiritus
(espírito) corresponde a πνευμα e jwr. Calvino, porém, emprega a designação animalis (animal)
como um derivativo de anima (a alma), e como que designando o homem cuja alma existe em um
estado puramente natural – destituída de iluminação supernatural. Em outros termos, o homem
de mera mente.
24. “D’autant qu’il est fait à peu de gens, dá autant doit-il estre trouué plus excellent.” – “Quanto
menos é conferido, tanto mais se deve considerar valioso.”
25. “Et n’auoir point de goust.” – “E é sem sabor.”
26. “O quelle sagesse!” – “Oh, que sabedoria!”
27. “Vn petit goust.” – “Um leve sabor.”
28. O leitor encontrará a afirmação do apóstolo a respeito do “homem natural” comentada em
certa extensão nas Institutas.”
29. Calvino obviamente não quer com isso negar que “todos indiscriminadamente” sejam
convidados e autorizados a “abraçar a salvação pela fé”. Ele diz na Harmonia, vol. iii, p. 109:
“Porque, visto que por meio de sua palavra ele [Deus] chama a todos os homens indiscriminadamente
à salvação, e visto que o propósito da pregação é para que todos recorram a sua guarda e
proteção, pode-se com razão dizer que ele quer congregar a todos em torno de si.” Sua intenção
é dizer que a vontade tem que ser libertada pelo Espírito de Deus.
30. “En cest endroit.” – “Nesta matéria.”
31. “Pour estre ou n’estre point selon qu’il leur plaira.” – “De modo a ser ou não de acordo com
seu prazer.”
32. “N’est point suiete au plaisir des hommes, pour estre ou n’estre point, selon qu’ils voudront.”
– “Não está sujeito à vontade humana, de modo a obedecer ou não segundo sua decisão.”
33. “La pure ferité du Seigneur.” “A verdade pura do Senhor.”
34. “Mais yci il establit et conferme la science de foy, laquelle les eleus recoyuent de Dieu.” –
“Aqui, porém, ele estabelece e confirma a ciência da fé, a qual os eleitos têm recebido de Deus.”
35. “Et expresse.” – “E exato.”
36. A expressão usada por Isaías é: Quem dirigiu o Espírito do Senhor? Nosso autor, citando de
memória, parece ter diante de seus olhos uma expressão que ocorre numa parte anterior da
mesma passagem: “e pesados os montes em balanças.”
37. Calvino, ao aludir a esta passagem, como evidentemente faz em seu comentário aos
Romanos [11.34], considera a expressão, Temos a mente de Cristo, como aplicável aos crentes
universalmente – “Nam et Paulus ipse alibi, postquam testatus ert omnia Dei mysteria ingenii
nostri captum longe excedere, mox tamen subjiicit, fideles tenere mentem Domini: quia non
spiritum hujus mundi acceperint, sed a Deo sibi datum, per quem de incomprehensibili alioqui
ejus bonitate edocentur.” – “Pois ainda o próprio Paulo, em outro passo, depois de testificar que
todos os mistérios de Deus muito excedem a capacidade de nossa compreensão, não obstante
imediatamente acrescenta que os crentes estão de posse da mente do Senhor, porque já
receberam não o espírito deste mundo, mas aquele que lhes foi dado por Deus, por meio do
qual são instruídos quanto a sua incompreensível bondade.”
Capítulo 3
1. E eu, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais, como a
crianças em Cristo.
2. Tenho vos alimentado com leite, e não com carne, porque até aqui não éreis capazes
de suportar, nem ainda agora o sois.
3. Porque ainda sois carnais; pois havendo entre vós inveja, contenda e divisões,
porventura não sois carnais e não andais como os homens?
4. Pois quando um diz: Eu sou de Paulo; e outro: Eu sou de Apolo; porventura, não sois
carnais?
1. Et ego, fratres, non potui vobis loqui tanquam spiritualibus, sed tanquam carnalibus,
tanquam pueris in Christo.1
2. Lactis potu vos alui, non solido cibo. Nondum enim eratis capaces, ac ne nunc quidem
estis:
3. Siquidem estis adhuc carnales. Postquam enim sunt inter vos æmulatio et contentio, et
factiones; nonne carnales estis, et secundum hominem ambulatis?
4. Quum enim dicat unus, Ego sum Pauli: alter vero, Ego Apollo: nonne carnales estis?
5. Quem, pois, é Paulo? E quem é Apolo? Ministros através de quem crestes, conforme o
Senhor deu a cada um.
6. Eu plantei, Apolo regou; Deus, porém, deu o crescimento.
7. Assim, pois, não é quem planta alguma coisa, nem aquele que rega; mas Deus que dá
o crescimento.
8. Ora, aquele que planta e aquele que rega são um; e cada um receberá seu próprio
galardão segundo seu próprio trabalho.
9. Porque somos cooperadores de Deus; vós sois lavoura de Deus, edifício de Deus sois
vós.
5. Quis ergo est Paulus, aut quis Appolos, nisi ministri, per quos credidistis, et sicut
unicuique Dominus dedit?
6. Ego plantavi, Appolos rigavit; at Deus incrementum dedit.
7. Ergo neque qui plantat aliquid est, neque qui rigat; sed Deus qui dat incrementum.
8. Qui autem plantat, et qui rigat, unum 9 sunt. Porro quisque propriam mercedem
secundum laborem suum recipiet.
9. Dei enim cooperarii sumus,10 Dei agricultura, Dei ædificatio estis.
10. Segundo a graça de Deus que me foi dada, como sábio mestre de obra lancei o
fundamento, e outro edifica sobre ele. Mas cada um deve prestar atenção como edifica
sobre ele.
11. Porque ninguém pode lançar outro fundamento além do que já está posto, o qual é
Jesus Cristo.
12. Ora, se o que alguém edificar sobre o fundamento for ouro, prata, pedras preciosas,
madeira, feno, restolho,
13. a obra de cada um se manifestará, porque o dia a declarará, pois será revelada pelo
fogo; e o fogo provará de que gênero é a obra de cada um.
14. Se a obra que alguém edificou [sobre o fundamento] permanecer, esse receberá
galardão.
15. Se a obra de alguém for queimada, esse sofrerá perda; mas ele mesmo será salvo,
todavia como que através do fogo.
10. Ut sapiens architectus, secundum gratiam Dei mihi datam, fundamentum posui, alius
autem superædificat: porro unusquisque videat, quomodo superædificet.
11. Fundamentum enim aliud nemo potest ponere, præter id quod positum est, quod est
Iesus Christus.
12. Si quis autem superstruat super fundamentum hoc aurum, argentum, lapides
pretiosos, ligna, fœnum, stipulam,
13. Cuiuscunque opus manifestum fiet: dies enim manifetabit, quia in igne revelabitur, et
cuiuscunque opus quale sit, ignis probabit.
14. Si cuius opus maneat quod superædificaverit, mercedem accipiet.
15. Si cuius opus arserit, jacturam faciet: ipse autem salvus fiet, sic tamen tanquam per
ignem.25
16. Não sabeis vós que sois templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?
17. Se alguém macular o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus é
santo, templo esse que sois vós.
18. Que ninguém a si mesmo se engane. Se alguém dentre vós se tem por sábio neste
mundo, que se faça de tolo para ser sábio.
19. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus. Pois está escrito: Ele
apanha os sábios em sua própria astúcia.
20. E outra vez: o Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que são fúteis.
21. Por isso, que ninguém se glorie nos homens. Porque todas as coisas são vossas;
22. seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam
coisas presentes, sejam coisas por vir; tudo é vosso;
23. e vós sois de Cristo; e Cristo é de Deus.
16. An nescitis, quod templum Dei estis et Spiritus Dei habitat in vobis?
17. Si quis templum Dei corrumpit,40 hunc perdet Deus. Templum enim Dei sanctum est,
quod estis vos.
18. Nemo se decipiat, si quis videtur sapiens esse inter vos: in sæculo hoc stultus fiat,41
ut fiat sapiens.
19. Sapientia enim mundi huius stultitia est apud Deum. Scriptum est enim (Job v.13)
Deprehendens sapientes in astutia sua.
20. Et rursum (Ps.xciv.11) Dominus novit cogitationes sapientum vanas esse.
21. Proinde nemo glorietur in hominibus, omnia enim vestra sunt;
22. Sive Paulus, sive Apollos, sive Cephas, sive mundus, sive vita, sive mors, sive
præsentia, sive futura: omnia vestra sunt,
23. Vos autem Christi; Christus autem Dei.
16. Não sabeis vós? Após apresentar diretrizes aos mestres sobre seu
trabalho, Paulo então se volta para os discípulos, para que eles também
prestassem muita atenção. Ele dissera aos mestres: “Vós sois os mestres de
obra da casa de Deus.” E agora ele diz ao povo: “Vós sois o templo de Deus.
É vossa a responsabilidade de cuidar para de alguma forma não serdes
contaminados.” Ora, o que ele tencionava42 é que os coríntios não se
entregassem indignamente nas mãos dos homens. Na verdade, ao falar-lhes
dessa forma, ele está lhes conferindo uma rara honra, porém seu intuito é
mostrar-lhes mais claramente sua culpa. Porque, já que Deus os consagrara
como templos dele, concomitantemente os designara como guardiães de seu
templo. Portanto, ao se entregarem aos homens, estavam violando um
depósito sagrado. Ele denomina a todos eles, juntos, de um templo de Deus.
Porque cada crente em particular é uma pedra viva para a ereção do edifício
de Deus. Entretanto, indivíduos também são às vezes chamados templos.
Um pouco depois, Paulo usa novamente a mesma idéia, mas com outro
propósito. Naquela passagem, ele está tratando da castidade; aqui, porém,
ele está apelando-lhes para que mantivessem até o fim sua fé na riqueza de
Cristo, tão-somente de Cristo. O uso da pergunta lhe empresta maior realce,
porque, ao recorrer a eles como testemunhas, está sugerindo que lhes está
falando acerca de algo de que estavam bem cientes.
E o Espírito de Deus. Aqui temos a razão por que são o templo de Deus.
Por isso é preciso ler o e como se fosse porque. Isso é bastante comum; por
exemplo, onde o poeta diz: “Tendes ouvido e foi anunciado”, Paulo diz: “Sois
o templo de Deus porque ele habita em vós por intermédio de seu Espírito;
porquanto nenhum lugar impuro pode ser habitação de Deus.” Nesta
passagem temos clara evidência para afirmar a divindade do Espírito Santo.
Porque, se ele fosse um ser criado, ou simplesmente algo a nós outorgado,
então não poderia, ao habitar-nos, fazer de nós templos de Deus. Ao mesmo
tempo, entendemos como Deus se comunica conosco e o elo pelo qual
somos ligados a ele, a saber, derramando sobre nós o poder de seu Santo
Espírito.
17. Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá. Ele agrega
uma grave advertência: uma vez que o templo deve ser sacratíssimo, então
quem quer que o saqueie, não escapará impunemente. No entanto, o gênero
de violação do qual ele agora fala consiste em que os homens se põem no
lugar de Deus, de modo a se tornarem senhores na Igreja. Porque, assim
como a fé, que se devota à doutrina pura de Cristo, é denominada em outro
lugar de “castidade espiritual” [2Co 11.2], ela também nos consagra para
aquela adoração a Deus que é correta e pura. Pois assim que somos
atingidos pelas tramas humanas, o templo de Deus é poluído como que por
alguma imundícia, e a razão disso é que o sacrifício da fé, o qual Deus
declara ser exclusivamente seu, passa a ser oferecido às criaturas.
18. Que ninguém se engane. Aqui ele põe seu dedo na raiz do problema,
visto que todos os danos eram oriundos do elevado conceito que nutriam
por si mesmos. Portanto, ele os adverte energicamente a não se deixarem
levar por uma idéia errônea, ou, seja, reivindicando alguma sabedoria como
se a mesma fosse oriunda deles mesmos. O que ele quer transmitir é que
todos quantos confiam em seu próprio entendimento estão enganando-se.
Em minha opinião, porém, ele aqui se dirige tanto aos ouvintes quanto aos
mestres. Pois os ouvintes tinham melhor disposição para emprestar um
ouvido43 aos homens ambiciosos. E visto que tinham um paladar tão
fastidioso, de modo que a simplicidade do evangelho se tornou insípida a
seu paladar, enquanto que os mestres, querendo causar boa impressão, de
outra coisa não cuidavam senão aparecer. Portanto, Paulo adverte a ambos
[mestres e alunos]: “Que nenhum de vós se exalte diante de sua própria
sabedoria; ao contrário, aquele que acredita ser sábio, que se faça de tolo
neste mundo.” Colocando de outra forma: “Aquele que desfruta de posição
de destaque no mundo em razão da reputação de possuir sabedoria, livre-se
disso, esvazie-se44 de si mesmo e se faça de tolo a seus próprios olhos.”
Além do mais, nestas palavras o apóstolo não está pedindo-nos que
renunciemos totalmente aquela sabedoria que é implantada em nós pela
natureza, ou adquirida por longa prática, mas simplesmente nos pede que a
sujeitemos ao serviço de Deus, para que não possuamos nenhuma outra
sabedoria senão aquela que é derivada de sua Palavra. Pois este é o
significado de “tornar-se tolo neste mundo” ou a nossos próprios olhos,
significa: quando estamos preparados a entregar-nos a Deus e a abraçar com
temor e reverência tudo quanto ele nos ensina, em vez de seguirmos o que
nos parece plausível.45
O significado da frase “neste mundo” é como se ele dissesse: “segundo o
critério ou a opinião do mundo.” Pois esta é a sabedoria do mundo: se nos
considerarmos auto-suficientes, capazes de aconselhar em todas as
questões [Sl 13.2], de governar-nos a nós mesmos, de administrar tudo o
que temos de fazer – se não dependermos de ninguém46 e se não
precisarmos que alguém nos guie, mas que somos capazes de controlar
nossos próprios atos.47
Portanto, por outro lado, “tolo neste mundo” se refere a alguém que
renuncia a seu próprio entendimento e, como se fosse cego, se permite guiar
pelo Senhor; que, desconfiando de si mesmo, se inclina inteiramente sobre o
Senhor; que deposita nele toda sua sabedoria; que se rende a Deus em
docilidade e submissão. É necessário que nossa sabedoria dessa forma se
desvaneça a fim de que a vontade de Deus possa exercer autoridade sobre
nós; e que nos esvaziemos de nosso próprio entendimento, para que
venhamos a encher-nos da plenitude da sabedoria de Deus. Ao mesmo
tempo, “neste mundo” pode ou ter conexão com a primeira parte do
versículo, ou com a segunda. Entretanto, visto que o significado não tem
grande diferença, deixo ao leitor o exercício de sua própria escolha.
19. Porque a sabedoria deste mundo. Este é um argumento extraído de
coisas opostas. A confirmação de uma significa a destruição da outra.
Portanto, uma vez que a sabedoria deste mundo é loucura aos olhos de
Deus, segue-se que a única maneira de podermos ser sábios aos olhos de
Deus é tornando-nos loucos aos olhos do mundo. Já explicamos [1.20] o
que Paulo quis dizer com a expressão “sabedoria deste mundo”: porquanto
a perspicácia natural é um dom de Deus, e as artes liberais, e todas as
ciências por meio das quais a sabedoria é adquirida, são também dons de
Deus. Tudo isso, porém, tem seus limites definidos, porquanto não podem
penetrar no reino celestial de Deus. Conseqüentemente, todas essas
ciências devem ocupar a posição de servas, não de senhoras. Além disso,
elas devem ser vistas como inúteis e indignas até que estejam
completamente subordinadas à Palavra e ao Espírito de Deus. Mas se, em
contrapartida, elas se puserem contra Cristo, que então sejam consideradas
como pestes perigosas. E se seus possuidores continuarem acreditando que
são capazes de por si mesmos realizar algo, então que sejam consideradas
como o pior de todos os obstáculos.48
Portanto, a sabedoria deste mundo é, na conceituação de Paulo, aquilo
que energicamente assume para si a autoridade e não permite ser regulado
pela Palavra de Deus, e nem se deixa humilhar para que esteja
completamente sujeito a Deus. Portanto, até que suceda de uma pessoa
reconhecer que nada sabe exceto o que aprendeu de Deus e, tendo
renunciado seu próprio entendimento, se resigna sem reserva à direção de
Cristo, tal pessoa é sábia segundo os padrões do mundo, no entanto é tola
na avaliação de Deus.
Pois está escrito: Ele apanha os sábios em sua própria astúcia. Paulo
confirma o que acaba de afirmar à luz de dois textos da Escritura. O primeiro
é extraído de Jó 5.13, onde a sabedoria de Deus é exaltada com base no
seguinte: nenhuma sabedoria terrena pode permanecer na presença da
sabedoria de Deus. Não há dúvida de que nesse contexto o profeta está
falando daqueles que são astutos e insidiosos. Visto, porém, que a
sabedoria do homem, quando divorciada de Deus,49 é invariavelmente a
mesma, Paulo a aplica neste sentido: embora os homens adquiram muita
sabedoria por seus próprios esforços, isso não tem o menor valor aos olhos
de Deus. O segundo é o Salmo 94.11, onde, após atribuir a Deus a função e a
autoridade para ensinar a todos, Davi acrescenta que “O Senhor conhece os
pensamentos do homem, que são pensamentos vãos.” Portanto, não
importa quão valorizados tais pensamentos sejam por nós, segundo o
critério divino são fúteis. Esta é uma excelente passagem para humilhar a
confiança da carne, pois aqui Deus do alto declara que tudo o que a mente
humana concebe e propõe é simples nulidade.50
21. Por isso, ninguém se glorie nos homens. Visto que nada é mais vão
do que o homem, quão pouca segurança há em depender-se de uma sombra
evanescente! Daí, ele faz uma válida inferência da oração precedente ao dizer
que não se deve gloriar nos homens visto que ali vemos como o Senhor
despe a todos os homens das bases para ostentação. Entretanto, esta
conclusão depende de tudo o que ensinou no argumento precedente, como
logo veremos. Pois já que pertencemos exclusivamente a Cristo, Paulo está
plenamente certo ao ensinar-nos que qualquer preeminência que
porventura seja atribuída ao homem, pela qual a glória de Cristo é
prejudicada, envolve sacrilégio.
22. Todas as coisas são vossas. Ele continua mostrando qual o lugar e a
condição que os mestres devem ocupar,51 a saber, que não denigram um
mínimo grau sequer a singular autoridade de Cristo em seu ofício de Mestre
único. Portanto, visto que Cristo é de fato o único Mestre da Igreja; e visto
que ele só, e em todas as circunstâncias, deve ser ouvido, é necessário fazer
distinção entre ele e os demais. Cristo mesmo também deu testemunho a
seu próprio respeito em termos similares [Mt 23.8], e nenhum outro nos é
recomendado pelo Pai com esta honrosa declaração:52 A ele ouvi [Mt 17.5].
Portanto, visto que unicamente ele é investido de autoridade para governar-
nos por meio de sua Palavra, Paulo diz que os outros homens são nossos; em
outros termos, que nos são destinados por Deus a fim de que possamos
fazer uso deles; mas não para que exerçam domínio sobre nossas
consciências. E assim ele mostra, por um lado, que não são inúteis; e, por
outro, que ele os mantém em seu próprio lugar para que não se exaltem e se
ponham em oposição a Cristo.
Pelo que toca à presente passagem, ele faz uso de hipérbole, no que
tange à morte e à vida, e assim por diante. Entretanto, ele tinha em vista
argumentos do maior para o menor, por assim dizer, como segue: “Visto que
Cristo pôs em sujeição a nós a vida, a morte e tudo mais, pode que
duvidemos se ele tornou os homens também sujeitos a nós, a fim de
auxiliar-nos por meio de suas administrações; certamente não para nos
oprimir com tirania.”
Ora, se à luz desse fato alguém objetar, dizendo que os escritos de Paulo
e Pedro também estão sujeitos a nosso julgamento, visto que ambos eram
homens, e que não estão isentos da sorte comum dos demais, minha
resposta é que, enquanto Paulo de modo algum poupa a si e a Pedro, ele
aconselha os coríntios a distinguirem entre a pessoa como indivíduo e a
dignidade e caráter do ofício. É como se ele quisesse dizer: “Quanto a mim,
pessoalmente, uma vez que sou homem, desejo ser julgado somente como
homem, a fim de que só Cristo venha a ser o único a ter a preeminência em
meu ministério.” Entretanto, de um modo geral devemos afirmar53 que todos
quantos exercem o ofício do ministério, do maior ao menor, são nossos, de
modo que somos livres, não para aceitar o que ensinam enquanto não
provarem ser o mesmo derivado de Cristo. Pois todos eles devem ser
provados, e obediência só lhes deve ser prestada quando tiverem
demonstrado que são genuínos servos de Cristo. No que diz respeito a
Pedro e Paulo, porém, o Senhor deu sobejas evidências, de modo que não
fica qualquer sombra de dúvida de que sua doutrina tem nele sua fonte. Em
conseqüência, quando apreciamos e respeitamos, como declaração do céu,
tudo o que fizeram conhecido, damos ouvido não propriamente a eles, mas
ao próprio Cristo falando neles.
23. Cristo é de Deus. Esta sujeição [de Cristo a Deus] tem referência à
humanidade de Cristo; porque, ao vestir-se com nossa carne, ele assumiu
para si a forma e condição de escravo, de modo que se fez obediente ao Pai
em todos os aspectos [Fp 2.7, 8]. E para que pudéssemos aderir a Deus
através dele, é certo que ele deve ter o Pai por cabeça [1Co 11.2]. Todavia, é
preciso que prestemos atenção no propósito que Paulo tinha em mente
quando adicionou isso. Pois ele nos cientifica que nossa mais plena
felicidade consiste54 em nossa união com Deus, que é o principal bem. Isso
é efetuado de forma concreta quando somos reunidos sob a Cabeça a quem
o Pai celestial estabeleceu sobre nós. Em termos semelhantes, Cristo disse a
seus discípulos [Jo 14.28]: “Regozijai-vos, porque eu vou para o Pai, porque
o Pai é maior do que eu.” Pois ele o levantou como o Mediador através de
quem os crentes podem ir à fonte original de todas as bênçãos. É verdade
que aqueles que se apartam da unidade da Cabeça55 se privam desse grande
benefício. Daí, esta ordem de coisas se ajusta à conexão da passagem – que
esses se sujeitem somente a Cristo os quais desejam permanecer sob a
jurisdição de Deus.
6. E essas coisas, irmãos, aplico em figura transferida a mim e a Apolo por amor de vós;
para que, em nós, aprendais a não julgar os homens acima do que está escrito; para
que nenhum de vós se ensoberbeça a favor de um, em detrimento de outro.
7. Porque, quem te faz diferente de outro? e o que possuis que não recebeste? ora, se o
recebeste, por que te glórias, como se não o tivesses recebido?
8. Já estais saciados; já estais ricos; já estais reinando como reis sem nós; bem que eu
quisera que reinásseis, para que nós também pudéssemos reinar convosco.
9. Porque penso que Deus nos pôs a nós, apóstolos, por último, como homens
designados à morte; pois somos feitos um espetáculo aos olhos do mundo, dos anjos e
dos homens.
10. Nós somos loucos por amor a Cristo, vós, porém, sois sábios em Cristo; nós somos
fracos, vós, porém, sois fortes; vós sois honrados, nós, porém, somos desprezados.
11. Até a presente hora sofremos fome e sede, estamos nus e somos esbofeteados, e
não temos nenhum lugar de repouso;
12. e labutamos, trabalhando com nossas próprias mãos; ao sermos injuriados,
abençoamos; ao sermos perseguidos, suportamos;
13. ao sermos difamados, imploramos. Somos considerados lixo do mundo, e somos a
escória de todas as coisas, e isso até hoje.
14. Não escrevo estas coisas com o fim de envergonhar-vos, mas para admoestar-vos
como meus filhos amados.
15. Porque, ainda que tivésseis dez mil tutores em Cristo, não teríeis muitos pais.
Porque, por intermédio do evangelho, eu vos gerei em Cristo Jesus.
9. Existimo enim, quod Deus nos postremos Apostolos demonstraverit tanquam morti
destinatos: nam theatrum facti sumus mundo, et angelis, et hominibus.
10. Nos stulti propter Christum, vos autem prudentes in Christo: nos infirmi, vos autem
robusti: vos gloriosi, nos autem ignobiles.
11. Ad hanc enim horam usque et sitimus, et esurimus, et nudi sumus, et colaphis
cædimur.
12. Et circumagimur, et laboramus operantes manibus propriis: maledictis lacessiti
benedicimus: persequutionem patientes sustinemus:
13. Conviciis affecti obsecramus: quasi exsecrationes mundi facti sumus, omnium
reiectamentum usque ad hunc diem.
14. Non quo pudorem vobis incutiam hæc scribo: sed ut filios meos dilectos admoneo.
15. Nam etsi decem millia pædagogorum habueritis in Christo, non tamen multos patres;
in Christo enim Iesu par Evangelium ego vos genui.
16. Por isso vos rogo. Ele agora também expressa, em suas próprias
palavras, o que está pretendendo obter deles por meio de sua correção
paternal, ou, seja, que justamente porque são seus filhos, não interrompam
as relações com seu pai. Há algo mais razoável do que o esforço dos filhos
para se assemelharem a seus pais tanto quanto possível? Ele ainda está
dispensando algo de seus próprios direitos ao instar com eles à guisa de
pedido em vez de ordem. Mas ao propor-lhes que fossem seus imitadores,
ele traz a lume outra passagem, quando, pois, adiciona outra idéia, ou, seja,
“como sou de Cristo” [1Co 11.1]. Esta qualificação deve ser sempre mantida,
para que não venhamos seguir algum ser humano, exceto até onde nos
conduza a Cristo. Sabemos, porém, com que Paulo está tratando aqui. Os
coríntios não estavam evitando a ignomínia da cruz, mas também faziam de
seu pai um objeto de desprezo, só porque ele olvidava a glória que este
mundo tem a oferecer e se gloriava mais nas reprovações que sofria por
causa de Cristo; e os coríntios tinham sua atenção posta em si mesmos e
noutros afortunados, em nada terem a ver, pelos padrões do mundo, com o
que é desprezível. Portanto, ele os aconselha a seguirem seu exemplo e a
prestarem obediência a Cristo para que tivessem condição de suportar tudo.
17. Por essa causa. O significado é como segue: “Para que saibais que
tipo de vida é realmente o que eu vivo, e se sou um adequado exemplo a ser
seguido, ouvi o que Timóteo tem a dizer, pois ele estará na condição de
fornecer confiável evidência neste sentido.” Ora, duas coisas produzem
confiança mediante a evidência que uma pessoa tem a apresentar, a saber:
seu conhecimento das coisas sobre as quais ela tem a dizer, e sua lealdade.
Paulo lhes informa que Timóteo possui ambas. Pois quando afetuosamente
o chama de amado filho, revela que Timóteo conhece Paulo com intimidade
e que está bem familiarizado com todas suas circunstâncias. Ele então o
trata como fiel no Senhor. Ele também confia duas coisas à responsabilidade
de Timóteo. Primeiro, ele desperta a mente dos coríntios para que se
lembrassem de seu próprio assentimento, e nisso ele tacitamente lhes
atribui falta. Segundo, Timóteo lhes fizera saber quão invariável e
consistente era o método de ensino de Paulo em todo lugar.
É bem provável, porém, que Paulo estivesse sendo alvo das deturpações
dos falsos apóstolos, como se ele estivesse reivindicando para si mais
poder sobre os coríntios do que sobre os outros, ou se conduzindo de
maneira completamente distinta em outros lugares; porque ele tinha boas
razões para querer que isso fosse do conhecimento deles. Portanto, um
ministro sábio deve determinar qual deva ser seu método de ensino, e
persistir nesse plano, para que não se levante qualquer objeção contra ele
sem que esteja preparado a defender-se, baseado numa situação concreta,
como Paulo possuía.
18. Como se eu não tivesse de ir ter convosco. Era costume dos falsos
apóstolos tirar vantagem da ausência de homens bons e fazer florescer sua
insolente e incontida vanglória. Paulo realça o fato de que eles não
suportavam a presença dele, e assim o expõe para que ficasse a descoberto a
má consciência deles e assim refreasse sua agressividade. Naturalmente,
sucede de vez em quando que, quando a oportunidade de insultar se lhes
divisa, pessoas atrevidas e descaradas se prorrompem abertamente contra
os servos de Cristo; entretanto, nunca apresentam uma controvérsia56 justa
com o fim de provar que não têm o que esconder; ao contrário, por meio de
suas matreirices, denunciam sua própria carência de confiança.
19. Mas em breve irei. “Eles estão cometendo um grave erro”, diz ele,
“ao emplumar suas penas durante minha ausência, como se isso fosse durar
por muito tempo; logo, porém, perceberão quão fútil tem sido seu orgulho.”
Mas ele não pretende propriamente assustá-los, como se sua chegada fosse
trovejar contra eles, mas para gerar tensão e atingir suas consciências,
porque, por outro lado, não importa o que pretendiam, sabiam muito bem
que Paulo estava equipado com a influência divina.
A frase, se o Senhor quiser, nos ensina que não devemos fazer nenhuma
promessa a alguém visando ao futuro; nem fazer planos pessoais sem incluir
esta restrição: até onde o Senhor o permitir. Por isso, Tiago está plenamente
certo ao ridicularizar a temeridade de pessoas que planejam o que farão até
o final de dez anos, quando, na verdade, não têm certeza alguma se viverão
por toda uma hora [Tg 4.15]. Ora, ainda que não sejamos obrigados a usar
constantemente tais expressões, mesmo assim é melhor que cuidemos em
torná-las habituais, para que mais e mais formulemos todos nossos planos
em plena conformidade com a vontade de Deus.
E então conhecerei, não a palavra. Pelo termo palavra devemos
entender aquela loquacidade fútil em que os falsos apóstolos se deleitavam;
pois seu arrimo tinha por base certa facilidade e charme de linguagem, no
entanto eram completamente carentes de zelo e da eficácia do Espírito. Pelo
termo poder Paulo quer dizer a eficácia espiritual com que são revestidos
aqueles que administram solicitamente57 a Palavra de Deus. Portanto, o
significado é como segue: “Verei se eles desfrutam de tão fortes razões para
se sentirem tão arrogantes, e certamente não os julgarei por seu rico fluxo de
palavras, no qual depositam toda sua glória, e no qual tanto confiam para
reivindicarem tudo58 para si. Se quiserem desfrutar de algum crédito em
minha presença, que então revelem aquele poder que distingue os genuínos
servos de Cristo dos impostores [arratis]; do contrário, não perderei tempo
com eles e suas exibições. Portanto, eles estão pondo sua confiança em sua
vã eloqüência, enquanto que, para mim, ela não passa de fumaça.”
20. Porque o reino de Deus não consiste em palavras. Visto que o
Senhor governa sua Igreja com sua Palavra, como se ela fosse um cetro, a
administração do evangelho [evangelii administratio] é às vezes chamada o
reino de Deus. Aqui, pois, devemos entender por reino de Deus tudo quanto
aponta nesta direção e é determinado com este propósito: que Deus possa
reinar em nosso meio. Paulo diz que este reino não consiste em palavras
[sermone]; pois quão pequeno é o esforço para alguém que tem a habilidade
de falar fluentemente, quando o mesmo não produz nada senão sons
vazios!59 Portanto, aprendamos que a graça e a habilidade meramente
externas, em ensinar, é como um corpo bem elegante e saudável em sua
aparência, enquanto que o poder [virtutem] de que Paulo aqui fala é como a
alma. Já vimos que a natureza da pregação evangélica é tal que se acha
saturada de um sólido gênero de majestade. Essa majestade se revela
quando um ministro entra em ação mais com poder [virtute] do que com
palavras [sermone]. Em outros termos, ele se devota ativamente à obra do
Senhor, não depositando confiança em seu próprio intelecto ou eloqüência,
mas é equipado com armas espirituais, que são o zelo em proteger a glória
do Senhor, o desejo de estabelecer o reino de Cristo, o anseio por edificação,
o temor do Senhor, a perseverança invicta e outros dons indispensáveis.
Sem eles a pregação é morta e não possui nenhuma energia, não importa
quão excelente e bem adornada venha a ser. Por esta razão é que ele diz em
sua segunda Epístola que não equivale a nada senão ser uma nova criação
[2Co 5.17] em Cristo. E este arrazoado tem o mesmo propósito em vista.
Pois ele não quer que permaneçamos satisfeitos com qualquer atrativo
externo [externis larris], senão que perseveremos no poder interior [interna
e virtute] do Espírito Santo.
Ainda que, com estas palavras, ele refira à ambição dos falsos apóstolos,
todavia, ao mesmo tempo, ele acusa os coríntios de perverterem o juízo,
visto que estavam formando a opinião preconcebida dos servos de Cristo,
vendo-os pelo prisma de suas excelências menos importantes. Esta é uma
conclusão notável, a qual se aplica tanto a nós quanto a eles. No que
respeita ao evangelho, do qual tantos nos orgulhamos, onde está a novidade
de vida em muitas pessoas, onde sua eficácia espiritual, a não ser em sua
língua? E esta não é a situação de uma só pessoa.60 Porque, quantos há que
fazem uso do evangelho com o fim de conquistar simpatia e renome, como
se ele fosse algum ramo secular de conhecimento, e cuja preocupação seja
falar com apuro e refinamento! Não acalento a crença de que o poder se
restrinja aos milagres, visto que, em contraste, é fácil de deduzir que ele tem
uma aplicação muito mais ampla.
21. Que quereis? Quem fez a divisão das epístolas em capítulos deveria
ter começado o quinto capítulo neste ponto. Porque, até aqui, Paulo esteve
reprovando o fútil orgulho dos coríntios, sua estulta confiança, seu juízo
distorcido e afetado pela ambição; mas agora menciona os vícios que os
afligiam, os quais deveriam fazê-los envergonhar-se de si mesmos. É como
se dissesse: “Vós vos sentis envaidecidos, justamente como se vossos
negócios transcorressem em uma situação excelente, porém seria melhor se
reconhecêsseis vossa infeliz situação com pudor e tristeza, pois se
prosseguirdes assim serei abrigado a pôr de lado minha mansidão e a ser um
pai severo para convosco.” Mas este tom de ameaça leva mais peso do que a
liberdade de escolha que porventura ele lhes houvesse dado, pois declara
que não dependerá de si mesmo ser manso e gentil com eles, senão que está
se vendo forçado a usar de severidade por culpa deles. Diz ele: “É para que
decidis com que temperamento eu vou encontrar-vos. Quanto a mim, estou
preparado para ser manso. Mas se continuardes a proceder como vindes
fazendo, o jeito é usar a vara.” Assim, ele se coloca numa posição mais
consistente depois de evocar sobre si a autoridade paterna; pois teria sido
ridículo iniciar com uma advertência como esta, caso não tivesse antes
aberto o caminho para si, com o que disse, e os preparado para nutrirem
temor.
Pelo termo vara ele indica aquela autoridade disciplinar com que um
pastor deve corrigir os erros de seu povo. Em confronto com isso ele põe
amor (caritatem) e espírito de mansidão, não porque o pai tenha aversão
pelos filhos a quem reprova (pois, do contrário, a correção não seria
oriunda do amor), mas porque, através de uma expressão facial sombria e
palavras ásperas, ele assume ares como se estivesse irado com seu filho.
Para o expressar com mais clareza, não importa que expressão use, um pai
sempre ama seu filho, porém revela esse amor ensinando-o de maneira
serena e amável; mas quando se vê aborrecido com os pecados do filho e o
corrige com palavras ásperas, ou mesmo com a vara, então assume o papel
de uma pessoa irada. Portanto, visto que o amor fica oculto quando a
disciplina severa é aplicada, Paulo está plenamente certo ao relacionar amor
com espírito de mansidão. Alguns intérpretes tomam vara aqui como
significando excomunhão. No que me diz respeito, ainda que concorde com
eles que a excomunhão seja parte daquela severidade com que Paulo
ameaça os coríntios, ao mesmo tempo a estendo mais amplamente a todas
as reprovações de natureza mais severa.
Observa-se aqui qual o padrão de comportamento que um bom pastor
deve seguir, pois ele deve estar mais disposto a ser delicado a fim de atrair
pessoas para Cristo do que a sucumbi-las com demasiada energia. Ele deve
manter essa docilidade até onde for possível, e não lançar mão da
severidade a menos que a isso seja forçado. Mas quando há necessidade de
tal expediente, ele não deve poupar a vara [Pv 13.24], porque, embora se
deva usar de mansidão com os que são dóceis e maleáveis, faz-se necessário
a autoridade no trato com os obstinados e insolentes. E assim vemos que a
Palavra de Deus não só contém doutrina e nada mais, mas também é
composta de reprovações, que se acham esparsas por toda ela, para que os
pastores se vejam também supridos com a vara. Pois às vezes sucede que,
por causa da obstinação de certas pessoas, os pastores, que são
naturalmente mansos,61 se vêem constrangidos a assumir outra atitude, por
assim dizer, ao agir com rigor e inclusive de maneira implacável.
1. “De iour humain – c’est à dire, de iugement d’homme.” – “O dia do homem – isto é, do critério
humano.”
2. “Pource que les Corinthiens iugeoyent de luy d’vne mauuaise sorte, et bien inconsidereement.”
– “Como os coríntios o julgavam de uma forma desfavorável e mui abruptamente.”
3. “Facilement on viendra à mespriser la parole de Dieu.” – “Prontamente virão a desprezar a
palavra de Deus.”
4. “Ils sont eux-mesmes comme les autres sous la domination de Christ.” – “Eles mesmos estão,
em comum com os demais, sob o domínio de Cristo.”
5. Nosso autor usa da mesma expressão quando comenta 1 Coríntios 11.23 e 15.3.
6. “Entre les dispensateurs.” – “Entre os despenseiros.”
7. “Et d’une façon magistrate.” – “E com um ar de magistrado.”
8. “Auec science et bonne discretion, et d’vn cœur droit.” – “Com conhecimento e boa discrição,
bem como com um coração reto.”
9. “Ils estoyent rauis en admiration de ces masques externes, comme gens tout transportez, et
ne regardouent point a discerner vrayement ne proprement.” – “Estavam arrebatados com
admiração ante as marcas estranhas, como pessoas em completo transporte, e não se
cuidavam em distinguir o verdadeiro e o legítimo.”
10. “Et orgueil” – “E orgulho.”
11. “Si entr’eux il y eust eu vne legitime et droite façon de iuger.” – “Se houvesse entre eles um
método lícito e correto de julgar.”
12. “Ils auoyent affaire à des gens opiniastes et pleins de rebellion.” – “Têm a ver com pessoas
que eram obstinadas e dominadas pela rebelião.”
13. “Se demonstrera estre merueilleusement impudent.” – “Ele demonstrará ser admiravelmente
impudente.”
14. A palavra dia, que é uma tradução literal da palavra original η̒μέρας, é usada em algumas de
nossas versões.
15. “Selon les sottes affections, ou les mouuemens temeraires des hommes.” – “Segundo os
tolos afetos ou impulsos temerários dos homens.”
16. “Comme on dit.” – “Como dizem.”
17. “Si nihil prorsus sibi consciret.” – nosso autor mais provavelmente tinha em vista uma
passagem bem conhecida de Horácio (Ep. I.i.61): “Nil conscire sibi” – “Ter consciência de que
em si não existe nenhum erro.”
18. “Combien sas conscience estoit pure et nette.” – “Quão pura e límpida era sua consciência.”
19. Tanquam agnothetæ. A alusão é aos oficiais ou árbitros (αγωνοθέται) que julgavam os prêmios
nos jogos gregos. (Ver Heródoto vi.127.)
20. “A ces docteurs pleins d’ostentation.” – “Àqueles mestres saturados de ostentação.”
21. “S’ils se contentent de bons et fideles docteurs, ils seront hors de danger d’vn tel mal.” – “Se
tivessem se contentado com os bons e fiéis mestres, se teriam postos além do risco desse
gênero de mal.”
22. “Rendre excellent, ou mettre en reputation.” – “Tornar eminente ou exaltar à fama.”
23. O leitor encontrará uma variedade de passagens deste teor citadas de Agostinho nas
Institutas.
24. “Comme estans choses contraires.” – “Como sendo coisas opostas.”
25. “Vsant d’ironie, c’est à dire, d’vne façon de parler qui sonne en mocquerie.” – “Fazendo uso
de ironia, isto é, uma forma de linguagem que possui um tom de zombaria.”
26. “Uma amarga zombaria”, diz Lightfoot, “castigando a vanglória dos coríntios, os quais tinham
se esquecido de quem primeiro receberam esses privilégios evangélicos, concernente aos quais
agora se envaideciam. Tinham se enriquecido com dons espirituais; reinavam, sendo eles
mesmos juízes, estando no próprio topo da dignidade e felicidade do evangelho; e isso ‘sem nós’,
diz o apóstolo, ‘como se nada nos devêsseis por tais privilégios’, e: ‘Oh, queira Deus que
reinásseis, e isso seria tão bom que gostaríamos de também reinar convosco para partilhardes
conosco um pouco de felicidade nessa vossa promoção, e para que tivéssemos alguma boa
reputação em vosso meio’!”
27. “Fausse et dangereuse.” – “Infundada e perigosa.”
28. “C’est vne folie, et bestise.” – “Isso constitui uma loucura e estupidez.”
29. “Et bien peu estimez.” – “E em tão pouca estima.”
30. “Condamnez à seruir de passe-temps en combattant contre des bestes.” – “Condenados a
servirem como passa-tempo na luta contra animais selvagens.”
31. “C’est une concession ironique, c’est à dire, qu’il accorde ce dont ils se vntoyent, mais c’est
par mocquerie, comme s’il disoit.” – “É uma irônica concessão; isto é, ele admite aquilo de que
se gloriam, mas zombeteiramente, como se ele quisesse dizer.”
32. “En faisant profession de l’Euangile, vous voulez auec cela estre estimez prudens.” – “Ao
fazerdes uma confissão do evangelho, desejais, juntamente com isso, ser tidos como sábios.”
33. “Pour l’amour de vous.” – “De amor por vós.”
34. “Est d’autant plus picquante, et aigre.” – “É tanto mais cortante e severo.”
35. Eustátio presume que λοιδορια se deriva de λογος, uma palavra, e δορυ, uma lança. Uma figura
afim é empregada pelo salmista, quando fala de palavras que são espadas desembainhadas. [Sl
55.21.]
36. “Or le premier signifie non seulement se gaudir d’vn homme, mais aussi toucher son honneur
comme en le blasonnant, et le naurer en termes picqunas: ce que nous disons communement,
Mordre en riant. Le second signifie quando on detracte apertement de quelqu’vn sans vser de
couuerture de paroles.” – “Ora, o primeiro significa não simplesmente divertir-se alguém em
detrimento de outrem, mas também ferir sua reputação como se fosse com o intuito de denegri-
la e feri-la com expressões cortantes, como comumente dizemos: dar-lhe um bom golpe em seu
humor. O segundo significa quando pessoas caluniam alguém publicamente sem usar qualquer
disfarce de palavras.”
37. “Que c’estoit vn mestier ville, et mechanique.” – “Que era um meio e ocupação mecânica.”
38. “Comme c’estoit vne chose qui se faisoit anciennement entre les payens.” – “Como esta era
uma coisa praticada antigamente entre os pagãos.”
39. Os escolásticos sobre Aristófanes, Plut. 454, apresentam a seguinte explicação do termo
κάθαρμα: Καθάρματα ἐλέγοντο ο̒ι επὶ τη̑, καθάρσει λοιμου̑ τινος ἤ τινος ἕτὲρας νάσου θυόμενοι τοις θεοι̑ς. Του̑το δὲ
τὸ ἔθος καὶ παρὰ ̔ Ρωμαίοις ἐπεκράτησε. Aquelas eram chamadas purificações, as quais eram
sacrificadas aos deuses para propiciar a fome ou alguma outra calamidade. Esse costume
prevalecia também entre os romanos.
40. “De malediction.” – “De maldição.”
41. “Les ballieures d’vne maison.” – “A varredura de uma casa.”
42. O ponto de vista apresentado por Budæus do primeiro termo (περικαθάρματα) é expresso por
Leigh em seu Critica Sacra como sendo este: “O apóstolo faz alusão às expiações em uso entre
os pagãos, no tempo de quaisquer pestes ou infecções contagiosas; para a remoção de tais
doenças, sacrificavam então certos homens a seus deuses, homens esses que eram
denominados καθάρματα. Como se o apóstolo dissesse: Somos tão desprezíveis e tão odiosos
aos olhos do povo, como se carregássemos as ignomínias e maldições da multidão, como as
pessoas condenadas que eram oferecidas para expiação pública.” Budæus traduz o último
termo (περίψημα) assim: “Scobem aut ramentum et quicquid limando deteritur.” – “Limagem ou
raspagem, ou qualquer coisa que é limpada por limatão.”
43. “Destiné à porter toutes les execratiions et maudissons du monde.” – “Separado para
suportar todas as execrações do mundo.”
44. “Tasche sur toutes choses que toute la honte demerure entre lui et celui lequel il
admoneste.” – “Tudo faz para que a vergonha permaneça entre ele e a pessoa a quem
admoesta.”
45. “Les marques et fletrisseurs de Christ en luy.” – “As marcas e estigmas de Cristo nele.” A
alusão, como o próprio autor observa ao comentar Gálatas 6.17, é às “marcas com que os
escravos bárbaros, ou fugitivos, ou malfeitores, eram marcados.” Daí a expressão de Juvenal:
stigmate dignum credere – “considerar alguém digno de ser marcado como escravo.” (Juv. x. 183.)
46. “Les docteurs et ministres.” – “Mestes e ministros.”
47. “Le ministre.” – “O ministro.”
48. “A palavra grega, pedagogue”, diz Calmet, “agora contém a idéia que se aproxima do desdém.
Com nenhuma outra palavra para qualificá-la, ela excita a idéia de um pedante que assume ares
de autoridade sobre outrem, a qual não lhe pertence. Mas entre os antigos, pedagogo era uma
pessoa a quem se confiava o cuidado dos filhos de outro, para conduzi-los, para fazê-los
observar seus deveres, instruí-los nos primeiros rudimentos. Assim o ofício de pedagogo quase
que correspondia ao de um governador ou tutor, que constantemente assistia seu aluno, o
ensinava e formava seus hábitos. Paulo [1Co 4.13] afirma: ‘Pois ainda que tivésseis dez mil
instrutores (pedagogos) em Cristo, contudo não teríeis muitos pais’ – se representando como
seus pais na fé, visto que os gerara no evangelho. O pedagogo, de fato, podia ter algum poder e
interesse em seu aluno, mas podia também nunca nutrir por ele a afeição natural de um pai.”
49. “Quel mal y auroit-il, quand nous dirions, qu’il fait aussi vne allusion à ceste petitesse et
enfance en la foy?” – “Que mal havia nisso, ainda que digamos que ele também faz uma alusão
àqueles pequeninos e infantes na fé?”
50. Nosso autor evidentemente faz alusão à etimologia do termo original, παιδαγωγοὺς, como se
derivando de παὶς, um menino, e ἄγω, guiar. Tais instrutores geralmente eram escravos, cuja
ocupação era dar assistência às crianças em sua responsabilidade, guiá-las de casa para a
escola e desta para aquela.
51. “La mauuaise procedure et façon d’enseigner des docteurs, d’autant qu’ils amusoyent leurs
disciples aux premiers rudimens et petis commencemens, et les tenoyent tousiours là.” – “O vil
procedimento e método de instrução dos mestres, ainda que entretivessem seus seguidores
com os primeiros e leves princípios, e os mantivessem constantemente aí.”
52. “Qu’on appelle.” – “Como a chamam.”
53. 210 Nosso autor provavelmente se refere ao que dissera ao comentar 1 Coríntios 3.2.
54. “Qui se loent, comme ouuriers à la iourneé, pour exercer l’office à leur profit, ainsi qu’on
feroit vne chose qu’on aura prise pour vn temps certain, et cependant tenir le peuple en
obeissance, et acquerir bruit, ou estre en admiration enuers iceluy.” – “Que se alugam como
obreiros por um dia a fim de exercerem o ofício em seu próprio benefício, como se fossem fazer
algo por apenas certo tempo, e no momento azado poderem manter as pessoas em sujeição, e
adquirirem fama ou desfrutarem de admiração entre eles.”
55. “Combien y en a-t-il qui facent office de père, et qui demonstrent par effet ce qu’ils veulent
estre appelez?” – “Quantos há entre eles que cumprem o ofício de pai e mostram nos atos do
que desejam ser chamados?”
56. “Si est-ce que jamais ils ne vienent à combatre franchement, et s’ils ne voyent leur auantage:
mais plustot en vsant de ruses et circuits obliques, ils monstrent leur deffiance, et comment ils
sont mal asseurez.” – “Assim sucede que nunca saem francamente em combate, a não ser que
tenham uma visão de sua própria vantagem; mas, ao contrário, ao fazerem uso de artimanhas e
rodeios, demonstram sua falta de confiança e de quão desconfiados são.”
57. “D’vn bon zele, et pure affection.” – “Com um zelo correto e uma afeição pura.”
58. “Proram et puppim.” – “A proa e a popa.”
59. “Sçaura bien babiller et parler eloquemment, et cependant il n’aura rien qu’vn son
retentissant en l’air.” – “Tem habilidade de tagarelar com facilidade e falar eloqüentemente, e no
ínterim nada tem senão sons lançados ao ar.”
60. “Et ce n’est point au peuple seulement qu’est ce defaut.” – “E não é meramente entre as
pessoas que tal defeito existe.”
61. “Qu’on pourra trouuer.” – “Que se possa achar um.”
Capítulo 5
1. Geralmente se ouve que há fornicação entre vós, e fornicação tal que nem mesmo
entre os gentios se ouve, ou, seja, que um dentre vós possua a esposa de seu pai.
2. E vós estais ensoberbecidos, e nem mesmo chorastes, para que quem cometeu tal
ação fosse eliminado de entre vós.
3. Pois eu, na verdade, estando ausente no corpo, porém presente no espírito, já julguei,
como se estivesse presente, que aquele que praticou tal coisa,
4. em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, reunidos vós e meu espírito, com o poder de
nosso Senhor Jesus Cristo,
5. seja entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo
no dia do Senhor Jesus.
1. Omnino auditur in vobus scortatio, et talis scortatio, quæ ne inter Gentes quidem
nominatur, ut quis uxorem patris habeat.
2. Et vos inflati estis, ac non magis luxistis, ut e medio vestri removeretur, qui facinus hoc
admisit.
3. Ego quidem certe tanquam absens corpore, præsens autem spiritu, jam iudicavi
tanquam præsens, qui hoc ita designavit,
4. In nomine Domini nostri Iesu Christi, congregatis vobis et spiritu meo, cum potentia
Domini nostri Iesu Christi, eiusmodi inquam hominem.
5. Tradere Satanæ in exitium carnis, ut spiritus salvus fiat in die Domini Iesu.
6. Não é boa vossa vanglória. Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a
massa?
7. Expurgai-vos, pois, do velho fermento, para que sejais uma nova massa, assim como
estais sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, também foi crucificado.
8. Por isso observemos a festa, não com o velho fermento, nem com o fermento da
malícia e da maldade, mas com o pão asmo da sinceridade e da verdade.
6. Non est bona gloriatio vestra: an nescitis, quod exiguum fermentum totam massam
fermenta?
7. Expurgate ergo vetus fermentum, ut sitis nov conspersio, sicut estis azymi: nam
Pascha nostrum pro nobis immolatum est, Christus.12
8. Proinde epulemur non in fermento veteri, neque in fermento malitiæ et pravitatis, sed
in azymis sinceritatis veritatis.13
1. Ousa algum de vós, tendo alguma questão contra outro, ir a juízo perante os injustos,
e não perante os santos?
2. Ou não sabeis que os santos julgarão o mundo? E se o mundo deve ser julgado por
nós, sois porventura indignos de julgar as questões menores?
3. Não sabeis que julgaremos os anjos? Quanto mais as coisas que pertencem a esta
vida?
4. Se, pois, havemos de julgar as coisas pertencentes a esta vida, pondes para julgá-las
os que são menos considerados na igreja.
5. Falo para vergonha vossa. Não há, pois, entre vós algum sábio que seja capaz de
julgar entre seus irmãos,
6. senão que um irmão vai a juízo contra outro irmão, e isso perante os incrédulos?
7. Ora, pois, há um completo fracasso entre vós, porquanto demandais uns contra os
outros. Por que não sofreis antes a injustiça? Por que não sofreis antes o dano?
8. Não só isto, mas vós mesmos fazeis a injustiça, fazeis o dano, e isso a vossos irmãos.
1. Audet aliquis vestrum, negotium habens cum altero, litigare sub iniustis, et non sub
sanctis?
2. An nescitis, quod sancti mundum iudicabunt? quodsi in vobis indicatur mundus, indigni
estis minimis indiciis?
3. An nescitis, quod angelos iudicabimus, nedum ad victum pertinentia?
4. Indicia ergo de rebus ad victum pertinentibus si habueritis, qui contemptibiles sunt in
Ecclesia,1 eos constituite.
5. Ad erubescentiam vestram dico: adeo non est inter vos sapiens, ne unus quidem, qui
possit iudicare inter fratres?
6. Sed frater cum fratre litigat, idque sub infidelibus.
7. Jam quidem omnino delictum in vobis est, quod iudicia habertis inter vos: cur non
potius iniuriam sustinetis?2
8. Sed vos infertis iniuriam, et fraudatis, et quidem fratres.
9. Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis:, nem
fornicadores, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem quem abuse de si
mesmo com homens,
10. nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem extorsores
herdarão o reino de Deus.
11. E tais foram alguns de vós; mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes
justificados no nome do Senhor Jesus Cristo, e pelo Espírito de nosso Deus.
9. An nescitis, quod iniusti regnum Dei hereditate non obtinebunt? Ne erretis, neque
scortatores, neque idololatræ, neque mœchi, neque molles, neque pæderastæ.
10. Neque fures, neque avari, neque ebriosi, neque maledici, neque rapaces regnum Dei
hereditate obtinebunt.
11. Et hæc fuistis,25 sed abluti estis, sed sanctificati estis, sed iustificati estis in nomine
Domini Jesu, et in Spiritu Dei nostri.
12. Todas as coisas me são lícitas, porém nem todas as coisas são convenientes; todas
as coisas me são lícitas, porém não me submeterei ao poder de nenhuma.
13. Os alimentos são para o estômago, e o estômago para os alimentos; Deus, porém,
reduzirá a nada tanto aquele como estes. Ora, o corpo não é para a fornicação, mas
para o Senhor, e o Senhor para o corpo.
14. E Deus, que ressuscitou o Senhor, também nos ressuscitará por seu próprio poder.
15. Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? E eu, pois, tomarei os
membros de Cristo e os farei membros de uma meretriz? Que Deus nos livre!
16. Ou, não sabeis que aquele que se une a uma meretriz faz-se um corpo com ela?
Porque os dois, diz ele, se tornarão uma só carne.
17. Mas aquele que se une ao Senhor é um só espírito.
18. Fugi da fornicação. Todo pecado que um homem pratica é fora do corpo; mas aquele
que comete a fornicação peca contra seu próprio corpo.
19. Ou não sabeis que vosso corpo é o templo do Espírito Santo que está em vós, que
tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?
20. Porque sois comprados por preço; portanto glorificai a Deus em vosso corpo e em
vosso espírito, que são de Deus.
12. Omnium mihi est potestas, at non omnia conducunt: omnium mihi est potestas, sed
ego sub nullius 30 redigar potestatem.
13. Escæ ventri, et venter escis: Deus vero et has et illum destruet. Corpus autem non
scortationi, sed Domini, et Dominus corpori.
14. Porro Deus et Dominum suscitavit, et nos suscitabit per potentiam suam.
15. An nescitis, quod corpora vestra membra sunt Christi? tollens igitur membra Christi,
faciam membra meretricis? Absit.
16. An nescitis, quod qui adhæret meretrici, unum corpus est? erunt enim, inquit, duo in
carnem unam.
17. Qui autem Domino adhæret, unus spiritus est.
18. Fugite scortationem. Omne peccatum quod commiserit homo, extra corpus est: qui
autem scortatur, in proprium corpus peccat.
19. An nescitis, quod corpus vestrum templum est Spiritus sancti, qui in vobis est, quem
habetis a Deo, et non estis vestri?
20. Empti enim estis pretio: glorificate iam Deum in corpore vestro et in spiritu vestro,
quæ Dei sunt.
1. “De moindre estime en l’Eglise, ou, de nulle estime, assauoir au pris des autres.” – “Da mínima
estima na Igreja, ou de nenhuma estima; isto é, em comparação com outros.”
2. “Pourquoy plustost n’endurez-vous l’inure? Pourquoy plustost ne receuez-vous dommage?” –
“Por que não sofreis antes a injúria? Por que não vos submetais antes à perda?”
3. “Espient incessamment et d’vne affection ardente.” – “Vigiam incessantemente e com desejo
ardente.”
4. “Qui sont necessairement contraints de maintenir et plaider leurs causes sous iuges
infideles.” – “Quem necessariamente se sente constrangido a manter e defender suas causas
legais perante juízes incrédulos.”
5. “L’honneur et la prerogatiue.” – “A honra e a prerrogativa.”
6. “Mais, dira quelqu’vn, encore à le prendrre ainsi.” – “Mas, dizem alguns, inclusive tomando-o
desta forma.”
7. “Sous precepteurs et maistres.” – “Sob preceptores e mestres.”
8. “Mais, dira qulqu’vn.” – “Mas diria alguém.”
9. “Ne defend point aux Chrestiens d’aller demander conseil aux Legistes.” – “Não impede os
cristãos de recorrerem ao conselho dos advogados.”
10. “Au nom de Christ.” – “No nome de Cristo.”
11. “Auquel estant comme assis, il exerce sa iurisdiction.” – “No qual, como se estivesse
assentado, ele exerce sua autoridade.”
12. “Des prestres et ministres.” – “De sacerdotes e ministros.”
13. “Apostats et rebelles.” – “Apóstatas e rebeldes.”
14. “Sainct Ambrose ne touche ne ciel ne terre (comme on dit) en l’exposition de ces mots.” –
“Santo Ambrósio nem toca o céu nem a terra (segundo a expressão corrente) na exposição
destas palavras.” A intenção de nosso autor parece ser que Ambrósio pairava em suspenso, ou
não decidia qual a opinião certa.
15. “Les gens profanes et indideles.” – “Pessoas profanas e incrédulas.”
16. “Car ce seroit vne façon de parler bien maigre et de peu de grace, d’appeler ainsi les
indideles.” – “Pois esse era um modo paupérrimo e desajeitado de falar, para descrever os
incrédulos dessa maneira.”
17. “Sainct Paul.” – “São Paulo.”
18. “Il les garde de tomber en reproche.” – “Ele os guarda de caírem em opróbrio.”
19. “Aiseement abbatu et irrité.” – “Facilmente se fere e se irrita.”
20. Alguns pressupõem que o termo grego, ἥττημα, se deriva originalmente do verbo hebraico
ttj, ser quebrado (o qual é traduzido por ἡτταομαι em vários exemplos na Septuaginta). Nosso
autor provavelmente estava olhando para este fato quando declara que o significado original do
termo é “fraqueza mental, quando alguém se vê facilemente espicaçado por injúrias.” O termo
propriamente denota defeito. É instrutivo observar que uma disposição de “recorrer à lei com
irmãos”, em vez de “suportar o erro”, é representado pelo apóstolo como indicativo de um
defeito, isto é, na mansidão cristã ou no amor fraternal; enquanto a disposição oposta,
recomendada pelo apóstolo, segundo o padrão da moralidade do mundo, descobre o defeito
com respeito ao desânimo.
21. “Et qu’ils veulent veoir le bout du proces (comme on dit).” – “E se sentem desejosos de ver o
resultado do caso (segundo a expressão).”
22. “Se retirent à Dieu comme à celuy à qui appartient la vengeance.” – “Têm recorrido a Deus,
como aquele a quem pertence a vingança” [Sl 94.1].
23. “Pour estre bien gouuerné en ceci, il faut estre gaeni d’vne vraye charité.” – “Para sermos
propriamente regulados nisto, devemos ser adornados com o genuíno amor.”
24. “Plusieurs tombent en ceste malediction, de mepriser Dieu ouuertement.” – “Muitos incorrem
nessa maldição por publicamente desdenharem de Deus” [Sl 10.13].
25. “Et telles choses auez-vous este”, ou “este aucuns.” – “E tais coisas tínheis vós”, ou “tinham
alguns de vós.”
26. “Comme bestes rauissantes.” – “Como animais vorazes.” As harpias, sabe-se muito bem,
eram monstros fabulosos, proverbiais por sua voracidade. Merece nota que seu nome, ἅρπυίαι, e
o termo usado por Paulo para denotar extorsores (ἅρπαγες), são ambos derivados de ἅρπάζω,
assenhorear-se ou tomar por meio de violência.
27. As sereias eram uma espécie de monstros marinhos que supostamente habitavam certas
ilhas rochosas na costa sudoeste da Itália, as quais atraíam, como se acreditava, com a
entonação de sua música, os marinheiros à destruição. Homero, em sua Odisséia (viii.45), fala
de seu melodioso cântico (λιγυρη̑ αἰοιδη̑). Nosso autor, se observará, na conexão em que alude a “os
cantos das sereias”, expressa veementemente sua convicção da realidade da influência satânica,
quando contrastada com o que é meramente fabuloso.
28. “Suiets a toutes sortes de vices, sinon entant que le Seigneur les reprime au dedans, afind
qu’ils ne sortent dehors, et vienent à estre mis en effet.” – “Vulneráveis a todos os tipos de vícios,
a não ser que o Senhor os restrinja interiormente, para que não prorrompam exteriormente e se
concretizem na prática.”
29. “Vne fontaine abondante.” – “Uma fonte abundante.
30. “D’aucune chose, ou d’aucun.” – “De nada ou de ninguém.”
31. “A le conioindre avec ce qui a este dit auparauant.” – “Para conectá-lo com o que foi expresso
antes.”
32. “Or où on peche à bride auallée, et là où les vices ne sont point corrigez.” – “Onde as
pessoas pecam a rédeas soltas e onde os vícios não são punidos.”
33. “La liberte Chrestienne.” – “Liberdade cristã.”
34. “L’edification du prochain.” – “A edificação de seu próximo.”
35. “En sa conscience.” – “Em sua consciência.”
36. “Il s’en faut que l’homme Chrestien se doyue soucier ne debatre pour les choses externes.” –
“Um cristão não deve ser solícito ou contender por coisas externas.”
37. “Choses du tout indignes de Christ.” – “Coisas totalmente indignas de Cristo.”
38. “C’est vne meschancete d’abandonner nostre corps, et le prostituer.” – “É uma perversidade
entregar nosso corpo e prostituí-lo.”
39. 293 “Estre vn iour participant.” – “Ser um dia um participante.”
40. “Vne pollution si fade et infame.” – “Uma poluição tão imunda e infame.”
41. “Pour ce que ce ceci est vne chose abominable, et que nous deuons auoir en horreur.” –
“Como essa é uma coisa abominável, e devemos enfrentá-la com aversão.”
42. “Mais nous sommes faits non seulement vne mesme chair auec le Seigneur, auquel nous
adherons,mais aussi vn mesme esprit.” – “Mas não nos tornamos meramente uma só carne com
o Senhor, a quem estamos jungidos, mas também um só espírito.”
43. “Non que la paillardise soit digne de estre ornee des louanges qui appartiennt a l’ordonnance
du marriage.” – “Não que a fornicação seja digna de ser honrada com os louvores que
pertencem à ordenança do matrimônio.”
44. “Pour monstrer que la contagion et vilenie passe de l’vn a l’autre.” – “Para mostrar que o
contágio e poluição passam de um para o outro.”
45. Nosso autor faz uso do advérbio abusive (impropriamente), provavelmente se referindo à
figura de linguagem chamada por Quintiliano (viii. 6) abusio – o mesmo que catacrese
(perversão).
46. “N’en demeure point tellement imprimee en nostre corps.” – “Não ficam impressos em nosso
corpo da mesma maneira.”
47. “Par mesdisance, detraction, et perinre.” – “Pela maledicência, detração e perjúrio.”
48. “Par nos vilenies plenes de sacrilege.” – “Por nossas máculas, saturadas de sacrilégio.”
49. Assim, ἐξευρίσκειν τιμη̑ς τι é empregado por escritores clássicos no sentido de obter algo por
preço, isto é, por preço elevado. Veja-se Heródoto vii.119.
50. Nosso autor evidentemente tem seus olhos voltados para o epíteto τιμίος (precioso), como
usado pelo apóstolo Pedro, em referência ao sangue de Cristo – τιμίω αἱματι, ὡς ἀμνου ἀμώμου κ.τ.λ.
– “precioso sangue, como de um Cordeiro sem mácula” etc.
51. “Le sommaire et la substance du propos revient là.” – “A suma e substância do discurso
equivalem a isto.”
Capítulo 7
1. Ora, no que se refere às coisas que me escrevestes, é bom para o homem não tocar
uma mulher.
2. Não obstante, por causa da fornicação, cada um tenha sua própria esposa, e cada
uma tenha seu próprio esposo.
1. Porro, de quibus scripsistis mihi, bonum est viro mulierem non tangere.
2. Propter fornicationes autem unusquisque uxorem suam habeat, et unaquæque
proprium maritum.
Uma vez que esteve falando de fornicação, ele agora faz uma transição
adequada para o tema do matrimônio, que é o remédio para se evitar a
fornicação. Ora, tudo indica que, a despeito das grandes dispersões na igreja
de Corinto, ainda restava algum respeito por Paulo, embora enfrentassem
ainda alguma dúvida acerca de alguns pontos. Não sabemos quais eram
exatamente as questões, exceto o que podemos deduzir de sua réplica. Não
obstante, sabe-se muito bem que, imediatamente após a primeira igreja ser
fundada, infiltrou-se nela através das artimanhas de Satanás, uma
superstição de tal vulto que uma grande proporção deles, movidos de tola
admiração do celibato, desprezou a sacra conexão do matrimônio. Não só
isso, porém muitos deles o consideravam como algo aversivo, como algo
até mesmo profano. É provável que esta infecção havia se espalhado
também entre os coríntios; ou, no mínimo, havia alguns espíritos
extremamente indispostos que, dando demasiada importância ao celibato,1
se esforçavam em alienar do matrimônio a mente dos crentes. Ao mesmo
tempo, diante do fato de que o apóstolo ministrava seu ensino em referência
a muitos outros assuntos, ele avalia que tinha examinado muitos deles. O
que é primordialmente importante é que atentemos bem para sua doutrina
acerca de cada um deles.
1. É bom para o homem. Sua réplica consiste de duas partes. Ele ensina,
antes de tudo, que seria bom se todo homem se abstivesse de mulher,
contanto que fosse capaz de o fazer. Em segundo lugar, ele modifica isso,
dizendo que, visto que muitos não podem agir assim em decorrência da
fraqueza de sua carne, tais pessoas não devem negligenciar o remédio que
se encontra a seu alcance como lhes foi designado pelo Senhor. Agora
devemos observar o que ele quis dizer pela palavra bom, ao asseverar que é
bom abster-se do matrimônio, a não ser que cheguemos à conclusão, oposta
ao que se pretende, que a união matrimonial é portanto nociva. Isso é o que
sucedeu no caso de Jerônimo, não tanto em virtude de ignorância, mas, em
minha opinião, mais motivado pelo calor das controvérsias. Pois embora
esse famoso homem fosse dotado de excelentes virtudes, não obstante ele
laborava sob um sério defeito, ou, seja, nos debates costumava vencer
recorrendo a excessivas extravagâncias, e assim nem sempre se preocupava
em manter-se dentro dos limites da verdade. Portanto, a inferência que aqui
extraímos é como segue: “É bom não tocar uma mulher, portanto é errado
tocá-la.”2 Certamente Paulo aqui não usa o termo bom nesse sentido, ao
ponto de realçar o que é mal ou saturado de vício. Ele apenas mostra o que é
mais vantajoso à vista de todos os problemas, aborrecimentos e
responsabilidades, os quais envolvem aqueles que contraem os laços
matrimoniais. Por isso devemos sempre prestar atenção à modificação que
ele adiciona. Portanto, as palavras de Paulo não podem permitir nada mais
que isto, a saber: que é deveras vantajoso e conveniente a um homem não
viver preso a uma esposa, contanto que ele seja capaz de viver sem ela.
Expliquemo-lo fazendo uso de uma analogia [similitudine]. Alguém diria:
“Seria bom que um homem não comesse, não bebesse, não dormisse”, sem
querer dizer que ele estaria condenando a comida, a bebida ou o sono como
coisas em si mesmas nocivas. Ao contrário, visto que todo o tempo que se
dá a essas coisas3 significa muito menos tempo para as coisas espirituais,
ele estaria querendo dizer que seríamos mais abençoados se pudéssemos
estar livres desses entraves e devotar-nos inteiramente4 à meditação sobre
as coisas celestiais. Portanto, uma vez que há muitos entraves na vida
matrimonial, os quais interferem na liberdade do homem, seria bom, por
essas razões, não se envolver em matrimônio.
Aqui, porém, surge outra questão; pois estas palavras de Paulo
aparentam inconsistência em relação às palavras do Senhor em Gênesis 2.18,
ou, seja, que “não é bom que o homem viva sem uma esposa”. A condição
expressa pelo Senhor, nesta passagem, é ruim; Paulo, aqui, ensina que é boa.
Respondo que, onde a esposa é uma auxiliadora de seu esposo, fazendo sua
vida feliz, então está em concordância com a intenção de Deus. Porque Deus
assim o ordenou no princípio, ou, seja, que o homem sem esposa é apenas a
metade de homem, por assim dizer [quasi dimidius homo], e se sente carente
do apoio que pessoalmente necessita; e a esposa é, por assim dizer, o
complemento do homem [quasi viri complementum]. Posteriormente, o
pecado atingiu e poluiu a instituição divina, pois em lugar de uma bênção
tão incomensurável, dolorosa aflição [pœna] nela perpetrou, de modo que o
matrimônio se transformou numa fonte e meios de muitos problemas.
Assim, todo o mal ou sofrimento que há no matrimônio é oriundo da
corrupção da instituição divina. Embora haja ainda algum resquício da
bênção original, de modo que a vida de uma pessoa sozinha às vezes é
muito mais miserável do que a de uma pessoa casada; todavia, à vista do
fato de que os casados se envolvem em muitos infortúnios, Paulo é
justificado ao aconselhar que seria bom que o homem se guarde dele [o
matrimônio]. Dessa forma, aquelas dificuldades que acompanham o
matrimônio não ficam encobertas. E, ao mesmo tempo, nenhum espaço se
permite a jocosidades vulgares, as quais geralmente se propõem a
desacreditar o matrimônio, tais como: “uma esposa é um mal necessário”; e
“uma mulher é o maior de todos os males”. Porquanto provérbios como
esses surgiram do laboratório de Satanás; e seu objetivo outro não é senão
macular a santa instituição de Deus como se fosse uma desonra; e assim, em
conseqüência, os homens se retraem do matrimônio, como se foge do
patíbulo [a capitali noxa] ou da peste.
A suma de tudo é: devemos lembrar de distinguir entre a ordenança de
Deus em sua pureza e o castigo do pecado, o qual entrou em cena em
decorrência da queda. Porque, de acordo com esta distinção, no princípio
era bom para o homem viver unido a uma esposa, sem qualquer exceção; e
mesmo agora é bom, mas somente até certo ponto, visto que a amargura é
mesclada com a doçura, em decorrência da maldição divina. Entretanto, para
aqueles que não possuem o dom da continência, ele é um remédio, o qual é
necessário e faz bem à saúde, como se verá em concordância com o que vem
a seguir.
2. Mas, por causa da fornicação. Ele agora requer daqueles que se
deixam influenciar pel vício da incontinência, que busquem o recurso desse
antídoto. Pois ainda que tal afirmação pareça ser de aplicação universal, ela
deve, contudo, restringir-se aos que se sentem premidos pela necessidade.
Cada pessoa deve ser seu próprio árbitro, caso isso deva aplicar-se também
a sua pessoa. Portanto, não importa quais são as dificuldades que
sobrevenham ao matrimônio, todos aqueles que não podem suportar os
impulsos da carne devem lembrar que este mandamento lhes foi imposto
pelo Senhor.
Mas alguém perguntará: “A cura da incontinência é a única razão para se
contrair o matrimônio?” Minha resposta é que isso não é o que Paulo
pretende dizer. Pois aos que desfrutam do dom da capacidade de suprimir o
matrimônio, ele dá a liberdade de se casarem ou não.5 Ordena, porém, aos
demais que queiram casar-se, que atentem bem para suas fraquezas. O que
importa é o seguinte: o que está em jogo aqui não são as razões pelas quais
o matrimônio foi instituído, e, sim, as pessoas para quem ele é
indispensável. Porque, se atentarmos para o primeiro matrimônio,
percebemos que ele não podia ser um remédio para uma doença, a qual
ainda não existia, senão que foi instituído para a procriação de filhos. É
verdade que depois da Queda acresceu-se este outro propósito.
Esta passagem também se opõe à poligamia [πολυγαμία]. Porque o
apóstolo deseja que cada mulher tenha seu próprio marido, notificando que
há obrigações mútuas. Portanto, uma vez que o homem tenha se
comprometido a ser leal a sua esposa, ele não deve separar-se dela, como
claramente ocorre no caso de segundas núpicias.
3. Que o esposo dê à esposa o que lhe é devido; e de igual modo também a esposa faça
ao esposo.
4. A esposa não tem poder sobre seu próprio corpo, e, sim, o esposo; e de igual modo
também o esposo não tem poder sobre seu próprio corpo, e, sim, a esposa.
5. Não defraudeis um ao outro, exceto por mútuo consentimento, por algum tempo, para
que possais dedicar-vos à oração, e vos ajunteis novamente, para que Satanás não vos
tente por causa de vossa incontinência.
10. Todavia, aos casados ordeno, não eu, mas o Senhor, que a esposa não se separe de
seu esposo;
11. mas, se ela separar-se, que permaneça sozinha, ou que se reconcilie com seu
esposo; e que o esposo não deixe sua esposa.
12. Mas, aos demais digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem uma esposa descrente,
e ela consente em viver com ele, não a deixe.
13. E a mulher que tem um esposo descrente, e ele consente em viver com ela, não
deixe seu esposo.
14. Porque o esposo descrente é santificado pela esposa, e a esposa descrente é
santificada pelo esposo; senão seus filhos seriam impuros; mas agora são santos.
15. No entanto, se o descrente quer separar-se, que se separe; o irmão ou irmã, em tais
casos, não está sujeito à servidão; Deus, porém, nos chamou à paz.
16. Porque, como sabes, ó esposa, se salvarás teu esposo? Ou, como sabes, ó esposo,
se salvarás tua esposa?
17. E assim, que cada um ande de acordo com o que Deus lhe distribuiu, cada um de
acordo com a vocação do Senhor. E assim eu ordeno em todas as igrejas.
10. Coniugibus denuntio, non ego, sed Dominus: Uxor a marito ne discedat.
11. Quodsi discesserit, maneat innupta, aut viro reconcilietur: et vir uxorem ne dimittat.
12. Reliquis ego dico, non Dominus: Si quis frater uxorem habet infidelem, et ipsa
consentit cum eo habitare, ne dimittat eam:
13. Et mulier si maritum habet infidelem, et ipse consentit cum ea habitare, ne relinquat
eum.
14. Sanctificatus est enim vir infidelis in uxore: et sanctificata est uxor incredula in viro:
alioque liberi vestri immundi essent: nunc autem sancti sunt.
15. Quod si infidelis discedit, discedat: non enim subiectus est servituti frater aut soror in
talibus, in pace autem vocavit nos Deus.
16. Quid enim scis, mulier, an maritum servatura sis? aut quid scis, O vir, an uxorem sis
servaturus?
17. Nisi unusquisque ut ei gratiam divisit Dominus, sic ambulet: et sic in Ecclesiis
omnibus præcipio.
18. Foi alguém chamado, estando circuncidado? que permaneça circuncidado. Foi
alguém chamado, sendo incircunciso? que não se faça circuncidar.
19. A circuncisão não é nada, e a incircuncisão nada é; mas, sim, a observância dos
mandamentos de Deus.
20. Cada um permaneça na mesma vocação em que foi chamado.
21. Foste chamado sendo servo? não te preocupes; mas se ainda podes ser livre,
aproveita a ocasião.
22. Porque, o que foi chamado no Senhor, sendo servo, é livre no Senhor; e, da mesma
maneira, aquele que foi chamado, sendo livre, é servo de Cristo.
23. Fostes comprados por preço; não sejais servos dos homens.
24. Irmãos, que cada um de vós permaneça diante de Deus no estado em que foi
chamado.
18. Circumcisus aliquis vocatus est? ne arcessat præputium: in præputio aliquis vocatus
est? ne circumcidatur.
19. Circumcisio nihil est, et præputium nihil est, sed observatio mandatorum Dei.
20. Unusquisque in qua vocatione fuit vocatus, maneat.
21. Servus vocatus es? ne sit tibi curæ: at si etiam possis liber fieri, magis utere.
22. Etenim qui in Domino vocatus est servus, libertus Domini est: similiter et qui liber
vocatus est, servus est Christi.
23. Pretio empti estis: nolite fieri servi hominum.
24. Unusquisque in eo, in quo vocatus est, fratres, maneat apud Deum.
25. Ora, quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, meu veredito,
como alguém que obteve do Senhor a misericórdia para ser fiel.
26. Suponho, pois, que isso é bom por causa do presente sofrimento, a saber, que seria
bom para o homem permanecer como está.
27. Estás ligado a uma esposa? não procures separação. Estás livre de esposa? não
busques uma esposa.
28. Mas, se te casares, não estarás pecando; e se uma virgem casar-se, não estará
pecando. Todavia, os mesmos sofrerão tribulação na carne; e eu gostaria de poupar-
vos.
25. De virginibus autem præceptum Domini non habeo: sed consilium do, tanquam
misericordiam consequutus a Domino, ut sim fidelis.
26. Arbitror igitur hoc bonum esse propter instantem necessitatem, quod bonum sit
homini sic esse.
27. Alligatus es uxori? ne quæras solutionem. Solutus es ab uxore? ne quæras uxorem.
28. Quodsi etiam duxeris uxorem, non peccasti: et si nupserit virgo, non peccavit:
attamen afflictionem in carne habebunt eiusmodi. Ego autem vobis parco.
29. Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; doravante, os que têm
esposas sejam como se não as tivessem;
30. e os que choram, como se não chorassem; e os que se alegram, como se não se
alegrassem; e os que compram, como se nada possuíssem;
31. e os que usam deste mundo, como se dele não abusassem, porque a aparência
deste mundo possa.
32. Mas gostaria que fôsseis livres de preocupações. Aquele que não é casado cuida das
coisas do Senhor, em como agradar ao Senhor;
33. mas aquele que é casado cuida das coisas do mundo, em como agradar sua esposa.
34. E há diferença também entre a mulher casada e a virgem. Aquela que é solteira cuida
das coisas do Senhor, em como ser santa, tanto no corpo como no espírito; aquela,
porém, que é casada cuida das coisas do mundo, em como agradar seu esposo.
35. E isto digo em vosso próprio proveito; não que eu pretenda lançar-vos em
dificuldade, mas visando à decência, e para que sirvais ao Senhor sem distração
alguma.
29. Hoc autem dico, fratres, quia 55 tempus contractum est: reliquum est, ut qui uxores
habent, sint tanquam non habentes:
30. Et qui flent, tanquam non flentes: et qui gaudent, tanquam non gaudentes: et qui
emunt, tanquam non possidentes:
31. Et qui utuntur hoc mundo, tanquam non utentes: præterit enim figura mundi hujus.
32. Velim autem vos absque solicitudine esse. Qui cœlebs est, curat ea quæ sunt Domini,
quomodo placiturus sit Domino:
33. Coniugatus curat ea quæ sunt mundi, qualiter uxori placiturus sit, et divisus est.
34. Et mulier cælebs, et virgo curat ea quæ sunt Domini, ut sancta sit corpore et spiritu: at
quæ maritum habet, curat ea quæ sunt mundi, quomodo placitura sit marito.
35. Hoc autem ad utilitatem vestram dico, non ut laqueum vobis iniiciam, sed ad
honestatem ac decorum, ut Domino adhaereatis absque ulla distractione.
29. Porque o tempo se abrevia. Uma vez mais Paulo discute o tema
matrimônio como algo sagrado, a fim de restringir a paixão lasciva daqueles
que, quando são casados, não pensam em nada mais senão no prazer físico,
não dando a Deus satisfação alguma. Portanto, Paulo insta com os crentes a
não soltarem as rédeas da paixão para que o matrimônio não os precipitasse
nas veredas do mundanismo. O matrimônio é o antídoto para a
incontinência. Isto é verdade, desde que sua utilização seja governada pela
temperança. Portanto, ele diz aos que são casados que vivam juntos de
maneira casta, no temor do Senhor. Tal coisa só pode ser alcançada pela
utilização do matrimônio da mesma forma como se utilizam das demais
coisas que se incluem na assistência da presente vida terrena, e elevem seus
corações em contemplação da vida celestial.
Ora, ele baseia seu argumento na brevidade da vida humana. Diz ele: “A
vida que vivemos aqui é breve e momentânea; por isso, não a
transformemos em obsessão. Portanto, os que têm esposa, sejam como se
não as tivessem. Todos têm, naturalmente, esta porção de sabedoria em seus
lábios; poucos a têm genuína e sinceramente esculpida em seus corações.
Em minha primeira tradução, segui um manuscrito existente em Paris, o
qual, como vim descobrir depois, não encontra qualquer apoio em muitos
outros que consultei. (Erasmo junta a frase τὸ λοιπόν ao que segue. Mas esta
redação é mais autêntica.) Eu, portanto, decidi acertadamente inserir porque
[quia] para fazer o significado mais claro, e isso concorda com a redação de
muitos dos antigos manuscritos. Diante do fato de que, quando fazemos
séria reflexão sobre algo, voltamos nossa atenção mais para o futuro do que
para o passado, Paulo nos adverte sobre a brevidade do tempo por vir.
Como se não as tivessem. Todas as coisas que contribuem para o
enriquecimento desta presente vida são santos dons de Deus, mas as
contaminamos com nosso mau uso delas. Se quisermos saber por que
razão, a resposta é porque estamos sempre entretendo as ilusões que
continuarão perenemente neste mundo. O resultado é que as mesmas coisas
que nos devem ser assistenciais em nossa peregrinação ao longo da vida, se
transformam em cadeias que nos escravizam. A fim de despertar-nos de
nosso torpor, o apóstolo corretamente nos convida a fazer uma
retrospectiva sobre a brevidade desta vida. Disto ele deduz que a maneira
pela qual devemos fazer uso de [uti] todas as coisas deste mundo é em
razão da consciência de que não as possuímos [utamur]. Pois aquele que
pensa de si próprio como sendo um estranho que atravessa este mundo,
usa as coisas pertencentes ao mesmo como se elas pertencessem a outro;
em outras palavras, as coisas que são em caráter de empréstimo por apenas
um dia. A questão é que a mente do cristão não deve entulhar-se de imagens
das coisas terrenas, ou encontrar satisfação nelas, porquanto devemos viver
a vida como se fôssemos deixar este mundo a qualquer momento.
Pelo termo chorar Paulo quer dizer quando as coisas vão mal; e pelo
termo regozijar, quando elas vão bem; pois é algo plenamente normal
descrever as causas por seus efeitos.56
Finalmente, aqui o apóstolo naturalmente não está aconselhando os
cristãos a livrar-se de seus pertences. Tudo o que ele pede é que o espírito
de posse não os absorva completamente.57
31. E os que usam deste mundo, como se dele não abusassem. O
particípio χρώμενοι (usando) é usado na primeira frase, enquanto o
composto καταχρώμενοι (abusando, usando mal) é usado na segunda. Mas a
preposição κατα, numa afirmação composta, geralmente é tomada em
sentido negativo, ou, pelo menos, denota intensidade.58 Paulo, pois, sugere
o uso das coisas de uma maneira moderada e disciplinada, de modo a não
nos atrapalharem ou a nos atrasarem em nossa jornada; ao contrário, que
sejamos aprressados rumo ao alvo.
Porque a aparência deste mundo passa. Paulo, com estas palavras,
apresenta uma descrição adequada da futilidade do mundo. Diz ele: “Não
existe nada estável e sólido;59 pois, como se diz, o mundo não passa de
fachada, de aparência visual. Mas as cortinas caem, as cenas são
interrompidas e o que estava diante dos olhos do auditório é imediatamente
arrebatado de sua vista. Não entendo por que Erasmo preferiu o termo
condição [habitus]. Como o entendo, ele está definitivamente obscurecendo
o ensino de Paulo; porquanto aparência [figura] se põe em tácito contraste
com substância [substantia].60
32. Mas eu gostaria que fôsseis livres de preocupações. Ele volta ao
mesmo parecer que já havia externado, mas que não fora ainda plenamente
explanado; e, segundo seu costume, ele começa recomendando o celibato, e
prossegue permitindo a liberdade individual de escolherem o que acreditam
ser-lhes adequado. Além disso, ele tem boas razões para reiterar a
recomendação do celibato, porque percebia que as responsabilidades
matrimoniais estão longe do discernimento. Se alguém pode livrar-se delas,
o tal não deve perder um benefício tão imenso. E é muitíssimo vantajoso
para os que estão pretendendo casar-se que sejam advertidos e
aconselhados acerca desses problemas, a fim de que, se os mesmos vierem
inesperadamente a seu encontro, não venha ele a sucumbir-se em
desespero. Vemos muitos enfrentando tal situação. Prometeram a si mesmos
o mais excelente mel, mas quando essa esperança não se concretiza na
prática, o mais leve infortúnio é bastante para sucumbi-los.61 Portanto,
procurem saber antecipadamente o que os espera, e assim estejam
preparados para enfrentar o previsto e o imprevisto. O significado, pois, é o
seguinte: “O matrimônio traz consigo muitos obstáculos, dos quais gostaria
que estivésseis livres, com toda isenção.”
Mas, visto que ele falou de tribulações, e agora faz menção de
preocupações ou ansiedades [v. 28], alguém com razão poderia perguntar se
há ou não algumas diferença entre ambas. Segundo meu ponto de vista, a
tribulação tem sua fonte ou causa em ocasiões ou circunstâncias ruins, tais
como a morte de um filho ou de um cônjuge; as disputas e pequenas
diferenças (como são chamadas pelos jurisconsultos)62 que resultam sendo
mui fastidiosas, tais como os malfeitos dos filhos; as dificuldades na
condução da família; e coisas afins. Ansiedades, penso eu, se relacionam
com circunstâncias prazenteiras, tais como as frivolidades de uma recepção
de núpcias, os momentos de diversões e outras coisas que a vida conjugal
tem de atender.63
Aquele que é solteiro cuida das coisas do Senhor. Daqui se faz
evidente que Paulo deseja que os cristãos se desvencilhem das ansiedades
para que tenham condições de devotar todos seus pensamentos e esforços
ao Senhor. Ele afirma que o celibato permite isso; e então deseja que todos
desfrutem dessa liberdade. Não obstante, ele não pretende que os solteiros
sejam sempre assim; pois sabemos de experiência própria que os casos dos
sacerdotes, dos monges e monjas apresentam algo bem diferente, pois não
conseguem ver nada mais que se relacione com Deus além de seu celibato.
Acrescente-se a isto também nosso conhecimento de tantos fornicadores
aversivos que usam o matrimônio para entregar-se às práticas
concupiscentes até ao fastio, e com o fim de manter seus vícios em segredo.
Onde o caso da paixão se faz presente, não pode haver nenhuma devoção a
Deus. Mas o que Paulo está realçando aqui é que o solteiro é livre, e nada se
antepõe no caminho de suas reflexões acerca das coisas de Deus. Os crentes
fazem uso desta liberdade; os demais não fazem outra coisa senão servir a
sua própria ruína.
33. Mas aquele que é casado se preocupa com as coisas do mundo.
“As coisas do mundo” devem ser entendidas como sendo “as coisas que
pertencem a esta presente vida”, pois aqui o termo mundo deve ser
considerado como que incluindo as circunstâncias desta vida terrena. Mas
corre-se o risco de alguém concluir daqui que todos os casados se acham
excluídos do reino de Deus,64 uma vez que estão envolvidos somente com
este mundo. A isso respondo: o apóstolo está expondo apenas uma parte de
seu pensamento. Ele poderia ter dito: “É como se eles estivessem olhando
para Deus com apenas um olho, mas, ao mesmo tempo, mantendo o outro
voltado para sua esposa. Além disso, a vida conjugal é como um fardo mui
pesado sobre os ombros do cristão, a toldar de tal forma a mente que não
consegue dar sequer um passo sem dificuldade em sua trajetória para
Deus.” Tenhamos, contudo, sempre em mente que tais males não são
inerentes ao próprio matrimônio, mas, sim, são oriundos do pecado
humano. Isso foi o que motivou as interpretações equivocados em que caiu
Jerônimo. Porquanto ele reúne todos estes fatores com o fim de
desprestigiar o matrimônio. Sendo assim, dever-se-ia condenar também a
agricultura, o comércio e outros meios de sobrevivência, visto que nenhuma
dessas áreas se vê livre de algum aspecto nocivo; e embora estejam tão
saturados pelas corrupções deste mundo, ninguém de bom senso os
descartaria com escárnio! Notemos bem, pois, que todos os males
existentes no matrimônio vêm de outra fonte. Pois nos dias atuais um
homem não estaria se afastando de Deus por viver com sua esposa; estaria
permanecendo num estado de pureza e não poluiria a sagrada instituição
divina; e a esposa estaria sendo sua auxiliadora em tudo o que é bom, como
de fato foi esse o propósito para o qual foi essa instituição criada [Gn 2.18].
Mas alguém dirá: “Se as ansiedades, que constituem uma falha e merecem
censura, estão conectadas à vida conjugal, como podem os casados invocar
a Deus e servi-lo em sã consciência? Minha resposta é que existem três
gêneros de ansiedade: (1) Há aquelas que são inerentemente nocivas e
pecaminosas, porque nascem da ausência de confiança. Cristo fala delas em
Mateus 6.25. (2) Há aquelas que são necessárias e não provocam o
desagrado de Deus, ou, seja: o chefe de família deve viver solicitamente para
sua esposa e filhos. E Deus não quer que sejamos cepos de madeira,
incapazes de raciocinar por nós mesmos. (3) O terceiro tipo é uma
combinação destes dois, ou, seja: quando nos vemos preocupados acerca
dessas coisas, as quais de fato despertam nossa solicitude, mas as levamos
longe demais em razão de nossa natural demência de querer avançar para
além dos limites de tudo. Portanto, tais ansiedades não são de forma alguma
nocivas em si mesmas, senão que são ruins em resultado de αταξια, ou, seja,
os excessos indevidos. O apóstolo não pretendia condenar meramente tais
vícios pelos quais contraímos culpa aos olhos de Deus; mas em termos
gerais deseja que nos livremos de todos os impedimentos, de modo que
estejamos totalmente livres para o serviço de Deus.
E está dividida. É surpreendente como tantos pontos de vista
divergentes tenham surgido concernentes a estas palavras. Pois a versão
grega comum não tem qualquer similaridade com a versão Vulgata, de modo
que a diferença não pode ser atribuída a algum equívoco ou inadvertência,
na forma em que um equívoco às vezes ocorre numa única carta ou numa
única palavra. Ora, as versões gregas geralmente a tomam literalmente; por
exemplo: “O homem casado tem sua mente posta nas coisas deste mundo,
em como agradar sua esposa. A mulher casada e a virgem estão divididas. A
que é solteira se preocupa com as coisas do Senhor” etc. E consideram
“estando divididas” no sentido de ‘diferindo’, como se quisesse dizer: “Há
uma grande diferença entre a casada e a virgem. Uma é livre para ocupar-se
exclusivamente das coisas de Deus, enquanto a outra está definitivamente
fora deste caminho e absorvida por questões variadas.” Visto, porém, que
esta interpretação não concorda muito com o sentido literal da palavra, não
me sinto de todo satisfeito com ela, ainda mais porque o significado da
outra redação é mais consonante e menos forçada (e também porque essa
redação se encontra em alguns manuscritos gregos). Portanto, nosso
raciocínio é o seguinte: um homem casado está dividido65 em seus
interesses, visto que se vê constrangido a dar uma parte de si a Deus e uma
parte a sua esposa, e sente não viver exclusiva e plenamente para Deus.
34. A solteira e a virgem. O que ele ensinou sobre os homens, agora
repete em relação às mulheres, ou, seja, que as virgens e as viúvas não estão
impedidas pelos afazeres deste mundo de dar sua sincera atenção e afetos a
Deus. Naturalmente que nem todos fazem isso, mas a oportunidade está aí,
contanto que tenham sua mente voltada para a mesma. A o dizer “que sejam
santas no corpo e no espírito”, Paulo deixa claro que o gênero de castidade
genuína e aceitável a Deus é aquela que leva a pessoa a ter a mente
imaculada para Deus. Gostaria que se desse mais atenção a este aspecto. No
que diz respeito ao corpo, vemos que tipo de devotamento ao Senhor
comumente há por parte das freiras, monges e toda a ralé de clérigos
papistas. Não há nada imaginável que possa ser mais repulsivo do que seu
celibato! Mas, para não falar agora da castidade do corpo, onde se
encontrará alguém entre os que são tidos em admiração em decorrência da
reputação de sua continência, que não viva inflamado com abomináveis
paixões obscenas? À luz desta expressão de Paulo, podemos concluir que a
castidade só é agradável a Deus se ela abrange a alma e o corpo. Gostaria
que todos os que estão sempre enaltecendo a castidade pudessem entender
que terão que tratar é com Deus pessoalmente; daí não teriam tanta
confiança em terçar armas conosco. Entretanto, nos dias atuais, aqueles que
falam com grandiloqüência acerca da continência são os mesmos que
pública e descaradamente se utilizam de prostitutas. Mas ainda que
vivessem a mais respeitável das vidas aos olhos humanos, tal coisa não
significaria absolutamente nada, se não mantiverem suas mentes puras e
intocáveis por impurezas de toda espécie.
35. Digo isto para vosso benefício. Prestemos atenção na moderação do
apóstolo. Ainda que estivesse bem consciente dos aborrecimentos,
problemas e dificuldades da vida conjugal e, por outro lado, das vantagens
do celibato, todavia não considera isso como algo pessoal para deitar tudo
abaixo. Ao contrário, tendo recomendado o celibato, e temendo que seus
leitores viessem a sentir-se impressionados ouvindo-o falar dele como algo
excelente, imediatamente declara-lhes o que os apóstolos disseram em
resposta a Cristo [Mt 19.10]: “Se essa é a condição do homem relativamente à
mulher, então não é bom que se case”, sem considerar se eram ou não
capazes de tal façanha, Paulo nos leva a entender claramente que, enquanto
realça o que é mais vantajoso, ele não pretende com isso obrigar a ninguém.
Aqui há duas coisa dignas de observação. A primeira é esta: com que
propósito o celibato deve ser almejado: não por sua própria causa; não
porque este estado fora posto num nível mais excelente; mas para vivermos
mais apegados a Deus, não tendo nada se interpondo entre nós e ele. Ora,
esta é a única coisa que mais deve preocupar um cristão ao longo de toda
sua vida. A segunda coisa é esta: que não se deve impor nenhuma restrição à
consciência do ser humano, com o funesto resultado que alguém venha a
esquivar-se do matrimônio; ao contrário disso, a liberdade de cada um deve
ser respeitada. Sabe-se muito bem quantos equívocos têm-se engendrado em
relação a estas duas questões. Certamente que, em relação ao segundo
princípio, aqueles que não hesitaram em criar uma lei para o celibato,
proibindo a todo o clero de contrair o matrimônio, eram muito mais
pretensiosos do que Paulo. O mesmo se aplica aos que fazem votos de
perpétua continência. Um número sem conta de pessoas tem sido arrastado
a eternas ruínas por essas cadeias. Ora, se o Espírito Santo falou pelos
lábios de Paulo, então os papistas não conseguirão redimir-se da acusação
de lutarem contra Deus [At 5.39] quando escravizam a consciência dos
homens, numa questão sobre a qual Deus quer que permaneçam livres.
Nesse caso, pode ser que ele66 tenha formulado um novo plano desde
então, pretendendo usar as mesmas cadeias que outrora havia reprovado.
36. Mas se alguém julga que trata indignamente sua filha virgem, se ela tiver passado a
flor da idade, e se a necessidade assim o requeira, que faça o que quiser; ele não peca;
que se casem.
37. Mas o que ele tem firme em seu coração, não tendo necessidade, mas tem poder
sobre sua própria vontade, e determinou isso em seu próprio coração, ou, seja,
conservar virgem sua própria filha, fará bem.
38. De sorte que, aquele que dá sua própria filha em casamento, faz bem; e aquele que
não a dá em casamento, faz melhor.
36. Si quis autem virgini suæ indecorum indicat, si excedat florem ætatis, et ita fieri
debet: quod voluerit faciat, non peccat: nubant.
37. Qui autem stat firmus in corde, necessitatem non habens, potestatem vero habens
supra sua voluntate, et hoc decrevit in corde suo, servare suam virginem, bene facit.
38. Itaque et qui nuptum collocat, bene facit; et qui non collocat, melius facit.
36. Mas se alguém julga que trata indignamente sua filha. Paulo agora
se volta para os pais que tinham filhos sob seu domínio. Pois tendo ouvido
os louvores entoados ao celibato, e tendo ouvido também acerca das
dificuldades que cercam o matrimônio, poderiam perguntar-se se era
humano permitir que suas filhas se envolvessem em tanta infelicidade, uma
vez que poderia parecer que eram os responsáveis pelo infortúnio delas.
Pois quanto mais profunda fosse sua afeição por suas filhas, mais ansiosos
deveriam viver por sua sorte quanto a qualquer coisa que lhes viesse
suceder.67 Paulo, pois, a fim de poupá-los dessas dificuldades, ensina que o
dever dos pais é cuidar dos interesses de suas filhas, precisamente como
alguém que se sente responsável por si próprio se vê obrigado a correr após
seus próprios interesses.68 Ele, porém, conserva a distinção que vem
fazendo durante todo o tempo. De um lado, ele recomenda o celibato; do
outro, porém, permite que o matrimônio seja uma matéria de livre escolha.
Além do mais, ele considera o matrimônio como um antídoto contra a
incontinência, e é um erro negá-lo a alguém que dele carece. Na primeira
parte desta seção, Paulo fala em dar as filhas em casamento. Nela ele
assevera que os pais que chegam à conclusão de que a vida solteira não é
adequada a suas filhas, não pecam em dá-las em casamento.
Seu uso do termo ἀσχημονει̑ν (ser inconveniente) deve ser entendido
como uma referência a uma propriedade especial de aptidão, a qual depende
do que é natural a cada pessoa. Porquanto existe uma propriedade geral que
os filósofos consideram como sendo um aspecto da temperança. Esse fator
pertence igualmente a todos. Existe outra que é especial, visto que o que é
adequado a uma pessoa pode não ser conveniente a outra. Portanto, cada
indivíduo precisa saber (como diz Cícero) qual é a parte [quam personam]
que a natureza lhe designou.69 O celibato poderá ser conveniente a uma
pessoa, porém não se deve usar o mesmo critério com outras.70 Além do
mais, outros não devem seguir o exemplo deste sem inquirir se estão
habilitados para tal; pois proceder assim é comportar-se como símios; e
certamente não estamos dispostos a tal papel. Portanto o pai, após haver
avaliado a disposição de sua filha e constatado que ela não tem o dom para
a vida celibatária, então que a dê em casamento.71
O que Paulo pretende dizer com “flor da idade” é a idade própria para a
vida conjugal. Os jurisconsultos definem a expressão como equivalendo
dos doze aos vinte anos de idade. Paulo realça, de passagem, quão
compreensivos e complacentes devem ser os pais ao fazerem uso do
antídoto nesses tenros e delicados anos, quando o rigor da ansiedade o
requeira.
E se a necessidade assim o requeira. Ele toma esta frase como uma
alusão às debilidades femininas, ou, seja, no caso de a moça não ter o dom
da continência; porque em tais circunstâncias ela se vê obrigada a contrair
matrimônio. Jerônimo toma as palavras “não peca” com o intuito de levar o
matrimônio ao descrédito, e o deprecia como se entregar uma filha à vida
conjugal não fosse algo louvável. Não obstante, seus conceitos são pueris.72
Porquanto Paulo considera suficiente isentar os pais do opróbrio, para que
não viessem julgar ser algo cruel sujeitar suas filhas às tribulações da vida
conjugal.
37. Mas aquele que tem firme em seu coração. Chegamos agora à
segunda parte da declaração, e nela Paulo trata das jovens que possuem o
dom de abster-se do matrimônio. Ele, pois, louva os pais que se preocupam
em ver se suas filhas jovens não estão enfrentando alguma desordem
pessoal. Mas é necessário que entendamos o que Paulo aqui requer. Sua
primeira condição é a força de vontade: “Se alguém mantém sua mente em
plena harmonia com seu propósito.” Todavia, não devemos permitir que
isso sofra o mesmo gênero de solução que os monges inventaram, ou, seja,
obrigar-se voluntariamente a uma servidão vitalícia. (Pois esse é o gênero de
voto que ele faz.) Paulo, porém, faz particular menção desta firme
determinação, visto que os homens amiúde esboçam planos
precipitadamente, de modo que no dia seguinte estão pesarosos de havê-los
feito. Visto que esta é uma questão de grande magnitude, ela demanda um
propósito totalmente amadurecido.
Em segundo plano, ele fala da pessoa como não tendo nenhuma
necessidade; porquanto muitos, quando chegam a deliberar, são mais
obstinados do que razoáveis. E nas circunstâncias que estamos
considerando aqui,73 renunciam o matrimônio, estando em poder fazê-lo,
sem prestar a mínima atenção se estão preparados para isso, porém julgam
ser bastante dizer: “Isso é precisamente o que quero.” Paulo requer deles
que tenham aptidão, a fim de não tomarem uma decisão precipitadamente,
mas que seja segundo a medida da graça que lhes foi dada. A ausência de
necessidade no caso, ele apropriadamente o expressa na sentença seguinte,
quando diz que tenham “domínio sobre sua própria vontade”. Pois é como
se ele quisesse dizer: “Não quero que resolvam antes que estejam certos de
que lhes foi dado o poder de cumpri-lo; porque é algo temerário, deveras
fatal,74 achar-se lutando contra a designação divina.” Mas alguém dirá: “À luz
deste sistema, os votos devem ser condenados, uma vez que a atenção é
voltada para as condições anexas.” A isso respondo que não temos
nenhuma certeza em relação à vontade de Deus quanto ao futuro; portanto,
no que diz respeito ao dom da abstinência, não devemos tomar uma decisão
que nos escravize ao longo de toda nossa vida. Façamos uso do dom desde
que nos sintamos livres para fazê-lo. Entrementes, confiemo-nos ao Senhor,
prontos a segui-lo para onde ele queira nos chamar [Ap 14.4].
E determinou isso em seu próprio coração. É provável que Paulo tenha
adicionado esta expressão com o fim de tornar mais claro que os pais devem
avaliar bem os vários aspectos antes de descartar suas preocupações e
intenções quanto a liberar suas filhas ao matrimônio. Pois elas às vezes se
recusam a casar-se, seja em virtude do pudor ou por ignorarem sua própria
natureza, enquanto que, ao mesmo tempo, continuam sensuais como
sempre e sujeitas a se desviarem.75 Nesta conexão, os pais devem considerar
o que é melhor para suas filhas, de modo que sua própria prudência venha
corrigir a ignorância ou os desejos irracionais de suas filhas.
Ora, esta passagem ajuda a estabelecer a autoridade dos pais, a qual deve
ser mantida inviolável, uma vez que ela deve sua origem à lei universal da
natureza [ex communi naturae inre]. Se aos filhos não se permite fazer outras
coisas – aquelas de somenos importância – sem a aprovação de seus pais,
seria obviamente mui incongruente que lhes fosse dada a liberdade de
contrair seus próprios matrimônios. E isso tem sido sancionado pela lei
civil [civili lege], mas mui especialmente pela Lei de Deus [Lege Dei]. Eis a
razão por que é extremamente detestável a perversidade do papa, porque,
ignorando o respeito devido à lei de Deus, bem como à lei dos homens, sua
ousadia tem chegado ao ponto de fazer os filhos isentos do jugo da sujeição
devida a seus pais. Entretanto, não vale a pena determinar aqui a razão. Diz
ele: “Isso se deve à dignidade do sacramento.” (Prefiro ignorar sua
ignorância em converter o matrimônio em sacramento!) Não obstante, que
gênero de honradez e dignidade há nisso, pergunto eu, quando,
contrariando o padrão comum da decência entre todas as nações, bem como
a eterna ordenação de Deus, os jovens se entregam com extrema liberdade a
suas paixões lascivas, ao ponto de correrem desenfreadamente sem
qualquer senso de pundonor,76 só porque contam com a escusa de que esse
é um sacramento. Portanto, lembremo-nos de que, com respeito à liberação
de suas filhas à vida conjugal, a autoridade dos pais é mais importante,
contanto que não abusem dela de forma tirânica; pois, para prevenir tal
possibilidade, a lei civil também lhe impõe restrições.77 O apóstolo, ao
requerer a isenção da necessidade,78 também notificou que as deliberações
dos pais devem ser reguladas com vistas ao que é melhor para os filhos.
Portanto, tenhamos em mente que este perfeito equilíbrio entre as partes é
um guia justo, ou, seja: que os filhos se deixem governar por seus pais; e
que os pais, em contrapartida, não forcem seus filhos a agirem contra sua
vontade, senão que usem sua autoridade unicamente no sentido de
promover o bem-estar de seus filhos.
38. De sorte que, aquele que dá sua filha em casamento faz bem. Aqui
temos a conclusão de ambas as partes da declaração, na qual ele expressa,
em poucas palavras, que os pais estão livres de qualquer constrangimento
caso liberem suas filhas à vida conjugal; todavia lhes assevera que fariam
melhor se as conservassem em casa, solteiras. Entretanto, aqui ele uma vez
mais não considera o celibato como sendo preferível ao matrimônio. Isso só
é possível na única exceção a nós imposta um pouco antes. Pois quando a
jovem não é capaz de abster-se do matrimônio, o pai que tenta subtraí-la79
dele está agindo irrefletidamente. Na verdade, tal nem mesmo é pai, mas um
cruel tirano. A discussão toda equivale a isto: (1) O celibato é preferível ao
matrimônio, visto que ele nos mantém livres e, em conseqüência, nos
propicia melhor oportunidade para o serviço de Deus. (2) Todavia, não se
deve usar qualquer atitude compulsiva com o fim de impedir os indivíduos
de contrairem o matrimônio, caso queiram fazê-lo. (3) Além do mais, o
matrimônio, intrinsecamente, é o antídoto que o Senhor providenciou para
nossas fraquezas;80 e todo aquele que não é abençoado com o dom da
continência deve se valer dele. Toda pessoa de são juízo concordará comigo
em dizer que todo o ensino de Paulo acerca do matrimônio se resume
nesses três pontos.
39. A esposa está comprometida durante todo o tempo que seu esposo viver; mas, se o
esposo morrer, ela fica livre para casar-se com quem quiser; contanto que seja no
Senhor.
40. Mas ela será mais feliz se permanecer como está, segundo meu parecer; e também
julgo que tenho o Espírito de Deus.
39. Mulier alligata est Legi, quamdiu maritus ejus vivit: si autem dormierit maritus ejus,
libera est, ut cui vult nubat, modo in Domino.
40. Beatior vero est, si sic maneat, secundum meam sententiam: existimo autem, me
quoque Spiritum Dei habere.
1. Ora, no tocante às coisas oferecidas aos ídolos, sabemos que todos nós temos
conhecimento. O conhecimento ensoberbece, porém o amor edifica.
2. E se alguém julga que conhece alguma coisa, esse ainda não sabe o que deve saber.
3. Mas se alguém ama a Deus, o mesmo é conhecido dele.
4. Portanto, no tocante ao comer das coisas oferecidas aos ídolos, sabemos que um
ídolo nada é no mundo, e que não há outro Deus senão um só.
5. Porque, ainda que haja alguns que se chamem deuses, quer no céu quer na terra
(como há muitos deuses e muitos senhores),
6. todavia, para nós, só há um Deus, o Pai, de quem são todas as coisas, e nós nele, e
um só Senhor, Jesus Cristo, por meio de quem todas as coisas existem, e nós por meio
dele.
7. Seja como for, esse conhecimento não está presente em todos; pois alguns, com a
consciência [da existência] dos ídolos, comem algo como oferecido aos ídolos; e sua
consciência, sendo fraca, fica contaminada.
1. De iis porro quæ idolis immolantur, scimus, quod omnes scientiam habemus: scientia
inflat, caritas autem ædificat.
2. Si quis autem videtur sibi aliquid scire, nondum quicquam scit, qualiter scire oportet.
3. At si quis diligit Deum, hic cognitus est ab illo.
4. De esu ergo eorum quæ idolis immolantur, novimus, quod idolum nihil est in mundo, et
quod non est alius Deus nisi unus.
5. Nam etsi sunt qui vocentur dii, sive in cœlo sive super terram, quemadmodum sunt dii
multi et domini multi:
6. Nobis tamen unus Deus Pater, ex quo omnia, et nos in ipso: et unus Dominus Iesus
Christus, per quem omnia, et nos per ipsum.
7. At non est in omnibus scientia: quidam autem cum idoli conscientia nunc quoque
tanquam idolo immolatum edunt, et conscientia eorum, infirma quum sit, polluitur.
8. Mas a comida não nos recomendará a Deus; porque, se não comemos, não ficamos
melhores; ou, se comemos, não ficamos piores.
9. Mas tomai cuidado para que, de alguma forma, essa vossa liberdade não se
transforme em tropeço para os fracos.
10. Porque, se alguém vir a ti, que tens conhecimento, sentado à mesa no templo dos
ídolos, não será a consciência do que é fraco induzida a comer das coisas sacrificadas
aos ídolos?
11. Pois através de teu conhecimento o irmão fraco perecerá, por quem Cristo morreu.
12. E assim, pecando contra os irmãos, e ferindo sua consciência que é fraca, vós pecais
contra Cristo.
13. Por isso, se a comida leva meu irmão a tropeçar, nunca mais comerei carne, para
que meu irmão não se escandalize.
8. Atqui esca nos non commendat Deo: neque si comedamus, abundamus, neque si non
comedamus, deficimur aliquo.
9. Sed videte, ne quo modo facultas hæc vestra offendiculo sit infirmis.
10. Si quis enim videat te, utcunque scientiam habeas, in epulo simulacrorum
accumbentem; nonne conscientia ejus, quum tamen infirmus sit, ædificabitur ad
edendum quæ sunt idolis immolata?
11. Et peribit frater, qui infirmus est, in tua scientia, propter quem Christus mortuus est?
12. Sic autem peccantes in fratres, et vuluerantes conscientiam illorum infirmam, in
Christum peccatis.
13. Quapropter si esca offendit fratrem meum, nequaquam vescar carnibus in
æeternum, ne fratri meo sim offendiculo.
8. A comida não nos recomendará a Deus. Este foi, ou poderia ter sido,
outro pretexto que os coríntios costumavam usar, ou, seja: que o culto
divino não consiste de alimentos, como Paulo mesmo ensina em sua
Epístola aos Romanos 14.17: “O reino de Deus não é comida nem bebida.”
Ele responde: “Entretanto, é preciso tomar cuidado para que o uso de nossa
liberdade não cause dano a nosso próximo.” Aqui ele tacitamente reconhece
que, aos olhos de Deus, não importa o que comamos, porque ele nos
permite servir-nos do alimento livremente, sem qualquer problema de
consciência; essa liberdade, porém, precisa ser temperada com o amor,
sempre que nos envolvermos com outras pessoas. Portanto, o argumento
dos coríntios era deficitário, visto que julgavam toda a situação pelo prisma
de apenas uma parte dela, porque, quando entram em cena os afazeres
práticos da vida, as reivindicações do amor devem receber especial
consideração. Não há dúvida, pois, de que o alimento não nos recomenda a
Deus, e Paulo reconhece esse fato; mas ele o modifica ao dizer que o amor
nos é recomendado por Deus, e que seria pecaminoso negligenciá-lo.
Porque, se comemos não ficamos melhores. Ele aqui não está se
referindo aos estômagos bem alimentados, porque a pessoa que recebe seu
alimento tem obviamente seu estômago melhor nutrido do que a pessoa que
está faminta. Ele, porém, tem em mente que nada ganhamos nem perdemos,
no tocante à justiça, se comemos ou não. Além do mais, ele não está se
referindo a todo gênero de abstinência, nem a todo gênero de alimento, sem
qualquer discriminação. Pois a indulgência e a extravagância excessivas, em
si mesmas, não granjeiam a aprovação de Deus, enquanto que a sobriedade
e a moderação o agradam. Tenhamos, porém, bem firme em nossa mente que
o reino de Deus, que é espiritual, não depende dessas práticas externas;
portanto, essas coisas neutras [resmedias], em si mesmas, não são de
nenhum valor aos olhos de Deus. Embora ele ponha isso nos lábios de
outrem, quando antecipa seus argumentos, não obstante admite que tal
coisa é verdadeira, pois ela se deriva de seu próprio ensino, o que
mencionamos brevemente no último parágrafo.
9. Tomai cuidado para que vossa liberdade. Ele deixa a liberdade deles
intata, porém lhe impõe restrições, contanto que seu uso não perturbe os
que são fracos. E ele é bem explícito em seu desejo de que os fracos sejam
tratados com consideração, ou, seja, aqueles que não estão ainda bem
fundamentados na piedade. Visto que em geral são vistos com menosprezo
por todos, o Senhor deseja, na verdade ordena, que nos preocupemos com
eles. Paulo, ao mesmo tempo, propõe que os gigantes obstinados, que
procuram agir com tirania e manter nossa liberdade sob seu controle,
podem ser seguramente ignorados;12 porque ninguém precisa ter receio de
ofender aos que não se deixam induzir a pecar pela fraqueza, mas que, ao
mesmo tempo, vivem ansiosamente de espreita a fim de encontrar algo para
censurar. Em breve veremos o que ele tinha em mente sobre pedras de
tropeço.
10. Se alguém te vir. À luz desta afirmação surge mais claramente até
onde foi a liberdade que os coríntios deram a si mesmos, ou, seja, quando
os incrédulos preparavam alguma sorte de festa sagrada em louvor dos
ídolos, não hesitavam13 um mínimo sequer em participar e comer dos
sacrifícios com eles. Paulo agora mostra quais foram os maus resultados
dessa prática.
Substitui “que tens conhecimento” por “aquele que tem conhecimento”.
Na segunda parte, onde se lê, “o que é fraco”, adicionei “não obstante”. Em
minha opinião, tal coisa era necessária a fim de clarificar o pensamento de
Paulo. Porque ele faz uma concessão, como se quisesse dizer: “Admita-se
que de fato tens conhecimento; mas alguém que olha para ti, e que não se
acha equipado com [o mesmo] conhecimento, é estimulado por teu exemplo
a aventurar-se a fazer o mesmo que estás fazendo, quando, na verdade, ele
jamais teria feito um movimento sequer se antes não lhe tivesses
estimulado. Agora, porém, que está tentando imitar alguém, ele acredita que
o exemplo desse alguém o mune de todo e qualquer pretexto, quando a
verdade é que em todo o tempo ele esteve sob o domínio de uma má
consciência acerca do que fazia.” Porquanto ‘fraqueza’, aqui, significa
ignorância, ou uma consciência oscilante. Estou bem ciente da forma como
outros o explicam. Consideram esta ‘pedra de tropeço’ [escândalo] no
sentido de pessoas ignorantes, as quais se deixam influenciar pelo exemplo
de outros, supondo que, agindo assim, estão oferecendo algum gênero de
culto a Deus. Todavia, tal noção está completamente fora de sintonia com a
intenção de Paulo. Pois ele achou falta neles (como já disse), visto que
estavam incitando o ignorante a agir contra sua consciência, o qual se
precipitava contra algo sobre o qual não tinha a menor idéia se era certo ou
não. Induzir significa aqui encorajar – ser confirmado.14 Mas o encorajamento
que não tem por fundamentado a sã doutrina é realmente algo nocivo.
11. E teu irmão perecerá. Notemos bem que, se o leitor fizer alguma
coisa nutrindo dúvida ou contra sua consciência, estará pecando
seriamente, mesmo que os homens tentem convencê-lo de que tal coisa é
algo sem importância. Todo nosso esforço, ao longo de toda nossa vida,
deve ser para satisfazermos à vontade divina. E estar contra essa divina
vontade é não só uma questão que envolve nossas ações externas, mas
também nossos pensamentos, quando nos permitimos agir contra nossa
consciência, mesmo que tal atitude não seja em si mesma errada.15 É só nos
lembrarmos de que estamos nos precipitando de ponta cabeça rumo a uma
hecatombe, toda vez que persistirmos em nosso próprio caminho, em
franca oposição a nossa consciência.
Fora este fato, leio esta afirmação na forma interrogativa: perecerá ele
através de teu conhecimento? É como se ele dissesse: “É provável que teu
conhecimento conduza teu irmão à ruína? Tens conhecimento do que é
certo simplesmente com o objetivo de destruir alguém?” Ele usou o termo
irmão com o fim de condenar os coríntios em seu orgulho e cruel
indiferença para com aqueles de sua consciência. Eis o que pretendia dizer:
“Aquele a quem menosprezas é deveras fraco, mas ele ao mesmo tempo é
teu irmão, porque Deus o adotou. Daí, teu coração se revela impiedoso
quando não demonstra qualquer consideração por teu irmão.” Mas existe
ainda mais força na afirmação subseqüente, ou, seja, que o ignorante ou
fraco também foi redimido pelo sangue de Cristo. Pois não se pode imaginar
nada mais mesquinho do que isto: enquanto Cristo não hesitou em morrer
para que o fraco não viesse a perecer, nós, de outro lado, não nos
importamos um mínimo sequer pela salvação dos homens e mulheres que
foram redimidos por tal preço. Eis um fato memorável, do qual descobrimos
quão preciosa a salvação de nossos irmãos deve ser a nossos olhos, não só
a de todos eles em conjunto, mas também a de cada indivíduo, diante do
fato de que o sangue de Cristo foi vertido por cada um individualmente.
12. E assim, pecando contra os irmãos etc. Pois se a alma de cada
pessoa fraca custa o preço do sangue de Cristo, então aquele que, por causa
de uma porção insignificante de comida, se faz responsável pelo rápido
regresso à morte de um irmão redimido por Cristo, mostra quão desprezível,
a seus olhos, é o sangue de Cristo. Daí, um descaso como este é um franco
insulto a Cristo. Já dissemos como uma consciência fraca pode ser
injuriada, a saber, quando é ela estimulada a proceder erroneamente [v. 10],
de modo que tal pessoa é indiferente e tola demais indo além do direito que
ela pensa ter.
13. Por isso, se a comida leva meu irmão a tropeçar. Com vistas a
reprovar mais severamente sua desdenhosa liberdade, ele assevera que não
devemos meramente nos afastar de uma festa em particular, mas, para não
ofender um irmão, devemos, inclusive, deixar de comer carne para o resto
da vida. Ele não prescreve meramente o que deve ser feito, mas afirma que
ele mesmo dará o exemplo. Naturalmente, a expressão é hiperbólica, pois
dificilmente seria possível que alguém se abstenha de carne durante toda
sua vida se continua a levar vida normal entre outras pessoas.16 Mesmo
assim, ele está dizendo que jamais se valerá da liberdade que possui, se esta
levar o fraco a tropeçar. Porquanto a liberdade só será útil se for controlada
pela regra do amor. Gostaria que uma cuidadosa atenção fosse dada a este
ponto por aqueles que se esforçam por reverter tudo em seu próprio
benefício, de maneira que não permitem que vigore sequer a menor parcela
de seus direitos, caso seja para o bem de um irmão. Também desejo que
atentem bem não só para o que Paulo ensina, mas também para o que ele
põe diante de nós através de seu próprio exemplo. Quão superior a nós é
Paulo! Quando ele, pois, não hesita a sujeitar-se a esse ponto por amor de
seus irmãos, qual de nós não se submeteria às mesmas condições?
Não obstante, por mais difícil que este ensino seja na prática, contudo,
até onde vai seu significado, não existe qualquer dificuldade exceto onde ele
foi corrompido por alguns com glosas irrelevantes, e por outros com
distorções nocivas. Ambos os grupos erram ao interpretar o termo ofender.
Pois tomam ofender no sentido de “incorrer no ódio ou desprazer dos
homens”; ou, o que é quase a mesma coisa, “fazer o que lhes desagrada, ou
não lhes é totalmente agradável”. O contexto, porém, é suficientemente
claro, a saber: que simplesmente significa obstruir o caminho de um irmão
através de um mau exemplo (como um obstáculo que lhe é posto no
caminho) para desviar seu curso, ou propiciar-lhe ocasião para cair.
Portanto, Paulo não está tratando aqui de conservar o favor dos homens,
mas de dar assistência ao fraco para evitar que fracasse, bem como lhe
fornecer diretrizes sábias para que se mantenha na vereda certa. Mas (como
eu já disse), no tocante à primeira classe, ela é constituída de tolos;
enquanto que a segunda classe é constituída de perversos impudentes.
Os primeiros são néscios, os quais raramente permitem que os cristãos
usem algumas das coisas indiferentes, com receio de que venham a
escandalizar aos que são supersticiosos. Dizem eles: “Paulo, nesta
passagem, está proibindo tudo quanto se presta a suscitar escândalo. Ora,
comer carne na sexta-feira é uma maneira segura de provocar escândalo.
Portanto, devemos abster-nos de fazê-lo, não só quando estamos na
presença de pessoas fracas, mas em toda e qualquer semana, sem exceção,
visto que nunca sabemos quando as teremos por perto enquanto
comemos.” Prefiro ignorar a forma errônea como entendem o verbo
escandalizar [Scandalizandi]. Mas estão completamente equivocados em não
dar atenção ao fato de Paulo aqui estar denunciando aos que fazem uso
inadequado de seu conhecimento, quando não deveriam proceder assim
diante dos fracos, as mesmas pessoas a quem não se preocupam em instruir.
Portanto, as causas da reprovação serão removidas se de antemão o ensino
foi ministrado. Além disso, Paulo não nos ordena a calcular se pode haver
ocasião de escândalo naquilo que fazemos, exceto quando o perigo estiver
diante de nossos olhos.
E agora passamos a analisar os componentes do outro grupo. São os
supostos seguidores de Nicodemos,17 os quais sob tal pretexto se
conformam aos perversos, participando de sua idolatria, e não contentes
em justificar o que fazem incorretamente, desejam também cegar os demais
para que não vejam a mesma necessidade. A condenação de sua ímpia
hipocrisia não poderia ser melhor expressa do que Paulo faz aqui, pois ele
mostra claramente que, por meio de seu exemplo, estavam estimulando os
fracos a tomarem parte nos cultos idolátricos, causando sérias ofensas
tanto a Deus quanto aos homens. Entretanto, energicamente se defendem
dessa denúncia, diligiciando-se em mostrar que as superstições devem ser
acalentadas nos corações dos ignorantes, e que devemos pôr-nos em seu
caminho como guias à idolatria, para que uma franca condenação por
idolatria não os escandalize. À luz de tal fato, não lhes darei a honra de
desperdiçar tempo em refutar suas impudentes sugestões! Simplesmente
aconselharia a meus leitores que façam comparação dos dias de Paulo com
os nossos, e decididam por si mesmos se é permissível estar presentes às
missas e outras abominações, dando assim tanta ocasião de escândalo para
os fracos.
1. Não sou apóstolo? Não sou livre? Não vi a Jesus Cristo nosso Senhor? Não sois vós
minha obra no Senhor?
2. Se não sou apóstolo para outrem, ao menos o sou para vós; porque vós sois o selo de
meu apostolado no Senhor.
3. Esta é minha resposta aos que me julgam:
4. Não temos o direito de comer e beber?
5. Não temos o direito de levar conosco uma irmã como esposa, como fazem os demais
apóstolos, e como os irmãos do Senhor e Cefas?
6. Ou somente eu e Barnabé não temos o direito de abster-nos de trabalhar?
7. Quem em qualquer tempo vai à guerra a suas próprias custas? Quem planta uma
vinha e não come dela? Ou quem apassenta um rebanho e não come do leite do
rebanho?
8. Digo estas coisas como homem? Ou não diz a lei também o mesmo?
9. Porque está escrito na lei de Moisés: Não amordaces a boca do boi que debulha o
grão. Porventura é de bois que Deus se preocupa?
10. Ou não diz ele estas coias por nossa causa? Sim, é por nossa causa que está escrito:
aquele que lavra deve lavrar com esperança; e aquele que debulha com esperança deve
ser participante de sua esperança.
11. Se vos semeamos as coisas espirituais, será demais que de vós colhamos vossas
coisas carnais?
12. Se outros participam deste direito sobre vós, e não temos nós muito mais? Não
obstante, não usamos deste direito; antes suportamos todas as coisas, para não
pormos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo.
1. Non sum liber? non sum Apostolus?1 nonne Iesum Christum Dominum nostrum vidi?
nonne opus meum vos estis in Domino?
2. Si aliis non sum Apostolus, vobis tamen sum: sigillum enim Apostolatus mei vos estis in
Domino.
3. Hæc mea defensio est apud eos, qui in me inquirunt.
4. Numquid non habemus poestatem edendi et bibendi?
5. Numquid potestatem non habemus circumducendæ uxoris sororis, quemadmodum et
reliqui Apostoli, et fratres Domini, et Cephas?
6. An ego solus et Barnabas non habemus potestatem hoc agendi?2
7.Quis militavit suo sumptu unquam? quis plantat vitem, et ex fructu ejus non comedit?
quis pascit gregem, et lacte gregis non vescitur?
8. Num secundum hominem hæc dico?
9. Numquid lex quoque eadem non dicit? in lege enim Mosis (Deut. xxv.4) scriptum est:
non obligabis os bovi trituranti: numquid boves curæ sunt Deo,
10. Vel propter nos omnino dicit? Et sane propter nos scriptum est: quoniam debet sub
spe, qui arat, arare, et qui triturat, sub spe participandi. (Alias: quia debeat sub spe qui arat,
arare, et qui triturat sub spe, spei suæ particeps esse debeat.)
11. Si nos vobis spiritualia seminavimus, magnum, si carnalia vestra metamus?
12. Si alii hanc in vos sumunt potestatem, an non magis nos? atqui non usi sumus
facultate hac: sed omnia sufferimus, ut ne quam ofrensionem demus Evangelio Christi.
1. Não sou livre? Ele ratifica por vias de fato o que dissera
imediatamente antes, ou, seja, que jamais provaria carne em toda sua vida se
isso trouxesse escândalo a um irmão. Ao mesmo tempo deixa bem claro que
não poderia exigir coisa alguma deles o que ele mesmo não tivesse posto em
prática. E não há dúvida de que a justiça natural requer que todo aquele que
impõe alguma obrigação sobre outrem, deve antes sujeitar-se a ela. Todavia,
o mestre cristão deve, acima de todos, disciplinar-se de tal forma que todos
sempre vejam seu ensino ratificado pelo exemplo de sua própria vida
[prática]. Sabemos de nossa própria experiência que o que Paulo estava
pedindo dos coríntios é algo excessivamente difícil, a saber, que por amor a
seus irmãos deveriam restringir o uso da liberdade [potestas] que lhes fora
concedida. Ele não teria ido muito longe com isso caso não tivesse, ele
mesmo, sido de todos o primeiro a dar o exemplo. E deveras ele se
empenhava a agir assim, mas, visto que todos eles não confiaram na força
de uma mera promessa dele sobre o futuro, então lhes narra o que já havia
feito. Ele cita um notável exemplo de sua renúncia da liberdade, da qual em
outras circunstâncias teria usufruído, e ao proceder assim tira dos falsos
apóstolos a chance de criticá-lo. Isso se deu quando ele preferiu ganhar sua
própria subsistência por meio de seus próprios esforços, em vez de buscar
apoio às custas dos coríntios, aos quais oferecera o evangelho.
E agora prossegue discutindo com mais detalhes sobre os direitos que
pertenciam aos apóstolos, ou, seja, de receber alimentos e vestimentas. Uma
das razões por que agia assim foi para que tivessem maior incentivo de
seguir seu exemplo, ao resumir muitas coisas por amor de seus irmãos; pois
na verdade continuavam injustamente irredutíveis sobre as condições de
seus direitos. A outra razão que levou Paulo a abordar esta matéria foi para
pôr a descoberto a injustiça dos que queriam vê-lo em situação embaraçosa,
pois se aproveitavam de algo que jazia além da crítica como justificativa
para desmerecê-lo. Ele faz uso de perguntas retóricas com o fim de imprimir
maior força a seu argumento. A pergunta “Não sou livre?” é de caráter geral.
Quando aduz: “Não sou apóstolo?”, ele restringe a pergunta a uma espécie
de liberdade particular, como se quisesse dizer: “Se sou um apóstolo de
Cristo, por que minha situação deve ser pior que a dos outros?” Assim ele
prova sua liberdade com base no fato de ser apóstolo.
Não vi a Jesus Cristo nosso Senhor? Ele cuida em acrescentar este
ponto para que não viesse a ser de alguma forma considerado inferior ao
restante dos apóstolos. Pois aqueles que eram hostis e invejosos eram
altissonantes em suas reiteradas asseverações da idéia: tudo o que Paulo
possuía do evangelho ele o recebera das mãos de homens [segunda mão],
pois jamais vira a Cristo pessoalmente. É verdade que ele jamais estivera na
companhia de Cristo enquanto este esteve no mundo; mas Cristo lhe
aparecera após sua ressurreição. Ver Cristo em sua glória imortal, porém, é
um maior privilégio do que vê-lo vestido da humildade de sua carne mortal.
Paulo está se referindo a sua visão mencionada no capítulo 15.8 desta
epístola, e a menciona em Atos [caps. 22 e 26]. Nsta questão particular,
portanto, ele procura situar sua vocação além de qualquer disputa, porque,
mesmo que não tenha sido classificado como um dos doze, a escolha que
Cristo fez conhecida desde o céu não era menos autoritativa.
Não sois vós minha obra no Senhor? Em seguida ele assenta seu
apostolado sobre as bases de seu efeito, ou, seja, por meio de sua pregação
do evangelho ele conquista os coríntios para o Senhor. Ora, Paulo apresenta
uma forte defesa de si mesmo ao qualificar a conversão dos coríntios como
sendo obra dele, porquanto ela envolve uma espécie de nova criação da
alma.
Todavia, como isso se adequa ao que afirmou em 1 Coríntios 3.7, ou,
seja: “o que planta não é nada, e o que rega nada é”? Minha resposta é como
segue: visto que Deus é a causa eficiente, enquanto que o homem, com sua
proclamação, é apenas o instrumento, o qual por si só nada é, devemos
sempre referir-nos à eficácia do ministério de tal maneira que todo o louvor
da obra permaneça exclusivamente em Deus. Mas, às vezes, quando se faz
referência ao ministério, o homem é comparado a Deus, e então se torna um
fato que “o que planta não é nada, e o que rega nada é”. Pois o que pode ser
deixado ao homem se ele é, com Deus, participante da obra? Assim a
Escritura reduz os ministros a nada, ao compará-los com Deus; mas quando
se trata apenas do ministério, e não se faz nenhuma comparação com Deus,
sua eficácia é exaltada em termos candentes, como se faz aqui. Pois, em tais
circunstâncias, a questão não é o que o homem pode fazer por si próprio à
parte de Deus, mas, antes, que Deus mesmo, que é o agente, se junta ao
instrumento, e o poder do Espírito é adicionado ao labor do homem. Em
outros termos, a questão não é o que o homem por si só executa com o uso
de seus próprios recursos, mas o que Deus faz através do homem.
2. Se não sou apóstolo para outrem. A essência desta afirmação é que
Paulo deseja estabelecer a autoridade de seu apostolado entre os coríntios,
de modo que o mesmo seja posto acima de qualquer disputa. Diz ele: “Se há
alguém que nutre dúvidas acerca de meu apostolado, que este não seja
vosso caso, porque, visto que plantei vossa igreja por intermédio de meu
ministério, ou não sois crentes, ou sois obrigados a reconhecer-me como
apóstolo.” E para que não viesse a dar a impressão de escudar-se meramente
em palavras, ele os lembra que os fatos falam por si mesmos, pois Deus
pusera seu selo em seu apostolado na forma de fé dos próprios coríntios.
Mas se alguém alega que isso se aplica também aos falsos apóstolos, os
quais ajuntam seguidores a seu redor, respondo que a genuína doutrina está
acima de todas as coisas requeridas, a fim de que alguém tenha uma
confirmação de seu ministério à vista de Deus a partir de seus efeitos.
Portanto, se os impostores conseguem enganar algumas das pessoas
comuns, e até mesmo nações e reinos, com suas mentiras, não há nada aqui
que lhes propicie base com que atiçar seu orgulho. Mas ainda que as
pessoas que não proclamam o evangelho “com sinceridade” (como temos
em Fp 1.17) são às vezes os meios usados para a expansão do reino de
Cristo, Paulo é plenamente justificado em deduzir dos resultados de sua
obra que realmente ele fora enviado por Deus; pois as estruturas da Igreja de
Corinto eram de tal solidez que as bênçãos divinas eram nitidamente
visíveis nela; e tal fato deve ter servido para produzir a confirmação do
ofício de Paulo.
3. Minha defesa. Além do tema principal que ora discute, ele parece ter
tido o propósito subsidiário aqui de pôr um fim nas más interpretações dos
que protestam contra sua vocação, como se ele pertencesse a uma classe
ordinária de ministros. Diz ele: “Estou acostumado a valer-me de vós como
minha defesa, sempre que alguém procura denegrir a honra de meu
apostolado.” O resultado disso é que os coríntios estão prejudicando-se e
agindo contra seus próprios interesses, sempre que deixem de reconhecê-lo
como apóstolo. Porque, se sua fé fosse solene evidência do apostolado de
Paulo, e sua defesa contra os caluniadores, uma coisa não podia ser
subvertida sem que a outra se desmoronasse juntamente.
Enquanto alguns lêem “aqueles que me questionam”, eu traduzi “aqueles
que inquirem sobre minha situação”; porque ele visa aos que faziam de seu
apostolado3 uma questão contestável. Concordo com os escritores latinos
que falam de o acusado ser interrogado4 legalmente; mas o significado da
palavra ἀνακρίνειν, que Paulo usa aqui, parece-me ser melhor realçada por
minha expressão.
4. Não temos o direito de comer ou beber? À luz do que acabara de
dizer, ele conclui que tinha direito de receber deles alimento e vestuário,5
pois comia e bebia, porém não às custas da Igreja. Portanto, esta foi uma das
maneiras pelas quais ele então renunciara sua liberdade; a outra era o fato
de não ter esposa, cuja manutenção seria um peso sobre todos eles. Eusébio
infere destas palavras que Paulo era casado, mas que deixara sua esposa em
algum lugar particular, de modo que ela não constituísse qualquer ônus às
igrejas; mas esta é uma falsa conjetura, pois isso poderia ser facilmente
declarado por uma pessoa solteira.
Ao chamar uma esposa cristã de irmã, Paulo mostra, antes de tudo, quão
forte e amorável [amabilis] deve ser a união entre um esposo e uma esposa
crentes, pois a mesma é mantida por um duplo compromisso. Em seguida
propõe que sejam muito modestos e ponderados em seu trato recíproco. É
também oportuno inferir daqui que o matrimônio é tudo, menos algo
inadequado para os ministros da Igreja. Não menciono agora o fato de os
apóstolos fazerem uso dele, pois logo faremos referência ao exemplo deles.
Paulo, porém, está mostrando aqui, de forma geral, o que a todos era
permitido fazer.
5. Como fazem os demais apóstolos. Em adição à comissão do Senhor,
ele faz referência ao que os outros estavam habituados a fazer. E a fim de
expressar a renúncia de seus direitos de maneira ainda mais clara, avança
passo a passo. Antes de tudo cita o exemplo dos apóstolos. Então
acrescenta: “Mais que isto, os próprios irmãos do Senhor não tiveram
qualquer dificuldade em ter esposa; sim, e o que é mais [comprobatório], o
próprio Pedro, a quem, de comum acordo, é dado o primeiro lugar, admite
para si o mesmo direito.”
Por “irmãos do Senhor” ele quer dizer João e Tiago, que “era reputados
como colunas”, segundo expressou em Gálatas 2.9. E em harmonia com o
costume usual da Escritura, ele chama irmãos aos que estavam relacionados
a ele pelo nascimento.
Quem quer que se proponha encontrar nesta passagem apoio para o
papado estará se fazendo de tolo. Concordamos plenamente que Pedro era
de fato reconhecido como o primeiro entre os apóstolos, pois em toda
companhia de pessoas é sempre necessário que haja alguém que assuma a
liderança sobre os demais. E eles mesmos estavam prontos a respeitar
Pedro, por causa da riqueza de seus excelentes dons; pois é justo que todo
aquele que se sobressaia a outros nos dons da graça de Deus deve ser tido
em elevada consideração e honra. A primazia de Pedro, porém, não era
senhorio; aliás, não havia qualquer comparação entre esta e a autoridade
absoluta de um senhor [dominatio]. Porque, ainda que se distinguisse entre
os demais, ele era refutável em relação a seus colegas. Além disso, uma coisa
é ser particularmente o primeiro na Igreja; e completamente outra é
reivindicar para si a sabedoria ou preeminência sobre o mundo inteiro.
Ainda que concordássemos com tudo isso no tocante a Pedro, o que teria
isso a ver com o papa? Pois assim como Matias sucedeu a Judas [At 1.26],
também algum Judas pode muito bem assumir o lugar de Pedro. Sim, e agora
vemos, após um período de mais de 900 anos entre seis sucessores, ou, pelo
menos, os que se vangloriaram de ser seus sucessores, que nenhum deles é
em nada mais elevado do que Judas. Mas este não é o lugar apropriado para
se discutirem essas coisas (vejam-se minhas Institutas, 4.6).
Devemos notar um último ponto aqui, a saber: que os apóstolos não se
abstinham do matrimônio, como o fazem os clérigos papais que tanto o
detestam, visto que o mesmo não convém à santidade de sua ordem. Mas foi
depois dos apóstolos que os homens elucidaram o notável exemplo de
sabedoria, crendo que os sacerdotes do Senhor são contaminados caso
tenham ato sexual com suas legítimas esposas. Finalmente, foi assim que o
papa Sirício não hesitou em chamar o matrimônio “uma impureza da carne,
na qual ninguém pode agradar a Deus”. O que, pois, acontecerá aos
desafortunados apóstolos, que persistiram nesta impureza até sua morte?
Mas aqui os papistas procuram evadir-se do problema com um laivo sutil de
ladino raciocínio de sua própria maquinação. Pois afirmam que os
apóstolos se privaram do ato sexual, mas que levavam suas esposas para os
assistirem, de modo que pudessem colher os frutos do evangelho; em
outros termos, sua manutenção à expensa de outras pessoas. Como se eles,
na verdade, não pudessem ser sustentados pelas igrejas, senão que
vagassem de um lugar a outro! E ainda como se fosse possível crer que
aquelas esposas percorressem todos os lugares espontaneamente, e,
quando não houvesse mais necessidade, simplesmente com o fim de
viverem na ociosidade à expensa pública! A explicação de Ambrósio, de que
a referência é a esposas de outros homens, os quais seguiam solicitamente
os apóstolos para ouvir o que tinham a ensinar, é excessivamente forçada.
7. Quem vai à guerra a suas próprias custas? Usa-se aqui o presente do
indicativo do verbo usado6 neste sentido: “costuma-se ir à guerra.” Contudo
o pus no pretérito de modo a emitir um som mais abrupto. Ao fazer a
transição, com o uso de três comparações, todas elas extraídas da vida
cotidiana dos homens, Paulo agora afirma que estava plenamente disposto a
viver às custas da Igreja; e faz isso para mostrar que está reivindicando para
si não mais do que requer a consideração humana (humanitas) ordinária. A
primeira é tirada da lei militar, pois os soldados são geralmente assalariados
dos erários públicos. A segunda é derivada do viticultor, pois este planta
uma vinha, não como entretenimento, mas para colher dela seus frutos. A
terceira é extraída da pecuária, pois o pecuarista não trabalha por nada,
senão para desfrutar do leite do rebanho, ou, seja, o produto provê sua
manutenção. Quando a justiça natural estabelece isso como sendo a
maneira mais justa de se proceder, alguém seria tão injusto ao ponto de
negar ao pastor da igreja o suprimento de suas necessidades? Embora
pudesse suceder que alguns servissem como soldados a suas próprias
custas, como, por exemplo, os romanos dos tempos antigos, quando
nenhum tributo era ainda pago e não havia nenhuma taxa,7 isso não milita
contra o que Paulo está dizendo, pois ele está simplesmente tomando seu
argumento do costume comum e universalmente praticado.
8, 9. Digo estas coisas como homem? No caso de alguém recusar-se a
ser convencido, dizendo que é uma questão completamente diferente no
que se refere às coisas de Deus, e por isso Paulo desperdiçou seu tempo
introduzindo tantos símiles, ele agora acrescenta que a mesma coisa é
estabelecida pelo Senhor. Falar segundo o costume dos homens às vezes
significa falar segundo o entendimento pervertido da carne, como em
Romanos 3.5. Aqui, porém, significa lidar somente com aquelas coisas com
as quais os homens estão familiarizados, e as quais só são válidas nos
negócios humanos (como se diz). Mas o fato é que Deus mesmo queria que
os homens recebessem salários como recompensa de seus labores. Paulo
prova isso à luz da proibição divina de amordaçar o boi quando se debulha
o grão; e ao aplicá-lo às circunstâncias como está fazendo, ele diz que Deus
não estava preocupado com bois, e, sim, estava pensando nos homens.
Primeiro, pode-se perguntar por que Paulo faz uma escolha específica
deste texto-prova, quando ilustrações muito mais claras lhe estavam
disponíveis na lei; por exemplo, Deuteronômio 24.15: “Em seu dia lhe darás
seu salário, antes do pôr-do-sol.” Mas, quem prestar mais detida atenção a
esse fato compreenderá que há mais força neste texto, no qual o Senhor nos
pede que cuidemos do gado, porque disso pode-se ver, ao inferir do menor
para o maior, que quando deseja que os animais mudos sejam bem tratados,
ele requer que muito maior eqüidade seja demonstrada pelos homens em
seu trato recíproco. Quando ele diz que “Deus não se preocupa com bois”,
não devemos entendê-lo mal, como se sua intenção fosse deixar os bois fora
da providência divina, quando Deus não negligencia nem mesmo o mais
insignificante pardal [Mt 6.26; 10.29]. Além disso, não devemos cometer o
equívoco de imaginar que Paulo pretenda explicar este mandamento
alegoricamente; pois alguns espíritos de cabeça oca fazem disto uma escusa
para transformar tudo em alegoria, de modo que convertem cães em
homens, árvores em anjos, e convertem toda a Escritura num divertido jogo.
Mas o que Paulo realmente pretende é muito simples: ainda que o Senhor
ordene consideração para com os bois, ele assim o faz não por amor aos
bois, mas, antes, em consideração para com os homens, em favor de quem
os próprios bois foram criados. Portanto, esse tratamento humano
dispensado aos bois deve ser um incentivo, nos sensibilizando a tratar uns
aos outros com consideração e justiça, como Salomão o expressa em
Provérbios 12.10: “O justo atenta para a vida de seus animais, mas o coração
dos perversos é cruel.” O leitor deve entender, pois, que Deus não se
preocupa com bois, no sentido em que os bois eram as únicas criaturas em
sua mente quando promulgou a lei, pois ele estava pensando nos homens e
queria que se habituassem a ser atenciosos em seu modo de agir, de modo a
não defraudar o trabalhador de seu salário. Porque não é o boi que lidera a
aradura e a debulha, e, sim, o homem; e é pelos esforços do homem que o
próprio boi se põe a trabalhar. Portanto, o que adiciona em seguida – “o que
lavra deve lavrar com esperança” etc. – é uma interpretação do mandamento,
como se dissesse que ele se estende, em termos gerais, envolvendo
qualquer gênero de recompensa pelo trabalho.
10. Porque o que lavra deve lavrar com esperança. Há duas redações
neste versículo, mesmo nos manuscritos gregos, porém a que tenho
adotado é mais geralmente aceita: “Aquele que debulha na esperança de
compartilhar de sua esperança.” Ao mesmo tempo, a redação que não repete
esperança duas vezes na segunda sentença parece mais simples e mais
natural.8 Portanto, senti-me livre para escolher, e poderia ter preferência pela
redação nestes termos: “Aquele que lavra deve lavrar com esperança; e
aquele que debulha, com esperança de participar.” Não obstante, visto que
quase todos os manuscritos concordam em seguir a primeira redação, e o
significado não é afetado, não pretendi separar-me dela.
Entretanto, Paulo se põe a explicar o mandamento citado no versículo 9,
e nesta conexão diz que seria injusto que o lavrador exerça seu trabalho de
aradura e de debulha infrutiferamente, senão que todo o objetivo de seu
labor é sua esperança de recolher os frutos. Nesse caso, é correto inferir que
isso se aplica igualmente aos bois; mas a intenção de Paulo é estender-se
mais e fazê-lo aplicável particularmente aos homens. Ora, diz-se que o
lavrador “participa de sua esperança” quando desfruta do que produz, do
produto de sua colheita, o qual certamente esperava enquanto lavrava [a
terra].
11. Se vos semeamos as coisa espirituais. Restava ainda uma área para a
cavilação. Pois alguém poderia alegar que toda obra relativa à vida, neste
mundo, será definitivamente recompensada com alimento e vestuário; que a
aradura e a debulha produzem retorno do qual participam os que realmente
trabalham; mas que o evangelho faz parte de uma categoria completamente
distinta, pois seu fruto é espiritual; e assim o ministro da Palavra, caso
queira receber o fruto que corresponda a seu labor, não deve receber coisa
alguma material. Assim, na hipótese de surgir alguém com tal cavilação, o
argumento de Paulo é do maior para o menor. Poderia ter expresso assim:
“Embora o alimento e o vestuário pertençam a uma categoria distinta da
obra que o ministro realiza, não obstante, qual é o problema se tu estás
pagando por algo que está acima de qualquer preço, com algo muito barato
e desprezível? Pois assim como a alma é, em natureza, muito superior ao
corpo, também a Palavra de Deus pertence a uma classe muito mais elevada
do que o alimento material,9 uma vez que ela é o alimento da alma.”
12. Se outros participam desse direito sobre vós, não temos muito
mais? Uma vez mais ele apresenta defesa de seu próprio direito, referindo-se
ao exemplo de outrem. Pois, por que unicamente a ele se negaria o que
outros reivindicavam como lhes sendo de pleno direito? Porque, visto que
ninguém trabalhara mais intensamente do que ele entre os coríntios,
ninguém era merecedor de uma recompensa maior. Entretanto, ele não narra
o que fizera, e, sim, o que teria feito em virtude de seu direito, se não se
abstivera voluntariamente de usá-lo.
Não obstante, não temos usado desse direito. Ele agora se volve
diretamente para o cerne do assunto, ou, seja, que espontaneamente
renunciara a esse direito, o qual ninguém poderia negar-lhe; e que preferiu
suportar tudo em vez de fazer uso desta liberdade, de maneira a não impedir
o progresso do evangelho. Portanto, ele deseja que os coríntios sigam seu
exemplo e conservem esta meta diante de seus olhos: não colocar nenhum
obstáculo no caminho do evangelho, nem retardar seu progresso; porquanto
eles, de sua parte, tinham feito exatamente a mesma coisa que afirmavam ser
ele quem fazia. E aqui ele confirma o que já havia dito, a saber: que devemos
atentar bem para o que é mais proveitoso.
13. Não sabeis vós que os que ministram as coisas sagradas comem das coisas do
templo, e os que vivem junto do altar recebem sua porção do altar?
14. Assim também ordenou o Senhor aos que proclamam o evangelho, que vivam do
evangelho.
15. Mas de nenhuma dessas coisas tenho usado, e não escrevi isto para que se faça
assim comigo; porque melhor me fora morrer do que alguém me privar desta glória.
16. Porque, se eu prego o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é imposta
esta obrigação; pois ai de mim se não pregar o evangelho.
17. Portanto, se o faço de livre vontade, tenho galardão; porém, se não o faço de livre
vontade, é a responsabilidade de despenseiro que me está confiada.
18. Então, qual é meu galardão? Que ao pregar o evangelho, que o faça sem
remuneração, para não fazer pleno uso de meu direito no evangelho.
19. Porque, embora estivesse livre de todos os homens, eu trouxe a mim mesmo sob a
servidão de todos, para lucrar muito mais.
20. E para com os judeus me tornei um judeu, a fim de ganhar os judeus; para com
aqueles que se acham debaixo da lei,
21. como se vivesse debaixo da lei, não estando eu debaixo da lei; para com os que
vivem sem lei, como se vivesse também sem lei, não estando eu sem lei para com Deus.
Mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem sem lei.
22. Fiz-me fraco para com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me de tudo para com
todos, a fim de, por todos os meios, salvar alguns.
13. Nescitis, quod qui sacris operantur, ex sacrario10 edunt? et qui altari ministrant (ad
verbum: adstant) altaris sunt participes?
14. Sic et Dominus ordinavit, ut qui Evangelium annuntiant, vivant ex Evangelio.
15. Ego autem nullo horum usus sum: neque vero hæc scripsi, ut ita mihi fiat: mihi enim
satius est mori, quam ut gloriam meam quis exinaniat.
16. Nam si evangelizavero, non est quod glorier: quandoquidem necessitas mihi
incumbit, ut vae sit mihi, si non evangelizem.
17. Si enim volens hoc facio, mercedem habeo: si autem invitus, dispensatio mihi est
credita.
18. Quæ igitur mihi merces? ut quum evangelizo, gratuitum impendam Evangelium
Christi, ut non abutar potestate mea in Evangelio.
19. Liber enim quum essem ab omnigus, servum me omnibus feci, ut plures lucrifaciam.
20. Itaque factus sum Iudæis tanquam Iudæus, ut Iudæos lucrifaciam: iis qui sub Lege
erant, tanquam Legi subiectus, ut eos qui erant sub Lege Iucrifaciam;
21. Iis qui sine Lege erant, tanquam exlex, (tametsi non absque Lege, Deo, sed subiectus
Legi Christi,) ut eos qui sine Lege erant lucrifaciam.
22. Factus sum infirmis tanquam infirmus, ut infirmos lucrifaciam: omnibus omnia factus
sum, ut omnino aliquos servem.
13. Não sabeis vós? À parte do tema principal que ora ele discute, Paulo
parece ter gasto muito tempo na discussão deste ponto, visando a
repreender indiretamente os coríntios por sua ignóbil atitude em permitir
que os ministros de Cristo fossem injuriados em relação ao que têm justo
direito de receber. Porque, se Paulo não se abstivesse voluntariamente do
uso de sua liberdade, corria-se o risco de ser obstruído o caminho para o
evangelho. Os falsos apóstolos jamais teriam vencido essa batalha, se a
ingratidão, à qual os coríntios já se inclinavam, não tivesse aberto o
caminho para suas más interpretações. Por certo que os coríntios deveriam
tê-los repelido vigorosamente, porém o que fizeram foi demonstrar sua
extrema credulidade, de modo que já teriam se prontificado a rejeitar o
evangelho, se Paulo tivesse feito uso de seu direito. Tal desdém pelo
evangelho, bem como tal crueldade para com seu apóstolo, merecia uma
reprovação ainda mais severa do que esta; Paulo, porém, encontrou outra
ocasião de tocar no assunto indireta e brandamente, com sua costumeira
modéstia, para que pudesse admoestá-los sem afrontá-los.
Uma vez mais ele faz uso de um símile diferente para provar que não
tirara vantagem de um direito que o Senhor lhe outorgara. E não mais lança
mão de exemplos de outras fontes, porém mostra que o Senhor ordenou que
as igrejas supram seus ministros com os meios de subsistência. Há aqueles
que crêem que realmente há duas comparações neste versículo: sendo a
primeira uma referência aos sacerdotes do Senhor; a outra, porém, sendo
aqueles que ofereciam sacrifícios aos deuses pagãos. Não obstante, sinto-me
inclinado a crer que Paulo, como usualmente faz, usou de diferentes termos
para descrever a mesma coisa. Um argumento derivado do costume dos
pagãos certamente teria sido muito deficitário, pois os proventos dos
sacerdotes não eram destinados às necessidades tais como alimentos e
vestuário, mas a mobílias dispendiosas, a esplendor régio e luxo
extravagante. Estas coisas não teriam nenhum suporte no tema em questão.
Entretanto, não me oponho ao ponto de vista de que Paulo estava fazendo
alusão a diferentes tipos de ministros, pois havia sacerdotes de uma ordem
mais elevada (maioris ordinis), e posteriormente houve os levitas, que eram
seus inferiores, como se sabe muito bem. Mas dificilmente seria este o
ponto.
O ponto é o seguinte: os sacerdotes levitas eram os ministros da igreja de
Israel; e o Senhor ordenara que fossem supridos de seu próprio ministério
com o necessário para a vida. Portanto, o mesmo princípio de justiça
deveria ser observado hoje no caso dos ministros da Igreja Cristã; não
obstante, os ministros da Igreja de Cristã são aqueles que pregam o
evangelho. Este versículo é citado pelos romanistas quando querem provar
que aqueles que têm o estômago vazio devem ser saciados, para que tenham
como efetuar seus sacrifícios; mas prefiro deixar que as próprias crianças
decidam quão ridículo é este raciocínio. Estes homens lançam mão
avidamente de tudo o que a Escritura diz sobre os meios de subsistência
que devem ser atribuídos aos ministros, ou sobre o respeito que se deve ter
por eles, e torcem tudo para que se adéqüe a eles mesmos. Tudo o que
tenho a fazer, portanto, é instar com meus leitores a que prestem atenção no
que Paulo está realmente dizendo. Seu argumento é que os pastores, cujo
trabalho é a pregação do evangelho, devem ser sustentados, visto que
outrora o Senhor prescreveu certa assistência às necessidades dos
sacerdotes, diante do fato de que empregavam seus serviços em prol da
Igreja. Conseqüentemente, devemos nós manter uma distinção entre o
sacerdócio dos tempos de outrora e o de nossos próprios dias. Sob a lei, os
sacerdotes eram designados para o encargo dos sacrifícios, para servirem ao
altar e cuidarem do tabernáculo e depois do templo; em nossos dias, eles
são designados para a proclamação da Palavra e a ministração dos
sacramentos. O Senhor não designou os santos ministros para se ocuparem
de quaisquer sacrifícios; não há altares para que se ponham a oferecer
sacrifícios.
Os que aplicam esta analogia (anagoge), derivada dos sacrifícios, a
alguma outra coisa que não seja a pregação do evangelho, são patentemente
ridículos. E mais que isso, é fácil de inferir deste versículo que todos os
sacerdotes papistas, do principal deles ao membro menos importante, são
roubadores de templos (sacrilegos), pois vorazmente devoram os proventos
destinados aos legítimos ministros, sem executarem qualquer dos deveres
de sua responsabilidade. Pois a quais ministros o apóstolo manda que
sustentem? Devem sustentar os que se devotam à pregação do evangelho.
Que direito têm os sacerdotes papistas de reivindicar para si a remuneração
dos sacerdotes?11 Sua resposta é que entoam [os cânticos] e oferecem
sacrifícios.12 Todavia, Deus não requereu deles nenhuma dessas coisas;
portanto, faz-se evidente que se apropriam dos proventos que pertencem a
outrem.
Finalmente, quando Paulo diz que os sacerdotes levitas eram
“participantes do altar”, e “comiam das coisas do templo”, ele tem em mente,
pelo uso de metonímia, as oferendas que eram apresentadas a Deus. Pois
requeriam todos para si os sacrifícios de animais consagrados; e no caso
dos sacrifícios menos importantes, o pernil dianteiro direito, os rins e a
cauda, bem como os dízimos, as ofertas e as primícias dos frutos. Portanto,
a palavra ἱερόν, no segundo caso,13 é considerada como que significando o
templo.
15. E não escrevi estas coisas. Uma vez que poderia ficar a impressão de
estar solícito a que os coríntios o remunerasse no futuro, ele remove essa
possível suposição e assevera que, longe de pretender alguma coisa,
preferiria morrer do que perder essa glória, ou, seja, que ele prestara seus
serviços aos coríntios gratuitamente. E não há necessidade de perplexidade
ante o fato de ele pôr tal valor neste motivo de gloriar-se, porquanto estava
consciente de que a autoridade do evangelho, em certa medida, dependia
dele. Porque, nesse caso, teria dado aos falsos apóstolos uma chance de se
vangloriarem contra ele. Daí, havia o risco de, para que os coríntios não o
tratassem com desdém, o recebessem com ruidosos aplausos. Por essa
causa, ele preferiu aproveitar a chance para divulgar o evangelho, e não sua
própria vida.
16. Porque, se prego o evangelho. Para mostrar quão importante era
que não fosse privado da razão de gloriar-se, Paulo realça o que teria
sucedido caso não fizesse nada mais do que cumprir fielmente seu
ministério, ou, seja, que ele não teria feito mais do que aquilo que o Senhor
lhe impusera como uma necessidade imprecindível. Ao realçar esse fato, ele
está dizendo que não tinha, nesse aspecto, nenhuma razão para gloriar-se, já
que isto era algo em que não tomara parte.14 Mas alguém poderia perguntar
a que gênero de glória Paulo se refere aqui, pois em 2 Timóteo 1.3 ele declara
orgulhar-se na execução de seus deveres como mestre “com consciência
pura”. Minha resposta é que ele fala de um motivo para gloriar-se com o qual
possa desafiar os falsos apóstolos, quando se punham no posto de
observação com o fim de caluniá-lo, como veremos a seguir, de forma mais
clara.
Todavia, esta é uma afirmação notável. Aprendemos dela, em primeiro
lugar, a natureza da vocação que os ministros recebem, e quão fortemente se
acham unidos a Deus; e, em segundo lugar, o que o ofício de pastor envolve
e o que intrinsecamente inclui. O homem, uma vez chamado, deve pôr
indelevelmente em sua cabeça que ele não é mais livre para retroceder,
quando bem lhe convir, se porventura as frustrações arrebatarem seu
coração, ou as tribulações o esmagarem; porquanto ele está dedicado ao
Senhor e à Igreja, e se acha firmemente amarrado por um laço sagrado, o
qual lhe seria pecaminoso desamarrar.
No tocante ao segundo ponto,15 Paulo diz que uma ameaça de maldição
paira sobre sua cabeça, caso ele não pregasse o evangelho. Por quê? Porque
fora chamado para tal mister, e por essa mesma razão ele é dominado por
uma compulsão que o impele. Como, pois, poderia alguém que assume a
mesma responsabilidade evitar tal constrangimento? Que gênero de
“sucessão apostólica” é esse, no caso do papa e dos bispos mitrados, os
quais demonstram que nada há mais incompatível com seu papel do que a
responsabilidade de ensinar?
17. Se o faço de livre vontade. O galardão, a que me refiro aqui, é o que
o latim chama operae premium, “o prêmio do esforço”,16 e do qual falei antes
como sendo a base da glória. Há quem o explique de outra forma: que um
prêmio é oferecido a todos quantos levam a bom termo seu trabalho fiel e
sinceramente. Eu pessoalmente entendo “o homem que age de sua livre
vontade” como sendo aquele que sente tanto entusiasmo e transparência
em seu desejo de instruir a outrem, que nada mais lhe interessa que não vise
ao serviço da Igreja. Da mesma forma, ele pretende com “de má vontade”,
por outro lado, os que agem por necessidade premente, mas que o fazem de
má vontade visto que isso conflita-se com o que realmente desejava. Pois
sempre sucede que o homem que assume alguma tarefa com zelo e está
também disposto a submeter-se a qualquer situação, a negligência
significaria obstruir a concretização da obra. Assim Paulo, que fazia as
coisas espontaneamente, que não tinha o hábito de ensinar meramente de
maneira formal, fazia uso de tudo que imaginasse ser adequado para
corroborar e promover seu ensino. Este, pois, era seu “prêmio pelo
trabalho” e seu motivo de gloriar-se, ou, seja, que prontamente se privara de
seu direito, pois devotava ao que fazia com espontaneidade e real solicitude.
Mas se o fizer de má vontade, uma dispensação me está confiada. Seja
como for que outros expliquem estas palavras, o verdadeiro significado, a
meu ver, é que o serviço de um homem, que é feito de mau grado e, por
assim dizer, contra sua vontade, é totalmente inaceitável a Deus. Portanto,
sempre que Deus exigir de nós alguma coisa, enganamo-nos a nós mesmos
se imaginamos que o cumprimos satisfatoriamente, quando o fazemos de
mau grado. Pois o Senhor espera que seus servos sejam solícitos e
prazerosos em obedecê-lo, em demonstrar alegria e agindo sem qualquer
hesitação. Em suma, Paulo quer dizer que a única maneira em que faria
justiça a sua vocação seria desempenhando sua função com um coração
voluntário e uma solicitude sem embaraço.
18. Então, qual é meu galardão? Ele infere do precedente que sua base
para gloriar-se é esta: que trabalhou gratuitamente em favor dos coríntios
porque desse fato vem a lume que ele se devotara espontaneamente à tarefa
de ensinar, visto que, como vigorosamente se pusera à remoção de todos os
obstáculos postos no caminho do evangelho, e, não se sentindo satisfeito
com meramente ensinar, usava todos os métodos para que a doutrina dele
[o evangelho] não fosse obstada. Portanto, eis um sumário do que ele diz:
“Tenho me esforçado por pregar o evangelho. Se não o faço, quando está em
mim poder fazê-lo, estou resistindo à vocação divina. Mas não me basta
pregar, a menos que o faça espontaneamente, porque aquele que se
desincumbe da ordem divina com um coração constrangido não está à
altura do desempenho de seu ofício como deveria estar. Ora, se obedeço a
Deus de bom grado, então tenho o direito de gloriar-me. Portanto, era-me
forçoso proclamar o evangelho sem remuneração, para que minha
ostentação fosse justificada.”
Os papistas tentam encontrar neste versículo apoio para as obras de
supererrogação,17 as quais foram inventadas por eles. Dizem: “Paulo cumpriu
os deveres de seu ofício, a saber, proclamando o evangelho, mas também
adicionam algo mais. Portanto ele faz algo além do qual era obrigado a fazer.
E fazem distinção entre o que alguém faz voluntariamente e o que ele deve
fazer.” Minha resposta a tudo isso é que Paulo de fato foi além do que
normalmente era requerido dos pastores em sua vocação, visto que não
recebeu salário, o qual o Senhor permite que os pastores recebam. Mas,
como era parte de seu dever tomar medidas contra toda possível ocasião de
escândalo, tudo o que ele previa e como o via, para que o curso do
evangelho não fosse obstruído caso ele usasse de sua liberdade, embora
isso estivesse fora do curso ordinário, afirma que mesmo nesse caso ele
retribuía a Deus nada mais que o devido. Pois pergunto: “Não é dever de um
bom pastor suprimir aquilo que pode trazer escândalo, até onde isso está
em seu poder?” E novamente pergunto: “O que Paulo faz senão precisamente
isso?” Portanto, não temos o direito de supor que ele dava a Deus algo que
não lhe era devido, visto que só fez o que a exigência de seu ofício
demandava – mesmo que fosse exigência incomum. Não demos mais
ouvidos, pois, a esta perversa fantasia,18 ou, seja, que fazemos reparação
por nossos pecados aos olhos de Deus mediante as obras de
supererrogação.19 E ainda mais, que haja um fim ao próprio uso do termo,
pois o mesmo se acha carregado de um orgulho diabólico.20 Não há dúvida
de que este versículo é erroneamente torcido com o fim de produzir tal
interpretação.
Ora, o erro dos papistas é refutado, de maneira geral, no que segue: Sejam
quais forem as obras compreendidas sob a lei, são falsamente denominadas
supererrogação, como se manifesta nas palavras de Cristo: “Assim também
vós, depois de haverdes feito tudo quanto vos foi ordenado, dizei: Somos
servos inúteis, porque fizemos apenas o que deveríamos fazer” [Lc 17.10].
Ora, concordamos que não há obra alguma boa ou aceitável a Deus que não
esteja incluída na lei de Deus. Ponho esta segunda afirmação da seguinte
maneira: Não há duas classes de boas obras, pois todas elas podem ser
reduzidas ou ao serviço de Deus, ou ao amor. Mas nada pertence ao serviço
de Deus que não esteja incluído neste neste sumário: “Amarás, pois, o
Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma, de todo teu
entendimento e de toda tua força.” E não há também nenhum dever de amor
que não esteja requerido neste preceito: “Amarás teu próximo como a ti
mesmo” [Mc 12.30, 31]. Mas quanto à objeção que é apresentada pelos
papistas, de que não é possível que alguém seja aceitável a Deus sem que
pague os dez por cento de sua renda; e disto inferem que, se o tal vai além e
dá o equivalente à quinta parte, ele está fazendo uma obra de
supererrogação. Não é difícil destruir tal sofisma. Pois o fato de as obras dos
crentes serem aceitas, não é porque são de alguma forma perfeitas, mas é
porque sua imperfeição e inadequabilidade não são levadas em conta contra
eles. Portanto, se fizerem um cêntuplo além do devido, ainda assim não
estariam indo além dos limites do dever que devem [a Deus].
Para não fazer pleno uso de meu direito. Deste fato se torna óbvio que
tirar vantagem de nossa liberdade com o fim de criar escândalo equivale a
licenciosidade irresponsável e abuso da liberdade. Portanto, devemos aderir
à regra de não dar nenhum motivo de escândalo. Este versículo enfatiza o
que mencionei supra, a saber: que Paulo não foi além das exigências
impostas pela própria natureza de seu ofício, porque a liberdade que Deus
lhe concedera não seria de forma alguma mal utilizada.
19, 20. Porque, ainda que estivesse livre de todos. Εκ πάντων, isto é, de
todos, pode ser considerado ou como neutro ou como masculino; como
neutro, sua referência será a coisas; e como masculino, a pessoas. Prefiro o
masculino. Entretanto, ele mostrou apenas por um exemplo particular quão
prudente lhe fora acomodar-se aos fracos. Agora ele adiciona uma afirmação
geral e conclusiva, prosseguindo com exemplos particulares. A afirmação
geral é que, embora ninguém tivesse nenhuma autoridade sobre ele, no
entanto vivia como se estivesse sob o poder do mundo inteiro; e
voluntariamente sujeitou-se aos fracos, a quem ele não devia nenhuma
submissão. Os exemplos particulares são estes: entre os gentios ele vivia
como se fosse gentio; e entre os judeus se portava como um judeu. Em
outros termos: visto que era zeloso na observação das cerimônias religiosas
judaicas, quando vivia entre os judeus ele procurava não ofender os gentios
com a observância delas.
Ele usa a partícula como para notificar que sua liberdade de forma
alguma era prejudicada por essa conta, pois não importa o quanto ele
tivesse que acomodar-se aos homens, uma vez que, aos olhos de Deus,
interiormente ainda permanecia o mesmo. “Fiz de tudo” significa adotar toda
sorte de atitude segundo a exigência da situação, ou assumir diferentes
papéis em consonância com as diferentes maneiras entre os indivíduos.
Quando diz que procedia como se vivesse sem lei e como se estivesse
debaixo da lei, devemos compreender que ele está se referindo somente à lei
cerimonial, porquanto a lei moral era comum tanto a gentios quanto a
judeus; e Paulo não pretendia agradar aos homens até este ponto. Pois este
princípio só se aplica às coisas indiferentes, como já dissemos previamente.
21. Não estando sem lei em relação a Deus. Por meio deste parêntese
Paulo desejava abrandar a aspereza da expressão; porquanto pode parecer
duro, a princípio, ouvi-lo dizer que vivia sem lei. Daí, para que isso não
viesse a assumir um sentido errôneo, ele adiciona, à guisa de correção, que
sempre guardava em sua mente uma lei, a saber: ele era sujeito a Cristo. Com
isso também dá a entender que contra ele se fomentava o ódio, sem
fundamento e de forma irracional, porque era como se convidasse os
homens a viverem vidas desregradas, ao ensinar o livramento da servidão à
lei mosaica. Ele a descreve explicitamente como verdadeiramente “a lei de
Cristo” com o fim de erradicar a injusta reprovação com que os falsos
apóstolos estavam caracterizando o evangelho; pois ele tem em mente que
na doutrina nada é omitido, que pode servir para dar-nos uma norma
perfeita do viver justo.
22. Fiz-me fraco para com os fracos. Agora ele emprega uma vez mais
uma afirmação geral, na qual descreve o gênero de pessoas a quem se
acomodara, e com que propósito. Ele assumiu a forma judaica de vida na
presença de judeus, porém não diante de todos eles; pois muitos deles eram
obstinados, os quais, sob a influência do farisaísmo orgulhoso e malicioso,
gostariam muito de ver a liberdade cristã completamente suprimida. A tais
pessoas ele jamais se submeteria, pois Cristo não quer que nos
preocupemos com pessoas desse gênero. Nosso Senhor disse: “Deixai-os;
são cegos, guias cegos” [Mt 15.14]. Por isso devemos acomodar-nos aos
fracos, porém não aos obstinados.21
Seu propósito era levá-los a Cristo, não para promover seus próprios
interesses, nem granjear a boa vontade deles. A estes dois pontos adiciona-
se um terceiro, ou, seja, que somente nas coisas indiferentes, as quais sob
outros aspectos influem em nossa escolha, ele não se acomodava aos
fracos. Ora, se considerarmos quão grande homem era Paulo, cuja
condescendência chegava a tal ponto, devemos sentir-nos envergonhados,
nós que somos pouco mais que nada em comparação a ele, pois vivemos
tão preocupados conosco mesmos que olhamos para os fracos com
desdém, e não nos dignamos em dar-lhes coisa alguma. Visto, porém, ser
justo que ponhamos a ordem do apóstolo em ação, acomodando-nos aos
fracos, e agir assim em consonância com as coisas indiferentes e com vistas
à edificação deles, os que agem de maneira imprópria, cuja principal
preocupação é conservar suas vidas livres de problemas, e que, por essa
razão, também tomam cuidado em não ofender os outros, os ímpios,
obviamente, e não os fracos. Ademais, os que não distinguem entre as
coisas que são indiferentes e as que são proibidas estão indubitavelmente
errados. Visto que não fazem essa distinção, não hesitam em fazer coisas
que Deus tem proibido com o fim de agradar aos homens. Mas ao premiar o
pecado estão fazendo mau uso do pensamento de Paulo a fim de dissimular
sua própria ímpia hipocrisia. Entretanto, se alguém se lembra destes três
pontos, nos quais toquei de passagem, estará pronto a refutar tais pessoas.
Devemos igualmente prestar atenção à frase que Paulo usa na conclusão.
22 Pois mostra que, ao tentar conquistar a todos, ele almejava a salvação
deles. Entretanto, ele encerra aqui abordando a afirmação geral (a não ser
que o leitor prefira a redação da Vulgata: “para que eu salve a todos”, que é
também encontrada em alguns manuscritos gregos23); pois nesta passagem
ele ainda se restringe: “para que por todos os meios eu possa salvar
alguns.”24 Mas, por causa de a consideração pelos outros, sobre o quê Paulo
fala, ser às vezes menosprezada, até onde os resultados interessam, esta
suavização é muito adequada, ou, seja: embora não estivesse a serviço de
todos, não obstante não renuncia sua preocupação pelo bem-estar de pelo
menos uns poucos.25
23. E eu faço isso em prol do evangelho, para ser também participante dele.
24. Não sabeis vós que os que correm numa competição, todos correm, mas só um
recebe o prêmio? Assim correi também vós para que o alcanceis.
25. E todo aquele que se esforça nos jogos se domina em todas as coisas. Ora, eles o
fazem para receber uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível.
26. Pois eu assim corro, não com incerteza; assim luto, não dando golpes no ar.
27. Mas golpeio meu corpo, e o trago em sujeição, para que, tendo pregado aos outros,
eu mesmo não venha, de alguma maneira, a ser reprovado.
23. Para ser também participante dele. Visto que os coríntios poderiam
ter em mente que o que Paulo fez era algo que só se aplicava a ele, em razão
do ofício que mantinha, ele argumenta, à luz do que o evangelho visa, que
todos os coríntios são participantes. Pois quando declara que desejava
“tornar-se participante do evangelho”, ele está sugerindo que os que não
procedem como ele são indignos da comunhão do evangelho. Tornar-se
participante do evangelho é receber seus frutos.
24. Não sabeis vós que os que correm numa competição. Ele lançou a
doutrina, e agora, querendo imprimi-la nas mentes dos coríntios, adiciona
uma exortação. Em suma, ele afirma que o que alcançaram até aqui não seria
nada, a menos que perseverassem firmes, visto não ser suficiente que, uma
vez iniciados no caminho do Senhor, não envidarem todo esforço para
atingir a meta. Isto corresponde à palavra de Cristo em Mateus 10.22:
“Aquele que perseverar até o fim, esse mesmo será salvo.”
E deveras ele toma por empréstimo um símile da pista de corrida.28 Pois
assim como muitos na verdade entram na arena, mas apenas aquele que
primeiro alcança o alvo recebe o louro da vitória, assim aquele que uma vez
se incluiu na competição a que o evangelho nos convoca, não tem motivo
para estar satisfeito consigo mesmo, a menos que prossiga até a morte.
Nossa luta, porém, não é como a do corredor: em sua corrida só um – aquele
que corre mais velozmente que os demais – é o vencedor e recebe o
prêmio;29 nossa condição, porém, é superior neste aspecto: pode haver
muitos ao mesmo tempo.30 Pois tudo o que Deus requer de nós é que
prossigamos incansavelmente ao longo de todo o caminho em direção ao
alvo.31 Assim, uma pessoa não invade o caminho da outra, mas, antes, os
que tomam parte na corrida cristã fazem tudo a seu alcance para estender a
mão de forma recíproca. Paulo apresenta a mesma idéia, de maneira distinta,
em 2 Timóteo 2.5: “Um atleta não é coroado se não competir segundo as
normas.”
Assim correi também vós. Aqui temos a aplicação da comparação. Não é
bastante que tenhamos iniciado a corrida, se não continuarmos a correr ao
longo de toda nossa vida. Porquanto nossa vida é semelhante a uma pista
de corrida. Daí, de nada nos adiantará se pararmos cansados depois de
algum tempo; por exemplo, meia jornada, porque nada mais senão a morte
marca o final da competição.
A partícula ὅυτω, assim, pode ser considerada de duas formas:
Crisóstomo a junta ao que vem antes, ou, seja: “Como os corredores não
param de correr até que tenham alcançado a linha de chegada, assim deveis
perseverar, e não deveis parar de correr durante vossa vida.” Entretanto, a
correspondência se aplica bem ao que vem a seguir: “Deveis correr, não de
maneira que interrompais em meio à competição, mas de tal maneira que
obtenhais o prêmio.”
Não tenho nada a dizer sobre o termo estádio (pista de corrida) e sobre
os diferentes tipos de corridas,32 visto que informação sobre eles podem ser
encontrada nos dicionários; e comumente se sabe que algumas corridas
eram em montarias e outras, a pé. Além do mais, não há muita necessidade
de se entender o que Paulo quis dizer sobre essas coisas.
25. E todo aquele que se esforça nos jogos. À luz do fato de que
estivera a encorajá-los a perseverarem, ele tinha que fazer ainda mais claro
sobre como perseverariam. Ele agora procede usando o símile de pugilistas,
não de uma forma radical,33 mas só até onde o problema com que ele está a
tratar o exigia, a saber, o problema de até que ponto devem penetrar nas
fraqueza de seus irmãos. Paulo mesmo se restringe a isso. Mas ele argúi do
menor para o maior, dizendo que devemos envergonhar-nos de nós mesmos
se nos achamos relutantes em resumir nosso direito, quando os pugilistas,
comendo seu coliphium34 e uma pequena porção dele, certamente não com
excesso, se dispõem a renunciar todas e quaisquer iguarias, de modo a
poderem sentir-se de todo preparados para a luta. E fazem isso por amor a
uma coroa corruptível. Não obstante, se dão tanta importância a uma coroa
de ramos, que murcha quase que instantaneamente, não deveríamos nós
pôr todo nosso mais intenso apreço numa coroa eterna? Portanto, não
sintamos nenhuma dificuldade em renunciar alguma parcela de nossos
direitos. Sabe-se muito bem que os atletas viviam tão satisfeitos com a mais
frugal dieta, que seu modo de vida se tornara proverbial.
26. Por isso eu assim corro. Paulo se volta para si mesmo a fim de, ao
chamar a atenção para seu próprio exemplo, dar mais peso a sua doutrina.
Há quem pense que o que ele diz aqui se refere à plena segurança da
esperança, como se dissesse: “Não corro em vão, nem estou correndo o
risco de ser visto como insensato no tocante à minha obra, porque tenho a
promessa do Senhor, e esta nunca falha.” No entanto, sou inclinado a crer
que ele desejava orientar os crentes em seu caminho, rumo a seu destino,
para que não perambulassem a esmo. Ele poderia ter dito assim: “O Senhor
nos mantém ocupados aqui a correr e a lutar, mas ele coloca um alvo diante
de nós rumo ao qual devemos correr; e estabelece normas confiáveis para o
pugilismo a fim de não nos cansarmos sem nenhum objetivo.” Porque ele
combina ambas as comparações que já usou. Diz: “Eu sei para onde estou
correndo, e estou ansioso como um pugilista experiente que não quer errar
seu golpe.” Estas coisas devem incitar o coração do cristão, injetando-lhe
coragem para tomar posse, com o maior entusiasmo, de todos os deveres da
fé cristã;35 pois é algo imensurável não nos deixarmos distrair, na
ignorância, por coisas que não nos levam a parte alguma.
27. Mas golpeio meu corpo.36 Budæus traduz: Observo (mantenho-me
sob vigilância). Eu, porém, entendo que aqui o apóstolo faz uso do verbo
ὑπωπιάζειν.37 no sentido de “persistir no trabalho como um escravo”.38 Pois
ele está nos contando que não tem sido indulgente consigo mesmo, mas
que tem reprimido seus desejos. Isso não é possível a menos que se tenha o
corpo sob controle, e que mantenha seus desejos refreados, de modo que,
como se faz a um corcel selvagem e indomável, seja ele reprimido e
acostumado a obedecer. Os monges de outrora, querendo sujeitar-se a esta
norma, engendraram muitos exercícios disciplinares; pois costumavam
dormir em bancos; obrigavam-se a manter excessivamente longas noites de
vigília; e em seu modo de vida, guardavam-se limpos de toda luxúria.
Todavia, omitiam o ponto principal, e não compreendiam a razão por que o
apóstolo nos diz que fizéssemos isso, visto que tinham outro preceito em
mente: “e nada disponhais para a carne, no tocante a suas concupiscências”
[Rm 13.14]. Porquanto o que Paulo diz em 1 Timóteo 4.8 sempre resulta bem,
a saber: que “o exercício físico para pouco é proveitoso”. Não obstante,
tratemos nosso corpo como se ele fosse um escravo, sim, a fim de não nos
subtrairmos dos deveres da religião em razão de sua inerente
concupiscência, porém façamos isso por uma outra razão ainda mais forte,
ou, seja, não provocarmos sofrimento nem escândalos a outrem, cedendo a
seus impulsos.
Para que, tendo pregado a outros. Há quem explique estas palavras da
seguinte maneira: “A fim de que, tendo ensinado a outrem fielmente e bem,
não incorra eu na condenação de Deus por levar uma vida nociva.” Mas a
leitura será melhor se se considerar esta frase como uma referência a sua
relação com outrem, da seguinte forma: “Minha vida deve gerar alguma sorte
de exemplo para outrem. Portanto, esforço-me para viver de tal maneira que
meu caráter e conduta não contradigam ao que eu ensino, e que, portanto,
não venha eu a negligenciar as próprias coisas que exijo dos outros, e com
isso envolvendo-me em grande infortúnio e trazendo graves ofensas a meus
irmãos. Esta frase pode também ser acrescida àquela que ele expressou
numa afirmação prévia, com este resultado: “Para que não venha eu a ser
privado do evangelho, do qual outros vieram a participar através de meu
trabalho.
1. “Ne suis-ie point Apostre? ne suis-ie point en liberte.” – “Não sou eu um apóstolo? Não sou eu
livre?” “A ordem das palavras na versão latina de Calvino é a ordem na qual são lidas na Vulgata,
Alex e em alguns manuscritos e versões antigas, e nos quais estão citadas por Orígines,
Tertuliano e Agostinho. ... O latim retém a ordem primitiva; lemos, pois, na versão de Wiclif: ‘Se
eu não sou livre? eu não apóstolo?’” – Penn.
2. “De ne trauailler point.” – “Restringir de trabalhar.”
3. “Ceux qui vouloyent mettre en debat son Apostolat, et le contreroller, commer on dit.” – “Os
que eram desejosos de levar seu apostolado à controvérsia, e à bancarrota, como dizem.”
4. A expressão é usada por Suetônio (Aug. 33). Reum ita fertur interrogâsse: Ele informa que o
criminoso era interrogado dessa maneira.
5. “Combien qu’il n’en ait pas usé.” – “Ainda que ele não tivesse feito uso dele.”
6. O verbo é στρατεύεται, ir a uma guerra, ou servir como soldado.
7. Os solados romanos não recebiam nenhum pagamento (stipendium) do erário público até 347
anos após a fundação de Roma (veja-se Liv. iv.59 e v.7).
8. A redação comum é καί ὁ ἀλοω̑ν τη̑ς ἐλπίδος αὐτου̑ μετέχειν επ ̓ ελπίδι: e aquele que debulha em
esperança seria um participante de sua esperança. Na outra redação, as palavras επ ̓ ελπίδι (em
esperança) são omitidas. A última é a redação em cinco manuscritos antigos, e a última, em
três. A redação comum é construída por Bloomfield, como segue: καὶ ὁ ἀλοω̑ν (ὀφείλει ἀλο÷ν) επ ̓
ἐλπίδι (του̑) μετέχειν τη̑ς ελπίδος αὐτου̑. “E aquele que debulha deve debulhar na esperança de
participar de (os frutos de) sua esperança.”
9. “Et le vestement.” – “E vestindo.”
10. “Des choses qui sont sacrifiees.” – “Das coisas que são sacrificadas.”
11. “De quel droict s’usurpent ces ventres paresseux le reuenu des benefices, qu’ils appelent?” –
“Por qual direito esses ventres preguiçosos reivindicam para si o provento dos benefícios, como
o chamam?”
12. “Pource qu’ils gringotent des messes et anniuersaires.” – “Porque cantarolam uma música
nas missas e nos aniversários.”
13. No original, as palavras τα ἱερὰ e του̑ ἱερου̑ ocorrem na mesma sentença, e a intenção de nosso
autor é que, no segundo caso, o substantivo ἱερον denota o templo.
14. “Veu qu’il y estoit contraint, et ne pouuoit euiter telle necessite.” – “Ainda que fosse
constrangido a isto, e não pudesse evitar tal necessidade.”
15. Isto é, o dever que envolve o ofício pastoral.
16. “Ce que nous appelons chef-d’œuure.” – “O que chamamos uma obra-prima.” A frase
idiomática, operæ pretium, é extraordinariamente empregada pelos escritores clássicos no
sentido de algo de grande importância ou vale a pena. Assim, Livy, em seu Prefácio, diz: “facturusne
operæ pretium sim.” – “Se estou para fazer uma obra de importância”; e Cícero (Cat. iv.8) diz:
“Operæ pretium est.” – “Vale a pena.” Calvino, contudo, parece fazer uso da frase aqui num
sentido mais perto de sua significação original e literal – recompensa pelo labor –, o que
amplamente recompensava a renúncia que ele tinha exercido – consistindo na satisfação
peculiar propiciando sua mente a refletir sobre a parte que ele tomara. O termo usado por ele
em sua tradução francesa – chef-d’œjuure [obra-prima] corresponde à frase latina, operæ pretium,
neste aspecto, que uma obra-prima é uma obra que o artista ou operário bem sucedido avalia, e
na qual ele sente satisfação, como amplamente recompensando as dores suportadas.
17. “C’est à dire, d’abondant.” – “Equivale dizer, além do mais.”
18. “Ceste pervedrse et mal-heureuse imagination.” – “Essa perversa e miserável fantasia.”
19. “C’est à dire, lesquelles nous faisons de superabondant.” – “Equivale dizer, o que fazemos
como extra.”
20. Nosso autor se expressa em termos semelhantes em outra parte quanto à palavra mérito.
21. O leitor encontrará esta afirmação mais plenamente elaborada na Harmonia vol. ii. p. 258.
22. “Afin que totalement i’en sauue quelques uns.” – “Para que por todos os meios alguns se
salvem.”
23. A tradução da Vulgata, indicada por Calvino, é: Ut omnes servarem (Para que eu possa salvar a
todos). Quatro manuscritos gregos antigos trazem ἵνα παντας σώσω – Para que eu possa salvar a
todos. A mesma tradução é dada na versão Siríaca, e é adotada por Mill, Benzelius e Pearce. Na
versão de Wiclif (1380), a tradução é: “Em favor de todos os homens tudo tenho feito para salvar
a todos.” Na versão Rheims (1582), a tradução é: “Para que eu possa salvar a todos.”
24. “Afin que ie seuue tous.” – “Para que eu possa salvar a todos.”
25. “Le profit et salut pour le moins de quelques uns.” – “O proveito e o bem-estar de pelo menos
alguns indivíduos.”
26. “Il s’abstient en toutes choses, ou – vit entierement par regime.” – “Ele se abstém em todas
as coisas, ou ele vive inteiramente de acordo com a norma prescrita.”
27. “Reprouué, ou, trouué non receuable.” – “Réprobos, ou não achado admissível.”
28. “De ceux qui courent à la lice pour quelque pris.” – “Daqueles que correm na pista de corrida
em busca de algum prêmio.”
29. “Qui a mieux couru que les autres, et est le premier venu au but.” – “Quem correu melhor que
os demais e chegou primeiro ao alvo.”
30. “Il y en peut auoir plusieurs de nous qui soyent couronnez.” – “Pode haver muitos de nós que
são coroados.”
31. “Que nous ne perdions point courage, mais que perseuerions constamment justques à la
fin.” – “Cujo coração não desfalece, mas persevera com toda firmeza até o fim.”
32. “Qui estoyent anciennement en vsage.” – “Que antigamente estavam em uso.”
33. “Non pas qu’il vuerille appliquer la similitude en tout et par tout.” – “Não que ele pretendesse
aplicar a similitude completamente.”
34. “C’estoit vne sorte de pain propre pour entretenir et augmenter la force, duquel vsoyent
ordinairement les lutteurs et telles gens. Les Grecs le nommoyent coliphium.” – “Esse era um
tipo de pão apropriado para manter e aumentar as forças, cujo uso comumente era feito pelos
lutadores e pessoas desse gênero. Os gregos o chamam coliphium.” O termo coliphium é
mantido por ser composto de κω̑λον, um membro, e ιφι, fortemente – um meio de fortalecer os
membros. É definido por Tymme, em sua tradução de Calvino sobre os Coríntios, como sendo “um
tipo de pão que os lutadores usavam outrora para comer e sentir-se mais fortes.”
35. “Toutes choses concernantes la piete et crainte de Dieu.” – “Todas as coisas que se
relacionam com a piedade e o temor de Deus.”
36. Mais ie matte et reduy en seruitude mon corps.” – “Mas eu mortifico meu corpo, e o trago em
servidão.”
37. Seu sentido original é golpear embaixo do olho, sendo composto de ὑπό (debaixo de) e ὤψ (o
olho), deixar roxo de pancada, como os lutadores costumavam fazer com a antiga manopla dos
atletas. (Ver Arist. Pac. 541.)
38. “Manier rudement et d’une façon seruile.” – “Manejar abruptamente e de uma maneira
servil.”
Capítulo 10
1. Além do mais, irmãos, não gostaria que fôsseis ignorantes quanto ao fato de que
todos nossos pais estiveram sob a nuvem, e todos passaram pelo mar;
2. e foram todos batizados em Moisés, na nuvem e no mar;
3. e todos comeram do mesmo alimento espiritual;
4. e todos beberam da mesma água espiritual; porque bebiam daquela Rocha espiritual
que os seguia; e aquela Rocha era Cristo.
5.Mas Deus não se agradou de muitos deles; por isso foram derrotados no deserto.
1. Nolo autem vos ignorare, fratres, quod patres nostri omnes sub nube fuerunt, et
omnes mare transierunt.
2. Et omnes in Mose fuerunt baptizati in nube et in mari,
3. Et omnes eandem escam spiritualem manducarunt,
4. Et omnes eundem biberunt spiritualem potum: bibebant autem e sprituali, quae eos
consequebatur, petra. Petra, autem, erat Christus.
5. Verum complures eorum grati non fuerant Deo: prostrati enim fuerunt in deserto.
6. Ora, estas coisas vieram a ser exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as
coisas más, como eles cobiçaram.
7. Não vos façais idólatras, como alguns deles; como está escrito: O povo assentou-se
para comer e beber, e levantou-se para divertir-se.
8. E não pratiquemos a fornicação, como alguns deles o fizeram, e caíram num só dia
vinte e três mil.
9. Nem tentemos o Senhor, como alguns deles o fizeram, e pereceram pelas mordeduras
das serpentes.
10. Nem murmureis, como alguns deles o fizeram, e foram destruídos pelo exterminador.
11. Ora, estas coisas lhes sucederam à guisa de exemplo; e foram escritas para nossa
admoestação, a nós sobre quem os fins dos tempos têm chegado.
12. Por esse motivo, aquele que pensa estar de pé, preste atenção para que não venha a
cair.
6. Hæc autem typi nobis fuerunt, ne simus concupiscentes malorum, sicut illi
concupiverunt.
7. Neque idololatræ sitis, quemadmodum quidam eorum: sicut scriptum est. (Exod.
xxxii.6.) Sedit populus ad edendum et bibendum, et surrexerunt ad ludendum.
8. Neque scortemur, quemadmodum et quidam eorum scortati sunt, et ceciderunt uno
die viginti tria millia.
9. Neque tentemus Christum, quemadmodum et quidam eorum tentarunt, et exstincti
sunt a serpentibus.
10. Neque murmuretis, quemadmodum et quidam eorum murmurarant, et perditi fuerunt
a vastatore.
11. Hæc autem omnia typi contigerunt illis: scripta autem sunt ad nostri admonitionem, in
quos fines sæculorum inciderunt.
12. Proinde qui se putat stare, videat ne cadat.
6. Ora, estas coisas vieram a ser exemplos para nós. Ele nos adverte
em termos ainda mais contundentes, dizendo que os castigos que foram
infligidos sobre eles nos proporcionaram lições relevantes, a fim de que não
provoquemos a ira de Deus como eles fizeram. Diria Paulo: “Pela forma
como ele os castigou, Deus, por assim dizer, nos apresentou um quadro vivo
[in tabula] de sua severidade, para que atentemos bem e sinceramente para
ele e aprendamos a temê-lo.”
Mais adiante direi algo sobre o termo exemplo [typus]. Nesse ínterim,
pretendo apenas ressaltar a meus leitores que não me afastei da redação seja
da antiga tradução21 ou de Erasmo [in figura], sem a devida ponderação.
Uma vez que ambas as versões obscurecem ou, para dizer o mínimo, não
realçam claramente a intenção de Paulo, a saber: que na maneira de Deus
tratar o povo ele nos forneceu um quadro que deve nos ensinar uma lição
objetiva.
A fim de que não cobicemos as coisas más. Agora ele nos apresenta
certas instâncias, ou, melhor, define certos exemplos, de modo que lhe
propiciassem a chance de condenar certo número de pecados, que
forçosamente servisse para chamar a atenção dos coríntios.
Minha convicção é que o incidente aqui referido é aquele relatado em
Números 11.4, ainda que outros o relacionem com o que encontramos em
Números 26.64. Quando o povo passou a viver do maná, por algum tempo,
aos poucos foram tomando ojeriza por ele, e começaram a desejar outros
gêneros de alimento, tais como aqueles que costumavam ter no Egito. Ora,
eles passaram a pecar de duas formas: rejeitando algo que era uma dádiva
especial de Deus, e cobiçando desvairadamente uma enorme variedade de
comidas e iguarias, o que era contrário à vontade de Deus. Tal cobiça
ofendeu o Senhor, e ele infligiu sobre o povo uma praga muitíssimo severa.
Em conseqüência, aquele lugar passou a chamar-se “sepulcros da
concupiscência”22 [Quibrote-Ataavá, Nm 11.34], porque sepultaram ali os que
foram fulminados pelo Senhor. Por meio desse exemplo, o Senhor revelou o
quanto odeia os desejos que emanam da aversão que porventura sintamos
por suas dádivas, bem como de nossa cobiça; pois tudo quanto ultrapassa
os limites impostos por Deus é corretamente considerado nocivo e iníquo.
7. Não sejais idólatras. Paulo está fazendo alusão à história registrada
em xodo 32. Pois quando Moisés demorou no monte mais do que o
inconsiderado povo podia suportar em sua leviandade, Arão se viu forçado
a elaborar um novilho fundido, e o estabeleceu para o culto. Não significava
propriamente que o povo quisesse permutar seu Deus, mas foi para que
tivesse algum sinal visível da presença de Deus, e essa atitude estava em
consonância com sua mente carnal. Ao castigá-los de forma tão severa,
desta vez por essa idolatria, Deus evidenciou o quanto a idolatria lhe é
abominável.
Como está escrito: O povo assentou-se. Poucos interpretam esta
passagem corretamente, pois entendem que a intemperança entre o povo foi
o que deu ocasião à concupiscência,23 em concordância com o provérbio
popular: “A dança é acompanhada de um estômago empanturrado.”24
Moisés, porém, está falando de uma festa sagrada, a que eles estavam
oferecendo em honra de um ídolo. Portanto, o festejo e a diversão eram
ambos aspectos da idolatria. Pois ela era como tantas outras práticas do
povo de Deus, como, por exemplo, os que se devotavam aos falsos deuses,
para combinar a festa com o sacrifício, como parte de seu culto divino; e a
ninguém, que porventura fosse impuro ou indigno, se permitia apresentar-se
para o mesmo. Os gentios designavam também diversões sagradas em honra
de seus ídolos; e há pouca dúvida se nesta ocasião os israelitas estivessem
seguindo seu exemplo na adoração de seu bezerro.25 Pois os homens são,
por natureza, tão presunçosos que, sem qualquer justificativa, obrigam a
Deus a favorecê-los em tudo o que fazem. Portanto, os gentios chegam a uma
insensatez tal que acreditam estar agradando a seus deuses, por exemplo,
com os mais indecentes espetáculos, com as mais impudicas danças, com a
mais profana linguagem e com uma infinda diversidade de imoralidade.
Assim, seguindo após seu exemplo, o povo de Israel realizou sua festa
religiosa, e então prosseguiu com suas diversões, de tal modo que nada
podia ser deixado fora do culto a seu ídolo. Este significado é o único que
faz justiça ao texto.
Neste ponto, porém, pode-se formular a seguinte pergunta: Por que o
apóstolo faz menção da festa e das diversões, e não do culto, já que este,
afinal de contas, é a parte central da idolatria, enquanto que as outras duas
não passavam de aspectos acessórios? Indubitavelmente, o apóstolo
escolheu aquele aspecto que melhor se adequava à situação dos coríntios.
Pois é pouco provável que tivessem o hábito de freqüentar as reuniões dos
descrentes com o fim de prostrar-se diante de seus ídolos, senão que
costumavam participar das festas que os descrentes mantinham em honra
de seus deuses, e não se abstinham dos degradantes ritos que constituíam a
marca registrada da idolatria.
Por isso, não é sem boas razões que o apóstolo declara que a forma na
qual estão pecando é expressamente condenada por Deus. Em suma, ele
deixa claro que não podemos viver em contato com qualquer aspecto de
idolatria26 sem nos tornarmos também impuros, e os que se corrompem no
trato com coisas que levam quaisquer marcas externas de idolatria não
escaparão impunemente das mãos de Deus.
8. Nem pratiquemos a fornicação. Ele agora fala da fornicação, a
respeito da qual, como transparece dos relatos históricos, grande
licenciosidade prevalecia entre os coríntios, e prontamente podemos inferir
do que vem antes que os que tinham professado ser de Cristo não estavam
ainda completamente livres deste vício. O castigo deste vício deve também
alarmar-nos e levar-nos a ponderar bem quão odiosas são as paixões torpes
e as imundícies desse gênero, pois em apenas um dia vinte e três mil – ou,
segundo Moisés, vinte e quatro mil – pereceram. Mas ainda que difiram nos
números, é fácil de conciliar suas declarações. Pois não é um fato
desconhecido que, quando não há qualquer intenção de se fazer uma conta
exata de pessoas,27 existe o hábito de dar um número aproximado. Por
exemplo, havia aqueles a quem os romanos chamavam o Centumviri28 [Os
Cem], quando na verdade seu número era cento e dois. Portanto, visto que
cerca de vinte e quatro mil foram destituídos pelas mãos do Senhor, em
outros termos, mais de vinte e três mil, Moisés dá o número superior, e
Paulo, o inferior, e assim não existe nenhuma discrepância. Esta história
pode ser encontrada em Números 25.9.
Não obstante, paira aqui certa dificuldade, a saber: por que Paulo diz que
esta matança foi devido à fornicação, quando Moisés nos diz que a ira de
Deus recaiu sobre o povo porque este se permitiu fosse iniciado nos ritos
de Baal-Peor?29 A apostasia, porém, deu início à fornicação; e os filhos de
Israel caíram nessa desobediência, não tanto porque se deixaram influenciar
por alguma devoção que acariciassem pela falsa religião,30 mas, antes,
porque se deixaram cativar pelos afagos de prostitutas. Portanto, todo e
qualquer resultado da apostasia deve ser atribuído à fornicação. Pois Balaão
aconselhara os midianitas a darem aos israelitas suas filhas como
prostitutas, com o expresso propósito de aliená-los do genuíno culto divino.
Mais que isso, cegueira tão intensa como a deles, deixando-se arrastar à
impiedade31 mediante o maneirismo fascinante de prostitutas, foi o castigo
por sua concupiscência. Aprendamos, pois, que a fornicação não é um
pecado trivial, visto que, naquela ocasião, Deus lidou com ele tão
severamente e deveras de formas tão variadas.
9. Nem tentemos o Senhor. Esta parte da exortação se refere à história
que está registrada em Números 21.6. Pois quando o povo cansou-se da
longa jornada, então começou a queixar-se de sua sorte e a falar contra
Deus, dizendo: “Por que Deus nos fez de tolos” etc.? Paulo descreve este
resmungo do povo como sendo tentação [tentationem], e ele estava certo,
porque tentar é incompatível com tolerar. A razão por que o povo passou a
rebelar-se contra Deus, naquele tempo, foi porque se sentiam impulsionados
por um desejo irresistível,32 e não conseguiam esperar com paciência a
chegada do tempo determinado pelo Senhor. Notemos bem, pois, que a raiz
deste mal, sobre o qual Paulo nos adverte aqui, é a impaciência que se revela
quando queremos antecipar a ação de Deus, não nos pondo sob sua diretriz,
mas, ao contrário, esperando que ele concorde com nossas decisões e
exigências. Deus infligiu severo castigo sobre os israelitas por conta de tal
presunção. Ele, porém, permanece sempre o mesmo – um Juiz justo.
Portanto, a menos que queiramos sofrer o mesmo castigo, não o ponhamos
à prova.
Este versículo produz notável testemunho em prol da eternidade de
Cristo. A evasiva de Erasmo carece de peso, a saber: “Nem tentemos a Cristo
como alguns deles tentaram a Deus”, pois é demasiadamente forçada33 para
fazer o nome de Deus aparecer. Não é de forma alguma estranho ser Cristo
chamado o Líder do povo israelita, pois assim como Deus jamais revelou
sua benevolência a seu povo que não tenha sido através de Cristo como
Mediador, da mesma forma ele não conferiu nenhum benefício senão pelas
mãos dele. Aliás, o Anjo que primeiro apareceu a Moisés, e desde então
esteve sempre presente com o povo em sua peregrinação, é amiúde chamado
Jehovah34 [hwhy]. Devemos concluir, pois, que aquele Anjo era o Filho de
Deus, e que mesmo naquele tempo ele já era o Guia da Igreja, da qual era o
Cabeça. Visto que a designação Cristo traz um sentido que se adequa a sua
natureza humana, não podia ainda aplicar-se ao Filho de Deus naquele
tempo; porém lhe é atribuída aqui através da comunicação de propriedades,
assim como lemos em outro lugar que “o Filho do Homem veio do céu” [Jo
3.13].
10. Nem murmureis. Há quem pense que isto se refere à murmuração
suscitada por ocasião em que os doze enviados para espiarem a terra
voltaram e sublevaram o ânimo do povo. Visto, porém, que aquela
murmuração não foi castigada imediatamente por algum flagelo particular
infligido pelo Senhor, sendo que o único castigo infligido foi sua exclusão da
possessão da terra, este versículo precisa ser explicado de outra forma.
Certamente que negar a entrada do povo na terra35 constituía um severo
castigo; mas, ao dizer que foram mortos pelo exterminador, Paulo tem em
mente algum outro tipo de retribuição, obviamente de grande porte.
Refiro-me, pois, à história que temos em Números 16. Quando Deus
castigou o orgulho de Coré e Abirão, o povo moveu um grande tumulto
contra Moisés e Arão, como se fossem eles os responsáveis pela praga que
grassou a mando do Senhor. Este castigou a sublevação do povo com fogo
do céu, o qual devorou mais de quatorze mil pessoas. Assim, este fato
fornece uma clara e memorável evidência da ira divina operando contra os
rebeldes e perturbadores que fazem ecoar suas vozes contra ele.
É verdade que tais pessoas se queixavam de Moisés; visto, porém, que
não tinham base alguma para insultá-lo, e que a única razão que tinham para
arder-se em ira contra ele era o fato de fielmente levar a bom termo a tarefa
da qual Deus o incumbira, por isso estavam desferindo um franco ataque
contra Deus mesmo, ao murmurarem contra ele. Lembremo-nos, pois, de
que é com Deus mesmo que havemos de tratar, e não com os homens, caso
nos ponhamos contra os fiéis ministros de Deus. Lembremo-nos ainda de
que tal audácia não ficará impune.
O termo exterminador deve ser entendido como equivalente ao Anjo que
executava o juízo de Deus. Às vezes, ao punir os homens, ele ora emprega o
ministério de anjos maus, ora emprega os anjos bons, como vemos em
diferentes passagens da Escritura. Visto que Paulo aqui não faz nenhuma
distinção entre eles, o leitor se sinta à vontade para decidir a que classe ele
se refere.
11. Ora, estas coisas lhes sucederam à guisa de exemplo. Uma vez
mais ele reitera que todas as coisas sucederam aos israelitas para que nos
servissem de tipos; em outros termos, exemplos pelos quais Deus põe seus
juízos diante de nossos olhos. Estou a par de que outros engendram destas
palavras teorias por demais engenhosas; mas creio que consegui reter o que
estava na mente do apóstolo quando afirmo que estes exemplos nos lançam
luzes como se fossem quadros pintados por um bom artista, sobre que
sorte de juízo ameaça os idólatras, os fornicadores e outros tantos que
desprezam a Deus; pois estes são vivos quadros que nos revelam Deus em
sua ira contra pecados desse gênero. Esta explicação, além de simples e
realista, traz também a vantagem de silenciar certos desmemoriados36 que
torcem esta passagem com o fim de provar que as únicas coisas que foram
sempre praticadas entre o povo antigo eram aquelas que prefiguravam o que
estava por vir. Antes de tudo, tomam por irrefutável que o povo prefigura
[esse figuram] a Igreja. Daqui concluem que tudo quanto Deus lhes prometeu
ou lhes concedeu, sejam benefícios ou castigos,37 prefigurava apenas o que
seria trazido à plena realidade com a vinda de Cristo. Este é um exemplo de
injúria estapafúrdica, visto que lança grave ofensa aos santos pais, e
inclusive uma ofensa ainda mais grave dirigida contra Deus mesmo.
Porquanto os israelitas prefiguravam a Igreja Cristã de uma forma tal que
constituíam, ao mesmo tempo, a Igreja genuína. Suas circunstâncias são um
retrato tão nítido das nossas que as características essenciais de uma igreja
já estavam presentes naqueles dias. As promessas feitas a ela prenunciavam
o evangelho de tal forma que o mesmo já se achava incluso nelas. Seus
Sacramentos serviram para prefigurar os nossos, porém de uma forma tal
que permaneciam os Sacramentos genuínos com uma aplicação eficaz
também para seus dias. Em suma, os que fizeram uso adequado da Palavra
[doctrina] e dos Sacramentos [signis] naqueles dias eram dotados com o
mesmo Espírito de fé como o somos hoje. Estas palavras de Paulo, portanto,
não fornecem apoio algum a tais parvoíces, pois elas não significam que os
eventos daquela época eram tipos no sentido em que não comportassem
alguma importância real para aquele tempo, mas que eram uma espécie de
exibição vazia. Ao contrário disso, porém, já expliquei que elas nos ensinam
com toda clareza que, como num quadro para vermos com nitidez, há coisas
que devem constituir uma advertência.
E foram escritas para nossa admoestação. Esta segunda sentença realça
a primeira. Porque, o fato de que estas coisas foram entregues para que
fossem escritas38 prova que não eram vantajosas para os israelitas, e, sim,
para nós. Não obstante, não se deduz disto que aquelas retribuições não
eram castigos divinos reais, que efetivamente os disciplinavam naquele
tempo; Deus, porém, não só exerceu seus juízos naquela época, mas
também quis que houvesse um registro perpétuo delas para nossa
admoestação. Pois que utilidade seus juízos teriam se porventura se
destinassem aos mortos? E que utilidade teriam para os vivos, se
porventura não levassem em conta a advertência provinda do exemplo de
outras pessoas e para lhes servir de juízo? Paulo, porém, tem por infalíveis
os princípios sobre os quais todos os crentes devem estar de acordo, ou,
seja, que nada foi registrado nas Escrituras que não nos seja vantajoso
sabermos.
Sobre quem os fins dos tempos têm chegado. O termo fins [τέλη] às
vezes significa mistérios,39 e é provável que este significado se ajuste melhor
neste versículo. Não obstante, sigo a interpretação aceita, visto ser mais
simples. Paulo diz, pois, que os fins [terminos] de todas as eras chegou
sobre nós, porque a plenitude de todas as coisas é congruente com esta
presente era, visto que já atingimos os últimos tempos. Pois o reino de
Cristo é o alvo especial para o qual a Lei e todos os Profetas olhavam. Além
disso, esta declaração de Paulo se põe em conflito com a idéia popular de
que Deus foi mais inflexível durante o antigo Concerto, estava sempre em
guarda e pronto a punir as ofensas, mas que agora se tornou mais sensível e
muito mais disposto a perdoar-nos. E, com disposição semelhante,
estabelece que estamos sob a lei da graça, porque temos agora um Deus que
é muito mais facilmente conciliável do que aquele conhecido dos homens
de outrora. Entretanto, o que Paulo está realmente dizendo? Se Deus infligiu
castigo aos antigos, ele não nos deixará impunes em coisa alguma. Longe de
nós uma visão tão equivocada, ou, seja, que Deus é agora mais frouxo em
punir os pecados! Por certo que devemos reconhecer que a bondade de
Deus foi derramada sobre a humanidade muito mais gloriosa e ricamente
com a vinda de Cristo; mas, que isso tem a ver com a impunidade dos
dissolutos que abusam de sua graça?40
A única coisa que se deve observar é esta: que hoje existe um tipo
distinto de punição, porque, como Deus galardoou a fidelidade de outrora
mais com bênção material, com o fim de pôr seu amor paterno em maior
evidência para com eles, assim também lhes demonstrou sua ira mais por
meio de castigos físicos. Em contrapartida, na revelação mais plena que hoje
desfrutamos, ele não inflige castigos externos com muita freqüência, nem
trata os ímpios com freqüentes castigos físicos. O leitor poderá encontrar
mais razões sobre este tema em minhas Institutas (2.10.3).41
12. Por esse motivo, aquele que pensa estar em pé. O apóstolo
conclui, à luz do precedente, que não devemos nos ensoberbecer com
nossos primórdios ou progresso, ao ponto de nos tornarmos complacentes
e indolentes.42 Pois os coríntios nutriam uma vanglória tão intensa acerca
de sua própria situação, que se esqueceram de quão fracos eram, e
cultivaram muitas práticas vergonhosas e nocivas. Mergulharam de ponta
cabeça numa injustificada autoconfiança, semelhante à que os profetas
estavam sempre condenando no povo de Israel. Visto, porém, que os
papistas torcem este versículo com o fim de estabelecer seu ímpio dogma de
que devemos viver sempre num estado de incerteza no tocante à fé,43
notemos bem que existem dois gêneros de confiança.
O primeiro tipo de confiança repousa nas promessas divinas, de modo
que o crente se convence, em seu íntimo, que Deus jamais o deixará; e,
escudado nesta invencível convicção, ele enfrenta Satanás e o pecado, alegre
e destemidamente. Não obstante, ao mesmo tempo, rememorando suas
próprias fraquezas, ele se lança44 nas mãos de Deus, em temor e humildade;
e, em sua angústia, repousa nele de bom grado. Este tipo de confiança é
muito santo e saudável, e não pode alienar-se da fé, como se faz evidente à
luz de muitas passagens da Escritura, especialmente Romanos 8.33.
O segundo tipo de confiança tem suas raízes na indiferença, quando os
homens ardem em seu orgulho em virtude dos dons que possuem, e vivem
completamente despreocupados sobre sua própria situação, senão que, ao
contrário, aquiescem nela como se estivessem fora do alcance de qualquer
perigo; com o danoso resultado de se virem expostos a todos os ataques de
Satanás. É este tipo de confiança que Paulo deseja que os coríntios
renunciem, porquanto ele percebia que sua presunção repousava numa
convicção irracional. Não lhes diz, porém, que vivessem num estado de
ansiedade e incerteza quanto à vontade de Deus, ou que nutrissem medo de
que sua salvação não fosse algo definido e definitivo, segundo o sonho dos
papistas.45
Em suma, lembremo-nos de que Paulo está falando a homens que viviam
convencidos em razão de uma equivocada confiança no ser humano, e ele
está procurando pôr cobro a tal fraqueza, a qual teve sua origem na
dependência humana e não na divina. Porque, após louvar os colossenses
por sua solidez ou “firmeza na fé” [Cl 2.5], ele os convida a permanecerem
firmes, radicados em Cristo, e a serem “edificados nele e estabelecidos na fé”
[Cl 2.7].
13. Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; Deus, porém, é fiel, e não
permitirá que sejais tentados acima de vossa capacidade; e com a tentação vos dará a
via de escape, para que possais suportá-la.
14. Por esse motivo, meus amados, fugi da idolatria.
15. Falo como a sábios; julgai o que vos digo.
16. O cálice de bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão
que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo?
17. Visto que nós, que somos muitos, somos um só pão, um só corpo;
18. porque todos nós participamos do mesmo pão. Vede a Israel segundo a carne; os
que comem os sacrifícios não são participantes do altar?
13. Tentatio vos non apprehendit nisi humana. Fidelis autem Deus, qui non simet vos
tentari supra quam potestis: sed dabit una cum tentatione etiam exitum, ut possitis
sustinere.
14. Quapropter, dilecti mei, fugite ab idololatria.
15. Tanquam prudentibus loquor: indicate ipsi quod dico.
16. Calix bendictionis, cui benedicimus, nonne communicatio est sanguinis Christi?
panis, quem fragimus, nome communicatio est corporis Christi?
17. Quoniam unus panis, unum corpus multi sumus: omnes enim de uno pane
participamus.
18. Videte Israel secundum carnem: nonne qui edunt hostias, altari communicant?
13. Não vos sobreveio tentação que não fosse humana.46 Quem quiser
pode contentar-se com suas interpretações pessoais. Quanto a mim, penso
que isto foi escrito para encorajar os coríntios, para que, após ouvirem
acerca desses terríveis exemplos da ira divina, mencionados por Paulo, não
ficassem perturbados, nem assombrados, nem sucumbidos.
Conseqüentemente, a fim de que sua exortação tivesse algum efeito, ele
acrescenta que há oportunidade para arrependimento. Ele poderia ter posto
nestes termos: “Não há necessidade de desespero, e eu mesmo não tive a
intenção de deixar-vos desanimados. Naturalmente, o que vos sobreveio
não vai além do que usualmente sucede aos homens.” Outros são mais
inclinados a crer que aqui ele está recriminando a pusilanimidade dos
coríntios em ceder quando uma tentação47 leve os atingia; e não há dúvida
de que o termo humanus, traduzido por humana, às vezes significa
moderado.48 Portanto, o significado, segundo eles, é o seguinte: “É correto
que vos deixeis sucumbir diante de uma leve tentação?” Visto, porém, ser
mais adequado ao contexto olharmos este versículo em termos de
consolação, então sinto-me mais inclinado a adotar este ponto de vista.
Deus, porém, é fiel. Assim como lhes disse que tivessem bom ânimo
com relação ao passado, com o fim de movê-los ao arrependimento, também
os encoraja com uma esperança definida para o futuro, pois Deus não
permitirá que fossem tentados além de suas forças. Contudo os adverte a
que atentassem bem para o Senhor, porque, se pusermos nosso coração em
nossos próprios recursos, a tentação, não importa quão suave seja, levará a
melhor sobre nós e nos subjugará. Ele denomina o Senhor de fiel. Sua
intenção vai além da idéia de Deus ser verdadeiro em suas promessas. Ele
poderia ter posto nestes termos: “O Senhor é o Protetor comprovado de seu
povo, e em sua proteção estais seguros, porque jamais deixa os seus
entregues a sua própria sorte. Por isso, tendo-vos uma vez tomado sob sua
fidedignidade pessoal [in suam fidem], não tendes necessidade alguma de
temer, desde que dependais inteiramente dele. Pois indubitavelmente estaria
procedendo falsamente em relação a vós caso viesse a revogar seu apoio no
momento em que necessitássemos dele; ou, ao nos ver lutando em meio às
fraquezas, arqueados sob pesado fardo, permitisse se prolongassem nossas
lutas [tentações] por tempo indefinido.”49
Ora, Deus nos ajuda de duas formas, para que não sejamos vencidos em
meio à tentação: ele nos supre com força e põe limites à tentação. É da
segunda dessas formas que o apóstolo aqui principalmente fala. Ao mesmo
tempo, ele não exclui a primeira, a saber: que Deus alivia as tentações para
que não sucumbamos sob seu peso. Pois ele conhece a medida de nosso
poder, o qual ele mesmo conferiu. De acordo com esse fato, ele regula
nossas tentações. O termo tentação aqui tomo como que denotando, de uma
forma geral, tudo o que nos seduz.
14. Por esse motivo, meus amados, fugi da idolatria. O apóstolo agora
se volve para a pergunta particular, sobre a qual ele já fizera ligeira
observação, porque, temendo que o ensino franco, direto, viesse a deixá-los
desestimulados, ele então introduz as exortações gerais sobre as quais
temos lido. Agora, porém, ele resume o argumento que iniciara, a saber: que
um cristão não pode envolver-se ativamente nos ritos religiosos dos
incrédulos. Esta é a razão por que ele adverte: “fugi da idolatria.”
Antes de prosseguirmos, é preciso entender o que ele pretende com o
termo idolatria. Por certo que não ensinava que os coríntios fossem tão
ignorantes ou tão displicentes50 que chegasse a imaginar que praticassem
franca adoração a ídolos. Uma vez, porém, que não tinham escrúpulo de
freqüentar amiúde as reuniões dos incrédulos, e de tomar parte com eles em
certos ritos, então condena sua presunção como uma atitude que se
constituía num mal exemplo. Portanto, quando faz menção da idolatria aqui,
sem dúvida alguma ele está se referindo à idolatria externa, ou, se se preferir,
à pública profissão51 [de fé] no culto idolátrico. Pois assim como se diz ser
Deus adorado por genuflexão e outros sinais externos de reverência,
considerando que o modo fundamental e genuíno de adorá-lo está em
nossos corações, assim também se dá no caso dos ídolos, ou, seja: o
mesmo princípio deve aplicar-se aos opostos. Há hoje um grande número de
pessoas gastando seu tempo na busca de justificativa para suas práticas
externas,52 afirmando que não há perigo algum de seus corações se
envolverem, ao passo que Paulo, de fato, condena essas mesmas ações de
forma tão incisiva! Porque, diante do fato de que Deus deve possuir não só o
amor íntimo de nossos corações, mas também nossa devoção externa,
aquele que manifesta um sinal externa de culto [oferecido] a um ídolo está,
implicitamente, despojando Deus do que lhe é devido. O homem pode
protestar, como lhe agrade, dizendo que seu coração não está posto no
ídolo, no entanto ele não pode ocultar a própria ação, transferindo para um
ídolo a honra que é de Deus por direito [inalienável].
15. Falo como a sábios. Visto que Paulo estava preparando-se para
basear seu argumento no mistério da Ceia, ele usa esta pequena introdução
visando a imprimir-lhes algum ânimo, a fim de que fossem capazes de
atentar mais detidamente para a grandeza deste mistério.53 Ele poderia ter-se
expresso nestes termos: “Não estou falando a neófitos! Vós estais bem
cientes do poder da Santa Ceia, pois nela somos enxertados no corpo do
Senhor. Portanto, quão vergonhoso é vos iniciardes na comunhão dos
incrédulos a fim de vos tornardes unidos num só corpo com eles!” Ele,
porém, condena a ausência neles de meditação silenciosa, porque, depois
de serem instruídos na escola de Cristo, ainda envolviam-se irrefletidamente
em questões pecaminosas – e não havia como negá-lo!
16. O cálice de bênção. Ainda que a maior parte da sacra Ceia de Cristo
seja composta de dois elementos, pão e vinho, Paulo começa com o
segundo. Ele o chama “o cálice de bênção”, visto que estava destinado a ser
uma bênção mística [mysticam eulogiam]. Pois não concordo com aqueles
que entendem bênção [benedictio] aqui como sendo “ações de graças”, e
explicam o verbo abençoar no sentido de “dar graças”. Com certeza
concordo que às vezes ele é usado com este significado, porém jamais na
construção que Paulo adota aqui. A introdução que Erasmo faz de uma
preposição54 é muito forçada. Minha interpretação pessoal, não obstante, é
fácil e direta.
Abençoar o cálice, portanto, significa colocá-lo à parte para este
propósito singular, a saber, para que nos seja um sinal do sangue de Cristo.
Isto se dá pela Palavra da promessa, quando, de acordo com a diretriz de
Cristo, os crentes se reúnem para conservar o memorial de sua morte neste
sacramento. Em contrapartida, no caso dos papistas, a consagração é uma
espécie de mágica, a qual tem suas raízes no paganismo,55 pois não
conserva nenhuma semelhança com o rito integralmente genuíno que os
cristãos conservam. É verdade que tudo quanto comemos é igualmente
santificado pela Palavra de Deus, como Paulo mesmo nos ensina em 1
Timóteo 4.5. Neste contexto, porém, a bênção tem um propósito distinto, a
saber: para que o uso das dádivas divinas seja puro e sirva à glória de seu
Doador e a nosso próprio bem. Em contrapartida, o objetivo da bênção
mística na Ceia é que o vinho não seja mais uma bebida ordinária, e, sim,
seja separado como o alimento espiritual de nossas almas, ao transformar-
se num penhor [tessera] do sangue de Cristo.
Ele afirma que o cálice abençoado desta forma é coinonia [κοινωνίαν],
uma comunhão no sangue de Cristo. “O que isso significa exatamente?” –
perguntaria alguém. Exclua daqui a controvérsia, e tudo se fará plenamente
claro! É verdade que os crentes são estreitados pelo sangue de Cristo, de
modo a se tornarem um só corpo. É verdade também que tal união é
adequadamente denominada de comunhão [κοινωνία]. Dir-se-ia também o
mesmo sobre o pão. Além do mais, estou atento ao que Paulo adiciona logo
a seguir, à guisa de explicação, ou, seja: “todos nós somos feitos um só
corpo, porque participamos, juntos, do mesmo pão.” Mas, pergunto eu, qual
é a fonte dessa coinonia ou comunhão, que existe entre nós, senão que
estamos unidos a Cristo de tal sorte que “somos carne de sua carne e osso
de seus ossos”? [Ef 5.30.] Pois é indispensável que sejamos, igualmente,
unidos uns aos outros. Além disso, Paulo aqui não está discutindo uma
mera comunhão humana [non tantum de mutua inter homines
communicatione], e, sim, a união espiritual entre Cristo e os crentes [sed de
spirituali Christi et fidelium unione], a fim de fazer evidente que é um
intolerável sacrilégio tornarem-se eles contaminados pela comunhão com os
ídolos. À luz do contexto deste versículo podemos, pois, concluir que
coinonia ou comunhão no sangue é a aliança [societatem] que temos com o
sangue de Cristo quando este nos enxerta, a todos nós, em seu corpo, a fim
de que possa viver em nós e nós nele.
Ora, deveras concordo que a referência ao cálice como comunhão é uma
figura de linguagem, porém só até onde a verdade que a figura comunica não
fique destruída; em outros termos, contanto que a realidade mesma esteja
também presente e a alma receba a comunhão no sangue, assim como a boca
degusta o vinho. Os papistas, porém, não podem dizer que o cálice de
bênção é uma comunhão no sangue de Cristo, no caso deles, porque
observam uma forma desfigurada e mutilada da Ceia – se porventura o nome
Ceia ainda pode ser usado para essa estranha cerimônia que não passa de
um mosaico de infindáveis invenções humanas, e que mal conserva um
tenuíssimo traço daquela Ceia que nosso Senhor instituiu. No entanto,
mesmo que tudo mais se conformasse ao uso correto da Ceia, uma única
coisa estaria ainda em conflito com ela, a saber: que o cálice, que é a metade
do sacramento, é negado a todo o povo.
O pão que partimos. À luz desta expressão dá-se a entender que, na
Igreja Primitiva, o costume era que cada pessoa quebrava para si um pedaço
de um só pão, para que sua união no corpo de Cristo pudesse ser
claramente notada por todos os crentes. Partindo das evidências deixadas
por homens que foram eminentes na Igreja dos três séculos após os
apóstolos, faz-se também mui claro que esta prática foi mantida por longo
tempo. Depois, a superstição logrou vitória, com o danoso resultado de que
ninguém mais ousou tocar o pão com suas próprias mãos, senão que os
sacerdotes o põem em sua boca.
17. Visto que somos um só pão. Já ressaltei supra que a intenção de
Paulo aqui não foi estimular-nos ao amor mútuo, senão menciona isto de
passagem para que os coríntios pudessem entender que devemos também
cultivar nossa união com Cristo, em nossa pública profissão de fé, diante do
fato de que nos encontremos todos juntos com o fim de participarmos do
símbolo dessa sacra união. Nesta, a segunda parte de sua referência à Ceia,
Paulo menciona só o outro elemento do Sacramento, e é muitíssimo comum
o uso que a Escritura faz de sinédoque,56 ou, seja, descreve toda a Ceia
como “o partir do pão”. Que deste fato meus leitores sejam, de passagem,
precavidos, para que nenhuma pessoa inexperiente se sinta perturbada pelo
odioso sofisma de uns poucos, sim, porém poderosos e trapaceiros, ou,
seja: visto que Paulo só menciona o pão, então sua intenção era privar o
povo da metade do Sacramento.
18. Vede Israel segundo a carne. Paulo usa outro exemplo com o fim de
provar que a natureza de todos os ritos religiosos consiste em vincular-nos
a algum gênero de união [societas] com Deus. Pois a lei mosaica não admitia
ninguém à festa sacrificial, a menos que estivesse adequadamente
preparado; e naturalmente não me refiro apenas aos sacerdotes, mas a todos
os que comiam do que era deixado do sacrifício. Segue-se daqui que todo
aquele que comia da carne do animal sacrificado era participante do altar,
ou, seja, da santificação, da qual Deus considerava dignos seu templo e
todos os ritos efetuados ali.
Esta expressão, segundo a carne, pode dar a impressão de que foi
inserida para que os coríntios pudessem comparar os ritos israelitas e
cristãos, e viessem a ponderar da maneira a mais sublime possível sobre a
eficácia de nossa Ceia. Ele poderia ter posto nestes termos: “Se houve tanta
virtude nas figuras [figuris] antigas e naqueles rudimentos da antiga
instrução, descobriremos que há muito mais [virtude] em nossa Ceia, na
qual o Senhor se revela muito mais plenamente.” Não obstante, creio que é
mais simples entender que, ao usar estas palavras, Paulo só pretendia fazer
distinção entre os judeus que eram obedientes à lei e aqueles que se haviam
convertido a Cristo.
Outro contraste tinha ainda que ser traçado, a saber: se os sacrifícios
oferecidos a Deus santificam seus adoradores, de outro lado os sacrifícios
oferecidos aos ídolos57 produzem impureza. Pois é Deus, e unicamente ele,
quem santifica; portanto, todos os demais deuses produzem impureza.58
Além disso, se os crentes são introduzidos, através dos mistérios,59 à
comunhão e união com Deus, então os incrédulos são admitidos, através de
suas práticas supersticiosas, à comunhão60 com seus ídolos. Mas antes de
tratar disto, o apóstolo refuta, por antecipação [per anthypophoram],61 a
pergunta que poderia suscitar-se à guisa de objeção.
19. O que digo eu? Que o ídolo é alguma coisa? ou o que é oferecido em sacrifício ao
ídolo é alguma coisa?
20. Eu, porém, digo que as coisas que os gentios sacrificam, eles as sacrificam aos
demônios, e não a Deus; e não quero que tenhais comunhão com os demônios.
21. E não quero que bebais o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; sim, não podeis
ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.
22. Provocaremos zelos no Senhor? Somos mais fortes do que ele?
23. Para mim todas as coisas são lícitas, mas nem todas são convenientes; para mim
todas as coisas são lícitas, mas nem todas as coisas edificam.
24. Ninguém busque o que é propriamente seu, mas cada um o bem do outro.
19. Quid ergo dico? idolum, aliquid esse? aut idolo immolatum, aliquid esse?
20. Sed quæ immolant Gentes, dæmoniis immolant, non Deo: nolo autem vos participes
fieri dæmoniorum.
21. Non potestis calicem Domini bibere, et calicem dæmoniorum: non potestis mensæ
Domini communicare, et mensæ dæmoniorum.
22. An provocamus Dominum? numquid fortiores illo sumus?
23. Omnia mihi licent, sed non omnia conducunt: omnia mihi licent, at non omnia
ædificant.
24. Nemo quod suum est quærat, sed quisque quod alterius est.
19. O que digo eu? À primeira vista, pode parecer que o argumento do
apóstolo não tem fundamento, ou que está tentando provar que os ídolos
possuem alguma realidade e algum poder. Ora, é possível suscitar-se a
seguinte objeção: “Que sorte de comparação há entre o Deus vivo e os
ídolos? Deus nos traz à comunhão com ele por meio dos Sacramentos. Sim,
é verdade! Mas o que dizer dos ídolos que nada são, no entanto se revelam
tão poderosos que podem fazer a mesma coisa? [1Co 8.4]. Ou tu acreditas
que os ídolos são tudo ou podem fazer tudo?” Paulo responde que ele não
está visando ao ídolo propriamente dito,62 mas, ao contrário, tem em vista a
intenção dos que sacrificam aos ídolos. Porquanto esta era a fonte da
impureza a que ele se referia implicitamente. Portanto, ele reconhece que o
ídolo nada significa. Igualmente acusa que os gentios estão simplesmente
enganando a si próprios, ao entregar-se aos solenes ritos de dedicação,63 e
que as criaturas de Deus não se corrompem ao pôr-se em contato com essas
coisas fúteis. Visto, porém, que esses ritos visam a algo que vem saturado
de superstição, e da mesma forma condenado, e porque todos seus
procedimentos são ímpios, ele chega à conclusão que todo aquele que
ativamente se associa a eles [os ídolos] se fazem contaminados.
20. Mas as coisas64 que os gentios sacrificam. Para completar a
resposta, ela precisa ser discernida nesta forma negativa: “Eu não disse que
um ídolo é alguma coisa, nem penso que ele possua algum poder; estou,
porém, afirmando que o que os gentios sacrificam, eles o destinam ao diabo,
e não a Deus, e que esta é a razão por que considero o que eles fazem como
tendo sua fonte numa superstição perversa e repulsiva. Mas o que temos a
fazer é prestar muita atenção no motivo que jaz por trás de tudo isso.
Portanto, uma pessoa que se relaciona com eles [os ídolos] põe em pública
evidência que está tomando parte na mesma religião falsa que praticam.” O
apóstolo, pois, continua pressionando: Se na prática dessas coisas temos
que tratar somente com Deus, elas seriam de nenhum préstimo; mas quando
nosso envolvimento é com pessoas como nós, tais coisas se tornam
pecaminosas, porque todo aquele que toma assento numa festa idolátrica se
revela um autêntico adorador de ídolos.
Há quem considere demônios [dæmones], neste contexto, como sendo os
deuses imaginários dos gentios, visto que estes geralmente falam deles
[seus ídolos] neste sentido. Pois quando usavam o termo demônios, sua
referência era aos deus menores, tais como os heróis,65 e assim para eles o
termo produzia um bom sentido. Platão, numa variedade de exemplos,
emprega o termo para denotar genii ou anjos.66 Tal conceito, contudo, se
acha em completa discordância com o que Paulo tinha em mente, pois ele
pretende mostrar quão grave pecado é tomar parte em qualquer prática que
leve óbvias características de ser culto aos ídolos. Portanto, o que ele
pretendia não era propriamente minimizar, mas realçar o quanto possível a
desconsideração para com Deus envolvida nele. Quão inadequado, pois,
teria sido usar um termo denotando honra com vistas a acobertar uma
perversidade da mais elevada categoria! Certamente procede do profeta
Baruque [4.7] que todas as coisas que são sacrificadas aos ídolos, na verdade
são sacrificadas aos demônios [diabolis, Dt 32.17; Sl 96.5]. Naquela passagem
dos escritos do profeta, a tradução grega, que naquele tempo era de uso
comum, traz a palavra δαιμόνια [dæmonia], e este é seu uso comum na
Escritura. É muito mais provável, pois, que Paulo tivesse emprestado suas
palavras do profeta a fim de expressar a enormidade do mal, em vez de,
expressando-se segundo o costume pagão, ele teria externado o que
pretendia reforçar com a mais extrema execração!
Não obstante, tudo isso pode parecer conflitante com o que acabei de
afirmar, ou, seja, que Paulo tinha em mira a intenção dos adoradores,
porquanto a intenção deles não era adorar demônios, e, sim, divindades
imaginárias, de sua própria invenção. Minha resposta é que as duas coisas
estão em plena harmonia, pois quando os homens se tornam tão fúteis em
suas imaginações [Rm 1.21], ao ponto de prestar honras divinas a criaturas
no lugar do Deus único, este castigo está suspenso sobre suas cabeças,
porquanto servem a Satanás. Na verdade não existe aquela “posição
intermédia”67 entre Deus e Satanás que tanto buscam, senão que é o próprio
Satanás que pessoalmente se lhes apresenta como um objeto de adoração,
sempre que voltam as costas ao verdadeiro Deus.
E não quero que tenhais comunhão com os demônios. Se o termo
demônio fosse uma referência a coisas indiferentes, quão insípida seria esta
expressão do apóstolo, quando de fato ela está em extremo saturada de
severidade contra os adoradores de ídolos. E apresenta a razão que justifica
seu desejo, ou, seja: ninguém pode ter comunhão com Deus e com os ídolos
concomitantemente. Há, porém, pessoas que fazem promessa de comunhão
em todos os ritos sagrados. Lembremo-nos, pois, que só depois de
dizermos adeus a tudo quanto é de caráter sacrílego,68 e só então, é que
Cristo nos admite à santa festa de seu corpo e de seu sangue. Pois aquele
que deseja tomar posse desta [festa] deve também renunciar àqueles [ritos
pagãos]. Oh! mui miserável é a sorte daqueles69 que, com receio de ofender
ao próximo, não hesitam em corromper-se com os ritos supersticiosos e
ilícitos! Visto que insistem nesta vereda, fazem-se responsáveis por
suprimir-se da comunhão de Cristo, e por estabelecer barreiras à via de
acesso de sua própria aproximação à mesa de seu bem-estar espiritual.
22. Ou provocaremos o Senhor? Ele ministrara seu ensino; agora se
ergue para falar em termos ainda mais veementes, porque era consciente de
que uma ofensa contra Deus, da mais atroz espécie, estava sendo reputada
por eles como algo sem importância, ou, pelo menos, era considerada como
simples equívoco sem a menor conseqüência. Os coríntios imaginavam que
sua presunção era desculpável, assim como nenhum de nós pode suportar
crítica, senão que busca um subterfúgio70 após outro a fim de esconder-se.
Paulo, porém, está totalmente certo em dizer que, agindo assim, estamos
promovendo guerra contra Deus; pois ele requer isto de nós, e não menos
que isto: que façamos sincera adesão a tudo quanto ele faz conhecido em
sua Palavra. Daí, os que se esquivam do problema, imaginando que poderão
incólumes e sem qualquer conseqüência desobedecer ao mandamento de
Deus, não estão porventura abertamente terçando armas com Deus? E esta é
a razão por que o profeta pronuncia maldição sobre todos quantos chamam
ao mal bem, e às trevas luz [Is 5.20].
Somos mais fortes do que ele? O apóstolo adverte quão tremendo é o
risco de se provocar a ira divina, visto que ninguém pode fazê-lo sem
incorrer em sua própria destruição.71 Como se diz, quando os homens estão
envolvidos, ninguém pode prever que rumo tomará o destino da guerra; mas
aquele que luta contra Deus está voluntariamente acenando para sua
própria ruína – nada menos que isso! Portanto, se tememos ter a Deus por
inimigo, então devemos temer muito mais tentar apresentar justificativas em
prol de pecados flagrantes, a saber: tudo aquilo que se põe em conflito com
sua Palavra. Devemos ainda estremecer-nos ante a idéia de pôr em dúvida
coisas que Deus nos comunicou, porque isso nada mais é senão escalar o
céu como fizeram os gigantes72 [Gn 11.4].
23. Para mim todas as coisas são lícitas. Uma vez mais o apóstolo volta
ao princípio da liberdade cristã, por meio da qual os coríntios estavam
defendendo-se, e rebate sua objeção com a mesma explicação que dera
antes, a saber: estar presente numa festa [pagã] e comer da carne que fora
sacrificada era uma questão física externa, e portanto em si mesma
completamente inócua e permissível. Paulo assevera que de fato não há
problema algum, porém refuta sua objeção afirmando que devemos levar em
conta a edificação de alguém além de nós mesmos. “Para mim todas as
coisas são lícitas”, diz ele, “porém nem todas as coisas são benéficas”, a
saber: a nosso próximo; pois nenhum de nós deve agir visando unicamente
a si próprio, como o apóstolo adiciona no próximo versículo, porém
devemos discernir se algo porventura não seria nocivo a nossos irmãos.
Ele, em seguida, especifica o tipo de vantagem: quando há edificação,
pois não devemos atentar meramente para a vantagem da carne. “O que isso
implica?” – perguntará alguém. “Tu estás insinuando que aquilo que Deus,
em outras circunstâncias, permite cessa de ser permissível assim que deixa
de ser benéfico a nosso próximo? Se este, pois, é o caso, então nossa
liberdade estaria sob o controle dos homens.” Pondera atentamente nas
palavras de Paulo, e então perceberás que a liberdade, não obstante,
permanece sem prejuízo quando te adaptas a teu próximo, e que só o uso
dela é restringido, pois ele reconhece que ela é lícita, porém diz que não
deve ser usada caso não for para edificação.
24. Ninguém busque o que é propriamente seu. Ele escreve sobre o
mesmo tema em Romanos 14: “Sigamos, pois, as coisas que servem para a
paz e para a edificação mútua” [v. 19]. Este preceito é muitíssimo necessário,
porque nossa natureza é tão corrupta que cada um de nós busca
[naturalmente] seus próprios interesses e negligencia os de seus irmãos.
Pois assim como a lei do amor requer que amemos a nosso próximo como
amamos a nós mesmos, somos igualmente intimados a preocupar-nos com
seu bem-estar. Finalmente, o apóstolo não diz explicitamente que as pessoas
não devam pensar em seus próprios interesses – longe de nós tal coisa! Mas,
o que ele deseja é que não se prendam a eles, nem tampouco renunciem
parte de seus direitos toda vez que o bem-estar de seus irmãos o exija.
25. Comei de tudo quanto se vende no mercado, sem perguntar nada, por causa da
consciência;
26. porque do Senhor é a terra, e toda sua plenitude.
27. E se algum dos incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo que se puser
diante de vós, sem nada perguntar, por motivo de consciência.
28. Mas se alguém vos disser: Isto foi oferecido em sacrifício, não comais, por causa
daquele que vos adverte e por motivo de consciência.
29. Consciência, digo, não a tua propriamente, mas a de outrem. Pois, por que seria
minha liberdade julgada pela consciência de outrem?
30. Se pela graça sou participante, por que seria eu difamado por aquilo pelo que dou
graças?
31. Portanto, quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a
glória de Deus.
32. Não deis ocasião a escândalo, nem a judeus, nem a gentios, nem à igreja de Deus.
33. Como também agrado a todos em todas as coisas, não buscando meu próprio
proveito, mas o proveito de muitos, para que sejam salvos.
1. “Comme feroyent des gendarmes, qui ont desia fidlement serui si long temps, que pour leur
faire honneur on lesd enuoye se reposer le reste de leur vie.” – “Segundo a maneira dos
soldados que já serviram com fidelidade por tanto tempo, que, com vistas a vestir-lhes com
honras, eram desobrigados, de modo que eram isentados do trabalho durante o resto de sua
vida.”
2. “Aussi bien qu’à nous.” – “Tanto quanto a nós.”
3. “Ils ont senti le jugement de Dieu, et ne l’ont peu euiter.” – “Eles têm sentido o juízo de Deus, e
não têm sido capazes de escapar dele.”
4. Eux, qui estoyent son peuple.” – “Os que eram seu povo.”
5. “Nous nous assuietissons et faisons serment.” – “Submetemo-nos e juramos.”
6. “Et terrien.” – “E terrenos.”
7. “Mystere et secret.” – “Mistério e segredo.”
8. “Par toute l’Escriture.” – “Ao longo de toda a Escritura.”
9. “Es Escrituras.” – “Nas Escrituras.”
10. “Nous n’en auons maintenant pas un seul mot en toute l’Escriture.” – “Não temos nenhuma
palavra sobre ele em toda a Escritura.”
11. Veja-se a discussão de Calvino deste tema no próprio comentário ao Evangelho de João,
nesta passagem (João 6).
12. “Choses qui ayent apparence sans effet.” – “Coisas que têm uma aparência destituída de
realidade.
13. “Entre ces deux extremitez.” – “Entre estes dois extremos.”
14. Nosso autor, tendo ocasião de referir-se ao mesmo “dogma escolástico” quanto aos
Sacramentos do Velho e do Novo Testamentos (quando comenta Rm 4.12), diz: “Illis enim vim
justificandi adimunt, his attribuunt.” – “Eles negam ao primeiro o poder de justificar, enquanto
validam o segundo.”
15. “Les Issraelites.” – “Os israelitas.”
16. “Celebre et magnifie.” – “Celebra e enaltece.”
17. “Estoit.” – “Era.”
18. “C’est à dire lesquelles il ne faut prendre cruëment, et à la lettre, comme on dit.” – “Equivale
dizer: que não deve ser tomado estritamente ou segundo a letra, como dizem.” O leitor
encontrará este tema discutido em alguma extensão na Harmonia dos Evangelhos.
19. “D’vne autre façon et mesure que nous ne faisons pas.” – “De uma maneira e medida
diferentes do que fazemos.”
20. “Il a fait vne horrible vengence sur eux.” – “Ele infligiu terrível vingança sobre eles.”
21. A tradução da Vulgata é em figura [in figure]. Wiclif (1380) traduz assim a sentença: “Mas estas
coisas são apresentadas em figuras para nós.”
22. Nosso autor dá aqui o sentido literal de Kibroth-hatta-avah.
23. “Et esgayement desbordé.” – “E desenfreado excesso.”
24. “Apres la panse vient la danse.” – “Depois do jantar vem a dança.”
25. “Et ne faut point douter que les Israelites n’ayent pour lors adoré leur veau auec telle
ceremonie et obseruation que les Gentils faisoyent leurs idoles.” – “E não podemos duvidar de
que os israelitas, naquela ocasião, adoraram seu bezerro com a mesma cerimônia e cuidado
que os gentios faziam com seus ídolos.”
26. “Tant petite soit elle.” – “Seja sempre tão pequeno.”
27. “De faire vn denombrement entier des personnes par testes, comme on dit.” – “Fazer uma
completa numeração de pessoas per capita, como dizem.”
28. “Les juges qui estoyent deputez pour cognoistre des matieres ciuiles, estoyent nommez les
cent, et toutes fois il y en auoit deux par dessus.” – “Os juízes que eram designados para fazer
reconhecimento de questões civis eram chamados Os Cem, e contudo havia acima de
duzentos.” Como o Centumviri era escolhido dentre as trinta e cinco tribos, nas quais o povo
romano era dividido, três de cada tribo, consistiam propriamente de 105 pessoas.
29. “Auoit sacrifié à Baalpheor.” – “Tinham sacrificado a Baal-Peor.”
30. “Non pas tant pour affection qu’ils eussent à la fausse religion.” – “Não tanto por eles terem
adquirido uma falsa religião.
31. “Vne impiete si vileine.” – “Uma impiedade tão vil.”
32. “Vn desir importun et desordonné.” – “Um desejo importuno e desordenado.”
33. Billroth, em seu comentário sobre as Epístolas aos Coríntios, alega que o conceito que é aqui
assumido por Calvino “só poderia ser sugerido por pessoas de um caráter dogmático”. A
objeção assim apresentada, contudo, é satisfatoriamente descartada em uma valiosa nota
formulada pelo Dr. Alexander, em sua tradução de Billroth. Ver Cabinet Biblical, no. xxi, pp. 246,
247. Ver também Henderson sobre Inspiração, pp. 553, 554.
34. “C’est à dire, l’Eternel.” – “Equivale dizer, o Eterno.”
35. “De n’entrer point en la iouissance de la terre promise.” – “Não entrar no desfruto da terra
prometida.”
36. “Elle ferme la bouche à vn tas d’enragez.” – “Fecha a boca de um bando de dementes.”
37. “Qui leur sont aduenues.” – “Que aconteceu a eles.”
38. “Car quant aux Israelites qui viuoyent lors, il n’estoit point requis que ces choses fussent
enregistrees et misses par escrit, mais seulement pour nous.” – “Para que, no que diz respeito
aos israelitas que viveram naquele tempo, não se requeria que essas coisas fossem registradas
e confiadas à escrita, mas somente a nosso respeito.”
39. O termo é aplicado, neste sentido, mais especialmente aos mistérios eleusianos, os quais
eram chamados τὰ μεγάλα τέλη – os grandes mistérios. Platão, República 560 E. Ver também
Eurípedes, Med. 1379.
40. “Dequoy sert cela pour prouuer que les meschans, et ceux qui abusent de la grace de Dieu
demeureront impunis?” – “De que uso é este para impedir que os ímpios e os que abusam da
graça de Deus sejam punidos?”
41. Nosso autor provavelmente se refere mais particularmente àquela parte das Institutas na qual
ele declara os pontos de diferença entre o Velho e o Novo Testamentos.
42. “Que nous-nous endormions comme gens asseurez, et sans grand soin.” – “Que nos
resignemos a dormitar, como pessoas que são confiantes e destituídas da devida prudência.”
43. “Par laquelle ils disent qu’il nous faut tousiours douter de la foy.” – “Pela qual dizem que
devemos duvidar sempre no tocante à fé.”
44. “Se remet du tout.” – “Entrega-se totalmente.”
45. O leitor observará que nosso autor já fez leve menção deste tema, em certa extensão,
quando comenta o capítulo 2.12.
46. “Tentation ne vous a point saissis, ou surprins.” – “Nenhuma tentação vos tomou, ou
sobreveio.”
47. “Pour si petites et legeres tentations.” – “Em tão pequenas e leves tentações.”
48. A palavra ανθρώπινος (humano) pode ser entendida aqui no sentido de proporcionado à força do
homem, ou adaptado à fraqueza do homem. Na tradução de Tyndale, bem como na de Crammer, é
traduzido assim: “Segundo a natureza do homem.” A maioria dos intérpretes entende num
sentido semelhante uma expressão que ocorre em 2 Samuel 7.14: “a vara de homens e os
açoites dos filhos de homens.”
49. Mr. Fuller de Kettering, ao comparar 1 Coríntios 10.13 com 2 Coríntios 1.8, com razão observa:
“A capacidade na primeira dessas passagens, e a força na última, longe estão de ser as mesmas.
Uma é a expressão daquele apoio divino que o Senhor prometeu dar a seus servos em todas as
provações; a outra é a expressão das faculdades que possuímos naturalmente como criaturas.
Podemos ser tentados além destas, como todos os mártires o foram, e contudo não além
daquela. O homem externo pode perecer; enquanto que o homem interior é renovado dia a dia.”
Obras de Fuller, vol. iii, p. 609.
50. “Tant despourueus de sens et cognoissance de Dieu.” – “Tão destituído de juízo e
conhecimento de Deus.”
51. “La profession et demonstrance.” – “A profissão e exibição.”
52. “Les actes ou gestes externes d’idolatrie.” – “Os atos ou gestos externos de idolatria.”
53. “L’excellence de ce mystere.” – “A excelência deste mistério.”
54. “Qu’on supplee Pour.” – “Que se deve suprir por.” As palavras originais, ὅ εὐλογου̑μεν, são tidas
por muitos intérpretes eminentes como tendo sido substituídas por καθ ̓ ὅ εὐλογου̑μεν τὸν Θεὸν –
pelo qual damos graças a Deus.
55. O leitor encontrará este tema mais amplamente desenvolvido na Harmonia dos Evangelhos.
56. Figura de linguagem em que uma parte é expressa pelo todo.
57. “Des sacrifices et autres ceremonies des idoles.” – “Sacrifícios e outras cerimônias
oferecidos aos ídolos.”
58. “Rendent profanes ceux qui les seruent.” – “Tornar profanos os que os servem.”
59. “Les sacremens.” – “Os sacramentos.”
60. “Vne conionction et union auec leurs idoles.” – “Uma conexão e união com seus ídolos.”
61. Antipófora (ἀνθυποφορα) é uma figura de linguagem por meio da qual quem fala antecipa as
objeções de seus oponentes, e lhes responde.
62. “Simplement, et en soy.” – “Simplesmente e em si mesmo.”
63. “Les ceremonies des dedicaces et consecrations solennelles desquelles les Gentils vsent, ne
sont que vent, et n’emportent rien.” – “As cerimônias de dedicações e consagrações solenes, das
quais os gentios fazem uso, são mero vento, e nada significam.”
64. “Mais ie di, que les choses.” – “Digo, porém, que as coisas.”
65. “Ils entendoyent ceux qui estans hommes de grand renom, auoyent este faits dieux.” –
“Queria significar aqueles que, sendo homens de grande renome, foram convertidos em
deuses.”
66. Os seguintes exemplos podem ser deduzidos de Platão: “Todo demônio mantém um lugar
intermédio entre Deus e o homem mortal”; Deus não mantém diálogo direto com o homem, mas
toda comunicação e relação são mantidas entre os deuses e os homens por meio dos
demônios”; um demônio é um intérprete e repórter dos homens aos deuses e dos deuses aos
homens.”
67. É bem provável que Calvino esteja de olho na posição de Platão já citada, a saber, que “todo
demônio mantém um lugar intermédio entre Deus e o homem mortal”.
68. “Quand auant que nous y presenter, nous auons renoncé à tous sacrileges, c’est a dire à
toute impiete et idolatrie.” – “Quando, antes de termos acesso a ela [a comunhão], tenhamos
renunciado a tudo quanto é sacrílego, ou, seja, toda impiedade e idolatria.”
69. “O plus que miserable la condition de ceux.” – “Oh! muito mais miserável é a condição
daqueles.”
70. “Qui ne veulent point venir au poinct.” – “A quantos não desejam convencer-se.”
71. “Ruine et condemnation.” – “Ruína e condenação.”
72. O leitor encontrará o mesmo incidente na Sagrada História referida pelo autor, em
considerável extensão na Harmonia dos Evangelhos.
73. “Car combien que les Corinthiens faissent en cela plusieurs fautes qui estoyent toutes
compriss sous vne generalite.” – “Pois embora os coríntios, neste caso, cometessem muitas
faltas, as quais estavam todas compreendidas sob uma só descrição geral.”
74. “Sans en enquerir rien.” – “Sem formular qualquer pergunta quanto a isso.”
75. “Debatre en son entendement pour et contre, comme on dit.” – “A mente de alguém a debater,
em prol e contra, por assim dizer.”
76. ̕Ανακρίνω, significa propriamente examinar detidamente. Bloomfield afirma que “os
comentaristas mais recentes consideram a expressão μηδὲν ἀνακρίνοντες como substituída por
μηδὲν κρέας (isto é, κρέατος γένος) ἀνακρίνοντες, sem examinar o tipo de alimento, para ver se
procede ou não do ídolo.” Esta interpretação é natural, e concorda particularmente bem com a
expressão como se acha reiterada no versículo 27.
77. “Seulement autant que faire se peut sans offenser Dieu.” – “Somente até onde podem agir
assim sem ofender a Deus.”
78. “Auec grand auis et prudence.” – “Com grande cuidado e prudência.”
79. Ela é omitida na versão de Alexandria e de Clermont e em todos os manuscritos mais antigos;
bem como nas versões Siríaca, Arábica e Vulgata.
80. “C’est a dire, de nostre liberte.” – “Equivale dizer, de nossa liberdade.”
81. “Qu’il n’y a rien en toute nostre vie, tant petit soit-il.” – “Que nada há em toda nossa vida que
seja pequeno demais.”
82. A expressão proverbial referida ocorre em Auctor. ad Herem. 4.28 – “Esse oportet ut vivas,
non vivere ut edas.” – “Você deve comer para viver; não viver para comer.”
Capítulo 11
17. Ora, nisto que vos declaro, não vos louvo; porquanto vos reunis não para melhor, e,
sim, para pior.
18. Porque, antes de tudo, quando vos reunis na igreja, o que tenho ouvido é que há
divisões entre vós; e em parte acredito.
19. Pois é necessário que haja heresias entre vós, para que também os aprovados
dentre vós se manifestem.
20. Quando, pois, vos reunis em um lugar, isso não significa comer a ceia do Senhor;
21. porque, ao comerdes, cada um toma antes de outro sua própria ceia; e, assim, um
está faminto e outro, embriagado.
22. Será que não tendes casas onde comer e beber? Ou desprezais a igreja de Deus e
envergonhais os que nada possuem? Que vos direi eu? Louvar-vos-ei nisto? Não vos
louvo.
17. Hoc autem denuntians non laudo, quod non in melius, sed in peius convenitis.
18. Primum enim, convenientibus vobis in Ecclesiam, audio dissidia inter vos esse: et ex
parte credo.
19. Oportet enim hæreses quoque esse in vobis, ut qui probe sunt, manifesti fiant inter
vos.
20. Convenientibus ergo vobis in unum, non est Dominicam cœnam edere.
21. Unusquisque enim propriam cœnam præsumit edendo: atque hic quidem esurit, ille
autem ebrius est.
22. Numquid domos non habetis, ad edendum et bibendum, aut Ecclesiam Dei
contemnitis, et pudore afficitis eos qui non habent? Quid vobis dicam? Laudabo vos in
hoc? Non laudo.
23. Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: Que o Senhor Jesus, na
mesma noite em que foi traído, tomou o pão;
24. e enquanto dava graças, o partiu, e disse: Isto é o meu corpo, que é quebrado por
vós; fazei isto em memória de mim.
25. Da mesma maneira, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este
cálice é o novo testamento em meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes,
em memória de mim.
26. Porque, todas as vezes que comerdes este pão, e beberdes este cálice, proclamais a
morte do Senhor até que ele venha.
27. Por isso, todo aquele que comer este pão, ou beber este cálice do Senhor,
indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor.
28. Assim, examine o homem a si mesmo, e então coma desse pão e beba desse cálice.
29. Pois aquele que come e bebe, indignamente, sem discernir o corpo do Senhor, come
e bebe juízo para si mesmo.
23. Ego enim accepi a Domino, quod etiam tradidi vobis: quod Dominus Iesus nocte qua
traditus est, accepit panem.
24. Et gratiis actis, fregit, et dixit, Accipite, edite: hoc est corpus meum quod pro vobis
frangitur: hoc facite in mei memoriam.
25. Similiter et calicem, postquam cœnaverant, dicens, Hic calix Novum testamentum est
in sanguine meo: hoc facite, quotiescunque biberitis, in mei memoriam.
26. Quotiescunque enim ederitis panem hunc, et biberitis hunc calicem, mortem Domini
annuntiabilitis, donec veniat.
27. Itaque quisquis ederit panem hunc, aut biberit panem hunc, aut biberit calicem
Domini indigne, reus erit corporis et sanguinis Domini.
28. Probet autem homo se ipsum, et sic de pane illo edat, et de calice bibat.
29. Qui enim ederit aut biberit indigne, iudicium sibi edit ac bibit, non discernens corpus
Domini.
Até aqui ele esteve mostrando o que estava errado;551 agora ele começa a
ensinar-lhes o melhor caminho para a correção dos transtornos. Pois a
instituição de Cristo segue um padrão determinado, de modo que o mais
leve desvio dele significa que se cai em erro. Visto que os coríntios tinham-
se afastado desse padrão, Paulo os chama de volta para o mesmo. Esta
passagem precisa ser criteriosamente estudada, pois ela revela que o único
remédio para a remoção e correção das deturpações é a volta à instituição
original de Deus. Isto foi o que o Senhor pessoalmente fez quando falou do
matrimônio [Mt 19.3]. Os escribas faziam referência ao costume e também à
concessão feita por Moisés, mas a única coisa que ele mesmo fez foi apontar
para a instituição do Pai; porque ela é um princípio inviolável. Ao
procedermos assim hoje, os papistas fazem estardalhante protesto, dizendo
que estamos manipulando e corrompendo tudo.56 O que fazemos não é só
deixar bem claro o fato de se terem afastado da instituição original de nosso
Senhor, de uma única forma, mas que a corromperam de mil formas. Não há
nada mais óbvio do que ser sua missa o oposto da Santa Ceia de nosso
Senhor. Vou um pouco além: Declaro em alto e bom som que ela está
saturada de ímpias abominações. Portanto, ela necessita de séria correção.
Nossa exigência, e é óbvio que Paulo teve de fazê-la também, é que a
instituição de nosso Senhor seja nosso padrão comum, e que ambos os
lados estejam de acordo sobre isso. Eles fazem violento protesto contra
isso. Ora, o leitor conhece a natureza da controvérsia em torno da Ceia do
Senhor nos dias atuais.
23. Porque eu recebi do Senhor. Com estas palavras Paulo tenciona
mostrar que a única autoridade que tem real valor na Igreja é a do Senhor.
Ele poderia ter posto nestes termos: “Não vos entreguei algo de minha
própria autoria. Quando vim a vós, não inventara uma nova ceia, produto de
minha própria imaginação; porém tenho a Cristo como seu autor, e dele eu
recebi o que pessoalmente vos entreguei. Portanto, recorro a esta fonte
única.”57 Por isso, quando voltamos nossas costas às normas que os
homens engendram, então a autoridade exclusiva de Cristo permancece
inabalável.
Na noite em que ele foi traído. A referência à ocasião nos lembra que o
propósito do sacramento é que sejamos confirmados na bênção que a morte
de Cristo confere. Porque o Senhor poderia ter confiado este selo do pacto58
aos discípulos em alguma ocasião anterior, porém aguardou o tempo de seu
sacrifício, para que os apóstolos não tivessem que esperar muito a fim de
verem que o que ele prefigurava no pão e no vinho realmente se cumpria em
seu corpo.
Se alguém inferir disto que então devemos celebrar a Ceia à noite, e após
comer a refeição ordinária, respondo que, quando olhamos para os atos de
nosso Senhor, devemos considerar o que ele pretendia que fizéssemos. O
fato é que ele não tinha nenhuma intenção de ministrar-lhes instrução sobre
ritos noturnos, semelhantes aos de Ceres,59 e nem pretendia convidar seu
povo para sua festa espiritual após terem comido uma refeição
substanciosa. Não somos solicitados a imitar tais atos de Cristo, como da
mesma forma não devem ser considerados pertencentes a sua instituição.60
Esta é a razão por que não há dificuldade em se refutarem os astutos
argumentos dos papistas, por meio dos quais eles se esquivam61 do que eu
disse sobre reter e preservar o que Cristo realmente instituiu, e somente
isso. “Portanto”, dizem eles, “só receberemos a Ceia do Senhor à noite, e
após termos tomado a refeição, nunca em jejum.” Tal discurso, digo eu, é um
desperdício de fôlego; porque é fácil determinar que o que o Senhor fez foi
com o expresso propósito de seguirmos seu exemplo; alguém deveria antes
dizer: o que ele fez foi com o intuito de nos ensinar a fazê-lo também.
24. Tendo dado graças. Paulo, em 1 Timóteo 4.5, afirma que toda dádiva
que recebemos das mãos de Deus nos é santificada através da Palavra de
Deus e da oração. Em parte alguma, pois, lemos de nosso Senhor comendo
com seus discípulos sem estar também registrado que ele dava graças [Jo
6.23]. É sem a menor sombra de dúvida que ele nos ensinou, através de seu
exemplo, a fazer o mesmo. No entanto, esta ação de graças é ainda muito
mais profunda, porquanto Cristo está dando graças a seu Pai por sua
misericórdia62 em favor da raça humana e seu inestimável dom redentivo; e
ele nos estimula, através de seu exemplo, a que toda vez que nos
aproximarmos da Santa Mesa elevemos nossos corações em
reconhecimento do incomensurável amor de Deus por nós, e sejamos,
assim, inflamados de genuína gratidão.63
Tomai, comei, isto é o meu corpo. Visto que o propósito de Paulo aqui
era instruir-nos de forma sucinta sobre a forma correta de se celebrar o
sacramento, nosso dever é considerar atentamente64 o que põe diante de
nossos olhos, não permitindo que algo passe desapercebidamente, visto
que, como ele diz, nada, senão o que é excessivamente necessário, merece
nossa mais estrita atenção.
Em primeiro lugar, notemos que Cristo aqui distribui o pão entre os
discípulos a fim de que todos eles o comessem juntos; e dessa forma todos
viessem a participar igualmente dele. Portanto, quando uma mesa comum
deixa de ser preparada para todos os que crêem, quando estes não são
convidados a partir o pão comum, e quando, em suma, os fiéis não têm
participação com reciprocidade, não há a menor base para dar-lhe o título de
Ceia do Senhor.
Com que propósito,65 porém, o povo é convocado a reunir-se para a
missa? Talvez a resposta seja simplesmente para que sejam despedidos
novamente insatisfeitos, depois de presenciarem uma exibição insípida.66
Portanto, tal ato não tem nada em comum com a Ceia [do Senhor]. À luz
deste versículo deduzimos igualmente que a promessa de Cristo não se
aplica à missa mais do que à festa dos Salii.67 Pois quando Cristo promete
que nos daria seu corpo, ele semelhantemente nos ordena que tomemos o
pão e o comamos. Se não obedecemos a este seu mandamento, toda nossa
vanglória de possuirmos sua promessa é de nenhuma valia. Coloquemos
isto em outros termos, em linguagem mais costumeira: a promessa está
intrinsecamente unida ao mandamento, como se o último fosse uma
condição; a promessa, pois, só se torna eficaz se a condição for também
cumprida. Evocando um exemplo, está escrito [Sl 50.15]: “Invoca-me; eu te
ouvirei.” O que temos a fazer é obedecer ao mandamento de Deus a fim de
que cumpra ele o que nos prometeu; de outra forma, nos privaremos de seu
cumprimento.68
E o que dizer dos papistas? Negligenciam a participação [do povo] e
consagram o pão para um fim totalmente diferente, ao mesmo tempo que se
vangloriam de ter o corpo do Senhor. Por provocarem um ímpio divórcio,
separando as coisas que Cristo juntou [Mt 19.6], evidentemente sua
vanglória não passa de palavrório fútil. Portanto, toda vez que citam as
palavras, “Isto é o meu corpo”, devemos revidar com outras palavras, as
quais precedem àquelas: “Tomai e comei.” Porquanto o significado das
palavras é este: “Ao participardes da quebra do pão, segundo a ordem e o
rito que ordenei, deveis também participar de meu corpo.” Assim, quando
uma pessoa come seu próprio pão, a promessa neste caso não se efetiva.
Além disso, estas palavras nos ensinam o que o Senhor quer que façamos:
Tomai, diz ele. Portanto, os que sacrificam a Deus recebem suas diretrizes de
algum outro mestre, e não de Cristo, pois ele, nestas palavras, não nos
ministra instruções para a realização de sacrifício.
Entretanto, o que os papistas realmente dizem sobre a Missa? Antes de
tudo, sua impudência os levou ao ponto de alegarem que ela era correta e
apropriadamente denominada um sacrifício. Ora, eles admitem que ela é
deveras um sacrifício comemorativo, mas que, dessa forma, por meio de seu
oferecimento diário,69 a bênção redentora é canalizada tanto para os vivos
quanto para os mortos. Seja como for, certamente apresentam algo que se
assemelha a um sacrifício70 [immolationis spectaculum]. Em primeiro lugar,
há nesse ato uma grande temeridade, visto que não há nenhum mandamento
de Cristo que o justifique. Cometem, porém, um pecado ainda mais grave ao
agirem dessa forma, porque, enquanto o propósito de Cristo na Ceia era que
a tomássemos e a comêssemos, eles a perverteram para um uso totalmente
diferente.
Isto é o meu corpo. Não recorrerei a desditosas controvérsias que têm
trazido tanta perturbação à Igreja de nosso tempo, no que tange ao
significado destas palavras. Gostaria simplesmente que me fosse possível
sepultar toda lembrança delas em esquecimento eterno! Darei minha própria
visão destas palavras, não só sincera e honestamente, mas também sem
qualquer reserva, como geralmente faço.
Cristo denomina o pão de meu corpo. Rejeito, sem argumento adicional, a
noção estapafúrdia de que nosso Senhor não exibiu o pão aos apóstolos, e,
sim, seu próprio corpo, o qual era algo concreto diante de seus olhos; pois
logo a seguir vêm as palavras: “Este cálice é a nova aliança em meu sangue.”
Consideremos, pois, como além de toda controvérsia que Cristo aqui está
falando do pão.
Agora, porém, voltamos à pergunta: o que ele quis dizer ao referir-se ao
pão? A fim de chegarmos ao significado genuíno, devemos ter em mente que
ele está falando figuradamente; porque, com toda certeza, negar tal coisa é
ser excessivamente desonesto.71 Por que, pois, é o termo corpo aplicado ao
pão? Creio que todos concordariam que é pela mesma razão que João
denomina o Espírito Santo de pomba [Jo 1.32]. Até aqui estamos de acordo.
Além do mais, no caso do Espírito Santo, a razão era que ele aparecera na
forma de uma pomba; daí o nome do Espírito ser transferido para o sinal
visível. Por que não poderíamos dizer que aqui se usa uma metonímia de
maneira semelhante, e que a designação corpo é dada ao pão por ser este um
sinal ou símbolo do corpo? Se algum deles desavier-se comigo, talvez me
perdoarão; mas parece-me que, persistir argumentando sobre a assunto,
outra coisa não é senão causar distúrbio. Portanto, tenho bem nítido em
minha própria mente que esta é uma forma sacramental de expressão72
[sacramentalem loquendi modum], quando o Senhor aplica ao sinal o nome
da realidade significada [rei signatae].
Agora devemos avançar um pouco mais, e perguntar por que aqui se usa
metonímia. Minha reposta é que o nome da realidade significada não é dado
ao sinal simplesmente porque ele a auxilia [sit figura]; mas, antes, porque é
um símbolo73 por meio do qual a realidade nos é confirmada [exhibetur].
Porquanto não aceito as comparações que alguns fazem com as coisas
seculares ou mundanas, porque estas pertencem a uma categoria distinta
dos sacramentos de nosso Senhor. A estátua de Hércules é chamada
Hércules; ela, porém, não passa de uma nua e vazia representação [figura]. A
pomba, porém, é descrita como sendo o Espírito, porque ela é um penhor
[tessera] definido da presença invisível do Espírito. Portanto, o pão é o
corpo de Cristo porque ele dá indubitável testemunho do fato de que todo o
corpo, que o simboliza, nos é comunicado; ou porque, ao oferecer-nos este
símbolo, o Senhor está nos dando também, ao mesmo tempo, seu próprio
corpo; pois Cristo não está nos enganando e nos fazendo de tolos com
representações fúteis.74 Conseqüentemente, a mim é tão claro como a luz
meridiana que aqui a realidade é associada ao sinal; em outros termos,
realmente nos tornamos participantes do corpo de Cristo, no tocante ao
poder espiritual, da mesma forma que comemos o pão.
Devemos então considerar o modo da participação. Os papistas nos
impõem seu sistema de transubstanciação. Sustentam que, quando a
consagração é efetuada, a substância do pão não mais permanece, mas
somente os acidentes.75 Contra tal fabricação estabelecemos não só as
límpidas palavras da Escritura, mas também a própria natureza dos
Sacramentos. Pois qual seria a significação [significatio] da Ceia se não
houvesse nenhuma analogia entre o sinal visível e a realidade espiritual [si
nulla sit inter signum visibile et rem spiritualem analogia]? Acreditam que o
sinal tem a falsa e ilusória aparência [speciem] de pão. Então, o que dizer da
realidade significada? Talvez não passe de um exemplar de simulacro.
Portanto, se deve haver uma relação [convenientiam] correspondente entre o
sinal e a realidade [veritate] por trás dele, então o pão deve ser verdadeiro
[verum] pão, não pão imaginário, a fim de representar o verdadeiro [verum]
corpo de Cristo. Além disso, este versículo revela que não é assim que o
corpo de Cristo nos é oferecido, senão que nos é oferecido como alimento.
Ora, o que nos nutre não é de forma alguma a aparência de pão, e, sim, sua
substância. Pondo-o em poucas palavras, se a realidade mesma deve ser uma
realidade genuína, então o sinal deve igualmente ser um sinal genuíno.
Portanto, uma vez rejeitado o sonho dos papistas, vejamos o modo
como o corpo de Cristo nos é oferecido. A explicação de alguns é que [o
corpo de Cristo] nos é dado quando nos tornamos participantes de todos
os benefícios que Cristo nos grangeou em seu próprio corpo; portanto,
quando pela fé abraçamos Cristo, crucificado em nosso favor e ressurreto
dentre os mortos, desta forma nos tornamos eficazmente participantes de
todos seus benefícios. Os que pensam assim têm muito de verdade em seu
ponto de vista. Pessoalmente, porém, declaro que tal coisa só é possível
depois de obtermos Cristo mesmo para então participarmos de seus
benefícios. E além do mais declaro que ele é obtido de forma apropriada não
só quando cremos que ele foi crucificado em nosso favor, mas quando ele
habita em nós; quando, enfim, nos tornamos unidos numa só vida e
substância (se o podemos afirmar nestes termos) com ele. Além disso,
devemos prestar atenção na implicitude das palavras, pois Cristo não só
nos oferece o benefício de sua morte e ressurreição, mas o mesmo corpo no
qual ele sofreu e ressuscitou. Minha conclusão é que o corpo de Cristo nos
é real [realiter], para usar a palavra usual, e verdadeiramente [vere] oferecido
na Ceia a fim de ser o alimento gerador de saúde para nossas almas. Estou
adotando termos usuais, mas o que quero dizer é que nossas almas são
alimentadas pela substância de seu corpo, de modo que nos tornamos
verdadeiramente [vere] um com ele; ou, o que equivale a mesma coisa, que o
poder gerador de vida da carne de Cristo [vim ex Christi carne vivificam] é
derramado em nós pela instrumentalidade do Espírito, apesar de estar a
uma grande distância de nós e de não estar entre nós76 [nec misceatur
nobiscum].
Só um problema ainda permanece: como é possível que seu corpo, que
se acha no céu, nos seja oferecido aqui na terra? Alguns acreditam que o
corpo de Cristo é ilimitado, e não pode confinar-se a um único lugar, senão
que permeia o céu e a terra, como o faz a essência divina. Tal noção é tão
estapafúrdia que nem merece refutação. Os escolásticos discutem a questão
de seu corpo glorioso com mais intensidade, porém todo seu ensino
simplesmente equivale ao seguinte: que Cristo deve ser encontrado no pão,
como se estivesse encarcerado [inclusus] nele. O resultado é que os homens
olham para o pão com espanto, e lhe rendem adoração como se fosse Cristo
mesmo. Alguém lhes poderia perguntar se o que adoram é o pão ou sua
substância [especiem], e convictamente lhe responderiam com um firme “a
nenhum dos dois”; a despeito de tudo, porém, quando vão oferecer a Cristo
sua adoração, se movem na direção do pão. Por isso digo, a questão não é
de meramente volver seus olhos e todo seu corpo, mas também todos seus
pensamentos. Ora, que outra coisa é isso senão pura idolatria? Mas,
segundo minha tese, a participação no corpo do Senhor, que nos é oferecido
na Ceia, exige não uma presença local, nem a descida de Cristo, nem uma
extensão infinita77 de seu corpo, nem qualquer outra coisa desse gênero;
porque, em vista de ser a Ceia um ato celestial, não há absurdo algum em
dizer que Cristo permanece no céu e, não obstante, é recebido por nós. Pois
o modo como ele mesmo se nos comunica é através do poder secreto do
Espírito Santo, poder esse que é capaz não só de manter-nos juntos, mas
também de juntar as coisas que são separadas pela distância – de fato, por
uma imensa distância.
Não obstante, a fim de estarmos habilitados para essa participação,
teremos que subir ao céu. Neste sentido, nossas faculdades físicas não são
de nenhuma valia; por isso é indispensável que a fé se intervenha em nosso
socorro. Quando falo em fé, não estou referindo-me a algum gênero de
opinião que dependa do que os homens elaborem, visto que há muitos que
constantemente se gloriam de sua fé, e que, no entanto, se acham
extremamente longe da questão em pauta. Então, que fé é essa? Você vê o
pão, e nada mais; porém você ouve dizer que ele é um símbolo78 do corpo
de Cristo. Esteja plenamente certo de que o Senhor realmente executará o
que o leitor entende ser o sentido das palavras, a saber: que seu corpo, o
qual o leitor de forma alguma vê, é o alimento espiritual para cada um de
nós. Parece inacreditável que somos alimentados pela carne de Cristo, a
qual se acha tão distante de nós. Lembremo-nos de que tal fato é uma obra
secreta e grandiosa efetuada pelo Espírito Santo, e seria algo pecaminoso
tentar medi-lo pelo tacanho padrão de nosso próprio entendimento.
“Entretanto, ao mesmo tempo livre-se das noções absurdas que porventura
conservem seus olhos grudados no pão. Que Cristo conserve sua carne,
que é carne real [veram carnis naturam], e que o leitor não defenda o
conceito equivocado de que o corpo de Cristo se estende por todo o céu e
terra. Tampouco o divida em partículas por meio de suas idéias
extravagantes, e nem o adore neste ou naquele local ou segundo sua
apreensão carnal [pro carnali tuo sensu]. Deixe-o em sua glória celestial;
aspire, pessoalmente, alcançar o céu, para que de lá79 ele possa comunicar-
se com você.”
Estas poucas coisas satisfarão as mentes das pessoas retas e humildes.
Aos curiosos, meu conselho é que volva sua atenção em outra direção, a fim
de satisfazer seus apetites.
Que é quebrado por vós. Há quem pense que isto se refere à
distribuição do pão, já que era necessário que o corpo de Cristo fosse
preservado intato, a fim de harmonizar-se com a predição constante em
xodo 12.46: “nenhum de seus ossos será quebrado.” Quanto a mim, embora
reconheça que Paulo está aludindo à quebra do pão, não obstante considero
o termo quebrado como sendo aqui usado no sentido de sacrificado;
certamente que este não é o uso apropriado do termo, porém não é fora de
propósito. Porque, embora “nenhum osso seu” fosse danificado, todavia,
visto que seu corpo foi, antes de tudo, exposto a tanta tortura e sofrimento,
e em seguida à punição de morte em sua forma mais cruel, não se pode dizer
que seus ossos saíssem ilesos. Eis o que Paulo pretende com o termo
quebrado. Esta contudo é a segunda parte da promessa, e ela não deve ser
passada por alto. Pois o Senhor não nos oferece seu corpo, só seu corpo e
nada mais além dele, porém seu corpo como tendo sido sacrificado em
nosso favor. A primeira parte, pois, nos diz que seu corpo nos foi
comunicado; esta segunda parte declara que desfrutamos dele, ou, seja,
nossa participação na redenção e na aplicação do benefício de seu sacrifício.
Esta é a razão por que a Ceia é um espelho a nos refletir o Cristo crucificado,
de modo que uma pessoa não pode receber a Ceia e desfrutar de seus
benefícios, a menos que abrace o Cristo crucificado.
Fazei isto em memória de mim. A Ceia, pois, é um memorial
(μνημόσυνον)80 designado com o fim de assistir-nos em nossas fraquezas;
porque, se de outra forma estivéssemos suficientemente imbuídos da morte
de Cristo, este auxílio seria de todo supérfluo. Isto se aplica a todos os
Sacramentos, porquanto eles nos ajudam em nossas fraquezas. No entanto
logo descobriremos que sorte de memorial de si mesmo Cristo queria que
conservássemos na Ceia.
Alguns extraem uma inferência desta frase, dizendo que, nestas
circunstâncias, Cristo não está presente na Ceia, visto que não pode haver
memorial [memoria] de algo [ou alguém] que se acha ausente. Isso pode ser
facilmente respondido: segundo esse raciocínio sobre a Ceia como
recordação [recordatio], Cristo realmente está ausente dela. Pois ele não se
acha presente visivelmente, e nem é visto por nossos olhos como vemos os
símbolos, os quais, por representá-lo, nos estimulam a lembrar-nos dele.
Finalmente, a fim de estar presente conosco, ele não deixa seu lugar, senão
que, do céu, nos envia a eficácia de sua carne para estar presente em nós.81
25. Depois de haver ceado, tomou também o cálice. O apóstolo parece
sugerir que houve um certo intervalo de tempo entre a entrega do pão e a do
cálice; e os evangelistas não deixam muito claro se tudo foi um ato
contínuo.82 É verdade que isso não importa muito, porque pode muito bem
ter ocorrido que o Senhor proferisse algum discurso, o qual poderia ter-se
encaixado entre a entrega do pão e a do cálice. Visto, porém, que ele nada fez
nem disse que não estivesse relacionado com o mistério, não há qualquer
necessidade de dizermos que sua administração era desordenada ou foi
interrompida. Não quero adotar a redação de Erasmo – “quando a ceia foi
concluída” –, visto que a ambigüidade precisa ser evitada numa questão de
tão grande relevância.
Este cálice é o novo testamento. O que é afirmado quanto ao cálice
aplica-se igualmente ao pão; e assim ele está usando estes termos para
expressar o que já dissera de uma forma mais abreviada, ou, seja, que o pão
é seu corpo. Porque o temos por esta razão: para que seja uma aliança em
seu corpo, a saber, uma aliança que foi uma vez por todas ratificada pelo
sacrifício de seu corpo, e que é agora confirmada pelo comer, ou, seja,
quando os crentes se deleitam nesse sacrifício. Daí, onde Paulo e Lucas
falam de o testamento em meu sangue, Mateus e Marcos falam de o sangue do
testamento, o que equivale a mesma coisa. Pois o sangue foi derramado a fim
de nos reconciliarmos com Deus, e agora o bebemos espiritualmente a fim
de termos participação nesta reconciliação. Portanto, na Ceia temos a
aliança [foedus] e um penhor que confirma a aliança.
Se o Senhor me poupar, pretendo discorrer sobre a palavra aliança ou
testamento [testamentum] no comentário à Epístola aos Hebreus. É bem
notório, porém, o fato de que os Sacramentos são descritos como
testamentos, visto que nos suprem com testemunhos do beneplácito de Deus
com o fim de fazer nossas mentes plenamente seguras dele.83 Pois o modo
como o Senhor trata conosco é semelhante ao modo como os homens fazem
suas alianças entre si através de ritos solenes. Este modo de falar não é de
forma alguma inadequado, porque, em razão da conexão existente entre
palavra e sinal, a aliança do Senhor realmente está jungida aos Sacramentos,
e o termo aliança [foedus] produz uma relação conosco ou nos enlaça. Isso
será de grande valor para entendermos a natureza dos Sacramentos, pois se
são alianças, então contêm promessas, as quais podem despertar a
consciência humana para a certeza da salvação. Segue-se desse fato que eles
não são simplesmente sinais externos da fé que professamos, para que os
homens vejam, mas também auxiliam nossa própria vida interior de fé.
Fazei isto todas as vezes que o beberdes. Cristo, pois, instituiu um
duplo sinal na Ceia. As coisas que Deus ajuntou, os homens não devem
separar. Portanto, distribuir o pão sem o cálice é mutilar a instituição de
Cristo,84 e nosso dever é dar crédito a suas palavras. Como ele nos ordena
comer o pão, assim nos ordena beber o cálice. Consentir com uma metade
do mandamento e desconsiderar a outra, outra coisa não é senão zombar
daquilo que ele estabeleceu. Impedir o povo de beber o cálice que Cristo
deu a todos, como sucede sob a tirania papal, é sem dúvida alguma uma
presunção diabólica. Seu sofisma de que Cristo estava falando aos
apóstolos, e não ao povo comum, é excessivamente pueril e facilmente
refutável por esta mesma passagem; porque aqui Paulo está se dirigindo aos
homens e mulheres, sem distinção, e de fato à Igreja toda, e diz que ele lhos
entregou em consonância com o mandamento do Senhor [v. 23]. Os que
ousaram anular esta ordenança, agiram movidos por qual espírito?
Contudo, ainda em nossos dias esta grosseira corrupção continua sendo
obstinadamente defendida. E que motivo há para surpresa, se
impudentemente tudo fazem para justificar, pelo uso de discurso e escritos,
o que é tão cruelmente mantido a fogo e espada?
26. Porque todas as vezes que comerdes. Ele agora adiciona uma
descrição do modo como o memorial deve ser observado, a saber: com
ações de graças. Não é que o memorial dependa completamente da confissão
de nossos lábios, porque o ponto básico é que o poder da morte de Cristo
deve estar selado em nossas consciências. Mas este conhecimento deve
mover-nos a louvá-lo publicamente a fim de que os homens saibam, quando
estamos em sua companhia, que em nosso íntimo temos consciência da
presença divina. A Ceia, portanto – se é que posso expressar-me assim –, é
uma espécie de memorial [quoddam memoriale] que deve ser conservado
perenemente na Igreja, até a vinda final de Cristo; e que foi instituída com
este propósito, a saber: para que Cristo nos lembre do benefício de sua
morte, e nós, de nossa parte, possamos reconhecê-la85 diante dos homens.
Esta é a razão por que ela é chamada Eucaristia.86 Portanto, a fim de que
possa celebrar a Ceia adequadamente, o leitor deve ter em mente que o
requerimento é que faça declaração de sua fé.
Isto nos revela mui claramente quão impudentemente motejam de Deus,
vangloriando-se de que na missa eles têm algo correspondente à natureza da
Ceia. Pois, o que é a missa? Eles admitem (pois não me refiro aos papistas, e,
sim, aos pretensos seguidores de Nicodemos) que ela está saturada de
superstições abomináveis. Por meio de gestos externos fazem uma pretensa
aprovação delas. Que sorte de exibição é esta de proclamar a morte de
Cristo? Não estão, antes, renunciando-a?
Até que ele venha. Uma vez que somos sempre necessitados de um
arrimo como este, enquanto ainda vivemos neste mundo, o apóstolo
salienta que fomos incumbidos deste ato de recordação [recordationem] até
que Cristo entre em cena para o juízo. Porque, já que ele não está presente
conosco de forma visível, carecemos de ter algum símbolo de sua presença
espiritual, com o qual exercitar nossa mente.
27. Por isso, todo aquele que comer o pão... indignamente. Se o
Senhor espera de nós gratidão, ao recebermos este sacramento; se ele quer
que reconheçamos sua graça de todo nosso coração e fazê-la conhecida
através de nossos lábios, então aquele que lhe dirigiu insulto em vez de
honra não escapará sem castigo; pois o Senhor não tolerará que seu
mandamento seja menosprezado.
Ora, para que possamos apreender o significado deste versículo, é
preciso que compreendamos o que “comer indignamente” significa. Alguns o
aplicam somente aos coríntios e à corrupção que grassava em seu seio.
Minha opinião pessoal, porém, é que Paulo, como geralmente faz, se move
do caso particular para o ensino geral, ou de um exemplo para toda uma
classe. Havia um erro que prevalecia entre os coríntios. Ele aproveita a
ocasião para falar de toda espécie de erro que porventura seja encontrado
na administração e recepção da Ceia. “Deus”, diz ele, “não permitirá que este
sacramento seja profanado sem severa punição.”
Portanto, comer indignamente é desonrar o uso puro e legítimo por
nosso próprio abuso. Esta é a razão por que há vários graus de indignidade,
por assim dizer; e alguns pecam muito mais gravemente, enquanto que
outros o fazem só levemente. Nenhum fornicador, perjuro, ébrio ou
impostor, sem indício de arrependimento, pode forçar caminho. Visto que
indiferença deste nível produz a caracterização de um cruel insulto a Cristo,
não há dúvida de que alguém, que recebe a Ceia nesse estado, recebe sua
própria destruição. Outros se chegam, e não se encontram sob o domínio de
algum erro óbvio e perceptível, no entanto em seu coração não estão
preparados como deveriam. Visto que esta displicência ou indiferença é
sinal de irreverência, ela também merece a punição de Deus. Por isso, visto
que há vários graus de “participação indigna”, o Senhor aplica castigos mais
leves em alguns, e mais severos em outros.
Ora, esta passagem tem suscitado uma inquirição que tem levado muitos
aos mais acirrados debates, a saber: aquele que participa indignamente está
de fato comendo o corpo de Cristo. Pois há quem se sente tão arrebatado
pela controvérsia que chega a dizer que ele [o corpo] é recebido igualmente
pelo bom e pelo mau; e, em nossos dias, muitos espalhafatosos estão
obstinadamente sustentando que na própria primeira Ceia Pedro não
recebeu mais do que Judas. E eu me sinto deveras relutante em entrar em
feroz debate com alguém sobre esta matéria, a qual, em minha opinião, é
uma questão periférica. Mas, como outros evocam sobre si a
responsabilidade, com ares de professor, seja o que for que lhes pareça
apreciável, fazendo trovejar para todos os lados e contra todos que
expressem algo em contrário, seremos justificados se calmamente
aduzirmos razões em abono do que consideramos como sendo a plena
verdade.
O fato de Cristo não poder separar-se de seu Espírito constitui para mim
um axioma, e não permitirei que eu mesmo seja alijado dele. Daí sustento
que seu corpo não é recebido como morto, ou ainda como inativo,
dissociado da graça e poder de seu Espírito. Não gastarei muito tempo em
provar esta afirmação.
Ora, se alguém não possui sequer um leve vestígio de fé vigorosa ou de
arrependimento autêntico, e nada do Espírito de Cristo,87 como poderia
receber o próprio Cristo? Mais que isso, visto que o tal se acha
completamente sob o controle de Satanás e do pecado, como estaria apto a
receber Cristo? Portanto, de um lado, concordo que haja pessoas que
verdadeiramente recebem Cristo na Ceia e que, ao mesmo tempo, são
indignas. Muitos dos fracos, por exemplo, pertencem a esta categoria. Em
contrapartida, não aceito o ponto de vista de que os que depositam fé
meramente nos eventos históricos do Evangelho88 [fidem historicam], sem
uma viva consciência de arrependimento e fé, recebem apenas o sinal. Pois
não posso suportar a idéia de partir Cristo89 em pedaços, e fico horrorizado
ante a noção absurda de que aos descrentes ele se oferece para ser comido
de forma exangüe, por assim dizer. Tampouco Agostinho quis algo mais que
isso quando disse que os ímpios recebem Cristo meramente no sacramento
[sacramento tenus] o que ele expressa mais claramente em outro lugar,
quando diz que os demais apóstolos comeram o pão – o Senhor [panem
Dominum]; Judas, porém, apenas o pão do Senhor [panem Domini].90
Mas a objeção aqui apresentada é que a eficácia dos Sacramentos não
depende da dignidade humana, e que as promessas de Deus não são de
maneira alguma comunicadas nem destruídas pela maldade humana.
Concordo com isso, e por essa mesma razão digo mais, e em termos bem
explícitos, que o corpo de Cristo é oferecido aos maus tanto quanto aos
bons, e que tudo isso é requerido no que diz respeito ao efeito do
sacramento e da fidelidade de Deus. Porque, na Ceia Deus não ludibria o
ímpio através de mera representação do corpo de seu Filho, mas realmente o
faz válido para eles; e o pão não lhes é um sinal vazio, mas um penhor
[tessera] da fidelidade divina. Sua rejeição em sentido algum prejudica ou
altera a natureza do sacramento.
Devemos ainda enfrentar uma objeção oriunda do que Paulo diz nesta
passagem. “Ele apresenta os indignos como sendo culpados, visto que não
discernem o corpo do Senhor; segue-se que recebem seu corpo.” Eu nego tal
inferência; porque, embora a rejeitem, contudo, como a profanam e a tratam
com desonra quando lhes é apresentada, merecidamente são tidos como
culpados, porquanto a lançam, por assim dizer, no chão e a pisam sob seus
pés. Um sacrilégio dessa proporção é algo trivial? Por isso não vejo
dificuldade nas palavras de Paulo, contanto que se tenha em vista o que
Deus apresenta e sustenta aos ímpios – não no que eles recebem.
28. Assim, prove o homem a si mesmo. A seguinte exortação é extraída
da ameaça que ele pronunciou. “Se os que comem indignamente são
culpados do corpo e do sangue do Senhor, então que ninguém se aproxime
da mesa sem antes estar devidamente preparado. Que todos, pois, cuidem
para que não caiam neste sacrilégio mediante negligência ou indiferença.”
Agora, porém, pergunta-se: Quando Paulo nos intima a fazermos um auto-
exame, qual seria a natureza disso? A conclusão dos papistas é que isso
consiste em confissão auricular. Ordenam a todos os que estão para receber
a Ceia a examinarem suas vidas cuidadosa e minuciosamente, a fim de que
aliviem-se de todos seus pecados aos ouvidos de um sacerdote. Eis seu
método de preparação!91 Mas, quanto a mim, defendo a tese de que o santo
exame de que Paulo está falando muito longe está de ser tortura. Tais
pessoas92 acreditam que ficam limpas depois de torturarem suas
consciências por algumas poucas horas e então permitem que o sacerdote
entre em seus recessos mais secretos e descubra suas infâmias.93 O que
Paulo aqui requer é outro gênero de exame, aquele que corresponde ao uso
apropriado da Santa Ceia.
Tenho um método de preparação mais eficaz ou mais fácil a apresentar-
lhe, a saber: se o leitor deseja extrair os benefícios próprios deste dom de
Cristo, então cultive em seu coração fé e arrependimento. Daí, para que o
leitor se apresente bem preparado, o exame precisa ter por base estes dois
elementos. No arrependimento incluo o amor, pois é indubitável que a
pessoa que aprendeu a renúncia a fim de devotar-se a Cristo e a seu serviço,
também se devotará de corpo e alma à promoção da unidade que Cristo nos
recomendou. Aliás, o que se exige não é fé perfeita ou arrependimento
perfeito. Isto é enfatizado por causa de algumas pessoas, pois ao insistirem
demais numa perfeição que não pode ser encontrada em parte alguma, outra
coisa não fazem senão estabelecer barreira perene entre cada homem e cada
mulher e a Ceia. Entretanto, se o leitor aspirar pela justiça de Deus e se,
humilhando-se ante a consciência de sua própria miséria, recorre à graça de
Cristo, e descansa nela, esteja certo de que é um convidado digno de
aproximar-se dessa Mesa. Ao afirmar que o leitor é digno, estou dizendo que
o Senhor não o exclui, ainda que em outros aspectos não esteja como
deveria. Porque a fé, ainda que imperfeita, transforma o indigno em digno.
29. Aquele que come indignamente, come juízo para si. Paulo já havia
ressaltado claramente a gravidade da ofensa ao dizer que quem “come
indignamente será culpado do corpo e do sangue do Senhor”. Agora ele lhes
apresenta a causa para que se alarmem diante da ameaça de castigo.94 Pois
muitos não se sentem perturbados diante do pecado propriamente dito, a
não ser que sejam visitados pelo juízo divino. E é isso que Paulo está
fazendo quando declara que esta refeição, que de outro modo é salutar, se
converterá em peçonha e causa de destruição para aqueles que a comerem
indignamente.
E ele adiciona a razão para isso, ou, seja, porque não discernem o corpo
do Senhor, o qual é santo e não algo vulgar. O que ele está querendo
comunicar é que os coríntios compulsavam o sagrado corpo de Cristo com
mãos impuras [Mc 7.2],95 e, pior ainda, tratavam-no como se fosse algo vil,
não dando qualquer importância a seu infinito valor.96 Portanto, teriam que
pagar o preço por uma profanação tão grave. Não obstante, que meus
leitores tenham em mente o que disse há pouco, ou, seja, que o corpo97 de
Cristo lhes é oferecido, ainda que sua indignidade os impeça de participarem
dele.
30. Por esta causa há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem.
31. Pois, se julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados.
32. Mas, quando somos julgados, somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos
condenados com o mundo.
33. Por isso, meus irmãos, quando vos ajuntais para comer, esperai uns pelos outros.
34. E se alguém tiver fome, coma em casa, para não vos ajuntardes para condenação.
Quanto às demais coisas, ordená-las-ei quando eu for.
30. Propterea inter vos infirmi sunt multi, et ægroti, et dormiunt multi.
31. Si enim ipsi nos indicassemus, non indicaremur.
32. Porro quum indicamur, a Domino corripimur, ne cum hoc mundo damnemur.
33. Itaque, fratres mei, dum convenitis àd edendum, alii alios exspectate.
34. Si autem quispiam esurit, domi edat, ne in iudicium edatis; cætera autem, quum
venero, disponam.
30. Por esta causa. Uma vez tendo tratado, em termos gerais, da questão
da “participação indigna”, e o gênero de punição que aguarda aqueles que
profanam este sacramento, ele agora fala da punição que por sua vez terão
que enfrentar. Não sabemos se nesse tempo alguma praga os atormentava,
ou se eram afligidos por outros gêneros de enfermidades. Seja como for,
deduzimos do que Paulo diz que o Senhor havia enviado algum tipo de
açoite para discipliná-los. E quando Paulo diz que estavam sendo punidos
porque comiam indignamente, com certeza não estava fazendo nenhuma
conjetura, senão que asseverava algo de que estava muito bem consciente.
Então declara que muitos haviam contraído doenças, que muitos se
achavam sob o domínio de um longo estado de enfraquecimento e que
muitos haviam morrido em razão do abuso que faziam à Ceia, pelo que
haviam ofendido a Deus. Desta forma, ele está pondo em realce o fato de que
somos advertidos através de enfermidades e de outros meios disciplinares
usados por Deus, a fim de meditarmos sobre nossos pecados; pois, visto
que Deus não tem nenhum prazer em nossas aflições, ele não nos fere a
menos que tenha boas razões para fazê-lo.
Este é um grande e multifário tema; porém, aqui o apresentamos apenso
a um comentário breve e superficial. Se na época de Paulo um abuso feito à
Ceia,98 que não era dos mais graves, podia despertar a ira de Deus contra os
coríntios, ao ponto de puni-los com tanta severidade, o que pensar da
situação em nossos próprios dias? Ao longo da série de papas, vemos não
só as horríveis profanações da Ceia, mas também algo profano e detestável
estabelecido em seu lugar.
(1) Em primeiro lugar, ela é prostituída para sórdidos fins lucrativos
[1Tm 3.8]. (2) Ela é mutilada, visto que o cálice foi suprimido. (3) Sua
forma99 foi totalmente alterada, visto que se tornou o costume de cada um
ter sua festa a seu próprio modo, de forma que a participação mútua é posta
de lado.100 (4) Não se apresenta nenhuma explicação do sacramento, mas
tudo é ouvido em som murmurante, o que se assemelha mais a
encantamentos de mágicos, ou a horríveis sacrifícios pagãos, do que mesmo
à instituição do Senhor. (5) Há incontáveis cerimônias, profusas não só de
coisas sem sentido, como também de superstição e, por isso, de claras
deturpações. (6) Há a diabólica invenção do sacrifício, o que equivale a uma
ímpia blasfêmia contra a morte de Cristo. (7) É bem projetada para levar os
homens ignóbeis a se embriagarem com uma confiança carnal, ao colocá-la
diante de Deus como expiação e ao imaginarem que, por meio deste fetiche,
estão expulsando tudo quanto poderia prejudicá-los, e isso sem fé e sem
arrependimento. Sim, e o que é ainda pior, quando se vêem tão seguros de
que estão armados contra o diabo e a morte, e que, no tocante a Deus, se
sentem seguramente protegidos contra ele, se tornam ousados para pecar
com muito mais liberdade,101 e se agigantam em sua obstinação. (8) Nela,
um ídolo é adorado no lugar de Cristo. Em suma, ela está saturada de toda
sorte de abominações.102
Ora, nós administramos a Ceia em sua pureza, na forma como nos foi
restaurada,103 como se tivesse, por assim dizer, regressado do exílio.104
Mesmo entre nós, porém, quanta irreverência existe! Quanta hipocrisia por
parte de muitos! Que desditosa mescla existe quando, sem qualquer
discriminação, pessoas perversas e publicamente dissolutas abrem
caminho para ela, pessoas com quem nenhuma outra pessoa decente e
respeitável teria quaisquer relações sociais e ordinárias!105 E ainda
indagamos qual seria a razão para tantas guerras, tantas pragas, quantas
colheitas abortivas, quantas desgraças e calamidades, como se a causa não
nos fosse tão óbvia como uma nuvem que percorre o céu. E certamente não
podemos antecipar o fim dos infortúnios, até que tenhamos removido sua
causa pela correção de nossos erros.
31. Se julgássemos a nós mesmos. Aqui temos outra notável afirmação,
ou, seja: que Deus não se ira contra nós repentinamente, punindo-nos tão
logo erramos, mas, na maioria das vezes, é em virtude de nossa negligência
que ele se vê forçado a punir-nos, ao notar que estamos despreocupados e
apáticos, ludibriando-nos a nós mesmos em relação a nossos pecados.106
Por isso, desviaremos de nós ou mitigaremos os castigos que nos ameaçam,
se antes de tudo fizermos um balanço de nós mesmos e, sinceramente
arrependidos, desviarmos a ira de Deus por meio de orações sinceramente a
ele dirigidas, infligindo-nos punições, de nosso próprio arbítrio.107 Numa
palavra, os crentes evitam o juízo divino por meio de arrependimento; e o
único antídoto pelo qual podem obter absolvição aos olhos de Deus é
através da autocondenação espontânea.
Entretanto, o leitor não deve deduzir (como geralmente fazem os
papistas) que há uma espécie de transação entre nós e Deus, nesta conexão,
de modo que, ao nos infligirmos nosso próprio castigo, de nossa própria
iniciativa, fazemos-lhe compensação, e em certo sentido nos redimimos a
nós mesmos de debaixo de sua mão. Portanto, não desviamos o juízo de
Deus antecipadamente só porque trazemos algo de natureza compensatória,
que o possa apaziguar. A razão é que quando Deus nos pune, sua intenção é
sacudir-nos de nossa letargia e incitar-nos ao quebrantamento. Se
procedemos assim, de nosso próprio arbítrio, então não existe mais razão
para ele prosseguir exercendo seu juízo contra nós. Mas se alguém que já
aprendeu a viver insatisfeito consigo mesmo e a praticar penitência se vê
ainda, não obstante, perseguido pelo azorrague divino, devemos deduzir
disso que seu arrependimento não é tão completo e tão forte que se exima
da necessidade de alguma reprovação a ajudá-lo a desenvolvê-la ainda mais.
Note-se como o arrependimento estanca o juízo divino como um antídoto
eficaz, mas não como algo que o substitua.
32. Mas quando somos julgados. Aqui temos uma consolação que é
imprescindivelmente necessária. Pois se alguém que se encontra em
dificuldade crê que isso se deve ao fato de Deus estar irado contra ele, seu
quebrantamento é suficiente para movê-lo à reparação. Paulo, pois, diz que,
quando Deus mostra aos crentes sua ira, ele o faz de tal forma que, ao
mesmo tempo, põe em relevo que não olvida sua misericórdia; e ainda mais,
ele diz que, quando Deus nos pune, isso se deve a sua particular
preocupação por nossa salvação. Constitui um inestimável conforto108 o
fato de que as punições, por meio das quais nossos pecados são corrigidos,
são prova, não da ira divina visando a nossa destruição, mas, antes, de seu
amor paternal; e que, ao mesmo tempo, elas nos ajudam a restabelecer
nossa salvação, pois Deus se ira contra nós como seus filhos, aos quais ele
não quer que pereçam.
Ao dizer: para não sermos condenados com o mundo, ele tem em
mente duas coisas. A primeira é que, quando os filhos deste mundo vivem
felizes e sem dificuldades, embalados por seus próprios deleites,109 estão
sendo engordados como suínos para o dia da matança [Jr 12.3]. Pois ainda
que o Senhor às vezes intime também os ímpios ao arrependimento, usando
neles seu azorrague, não obstante às vezes os toma por estranhos110 e lhes
permite que desçam seus declives sem qualquer freio, até que encham
transbordantemente a medida de sua final condenação. O privilégio de ser
arrancado das bordas da destruição, através de castigos, pertence
exclusivamente aos crentes.
A segunda coisa é esta: que as disciplinas [divinas] são remédios dos
quais os crentes necessitam, pois, do contrário, seriam também impelidos
rumo à destruição eterna,111 caso não fossem impedidos pelos castigos
temporais.
Essas considerações nos ajudam não só a sermos pacientes a fim de
suportarmos calmamente as aflições impostas por Deus, mas também para
aprendermos a gratidão; de modo que, dando graças a Deus nosso Pai,
submetamo-nos112 a sua disciplina em obediência espontânea. Há muitos
outros meios pelos quais esses pensamentos podem ser-nos de muita
utilidade, a saber: transformam nossas disciplinas em algo saudável para
nós, já que nos ensinam a mortificação da carne e a humildade diante de
Deus; nos fazem habituados a obedecer a Deus; nos convencem de nossas
próprias fraquezas; lançam chamas em nossos corações com solicitude pela
oração; nos fazem esperançosos de que realizaremos uma grande obra; de
modo que, seja longa ou breve, qualquer que seja a severidade que
porventura haja nesses pensamentos, é tudo absorvido pela alegria
espiritual.
33. Por isso, meus irmãos. Ele deixa de lado o ensino de natureza geral e
se volve agora para o caso particular com o qual começara. Ele termina
dizendo que na Ceia do Senhor a igualdade deve ser preservada, para que
haja genuína participação dela, e que cada um por sua vez não celebre sua
própria ceia; e finalmente diz que este sacramento não deve ser confundido
com festas ordinárias.
34. Quanto às demais coisas, ordená-las-ei quando for. É provável que
houvesse outros assuntos além destes, os quais não valiam a pena
acrescentar; mas já que eram de bem menos importância, o apóstolo adia
sua inclusão até que visite os coríntios. Ainda que se prove que nada disso
realmente existiu lá, todavia, visto que uma pessoa só tem pleno
conhecimento do que é necessário quando está presente, Paulo reserva para
si a liberdade de organizar as coisas pessoalmente, segundo as exigências da
real situação que porventura encontre.
Os papistas tomam isso também contra nós, como um escudo em defesa
da missa. Pois interpretam isto como equivalendo o pôr em ordem que Paulo
aqui promete; como se de fato tivesse assumido sobre si a liberdade113 de
interferir na imutável instituição de Cristo, a qual ele tão claramente
endossa nesta passagem. Ora, que semelhança pode haver entre a missa e a
instituição de Cristo? Não obstante, não ouçamos mais tal absurdo, visto
não haver dúvida de que Paulo aqui está falando apenas da adequação do
comportamento exterior. Mas como esta é uma questão que é deixada à
discrição da Igreja, assim, ao dispô-la, devem-se levar em consideração as
circunstâncias de tempo, de lugar, bem como as pessoas envolvidas.
1. No tocante aos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes.
2. Sabeis que outrora, quando éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos ídolos mudos,
guiados de qualquer forma.
3. Por isso vos faço compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma:
Jesus é anátema; e ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo.
4. Ora, há diversidades nos dons, porém o Espírito é o mesmo.
5. E há diversidades nos ministérios, mas o Senhor é o mesmo.
6. E há diferenças nas administrações, porém é o mesmo Deus que opera tudo em
todos.
7. Mas a cada um é concedida a manifestação do Espírito, visando a um fim proveitoso.
8. Huic quidem per Spiritum datur sermo sapientiæ, alteri datur sermo cognitionis,
secundum eundem Spiritum.
9. Alii fides in eodem Spiritu, alii dona sanationum in eodem Spiritu.
10. Alii facultates potentiarum, alii autem prophetia, alii autem discredetiones spirituum,
alii genera linguarum, alii interpretatio linguarum.
11. Porro omnia hæc efficit unus et idem Spiritus, distribuens seorsum cuique prout vult.
12. Quemadmodum enim corpus unum est, et membra habet multa: omnia autem
membra corporis unius quum multa sint, corpus autem est unum: ita et Christus.
13. Etenim per unum Spiritum nos omnes in unum corpus baptizati sumus, sive Iudæi,
sive Græci: sive servi, sive liberi: et omnes in uno Spiritu potum hausimus.
8. Porque a um é dada. Ele agora anexa uma lista; em outros termos, ele
detalha tipos particulares de dons, por certo não todos os dons, mas o
suficiente para seu presente propósito. Diz ele: “Os crentes são ricamente
equipados com diferentes dons, mas é preciso que cada um reconheça que o
Espírito de Deus lhe proporcionou tudo quanto possui, porquanto ele
derrama seus dons, assim como o sol difunde seus raios em todas as
direções.”
No tocante à diferença entre estes dons, conhecimento [ou entendimento
= scientia vel cognitio] e sabedoria são usados de diversas maneiras nas
Escrituras, aqui, porém, os tomo na forma de menor e maior, como em
Colossenses 2.3, onde também se acham juntos e onde Paulo ensina que
“todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão escondidos em
Cristo”. Conhecimento, pois, em minha opinião, significa familiaridade com
as coisas sacras; sabedoria, em contrapartida, significa a perfeição dele
[conhecimento]. Prudência é às vezes apresentada como uma espécie de
posição intermédia entre estes dois, e nesse caso significa a habilidade12 de
aplicar o conhecimento para algum propósito prático. Esses dois termos
estão indubitavelmente muito relacionados um com o outro; entretanto, é
possível alguém ver uma certa diferença entre eles, quando são postos lado
a lado. Tomemos, pois, conhecimento no sentido de informação ordinária; e
sabedoria, como incluindo revelações que são de uma ordem mais secreta e
sublime.13
9. O termo fé é aqui empregado para um gênero particular de fé, como
o contexto logo evidenciará. Este é o tipo de fé que não se limita a Cristo em
sua inteireza para a redenção, justificação e santificação, mas só no âmbito
em que os milagres são efetuados em seu nome. Judas possuía este gênero
de fé, e em sua instrumentalidade ele realizou milagres. Crisóstomo faz uma
distinção levemente diferente, chamando-a fé de milagres [signorum], e não
de doutrina [dogmatorum].14 Entretanto, não há muita divergência entre esta
e a interpretação que já apresentei. Quanto ao dom de curas,15 todos sabem
seu significado.
10. Entretanto, não há a mesma certeza quanto ao poder de operar
milagres [de facultatibus potentiarum], ou, como outros o traduzem,
“operações de influências” [operationibus virtutum]. Contudo, sinto-me
inclinado a crer que se trata do poder [virtutem] que é exercido contra os
demônios, bem como contra os hipócritas. Assim, quando Cristo e os
apóstolos, com toda autoridade, subjugaram os demônios, ou os puseram
em fuga, isto era ἐνέργημα [operação poderosa]. Outros exemplos temos no
fato de Paulo trazer cegueira ao mágico [At 13.11] e Pedro fazer Ananias e
Safira caírem por terra mortos, simplesmente lhes dirigindo a palavra [At 5.1-
11]. Portanto, os dons de cura e milagres são ambos canais da benevolência
de Deus para conosco. Em sua severidade, porém, ele usa os milagres para a
destruição de Satanás.16
Por profecia entendo aquele dom singular e selecionado de desvendar a
vontade secreta de Deus, de modo que o profeta é, por assim dizer, o
mensageiro entre Deus e o homem.17 Minhas razões para pensar assim serão
demonstradas depois, de forma mais completa.
O discernimento de espíritos era a clareza de percepção em formar juízo
quanto aos que professavam ser alguma coisa [At 5.36]. Não estou falando
da sabedoria natural, pela qual somos regulados para julgar. Era uma
iluminação especial com que alguns eram dotados pelo dom divino. O uso
dele era este: ele não podia ser imposto por máscaras nem por pretensões,18
mas por meio desse juízo espiritual; quem o possuísse podia distinguir,
como por uma marca particular, os verdadeiros ministros de Cristo dos
falsos.
Havia certa diferença entre o conhecimento de línguas e a interpretação
delas, pois os que eram dotados com o último, em muitos casos não
estavam familiarizados com a língua das pessoas com quem tinham que
tratar. Os intérpretes19 traduziam as línguas estrangeiras para a língua nativa.
Naquela época, não adquiriam estes dons através de árduo trabalho ou
estudo; ao contrário, os possuíam através de uma maravilhosa revelação do
Espírito.
11. Mas um só e o mesmo Espírito distribui a cada um. Daqui segue-se
que as pessoas laboram em erro quando não movem sequer uma palha pela
participação, porém quebram aquela santa harmonia em que todas as partes
se fundem – algo que só pode existir quando todos, sob a direção do mesmo
Espírito, trabalham juntos de comum acordo. Paulo uma vez mais intima os
coríntios à unidade, lembrando-os de que todos os dons que possuíam,
obtiveram-nos de uma única fonte; mas, ao mesmo tempo, ele prova que
ninguém possui tanto para que se sinta auto-suficiente, que não necessite
do auxílio de outrem. Pois é isso mesmo que ele pretende quando diz:
“distribuindo-os a cada um, individualmente, como lhe apraz.” O Espírito de
Deus, portanto, distribui esses dons entre nós, a fim de concentrarmos toda
nossa contribuição visando ao bem comum. Ele não distribui tudo a um só
indivíduo, para evitar que alguém fique tão satisfeito com sua porção, que
procure isolar-se dos demais, vivendo unicamente para si. O advérbio
individualmente é usado para o mesmo propósito, visto ser particularmente
importante que a diferença individual, pela qual Deus nos faz mutuamente
dependentes,20 seja por nós adequadamente preservada. Ora, quando boa
vontade é predicado do Espírito, juntamente com seu poder, é possível
concluir que o Espírito é genuína e legitimamente Deus.
12. Porque, assim como o corpo é um. Ele agora introduz o símile do
corpo humano, o qual também usa em Romanos 12.4, mas para um
propósito distinto, como já mostrei. Ali ele está levando cada pessoa a
sentir-se feliz com sua própria vocação, e a não invadir o território de
outrem, seja por ambição, curiosidade ou algum outro motivo egoístico que
leva muitas pessoas a se apropriarem mais do que lhes é conveniente. Nesta
passagem, porém, Paulo está estimulando os crentes a manterem-se unidos
pela associação de seus dons para o benefício recíproco; porquanto seus
dons haviam sido outorgados por Deus, não para que cada um nutrisse a si
próprio, mas para que tivesse com que auxiliar a outrem.
Além disso, é algo bem comum que uma associação ou um grupo de
pessoas se denomine corpo, como, por exemplo, um corpo de políticos, um
corpo governante e um corpo do povo. Certa vez, há muito tempo, quando
Menenius Agripa21 pretendia reconciliar o povo romano com o senado,
contra quem o povo se rebelara, ele contou uma fábula, a qual traz certa
similitude com o que Paulo ensina aqui.22 No caso dos cristãos, porém, a
situação é inteiramente distinta, pois não constituem um mero corpo
político, mas constituem o corpo espiritual e místico de Cristo, como Paulo
mesmo acrescenta [v. 27]. O significado, pois, é o seguinte: embora haja
diferentes membros no corpo, com diferentes funções, no entanto se acham
de tal maneira jungidos uns aos outros que formam uma unidade.23
Portanto nós, que somos membros de Cristo, mesmo estando equipados
com diferentes dons, não obstante devemos preocupar-nos com aquela
união mútua, que temos em Cristo.
Assim também com respeito a Cristo. O nome de Cristo é usado aqui
no lugar da Igreja, porque a comparação [similitudo] precisava ser aplicada,
não ao Filho Unigênito de Deus, mas a nós. Visto, porém, ele chamar a Igreja,
Cristo, este versículo se acha saturado de raro conforto. A razão por que
Cristo nos veste com esta honra, é que ele24 deseja ser discernido e
reconhecido, não só em sua própria Pessoa, mas também em seus membros.
Portanto, o mesmo apóstolo diz em Efésios 1.23 que a Igreja é sua plenitude
[complementum],25 como se quisesse dizer que, caso fosse separado de
seus membros, ele [Cristo] mesmo seria de alguma forma mutilado. E de
fato, como Agostinho com elegância o expressa em alguma parte de seus
escritos: “Visto que em Cristo somos uma videira frutífera [Jo 15.4], o que
somos fora de Cristo senão poucos ramos murchos?” Nosso conforto
repousa nesta verdade, a saber, que assim como ele e o Pai são um, também
somos um com ele. Eis a razão por que ele partilha seu nome conosco.
13. Pois em um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo. A
prova deste fato é fornecida pelo efeito do batismo. Diz ele: Através do
batismo somos enxertados no corpo de Cristo, de modo a vivermos unidos,
jungidos uns aos outros como membros, e nutrindo-nos de uma só vida.
Portanto, quem deseja permanecer na Igreja de Cristo deve necessariamente
devotar-se a esta comunhão.”
Ele, naturalmente, está falando do batismo de crentes, o qual se torna
eficaz pela ação da graça do Espírito. Porquanto para muitos o batismo não
passa de mera formalidade, um símbolo sem a realidade; no entanto, os
crentes realmente recebem a realidade com o sacramento. Portanto, no
tocante a Deus, sempre resulta verdadeiro que o batismo é um enxerto no
corpo de Cristo, porque tudo o que Deus anuncia no batismo ele está
pronto a pôr em obra, contanto que, de nossa parte, sejamos-lhe receptivos.
O apóstolo aqui também observa um meio muito admirável, ao ensinar que
a natureza do batismo consiste em conectar-nos com o corpo de Cristo.
Contudo, para que ninguém suponha que isso é efetuado pelo símbolo
externo, o apóstolo acrescenta que ele é obra do Espírito Santo.
Quer judeus quer gregos. Ele menciona estas duas classes a fim de
realçar que a diferença na condição das pessoas não é obstáculo a esta
unidade sagrada, a qual ele está recomendando. A inclusão desta frase é
apropriada e oportuna, pois duas coisas poderiam ter suscitado
ressentimento naquele tempo. A primeira é que os judeus estavam
relutantes em pôr outras pessoas no mesmo nível com eles. A outra, onde
alguém tivesse alguma excelência acima de outros, com vistas a manter sua
superioridade, o mesmo se afasta a uma longa distância de seus irmãos.
E a todos foi dado beber de um só Espírito. A tradução literal do grego
é: “temos bebido de um só Espírito”. Não obstante, tudo indica que, com o
fim de evitar que as duas palavras ἐν [em] e ἑν [um] viessem uma após a
outra, Paulo propositadamente mudou ἐν para εἰς [para], como costumava
fazer com freqüência. Daí, sua intenção parece antes ser que somos feitos
para beber através da influência, como disse antes, do Espírito de Cristo, e
não que temos bebido no mesmo Espírito.
Não obstante, é incerto se ele fala aqui do batismo ou da Ceia. Sou antes
inclinado a entendê-lo como se referindo à Ceia, ao fazer menção de beber,
pois não tenho dúvida alguma de que ele pretendia fazer alusão à similitude
do sinal [ad signi analogiam]. Certamente, beber não tem nenhuma conexão
com o batismo. Mas, mesmo que o cálice seja apenas uma metade da Ceia,
contudo isso não ocasiona nenhuma dificuldade, pois é bem comum nas
Escrituras o uso de sinédoque26 quando se trata dos Sacramentos. No
capítulo 10 [v. 7], ele menciona só o pão, omitindo qualquer referência ao
cálice. O significado, pois, seria que o propósito pelo qual participamos do
cálice é para que todos nós possamos beber da mesma bebida espiritual.
Pois nele [o cálice] bebemos o sangue de Cristo, o qual é gerador de vida,
para podermos ter vida comum com ele; e isso realmente sucede quando ele
habita em nós por meio de seu Espírito. Além do mais, este Espírito é Um só.
Paulo, pois, ensina que, logo que os crentes são iniciados através do
batismo de Cristo, eles já se sentem cheios de zelo pelo cultivo da unidade
mútua;27 em seguida, quando recebem a Santa Ceia, são conduzidos,
paulatinamente, à mesma unidade, porque estão todos sendo
simultaneamente vivificados pelo mesmo beber.
28. Et alios quidem posuit Deus in Ecclesia, primum apostolos, deinde Prophetas, tertio
Doctores, postea Potestates, deinde dona sanationum, opitulationes, gubernationes,
genera linguarum.
29. Numquid omnes Apostoli? numquid omnes Prophetæ? numquid omnes Doctores?
numquid omnes Potestates?
30. Numquid omnes dona habent sanationum? numquid omnes linguis loquuntur?
nusmquid omnes interpretantur?
31. Sectamini autem dona potiora.40
1. “Il demeure là abbruti apres les idoles.” – “Permanece ali, num afeto animalesco pelos
ídolos.”
2. Esta idéia é abordada mais amplamente por Bloomfield, que observa que ἀπάγεσθαι (ser
levado embora) é “um termo forte, denotando ser arrebatado por uma força que não pode ser
resistida; e aqui se refere à cega enfatuação pela qual os pagãos eram atraídos à idolatria e
vícios, como bestas brutas que não têm entendimento.” Adiciona ainda: “Isto é especialmente
mencionado em ὡς ἄν ἤγεσθε – como podeis ser levados, isto é, por costume, exemplo, ou
inclinação, justamente como pode acontecer.”
3. “Que ce sera une vilenie à eux s’ils” – “Será uma desgraça para eles se ...”
4. “D’estre errans et abusez en diuerses sortes.” – “De andar ao léu e iludidos de várias
maneiras.”
5. “La proportion et ordre bien compassé qui est en l’Eglise.” – “A proporção e ordem bem
regulada que existem na Igreja.”
6. “Consiste en vne vnite faite de plusieurs parties assemblees.” – “Consiste de uma unidade
feita de muitas partes bem ajustadas.”
7. “Il veut donc qu’un chacun se contentant du don qu’il a receu, s’employe a le faire valoir, et
s’acquitter de son deuoir.” – “Portanto, ele quer que cada um se contente com o dom que
recebeu, esforçando-se por aperfeiçoá-lo e cumprindo cuidadosamente seu dever.”
8. “Pour en iouyr à part, sans en communiquer à ses freres.” – “De modo a desfrutar deles sem
reparti-los com seus irmãos.”
9. “Vn tas d’esprits enragez.” – “Uma tropa de espíritos furiosos.”
10. “De discretion.” – “De discrição.”
11. “Que ceci estg appelé Manifestation.” – “Que isto é designado uma Manifestação.”
12. “Le sçauoir et la dexterite.” – “Habilidade e destreza.” Quanto ao termo prudência [prudence],
ver Cícero de Officiis, i.43.
13. Um dos pontos de vista mais satisfatórios deste tema é o do Dr. Henderson, em seu Lecture on
“Divine Inspiration” (pp. 193, 196), que entende por σοφία (sabedoria), nesta passagem, “as
sublimes verdades do evangelho, diretamente reveladas aos apóstolos, das quais λογος
(palavra) era a habilidade supernatural de comunicá-las corretamente a outros”; e por λόγος
γνώσεως (palavra de conhecimento) a faculdade de “infalivelmente explicar verdades e doutrinas
que foram previamente divulgadas.”
14. As palavras de Crisóstomo são: “Por esta fé ele tem em mente não a fé de doutrinas, mas a
de milagres.” Ela era chamada pelos escolásticos fides miraculorum (fé de milagres).
15. O uso de plural se manifesta para notificar o número e variedade das enfermidades que
foram curadas – os apóstolos foram revestidos com poder para curar todas as formas de
doenças e todas as formas de enfermidades [Mt 10.1].
16. Parece não haver base suficiente para entender os milagres aqui referidos como
necessariamente atos de terror, embora a conexão em que a expressão ocorre pareça notificar
que milagres aqui significavam mais que manifestações ordinariamente estupendas do poder
divino, tal como constrangeria poderosamente o espectador a exclamar: Este é o dedo de Deus!
Assim, “a ressurreição dos mortos, tornar serpentes inócuas, ou beber alguma bebida
envenenada, a expulsão de demônios e a cura de cegueira”, como no caso de Elimas, o mágico,
e da própria morte, como no caso de Ananias e Safira, foram feitos poderosos .”
17. “Apportant la volonte de Dieu aux hommes.” – “Comunicar a vontade de Deus aos homens.”
18. “Par la montre et belle apparence que les gens ont aucuneffois.” – “Pela boa aparência que
às vezes as pessoas têm.”
19. “Et en tel cas ceux que auoyent le don d’interpretation des laugues.” – “E em caso como esse,
os que tinham o dom de interpretar línguas.”
20. “Par laquelle Dieu nou conioint et oblite mutuellement les uns aux autres.” – “Por meio da
qual Deus nos conecta e obriga mutuamente uns aos outros.”
21. Menenius Agripa, cônsul romano, por ocasião de uma rebelião irrompida entre o populacho
contra os nobres e senadores, aos quais representavam como sendo inúteis e nauseabundos ao
paladar, foi bem sucedido em aplacar a insurreição, pelo feliz uso do apólogo referido,
fundamentado na conexão íntima e mútua dependência das diferentes partes do corpo. O leitor
encontrará este interessante incidente relatado por Livy, Livro ii. cap. 32.
22. “En remonstrant que les membres du corps ayans conspiré contre le ventre, et se voulans
separer d’auec luy s’en trouuerent mal les premiers.” – “Ao mostrar que os membros do corpo,
tendo conspirado contra o ventre, e desejando separar-se dele, foram os primeiros a
experimentar os maus efeitos disso.”
23. “Ils prenent nourriture et acroissement l’un auec l’autre.” – “Tomam nutrientes e crescem,
uns com os outros.”
24. “Ce bom Seigneur Jesus.” – “Este bom Senhor Jesus.”
25. Calvino, entre outros intérpretes, entende o termo πλήρωμα (plenitude), na passagem referida,
num sentido ativo. Teofilato observa que a Igreja é a Πλήρωμα – completude de Cristo, como o
corpo e os membros são da cabeça. O termo pode, contudo, ser tomado num sentido passivo,
significando uma coisa a ser preenchida ou completada.
26. Uma figura de linguagem, por meio da qual uma parte é expressa pelo todo.
27. “Si tost qu’ils sont amenez à Christ par le baptesme, desia leur est donné un goust de
l’affection qu’ils doyuent auoir d’entretenir entr’eux unite et conionction naturelle.” – “Tão logo
são conduzidos a Cristo pelo batismo, já lhes é dado algum sabor da disposição que devem
nutrir, para manter entre si uma unidade e conexão mútuas.”
28. “Nous face restraindre et espargner les vnes enuers les autres.” – “E nos faça restringir e
poupar-nos em relação a outros.”
29. “De s’accommoder et soumetre à l’un des autres membres.” – “Para acomodar-se e
submeter-se aos demais membros.”
30. “Comme les poetes ont dit anciennement des geans.” – “Como os poetas contaram dos
gigantes dos tempos de outrora.” A fábula da guerra dos gigantes com os deuses referida na
Odisséia de Homero, 7, 59, 206; 10, 120.
31. “De peur de perdre temps, and nous gaster en resistant à la volonté.” – “Para não perdermos
tempo e prejudicar-nos por resistirmos sua vontade.”
32. “Un amas de chair inutile.” – “Um amontoado de carne inútil.”
33. Raphelius observa que τιμὴν περιτιθέναι “significa, em geral, (honorem exhibere) dar honra; nesta
passagem, porém, à guisa de metonímia, cobrir com roupa aqueles membros do corpo que, se
vistos, seria desagradável e de aparência inconveniente; e este é um tipo de honra que os
veste.”
34. “Et que ne porte sa vocation.” – “E não se mantém nos limites de sua vocação.”
35. Os autores clássicos fazem uso do termo neste sentido.
36. “Voyci vne belle matgiere riche et abondance.” – “Aqui está um tema excelente, rico e
copioso.”
37. Billroth observa que “o ponto de vista de Crisóstomo está fora de lugar; pois tal noção não
pertence à argumentação do apóstolo”. Biblical Cabinet, No. xxii, p. 39.
38. Um exemplo disto pode ser encontrado em Cícero de Amicitia, 8.
39. “Comme nous disons en Langue vulgaire, Aucunement.” – “Como dizemos na linguagem
popular: de certa maneira.”
40. “Ou, Soyez couuoiteux des plus excellens dons, ou, estes-vous enuieux des plus excellens
dons?” – “Ou, Tende ambição pelos dons mais excelentes, ou, Vós sois envejosos dos dons mais
excelentes?”
41. “Selon sas portion et mesure.”– “Segundo sua porção e medida.”
42. “De l’accommoder prudemment, et l’appliquer en vsage selon les personnes et le temps.” –
“Para fazer uso dela sabiamente, bem como aplicá-la para o uso de acordo com as pessoas e
tempo.”
43. “Et advertissemens des choses à venir.” – “E notificações ou coisas futuras.”
44. Este ponto de vista da importância do termo αντιλήψεις (socorros) geralmente é aquiescido
por intérpretes modernos. O Dr. Dick observa (em sua Theology, vol. iv. p. 390) que “não há
pessoas que sejam tão razoavelmente obrigadas a entender que socorros significam diáconos”;
os quais “foram instituídos com o expresso propósito de ajudar os apóstolos, com o propósito de
aliviá-los do cuidado dos pobres, para que pudessem devotar-se exclusivamente ao ministério
da palavra.” Ele observa ainda (p. 389) que “isso não procede, visto que alguns dos ofícios e
ministrações enumeradas neste lugar eram miraculosos e extraordinários, os quais eram todos
dessa descrição.”
45. “Auoit comme son Senate, ou Consistoire.” – “Tinham seu Senado, por assim dizer, ou
Consistório.”
46. “Deux ordres de Prestres: c’est à dire d’Anciens.” – “Dois tipos de Presbíteros, ou, seja,
Anciãos.”
47. Nosso autor repete aqui o que foi afirmado onde comenta sobre o versículo 10.
Capítulo 13
1. Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos, mas não tiver amor, serei como o
bronze ressonante ou como o símbalo estridente.
2. E se eu tiver o dom de profecia e conhecer todos os mistérios e toda a ciência; e se
tiver toda a fé que faz remover montanhas, mas não tiver amor, nada serei.
3. E se eu doar todos meus bens para o sustento dos pobres, e se entregar meu corpo
para ser queimado, mas não tiver amor, de nada me aproveitará.
4. Caritas patiens est, benigne agit, caritas non æmulatur, caritas non agit insolenter, non
inflatur;
5. Non agit indecenter, non quærit sua ipsius, non provocatur, non cogitat malum:
6. Non gaudet obiniustitiam, congaudet autem veritati.
7. Omnia fert, omnia credit, omnia sperat, omnia sustinet.
8. Caritas nunquam excidit: sive prophetiæ abolebuntur, sive linguæ cessabunt, sive
scientia destruetur.
Ele então mostra que a profecia e todos os demais dons desse gênero
serão destruídos,24 visto que nos são outorgados para auxiliar-nos em
nossa debilidade. Ora, um dia nossa imperfeição chegará ao fim; portanto, o
uso desses dons também cessará concomitantemente. Porquanto seria
absurdo que continuassem em vigor quando não haja mais nenhuma
necessidade deles; por isso, perecerão. O apóstolo retoma este argumento
no final do capítulo.
9. Em parte conhecemos. A maioria das pessoas explica este versículo
de forma equivocada, ou, seja: que nosso conhecimento não é ainda
perfeito; ao contrário, diariamente estamos fazendo progresso nele; e que o
mesmo se aplica à profecia. Mas a intenção do apóstolo é mostrar que o fato
de recebermos conhecimento e profecia é precisamente uma prova de que
somos imperfeitos. Portanto, em parte significa que não fomos ainda
aperfeiçoados. Conhecimento e profecia, portanto, terão lugar em nossas
vidas enquanto a imperfeição fizer parte de nossa existência terrena, pois
eles nos assessoram até que a plenitude nos atinja. É sem dúvida correto
que nos seja exigido progredir ao longo de nossa vida terrena, e tudo o que
temos está num estado inacabado. Mas precisamos compreender o que o
apóstolo deseja ressaltar, ou, seja: que os dons em questão são de caráter
temporário. Não obstante, a razão pela qual ele realça este fator é que o
benefício oriundo dos dons só é eficaz enquanto estivermos nos movendo
rumo ao alvo, evidenciando progresso dia a dia.
10. Quando vier o que é perfeito. O apóstolo poderia ter posto nestes
termos: “Quando tivermos alcançado o ponto de chegada, então as coisas
que nos ajudaram no percurso deixarão de existir.” No entanto, ele usa a
mesma forma de expressão anterior, ao pôr a perfeição em contraste com o
que é em parte. Ele está dizendo: “Quando a perfeição chegar, tudo quanto
nos auxiliou em nossas imperfeições será abolido.” Mas, quando tal
perfeição virá? Em verdade, ela começa na morte, quando nos despirmos
das inúmeras fraquezas juntamente com o corpo; ela, porém, não será
plenamente estabelecida até que chegue o dia do juízo final, como logo
veremos. Portanto, desse fato concluímos que é algo em extremo estúpido
alguém fazer toda esta discussão aplicar-se ao período intermediário.
11. Quando eu era criança. O apóstolo ilustra o que afirmou, usando
uma similitude. Pois muitas das coisas que são apropriadas à infância
desaparecem mais tarde, quando chegam os anos da maturidade.25 Por
exemplo, quando somos ainda crianças, temos necessidade de ir à escola;
isso, porém, seria ridículo para uma pessoa idosa. Ora, enquanto vivemos
neste mundo, precisamos de alguma instrução; pois ainda nos achamos
longe da plenitude de sabedoria. Portanto, a perfeição, que será uma espécie
de maturidade no desenvolvimento espiritual, porá fim à instrução e tudo
quanto a acompanha. Na epístola aos Efésios [4.14], o apóstolo insta
conosco a que não mais sejamos crianças; ele, porém, o faz com um
objetivo distinto, e falaremos disso ao tratarmos dessa passagem.
12. Porque agora vemos como em espelho. Aqui chegamos à aplicação
da similitude, ou, seja: o sistema de conhecimento que agora possuímos é
apropriado a nosso estado de imperfeição, e que pode ser denominado
nossa infância; porque não possuímos ainda uma nítida percepção dos
mistérios do reino do céu, e não usufruímos ainda da visão desnuda deles.
Com o fim de enfatizar isso, o apóstolo usa ainda outra similitude, a saber:
que a única maneira de vermos agora é através de um espelho, e portanto
não de forma concreta. Ele expressa tal obscuridade através do termo
enigma.26
Em primeiro lugar, não há dúvida de que ele está comparando a um
espelho o ministério da Palavra e os auxílios indispensáveis para seu
exercício. Pois Deus, que por outro lado é invisível, designou estes como
meios para revelar-se a nós. Naturalmente, isso pode também ser feito para
abranger toda a estrutura do universo, no qual a glória de Deus resplandece
para que nos contemplemos, como se acha expresso em Romanos 1.16 e 2
Coríntios 3.18. Em Romanos 1.20 o apóstolo descreve as coisas criadas
como espelhos27 através dos quais a majestade invisível de Deus possa ser
vista; mas já que o apóstolo está tratando aqui particularmente dos dons
espirituais, que são assistenciais no ministério exercido pela Igreja, e a
acompanham, não divagaremos mais.
O ministério da Palavra, repito, é como um espelho. Pois os anjos não
precisam da pregação, nem de outros auxílios inferiores, nem de
sacramentos. Eles possuem a vantagem de contemplar a Deus por outros
meios,28 porque Deus não lhes mostra sua face simplesmente através de um
espelho [in speculo], mas se apresenta publicamente diante deles [palam se
illis praesentem exhihit]. Nós, porém, que ainda não escalamos tais altitudes,
contemplamos a imagem de Deus [imaginem Dei speculamur] na Palavra,
nos Sacramentos e, em síntese, em todo o ministério da Igreja.
Aqui o apóstolo fala daquela visão, da qual participamos, como sendo
obscura [aenigmaticam], não porque ela seja dúbia ou ilusória, mas porque
não é tão nítida como eventualmente será no Último Dia. Ele ensina a mesma
coisa de forma distinta em 2 Coríntios 5.6, 7: “enquanto no corpo, estamos
ausentes do Senhor; visto que andamos por fé, e não pelo que vemos.”
Portanto, nossa fé agora contempla Deus que, de certa forma, está ausente
[tanquam absentem]. Como assim? Porque ela não mira sua face, porém se
sente feliz mirando sua imagem no espelho [in speculi imagine]. Mas quando
deixarmos o mundo para trás, e partirmos para Deus, a fé o contemplará,
por assim dizer, em contato direto e sem véu diante de seus próprios olhos.
Daí devermos entendê-lo por este prisma: o conhecimento de Deus, que
agora extraímos de sua Palavra é indubitavelmente confiável e genuíno, e
não há nele nada confuso, nem ininteligível, nem obscuro; senão que,
quando ele é qualificado de obscuro [aenigmaticam], este é num sentido
relativo, porquanto ele é muito lento em perceber aquela clara revelação que
aguardamos, quando veremos face a face.29 Portanto, este versículo não está
de forma alguma em conflito com outros que falam da clareza, quer da lei ou
da Escritura como um todo, principalmente de todos os Evangelhos. Pois há
na Palavra uma revelação franca e nítida de Deus (suficiente para satisfazer
nossas necessidades), e não há nela nada que seja recôndito [involutum],
segundo imaginam os descrentes,30 que nos mantenha num estado de
incerteza. Todavia, quão pequena é esta parte da visão em direção à qual
caminhamos! Portanto, o conhecimento é descrito como obscuro só no
sentido comparativo.
O advérbio então indica o último dia, antes do tempo imediatamente
após a morte. Entretanto, ainda que a plenitude da visão seja adiada até o
Dia de Cristo, começaremos a ter uma nítida visão de Deus assim que
morrermos. Então nossas almas se verão livres de nossos corpos, e não
terão mais necessidade nem do ministério externo nem de outros auxílios
inferiores. Paulo, porém (como já enfatizei), não está ansioso por discutir o
estado dos mortos, porque o conhecimento desta matéria é de pouco valor
para a piedade.
Agora conheço em parte, isto é, o conhecimento que agora temos é
incompleto. João diz a mesma coisa em sua carta [1Jo 3.2]: “Sabemos que,
quando ele manifestar-se, seremos semelhantes a ele, porque havemos de
vê-lo como ele é.” Então veremos a Deus, não em seu reflexo [imagine], mas
ele mesmo, de modo que haverá, por assim dizer, uma mútua visão.
13. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor. Esta é a
conclusão do que vem antes: que o amor é muito mais excelente que todos
os demais dons; mas, em vez do catálogo dos dons que Paulo apresentara
previamente, ele agora coloca fé e esperança lado a lado com o amor, pois
todos os outros estão compreendidos nestes três. Porque, com que
propósito todo o ministério foi dado senão para sermos treinados nestes
três dons?31 Daí, o termo fé tem aqui uma acepção muito mais ampla, mais
ampla do que nos exemplos anteriores de seu uso. Pois é como se o
apóstolo pretendesse dizer: “É verdade que há muitos e variados dons,
porém todos eles apontam para este objetivo, e o tem em mira.”
Portanto, permanecer comunica esta idéia: como ocorre no acerto de
contas, quando tudo estiver deduzido, este é o resultado que permanece.
Pois a fé não permanece depois da morte, segundo o apóstolo a contrasta
em outro lugar com a vista [2Co 5.7], e ensina que ela dura só enquanto
estamos ausentes do Senhor. Agora podemos entender o que está implícito
no termo fé neste versículo, ou, seja: o conhecimento de Deus e de sua
vontade, o qual obtemos através do ministério exercido pela Igreja; ou, se se
preferir, a fé universal e tomada em sua acepção própria.
Esperança nada mais nada menos é que a perseverança na fé. Pois assim
que tivermos crido na Palavra de Deus, resta ainda que perseveremos até a
concretização dessas coisas. Daí, visto que a fé é a mãe da esperança, esta é
também sustentada por aquela a fim de que não venha a perecer.
O maior destes é o amor. Isso é assim se estimarmos sua excelência
pelos efeitos que ele previamente enumerou; e mais, se tivermos a visão de
sua perpetuidade. Pois cada um extrai benefício de sua própria fé e
esperança, ao passo que o amor é derramado para o bem de outrem. A fé e a
esperança são os acompanhantes de nosso estado imperfeito, porém o amor
persistirá mesmo nas condições de perfeição.
Pois se examinarmos os frutos da fé, um a um, e os compararmos,
descobriremos que ela é superior em muitos aspectos. Sim, o amor
propriamente dito, segundo o testemunho do próprio apóstolo [1Ts 1.3], é
um efeito da fé; e o efeito é, sem dúvida, inferior a sua causa. Além disso, um
notável tributo é pago à fé, o que não se aplica no caso do amor, quando
João [1Jo 5.4] diz que a fé é a vitória que vence o mundo. Finalmente, é
mediante a fé que nascemos de novo, nos tornamos filhos de Deus, obtemos
a vida eterna e Cristo habita em nós [Ef 3.17]. Deixo de mencionar outras
incontáveis bênçãos, porém os poucos exemplos serão suficientes para
trazer a lume o que quero dizer quando afirmo que a fé é superior ao amor
em muitos de seus efeitos. É evidente, à luz do texto, que o amor é maior,
não em todos os aspectos, mas porque ele durará eternamente, e no
momento exerce um papel primário em conservar a Igreja em existência.
No entanto, é estranho como os papistas se mostram egoístas em
proclamar em alto e bom som que, se a fé justifica, então o amor, que é
descrito como sendo o maior, justifica muito mais. Ora, a solução de tal
objeção já foi fornecida pelo que já afirmei, porém admitamos que o amor é
em muitos aspectos superior. Que sorte de raciocínio é essa, a saber: visto
que o amor é maior, ele é mais eficaz para justificar os homens? Segundo
essa forma de pensar, um rei preparará a terra melhor que um agricultor; fará
um calçado melhor que um sapateiro, só porque é um homem de
nascimento mais nobre que ambos juntos. Semelhantemente, um homem
correrá mais rápido que um cavalo e carregará um fardo mais pesado que o
de um elefante, e isso porque ele é um ser superior aos dois animais! Além
do mais, sob o mesmo princípio, os anjos gerarão mais luz para a terra do
que o sol e a lua, só porque estão muito acima deles! Se o poder para
justificar dependesse da dignidade ou do mérito da fé, talvez devêssemos
prestar mais atenção ao que dizem. Nós, porém, não ensinamos que a fé
justifica em virtude de ser mais valiosa ou que ocupe um lugar de mais
honra, mas porque ela recebe a justiça que é oferecida gratuitamente no
evangelho. Grandeza, dignidade, não têm parte alguma nesta questão, e aqui
equivalem a nada. Esta é a razão por que este versículo não fornece mais
assistência aos papistas do que se o apóstolo tivesse realmente colocado a
fé antes de tudo mais.
7. E até as coisas inanimadas, como a flauta, ou a cítara, quando emitem sons, se não os
derem bem distintos, como se reconhecerá o que se toca na flauta, ou na cítara?
8. Pois se a trombeta der um som incerto, quem se preparará para a batalha?
9. Assim também vós, se com a língua não disserdes palavra compreensível, como se
entenderá o que estais falando? pois estareis como que falando ao ar.
10. Há, por assim dizer, muitos tipos de vozes no mundo, e nenhum deles é sem sentido.
11. Portanto, se eu não entender o sentido da voz, serei bárbaro para aquele que fala; e
o que fala será bárbaro para mim.
12. Assim também vós, visto que sois zelosos pelos dons espirituais, buscai exceder
naqueles que visam à edificação da igreja.
13. Por isso, aquele que fala em outra língua, ore para que a possa interpretar.
14. Porque, se eu orar numa língua desconhecida, meu espírito ora de fato, porém
minha mente fica infrutífera.
15. Que farei, pois? Orarei com o espírito, e também orarei com o entendimento;
cantarei com o espírito, e também cantarei com o entendimento.
16. E se bendisseres com o espírito, como o indouto dirá o amém após tua ação de
graças, visto que não entende o que dizes?
17. Porque tu de fato dás graças muito bem, porém o outro não é edificado.
7. Quin et inanimia vocem reddentia, sive tibia, sive cithara, nisi distinctionem sonis
dederint: quomodo cognoscetur, quod tibia canitur aut cithara?
8. Etenim si incertam vocem tuba dederit, quis apparabitur ad bellum?
9. Sic et vos per linguam, nisi significantem sermonem dederitis: quomodo intelligetur
quod dicitur? eritis enim in aërem loquentes.
10. Tam multa, verbi gratia, genera vocum sunt in mundo, et nihil horum mutum.
11. Itaque si nesciero vim vocis, erro ei qui loquitur, barbarus: et qui loquitur, apud me
barbarus.
12. Itaque et vos, quandoquidem sectatores estis spirituum, ad ædificationem Ecclesiæ
quærite, ut excellatis.
13. Quapropter qui loquitur lingua, oret ut interpretetur.
14. Nam si orem lingua, spiritus meus orat, mens autem mea fructu caret.
15. Quid igitur est? orabo spiritu, sed orabo et mente: canam spiritu, sed canam et
mente.
16. Alioqui si benedixeris spiritu, is qui implet locum idiotæ, quomodo dicturus est Amen
ad tuam gratiarum actionem? quandoquidem quid dicas, nescit.
17. Nam tu quidem bene gratias agis, sed alius non ædificatur.
18. Dou graças a Deus porque falo em línguas mais do que todos vós.
19. Contudo, prefiro falar na igreja cinco palavras com meu entendimento, para que, por
meio de minha voz, eu possa instruir os outros também, a falar dez mil palavras numa
língua desconhecida.
20. Irmãos, não sejais crianças no juízo; na malícia, sim, sede criancinhas; quanto ao
juízo, sede homens.
21. Na lei está escrito: Falarei a este povo por meio de homens de outras línguas e por
lábios de estrangeiros; e nem assim me ouvirão, diz o Senhor [Is 28.11, 12].
22. De sorte que as línguas constituem um sinal, não para os que crêem, mas para os
incrédulos. A profecia, porém, constitui um sinal, não para os incrédulos, e, sim, para os
que crêem.
23. Se, pois, toda a igreja se reunir num lugar, e todos se puserem a falar em línguas, no
caso de entrarem indoutos ou incrédulos, não dirão, porventura, que estais loucos?
24. Mas se todos se puserem a profetizar, e ali entrar algum incrédulo ou indouto, ele é
por todos convencido, e por todos julgado.
25. E assim os segredos de seu coração se farão manifestos; e assim, prostrando-se
sobre seu rosto, adorará a Deus, declarando que Deus de fato está entre vós.
18. Gratias ago Deo meo, quod magis quam vos omnes linguis loquor:
19. Sed in Ecclesia volo quinque verba mente mea loqui, ut et alios instituam, potius
quam decem millia verborum, lingua.
20. Fratres, ne sitis pueri sensibus, sed malitia pueri sitis: sensibus vero sitis perfecti.
21. In lege scriptum est: (Ies. xxviii.11, 12:) Alienis linguis et labiis alienis loquar populo
huic: et ne sic quidem audient me, dicit Dominus.
22. Itaque linguæ signi vice sunt, non iis qui credunt, sed incredulis: contra prophetia non
incredulis, sed credentibus.
23. Ergo si convenerit Ecclesia tota simul, et omnes linguis loquantur, ingrediantur autem
indocti aut increduli, nonne dicent vos insanire?
24. Quodsi omnes prophetent, ingrediatur autem incredulus aut indoctus, coarguitur ab
omnibus, diiudicatur ab omnibus,
25. Et sic occulta cordis eius manifesta fiunt; atque ita procidens in faciem, adorabit
Deum, renuntians, quod Deus revera in vobis sit.
26. Então, irmãos, o que fazer? Quando vos reunis, um tem salmo, outro doutrina; este
tem revelação, aquele tem línguas, e ainda outro, interpretação. Seja tudo feito para
edificação.
27. No caso de alguém falar numa língua desconhecida, que não seja mais do que dois,
ou quando muito três, e isso sucessivamente, e haja quem interprete.
28. Mas se não houver intérprete, guarde silêncio na igreja, e que fale consigo mesmo e
com Deus.
29. E que os profetas falem dois ou três, e os demais julguem.
30. Se alguma coisa for revelada a um que estiver assentado, que o primeiro fique em
silêncio.
31. Porque todos podereis profetizar, um após outro, para que todos aprendam e sejam
consolados.
32. Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas;
33. porque Deus não é o autor de confusão, e, sim, de paz; como em todas as igrejas dos
santos.
26. Quid igitur est, fratres? Quoties convenitis, unusquisque vestrum canticum habet,
doctrinam habet, linguam habet, revelationem habet, interpretationem habet: omnia ad
ædificationem fiant.
27. Sive lingua quis loquitur, fiat per duos, aut ad summum tres, idque vicissim, et unus
interpretetur.
28. Quodsi non sit interpres, taceat in Ecclesia: cæterum sibi ipsi loquatur et Deo.
29. Prophetæ autem duo aut tres loquantur, et caeteri diiudicent.
30. Quodsi alii fuerit revelatum assident, prior taceat:
31. Potestis enim singulatim omnes prophetare, ut omnes discant, et omnes
consolationem accipiant.49
32. Et spiritus prophetarum prophetis sunt subiecti:
33. Non enim seditionis est Deus, sed pacis, quemadmodum in omnibus Ecclesiis
sanctorum.50
26. Então, irmãos, o que fazer? Ele então lhes mostra uma maneira ou
um antídoto para corrigir estes males. Primeiramente, cada dom deve
desfrutar de seu espaço, porém sucessivamente e na devida proporção.
Além do mais, a Igreja não deve entregar-se às práticas inúteis e fúteis, mas
tudo o que fizer, que seja feito visando à edificação. No entanto ele começa
definindo edificação da seguinte forma: “Todo aquele que recebe algum dom
deve esforçar-se por empregá-lo visando ao bem de todos.” Pois o termo
todo aquele não deve ser entendido em sentido universal, como se todos os
homens fossem dotados com algum dom.
27. Se alguém falar em outra língua. Ele agora descreve a ordem e limita
a medida. “Se pretendeis falar em outras línguas, que só falem dois, e,
quando muito, não fale mais que três, e que haja concomitantemente um
intérprete por perto. Sem um intérprete, as línguas são inúteis, e portanto
devem ser dispensadas.” Deve-se observar que o apóstolo não está
promulgando um mandamento; simplesmente permite. Pois a Igreja pode
subsistir sem línguas, sem enfrentar inconveniências, exceto onde elas se
tornarem cooperadoras da profecia, como, por exemplo, o hebraico e o grego
o são hoje. Paulo, porém, faz esta concessão para não deixar a impressão de
estar reprimindo a congregação dos fiéis na prática de algum dom do
Espírito.
Ao mesmo tempo, pode parecer como se houvesse aqui alguma
inconsistência, uma vez que ele não disse previamente [v. 22] que as línguas,
até onde são um sinal, são oportunas para os incrédulos. Minha resposta
está fundamentada neste fato: ainda que um milagre seja realizado
especialmente para o benefício dos incrédulos, disto não se segue que ele,
em alguns aspectos, não afete também os crentes. Se levarmos em conta que
uma língua desconhecida é um sinal para os incrédulos, no sentido em que
as palavras de Isaías51 testificam, então o método que o apóstolo esboça
aqui é diferente. Pois ele admite que se deve dar espaço às línguas, desde
que haja concomitante interpretação, denotando, naturalmente, que nada
seja deixado obscuro. Portanto, ao corrigir o erro dos coríntios, o apóstolo
usa uma mistura bem equilibrada. De um lado, ele de forma alguma descarta
qualquer dom divino, qualquer que seja,52 de modo que todos seus
benefícios possam ser vistos entre os crentes. Do outro, ele impõe
restrições para impedir que a ambição furtivamente tome o lugar que
pertence à glória de Deus, e para evitar que algum dom menos importante
obstrua a ação dos que são mais importantes. E ainda adiciona o
condimento:53 para que não haja mera ostentação sem quaisquer resultados
[positivos].
28. E que fale consigo mesmo e com Deus. Ele está dizendo: “Que
desfrute de seu dom em seu próprio coração, e que dê graças a Deus.” Pois
considero “falar consigo mesmo e com Deus” no sentido de refletir em seu
íntimo sobre o dom que graciosamente lhe fora conferido,54 e dar graças por
ele em silêncio, bem como desfrutar dele como se fosse sua própria
possessão privativa, caso não haja oportunidade de fazer-se uso dele
publicamente. Pois o apóstolo esboça um contraste entre este modo secreto
de expressar-se e o que é feito publicamente na Igreja; e este último ele
proíbe.55
29. E os profetas falem apenas dois ou três. No tocante à profecia, ele
prescreve também restrições, porque multidão, como comumente se diz,
“cria confusão”. Eis uma grande verdade, pois estamos cientes disso por
nossas experiências diárias. Ele não limita o número com tanta precisão
como as línguas, pois há menos risco de se dar mais tempo às profecias;
aliás, o ideal seria se recebem atenção constante; Paulo, porém, ao mesmo
tempo leva em conta o que o homem pode suportar em suas fraquezas.
Entretanto, resta ainda uma pergunta: por que ele restringe as profecias e
as línguas ao mesmo número, exceto que no caso das línguas
particularmente acrescenta: “no máximo três”, pois se as línguas não são tão
valiosas, então deveriam ter um uso muito mais restrito? Minha resposta é
que a profecia está imbutida nas línguas, na forma em que o apóstolo
entende o termo, pois as línguas eram usadas ou para discursos56 ou para
oração. Nos discursos, o intérprete assumia o lugar do profeta, e assim esta
era a principal e a mais freqüente forma em que as línguas eram empregadas.
Ele lhe põe restrição só para evitar que elas fossem degradadas em
decorrência do orgulho humano e para evitar que os que eram menos
capazes fossem privados de sua disposição e oportunidade de falar. Pois a
intenção do apóstolo é que aqueles a quem ele designa a tarefa de falar
deveriam empregar seu máximo desempenho e ser aprovados pelo
assentimento geral.57 No entanto não há ninguém mais inclinado a impeli-
los para frente do que os que só têm uma leve noção de cultura, de modo
que o provérbio prova ser verdadeiro: “Os tolos entram de roldão onde os
anjos temem pisar”58 [audax inscitia]. O intuito do apóstolo, ao designar a
dois ou três a tarefa de falar, era neutralizar este mal.
E os demais julguem. A fim de não dar aos demais a chance de protestar,
concluindo que a intenção dele era que o dom divino59 fosse suprimido,
pondo um ponto final neste caso, o apóstolo lhes exemplifica que é possível
usar o dom para o bem da Igreja, mesmo quando tivessem que conservar-se
quietos, ou, seja, fazendo uma avaliação, em seus próprios corações, sobre
aquilo que era pronunciado por outros. Porquanto é um inestimável
benefício que haja alguns que sejam experientes em formular juízo, a fim de
que não se permitisse fosse a sã doutrina pervertida pelas imposturas de
Satanás, ou fosse de alguma forma corrompida por futilidades ridículas.
Portanto, o apóstolo está realçando que, mesmo permanecendo em silêncio,
os demais profetas estariam prestando relevante serviço à Igreja.
Não obstante, pode parecer algo inusitado que a homens se permita que
formulem juízos com relação à doutrina divina, a qual deve ser estabelecida
além de toda e qualquer controvérsia. Minha resposta a esta questão é que a
doutrina de Deus não está sujeita ao juízo humano, senão que a tarefa do
homem é simplesmente julgar, por meio do Espírito de Deus, se é sua
Palavra que está sendo proclamada, ou se, usando esta como pretexto, os
homens estão enganosamente exibindo o que eles mesmos engendraram;
como teremos ocasião de averiguar novamente sem muita delonga.
30. Se, porém, algo for revelado a outro. Aqui está outra vantagem –
que sempre que houver ocasião, o caminho lhes será também aberto.60 Daí
não mais terão razão de queixar-se, dizendo que o Espírito está preso ou sua
boca está fechada. Pois quando se deparar alguma ocasião, todos terão
oportunidade e liberdade de falar. A única condição é que ninguém se
precipite, satisfazendo mais a seu amor-próprio do que atendendo às
necessidades dos demais. Em contrapartida, o apóstolo exige que todos eles
ponham em prática esta auto-restrição: que cada um deles, por sua vez, dê
lugar a outro que tenha algo mais importante a comunicar.61 Pois somente
esta é a genuína liberdade do Espírito, não que a cada um se permita
tagarelar temerariamente o que bem quiser, mas que todos, do superior ao
inferior, voluntariamente permita ser controlado, e que o único Espírito seja
ouvido, pela boca de quem ele quiser usar. No que respeita à fidedignidade
desta revelação, veremos mais adiante.
31. Todos podereis profetizar, um após o outro. Antes de tudo, quando
o apóstolo diz todos, sua intenção não é incluir todos os fiéis, mas apenas
os que foram dotados com este dom. Além do mais, ele não quer dizer que
todos devem ter oportunidades iguais, mas que, de acordo com sua
possibilidade, e para o benefício do povo, cada um se apresentaria para
falar, com mais freqüência ou mais esporadicamente.62 O apóstolo poderia
ter posto em outros termos: “Ninguém ficaria a espera para sempre, mas a
chance de falar se apresentaria às vezes a um e outras vezes a outro.”
Ele acrescenta: para que todos aprendam, pois ainda que isso se
aplique a todas as pessoas, todavia diz respeito aos profetas; aliás, o
apóstolo aponta especialmente para eles. Pois ninguém jamais será um bom
mestre, se não revelar-se suscetível de aprendizado, bem como jamais se
achará alguém que tenha, unicamente em si mesmo, um transbordamento tal
de respeito pela perfeição da doutrina, ao ponto de nada lucrar ouvindo
outros. Portanto, todos devem executar seus deveres como mestres de
maneira a não declinarem de seu papel de aprendizes, ou de se sentirem
aborrecidos em proceder assim toda vez que a outros for propiciado os
meios de edificar a Igreja.
Em segundo lugar, Paulo diz: para que possam receber consolação.
Daqui podemos inferir que os ministros de Cristo, longe de invejarem,
deveriam antes alegrar-se sinceramente por não serem os únicos a se
distinguir, mas porque há tantos outros que são co-participantes do mesmo
dom, disposição essa que Moisés descobriu, como relatam os registros
sagrados [Nm 11.28]. Pois quando seu servo [Josué] inflamou-se com tolo
ciúme, sentindo-se profundamente indignado só porque o dom de profecia
fora igualmente conferido a outros homens, ele o censura, dizendo: “Tens tu
ciúmes por mim? Tomara todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor
lhes desse seu Espírito!” [Nm 11.28, 29]. E de fato é particularmente
consolador para os ministros piedosos verem o Espírito de Deus, em cujos
instrumentos eles mesmos foram constituídos, operando em e através de
outros. Esta é uma consolação que também contribui para a expansão da
palavra de Deus, cujo alvo principal são os ministros e testemunhas.
Visto, porém, que o verbo παρακαλεúσθαι, o qual o apóstolo usa aqui, é de
significação63 ambígua, pode-se traduzi-lo também “para que recebam
exortação”.64 Isto é plenamente plausível, pois às vezes é bom ouvirmos a
alguém mais a fim de recebermos incentivo e fazermos nosso trabalho com
disposição mais intensa.
32. E os espíritos dos profetas. Esta também é outra das razões por que
é necessário que esperem sua vez, porque é possível que suceda de outros
profetas encontrarem erro e terem que reprovar a doutrina de outro profeta.
Diz ele: “Não é razoável que alguém vá além da esfera do escrutínio. E assim,
poderá suceder que chegue a vez de uma pessoa falar, a qual estava presente
no auditório assentada e em silêncio.”
Há quem compreenda mal este versículo, como se o apóstolo estivesse
dizendo que os profetas do Senhor não eram “homens dotados”, que, uma
vez tomados de súbito frenezi, quando apoderados pelo impulso
(ἐνθουσιασμὸς) divino,65 perdiam seu equilíbrio.66 Sem dúvida, é verdade que
os profetas de Deus não perdiam o equilíbrio mental, mas isso nada tem a
ver com esta passagem dos escritos do apóstolo. Porque significa, como eu
já o declarei, que ninguém é isentado do escrutínio de outras pessoas, mas
que todos devem ser ouvidos, com esta condição: que sua doutrina seja,
não obstante, submetida a um exame.
Entretanto, isso não está isento de dificuldade, pois o apóstolo nos
declara que seus espíritos estão sujeitos. Embora esteja ele se referindo aos
dons, como pode a profecia, que é outorgada pelo Espírito Santo, ser julgada
pelos homens, de modo que o próprio Espírito se sujeita ao juízo deles?
Segundo este raciocínio, o apóstolo está sujeitando a própria Palavra de
Deus ao escrutínio humano, a qual é revelada pelo Espírito. Não há
necessidade de enfatizar quão intolerável é tal raciocínio, visto que por si
só ele sobejamente se evidencia. Não obstante, afirmo que nem o Espírito de
Deus, nem sua palavra, se restringe por um escrutínio desse gênero. Digo
mais que o Espírito Santo retém sua majestade inalterada, de modo que ele
“julga todas as coisas, sem ser julgado por ninguém” [1Co 2.15]. A santa
Palavra de Deus também retém o respeito que lhe é devido, de modo a ser
recebida sem qualquer disputa, tão logo seja ela apresentada.
“Então”, perguntará o leitor, “quem está sujeito a exame?” Eis minha
resposta: se alguém for agraciado com uma revelação completa,
indubitavelmente tal pessoa, juntamente com seu dom, está acima de
qualquer escrutínio. Digo ainda que não existe sujeição onde está presente
uma plenitude de revelação; visto, porém, que Deus tem distribuído seu
Espírito a todos numa determinada medida, há sempre alguma coisa
faltando, o que não deve causar surpresa se ninguém é elevado a uma
altitude tal que possa de lá olhar com desdém para os demais, e que não
tenha alguém que formule juízo sobre o mesmo.
Então percebemos, sem querermos absolutamente desonrar o Espírito
Santo, que seus dons admitem ser examinados. E mais ainda: quando tudo
estiver investigado, e nada for encontrado digno de reprovação, haverá
ainda algo que requeira polimento. A suma de tudo, pois, é esta: o dom é
submetido a tal exame que, não importa o que for publicado, os profetas
considerarão como tendo sua procedência no Espírito de Deus; pois se ficar
estabelecido que o Espírito é de fato seu autor, não haverá espaço para
qualquer hesitação.
Entretanto, ainda resta uma pergunta: Que regra se deve usar no exame?
Parte da resposta é fornecida pelos lábios do próprio apóstolo, que em
Romanos 12.6 mede a profecia “segundo a analogia da fé” [ad analogiam
fidei]. Mas no tocante ao julgamento real, é indiscutível que ele deve ser
controlado pela Palavra e pelo Espírito de Deus, para que somente o que se
perceber provir de Deus receba aprovação; que nada seja condenado exceto
no tribunal de sua Palavra, e que, em suma, unicamente Deus é quem pode
presidir neste julgamento, e que os homens sejam simplesmente seus
arautos.
À luz desta passagem podemos deduzir o quanto aquela igreja florescia
com uma notável riqueza e variedade de dons espirituais. Pois havia escolas
de profetas, para que houvesse esmero e cumprissem a tarefa de distribuir
seus respectivos turnos. Havia tão grande diversidade de dons, que havia
superabundância. Hoje vemos nossos próprios recursos reduzidos, pior
ainda, nossa pobreza; mas nisto temos um justo castigo, enviado como
recompensa de nossa ingratidão. Pois as riquezas de Deus não se exauriram,
nem sua liberalidade se arrefeceu; porém não somos dignos de suas dádivas
nem capazes de receber tudo o que sua generosidade tem para dar. Não
obstante, temos ainda uma ampla suficiência de luz e doutrina, contanto
que não haja deficiência com respeito ao cultivo da piedade e aos frutos que
dela emanam.
33. Porque Deus não é de confusão.67 Devemos subentender a palavra
autor ou algum termo desse gênero.68 Esta é uma frase valiosíssima, pois ela
nos ensina que a única maneira de podermos servir a Deus é tornando-nos
pessoas amantes da paz e solícitas em possuí-la. Daí, onde os homens amam
a disputa, estejamos plenamente certos de que Deus não está reinando ali. E
quão fácil é dizer isso! Não é o que baila constantemente nos lábios do
povo? Ao mesmo tempo, a maioria das pessoas realmente faz reboliço sobre
nada ou provoca motim na Igreja quando desejam de um modo ou de outro
ser tidas como proeminentes, e quando, depois de o conseguir, adquirem ar
de importância [Gl 2.6].
Portanto, ao formarmos juízo acerca dos servos de Cristo, tenhamos em
mente que se deve ter isto em vista: quer almejem ou não a paz e concórdia,
e, ao conduzir-se pacificamente, estão evitando contenda o quanto está em
seu poder, ainda mais porque entendem ser esta paz aquele vínculo que é a
verdade de Deus. Pois se formos chamados a contender contra as doutrinas
ímpias, mesmo que a terra e o céu se confundam, devemos, não obstante,
perseverar na disputa. Aliás, devemos primeiramente fazer dela nosso alvo,
para que a verdade divina, sem qualquer controvérsia, conserve seu
fundamento; mas se os perversos resistirem, devemos encará-los de frente
sem qualquer medo e sem qualquer receio de levar a culpa pelos distúrbios.
Pois maldita é aquela paz da qual a rebelião contra Deus é o emblema, e
benditas são aquelas contendas pelas quais se faz necessário defender o
reino de Cristo.
Como em todas as igrejas. A comparação69 não aponta meramente para
a primeira parte deste versículo, mas para tudo quanto o apóstolo esboçou
supra. É como se ele quisesse dizer: “Até aqui não vos apresentei quaisquer
diretrizes que não fossem seguidas em todas as igrejas, e esta é a razão por
que as mesmas igrejas estão qualificadas a manter-se unidas e em paz.
Portanto, devíeis tomar para vós o que as outras igrejas descobriram por
experiência, na busca de seu bem-estar, e que é mui valioso para a
preservação da paz.” Ele faz menção particular de os santos à guisa de
ênfase, como se pretendesse livrar todas as igrejas adequadamente
organizadas de algum estigma de desdita.70
34. Que as mulheres guardem silêncio nas igrejas, porque não lhes é permitido falar;
mas estejam em obediência, como também diz a lei.
35. E se elas desejam aprender alguma coisa, que interroguem seus esposos em casa;
porque para uma mulher é vergonhoso falar na igreja.
36. Porventura a palavra de Deus se originou no meio de vós, ou veio ela exclusivamente
para vós?
37. Se alguém se considera profeta, ou espiritual, então que reconheça que as coisas
que vos escrevi, são mandamentos do Senhor.
38. Mas se alguém é ignorante, então que permaneça ignorante.
39. Portanto, meus irmãos, cobiçai [o dom de] profetizar, e não proibais falar em línguas.
40. Que todas as coisas sejam feitas decentemente e em ordem.
34. Mulieres vestræ in Ecclesiis taceant; non enim permissum est ipsis loqui, sed
subiectae sint, quemadmodum et Lex dicit.
35. Si quid autem velint discere, domi maritos suos interrogent: turpe enim est
mulieribus in Ecclesia loqui.
36. An a vobis sermo Dei profectus est, aut ad vos solos pervenit?
37. Si quis videtur sibi propheta esse aut spiritualis, agnoscat, quæ scribo vobis, Domini
esse mandata.
38. Si quis autem ignorat, ignoret.
39. Itaque, fratres, æmulamini prophetiam, et linguis loqui ne prohibeatis.
40. Porro omnia decenter et ordine fiant.
1. “A palavra διώκετε”, diz Doddridge, “significa propriamente ir após algo com tanto ardor, como
o caçador que persegue sua caça. E é possível que ele quisesse notificar quão difícil é obter e
preservar um espírito tão verdadeiramente benevolente nas principais fases da vida.
Considerando, de um lado, quantas provocações iremos enfrentar; e, do outro, a força do amor
próprio que em tantos casos estará disposto terçar armas.”
2. “C’estoit ceste voye et vertu escellence.” – “Esta era aquela distinta maneira e excelência.”
3. Grannville Penn observa que “o contexto revela que o apóstolo tem em mente uma língua
estrangeira àquela dos ouvintes, e por isso desconhecida para eles” – como “aprendemos à luz do
versículo 21 que estamos para suprir com ἑτερᾳ, ‘outra’, não αγνωστῃ, ‘desconhecida’. Temos
tido”, acrescenta, “lamentável prova do abuso a que a última tradução prejudicial pode ter sido
pervertida nas mãos de ignorantes ou entusiastas insidiosos, presumindo que o termo significa
‘língua desconhecida de todo o gênero humano’; e daí, por meio de uma inferência ímpia,
supernatural ou divina; em vez de relativamente, ‘desconhecida de outras pessoas’. E no entanto,
depois de tudo, ‘desconhecida’ não a palavra do apóstolo, mas apenas um suplemente em
itálico sugerida pelos revisores ingleses do século dezessete.”
4. “Comme on dit en prouerbe – Il presche à soy-mesme et aux murailles.” – “Como dizem
proverbialmente: Ele prega a si mesmo e às paredes.” Crê-se que o provérbio, “Sibi canit et
Musis” – “Ele canta para si mesmo e para as musas”, originou-se de um dito de Antigenides, um
músico célebre de Tebes, que, quando sua Ismenia escolar cantava com bom gosto, mas não ao
ponto de granjear os aplausos do povo, excalamava: “Mihi cane et Musis” – “Canto para mi e
para as musas”, significando que nada era se agradasse os bons juízes.
5. Pleonasmo é uma figura de linguagem que envolve uma redundância de expressão.
6. “Iettent ainsi de grandes boufféés et se brauent en leur parler.” – “Fazem uso dessa forma de
extravagâncias e se gabam de seu modo de falar.”
7. “Les langues aidoyent lors aucunement à l’auancement des Eglises.” – “Línguas, naquele
tempo, eram de algum auxílio para o avanço das igrejas.”
8. “Ces gentils reformateurs.” – “Aqueles atraentes reformadores.”
9. “Estoit plus propre pour leur imprimer ce qu’il dit.” – “Era mais próprio para imprimir neles o
que ele dizia.”
10. “C’est à dire, pour signifier quelque chose.” – “Equivale dizer, para significar algo.”
11. “Sans mesure ou distinction.” – “Sem medida ou distinção.”
12. “Sabe-se bem que as trombetas eram empregadas em quase todos os exércitos antigos,
com o propósito de orientar os movimentos dos soldados e informá-los do que estavam para
fazer: como quando atacar, avançar ou retrair. Este era o costume mesmo nos exércitos judaicos
mais antigos, quando a lei exigiu que se fizessem duas trombetas de prata para esse propósito
(Nm 10.1, 2, 9). Naturalmente, a distinção de tons se fazia necessário para expressar as várias
convocações que eram assim comunicadas; e se a trombeta não desse a entonação certa, os
soldados poderiam não saber como agir, ou corriam o risco de entender mal e agir
erroneamente.”
13. Ils vsoyent plustost de fluste, que de trompette.” – “Usavam a flata, em vez da trombeta.”
14. Valério Máximo supõe que o uso da flauta em tais ocasiões pelos lacedemonianos visava a
“despertar a coragem dos soldados, para que começassem o avanço com maior violência e
fúria”. Mas a razão ressaltada por Calvino concorda com o relato dado por Tucídides (com quem
concorda os demais historiadores antigos).
15. “Que nesta passagem”, diz o Dr. Henderson, “φωνὴ, que significa propriamente som, então
voz, deve ser tomado no sentido de língua ou dialeto, é evidente, pois não seria verdade que não
há sons nem vozes no mundo (ἄφωνων) sem significação, como usualmente esses termos são
entendidos. Significa que toda língua é inteligível a uma ou outra nação. E é somente para
pessoas que lhe são ignorantes que suas palavras são destituídas de significação. Isto o
apóstolo ilustra de uma maneira enérgica.”
16. “C’est à dire nous monstre aucunement qu’il faut parler en sorte que nous soyons entendus.”
– “Equivale dizer, ela nos mostra, de certa maneira, que devemos falar para sermos entendidos.”
17. “Os gregos, segundo o costume dos egípcios, mencionados por Heródoto (lib. 2), chamavam
bárbaros a todos quantos não falassem seu idioma. No processo do tempo, contudo, os romanos,
tendo subjugado os gregos, se eximiram, pela força das armas, daquele epíteto vexatório; e se
juntaram aos gregos chamando bárbaros a todos quantos não falassem os idiomas grego e
latino. Mais tarde, bárbaro passou a significar alguém que não se expressava em linguagem
compreensível a outro. E assim o filósofo siciliano Anacarsis disse que para os atenienses os
sicilianos eram bárbaros; e para os sicilianos os atenienses eram bárbaros. E é assim que lemos
em Ovid. Trist. v.10: ‘Barbarus hic ego sum, quia non intelligor ulli.’ – ‘Eu sou um bárbaro aqui,
porque não sou compreendido por ninguém.’ Este é o sentido que o apóstolo afixa à palavra
bárbaro, na presente passagem.” – M’Knight.
18. “La langue doit estre comme vn image, pour exprimer et representer ce qui est en
l’entendement.” – “A língua seria como uma imagem que expressa e representa o que está no
entendimento.”
19. Ele considera o termo βάρβαρος (bárbaro) como sendo um termo construído em imitação do
sentido – comunicar a idéia de alguém que fala com dificuldade e de forma abrupta. Ver Strabo,
Book xiv. p. 62. Bloomfield considera o termo bárbaro como derivativo – “não”, como alguns
pensam, do árabe berber, murmurar, mas do púnico berber, um pastor – tendo originalmente
apropriado aos habitantes indígenas e pastoris da África; os quais, para seus companheiros
mais civilizados do outro lado do Mediterrânio, pareciam rústicos e bárbaros. Daí, o termo
βάρβαρος veio extensamente significar rústico ou caipira.”
20. “Les dons spirituels, il y a mot à mot, les esprits.” – “dons espirituais, literalmente falando, é
espíritos.”
21. “De parler à ostentation.” – “De falar por amor à ostentação.”
22. “O que significa”, diz Witsius (em seu ‘Da Sacred Dissertation’), “orar com a língua? com o
espírito? com a mente? (1Co 14.14, 15). Aqui língua significa um idioma desconhecido para outros
e empregado por alguém que é dotado com um dom supernatural do Espírito Santo. Orar com a
língua significa orar num idioma desconhecido de ourtras pessoas; como, por exemplo, orar no
idioma hebreu na presença de gregos. Nesse sentido, ele disse [v. 2]: ‘Aquele que fala com a
língua, fala não a homens, mas a Deus; porque ninguém o entende’, isto é, aquele que fala num
idioma estrangeiro, cujo conhecimento ele adquiriu por meio de um dom extraordinário do
Espírito, só tem a Deus por testemunha. Ele não pode considerar como suas testemunhas, ou
como pessoas cônscias do que ele está fazendo, os que são ignorantes do idioma e para cuja
edificação pouco ou em nada contribuiu. O espírito significa, aqui, aquele dom extraordinário por
meio do qual o homem é levado a agir de uma determinada maneira, assistido por emoções
quase estáticas, de modo que às vezes ele não está consciente do que diz, nem leva outros a
entenderem o que quer dizer. Orar com o Espírito significa orar de tal maneira que revele que
você sente a presença de um dom extraordinário do Espírito, o qual o move e o agiliza, de uma
forma poderosa, a fazer coisas que desperta espanto.
23. “Que c’est que prier de langue, (car il y a ainsi mot à mot, là où nous traduisons Prier en
langage incognu).” – “O que significa orar numa língua, pois esse é o significado literal, onde o
traduzimos orar numa língua desconhecida.”
24. “Quel danger il y a, quand on abuse.” – “Que risco há, quando alguém abusa.”
25. “O que o apóstolo tem em mente por τὸ πνευ̑μα μου (meu espírito) não é nem o Espírito Santo
agilizando-o a falar, nem algum dote espiritual com que ele foi dotado; mas, como a frase
significa em outras passagens em que ela ocorre [Rm 1.9; 1Co 5.3; 2Tm 4.22; Fm 25], sua própria
mente, com que ele se engajara no serviço.
26. “Mais qui plus est, aiment mieux que les idiots et ignorans barbotent des pationestres en
langage qui leur est incorgnu.” – “Mas, pior ainda, não passando de pessoas incultas e
ignorantes, murmuram o Pai Nosso em uma linguagem que eles não compreendem.”
27. “Ils ont vne solution bien aigue et peremptoire.” – “Apresentam uma solução muito perpicaz
e peremptória.”
28. “Vne pensee esuanouissante en l’air, qu’ils appellent Intention finale.” – “Um pensamento
que se desvanece no ar, o que chamam de intenção final.”
29. “Que ne soit point sans intelligence.” – “Para que não seja destituída de entendimento.”
30. A palavra original é ψαλω̑ – cantarei Salmos. É o mesmo verbo usado por Tiago [5.13], εὐθυμεú
τίς; ψαλλέτω. – Está alguém alegre, então cante Salmos.
31. Carta de Plínio mencionada por Calvino (escrita em 107 d.C.) é apresentada em plena
extensão (como traduzida pelo Dr. Lardner) na Introdução de Horne, vol. i. pp. 205, 206.
32. “Signifie et presuppose.” – “Insinua e pressupõe.”
33. Amém, ou Assim seja, era, entre os judeus, usado pela congregação no final de uma oração ou
bênção, para denotar seu assentimento ou apropriação do que uma pessoa pronunciara. Muitos
exemplos dessa prática ocorrem no Velho Testamento. Da sinagoga judaica este costume no
culto, entre muitos outros, passou para a Igreja Cristã, na qual é ainda retido.
34. A palavra a que Calvino se refere é @ma (Amém), verdade. O termo ocorre em Isaías 65.16, @ma
yjla (Elohe Amen), o Deus da verdade.
35. “Confirmation et approbation.” – “Confirmação e aprovação.”
36. “Amém”, diz Witsius, em seu Dissertation on the Lord’s Prayer, “é uma partícula judaica que
expressa tanto afeição forte quanto desejo ardente. Lutero, com seu costumeiro estilo vívido,
escreveu a Melancthon nos seguintes termos: ‘Eu oro por você, tenho orado e orarei, e não
tenho dúvida de que serei ouvido, pois tenho o amém em meu coração’.” – Biblical Cabinet, vol.
xxiv. p. 382.
37. “Par lequel nous voyons comment Satan a tenu ses rangs, et dominé en la Papaute
furieusement, et d’une license merueilleusement desbordee.” – “Do que vemos como Satanás
tem mantido seu lugar e com fúria tem governado no papado, e com liberdade espantosamente
temerária.”
38. Mimetice. Nosso autor, aqui, evidentemente tem diante de seus olhos o advérbio grego
μιμητικω̑ς – imitativamente.
39. Or le Prophete signifie.” – “Ora, o profeta quer dizer.”
40. “Está escrito na lei.” Na lei, isto é, na Escritura em oposição às palavras dos escribas. Pois
esta distinção era muito comum nas escolas. Isto aprendemos da lei, e isto das palavras dos
escribas. As palavras da lei (isto é, da Escritura) não carecem de confirmação, mas as palavras
dos escribas carecem de confirmação. Os Profetas anteriores, e os Profetas posteriores, bem
como os Hagiografa, são intitulados a lei.”
41. Henderson, sobre Isaías, ao comentar esta passagem citada pelo apóstolo [Is 28.9-11],
observa que ela “contém a linguagem sarcástica dos sacerdotes e juízes ébrios dos judeus, os
quais repeliam com escárnio a idéia de que deveriam requerer as claras e reiteradas lições que
Jeová ensinava através de seus mensageiros. Essa instrução elementar só era adequada (em
seu conceito) “para os recém-nascidos. Constituía-se num insulto a seu entendimento presumir
que ainda necessitavam dela. A linguagem do versículo 10 [preceito e mais preceito etc.] se
assemelha mais à de pessoas embriagadas do que a usada por pessoas em estado sóbrio. As
palavras são obviamente selecionadas para adequar-se ao caráter daqueles que supostamente
as empregavam.”
42. “En ignorance et bestise.” – “Em ignorância e estupidez.”
43. Calvino faz uma observação semelhante quando comenta Efésios 4.14: “Nam postquam
Christo nati sumus, debemus adolescere, ita ut non simus intelligentia pueri. Hinc apparet,
qualis sub Papatu sit Chrstianismus, ubi, quam diligentissime possunt, in hoc laborant pastores,
uto prebem to prima infantia detineant.” – “Pois depois de Cristo haver nascido, devemos
crescer e não permanecer crianças no entendimento [1Co 14.20]. Daí suceder que sorte de
cristianismo há em conexão com o papado, no qual os pastores trabalham tão exaustivamente
quanto podem para conservar as pessoas na infância.”
44. “Le sot abus de ce don, quand on le met en auant sans raison et consideration.” – “O tolo
abuso desse dom quando o exibem sem razão e consideração.”
45. “En ceste façon de faire.” – “Dessa maneira de agir.”
46. “Des pensees et intentions du cœur.” – “Dos pensamentos e intentos do coração.”
47. “Elles sont comme endormies et estupides.” – “Estão, por assim dizer, entorpecidos e
estúpidos.”
48. “Afin de monstrer qu’il ne se faut point lasser de la prophetie.” – “A fim de mostrar que não
deviam nutrir sentimento de desgosto pela profecia.”
49. “Que tous soyent consolez, ou, exhortez.” – “Para que todos sejam confortados ou
exortados.”
50. “Comme en toutes les Eglises des saincts, ou, comme on voit en toutes.” – “Como em todas
as igrejas dos santos, ou como alguém vê em tudo.”
51. As palavras referidas são aquelas que Paulo citara supra no versículo 21.
52. “Tant petit soit-il.” – “Mesmo que seja tão pequeno.”
53. “Ascauoir l’interpretatiton.” – “Isto é, a interpretação.”
54. “Le benefice et don de Dieu.” – “A bondade e dom de Deus.”
55. “En ce cas.” – “Neste caso.”
56. “Pour traiter de quelques matieres de la religião.” – “Para tratar de algumas matérias da
religião.”
57. “Par l’approbation commune de l’Eglise.” – “Pela aprovação comum da Igreja.”
58. Os latinos têm um provérbio similar: “Stater in lagena bis bis clamat.” – “Uma moeda num
vaso de barro está constantemente tinindo.”
59. “Le don de Dieu qu’ils ont receu.” – “O dom de Deus que têm recebido.”
60. “Que toutes fois et quantes qu’il sera besoin, eux aussi auront lieu de parler.” – “Sempre que
houver uma ocasião, eles também terão oportunidade de falar.”
61. “Mas se algo for revelado a outro que esteja sentado. Isso é freqüentemente afirmado dos
doutores judaicos, k`wy hyh. Ele sentou-se, significando não meramente que ele estava sentado,
mas ensinava sentado em sua cadeira de mestre, ou que, assentado, ensinava, ou se preparava
para ensinar. De forma que, ele sentou-se e ensinava, equivale a mesma coisa.”
62. “Ainsi qu’il sera auisé pour le mieux.” – “Quando for julgado pelo melhor.”
63. “Ha double signification.” – “Tem uma dupla significação.”
64. Assim em Atos 15.32, παρεκάλεσαν significa exortado, embora o substantivo παρακλήσις seja
usado no versículo imediatamente precedente no sentido de consolação.”
65. “Depuis que leur folie les prenoit, laquelle ils appeloyent vn mouuement Diuin.” – “Sempre
que apoderados de extravagância, o que denominavam impulso divino.”
66. A referência aqui é claramente aos que praticavam a adivinhação (Θεομαντεία), dos quais
havia entre os gregos três tipos, distinguidos por três formas distintas de receber a inspiração
(ἐνθουσιασμὸς) divina.
67. “Car Dieu n’est point Dieu de consusion.” – “Pois Deus não é um Deus de confusão.”
68. Granville Penn traduz o versículo assim: “Pois eles não são espíritos de desordem, mas de
paz.” Ele crê ser provável que “o singular ἐστι tem causado distorções desta passagem,
sugerindo a introdução de um singular nominativo para concordar com ela, isto é, ὁ Θεος: ‘Deus’;
enquanto na redação de Tertuliano, anterior ainda ao segundo ou terceiro século, ἐστι se referia
ao plural neutro, πνεύματα: ‘Et spiritus prophetarum prophetis subditi sunt – non enim eversionis
sunt, sed pacis.’ (E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas – pois não são de
desordem, mas de paz.) Portanto, o grego fica assim: οὐ γάρ ἐστιν ἀκαταστασίας (πνεύματα) αλλ̕
εἰρήνης. Este antigo testemunho externo, combinado com o testemunho interno do contexto, é
evidência suficiente de que Θεὸς foi displicentemente inserido aqui por filólogos, como Θεὸς,
Κὺριος, Χριστός foi introduzido em muitas outras passagens do Sacro Texto.”
69. “Ce mot, Comme.” – “Esta palavra Como.”
70. “Comme s’il vouloit dire qu’il n’y auroit point de propos d’auoir quelque souspeçon sur les
Eglises bien reformees.” – “Como se ele quisesse dizer: que não houve ocasião para nutrir
alguma suspeita no tocante às igrejas plenamente reformadas.”
71. “D’enseigner ou de prescher.” – “De ensinar ou de pregar.”
72. “Eust preminence et authorite.” – “Teria preeminência e autoridade.”
73. “Elle ne peut donc auoir authorite publique de prescher ou enseigner.” – “Ela não pode, pois,
ter autoridade pública para pregar ou ensinar.”
74. “Entre toutes les nationes et peuples.” – “Entre todas as nações e povos.”
75. “On les souffroit proposer deuant les iuges, et plaider publiquement.” – “Foi-lhes permitido
comparecer ante os juízes e pleitear publicamente.”
76. “Caia Afrânia era esposa de um senador, Licinius Buccio. A circunstância referida por Calvino
se relaciona com Valério Máximo (lib. 8. c. 3. n. 2), nos seguintes termos: “Muliebris verecundiæ
oblita, suas per se causas agebat, et importunis clamoribus judicibus obstrepebat; non quod
advocati ei deessent, sed quia impudentia abundabat. Hinc factum est, ut mulieres perfrictæ
frontis et matronalis pudoris oblitæ, Afraniæ per contumeliam dicerentur.” – “Esquecida da
modéstia conveniente ao sexo feminino, ela pleiteou pessoalmente sua própria causa, e
aborreceu os juízes com clamorosa insensibilidade – não por falta de advogados para tomar em
suas mãos a causa dela, mas em decorrência de sua excessiva impudência. Em conseqüência
disso, os homens que eram de fronte ousada, e esquecidos da modéstia que procede de uma
matrona que era, à guisa de reprovação, chamada Afrânia.”
77. “Autant qu’il est requis pour nourrir paix et concorde.” – “Até onde o requisito seja a
manutenção da paz e da harmonia.”
78. “Et est plus ancienne.” – “E é mais antiga.”
79. “A ses ordonnances et manieres de faire.” – “A suas ordenanças e métodos de ação.”
80. “Ne regardans qu’a eux mesmes, et se plaisans en leur façons de faire.” – “Olhando somente
para si, e deleitando-se em seu modo pessoal de agir.”
81. “En voulant d’vne façon tyrannique contraindre tout le monde à receuoir leurs lix.” – “Por tudo
fazer, de uma forma tirnânica, para constranger a cada um de receber suas leis.”
82. “En cest endroit.” – “Neste caso.”
83. Beausobre, quando chama a atenção para esta redação, diz: “La Vulgate porte, il sera ignoré,
Dieu le méconnóitra; ce qui veut dire, le punira. Ce sens est fort bom.” – “A Vulgata traduz assim:
ele será desconhecido – Deus o repudiará – significando: Ele o punirá. Este é um bom sinificado.” Em
um manuscrito grego, a redação é: ἀγνοεúται – é desconhecido.
84. “Les sophistes qui ne font iamais que disputer, sans rien resoudre ou accorder, ne les
contentieux, et subtils iaseurs.” – “Sofistas que nunca fazem outra coisa senão disputar, sem
chegar a nenhuma solução ou acordo, nem pessoas contenciosas e palradores sutis.”
85. “Sans nous en soucier aucunement.” – “Sem entregar-se a qualquer preocupação por eles.”
86. “Autres, qui ont le don des langues, qui est vne don plus rare.” – “Outros, que têm o dom de
línguas, que é o dom mais raro.”
87. “Este preceito é às vezes aplicado em apoio do uso de ritos e cerimônias no culto divino, não
ordenados na Escritura. Mas quem quer que considere o lugar que ele mantém neste discurso,
se tocará de que ele não tinha relação com ritos e cerimônias, mas com o exercício decente e
ordeiro dos dons espirituais.”
88. Cancellos (ut ita loquar) circumdedit. Calvino tem aqui, muito provavelmente, diante de seus
olhos uma expressão usada por Cícero: “Si extra hos cancellos egredi conaber, quos mihi
circumdedi” – “Se eu tentar ir além desses limites, os quais eu demarquei para mim mesmo.”
(Cic. Quint. 10.)
Capítulo 15
1. Além do mais, irmãos, vos declaro o evangelho que vos preguei, o qual igualmente
recebestes, no qual também permaneceis
2. e pelo qual também sois salvos, se retiverdes na memória o que vos preguei, a menos
que tenhais crido em vão.
3. Porque, antes de tudo vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por
nossos pecados, segundo as Escrituras;
4. e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras;
5. e que foi visto por Cefas, e depois pelos doze;
6. depois apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, dos quais a maioria
ainda vive, mas alguns já dormem;
7. depois disso ele foi visto por Tiago, e em seguida por todos os apóstolos;
8. e por fim, depois de todos, foi visto também por mim, como um nascido fora do devido
tempo.
9. Porque eu sou o menor dos apóstolos; aliás, nem mesmo digno sou de ser chamado
apóstolo, porque persegui a igreja de Deus.
10. Mas pela graça de Deus eu sou o que sou; e sua graça que me foi concedida não foi
em vão; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de
Deus que era comigo.
1. Notum autem vobis facio, fratres, evangelium quod evangelizavi vobis, quod et
recepistis, in quo etiam stetistis.
2. Per quod etiam salutem habetis: quo pacto annuntiarim vobis, si tenetis, nisi frustra
crediditis.
3. Tradidi enim vobis imprimis quod et acceperam, quod Christus mortuus fuerit, pro
pecatis nostris secundum Scripturas,
4. Et quod seputus sit, et quod resurrexit tertio die, secundum Scripturas.
5. Et quod visus fuit Cephæ, deinde ipsis duodecim:
6. Postea visus fuit plus quam quingentis fratribus simul, ex quibus plures manent adhuc
ad hunc usque diem: quidam autem obdormierunt.
7. Deinde visus fuit Iacobo: post apostolis omnibus:
8. Postremo vero omnium, velut abortivo, visus fuit et mihi.
9. Ego enim sum minimus apostolorum, qui non sum idoneus ut dicar apostolus:
quandoquidem persequutus sum ecclesiam Dei.
10. Sed gratia Dei sum id quod sum: et gratia ejus, quæ mihi collata est, non fuit imanis,
sed copiosius quam illi omnes laboravi: non ego tamen, sed gratia Dei quæ mihi aderat.
1 Além do mais, eu vos faço saber. Ele agora apresenta outro tema, a
saber, a ressurreição, convicção que entre os coríntios fora abalada por
algumas pessoas perversas. Entretanto, é incerto se sua dúvida era só no
tocante à ressurreição do corpo no último dia, ou se também envolvia a
imortalidade da alma. Sabe-se muito bem que havia muitos pontos de visto
equivocados a esse respeito. Alguns filósofos argumentavam que a alma
humana é imortal, porém a questão da ressurreição do corpo jamais entrava
em suas cogitações. Os saduceus, por exemplo, defendiam um conceito
muito vulgar acerca do corpo, pois o limitavam apenas a esta presente vida;
além disso, criam que a alma humana não passava de mero fôlego,
destituída de qualquer substância.
Portanto, não nos fica totalmente claro (como já afirmei) se nesse tempo
os coríntios já tinham atingido tal estágio de demência, que tivessem se
desvencilhado da expectativa de uma vida futura, ou se simplesmente
negavam a ressurreição do corpo; pois os argumentos de que Paulo lança
mão parecem subentender que estavam completamente fascinados pelo
demente sonho dos saduceus.
Por exemplo, quando ele diz: “Qual a vantagem de se batizar pelos
mortos? [v. 29]. Não seria preferível comer e beber? [v. 32]. Por que temos de
enfrentar perigos a toda hora?” [v. 30]. Seria muito mais fácil responder, de
acordo com o raciocínio dos filósofos: “Porque depois da morte nossas
almas sobrevivem ao corpo.” Conseqüentemente, alguns aplicam todo o
raciocínio de Paulo, contido neste capítulo, à imortalidade das almas. De
minha parte, embora eu deixe indeterminado qual era o erro dos coríntios,
contudo não posso ver as palavras do apóstolo como uma referência a algo
mais além da ressurreição do corpo. Portanto, que seja estabelecido, uma
vez por todas, que ele, neste capítulo, está tratando dela, e nada além dela.
É como se a heterodoxia [impietas] de Himeneu e Fileto já houvesse
chegado tão longe,1 pois ambos diziam que a ressurreição já era um fato do
passado [2Tm 2.18], e que não mais ocorreria no futuro. Semelhantes a eles,
há em nossos dias alguns dementes ou, preferivelmente, alguns demônios2
que se denominam os libertinos.3 Não obstante, tenho a impressão de estar
mais perto da verdade, arriscando-me a conjeturar que fossem arrebatados
por alguma fantasia4 que decepava sua esperança na ressurreição futura, da
mesma forma que os libertinos de nossos dias que imaginam alguma sorte
de ressurreição alegórica,5 eliminando de nós a verdadeira ressurreição que
nos é prometida.
O que quer que isso tenha sido, seguramente apresenta um caso
realmente terrível e que se aproxima de um prodígio, a saber: os que tinham
sido instruídos por um mestre tão eminente fossem capaz de cair tão
rapidamente6 em erros de natureza tão grosseira. Todavia, o que há de
surpreendente nisso, quando na Igreja israelita os saduceus tinham a
audácia de confessar publicamente que o homem não é diferente de um
bruto no que tange à natureza essencial da alma, e que ele não é mais ditoso
do que as bestas? Observemos, contudo, que tal cegueira é a recompensa do
justo juízo de Deus, pois aqueles que não aquiescem na verdade de Deus
são levados de um lado para outro pelas enganosas artimanhas de Satanás.
Entretanto, alguém poderia perguntar: por que ele deferiu ou adiou para
o fim desta carta um tema que merecia precedência sobre todos os demais?
Há quem responda que o apóstolo procedeu assim para deixar uma
profunda impressão em suas memórias. Preferivelmente, creio que o
apóstolo não tencionava fazer nenhuma menção de um assunto tão
importante até que tivesse defendido sua autoridade, a qual, em alguma
extensão, tinha perdido sua influência sobre os coríntios, e até que tivesse
reprimido seu orgulho e tivesse despertado seu anseio de receber com
docilidade sua doutrina.
Eu vos faço conhecer. Fazer conhecer não significa aqui ensinar algo do
qual não tivessem previamente o menor conhecimento, e, sim, despertar-
lhes a lembrança de algo que já haviam ouvido. É como se quisesse dizer:
“Evocai a vossa lembrança, juntamente comigo, daquele evangelho com o
qual vos tornastes tão familiarizados, antes de vos afastardes do caminho
certo.” O apóstolo se refere à doutrina da ressurreição como sendo o
evangelho, para que não viessem a imaginar que provavelmente ela fora
ensinada para o entretenimento de alguém, e em seguida ser descartada,
como se pode fazer com outros assuntos sem nenhum prejuízo à salvação.
Ao agregar, que vos preguei, ele amplia o que já havia dito: “Se me
reconheceis como apóstolo, com toda certeza eu vos ensinei isso.” Há outra
ampliação nas palavras que também recebestes, pois se agora concordam
em deixar-se persuadir do contrário, então teriam de ser acusados de
leviandade. Uma terceira ampliação é no sentido que agora precisam
perseverar nessa fé com uma inabalável e determinada resolução, uma
porção maior do que aquela que mantiveram em outro tempo. Mas, a mais
importante dessas afirmações ampliativas é a declaração que o apóstolo faz,
ou, seja, que é precisamente neste mesmo fato que consiste sua salvação.
Pois a conclusão que daqui se extrai é que, se a ressurreição for eliminada,
então não lhes é deixada nenhuma religião, nenhuma certeza de fé e, em
suma, não lhes é deixada espécie alguma de fé. Outros tomam o verbo
permanecer em sentido diferente, significando “estar apoiado” ou “agüentar-
se”. Mas a interpretação que tenho formulado é a mais correta.7
2. Se guardardes na memória ... a menos que em vão.8 Estas duas
sentenças condicionais trazem em si uma mordacidade cortante. Na
primeira, ele reprova a indiferença e leviandade deles, porque uma queda tão
súbita quanto a deles era prova de que jamais haviam entendido o que lhes
fora ensinado, ou que seu conhecimento não passava de algo frágil, sem
resistência, desvanecendo logo depois. Na segunda sentença, ele os exorta a
que empregassem seu tempo e gastassem seu fôlego declarando seu
compromisso de fidelidade a Cristo, caso não pretendessem conservar esta
doutrina fundamental.9
3. Porque, antes de tudo vos entreguei. Ele agora confirma o que
afirmara previamente, mostrando que a ressurreição fora anunciada por ele,
e sendo ela de fato um dos elementos primordiais e fundamentais do
evangelho. “Antes de tudo”, diz ele, significando que ela é como o
fundamento que normalmente lançamos quando erguemos um edifício.
E ao mesmo tempo ele solidifica a autoridade de sua pregação,
acrescentando que não entregara outra coisa senão aquilo que havia
recebido. Porque ele declara que relatou não simplesmente o que outros lhe
contaram, mas também o que o Senhor pessoalmente lhe confiara.10 Pois a
palavra11 deve ser explicada em concordância com a conexão da passagem.
Ora, é dever de um apóstolo não anunciar nenhuma outra coisa senão o que
ele recebeu do Senhor, visto ser ele diretamente [demanu, quod aiunt, in
manum – corpo a corpo12] responsável por transmitir [administret] à Igreja a
autêntica Palavra de Deus.
Que Cristo morreu etc. Agora o leitor pode ver mais nitidamente de que
fonte ele a recebeu, porquanto cita as Escrituras como evidência. Em
primeiro lugar, ele faz menção da morte de Cristo, e inclusive de seu
sepultamento, para que pudéssemos chegar à conclusão de que Cristo que,
em ambos os estágios, se assemelhou a nós; o mesmo se aplica em
referência a sua ressurreição. Portanto, ele mesmo participou da morte
juntamente conosco para que pudéssemos ressuscitar juntamente com ele.
A realidade da morte que ele participou conosco é realçada ainda mais
vividamente ao mencionar também seu sepultamento. Além disso, a morte e
a ressurreição de Cristo foram preditas em muitas passagens da Escritura,
mas em nenhuma mais claramente13 do que em Isaías 53, Daniel 9.26 e Salmo
22.
Por nossos pecados. Significa que ele tomou sobre si nossa maldição, a
fim de redimir-nos dela. Pois o que mais era a morte de Cristo senão um
sacrifício para expiar nossos pecados; um castigo satisfatório [poena
satisfactoria] por meio do qual somos reconciliados com Deus; a
condenação de alguém para a aquisição de nosso perdão? Ele fala também
nos mesmos termos em Romanos 4.25; ali, porém, em contrapartida, ele diz
que a ressurreição produz outro efeito, a saber: nela se nos confere justiça.
Porque, como o pecado foi destruído pela morte de Cristo, assim a justiça
foi adquirida por sua ressurreição. Esta distinção deve ser cuidadosamente
observada para que saibamos o que esperar da morte de Cristo, e o que
esperar de sua ressurreição. Finalmente, quando outras passagens da
Escritura faz alusão somente à sua morte, devemos entender que, em tais
casos, sua ressurreição está inclusa em sua morte; mas quando são
mencionadas separadamente, o ponto de partida [initium] de nossa
salvação se encontra em sua morte, como vemos aqui, e sua consumação
[complementum] se encontra em sua ressurreição.
5. E que foi visto por Cefas. Ele agora cita testemunhas oculares
(αὐτόπτας), como são chamadas em Lucas [1.20], que viram o cumprimento
do que as Escrituras predisseram sucederia. Entretanto, ele não fornece uma
lista completa, porquanto omite as mulheres. Portanto, quando ele diz que
antes de todos apareceu a Pedro, devemos entender que ele [Pedro] é o
primeiro entre os homens, de modo que a afirmação de Marcos [16.9] de que
Jesus apareceu primeiro a Maria não é de forma alguma inconsistente.
Todavia, como pode ele dizer que Jesus apareceu aos doze, quando só
ficaram onze deles após a morte de Judas? Crisóstomo é de opinião que isso
aconteceu após Matias ter sido eleito em seu lugar. Outros preferem corrigir
a expressão, considerando-a como se fosse um equívoco.14 Mas quando
compreendemos que foi pela ordenação do próprio Cristo que doze entre
eles fossem separados, mesmo que um deles fosse suprimido da lista, não
nos causa estranheza que o termo fosse conservado. Foi pela mesma razão
que um grupo de homens em Roma foi denominado Centumviri [Os Cem],15
quando de fato eram em número de cento e dois,16 pois o uso da designação
persistira também ali. Portanto, devemos simplesmente considerar os doze,
aqui, no sentido de os apóstolos escolhidos.
Não está muito claro quando se deu essa aparição a “mais de
quinhentos”. A única possibilidade é que essa grande multidão estivesse
reunida em Jerusalém, quando ele se lhes manifestou. Pois Lucas [24.33] fala
em termos gerais de discípulos que se encontravam reunidos com os onze,
mas não especifica seu número. Crisóstomo o aponta para a ascensão, e
explica ἐπάνω como “do alto”.17 Isso certamente poderia ter acontecido
depois da ascensão, em vista do fato de que Paulo nos diz que ele [Jesus]
apareceu a Tiago sozinho.
Pela expressão, por todos os apóstolos, entendo não só os doze, mas
também os discípulos a quem Jesus confiara a tarefa de pregar o
evangelho.18 À luz do fato de que nosso Senhor pretendia que sua
ressurreição contasse com muitas testemunhas oculares [Lc 1.1], que
falassem dela mais e mais, devemos, pois, ter em mente que nossa fé nela
deve ser a mais sólida possível. E visto que os apóstolos proclamavam a
ressurreição de Cristo a partir do fato de haver ele aparecido a muitos, ele
então realça que esta não foi nenhuma ressurreição simbólica, e, sim, uma
ressurreição genuína e física [naturalem], já que nossos olhos não podem
ser testemunhas de uma ressurreição espiritual.
8. Depois de todos, apareceu também a mim, como um nascido fora
do devido tempo. Ele agora se inclui no número das outras testemunhas,
pois Cristo se revelou a ele também, vivo, e revestido de glória.19 Uma vez
que esta aparição não foi fruto de alguma alucinação, ela veio a ser
igualmente valiosa20 para o fortalecimento da fé na ressurreição; e este é o
uso que Paulo faz deste argumento em Atos 26.8.
Visto, porém, que era importantíssimo que sua autoridade recebesse o
maior peso possível entre os coríntios, ele insere, de passagem, algo de
grande relevância em seu próprio favor. Ele, porém, o suaviza de tal forma
que, embora estar apresentando uma fortíssima reivindicação em seu favor,
contudo se mostra, ao mesmo tempo, muitíssimo modesto. Portanto, no
caso de alguém o desafiar, dizendo: “Quem és tu para que te demos algum
crédito?”, ele espontaneamente reconhece sua própria indignidade.
Primeiramente, ele se compara a uma criança prematura, e (em minha
opinião) esta é uma referência a sua súbita conversão. Pois assim como os
bebês não deixam o ventre materno até que tenham cumprido nele o
período determinado de tempo, e estejam plenamente formados, assim
nosso Senhor seguiu uma escala adequada ao criar, adotar e formar os
apóstolos. Paulo, em contrapartida, fora retirado do ventre materno antes
que a fagulha vital21 tivesse tempo de ser adequadamente concebida nele.
Há quem considere o termo abortivo, como empregado no sentido de
posthumous.22 A primeira idéia, porém, é muito mais adequada, visto que ele
foi gerado, nasceu e se fez adulto num só momento. Além disso, esse
nascimento abortivo torna a graça de Deus muito mais evidente no caso de
Paulo do que se ele tivesse crescido em Cristo, paulatinamente, até chegar à
maturidade.
9. Porque sou o menor. Não é certo se seus inimigos se expressavam
assim às pessoas com o intuito de enfraquecer sua confiança nele, ou se ele
procedeu assim numa confissão inteiramente extraída de seu próprio
arbítrio. Quanto a mim, embora eu não tenha dúvida de que ele em todo
tempo estava espontâneamente, e também alegremente, disposto a aviltar-
se, para que pudesse magnificar a graça de Deus, contudo suspeito que
nestes caso ele queria obviar calúnias. Em Corinto havia pessoas que se
ocupavam de minar sua autoridade, falando maliciosamente contra ele.
Podemos deduzir tal fato das muitas passagens precedentes, e também de
uma comparação que ele introduz um pouco mais adiante, o que jamais faria
se não fora forçado a assim fazer pela perversidade de algumas pessoas. Ele
poderia ter posto assim: “Insultai-me tanto quanto vos agrade, eu não me
importarei de ser lançado mesmo abaixo do próprio pó; não me importarei
de ser tido na conta de nulidade,23 para que a benevolência divina para
comigo esteja em muito maior evidência. Portanto, que eu seja considerado
como o menor dos apóstolos; na verdade tenho consciência de nem mesmo
merecer tal distinção. Pois que méritos tive eu para que fosse digno24 de tal
honra? Quando costumava perseguir a Igreja de Deus, o que então merecia?
Mas não há razão para me julgardes de acordo com minha própria
dignidade, pois o Senhor não olhou para o que eu era, porém, por sua graça,
me transformou completamente em outro homem.”
Eis a suma de tudo: Paulo não recusa ser o menos digno de todos, na
verdade quase uma nulidade, contanto que, ao ser assim considerado, não
constituísse, no mínimo grau, um obstáculo ao seu ministério, e nem
prejudicasse absolutamente sua doutrina. Ele se sente plenamente satisfeito
em seu íntimo ao ser considerado indigno de qualquer honra, contanto que
pudesse enaltecer seu apostolado em razão da graça que lhe fora concedida.
E Deus certamente não o adornou com dons tão excelentes para que sua
graça fosse sepultada ou negligenciada; seu propósito, porém, era tornar o
apostolado de Paulo mais eminente e mais confiável possível.
10. E sua graça... não foi em vão. Os que se põem o livre-arbítrio em
oposição à graça de Deus, temendo que não venhamos atribuir-lhe
totalmente todo o bem que fizermos, torcem estas palavras para que se
ajustem a sua interpretação, como se o apóstolo estivesse se vangloriando
de haver, por seus próprios esforços, cuidado para que a graça em seu favor
não fosse mal orientada. Conseqüentemente, chegaram à conclusão de que a
graça é certamente oferecida por Deus, mas o uso correto dela é algo que o
homem tem em seu próprio poder, e é dele a responsabilidade de obtê-la,
mantendo-a latente. Não obstante, nego que estas palavras do apóstolo
dêem qualquer apoio a seu ponto de vista equivocado, porque neste
versículo ele não está reivindicando para si absolutamente nada, como se
tivesse feito, independentemente de Deus, algo louvável. Então, o que ele
quer dizer? A fim de não dar a impressão de fazer vã ostentação, ele declara
que está afirmando aquilo que é público, para quem quiser ver. Finalmente,
admitido que estas palavras revelam que o apóstolo não fazia mau uso da
graça de Deus, e não a tornou sem efeito por sua própria negligência,
todavia sou de opinião que não temos nenhuma justificativa, por essa
conta, para dividir entre ele e Deus o louvor que se deve atribuir
exclusivamente a Deus, diante do fato de que Deus nos outorga não só a
capacidade de fazer o bem, mas também a inclinação e a habilidade.
Trabalhei muito mais. Alguns atribuem esta expressão aos fanfarrões25
que, ao denegrirem a pessoa do apóstolo, estavam promovendo a si
próprios e a seus próprios interesses futuros, porque, segundo este ponto
de vista, não seria digno de Paulo querer entrar em competição com os
apóstolos. Entretanto, quando se compara com os apóstolos, ele o faz
motivado por pessoas ímpias que tinham o hábito de confrontá-lo com eles
a fim de rebaixar sua reputação, segundo vemos na Epístola aos Gálatas
[1.11]. Daí, é bem provável que ele esteja falando dos apóstolos, quando
avalia seus próprios esforços acima dos esforços deles. E a plena verdade é
que ele se sobressaía nas demais áreas, não só em suportar as muitas
dificuldades, em passar por muitas provas e experiências, em abster-se de
muitas coisas para cujo uso ele tinha toda a liberdade, mas porque o Senhor
estava coroando seus esforços com uma maior medida de sucesso.26 Pois
considero labor no sentido de os frutos que deviam ser vistos em seu
trabalho.
Não eu, mas a graça de Deus. Ao omitir o relativo [que], a Vulgata deu
aos que não conhecem o grego uma oportunidade de se cometer equívoco.
Porquanto ela traz: “Não eu, mas a graça de Deus comigo”,27 o que leva à
conclusão de que só a metade do crédito é atribuído a Deus, enquanto que a
outra metade é atribuída ao homem. Portanto, seu raciocínio é que o
apóstolo não agia de moto próprio, porquanto nada poderia fazer sem a
graça cooperante,28 enquanto que, ao mesmo tempo, seu próprio livre-
arbítrio e seus próprios esforços tinham sua própria participação na ação.
Suas palavras, porém, vibram uma nota completamente diferente, pois
havendo dito que algo lhe era aplicável, ele corrige isso e o transfere
inteiramente para Deus; inteiramente, insisto, e não apenas uma parte; pois
ele afirma que, qualquer coisa que fosse como que feita por ele, na verdade
era totalmente obra da graça. Este é deveras um versículo notável, não só em
sua função de reduzir a pó o orgulho humano, mas também em pôr em
relevo como a graça divina age em nós. Porque, como se tivesse
indevidamente feito dele mesmo o autor de algo bom, o apóstolo corrige o
que dissera, e declara que a graça de Deus é a causa eficiente de tudo. Não
devemos imaginar que ele aqui está meramente simulando humildade.29 É
de bom grado que ele fale assim e por saber que essa é a plena verdade.
Devemos, pois, aprender que o único bem que temos é aquele que o Senhor
nos concede graciosamente; que o único bem que praticamos é aquele que
ele produz em nós [Fp 2.13]; que nada fazemos por nós mesmos, mas que só
agimos quando somos influenciados; em outros termos, quando estamos
sob a direção e influência do Espírito Santo.
11. Portanto, seja eu, ou [sejam] eles, assim pregamos, e assim crestes.
12. Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como é que alguns dentre
vós afirmam que não há ressurreição de mortos?
13. Mas, se não há ressurreição dos mortos, então Cristo não ressuscitou;
14. e, se Cristo não ressuscitou, então é vã nossa pregação, e vã também vossa fé.
15. Sim, e ainda somos tidos por falsas testemunhas de Deus, porque testificamos de
Deus que ele ressuscitou a Cristo, a quem ele não ressuscitou, se é certo que os mortos
não ressuscitam.
16. Porque, se os mortos não ressuscitam, então Cristo não ressuscitou;
17. e, se Cristo não ressuscitou, é vã vossa fé, e ainda permaneceis em vossos pecados.
18. Então os que também adormeceram em Cristo pereceram.
19. Se temos esperança em Cristo somente nesta vida, somos os mais miseráveis de
todos os homens.
11. Sive ego igitur, sive illi, ita prædicamus, et ita credidistis.
12. Si autem Christus prædicatur excitatus a mortuis, quomodo dicunt quidam,
mortuorum resurrectionem non esse?
13. Si autem mortuorum resurrectio non est, neque Christus resurrexit.
14. Quodsi Christus non resurrexit, inanis igitur est prædicatio nostra, inanis et fides
vestra.
15. Invenimur etiam falsi testes Dei, quia testati sumus a Deo, quod suscitaverit Christum;
quem non suscitavit, siquidem mortui non resurgunt.
16. Si enim mortui non resurgunt, neque Christus resurrexit.
17. Si autem Christus non resurrexit, vana est fides vestra: adhuc estis in peccatis vestris.
18. Ergo et qui obdormierunt in Christo perierunt.
19. Quodsi in hac vita solum speramus in Christo, miserrimi sumus omnium hominum.
20. Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, e veio a ser as primícias dos que
dormem.
21. Porque, assim como a morte veio por [meio de] um homem, também por [meio de]
um homem veio a ressurreição dos mortos.
22. Pois assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão
vivificados.
23. Mas cada um em sua própria ordem: Cristo, as primícias; então os que são de Cristo,
em sua vinda.
24. Então virá o fim, quando tiver entregue o reino a Deus, sim, ao Pai; e quando tiver
abolido todo governo e toda autoridade e poder.
25. Porque importa que ele reine, até que ponha todos seus inimigos debaixo de seus
pés.
26. O último inimigo a ser destruído é a morte.
27. Porque ele pôs todas as coisas debaixo de seus pés. Mas quando diz que todas as
coisas lhe estão sujeitas, é evidente que excetua aquele que lhe sujeitou todas as
coisas.
28. E quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então o Filho também se sujeitará
àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.
20. Nunc autem Christus resurrexit a mortuis, primitiæ eorum qui domierunt, fuit.
21. Quandoquidem enim per hominem mors, etiam per hominem resurrectio mortuorum.
22. Quemadmodum enim in Adam omnes moriuntur, ita et in Chiristo omnes
vivificabuntur.
23. Unusquisque autem in proprio ordine. Primitiæ Christus, deinde, qui Christi erunt in
adventu ipsius.
24. Postea finis, quum tradiderit regnum Deo et Patri, quum aboleverit omnem
principatum, et omnem potestatem, et virtutem.
25. Oportet enim ipsum regnare, donec posuerit omnes inimicos sub pedes suos.
26. Novissimus destruetur hostis mors.
27. Omnia enim subjecit sub pedes eius: quum omnia dixerit, Clarum est, quod omnia
sunt subjecta præter eum, qui omnia illi subjecit.
28. Quum autem subjecerit illi omnia, tunc et ipse Filius subjicietur ei, qui omnia illi
subjecit, ut sit Deus omnia in omnibus.
20. Mas de fato Cristo ressuscitou. Uma vez demonstrado como tudo
ficaria completamente transtornado caso neguemos a ressurreição dos
mortos, o apóstolo agora toma como certo o que havia plenamente
comprovado antes, a saber: que Cristo ressuscitou, e acrescenta que ele é as
primícias,45 uma metáfora emprestada (ao que parece) da antiga prática sob a
lei. Pois assim como nas primícias toda a colheita anual era consagrada,
também o poder da ressurreição de Cristo se estende a todos nós; ou, se se
preferir uma explicação mais simples, que nele colheram-se os primeiros
frutos da ressurreição. Entretanto, eu mesmo prefiro entender o versículo
neste sentido, ou, seja: que o descanso dos mortos o seguirá, da mesma
maneira como sucedia com as primícias de toda a colheira;46 e isso é
confirmado pelo próximo versículo.
21, 22. Assim como a morte veio por [meio de] um homem. O ponto a
ser comprovado é este: que Cristo é as primícias e, em contrapartida, que ele
não ressuscitou dentre os mortos como um mero indivíduo. Ele produz sua
prova partindo dos contrários; visto que a morte não provém da natureza,
mas em conseqüência do pecado humano. Portanto, assim como Adão não
provou a morte só para si, senão que ela atingiu a todos nós, segue-se que
Cristo de forma semelhante, que é o antítipo,47 não ressuscitou
exclusivamente para si. Porque ele veio restaurar tudo quanto foi danificado
em Adão.
Deve-se observar, contudo, a força do argumento, pois ele não discute à
guisa de similitude, nem à guisa de exemplo, senão que se vale de causas
opostas com o propósito de provar efeitos opostos. A causa da morte é
Adão, e nós morremos nele; portanto, Cristo, cuja ofício é restaurar o que
perdemos em Adão, é para nós a causa da vida; e sua ressurreição é a
substância [hypostasis] e penhor de nossa própria [ressurreição]. E assim
como o primeiro [Adão] é o originador da morte, assim o último [Cristo] é o
originador da vida. No quinto capítulo de Romanos, ele usa o mesmo
contraste, mas com esta diferença: ali ele está tratando da vida e da morte
espirituais; aqui, porém, o ponto em questão é a ressurreição do corpo, a
qual é a recompensa da vida espiritual.
23. Cada um em sua própria ordem. Aqui temos uma antecipação de
uma dúvida que poderia ser formulada: “Se a vida de Cristo”, alguém poderia
perguntar, “alonga a nossa com ela, por que não temos a menor sombra de
evidência visível deste fato? Em vez disso, embora Cristo tenha saído vivo
do túmulo, nós nos decompomos nele.” A resposta do apóstolo é que Deus
designou outro meio de ordenar as coisas. Portanto, que nos seja suficiente
o fato de agora termos em Cristo as primícias,48 mas o tempo de nossa
ressurreição será no tempo de sua vinda.49 Pois nossa vida deve ainda
continuar escondida com Cristo [Cl 3.3, 4], porque ele ainda não se
manifestou. Portanto, seria muitíssimo errôneo querermos antecipar o dia
da revelação de Cristo.
24. Então virá o fim, quando ele tiver entregue. Ele põe um freio à
impaciência humana, ao asseverar que o tempo não seria plenificado para
nossa nova vida50 até à vinda de Cristo. Visto, porém, que este mundo é
semelhante a um mar tormentoso, no meio do qual somos constantemente
arremessados de um lado paro o outro, e visto que nossa porção é tão
incerta, ou antes cheia de lutas, e visto que tudo está sujeito a mudanças
súbitas, as mentes frágeis são precipitadas a um estado de agitação por
estas coisas. Por isso o apóstolo agora chama nossa atenção para aquele
dia, dizendo que, então, tudo será posto em ordem. O fim, pois, em outros
termos, será a meta final de nosso percurso, o céu de paz, a situação imune
de todo gênero de mudanças. Ao mesmo tempo nos adverte a que devamos
esperar por esse final, porquanto não é justo que sejamos coroados no meio
da trajetória.
Como Cristo entregará o reino ao Pai será explicado logo em seguida.
Ao dizer “a Deus o Pai”, isto pode ser considerado de duas formas: ou que
Deus o Pai é chamado o Deus e Pai de Cristo, ou que o título Pai é
adicionado à guisa de explicação. No segundo caso, a conjunção et (e)
significará isto é. Quanto ao primeiro, não há nada de incongruente ou
inusitado em dizer que Cristo está em sujeição a Deus no que se refere a sua
natureza humana.
Quando tiver abolido todo governo. Há quem considere esta expressão
como uma referência às potências que se põem em oposição ao próprio
Cristo. Pois quem assim pensa a associa ao conteúdo do próximo versículo:
“até que haja posto todos seus inimigos debaixo de seus pés.” Entretanto,
esta sentença reflete o que ele disse no início do versículo, ou, seja: que
Cristo não entregará o reino antes do fim. Daí, não há razão para limitarmos
esta sentença da forma como essas pessoas presumem. Por isso, procuro
explicá-la de uma forma geral, e entendo o termo como indicativo dos
poderes legítimos que foram ordenadas por Deus [Rm 13.1].
Em primeiro lugar, o que encontramos nos profetas sobre o
escurecimento do sol e da lua [Is 13.10; Ez 32.7], significa que somente a
glória de Deus resplandece; embora o cumprimento já teve início sob o
reinado de Cristo, não obstante não se consumará até que tudo esteja
plenamente cumprido naquele dia; mas então toda grandeza virá a baixo [Lc
3.5], para que a glória de Deus seja o único resplendor. Além do mais,
estamos cientes de que todos os principados e honras terrenos estão
conectados exclusivamente com a manutenção da presente vida, e,
conseqüentemente, são uma parte do mundo. Daí se segue que são de
caráter temporal.
Portanto, visto que o mundo caminha para um final, assim também será
com a sociedade, com a magistratura, com as leis, com as distinções
hierárquicas, com os graus de honra e tudo o mais desse gênero. O servo
não mais será diferente de seu senhor; o rei, do homem ordinário; e o
magistrado, do cidadão comum. Além disso, haverá então um fechar de
cortinas tanto para o governo que os anjos exercem no céu, quanto para os
ofícios dos ministros e supervisores das igrejas, a fim de que unicamente
Deus exerça seu próprio poder e domínio, pessoalmente, e não mais pelas
mãos de homens e anjos. Naturalmente, ainda haverá anjos, e eles também
manterão sua superioridade [excellentia]. Os justos também resplandecerão,
cada um segundo a medida da graça recebida. Os anjos, porém, renunciarão
o governo que agora exercem em nome e pela delegação divina. Os bispos,
os mestres e os profetas não mais desempenharão seus papéis, e
renunciarão o ofício que agora desempenham. Governo, autoridade e poder,
neste versículo, significam quase a mesma coisa; estas três palavras, porém,
se acham enfeixadas umas às outras com o fim de tornar seu significado
ainda mais pleno.
25. Porque importa que ele reine. O apóstolo mostra que ainda não
chegou o tempo de Cristo entregar o reino ao Pai, procurando enfatizar, ao
mesmo tempo, que o fim ainda não chegou, quando tudo será restaurado a
sua condição real e a um estado de paz, porquanto Cristo ainda não
subjugou todos seus inimigos. Mas tal deverá acontecer, visto que o Pai o
assentou a sua destra sob a condição de que ele não resigne a autoridade
que recebera até que todos sejam trazidos sob seu controle. Isto também foi
dito para que os crentes sejam consolados, de modo que sua impaciência
não cresça ante o fato de que o dia da ressurreição se faz tão demorado. Esta
declaração é tomada do Salmo 110.1.
Entretanto tudo indica que o apóstolo está se precavendo mais com a
palavra até do que sua simples e natural significação o requer. Pois neste
versículo o Espírito está anunciando, não o que ocorrerá após o fim, mas
somente o que tiver acontecido de antemão. Minha resposta a isso é que o
apóstolo não afirma que Cristo devolverá o reino ao Pai por isto estar
predito neste Salmo, mas porque ele fez uso da evidência do Salmo
simplesmente com o propósito de provar que ainda não chegou o dia para a
entrega do reino, porquanto Cristo terá ainda de enfrentar seus inimigos.
Finalmente, Paulo explica, de passagem, o que está implícito por “Cristo
assentado à destra do Pai”, porque, em vez dessa expressão metafórica, ele
meramente usa o verbo reinar.
26. O último inimigo ... a morte. Estamos cientes de que ainda há
muitos inimigos resistindo a Cristo e obstinadamente opondo-se a seu
reinado. A morte, porém, será o último inimigo51 a ser destruído, e assim
Cristo deverá continuar sendo o administrador do reino de seu Pai. Os
crentes devem, pois, criar coragem e não perder a esperança, até que todas
as coisas que devem vir antes da ressurreição realmente se concretizem.
Mas alguém poderia perguntar o que exatamente ele tem em mente ao
dizer que a morte será o último52 inimigo a ser destruído, quando já foi
destruída pela morte de Cristo, ou, sobretudo, por sua ressurreição, a qual é
a vitória sobre a morte e a conquista da vida? Minha resposta é que ela já foi
destruída de uma maneira tal que não mais será fatal para os crentes, mas
não de maneira que não mais lhes cause sofrimento. É verdade que o
Espírito de Deus, que habita em nós, é vida; não obstante, ainda possuímos
um corpo mortal [1Pe 1.24]. A subsistência da morte, que ainda subsiste em
nós, um dia será exaurida, porém tal coisa ainda não se concretizou. Já
nascemos da semente incorruptível [1Pe 1.23], todavia a perfeição
[perfectionem] ainda não chegou a sua plenitude. Ou, convertendo a questão
em símile, a espada da morte, que penetra nosso coração, se acha no
momento embotada. Ela ainda fere, naturalmente, mas sem qualquer risco53
[fatal]; é verdade que morremos, porém, ao morrermos, entramos na [posse
da] vida. Finalmente, como Paulo ensina em Romanos [6.12-14] acerca do
pecado, devemos encarar a morte por este prisma, a saber, que ela
indubitavelmente habita em nós, todavia já não exerce mais domínio sobre
nós.
27. Ele pôs todas as coisas debaixo de seus pés. Há quem pense que
esta citação foi extraída do Salmo 8.7, e estou de pleno acordo com isso,
embora não seja fora de propósito dizer que esta é uma conclusão a que
Paulo chegou ao considerar a natureza do governo de Cristo. Sigamos,
contudo, a opinião mais geralmente aceita.
Paulo mostra, à luz deste Salmo, que Deus o Pai conferiu a Cristo o poder
sobre todas as coisas, porquanto lemos: “Puseste todas as coisas debaixo
de seus pés.” As palavras por si sós são suficientemente claras, não fossem
a existência de duas dificuldades. A primeira é que o profeta ali não está
falando só de Cristo, mas de toda a raça humana. A segunda é que, pela
expressão “todas as coisas”, ele quer dizer somente aquelas coisas que
servem ao propósito de beneficiar nossa existência física, como
encontramos em Gênesis 2.19.
A primeira dificuldade é facilmente resolvida, porque, visto que Cristo é
o primogênito de toda a criação [Cl 1.15] e o herdeiro de todas as coisas [Hb
1.2], Deus o Pai não concedeu à raça humana o uso de todas as coisas
criadas de maneira a interferir no poder primordial e, por assim dizer, o
senhorio legítimo permanecendo nas mãos de Cristo. Sabemos, além do
mais, que Adão perdeu o direito que lhe fora outorgado, de modo que não
mais podemos chamar coisa alguma de nossa, porque a terra – bem como
tudo o que nela existe – foi amaldiçoada, e é tão-somente por meio de Cristo
que recuperamos aquilo de que fomos despojados. Há, pois, plena
justificativa de esta afirmação – de que o Pai pôs todas as coisas debaixo de
seus pés – ser aplicada particularmente à pessoa de Cristo, visto que não
temos qualquer direito de posse senão nele. Pois como podemos ser
herdeiros de Deus a não ser que sejamos filhos? E por meio de quem somos
feitos seus filhos senão por meio de Cristo?
A solução para a segunda dificuldade é a seguinte – o profeta deveras faz
menção específica às aves do ar, aos peixes do mar e aos animais do campo,
porque esta espécie de senhorio é plenamente visível e perfeitamente óbvia.
Mas, ao mesmo tempo, esta afirmação geral abrange muito mais do que isso,
ou, seja: céu e terra, e tudo o que eles contêm. Ora, as coisas sujeitas devem
adequar-se à pessoa do governante, ou, seja, as condições delas devem
assemelhar-se e corresponder às dele. Contudo, Cristo não exige animais
para alimento, nem quaisquer outras coisas criadas para suprir alguma de
suas necessidades. Portanto, ele governa para que todas as coisas venham a
servir a sua glória. Visto que ele nos elegeu a fim de participarmos de seu
domínio, vemos claramente os resultados disso na forma de algo mais que
flui desse domínio, algo que tem uma aplicação mais ampla, como já me
referi.
Todas as coisas... exceto aquele que lhe sujeitou todas as coisas. Paulo
apresenta dois pontos: (1) que todas as coisas devem estar em sujeição a
Cristo, antes que ele devolva ao Pai sua soberania sobre o mundo; e (2) que
o Pai passou tudo às mãos do Filho, para manter a principal autoridade em
suas próprias mãos.
Segue-se do primeiro ponto que a hora do juízo final ainda não chegou; e,
do segundo, que Cristo é agora o Mediador entre nós e o Pai, a fim de nos
conduzir a ele no final. E assim o apóstolo prossegue imediatamente em
direção à conclusão de que “depois de todas as coisas estarem sujeitas ao
Filho, o próprio Filho se sujeitará ao Pai” (v. 28). É como se quisesse dizer:
“Aguardemos tranqüilamente até Cristo ser vitorioso sobre todos seus
inimigos e trazer-nos, juntamente com ele, sob a soberania de Deus, para
que o reino de Deus seja levado à plenificação em nós.”
Todavia, o que várias partes das Escrituras asseveram sobre a eternidade
do reino de Cristo parece estar em conflito com esta frase. Pois, como estas
afirmações se coadunam entre si? ou, seja: “o reino eterno de nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo” [2Pe 1.11] e “tornando-se obediente até à morte” [Fp
2.8]. Ao resolvermos este problema, veremos mais claramente o que Paulo
quis dizer. Antes de tudo, devemos observar que todo o poder foi conferido
a Cristo, quando ele se manifestou na carne. Tão imensa majestade não se
adequaria a um mero homem, não obstante o Pai o exaltou na mesma
natureza em que se humilhou, e lhe deu o nome diante do qual todo joelho
se dobrará etc. [Fp 2.8]. Além disso, devemos notar que ele foi designado
Senhor e supremo Rei a fim de tornar-se o Vice-Regente do Pai, por assim
dizer, no governo do mundo. Não é o caso, contudo, que ele faça todo o
trabalho enquanto o Pai não faz nada. (Pois, como tal poderia ser, visto que
ele é a sabedoria e o conselho de Deus, que ele é de uma só essência com o
Pai e que, portanto, é também Deus?) Mas a razão por que a Escritura dá
testemunho do fato de que Cristo agora detém a soberania sobre o céu e
terra em lugar do Pai é porque não podemos imaginar nenhum outro no
governo, no senhorio, na defesa, nem no papel de julgar os vivos e os
mortos, senão conservando nossos olhos fixos nele, e tão-somente nele.54
Naturalmente, estamos cônscios de que Deus é o Governante, porém seu
governo está incorporado no Cristo-Homem [sed in facie hominis Christi].
Mas Cristo devolverá, pois, o reino que recebeu, de modo a unir-se
plenamente a Deus.55 Não significa que Cristo abdicará do reino, mas que o
transferirá de uma forma ou de outra [quodammodo] de sua Humanidade
para sua gloriosa Deidade, porque então nos abrirá uma via de acesso, da
qual estamos agora privados em razão de nossas fraquezas. Desta forma,
pois, Cristo se sujeitará ao Pai, porque, quando o véu for descerrado,
veremos a Deus nitidamente, reinando em sua majestade,56 e a Humanidade
de Cristo não mais se interporá entre nós para privar-nos de uma visão de
menos distância de Deus.57
28. Para que Deus seja tudo em todos. Isso se dará com o diabo e com
os homens ímpios? Em hipótese alguma! – a menos, quem sabe, que
estejamos dispostos a tomar o verbo ser no sentido de “ser conhecido e ser
contemplado publicamente”. Nesse caso, o sentido seria: “Visto que o diabo
está agora lutando contra Deus; visto que os ímpios transtornam a ordem
por ele instituída, lançando-a no caos; visto que incontáveis coisas, que nos
são ofensivas, nos encaram de frente, dificilmente pode-se dizer que
certamente Deus será tudo em todos. Mas quando Cristo exercer o juízo que
o Pai lhe confiou, e subjugar a Satanás e a todos os desobedientes, então a
glória de Deus será visualizada na destruição deles. O mesmo se pode dizer
também com respeito às potências que são sacras e legítimas em seu
próprio caráter, pois em certo sentido elas nos impedem de visualizar a
Deus corretamente tal como ele é. Mas quando Deus estiver governando céu
e terra pessoalmente, sem qualquer mediação, nesse sentido ele será tudo; e,
conseqüentemente, ele estará finalmente em todos, não meramente em
todas as pessoas, mas igualmente em todas as criaturas.”
Esta é uma interpretação fiel,58 e já que concorda plenamente com o que
o apóstolo tinha em mente, estou disposto a aceitá-la. Todavia, não estará
fora de propósito se esta frase for tomada como uma referência exclusiva
aos crentes, em quem Deus já iniciou seu reino, e então o conduzirá à
plenitude, e isso de tal forma que lhe aderirão completamente.
Cada uma destas interpretações é por si só suficiente para repelir os
conceitos ímpios e despropositados nutridos por certos indivíduos que
fazem uso errôneo deste versículo com o intuito de provar suas conjeturas.
Há quem imagine que Deus será tudo em todos no sentido em que tudo se
desvanecerá e dissolverá em nada. Não obstante, o único significado que as
palavras do apóstolo produzem é que todas as coisas devem ser restauradas
à relação com Deus como seu único princípio e fim, para que estejam
estreitamente ligadas a ele. Outros inferem disso que o diabo e todos os
desobedientes serão salvos, como se Deus não devesse, na verdade, ser
melhor conhecido na destruição do diabo do que em fazer-se amigo dele, e
até mesmo em fazer-se um com ele. Assim vemos quão impudentes são os
homens perversos desse gênero, quando torcem este dito do apóstolo com
o fim de sustentarem suas próprias blasfêmias.
29. Doutra sorte, que farão os que se batizam pelos mortos, se absolutamente os mortos
não ressuscitam? Por que, pois, se batizam eles pelos mortos?
30. E por que estamos nós em perigo a toda hora?
31. Eu protesto, gloriando-me em vós, irmãos, por Cristo Jesus nosso Senhor, que a cada
dia eu morro.
32. Se, segundo o costume dos homens, lutei com feras em Éfeso, que proveito isso me
traz? Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã
morreremos.
33. Não vos enganeis: as más conversações corrompem os bons costumes.
34. Atentai para a justiça, e não pequeis; porque alguns ainda não têm conhecimento de
Deus; digo isto para vergonha vossa.
29. Quid alioqui facient qui baptizantur pro mortus, si omnino mortui non resurgunt? quid
etiam baptizantur pro mortuis?
30. Quid etiam nos periclitamur omni hora?
31. Quotidie morior per nostrarm gloriam, fratres, quam habeo in Christo Iesu Domino
nostro.
32. Si secundum hominem pugnavi ad bestias Ephesi, quid mihi prodest? edamus et
bibamus: cras enim moriemur.
33. Ne erretis: Mores honestos corrumpunt mala colloquia.
34. Evigilate juste, et ne peccetis: ignorantiam enim Dei quidam habent: ad pudorem
vobis incutiendum dico.
29. Doutra sorte, que farão? Uma vez mais, ele retrocede às seqüências
absurdas do erro sob o qual os coríntios estavam vivendo. No início ele
começou tratando dessas pretensões, porém introduziu ensino e
consolação, interrompendo por um pouco o fio do argumento; e agora o
retoma.
Em primeiro lugar, ele apresenta esta objeção: o batismo, que é recebido
por pessoas já consideradas mortas, será destituído de qualquer proveito,
se não há ressurreição. Antes de explicar este versículo, vale a pena refutar a
exposição costumeira, a qual é apoiada pela autoridade dos Pais, e desfruta
do assentimento de quase todos. Daí Crisóstomo e Ambrósio, seguidos de
outros, acreditam que, quando alguém era privado do batismo por morte
súbita, os coríntios tinham o hábito59 de substituir a pessoa viva pela do
falecido, a qual era batizada em seu túmulo. De fato eles não negam que tal
costume era uma perversão e estava saturado de superstição. No entanto,
dizem também que, para refutar os coríntios, o apóstolo confiava neste
argumento,60 ou, seja: que embora negassem a existência de uma
ressurreição, ao mesmo tempo declaravam que criam nela. Não obstante, de
minha parte, não posso de modo algum me persuadir a crer nisso,61 pois é
inacreditável que os que negavam a existência de uma ressurreição
estivesse, juntamente com outros, fazendo uso de um costume como este.
Paulo, pois, teria enfrentado de imediato esta réplica que lhe fizeram: “Por
que nos pressionas com esta antiga superstição de viúvas, quando, na
verdade, tu mesmo não a aprovas?” Além disso, se esta fosse a prática deles,
teriam prontamente respondido: “Se tal coisa foi praticada até agora por nós
por uma questão de equívoco, então seria melhor que o equívoco fosse
corrigido do que ser usado para provar algo de tanta importância.”
Entretanto, admitindo que o argumento deles fosse conclusivo, podemos
presumir que, se uma prática corrupta como esta prevalecia entre os
coríntios, o apóstolo, depois de reprovar quase todos seus erros, teria
mantido silêncio sobre este? Nos capítulos anteriores ele condenou certas
práticas que não eram tão graves como esta. Ele não hesitou em dar
diretrizes quanto às mulheres e ao uso de cobrir a cabeça e outros
problemas dessa natureza. Não reprovou meramente a administração
errônea da Ceia, mas foi muito mais penetrante em sua crítica. Ao mesmo
tempo, não diria ele uma única palavra sobre tão horrível profanação do
batismo, quando esta era uma questão muito mais grave do que as outras?
Ele fora tão veemente em seu ataque contra aqueles que davam sua tácita
aprovação às crenças e práticas supersticiosas dos pagãos, freqüentando
seus banquetes. Teria ele permitido que esta abominável superstição pagã
fosse praticada publicamente na própria Igreja sob o nome de santo
batismo? Mesmo admitindo, pois, que ele tivesse guardado silêncio sobre
isso, qual deve ser nossa atitude diante do fato de que ele realmente faz
menção específica dele? Pergunto: seria provável que o apóstolo citasse, na
forma de argumento, um sacrilégio62 por meio do qual o batismo era
corrompido e convertido completamente num uso mágico e abusivo, e nem
assim tenha uma única sílaba a dizer em condenação de tal erro? Ao tratar
de coisas que não são da maior importância, ele, não obstante, introduz
parêntesis, insinuando que está falando como homem [Rm 3.5; 6.19; Gl 3.15].
No presente caso, não teria sido mais apropriado e conveniente que usasse
parêntesis? Ora, o fato de fazer ele menção de tal coisa sem qualquer palavra
de reprovação, quem não entenderia que tal coisa era permitida? De minha
parte, por certo que aqui o entendo como se estivesse falando do uso
correto do batismo, e não de um mal uso dele dessa natureza.
Ora, inquiramos agora quanto ao significado. Houve um tempo em que
eu costumava pensar que Paulo aqui estava realçando o desígnio universal
do batismo, porquanto o benefício do batismo não se restringe a esta
presente vida. Mas, no transcorrer do tempo, ao considerar mais
atentamente a terminologia, percebi que aqui Paulo está tratando de algo
peculiar. Pois ele não está falando de todos quando pergunta o que farão
aqueles que são batizados etc. Além do mais, não aprecio as interpretações
que são mais engenhosas do que sólidas. Então, o que ele quis dizer? Digo
que aqueles que eram batizados pelos mortos são os que eram
considerados como já mortos e perdido completamente qualquer esperança
de vida. E assim a partícula ὑπέρ terá a mesma função do latim pro [como],
por exemplo, na expressão habere pro derelicto, ou, seja, tido como
abandonado.63 Essa significação não é de forma alguma forçada. Ou, se o
leitor preferir outra significação, ser batizado pelos mortos significaria ser
batizado em benefício dos mortos, não dos vivos.64 Ora, sabe-se bem que
desde os primórdios da Igreja, quando os neófitos na fé [catechumeni],65
ainda não batizados, caíam enfermos,66 caso estivessem em iminente risco
de vida, então costumavam solicitar o batismo a fim de não partirem deste
mundo antes que pudessem professar a Cristo, e igualmente pudessem levar
consigo o selo de sua salvação.
À luz dos escritos dos Pais transparece que tal superstição infiltrou-se
mais tarde nesta prática também, pois os encontramos investindo-se contra
aqueles que delongavam seu batismo até o tempo de sua morte, para que,
uma vez purificados de todos seus pecados, pudessem, nesse estado,
aproximar-se do tribunal de Deus.67 Este é deveras um erro por demais
estapafúrdio, oriundo em parte de profunda ignorância, e em parte de
profunda hipocrisia. Aqui, porém, o apóstolo está meramente tocando de
leve um costume que era sagrado e que estava em concordância com a
instituição de nosso Senhor, a saber, que, se um catecúmeno já havia aceito
a fé cristã,68 e em seu coração percebia que a morte o rondava, então
solicitava o batismo, em parte para seu próprio conforto, e em parte para o
fortalecimento [aedificationem] de seus irmãos. Pois dar prova desta
salvação selada em seu próprio corpo não é um conforto de pouco valor. Há
também uma edificação que não se deve perder de vista, a saber, a de fazer
confissão de sua fé. Assim, aquelas pessoas eram batizadas pelos mortos,
visto que o batismo não lhes seria de nenhuma valia neste mundo, e a
ocasião propícia de se fazer seu batismo era destituída de qualquer
esperança nesta vida.
Agora entendemos que não foi sem boa razão que o apóstolo lhes
perguntou o que fariam se não lhes restasse nenhuma esperança depois da
morte.69 Este versículo é também uma prova de que aqueles impostores que
estavam subvertendo a fé dos coríntios tinham forjado uma ressurreição
simbólica, fazendo com que o alvo último dos crentes não estivesse além
deste mundo. Ele põe maior ênfase em sua pergunta, repetindo-a na seguinte
forma: “por que, pois, se efetua o batismo pelos mortos?” É como se
quisesse dizer: “Não só as pessoas que acreditam viver uma vida mais longa
que se batizam, mas também aquelas que sentem a morte de espreita; e estas
se batizam para que possam colher os benefícios de seu batismo após sua
partida.”
30. Por que estamos nós também em perigo a toda hora? Se a
ressurreição e a felicidade últimas não vão além deste mundo, por que, pois,
nós espontaneamente o abandonamos e de bom grado vamos de encontra à
morte? Seu raciocínio pode ser também explicado desta maneira: ser-nos-ia
fútil viver em perigo a toda hora, caso uma vida melhor não esperasse por
nós após nosso encontro com a morte. Ele, porém, está falando dos riscos
que cercavam suas vidas, os quais os crentes enfrentam espontaneamente,
em decorrência de confessarem a Cristo. “Esta magnanimidade de alma, em
desprezar-se a morte, seria o cúmulo da estupidez, e não mero sangue frio,
caso os santos perecessem com a morte, porquanto é uma diabólica
demência granjear uma fama imortal através da morte.”70
31. A cada dia morro. Ele declara que pessoalmente sentia desprezo
pela morte a fim de não deixar a impressão de estar falando com bravura
quando ele mesmo não corria nenhum risco pessoal. Diz ele: “A cada dia
sinto-me, de muitas formas, sob constante ameaça de morte. Quão insensato
seria atrair sobre mim mesmo tanta infelicidade, caso não esperasse receber
para mim nenhum galardão no céu! Sim, e mais ainda, se minha glória e bem-
aventurança não passassem deste mundo, por que não desfrutá-lo em vez
de renunciá-lo espontaneamente?” Ele diz que morria diariamente porque se
encontrava constantemente assediado pelos perigos, tão grandes e tão
opressivos, que a morte estava, em certo sentido, de espreita, a encará-lo. É
a mesma sorte de situação que encontramos descrita no Salmo 44.23, e com
que nos defrontaremos na próxima carta [2Co 11.23].
Gloriando-me em vós. A Vulgata traz propter [por causa de],71 mas isso
obviamente se deve à ignorância dos copistas, pois não existe ambigüidade
alguma na partícula grega.72 Portanto, temos aqui um juramento pelo qual o
apóstolo pretendia incitar os coríntios a prestarem mais atenção no que ele
tem a dizer em relação a este ponto em particular.73 Ele poderia ter-se
expresso assim: “Meus irmãos, não sou um filósofo que derrama no
discurso torrentes de verbosidade.74 Visto que me exponho à morte a cada
dia, é um imperativo que eu medite seriamente na vida celestial. Creio,
portanto, ser um homem profundamente experiente!”
É também uma inusitada forma de juramento, porém um [tipo de
juramento] que se ajusta ao tema em questão. O bem conhecido juramento
de Demóstenes, citado por Fábio,75 é semelhante a este [de Paulo], quando
jurou pelos espíritos dos homens que encontraram a morte na batalha de
Maratona, porém sua real intenção era que outras pessoas fossem incitadas
a defender a República.76 E assim Paulo aqui jura “pela glória que os
cristãos têm em Cristo”. Ora, essa glória está no céu. Ele mostra, pois, que
aquilo que despertava sua dúvida é de fato uma questão da qual ele está
plenamente certo de estar preparado para fazer uso de um sacro juramento –
a exibição de habilidade que merece ser cuidadosamente observada.
32. Se segundo o método dos homens. Ele menciona uma forma notória
de morte; e é evidente, à luz de sua própria natureza, que ao enfrentá-la ele
poderia ser considerado muito pior que um estúpido, se porventura uma
vida superior não nos aguardasse após a morte; pois ele se expôs a um
gênero de morte que era considerado como o mais ignominioso de todos.
Ele está dizendo: “Que vantagem haveria em granjear para mim um
infamante nome e ao mesmo tempo submeter-me à mais cruel das mortes, se
todas minhas esperanças se limitassem apenas a este mundo?” Segundo o
método dos homens significa, nesta passagem, com respeito à vida humana,
de modo a obtermos um galardão neste mundo.
Os que lutavam com feras não quer dizer aqueles que eram lançados
aos animais selvagens para lutarem com eles, como intuiu Erasmo
erroneamente, mas aqueles que eram condenados a apresentar um
espetáculo ao povo, sendo obrigados a lutarem com animais selvagens.
Havia, pois, duas espécies completamente distintas de castigo: (1) ser
lançado às feras e (2) lutar com elas. Pois os que fossem lançados a esses
animais eram instantaneamente feitos em pedaços; enquanto os que
lutavam com eles, costumavam entrar armados na arena, de modo que, se
desfrutassem da vantagem da força, da coragem e da agilidade, poderiam
sair ilesos, matando as feras. Além disso, havia uma escola de treinamento
para aqueles que lutavam com as feras, assim como havia uma para os
gladiadores.77 Contudo, bem poucos deles logravam escapar com vida,
porque aquele que liquidava um animal era forçado a lutar com um
segundo,78 até que a crueldade dos espectadores fosse saciada, ou, dir-se-ia,
até que encontrasse ele mercê [da parte do povo]. E ainda havia aqueles que
se sentiam tão infelizes e desesperados que se ofereciam para isso.79 E,
permita-me dizer de passagem, que este “espetáculo de caça” foi tão
severamente punido pelos cânones antigos quanto caracterizado pelas leis
civis como infame.80
Volto ao que o apóstolo tem a dizer.81 Vemos a que estado Deus permitiu
chegasse seu servo, e quão maravilhosamente também o resgatou. Lucas,82
porém, não faz menção deste contexto; e daqui podemos deduzir que Paulo
passou por muitas situações sobre as quais não se permitiu fossem escritas.
Comamos e bebamos. Esse era um provérbio dos epicureus, os quais
defendiam a tese de que o sumo bem do homem consiste em ter ele prazer
aqui e agora. Isaías também asseverou [22.13] que o mesmo é proclamado
pelos homens dissolutos, quando os profetas de Deus os ameaçam com
ruína83 com o fim de intimá-los ao arrependimento. Pois, escarnecendo
dessas ameaças, eles se entregam sem restrição ao comodismo e aos
prazeres; e para demonstrar sua arrogante independência, dizem: “Já que
temos de morrer, desfrutemos do tempo que agora é nosso, e não nos
torturemos com um sombrio medo antes mesmo que chegue a hora.” Em
contrapartida, atentemos bem para o que certo comandante disse a seu
exército:84 “Camaradas de armas, tomemos nosso desjejum com o coração
jovial, porque hoje mesmo jantaremos no inferno.”85 Ora, este era um
convite para que a morte fosse encarada com destemor, e nada tem a ver
com este tema. Sou de opinião que o apóstolo apropriara-se de um
provérbio que era de uso corrente entre os dissolutos e impudentes
imprestáveis; ou (para ser breve) de uma máxima comum aos epicureus, que
equivalia ao seguinte: “Se morte significa o aniquilamento do homem, este
nada tem melhor a fazer senão entregar-se aos prazeres, sem preocupar-se
com nada mais enquanto tiver alento de vida.” Sentimentos desse gênero
ocorrem com freqüência em Horácio.86
33. Não vos enganeis: as más conversações corrompem os bons
costumes. Visto nada haver mais fácil do que fomentar o método de fazer
especulações irreverentes, enquanto se pretende fazer investigações,87 o
apóstolo se depara com este perigo ao advertir que passar informação
errônea é mais eficaz do que podemos imaginar para contaminar nossas
mentes e corromper-nos moralmente.88 Para isso ele usa um adágio do
poeta Menander;89 pois somos livres para lançar mão de qualquer espécie
de fonte que venha de Deus. E como toda a verdade emana de Deus, não há
dúvida de que o Senhor tem posto nos lábios, mesmo de incrédulos, tudo o
que contenha uma lição genuína e sadia; porém prefiro considerar Oração
aos Jovens, de Basílio, para a abordagem deste tema. Portanto, visto que o
apóstolo sabia que este adágio era familiar aos gregos, ele decide fazer uso
dele, em vez de expressar a mesma idéia em suas próprias palavras, a fim de
que o ouvissem com mais disposição. Porquanto, era-lhes mais fácil receber
algo com o qual estavam familiarizados; e nós mesmos podemos concordar
com isso, à luz de nossa própria experiência com os adágios gastos pelo
uso.
Mas esta é uma frase que particularmente merece nossa atenção, visto
que, quando Satanás não pode dirigir-nos um ataque direto e franco,90 ele
nos ludibria insinuando que nada há de errôneo em diligenciarmos todo
gênero de especulações com o propósito de fazer investigação da verdade.
Portanto, falando do ponto de vista oposto, o apóstolo protesta
energicamente contra isso, dizendo que precisamos pôr-nos em guarda
contra a comunicação de informação errônea, assim como procedemos no
tocante a um veneno que pode matar instantaneamente; pois tal informação
penetra sutilmente em nossas mentes, para logo em seguida corromper todo
nosso ser. Notemos, pois, que nada há mais nocivo do que uma doutrina
perversiva e as especulações ímpias, que nos conduzem a um desvio,
mesmo em grau mínimo, da fé ortodoxa e pura.91 Portanto, não é sem razão
que o apóstolo nos exorta para não nos deixarmos enganar.92
34. Vigiai com retidão. Assim que ele percebeu que os coríntios haviam,
por assim dizer, caído no sono dos ébrios, através de um senso de
segurança excessivamente falsa, então se põe a sacudi-los de seu torpor.
Mas, ao adicionar o termo retidão, notifica de que maneira ele quer que eles
estejam quando acordarem. Pois eles mantinham-se alertas e bastante
lúcidos no que tange a seus afazeres; e, além do mais, não há dúvida de que
se orgulhavam de sua perspicácia; todavia, mantinham-se indolentes em
relação a algo que, mais que qualquer outra coisa, exigia que se
mantivessem plenamente despertos. Eis a razão por que ele diz “vigiai com
retidão”; em outros termos: “Volvei vossa mente e almejai as coisas que são
boas e santas.”
Ao mesmo tempo ele adiciona a razão para se proceder assim, dizendo:
“Alguns dentre vós”, diz ele, “não têm conhecimento de Deus.” Era
indispensável que isso fosse dito, pois de outra forma teriam considerado
sua advertência como algo completamente fora de propósito, já que eram
excessivamente sábios a seus próprios olhos. Mas ele os acusa de
ignorância em relação a Deus, de modo que ficassem cientes de que eram
deficitários naquilo que constituía a coisa mais importante de todas. Isso é
valioso como advertência contra os que são adeptos dos que flutuam no
espaço, mas que, ao mesmo tempo, são cegos em relação ao que está a seus
pés; e que são estupidamente estultos, quando deviam ser tão espertos
quanto possível.
Despertar -vos o pudor, ou, seja, da mesma maneira como os pais
despertam o brio de seus filhos, repreendendo-os por suas traquinagens, a
fim de que eles venham, por meio dessa vergonha, cobrir sua vergonha. Em
contrapartida, ao dizer que sua intenção não era humilhá-los, ele pretendia
informar que não desejava que se sentissem envergonhados caso ele viesse
fazer uma exposição pública dos escândalos deles de forma hostil e
desagradável. Mas, neste ponto, era do interesse deles que fossem
reprovados em termos bem severos, visto que ainda se deleitavam em males
de tal magnitude. Ora, quando o apóstolo os acusa de ignorância em relação
a Deus, ele os despe inteiramente de toda honra.
35. Mas alguém dirá: Como os mortos ressuscitam? e com que espécie de corpo eles
vêm?
36. Insensato! o que semeias não nasce, se primeiro não morrer;
37. e o que semeias, semeias não o corpo como há de ser, mas o simples grão, como de
trigo, ou de qualquer outra semente.
38. Deus, porém, lhe dá um corpo como lhe aprouve dar, e a cada semente seu corpo
apropriado.
39. Nem toda carne é a mesma; porém uma é a carne dos homens, outra a dos animais,
outra a das aves e outra a dos peixes.
40. Também há corpos celestiais e corpos terrestres; uma, porém, é a glória dos
celestiais, e outra a glória dos terrestres.
41. Uma é a glória do sol; e outra, a glória da lua; e ainda outra, a glória das estrelas;
porque até entre estrela e estrela há diferença de esplendor.
42. Assim também é a ressurreição dos mortos.
43. Semeia-se o corpo na corrupção, ressuscita em incorrupção; semeia-se em desonra,
ressuscita em glória; semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder.
44. Semeia-se um corpo natural, ressuscita um corpo espiritual. Se há corpo natural, há
também corpo espiritual.
45. Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente.
46. O último Adão, porém, foi feito espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, e,
sim, o natural; então é que vem o espiritual.
47. O primeiro homem, formado da terra, é terreno; o segundo homem é do céu.
48. Como foi o primeiro homem, o terreno, tais são também os demais homens terrenos;
e como é o homem celestial, tais são também os celestiais.
49. E assim como trouxemos a imagem do que é terreno, também devemos trazer a
imagem do celestial.
50. Isto afirmo, irmãos, que carne e sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a
corrupção herdar a incorrupção.
35. Sed dicet quispiam: Quomodo suscitabuntur mortui? quali autem corpore venient?
36. Demens, tu quod seminas, non vivificatur nisi mortuum fuerit.
37. Et quod seminas, non corpus quod nascetur, seminas, sed nudum granum: exempli
gratia, tritici, aut alterius cujusvis generis:
38. Deus autem illi dat corpus, quemadmodum voluerit, et unicuique seminum proprium
corpus.
39. Non omnis caro, eadem caro: sed alia caro hominum, alia vero caro pecudum, alia
volucrum, alia piscium.
40. Sunt et corpora cœlestia, sunt corpora terrestria: quin etiam alia cœlestium gloria,
alia terrestrium.
41. Alia gloria solis, alia gloria lunæ, alia gloria stellarum: stella a stella differt in gloria:
42. Sic et resurrectio mortuorum.
43. Seminatur in corruptione, resurgit in incorruptione: seminatur in ignominia, resurgit in
gloria: seminatur in infirmitate, resurgit in potentia:
44. Seminatur corpus animale, resurgit corpus spirituale: est corpus animale, est et
corpus spirituale.
45. Quemadmodum et scriptum est, (Gen. ii.7,) Factus est primus homo Adam in animam
viventem, ultimus Adam in spiritum vivificantem.
46. Sed non primum quod spirituale est: sed animale, deinde spirituale.
47. Primus homo ex terra terrenus, secundus homo, Dominus e cœlestes.
48. Qualis terrenus, tales et terreni, et qualis cœlestis, talesd et cœlestes.
49. Et quemadmodum portavimus imaginem terreni, portabimus et imaginem cœlestis.
50. Hoc autem dico, fratres, quod caro et sanguis regnum Dei hereditate possidere non
possunt, neque corruptio incorruptionem hereditate possidebit.
51. Eis que vos digo um mistério: Nem todos dormiremos, mas transformados seremos
todos,
52. num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar a última trombeta. Pois a
trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados.
53. Porque é necessário que o corruptível se revista de incorruptibilidade, e o que é
mortal se revista de imortalidade.
54. E quando o corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir
de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela
vitória.
55. Onde está, ó morte, tua vitória? onde está, ó morte, teu aguilhão?
56. O aguilhão da morte é o pecado, e o poder do pecado é a lei.
57. Mas, graças a Deus que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.
58. Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e inabaláveis, e sempre abundantes na
obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, vosso trabalho não é vão.
51. Ecce, mysterium vobis dico: Non omnes quidem dormiemus, omnes tamen
immutabimur,
52. In puncto temporis, in nictu oculi, cum extrema tuba, (canet enim tuba ,) et mortui
resurgent incorruptibiles, et nos immutabimur.
53. Oportet enim corruptibile hoc induere immortalitatem.
54. Quum autem corruptibile hoc induerit incorruptibilitatem, et mortale hoc induerit
immortalitatem: tunc fiet sermo qui scriptus est: (Hos. 13, 14, vel Ies. 25, 8.) Absorpta est
mors in victoriam.
55. Ubi, mors, tuus aculeus? Ubi tua, inferne, victoria?
56. Aculeus autem mortis, peccatum est: virtus autem peccati, Lex.
57. Sed Deo gratia, qui dedit nobis victoriam per Dominum nostrum Iesum Christum.
58. Itaque, fratres mei dilecti, stabiles sitis, immobiles, abundantes in opere Domini
semper, hoc cognito, quod labor vester non sit inanis in Domino.
Nestas palavras Deus notifica que ele só concretiza a salvação de seu fiel
povo126 quando a morte e o sepulcro são reduzidos a nada. Assim, não
haverá ninguém que porventura negue que este versículo nos forneça a
descrição de um estado plenificado de salvação. Portanto, enquanto não
virmos a morte destruída assim, segue-se que não podemos ainda tomar
posse da plenitude da salvação que Deus prometeu a seu povo, a qual, pela
mesma razão, é adiada para aquele dia. Conseqüentemente, é então que a
morte será tragada e, noutros termos, será reduzida a nada;127 para que
tenhamos sobre ela completa e final vitória.128
No tocante à segunda parte da profecia, na qual o apóstolo escarnece da
morte e do túmulo, não fica claro se ele está usando suas próprias palavras,
ou se sua intenção é citar também as palavras do profeta. Pois onde as
traduzimos,
1. No tocante à coleta para os santos, fazei vós também o que ordenei às igrejas da
Galácia.
2. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha à parte, conforme sua
prosperidade, e vá juntando, para que não se façam coletas quando eu for.
3. E quando eu chegar, enviarei, com cartas, para levarem vossas dádivas a Jerusalém,
aqueles que aprovardes.
4. E, se valer a pena que eu também vá, os levarei comigo.
5. Ora, eu irei a vós, quando passar por Macedônia; porque devo percorrer a Macedônia.
6. Mas é provável que convosco me demore, ou mesmo passe o inverno, para que me
encaminheis nas viagens que eu tenha de fazer.
7. Porque não quero ver-vos agora apenas de passagem, pois espero permanecer
convosco algum tempo, se o Senhor o permitir.
1. Cæterum de collecta quæ fit in sanctos, quemadmodum ordinavi Ecclesiis Galatiæ, ita
et vos facite.
2. In una sabbatorum unusquisque vestrum apud se seponat, thesaurizans quod
successerit, ne, quum venero, tunc collectæ fiant.1
3. Ubi autem affuero, quos probaveritis per epistolas, eos mittam, ut perferant
beneficentiam vestram in Ierusalem.
4. Quodsi fuerit operæ pretium me quoque profisci, mecum proficiscentur.
5. Veniam autem ad vos, quum Macedoniam transiero: Macedoniam enim pertransiturus
sum.
6. Apud vos autem forte permanebo, aut etiam hibernabo, ut vos me deducatis
quocunque proficiscar.
7. Nolo enim vos nunc in transcursu videre: sed spero me ad aliquod tempus mansurum
apud vos, si Dominus permiserit.
1. “C’est qu’en vn des Sabbaths (ou, que chacun premier iour de la sepmaine) chacun de vous
mette à part par deuers soy, thesaurisant de ce qu’il aura prosperé, afin que (ou, serrant ce qu’il
pourra par la benignite de Dieu, afin) lors que ie viendray, les collectes ne se facent point.” –
“Isto é, que num dos sábados (ou que em cada primeiro dia da semana) cada um de vós ponha
pessoalmente à parte, entesourando segundo tem prosperado (ou, pondo o que ele puder fazer
pela bondade de Deus), para que não se faça coleta quanto eu for.”
2. “D’inciter les Gentiles à subuenir à la pourete qui y estoit.” – “Incitar os gentios a aliviar a
pobreza que existia ali.”
3. “Quand on le fait pour deuotion, comme cela estant vn seruice de Dieu, et non pas pour la
police externe.” – “Quando é feito pela causa da devoção, como se fosse um serviço feito a
Deus, e não com vistas à administração externa.”
4. “On a par ci deuant traduit, amassant; mais i’ay mieux aimé retenir la propriete du mot Grec.”
– “A palavra diante de nós foi traduzida por depositar; mas preferi reter a força peculiar da
palavra grega.”
5. “Quas dederis, solas semper habebis opes.” (Martial. Ep. v.42.) Uma idéia afim ocorre nos
escritos do poeta Rabirius. “Hoc habeo, quodcunque dedi.” – “Eu tenho tudo quanto tenho dado.”
(Ver Sêneca, lib vi. de Benef.) Alexandre o Grande (como declarado por Plutarco), quando
interrogado onde depositava seus tesouros, respondeu: “Apud amicos” – “Entre meus amigos.”
6. “S’abusant a l’affinite des deux mots Grecs.” – “Entendeu mal pela semelhança entre as duas
palavras gregas.” A intenção de Calvino parece ser que o verbo εὐοδόομαι (ser próspero) usado
aqui por Paulo fora confundido com εὐδοκέω (parecer bem).
7. “C’est a dire selon sa commodite.” – “Isto é, segundo sua conveniência.”
8. “Paulo agora estava em Éfeso; pois quase todos admitem, em oposição à subscrição no final
da Epístola, que isso expressa ter ela sido escrita de Filipos, que ela foi escrita de Éfeso; e isso é
apoiado por muitos e fortes argumentos; e o versículo 8, aqui, parece colocar a questão fora de
toda e qualquer dúvida..” – Dr. Adam Clarke.
9. “As igrejas da Ásia vos saúdam, isto é, às igrejas da Ásia Menor. Éfeso estava nesta Ásia, e é
evidente à luz deste fato que o apóstolo não estava em Filipos. Estivesse ele em Filipos, como o
título expressa, teria dito: As igrejas da Macedônia, não as igrejas da Ásia, vos saúdam.”
10. “Ils le conduiront par tout où il ira.” – “Eles o conduzirão por onde quer que ele vá.”
11. “Tout ce que nous entreprenons et consultons.” – “Tudo o que empreendermos e
resolvermos.”
12. “De remettre à la volonte de Dieu tout ce que nous entreprrendrons pour le temps aduenir.” –
“Ao ponto de atribuirmos à vontade de Deus tudo o que empreendermos pelo tempo por vir.”
13. “Et, ou mais, il y a.” – “E, ou mas, há.”
14. “Que sainct Paul se sentant offensé par les Corinthiens, auoit attitré cela tout expres, qu’
Apollos n’allast point vers eux.” – “Que São Paulo, sentindo-se ofendido com os coríntios,
intencionalmente tinha decidido que Apolo não fosse ter com eles.”
15. “Sont comme vne yurongnerie sprituelle, qui assopit et estourdit l’entendement.” – “São como
a embriaguez espiritual, que faz a mente entorpecida e estúpida.”
16. Os manuscritos Alexandrino e Copta lêem: e Fortunato. A Vulgata lê: Fortunatum et Achaicum; em
concordância com a qual está a tradução de Wiclif (1380): “Que reconheceis a casa de Estéfanas
e de Fortunato.” A versão de Rheims (1582) lê: “Vós conheceis a casa de Estáfanas e de
Fortunato.”
17. “Selon que chacun stoit plus homme de bien et vertueux.” – “Em proporção quando um
indivíduo era homem honrado e virtuoso.”
18. “É evidente que o apóstolo”, diz o Dr. Brown em seu comentário sobre 1 Pedro, “tinha em
mente os membros das igrejas, quando recebessem esta Epístola, para que saudassem uns
aos outros; que não era improvável que sua intenção fosse que em todas suas reuniões
religiosas agissem assim. Que ele tinha a intenção de fazer disto uma ordenança perene em
todas as igrejas cristãs, ainda que às vezes é asseverado, nunca foi provado, e de forma alguma
é provável. Que a prática prevalecia extensamente, talvez universalmente, em seus primórdios,
é estabelecido sobre evidência satisfatória. ‘Depois das orações’, diz Justino Mártir que viveu na
primeira parte do segundo século, dando um relato em sua Apologia dos costumes religiosos
dos cristãos – ‘depois das orações abraçamos uns aos outros com ósculo.’ Tertuliano fala dele
como uma parte ordinária dos serviços religiosos no dia do Senhor; e nas Constituições
Apostólicas, como são denominadas, a maneira como ele era praticado é particularmente
descrita. ‘Então que cada homem à parte, e que cada mulher à parte, se saúdem
reciprocamente com um ósculo no Senhor.’ A Nota de Orígenes sobre Romanos 16.16, lemos: ‘À
luz desta passagem, o costume foi liberado às igrejas, para que, depois da oração, os irmãos
saudassem uns aos outros com ósculo.’ Este emblema de amor era geralmente praticado na
Santa Ceia. Era provável, à luz da prevalecência deste costume, que teve origem a calúnia de
que os cristãos se entregavam à licenciosidade em suas reuniões religiosas; e não é improvável
que, com o fim de remover tudo como uma ocasião aos caluniadores, a prática que, embora em
si mesma inocente, deixando de ser um costume edificativo, sofreu descontinuação.” – Brown’s
Expository Discourses on 1ª Peter, vol. iii. pp. 309, 310. “É notável que, pelo testemunho de Suetônio,
um édito foi publicado por um dos imperadores romanos, para a abolição desta prática entre
seus súditos – talvez com o fim de refrear abusos foi que nosso apóstolo ordenou que ela fosse
uma saudação santa.” – Chalmers sobre Romanos, vol. iii. p. 428.
19. A pátena era era um prato ou salva na qual a hóstia ou pão era colocado na observância da
missa. O termo é usado pelo Dr. Stillingfleet em seu “Preservative from Popery” (title vii.chap. v),
ao falar da prática da Igreja de Roma na adoração da hóstia: “O sacerdote em toda missa, assim
que ele tenha consagado o pão e o vinho, com genuflexos, ele adora o sacramento; aquilo que
ele mesmo consagrou, tudo aquilo que está diante dele na pátena e no cálice; e dá a mesma
adoração e sujeição, tanto do corpo quanto da mente, que ele poderia oferecer a Deus ou ao
próprio Cristo.”
20. “Par affection interieure.” – “Por afeição íntima.”
21. “Ou consistast en mine seulement.” – “Ou consistisse em mera aparência.”
22. “Ne cherchans que le proufit de leurs ventres, et leur propre gloire.” – “Apenas buscando o
proveito de seus ventres e sua própria glória.”
23. Calvino, ao comentar Gálatas 1.8, observa que o termo original ali empregado, anátema,
denota maldição, e corresponde à palavra hebraica !rj; e explica a expressão “que seja madito”
no sentido de “que seja tido por vós como maldito”.
24. “Car si nous aimons Christ purement, et à bom escient, ce nous sera vne bride qui nous
retiendra de donner scandale à nos freress.” – “Pois se amamos a Cristo sinceramente e de bom
grado, isto será um freio a restringir-nos de ofender nossos irmãos.”
25. “Que ce sont mots empruntez de la langue Syrienne.” – “Que são palavras emprestadas do
idioma siríaco.”
26. Beza, em seus poemas, registrou o seguinte tributo à memória desse homem eminente:
“Henrici Bullingeri, Ecclesiastæ Tigurini, spectatiss, doctrinæ pietatis, et eximii candoris viri,
memoriæ.” – “À memória de Henrique Bullinger, eclesiástico de Tigurum, homem eminentíssimo
por sua erudição e piedade, e extraordinária candura.”
27. Assim em 1 Reis 20.42 temos a expresão ymrjA`ya (ish cheremi), o homem de minha maldição, ou o
homem a quem eu anatematizo. Ver também Isaías 34.5; Zacarias 14.11.
28. Calvino, ao comentar Filipenses 3.5, tendo ocasião de falar da etimologia do termo fariseus,
diz que o considerava derivado – não como comumente se presumia, de uma palavra que
significava separado –, mas de um termo que denota interpretação, sendo este o ponto de vista de
Capito sobre ele – “sanctæ memoriæ viro” –, “um homem de memória sacra”. Beza declara, em
seu livro, Vida de Calvino, que quando em Basle Calvino viveu de uma maneira íntima com esses
dois homens eminentes, Simon Grynæus e Wolfgang Capito, e devotou-se ao estudo do hebraico.
– Calvin’s Tracts, vol. i. p. xxvii.
29. “Ayant excommunié, et declaré execrables ceux-la qui n’aiment point Iesus Christ.” –
“Havendo excomungado e declarado execráveis os que não amam a Jesus Cristo.”
30. “Μαρὰν ἀθὰ (Maran atha) é uma expressão siro-caldaica, significando ‘o Senhor vem’, isto é,
virá tomar vingança sobre os desobedientes e viciosos. Daí, com as palavras Anátema Maranata,
os judeus começavam seu processo de excomunhão.” – Bloomfield.