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‘Sintese NO 36 (1986) -— Pig, 5-10 Editorial IGREJA E CONSTITUICAO Fernando B. de Avila A Igreja no Brasil, através de sua ac¢ao pastoral, no campo social, pro- curou colaborar para a construgéo de uma sociedade justa e fraterna. Pode-se mesmo afirmar que o empenho nesta construgao foi o objeti- vo que revela o sentido e a coeréncia das numerosas iniciativas, pro- nunciamentos, campanhas desenvolvidas pela Igreja, na sua pastoral social, especialmente durante os anos dificeis do ciclo militar que se encerrou, com o advento da Nova Reptblica. A Igreja tem consciéncia que seu desejo de contribuir para uma socie- dade mais justa e fraterna passa agora por um esforgo de explicitar as exigéncias cristas de uma nova ordem constitucional. IMPORTANCIA DO MOMENTO POLITICO O Brasil atravessa um momento politico grave. As opcgdes a serem fei- tas neste momento seréo decisivas para o futuro da nacdo diante da alternativa com a qual ela se defronta. A alternativa é a seguinte: ou preparar 0 caminho para a consolidagdo de uma democracia realmen- te participativa com a elevagdo das condi¢ées de vida da populacao a niveis de decéncia social; ou perder esta oportunidade histérica, esva- ziando o sentido de novidade que se pretende garantir 4 atual expe- riéncia politica brasileira. Por outras palavras: trata-se ou de optar por construir algo de realmente novo, ou de oferecer 4 nagao o triste espetéculo de um mero revezamento no poder de liderancas pol/ticas presas aos mesmos interesses partiddrios, preocupadas com os mes- Mos caiculos eleitoreiros, vitimas dos mesmos vicios politicos e ape- nas retoricamente empenhadas com as mudangas profundas e radicais nas quais a nado deposita a sua esperanca na novidade da Republica que se anuncia. 5 Perdida esta chance histérica, a frustragao do povo poderia precipitar a nagdo num processo de turbuléncia social de conseqdéncias impre- visiveis. As disparidades sociais e regionais se acentuariam até aproxi- mar-se perigosamente da situagao de um apartheid social, no qual, se- tores minoritérios altamente modernizados da sociedade seriam sub- mersos na inundacae crescente da pobreza, da indigéncia e da misé- a. Esta situagdo extremamente injusta, a ponto de tornar-se ameagado- ra, exige, como primeira condigéo de sua superagéo, uma profunda reforma das instituic¢des, reforma que deveré consolidar-se num novo pacto constitucional. O SENTIDO DA CONSTITUIGAO A rigor, o Brasil néo possui uma Constitui¢&o. Possui uma Emenda Constitucional outorgada em 1969 pela Junta Militar entao no poder. Tal emenda se destinava a dar maiores poderes discriciondrios ao regi- me militar instatado pelo golpe de 1964, O Governo militar se extinguiu submerso pelas grandes mavimentos civicos que se estenderam a toda a napdo, em 1984. Inaugurou-se um regime politico, J4 denominado de Nova Republica. Um novo regime nao pode continuar a funcionar como uma vetha constituigao, inade- quada as novas realidades e incapaz de responder aos novos anseios da nado. Uma Constituig&o, com efeito, é 0 pacto institucional fundamental que deve regular toda a vida da nagéo. E a lei bdsica que consagra as grandes normas com as quais se devem conformar todas as leis. E a Carta magna 4 qual compete, em linhas gerais, sem entrar em minu- déncias regulamentares, A nagao esté vivendo o processo constituinte, através do qual vai ex- plicitando suas aspiragGes e anseios e vai discernindo aqueles que me- thar a deverao representar na assembléia a ser eleita no dia 15 de no- vembro. E um momento privilegiado de educagao e conscientizagio politica do povo. A participagao do povo neste processo é de uma importéncia decisiva. S6 um povo que participa assumiré a futura Constituig#0 como obra sua: saberé comprometer-se com ela e exigir a sua urgéncia. A Igreja, que caminhou junto a este povo no periodo dificil que se encerrou, néo poderd omitir-se no momento decisive 6 que inaugura um novo periodo de vida nacional. A COLABORACAC DA IGREJA E dificil compreender a atuacao pastoral da Igreja no Brasil sem refe- ri-la a um fato de capital importancia, A I!greja chegou a uma cons- ciéncia clara de duas realidades: a primeira, o Brasil 6 hoje numerica- mente a maior nacdo catélica do mundo; segunda, o Brasil é hoje um dos paises do mundo marcado pelas maiores disparidades sociais. Es- ta dupla constatacao tem despertado na Igreja uma crescente preocu- pagdo por sua responsabilidade evangelizadora. Se nenhuma ideologia tem exigéncias sociais mais radicais do que as decorrentes da fé no evangelho, na Boa Nova de salvacao, nao é tolerével que o maior pais catélico do mundo seja incapaz de demonstrar ao mundo que, a par- tir da fé, 6 possivel construir uma sociedade justa e fraterna. & a consciéncia desta dupla realidade que permite entender a coerén- cia da atuagdo da Igreja, no campo da pastoral social, coeréncia que nado elimina tensées e contradi¢ées: a Igreja optou pelas mudancas profundas e radicais, mas rejeitou sempre a violéncia como meio de realiza-las. Esta op¢ao, em sua dupla dimensdo, pela mudan¢a e con- tra a violéncia, foi reconhecida como pastoralmente valida, em ine- quivocos pronunciamentos do Santo Padre, por ocasido de sua visita 4 nossa Patria, Nao era, contudo, uma opgado cémoda. Situava-se entre fogos cruza- dos: de um lado, os que se beneficiavam fartamente de uma situagao de injustica social; de outro, os que a acusavam de reformismo e se impacientavam por transformar em juta ostensiva os conflitos laten- tes gerados pela mesma injusti¢a. A nagéo amadureceu no sofrimento destes longos anos de arbitrio e da diffcil conjuntura por eles legada. O amadurecimento se processou na linha de coeréncia assumida peta Igreja. Hoje, existe um signitica- tivo cansenso nacional pela necessidade das mudangas, e pela necessi- dade que estas mudangas se realizem dentro dos espagos democrati- cos abertos pelo novo regime. Estamos vivendo 0 momento histérico no qual a Igreja continuando na sua linha de coeréncia, deve colaborar ativamente para que este Novo pacto, dando uma base constitucional 4s mudangas inadidveis, canalize, para a construgéo de uma nova sociedade, os dinamismos que se desperdiciariam em conflitos e violéncias de altos custos so- 7 ciais e humanos. Dentro deste objetivo, a colaboragao especitica da Igreja deverd Orientar-se principalmente para aquelas éreas onde estéo em jogo va- flores éticos fundamentais. Ela tem consciéncia que, sem a preserva- ¢ao destes valores, as mudangas ou serdo frustradas, gerando confli- tos, ou serviréo de pretexto para atropelar direitos inaliendveis da pessoa humana. Entre estas dreas ressaltam como de maior importan- cia: a organizac¢ao do poder a servigo do bem comum e os direitos re- lativos 4 vida, a familia, 4 educacao, ao trabatho e 4 propriedade que possibilitem uma convivéncia social mais humana e fraterna. A nao brasileira no esta se dando conta de uma enorme mistifica- ¢do de que estd sendo v/tima por parte das minorias ruidosas orques- tradas por certos meios de comunica¢ao social, A mistificagéo consiste em inculcar como elementos da identidade cultural brasileira as formas mais degradantes de permissividade que atentam contra valores fundamentais como a dignidade do corpo hu- mano, 0 direito 4 vida, 4 sacralidade da familia. A difuséo impune desta mistificacgéo é particularmente grave num momento em que o Brasil se prepara para definir 0 novo pacto insti- tucional a ser consolidado na Constituigéo da Nova Republica. Existe o risco real de se pretender dar acolhida constitucional a com- portamentos aberrantes, pelo simples fato das dimensdes que the sao atribufdas pelos meios de comunicagdo. Cabe ao Direito regular os desdobramentos provocados pela evolugao da dindmica social de um povo. Mas esta regulagao tem fimites impostos por um Direite maior, uma ética fundada na mais profunda experiéncia humana, Perder de vista estes limites gera um processo cumulativo que estimula formas mais ousadas de permissivismo capazes de pressionar no sentido de novas concessées juridicas que acabam se tornando verdadeiras abdi- cagées da nobre funcao do Direito. A PARTICIPAGAO DO POVO A Igreja, 6 0 sacramento da unidade, do povo de Deus, o sinal vistvel e eficaz da reconciliagao a ser celebrada na acao de gragas, a eucaris- tia, para acolher a vida comunicada por Crista através de seu Espirito € promover o Reino de Deus com todos os homens de boa vontade. 8 O povo brasileiro é um povo que, na sua grande maioria, conserva a fé cristé que recebeu através de quase 5 séculos de evangelizapao, fé sin- cera e profunda, néo obstante as contaminagées do sincretismo @ a4 nix devastacdes do eomeistiio permissivista. Neste momento importante me da vida nacional, é indispensave! que este povo, majoritariamente ca- télico e crist3o, tome consciéncia de sua forga. Ele néo pode deixar- se submergir numa espécie de anonimato catélico, deixande que mi- norias ruidosas ocupem a arena do debate constitucional. Num espa- ¢o cultural e pluralista, 0 povo de Deus tem o direito de levantar sua voz em defesa de valores que se identificam com os auténticos valores fumanos. Nao é necessdria uma andlise sofisticada da realidade social para cons- tatar que 0 povo brasileiro rejeita a sociedade que af est: que ele tem anseios e aspiragGes voltadas para mudangas profundas e radicais. Agora ele tem a chance de realizé-las através de uma participagao ati- va no debate constituciona!l que j4 comecou com oa processo consti- tuinte. E uma chance nova para milhares de brasileiros que nunca Participaram de um tal processo. A elaboragdo da Constituig¢ao nao 6 monopélio de peritos na ortogra- fia constitucional. A presenca destes é indispensdvel para dar forma articulada ao texto final. Mas é a participacdo do povo que deverd de- finir 0 seu contetido, ‘sso nao constitui tarefa de tal modo dificil que deva ser reservada a juristas e a especialistas. Quaquer brasileiro tem condicéo para parti- cipar do debate da Constituinte. Basta que ele reflita sobre as condi- ¢6es de sua vida, de sua familia, de seu trabalho, da realidade em que elas estado inseridas, para poder discernir 0 que pode ficar e o que de- ve mudar, Refletindo sobre esta realidade, que ele conhece porque a sofre na prépria carne, qualquer brasileiro tem uma patavra a dizer sobre como a sociedade deve se organizar, como deve funcionar no cumprimento dos deveres e no respeito dos direitos do governo, dos cidadaos e de todas as instituigdes intermediérias. O importante é ndo se omitir para néo chegar atrasado. Entretanto, para que esta participacdo de todos seja eficaz, é indis- pensdvel definir conteudos minimos necessdrios, sobre os quais os cristéos devem estar de acordo e pelos quais devem lutar. Esta futa néo se identifica com uma campanha por um moralismo conservador que, sob a retérica de um discurso moralizante, esconde a defesa de interesses egoistas ou classistas. E ura luta por resgatar a dignidade do homem e da mulher, no cendrio do novo horizonte cultural em 9 que vivemos, para construir uma sociedade onde seja possivel viver com decéncia e sem medo.

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