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A ENCfCLICA “ECCLESIAM SUAM” FE A CONSCIENCIA CATOLICA BRASILEIRA PR. FERNANDO Bastos bE AviLa S. J. et eneiclica Ecclesiam suam aio foi tales 0 que rava a opinido publica, nem mesino a opiniéo da maioria dos catélicos, Aguardava-se, com impaciéncia, vu primeire pro- nunciamento de Pavio V5, Acreditava-se que viria proton- gar cerias linhas abertas por JoKO XXIII, engajando-se logo ‘nos grandes problemas da atuilidade. Nao joi isso, porém, o que acontecen, Certas agencias internacionais ¢ determina- do setor da imprensa nacional procuraram. desde logo veicular alguns techos fragmentirios do documento, no qual se repe- liane condenagdes eo comunismo. Quando se conheceu a in- degra do texto, parecen a muitos wma siinples exorlagde que nio se dirigia aas interésses do grande priblico. Por isso. apenas alyuns jornais se decidiram a publicé-la, Os mais en- volverain-na no silencio. Silencio injusto, porque, se nia obje- tiva dirctamente problemas politicos, econémicos ¢ socias draz unta resposia a problemas agudos, a crises projundas que atormentam a cons ia brasileira, como w con. cia catdlica de muitas outras nagées. E a repercussio da pala- vra do Papa dirigida especialmente a [yreja, & sna Tyreja — Ecclesia sua — que, urste comenidrio, sv procura wos- trar, analisando 0 modo como repercutia sobre os virios tipos que caracterisam a consciéncia catélica nucional, O. tipy pacifico, que nao foi afetade pela revolugdo de abril; 0 tipo sem consciéneia, que vive apenas o préprio egoisie; o tipo fraumatigado, que aceilava em parte o jogo comin corm as esquerdas @ que sentiu fortemente o choque da revolucda; 0 tipo perplero dos que nao enzeryam o cuminho a tomar e, enfin, 0 tipo euférico, que confunde simplesmente a vititia do movimento com uma acreditada vitéria do bem sdbre o mat, da Igreja sébre a comunisina. sumo Pontifice PAULO VI nio pretende esquivar-se aos grandes problemas contemporaneos, e especialmente ao grande e fundamental problema da paz, de cuja honroso. 12 a 4 ENCICLICA “ECCLESIAM SUAM” solucao depende a solucio de todos os graves problemas da humanidade de hoje. Mantendo-se no seu plano, sem se deixar envolver nos aspectos politicos da questio, Ele se re- serva para, em ocasido oportuna, pronunciar-se sdbre o assunto, Depois de apresentar no prdélogo o esquema geral do documento, observa: ‘‘Notareis certamente que éste su- mario ... nao inclui alguns temas urgentes e graves que interessam nado s6 4 Igreja mas 4 humanidade, como: a paz entre Os povos ¢ entre as classes sociais; a miséria e a fome que ainda afligem povos intciros; 0 acesso das nagdes novas a independéncia e ao progresso civil; as relagdes entre o pen- samento moderno ¢ a cultura cristé; as condigdes infelizes de tanta gente ¢ de tantas partes da Igreja a que sio con- testados os direitos prdprios de cidadaos livres e de pessoas humanas; os problemas morais da natalidade e outros se- melhantes. A grande e universal questao da paz no mundo, sentir-nos-emos particularmente obrigado a dirigir nao s6 a nossa ateng3o vigilante e cordial, mas também o inte- résse mais assiduo e eficaz. Limita-se, é certo, ao ambito do nosso ministério e estd, por isso, alheio a qualquer interésse puramente temporal e no opta por formas prdpriamente politicas. Desejamos, sim, contribuir para inculcar 4 huma- nidade sentimentos e atitudes que se oponham, por um lado, a quaisquer conflitos violentos e mortiferos, mas que, por outro, favoregam todos os ajustes cordiais razodveis e paci- ficos das relagGes entre os povos. E teremos igualmente cui- dado de ajudar a convivéncia harménica e a colaboracdo frutuosa entre as nacées, proclamando principios humanos superiores, que possam ajudar a moderar egoismos ¢ paixdcs, que originam os conflitos bélicos. Procuraremos também in- tervir, quando se nos ofereca oportunidade, para ajudar as partes contendentes a chegarem a solugdes honrosas e fra- ternas. Nao nos esquecemos que éste servicgo benévolo é um dever que o amadurecimento, nao sé das doutrinas, mas também das instituigSes internacionais, torna hoje mais ne- cessdrio na consciéncia da nossa missao crista no mundo, cujo objeto inclui tornar os homens irmios, porque é¢ reino de justiga e de paz o inaugurado pela vinda de Cristo ao mundo”. 1s '. FERNANDO BASTOS DE AVILA S. J. A primeira preocupacao do Papa, entretanto, se fixa em um outro ponto: antes de mais nada, Ele quer entender-se com seus proprios filhos. A Ecclesiam suam é uma carta de familia; uma carta de pai a filho. O pai quer evocar a seus filhos os valéres fundamentais comuns que devem ser a base a partir da qual, coerente ¢ coesa, a Igreja reagira em face dos problemas modernos. O Papa, que, na terceira e mais longa parte da enciclica, abordara o delicado problema do dialogo com o mundo nio-catdlico, quer primeiramente entabular o didlogo com seus proprios filhos. Quer certifi car-se de que na familia nao ha equivocos, porque um voca bulario comum traduz uma mesma hierarquia de valdres: “Nao ambicionamos dizer coisas novas nem completas; para isso ai esta o Concilio Ecuménico Nem quer esta nossa enciclica revestir-se de carater solene e propriamente doutri- nal, ou propor ensinamentos determinados, morais ou so- ciais; quer ser apenas mensagem fraterna e familiar. Sé de- Sejamos, com éste escrito, cumprit o dever de vos abrir a nossa alma, com a intengio de dar maior coesdo e maior alegria 4 comunhao de fé e de caridade que reina felizmente entre nds...” Esta preocupaga’o primeira do Papa lhe é inspirada, entre outras razées, pela situagio concreta da Igreja, no mundo moderno, Este mundo, dispondo de formidaveis meios de influéncia que the sio conferidos pelo progresso cientifico, técnico e social, atua sobre a Igreja, condicionan- do nao sé os habitos, comportamentos e atitudes de seus filhos, mas até seus modos de pensar. Até onde terd ido esta influéncia do mundo sdbre os filhos da Igreja? Tera ela avancado tanto a ponto de atingir os prdéprios valéres essen- Cli E o primeiro problema que importa esclarecer e enfren- tar: ‘Todos sabem que a Igreja estd mergulhada na huma- nidade, dela faz parte, nela vai buscar os seus membros, dela extrai tesouros preciosos de cultura, dela sofre as vicissitu- des histéricas e trabalha pelo seu bem. Ora, ¢ sabido igual- mente que a humanidade no tempo atual esta em vias de grandes transformacées, abalos e progressos, que lhe modi- ficam profundamente nao sé o estilo de vida no exterior u“ a A ENCICLICA “ECCLESIAM SUAM” mas também o modo de pensar, O pensamento, a cultura eo espirito sofrem modificag4o profunda, originada no pro- gresso cientifico e social, como também nas cortentes do pen- samento filoséfico e politico, que a invadem e penetram. Tudo isto, como ondas do mar, envolve e¢ sacode a Igreja. As almas, que a ela se confiam, s40 muito influenciadas pelo clima do mundo temporal; de maneira que um perigo quase de vertigem, de aturdimento, de extravio pode abalar a soli- dez. dos seus membros e¢ levar muitos a admitir os pensa- mentos mais desvairados, como se a lgreja houvesse de ne- gar-se a si mesma ¢ adotar formas novissimas e nunca ima- ginadas de viver'’. A consciéncia clara desta situagio revela que a Igreja aceitou a definitiva superacgdo daquilo que se poderia cha- mac de uma visualizagdo medieval do mundo e da cultura. Esta visualizagao tinha como premissa implicita a coincidén- cia entre as dimensdes da [greja e os horizontes do mundo e da cultura. E era neste sentido quase geografico que se entendia a catolicidade. Mais ainda: a Igreja era a totalidade envolvente, permeando o mundo ¢ a cultura com a sua in- fluéncia, Hoje a Igreja se aceita como inserida no mundo e na cultura, permeada pelas suas influéncias tremendas ¢ ambiguas, Ela chega assim a uma vis4o muito mais realista de suas proprias dimensdes e sua catolidade recebe um sen- tido muito mais dinamico, pelo qual a idéia de conquista e de destinacao universal substitui a idéia de ocupagao defi- hitiva. Ela pode assim medir, com mais realismo, as dimen- s0es de sua missdo e os riscos que esta comporta. * Tenho a impressio de que esta preocupagio do Santo Padre de entrar na onda sintonizada pelos seus filhos é de uma admirAvel atualidade para seus filhos no Brasil. No catolicismo brasileiro de hoje distingo varios tipos de consciéncia. Sao tipos; portanto, resultados de uma ela- borago tedrica, de um trabalho abstrativo, Nao se encon- tram na realidade @ I’érat pur, mas servem para compreen- dec melhor a complexidade do real. 18 PE. FERNANDO BASTOS DE AVILA S. J. Ha muitos tipos de consciéncia catolica no Brasil de hoje, mas, entre todos, quero apenas focalizar aquéles sobre os quais os Ultimos acontecimentos politicos nacionais exer- ceram um impacto mais violento, a ponto de constituirem para alguns ocasido de uma verdadeira crise retigiosa. Para éles é que acho que a enciclica chegou especialmente na hora. Excluo, pois, desta andlise, por exemplo, as consciéncias pa- cificas, que, depois dos acontecimentos mencionados, conti- nuaram a desempenhar-se honestamente de seus deveres, como o procuravam fazer antes. Para éles, que talvez sejam maioria, a revolucgdo de abril ndo criou propriamente um problema de consciéncia, neste sentido que nao se sentiram solicitados por cla a assumir uma atitude diversa da que vinham sempre assumindo e que constituia o chao mesmo de suas vidas. Para todos éstes catdlicos, a enciclica tem aquéle valor exortatdério e permanente de todos os documen- tos pontificios. Nao tem a significagaéo de uma resposta a uma situacao nova e especifica. Excluo também os catolicos sem conscténcia crista, que infelizmente os ha, os catdlicos de nome, que, antes como depois da revolugao, vivem exclusivamente para o proprio cgoismo. Pretendem capitalizar uma presenca catélica na 1evolugao, na medida em que isto pode servir a seus inte- résses. Nao vale a pena falar-lhes de enciclica que nunca to- maram realmente a sério. Trés tipos de consciéncia catdlica, entretanto, me pare- cem merecer maior atencio, porque mais atingidos pelos acontecimentos nacionais e porque todos tém a caracteristi- ca comum, em sentidos diversos, de engajar sua prdpria vivéncia religiosa no processo histérico de que participam. O primeiro déstes tipos de consciéncia chamaria de consciéncia traumatizada, Compreende certa faixa de caté- licos que estavam profundamente comprometidos no pro- cesso histérico brasileiro anterior 4 revolugdo. Como catéli- cos, conheciam claramente a incompatibilidade doutrinal entre cristianismo e comunismo. Como catdlicos, nao parti- cipavam da corrupcdo. Aceitavam, porém, o jogo comum com as fércas de esquerda, porque viam nelas um impulso capaz de ajuda-los a preparar o advento de nova ordem so- 16 nr A ENCICLICA “ECCLESIAM SUAM”" cial mais humana e mais crista. Para o meu propdsito aqui, nao interessa formular um juizo de valor sdbre o contetido desta consciéncia. O importante, no momento, é notar que a revolugio representou para éles a ruptura de um processo, © desmoronar de uma esperanga. Os catdlicos desta faixa se fecharam na sua decepcao, numa atitude de revolta, e se recusam a colaborar. Primeiro, porque, para éles, o atual govérno, querendo ou no, é ou sera inevitayelmente o ins- trumento do “‘gorilismo” e das “‘fércas ocultas”. Preferem ficar de lado, esperando a oportunidade para se reestruturar, talvez ja se reestruturando, num ambiente que confere a sua atitude a seducao do que é conspiratério, a atitude de maquis, Segundo, porque colaborar significaria o repudio de sua atitude pré-revolucionaria, o que, parece-Ihes, impli- caria aceitar que tinham etrado, e uma tal revisdo de atitu- des é dificil e penosa. Um segundo tipo é a consciéncta perplexa. Talvez ja represente um estadio ulterior de evolugao da consciéncia lraumatizada. Entram neste tipo os catélicos que, antes da revolugao, se alinhavam com os catdlicos do tipo anterior, mas que, agora, ja comegam a perceber certa falta de sentido em manter indefinidamente uma posicdo negativista, Come- cam a sentir a exaust4o de um rancor estéril. Estio perple- xOS porque se perguntam como empregar seu idealismo e dinamismo na tarefa humana e crist4 que sempre os empol- gou, que se lhes afigurava como sua responsabilidade de crist3os, sem que tal atitude possa ser interpretada como oportunismo, como adapta¢gZo habil as novas circunstan- cias. Querem prescindir do que houve, para continuar a ser © que eram, mas nao sabem como fazé-lo sem parecer opor- Tunistas. Enfim, um terceiro tipo se poderia chamar de conscién- cia euférica, & a consciéncia de alta percentagem de catdli- cos que identificaram pura e simplesmente a vitéria da revo- lucko com a vitoria da Igreja sébre o comunismo, da hones- tidade s6bre a corrupcdo, do bem sébre o mal. Parece que ha certa simplificagdo no tragado que define essas fronteiras, e as dificuldades internas, as contradigdes que se exacerbam no seio da revolucao deixam ver claro que nem todo o mal. 17 PE, FERNANDO BASTOS DE AVILA S. J. nem toda a corrup¢io estavam exclusivamente do Jado de la. Mas, o que importa reter para compreender essa consciéncia euférica ¢ o fato que, na medida em que ela se engajou na uta, estava sinceramente convicta de que era éste o sentido concreto de seu engajamento cristao. Para éles, na conjun tura precisa em que se vivia, ser catdlico se traduzia concre- lamente em lutar pela revolucio, isto é, lutar contra 0 co munismo, Qualquer outra atitude, ou qualquer outro mé- todo de jutar contra 0 comunismo, era, para éles, conivén- cia, cumplicidade, quintacolunismo, inocéncia util. Nao entro no mérito da quest4o de saber se tinbam ou n3o razio em téda a linha. O que é mister sublinhar aqui é que nessa atitude de consciéncia estava em jégo um problema de au tenticidade crista, como era éste o problema de fundo dos outros tipos de consciéncia ji analisados. * A enciclica Ecclesiam suam consta de trés partes, inti- tuladas respectivamente: conscténcia, renovagao, didlogo. trés titulos, como se vé, que evocam no meio catdlico bra- sileiro temas de grande atualidade. Na primeira parte, o Papa procura levar a Igreja, em cada um de seus filhos, a “aprofundar a consciéncia de si mesma, meditar sdbre o seu mistério, investigar. .. a doutrina relativa a sua origem natureza, missao, e destino”. A segunda parte tem por obje- to “‘comparar a imagem ideal da Igreja, qual CRIsTo a viu. quis e amou... com o rosto que ela apresenta hoje de onde vira 4 Igreja a necessidade nobre ¢ quase impaciente de se renoyar’’. A terceira parte, enfim, define “quais as rela- gGes que a Igreja deve hoje estabelecer com o mundo que 2 circunda e em que vive e trabalha’’. A meditacéo das trés partes do documento pontificio, numa atitude interior de disponibilidade filial, que ¢ aquela que o Sumo Pontifice pede a seus destinatarios, faria um bem imenso a cada um dos tipos de consciéncia que analisei. Revelaria, alias, a todos que muito mais € 0 que os une do que © que os separa. Entretanto, tenho para mim que cada um dos tipos de consciéncia encontraria em determinada 18 en A ENCICLICA “ECCLESIAM SUAM” parte da enciclica uma mensagem que lhe ¢ particularmente adequada ¢ oportuna. x A primeira parte tem um sentido todo especial para a conseténeia traumatizada ¢, indiretamente, para a conscién- cia perplexa. Dois pontos fundamentais resultam desta primeira parte. Primeiro: o que ha de mais importante hoje, para cada cristo em particular e para toda a [greja em geral, ¢ a redescoberta de sua relagao vital com CRISTO. Ser cristao é estar vitalmente vinculado a CRISTO, articulado nEle, Amputado de CRISTO, 0 cristo morre, e morrer enquanto cristdo, isto é, perder a vida de CRISTO, é pata o cristao, o mais mortal dos suicidios. Segundo: a articnlagao do cris- tao em CRISTO se faz na Igreja e pela Igreja. A mutilagao da Igreja interrompe, no cristao, a circulagia da vida de Crisvo. Dai, seguir-se que ser membro da Igreja constitui, para 0 cristo, uma questao vital. B ponto que éle nao pode colocar em problema, como nao pode colocar em problema © seu prdprio suicidio. Tal perspectiva revela a relatividade que assumem para © cristao todos os mais problemas, ou melhor, The revela © ponto-de-vista, a partir do qual, e em fungao do qual, éle deve formular todos os mais problemas e principalmente o problema fundamental da autenticidade crist3. B éste, certamente, o mais grave problema da conscién cia catélica brasileira, ao menos daquela consciéncia que se formulon o problema, como é 0 caso da grande maioria da consciéncia hoje traumatizada e perplexa. E éste problema precisamente que a enciclica procura recolocar em seus devi- dos térmos. A compreensio da linha de solucio proposta pela enciclica pode significar a recuperac3o do traumatismo, a superacao da perplexidade. A sua nio-compreensio ou repulsa pode evoluir para uma “‘protestantizacdo”’ déste setor da consciéncia catdlica brasileira, onde se encontram nio poucos verdadeiros lideres, cuja pureza de intencdes, valor intelectual e sensibilidade social nao podem ser postos em divida. 19 PE, FERNANDO BASTOS DE AVILA S. J. Qual é éste problema da autenticidade cristd, e como éle se formulou para a consciéncia hoje traumatizada ¢ per- plexa? O problema surgiu de uma experiéncia social; mais exatamente, de uma visao aguda e lucida da condigio de demissao humana em que vive milhdes de irmaos, sem a possibilidade de emergir desta condicao. Esta visao deci- diu-os ao engajamento, ao compromisso de sua vida dedi- cada A fibertagao e 4 promogao de seus irmaos. Depois de um periodo de hesitagao em busca de uma linha de agio eficaz, decidiram-se por uma orientagao que, na ¢poca, se chamou revoluciondria, tendente 4 eliminagao das estruturas vigentes, se necessdrio, por meios violentos, e 4 implantagao de um modélo socialista. Nesta linha de agdo, aceitavam explicitamente a cooperag4o de fércgas estranhas, inclusive romunistas, Nao me cabe julgar se pecaram por ingenui- dade, nem se au cours de route, outras correntes vieram con- taminar a pureza do veio primitivo. O importante é ter Presente que éles estavam profundamente convictos de que aquéle engajamento era a expressio mesma de scu cristia- nismo, mais ainda, era a tnica atitude auténtica de um cris- tio. Estavam convencidos de estar realizando, do Unico modo eficaz, o que ha de mais essencial no cristianismo, 0 mandamento do amor. Para éles, qualquer outra atitude em um ¢atdélico provinha, ou do fate de nao ter a visio da realidade que éles tinham — como era o caso dos catolicos ingénuos; ou do fato de nao terem a coragem de aceitar 0 amor cristdo até as sttas ultimas conseqiéncias como era © caso dos catélicos comprometidos com as estruturas ca- pitalistas. Acontecia, porém, que muitos catdlicos, incluindo grande parte da hierarquia, discordavam da linha de acgio adotada e repeliam o modélo socialista visado, e o faziam nao necessariamente por falta de visio ou de coragem, mas também por motivos doutrinais solidamente fundados. A luta se travou neste plano, na critica da acio e do modélo, e féz esquecer, ou nao permitiu que se reconhecesse, ou Ievou a que se negasse, o sentido primeiro do seu engajamento, No cntanto, para éles, era neste plano mais profundo que se 20 a uma [greja que nado conh batismo cuja imensa sign’ a A ENCICLIVA “ECCLESIAM SUAat” formulaya o verdadeiro problema: o problema da autenti- cidade crista. Incompreendidos pelo que se poderia chamar de catolicismo oficial, comecaram a reclamar-se de um cris- lianismo evangélico, Este tema inspirou, na época, téda uma literatura que redescobriu e revelou, com névo vigor, pro- fundos valdres cristaos, mas que, no quadro de referencias cm que emergia. adquiria um sentido cada vez mais anti- eclesial ou anticclestastico. A crise ia-se configurando sem- pre mais nitidamente, crise que, na sua expressio aguda e tinal, teria vindo inevitavelmente a se formular nos seguin- tes térmos: deixar a Igreja, para ficar com Cristo. Genuina crise de protestantizagao que nao chegou a eclodir porque os acontecimentos se precipitaram com o advento da re- volugao. Mas, a crise n3o esta superada eo problema da auten- ticidade crista, para ¢les, nao esta resolvido. Alguns, e in- felizmente nao foram poucos, como tinham pouca ou ne- nhuma formacio eclesial, renunciaram pura e simplesmente ciam e 4 qual pertenciam por um ‘acdo, para a vida de um cristao, jamais conheceram. Vale isto dizer que a crise para éles re- sultou num gesto de apostasia? Nao cremos que seja pos- sivel formular um juizo tio peremptorio. Foi por seu en- gajamento que chegaram a conhecer o cristianismo e des- cobriram a face de CRISTO sofredor. Poderao ser éles, ¢ sd éles, responsabilizados de nao terem reconhecido ésse CRISTO na sua Igreja? Eston convencido de que ninguém se encon- tra uma vez com CrisTo, seductor tlle, impunemente. Por isto me recuso a crer que sua experiéncia se tenha reduzido a um saldo puramente negativo. Qs outros, que dispunham de melhor formacio reli- giosa, prolongaram o mais possivel a formulacio do proble- maem térmos de um dilema exclusivo. Mediam em téda a sua importancia a gravidade da opgdo. Tinham formacio cclesial suficiente para pressentir que uma ruptura com a igreja visivel, ou com os representantes visiveis da Igreja, pode néo ser uma simples questao disciplinar., Pressentiam que esta ruptura podia atingir as fontes mesmas de abasteci- mento daquele cristianismo, em cujo nome éles se engajavam. at PE, FERNANDO BASTOS DE AVILA S. J. Pressentiam que, em Gltima andlise, a ruptura com a Igreja, em nome do cristianismo, ia coloca-los diante da interroga- cdo final ¢ decisiva: em nome de que cristianismo? Porque afinal sabiam que foi 4 Igreja visivel que CRISTO se entre- gou. Sabiam que, independentemente do valor moral ou in- telectual dos representantes visiveis da Igreja, é nela e por ela que, para éles, passa o caminho para Cristo. Sabiam que a ruptura, levada a suas ultimas conseqgiiéncias, termi- Naria num ingldrio ¢ estéril gesto de rebelido e acabaria por ficar definhando, 4 margem da grande corrente de vida. O epilogo de uma espécie de nova Igreja Brasileira era melan- colico demais para tanto idealismo inicial. ‘Todo o problema da autenticidade crista se concentra, assim, em térno desta quest4o: é possivel ser fiel ao enga- Jamento cristao, renunciando a [greja? Vimos que € precisa- mente esta questao que a primeira parte da enciclica enfrenta, respondendo pela negativa. Dai a sma atualidade: dai sua significagao téda especial. para nossas consciéncias trauma- tizadas. * A segunda parte da enciclica traz um subsidio espe- cialmente indicado para a consciéncta perplexa, oferecendo- Ihe a possibilidade de superagio de sua perplexidade. Esta possibilidade reside na apreensao do verdadciro sentido de renovacio para a [greja. O problema da consciéncia perplexa ¢ 0 de viver sua antiga vocac4o crista, em circunstancias novas, sem que isto implique compromissos desairosos. E o problema de pre- servar a essencialidade, nas mutag6es do acidental. F preci- samente éste o sentido da renovacao na Igreja, como o de- fine o Papa, quando recorda os critérios segundo os quais a renovacio, a reforma devera ser promovida. O primeiro critério sugere que a renovacio ‘nao pode abarcar nem © conceito essencial nem as estruturas funda- mentais da Igreja Catdlica’’. Trata-se, antes de tudo, de pre- servar o essencial. O segundo critério indica que reforma, na Igreja, nio significa mudanga, mas garantia de continuidade, de identi- 22 mmm A ENCICLICA “ECCLESIAM SUAM” dade consigo mesma, pelo esférgo de manter nela a fisiono- mia que CrusTOo Ihe deu, desenvolvendo-se conforme o mo- délo por Ale previsto. O critério nao importa a exigéncia de um fixismo senil nem de um primitivismo obsoleto que visse a renovagdo da Igreja de hoje numa simples volta as formas primilivas, sem levar em conta as expansdes legi- limas de sua vida e de seu progresso. Nio se trata para a arvore de se fossilizar nem de voltar a ser semente, mas de crescer, que é mudar permanecendo a mesma, numa impe- recivel fidelidade 4 prdépria forma. Os catélicos perplexos aspiravam também uma reno vagio. Eles também eram possuidos por uma preocnpacio de autenticidade crista, de redescoberta de um cristianismo evangélico. Deveriam ficar agradavelmente surpresos verifi- cando que éste também ¢ 0 desejo da Igreja. Ela também deseja renovar-se, ¢ o critério de sua renovacio nio é um critério extrinseco, mas interior. Nao é a preocupacao le- viana de condizer com as mutagGes sempre instaveis do am- biente, mas uma preocupagao de fidelidade a seu proprio espirito, melhor, ao Espirito que nela habita: ‘Se pode- mos falar de reforma, nao devemos toma-la como mudanga, mas sim como confirma¢io no esférgo para mantermos na tgreja a fisionomia que lhe imprimiu CRISTO; mais ainda, no esférco para a reconduzir sempre 4 sua forma perfeita, correspondente. por um Jado, ao designio primitivo do Fun- dador, e, por outro, reconhecida como conseqiiente ¢ legi- tima no progresso necessétio. Como da semente se origina a Arvore, assim daquele designio vem 4 Igreja a sua forma legitima, histérica e concreta, Nio nos iluda o critério de ieduzir o edificio da Igreja, que se tornou amplo e majes- toso para a gléria de Deus, como templa seu magnifico, de o reduzir as suas primeciras proporcées iniciais e minimas. como se estas fOssem as tnicas verdadeiras e justas’’. Escandalizados por certas aparéncias, tais catélicos du- vidam da autenticidade do espirito evangélico da Igreja de hoje, principalmente no tocante ao testeraunho de pobreza e de amor. O Papa sabe disto e nao é sem um motivo pre- ciso que sio exatamente éstes os dois pontos tnicos de reno- vagio aos quais o Papa alude na enciclica, como “necessida- 23 PE. FERNANDO RASTOS DE AVILA S. J. des e deveres primordiais’’. O Santo Padre sabe que aderén- cias temporais podem ter desfigurado parcialmente o verda- deiro perfil da Espésa de Cristo e que, portanto, para reve- li-lo de névo ao mundo, ¢ preciso reformar, o que significa reencontrar a forma primeira: “‘O dito nao significa que seja intengdo nossa ver a perfeicdo na imobilidade dessas formas de que a Igreja se foi revestindo através dos séculos: ou jul- gar que cla consiste em tornarmo-nos refratarios a qualquer aproximac4o nossa 4s formas hoje comuns ¢ aceitdveis nos costumes e na indole do nosso tempo. A palavra, hoje fa- mosa, do nosso venerado Predecessor JOKO XXIM, de feliz memoria, a palavra ‘‘atualizagao’’, sempre a teremos presente como orientagao programatica " O problema nio esta mais em saber se deve haver re- formas, nem em definir os critérios que devem orienta-las, mas em determinar o modo pelo qual devem ser feitas, E a esta altura, a enciclica atinge um dos mais graves problemas com que a Igreja sempre se defronta nos grandes momentos de sua histéria e que interessa diretamente 4 consciéncia per- plexa, como a traumatizada: 0 problema do profetismo. O profeta é aquéle que vé e da testemunho da verdade, Vi- dente e martir, que significa testemunha, sua mensagem ¢ portadora de uma fér¢a quase irresistivel. O profeta autén- tico nao se erige em tal; resiste a esta voca¢4o sagrada e tre- menda, mas é arrebatado pelo Espirito. E nisto, alias. que reside o segrédo de sua férca. Vocacao herdica, as suas con- trafagdes si0 dificeis de discernir e conduzem sempre a con- seqliéncias tragicas. Todos os inconformados na Igreja se sentem, em determinado momento, bafejados pelo esto pro- fético, Nunca a Igreja precisou tanto de verdadeiros profe- tas; nunca os riscos dos falsos profetas foram tao grandes para ela. Nas condicées do mundo atual, com seus recursos de comunicagdo e de propaganda, a sombra do falso profeta assumiria inevitavelmente proporgdes apocalipticas, A gran- deza do risco explica a susceptibilidade da Igreja em preve- ni-lo, e s6 ha um critério definitivo para distinguir o verda- deiro do falso profeta: o primeiro submete o seu carisma a Igreja; o segundo acaba colocando seu carisma acima de tudo. 24 A ENCICLICA “ECCLESIAM SUAM” A crise que viveram as consciéncias traumatizadas e per- plexas se configura em térmos que evocam de perto as crises proféticas; as crises do profetismo em face do convencional, do oficial, & mistér notar, de resto, que, na historia da Igreja, se observa tanto o profetismo renovador e fecundo, como o profetismo que evoluiu para o cisma, a heresia ¢ a ester dade. F neste contexto que se pode compreender a gravidade e delicadeza desta adverténcia: ‘‘Nem nos fascine a ambi¢ao de renovar a estrutura da Igreja por via carismatica, como se fdsse nova e verdadcira a expressao eclesial nascida de idéias meramente particulares, embora fervorosas e atribui- das talvez 4 divina inspiracao. Por éste caminho se introdu Ziriam sonhos arbitrarios de renovacées artificiosas no plano constitutivo da Igreja. Como ela é, devemo-la servir ¢ amar, com sentimento inteligente da histéria ¢ buscando humilde- mente a vontade de Deus, que a assiste e guia, mesmo quando permite que a fraqueza humana |he empane um pouco a pu- reza das linhas e elegincia da agao”. “A Igteja renovara a sua juventude, nao tanto mudando as suas leis exteriores, quanto dispondo interiormente 0 espirito dos seus para obe- decer a CRISTO”. * A consciéncia euférica encontrou especial interésse na tercetra parte da enciclica, dedicada ao didlogo. Nesta parte a consciéncia euférica captou principalmente a passagem re- ferente 4 condenagao do comunismo, lastimando talvez que a enciclica nao tenha sido mais enérgica. O tema do dialogo é tratado no documento pontificio com tal grandeza de animo e de tal altura que nao cabe va- za-lo nos estreitos limites de uma problematica doméstica. A éle sera consagrado um artigo especial. Confot= Ce Sle ENGENHARIA — INDUSTRIA COMERCIO

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