Em 1938, uma mudança drástica alterou o panorama da HQ
no planeta. O terreno estava fértil. A hora havia chegado e não é de estranhar que seu aparecimento tenha se dado com o estrépito de uma nave espacial caindo na Terra: sur- gira o Superman, personagem que mudou a fisionomia dos quadrinhos para sempre. Aqui, a simplificação icônica de que temos falado não se deu pela via da sofisticação do trabalho dos artistas, mas pela sensibilidade dos autores Jerry Siegel, o roteirista, e Joe Shuster, o desenhista, em perceberem a indigência cultural, emocional, e econômica do tempo em que viviam. Em suas primeiras aventuras, o filho de Krypton sacudiu sem dó nem piedade o senhorio sovina acima dos telhados, para que devolvesse o dinheiro conseguido com a exploração dos inquilinos, para suprema alegria dos inadimplentes, aí incluídos, com toda a proba- bilidade, os pais dos criadores adolescentes que serviram como “antenas” ao captarem o Zeitgeist, o espírito de seu tempo no ar, e criaram o personagem. Os desenhos e textos eram bem mais toscos do que o que havia nos jornais, para os quais, aliás, o Superman foi recusado diversas vezes, sob a alegação de que o públi- co jamais “acreditaria” o suficiente num personagem tão poderoso e tão primário. A alegação era ingênua ao extremo, como os fatos demonstraram. O trabalho era imaturo, era outra alegação, esta nem tão ingênua. Possivelmente, contudo, terá sido essa mesma “imaturi- dade” que caiu na veia do público: o personagem foi um imediato sucesso de vendas. Atingiu a imaginação popu- lar, gerando imitações e todo o gênero de quadrinhos de super-heróis. Os donos da revista não notaram a importância do herói de imediato e demoraram uns qua- tro números para voltar a pô-lo na capa. O Superman se apoderou dela e não a largou mais. Quanto ao título desse texto, naturalmente ele nasceu como bordão de rádio, mídia à qual a popularidade do per- sonagem logo o alçou...
Almanaque dos quadrinhos 67
NASCE A INDÚSTRIA. A possibilidade de trabalho pago a realizar fez com que diversos jovens criassem estúdios de produção de quadrinhos, e isso numa economia A SOMBRA DE BATMAN. Em 1939, um ano após o deprimida, onde as aventuras em HQs funcionavam Superman, surgiria outro pólo da equação constitutiva como válvula de escape, inclusive para quem as gerava. dos superpoderosos. Entrava em cena, Batman, dese- Os dois jovens judeus, Siegel & Shuster, invocaram um nhado por Bob Kane e escrito por Bill Finger. Batman messias, e quando ele veio, alimentado que foi pela era sombrio, sem poderes super-humanos e herdeiro do leitura contumaz de folhetins de “ficção científica” (as quadrinho e do romance policiais, tanto quanto o aspas se devem ao fato de que era muito tosco esse uni- Superman o era da ficção científica tosca de seu tempo. verso bastante involuído com relação a Verne e Wells, Veremos que, durante as décadas seguintes, os perfis na época) que grassavam na imprensa popular, chegou de quase todos os super-heróis foram modelados a par- com capa e superpoderes. O caldo de cultura no qual nasceu Clark Kent, o Superman, é confessamente deve- tir de semelhanças ou diferenças com relação a dor do folhetim Gladiator, de Philip Wylie. Todos os ini- Superman e Batman. Entre esses dois extremos típicos, ciadores dos quadrinhos de gibi amavam seu trabalho, dotados de forte valor icônico, nasceu a fisionomia de ainda que fossem muito explorados pelas editoras e toda a geração inicial de super-heróis. middlemen. Não havia devolução dos originais e era raro Ambos os personagens, assinale-se, de propriedade haver qualquer crédito para os realizadores, a não ser de uma mesma editora, a National Periodical Publications, nas assinaturas feitas no próprio desenho; e estas eram, mais tarde DC Comics, por conta do sucesso da revista muita vezes, apagadas. Isso sem falar na minúscula Detective Comics, onde nasceu o homem-morcego. fatia que cabia a esses criadores, dos proventos que seu trabalho gerava. Não importava. Picotassem seus originais, fizessem o diabo. Eles estavam pagando suas contas e eram fãs que começavam a se apossar de sua mídia de AUTORIZAÇÃO PARA MATAR. Superman e Batman apresentam vários aspectos constitutivos dos super- forma impetuosa e fértil, exprimindo nem tanto uma visão original do mundo, mas algo que “estava no ar”. heróis como um todo: habilidades fora do comum e Não só proliferaram personagens, como estúdios de uma origem traumática. Superman é exilado interpla- desenhistas progressivamente profissionalizados aden- netário com uma série de capacidades improváveis. traram o mundo mal impresso dos gibis em quatro Batman é o sobrevivente do assassinato de seus pais no cores e padrões gráficos pedestres. O Superman e os meio da rua. Identidades secretas, motivações centradas outros personagens que surgiram imediatamente na em episódios fundadores de mitologias pessoais, galeria sua esteira foram de fato um surto de criatividade mal de superinimigos exóticos e de personagens coadju- paga, tosca, que de tal forma aderiu ao imaginário po- vantes para o leitor se identificar enquanto o homem de pular que se tornou o subgênero mais longevo dos aço, ou o paladino da justiça, ou o cruzado de capa, o quadrinhos norte-americanos: os quadrinhos de super- inocente útil e/ou o salvador da pátria, cuidava de con- heróis. Em países culturalmente periféricos como o sertar a situação. Nos seus momentos iniciais nenhum nosso, tende-se a considerar que a única produção norte-americana de HQs pertence a esse segmento, mas dos dois personagens pioneiros se furtava em matar. há inúmeros exemplos de outros gêneros. Batman chegou a dar tiro em magnata corrupto.