Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
b. O cristão não deve ser hipócrita (vs. 3, 4) Por que vês tu o argueiro no olho de
teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio? 4Ou como dirás a
teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu?
Agora Jesus conta a sua pequena e famosa parábola sobre o "corpo estranho"
nos olhos das pessoas, partículas de pó de um lado e traves ou toras de outro.
James Moffatt chamou-os de "lasca" e "tábua". Primeiro, Jesus denunciou nossa
hipocrisia para com Deus, isto é, a nossa prática de piedade diante dos homens
para sermos vistos por eles. Agora, ele denuncia a nossa hipocrisia em relação aos
outros, isto é, interferindo em seus pecadilhos, enquanto deixamos de resolver as
nossas próprias faltas mais sérias. Eis aqui um outro motivo por que não temos
capacidade para ser juizes: não apenas somos seres humanos falíveis (o que não
ocorre com Deus) mas também somos seres humanos decaídos. Todos nós nos
tornamos pecadores com a Queda. Portanto não estamos em posição de julgar
outros pecadores iguais a nós; estamos desqualificados para a cátedra de juiz.
A figura de uma pessoa lutando na delicada operação de remover um cisco do
2
1 Co 4:4,5.
3
Rm2:l;cf.Tg3:l.
olho de um amigo, enquanto uma imensa tábua em seu próprio olho impede
totalmente a sua visão, é ridícula ao extremo. Mas, quando a caricatura ê
transferida para nós mesmos e para a nossa atitude ridícula de ficar procurando os
erros dos outros, nem sempre apreciamos a brincadeira. Temos uma tendência
fatal de exagerar as faltas dos outros e diminuir a gravidade das nossas. Achamos
impossível, quando nos comparamos com os outros, permanecer estritamente
objetivos e imparciais. Pelo contrário, temos uma visão rósea de nós mesmos e
uma deformada dos outros. Na verdade, o que geralmente acontece é que vemos
nossas faltas nos outros e os julgamos vicariamente. Desse modo, experimentamos
o prazer da justiça própria sem a dor do arrependimento. Portanto, hipócrita (v. 5)
aqui é uma expressão chave. Pior ainda, esta espécie de hipocrisia é a mais
desagradável porque, tendo até aparência de bondade (tirar um cisco do olho de
alguém), transforma-se em um meio de inflar o nosso próprio ego. A condenação,
escreve A. B. Bruce, é o "vício farisaico de exaltarmo-nos amesquinhando os
outros, um modo muito baixo de obter superioridade moral". 4 A parábola do fariseu
e do publicano foi o comentário de nosso Senhor sobre esta perversidade. Ele a
contou "a alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e
desprezavam os outros".5 O fariseu fez uma comparação odiosa e incorreta,
engrandecendo sua própria virtude e os erros do publicano.
O que nós deveríamos fazer é aplicar a nós mesmos um padrão pelo menos tão
estrito e crítico como aquele que aplicamos aos outros. "Porque, se nos
julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados", 6 escreveu Paulo. Não só
escaparíamos do julgamento divino, mas também estaríamos em condição de
ajudar com humildade e amabilidade ao irmão que está em erro. Tendo removido
antes a trave de nosso próprio olho, veríamos claramente como remover o cisco do
olho dele.
8
p.345.
9
Lc 13:32; Mt 23:27, 33.
10
Spurgeon, p. 42
ele te amará."11
Quem são, pois, estes "cães" e "porcos"? Dando-lhes tais nomes Jesus está
indicando que, além de serem mais animais que humanos, são também animais
com hábitos de sujeira. Os cães que ele tinha em mente não eram os bem
comportados cachorrinhos de colo de uma casa elegante, mas os cães párias
selvagens, vagabundos e vira-latas, que fuçavam no lixo da cidade. Os porcos
eram animais imundos para os judeus, para não mencionar a inclinação que têm de
viver na lama. O apóstolo Pedro referir-se-ia a eles mais tarde, reunindo dois
provérbios em um só: "O cão voltou ao seu próprio vômito" e "a porca lavada voltou
a' revolver-se no lamaçal".12 A referência deve ser aos incrédulos, cuja natureza
nunca foi renovada, que possuem vida física ou animal, mas nenhuma vida
espiritual ou eterna. Lembremo-nos também de que os judeus chamavam os
gentios de "cães".13 Mas os cristãos certamente não consideram os que não são
cristãos deste modo desdenhoso. Por isso, temos de penetrar mais profundamente
no significado dado por Jesus.
Sua ordem é: não deis aos cães o que é santo e nem lanceis ante os porcos as
vossas pérolas. A figura é clara. Um judeu jamais daria alimento "santo" (talvez
alimento que fora antes oferecido como sacrifício) a cães imundos. Nem jamais
sonharia em jogar pérolas aos porcos. Estes não só eram animais impuros, mas
também provavelmente confundiriam as pérolas com nozes ou ervilhas e tentariam
comê-las e, então, descobrindo que não eram comestíveis, pisá-las-iam e até
mesmo atacariam o doador. Mas se a figura da parábola é explícita, qual o
significado? O que é a coisa "santa" e o que são as "pérolas"? Alguns dos pais da
Igreja achavam que a referência era à Ceia do Senhor, e argumentavam que
pessoas incrédulas, ainda não batizadas, não deviam ser admitidas a ela. 14 Embora
estivessem certos neste ensinamento, é extremamente duvidoso que Jesus tenha
pensado nisso. É melhor encontrar um elo com a "pérola de grande valor" da sua
parábola referente ao reino de Deus15 ou à salvação e, por extensão, ao Evangelho.
Não podemos deduzir disto, entretanto, que Jesus nos estivesse proibindo de
pregar o Evangelho aos incrédulos. Supor tal coisa seria emborcar e esvaziar todo
o Novo Testamento e contradizer a Grande Comissão (com a qual o Evangelho de
Mateus termina), que nos manda "ir e fazer discípulos de todas as nações". Os
calvinistas extremos não podem usar isto como argumento contra a evangelização,
pois o próprio Calvino insistia que é dever nosso "apresentar a doutrina da salvação
indiscriminadamente a todos".16
Portanto, os "cães" e "porcos" com os quais estamos proibidos de partilhar as
pérolas do Evangelho não são simplesmente os incrédulos. Devem ser, antes,
aqueles que tiveram ampla oportunidade de ouvir e aceitar as boas novas, mas que
determinadamente (e até mesmo provocadoramente) as rejeitaram. "É preciso
entender", escreveu Calvino com sabedoria, "que cães e porcos são nomes que
foram dados, não a toda espécie de homens debochados, ou àqueles que são
destituídos do temor de Deus e da verdadeira piedade, mas àqueles que, através
11
Pv9:8.
12
2Pe2:22.
13
cf.Mt 15:26, 27; Fp 3:2; Ap 22:15.
14
Por exemplo, o capítulo IX da Didache, provavelmente um primitivo documento do segundo século, inclui esta instrução: "Não se permita que comam ou bebam de vossa
Eucaristia, a não ser aqueles que foram batizados no nome do Senhor; pois com referência a isto também o Senhor disse: "Não deis o que ê santo aos cães".
15
Mt 13:46.
16
p. 349
de evidências claras, manifestaram um desrespeito obstinado para com Deus, de
modo que sua condição parece ser incurável". 17 Crisóstomo usa uma expressão
semelhante, identificando os "cães" com pessoas "que vivem em impiedade incu-
rável";18 e, nos dias de hoje, o Professor Jeremias definiu-os como sendo "aqueles
que totalmente se entregaram a caminhos depravados". 19
O fato é que persistir em oferecer o Evangelho a essas pessoas, além de um
determinado ponto, é provocar sua rejeição com desprezo e até mesmo com
blasfêmias. Jesus aplicou o mesmo princípio ao ministério dos doze quando os
comissionou, antes de enviá-los em sua primeira missão. Ele os advertiu que, em
cada cidade e casa que entrassem, embora algumas pessoas fossem receptivas e
"dignas", outras não seriam receptivas e seriam "indignas". "Se alguém não vos
receber, nem ouvir as vossas palavras, ao sairdes daquela casa ou daquela
cidade", prosseguiu, "sacudi o pó dos vossos pés". 20
O apóstolo Paulo também seguiu este princípio em sua obra missionária. Em
sua primeira expedição, ele e Barnabé disseram aos judeus que "contradiziam" a
sua pregação em Antioquia da Pisídia: "Cumpria que a vós outros em primeiro lugar
fosse pregada a palavra de Deus; mas, posto que a rejeitais e a vós mesmos vos
julgais indignos da vida eterna, eis aí que nos volvemos para os gentios." E quando
os judeus incitaram os líderes da cidade a que os expulsassem, Paulo e Barnabé,
"sacudindo contra aqueles o pó de seus pés, partiram para Icônio". 21 Quase o
mesmo aconteceu em Corinto na segunda viagem missionária. Quando os judeus
se lhe opuseram e o injuriaram, "sacudiu Paulo as vestes" e lhes disse: "Sobre a
vossa cabeça o vosso sangue! eu dele estou limpo, e desde agora vou para os
gentios."22 Pela terceira vez Paulo reagiu da mesma maneira, quando em Roma os
líderes judeus rejeitaram o Evangelho. "Tomai, pois, conhecimento", disse, "de que
esta salvação de Deus foi enviada aos gentios. E eles a ouvirão". 23
Nosso testemunho cristão e pregação evangelística não devem, portanto, ser
totalmente indiscriminados. Se as pessoas tiveram muita oportunidade de ouvir a
verdade mas não a aceitaram, se elas obstinadamente voltam suas costas a Cristo,
se (em outras palavras) elas se colocam na categoria de "cães" e "porcos", não
devemos continuar pregando-lhes indefinidamente, pois assim estaremos
amesquinhando o evangelho de Deus e permitindo que ele seja espezinhado. Pode
alguma coisa ser mais depravada do que confundir a preciosa pérola de Deus com
uma coisa sem valor e praticamente pisoteá-la na lama? Ao mesmo tempo, desistir
das pessoas é um passo muito sério. Eu me lembro de apenas uma ou duas
ocasiões em minha experiência quando senti que devia fazê-lo. Este ensinamento
de Jesus é apenas para situações excepcionais; nosso dever cristão normal é ser
paciente e perseverar com as pessoas, como Deus pacientemente perseverou
conosco.
17
p.349.
18
p.348.
19
Jesus'Promise to theNations, (1953: SCM, 1958), p. 20.
20
Mt 10:14 = Lc 10:10,11.
21
At 13:44-51.
22
At 18:5, 6.
23
At 28:17-28.