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Mateus 6:19-34

A ambição do cristão: não a segurança material, mas a direção de Deus

Na primeira metade de Mateus 6 (vs. 1-18), Jesus descreve a vida particular do


cristão "no lugar secreto" (dando, orando, jejuando); na segunda parte (vs. 19-34)
ele trata dos nossos negócios públicos no mundo (questões de dinheiro, de
propriedades, de alimento, de bebida, de roupa e de ambição). Os mesmos
contrastes poderiam ser expressos em termos de nossas responsabilidades
"religiosas" e "seculares". Esta diferença é enganosa, porque não podemos separar
estes dois aspectos em compartimentos herméticos. Na verdade, o divórcio entre o
sagrado e o secular na história da Igreja tem sido desastroso. Se somos cristãos,
tudo o que fazemos, por mais "secular" que possa parecer (como fazer compras,
cozinhar, fazer cálculos no escritório, etc), é "religioso", no sentido de que é feito na
presença de Deus e de acordo com a sua vontade. Uma ênfase de Jesus neste
capítulo é exatamente sobre este ponto, que Deus está igualmente preocupado
com as duas áreas da nossa vida: a particular e a pública; a religiosa e a secular.
Pois, de um lado, "teu Pai celeste vê em secreto" (vs. 4, 6, 18) e, de outro, "vosso
Pai celestial sabe que necessitais de alimento, bebida e roupa" (v. 32).
Ouvimos os mesmos insistentes convites de Jesus, nas duas esferas, o
chamado para sermos diferentes da cultura popular: diferentes da hipocrisia do
religioso (v. 1-18) e, agora, também diferentes do materialismo do irreligioso (vs.
19-34). Embora no começo do capítulo fossem principalmente os fariseus que
estavam na mente de Jesus, agora é ao sistema de valores dos "gentios" que ele
nos incita a renunciar (v. 32). Na verdade, Jesus coloca alternativas diante de nós
em cada estágio. Há dois tesouros (na terra e no céu, vs. 19-21), duas condições
físicas (luz e trevas, vs. 22, 23), dois senhores (Deus e as riquezas, v. 24) e duas
preocupações (nosso corpo e o reino de Deus, vs. 25-34). E não podemos pôr os
pés em duas canoas!
Mas, como fazer a escolha? A ambição do mundo nos fascina fortemente. O
encanto do materialismo é difícil de se quebrar. Nesta seção, Jesus nos ajuda a
escolher o melhor. Ele destaca a insensatez do caminho errado e a sabedoria do
certo. Como nas seções anteriores, sobre a piedade e a oração, aqui, relativamente
à ambição, ele coloca o falso e o verdadeiro, um em oposição ao outro, de tal modo
que nos leva a compará-los e examiná-los por nós mesmos.
Este tópico coloca-nos diante da grande urgência da nossa geração. A medida
que a população do mundo continua aumentando assustadoramente e os
problemas econômicos das nações se tornam cada vez mais complexos, os ricos
continuam ficando mais ricos e os pobres, mais pobres. Não podemos mais fechar
os olhos diante dos fatos. A antiga complacência do Cristianismo burguês foi
perturbada. A adormecida consciência social de muitos já foi despertada.
Redescobriu-se que o Deus da Bíblia está do lado dos pobres e necessitados. Os
cristãos responsáveis sentem desconforto quando pensam na abundância e estão
procurando desenvolver um estilo de vida simples, que seja adequado face às
necessidades do mundo e, por lealdade, de acordo com os ensinamentos e o
exemplo do seu Mestre.
1. A questão do tesouro (vs. 19-21)
Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a
ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; 20mas ajuntai para vós outros
tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam
nem roubam; 21porque onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
Aqui, o ponto para onde Jesus dirige nossa atenção é a durabilidade
comparativa dos dois tesouros. Deveria ser fácil decidir qual dos dois ajuntar, ele dá
a entender, porque tesouros sobre a terra são corruptíveis e, portanto, inseguros,
enquanto que tesouros no céu são incorruptíveis e, conseqüentemente, seguros.
Afinal, se nosso objetivo é ajuntar tesouros, presumivelmente nós nos
concentraremos na espécie que vai durar mais e que pode ser armazenada sem
depreciação ou deterioração.
E importante enfrentar franca e honestamente a questão: o que Jesus estava
proibindo, quando nos disse para não ajuntarmos tesouros para nós mesmos na
terra? Talvez seja melhor começarmos com uma lista do que ele não estava (e não
está) proibindo. Primeiro, não há maldição alguma quanto às propriedades em si;
as Escrituras não proíbem, em parte alguma, as propriedades particulares.
Segundo, "economizar para dias piores" não foi proibido aos cristãos, nem fazer um
seguro de vida, que é apenas uma espécie de economia compulsória auto-imposta.
Pelo contrário, as Escrituras louvam a formiga que armazena no verão o alimento
de que vai precisar no inverno, e declara que o crente que não faz provisão para a
sua família é pior do que um incrédulo. 1 Terceiro, não devemos desprezar mas,
antes, desfrutar as boas coisas que o nosso Criador nos concedeu
abundantemente.2 Portanto, nem as propriedades, nem a provisão para o futuro,
nem o desfrutar dos dons de um Criador bondoso estão incluídos na proibição dos
tesouros acumulados na terra.
O que está, então? O que Jesus proíbe a seus discípulos é a acumulação
egoísta de bens ("Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra"); uma vida
extravagante e luxuosa, a dureza de coração que não deixa perceber as
necessidades colossais das pessoas menos privilegiadas neste mundo; a fantasia
tola de que a vida de uma pessoa consiste na abundância de suas propriedades; 3 e
o materialismo que acorrenta nossos corações à terra. O Sermão do Monte
repetidas vezes refere-se ao "coração" e, aqui, Jesus declara que o nosso coração
sempre segue o nosso tesouro, quer para baixo para a terra, quer parao alto para o
céu (v. 21). Resumindo, "acumular tesouros sobre a terra" não significa ser
previdente (fazer ajuizadas provisões para o futuro), mas ganancioso (como o
sovina que acumula e os materialistas que sempre querem mais). Esta é a
armadilha contra a qual Jesus nos adverte aqui. "Sempre que o Evangelho é
ensinado", escreveu Lutero, "e as pessoas procuram viver de acordo com ele,
surgem duas terríveis pragas: os falsos pregadores, que corrompem o ensino, e,
então, a Sra. Ganância, que impede um viver justo." 4
O "tesouro na terra", por nós cobiçado, Jesus nos lembra: "A traça e a ferrugem
destroem, e ... os ladrões o arrombam e roubam" (BLH). A palavra grega para
"ferrugem" (brasis) significa "comer"; pode referir-se à corrosão causada pela ferru-
1
Pv 6:6ss; lTm 5:8.
2
lTm 4:3,4; 6:17.
3
Lc 12:15.
4
p. 166.
gem, mas também a qualquer peste ou parasita devoradora. Naquele tempo, as
traças entravam facilmente nas roupas das pessoas, os ratos comiam os cereais
armazenados, pestes atacavam o que estivesse debaixo da terra, e os ladrões
entravam nos lares e levavam o que fosse possível. Não havia a menor segurança
no mundo antigo. E para nós, gente moderna, que procuramos proteger os nossos
tesouros com inseticidas, venenos contra ratos, ratoeiras, tintas à prova de
ferrugem e arames contra ladrões, mesmo assim eles se desintegram na inflação
ou na desvalorização ou nos colapsos econômicos. Mesmo que uma parte
permaneça através desta vida, nada podemos levar conosco para a outra. Jó
estava certo: "Nu saí do ventre de minha mãe, e nu voltarei." 5
Mas o "tesouro no céu" é incorruptível. Que tesouro é esse? Jesus não explica.
Mas podemos dizer com toda certeza que "ajuntar tesouros no céu" é fazer na terra
alguma coisa cujos efeitos durem pela eternidade. Jesus não estava, certamente,
ensinando uma doutrina de méritos ou um "tesouro de méritos" (como a Igreja
Católica medieval ensinava), como se pudéssemos acumular no céu, através de
boas obras praticadas na terra, uma espécie de crédito bancário do qual nós e
outros pudéssemos sacar, pois tal noção grotesca contradiz o Evangelho da graça
que Jesus e seus apóstolos ensinaram coerentemente. E, de qualquer modo, Jesus
estava falando a discípulos que já tinham recebido a salvação de Deus. Parece,
antes, referir-se a coisas tais como: o desenvolvimento de um caráter semelhante
ao de Cristo (uma vez que todos nós podemos levá-lo conosco para o céu); o
aumento da fé, da esperança e da caridade, pois todas elas, segundo Paulo,
"permanecem";6 o crescimento no conhecimento de Cristo, o qual um dia veremos
face a face; a tarefa ativa, por meio da oração e do testemunho, de apresentar
outros a Cristo, para que também possam herdar a vida eterna; e o uso de nosso
dinheiro nas causas cristãs, que é o único investimento financeiro cujos dividendos
são eternos.
Todas estas atividades são temporais com conseqüências eternas. Este seria,
então, "o tesouro no céu". Nenhum ladrão pode roubá-lo, e nenhuma praga pode
destruí-lo, pois não há traças, nem ratos, nem assaltantes no céu. Portanto, o
tesouro no céu é seguro. Medidas de precaução para protegê-lo são des-
necessárias. Não precisa de apólices de seguro. É indestrutível. Portanto, parece
que Jesus está nos dizendo: "É um investimento seguro para vocês; nada poderia
ser mais seguro do que isto. E a única apólice de seguro que jamais perde o seu
valor."

2. A questão da visão (vs. 22, 23)


São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu
corpo será luminoso; 23se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo
estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes
trevas serão!
Jesus passa da comparativa durabilidade dos dois tesouros para o benefício
relativo de duas condições. O contraste agora é entre uma pessoa cega e uma
pessoa que tem visão, e, conseqüentemente, entre as trevas e a luz em que elas
respectivamente vivem. São os olhos a lâmpada do corpo. Não é literal,
naturalmente, como se fossem uma espécie de janela deixando a luz entrar no
5
Jó 1:21.
6
1 Co 13:13.
corpo; mas é uma figura de linguagem facilmente inteligível. Quase tudo que o
corpo faz depende de nossa capacidade de ver. Precisamos ver para correr, para
pular, para dirigir um carro, para atravessar uma rua, para cozinhar, para bordar,
para pintar. O olho, pelo que é, "ilumina" o que o corpo faz com as mãos e os pés.
É verdade que os cegos conseguem enfrentar sua situação maravilhosamente bem,
aprendendo a fazer uma porção de coisas sem os olhos, e desenvolvendo suas
demais faculdades para compensar a falta de visão. Mas o princípio continua: quem
vê anda na luz, enquanto que o cego permanece nas trevas. E a grande diferença
entre a luz e as trevas do corpo deve-se a esse pequenino mas complicado órgão,
o olho. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso; se, porém, os
teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas. Na cegueira total, as
trevas são completas.
Tudo isto é uma descrição de fatos. Mas também é uma metáfora. Com
bastante freqüência, o "olho" nas Escrituras é equivalente ao "coração". Isto é,
"colocar o coração" e "fixar os olhos" em alguma coisa são sinônimos. Um exemplo
será suficiente, no Salmo 119. No versículo 10 o salmista escreve: "De todo o
coração te busquei; não me deixes fugir aos teus mandamentos" e, no versículo 18:
"Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei."
Semelhantemente, aqui no Sermão do Monte, Jesus passa da importância de se ter
o coração no lugar certo (v. 21) para a importância de se ter os olhos bons e sadios.
A argumentação parece ser esta: exatamente como nossos olhos afetam todo o
nosso corpo, a nossa ambição (onde fixamos nossos olhos e nosso coração) afeta
toda a nossa vida. Exatamente como o olho que vê dá luz ao corpo, uma ambição
nobre e sincera de servir a Deus e aos homens aumenta o significado da vida e
lança luz sobre tudo que fazemos. Repito: exatamente como a cegueira leva às
trevas, uma ambição ignóbil e egoísta (por exemplo, ajuntar tesouros para nós
mesmos sobre a terra) faz-nos mergulhar nas trevas morais. Ficamos intolerantes,
desumanos, grosseiros, despojando a vida de seu principal significado.
Tudo é uma questão de visão. Se temos visão física, podemos ver o que
estamos fazendo e para onde vamos. Da mesma forma, se temos visão espiritual,
se nossa perspectiva espiritual está devidamente ajustada, então nossa vida fica
cheia de propósito e de incentivo. Mas se a nossa visão se torna anuviada pelos
falsos deuses e pelo materialismo, e nós perdemos nosso senso de valores, então
toda a nossa vida fica em trevas e não podemos ver para onde vamos. Talvez a
ênfase esteja, com muito mais força do que já sugeri, na perda da visão causada
pela ganância, porque, de acordo com o conceito bíblico, um "olho mau" é um
espírito sovina, avarento, e um "olho bom" é o generoso. De qualquer forma, Jesus
acrescenta novos motivos para ajuntarmos um tesouro no céu. O primeiro é a sua
grande durabilidade; o segundo resulta dos benefícios atuais, aqui na terra, de uma
visão assim.

3. A questão das riquezas (v. 24)


Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um, e
amar ao outro; ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a
Deus e às riquezas.
Jesus explica, agora, que além da escolha entre dois tesouros (onde vamos
ajuntá-los) e entre duas visões (onde vamos fixar os nossos olhos) jaz uma escolha
ainda mais básica: entre dois senhores (a quem vamos servir). É uma escolha entre
Deus e Mamom: "Não podeis servir a Deus e a Mamom" (ERC); isto é, entre o
próprio Criador vivo e qualquer objeto de nossa própria criação que chamamos de
"dinheiro" ("Mamom" é uma transliteração da palavra aramaica para riqueza). Não
podemos servir aos dois.
Algumas pessoas discordam destas palavras de Jesus. Recusam-se a ser
confrontadas com uma escolha tão rígida e direta, e não vêem a necessidade dela.
Asseguram-nos que é perfeitamente possível servir a dois senhores
simultaneamente, por conseguirem fazer isso muito bem. Diversos arranjos e
ajustes possíveis parecem-lhes atraentes. Ou eles servem a Deus aos domingos e
a Mamom nos dias úteis, ou a Deus com os lábios e a Mamom com o coração, ou a
Deus na aparência e a Mamom na realidade, ou a Deus com metade de suas vidas
e a Mamom com a outra.
Pois é esta solução popular de comprometimento que Jesus declara ser
impossível: Ninguém pode servir a dois senhores . . . Não podeis servir a Deus e às
riquezas (observe o "pode" e o "não podeis"). Os pretensos conciliadores
interpretam mal este ensinamento, pois se esquecem da figura de escravo e dono
de escravo que se encontra por trás destas palavras. Como McNeile disse: "Pode-
se trabalhar para dois empregadores, mas nenhum escravo pode ser propriedade
de dois senhores",7 pois "ter um só dono e prestar serviço de tempo integral são da
essência da escravidão".8 Portanto, qualquer pessoa que divide sua devoção entre
Deus e Mamom já a concedeu a Mamom, uma vez que Deus só pode ser servido
com devoção total e exclusiva. Isto simplesmente porque ele é Deus: "Eu sou o
Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem." 9 Tentar
dividir a nossa lealdade é optar pela idolatria.
E quando percebemos a profundidade da escolha entre o Criador e a criatura,
entre o Deus pessoal glorioso e essa coisinha miserável chamada dinheiro, entre a
adoração e a idolatria, parece inconcebível que alguém faça a escolha errada, pois
agora ê uma questão não apenas de durabilidade e benefício comparativos, mas
sim de valor comparativo: o valor intrínseco de um e a intrínseca falta de valor do
outro.

7
p. 85.
8
Tasker, p. 61.
9
Is 42:8; 48:11.

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