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2.A VERDADE NA ARTE A arte é capaz de dizer a verdade? Existem duas maneiras cldssicas, paradigmaticas, de responder a questao. A primeira delas esta representada pelo gesto platénico de expulsar os artistas de sua cidade perfeita, acusados de provocarem, ainda que involuntariamente, o engano € a ilusto. No ja mencionado didlogo A Reptiblica, Platao descreve a cidade ideal como sendo uma organizacao baseada em necessidades e trocas. As necessidades bdsicas, tais como comida, roupa, habitacdo, etc., fazem com que sejam consideradas titeis as profissdes de agricultor, alfaiate, pedreiro, etc. Uma grande cidade apresenta um complexo sistema onde todos — artesos, soldados ou politicos - tém um papel a cumprir e podem contar com o trabalho dos outros. ‘A comunidade perfeita é como um organismo em que cada participante contribui para o bem-estar geral. A satide da cidade so comega a entrar em risco quando todas as tarefas e necessidades bdsicas jd estao sendo cumpridas e comecam a surgir desejos luxuosos, desnecessdrios, E nesse momento que surgem os artistas na cidade poetas, miisicos, dancarinos, pessoas que nao desempenham nenhuma funcdo realmente Aitil (Cf. A Reptiblica, 373c). Aanalogia entre a sociedade ¢ 0 organismo & muito comum na nosse cultura e deriva da Interpretacao do corpo humano como um sistema, em que todos os érgaos esto inter-relacionados € possuem uma tarefa specifica. A satide do organismo e da cidade depende do bom funcionamento de cada parte, Quando ocorre um desequilibrio, por excesso ou falta, faz-se necessario uma intervengao, que pode ser corretiva cu extirpativa. Figura Humana, Proporeées para llustragdo (1485- 1490), desenho de Leonardo da Vinci (1452- 1519). Para Platdo, o surgimento da arte na sociedade est associado a uma espécie de excesso, a uma sobra de energia, um ultrapassamento dos limites. Tal como um cancer, os poetas comecam a se desenvolver e a se multiplicar autonomamente. Para o filésofo, os artistas sdo 0 excesso de uma cidade em que tudo funciona segundo um sistema de necessidades racionais. Esse luxo carrega ao mesmo tempo uma dupla ameaca: epistemoldgica e ética. Para Platdo, o artista é um fabricante de imagens fantasmas que desviam os olhos do cidaddo das verdadeiras idéias, que s6 podem ser apreensiveis pelo pensamento. Além disso, a arte estimula as paixées, os afetos e as emogoes, tais como a alegria, a tristeza ou a raiva, que deixadas sem controle podem conduzir em ultima instancia a guerra e a catdstrofe. A arte so deveria ser praticada por criangas, mulheres, escravos ou loucos, enfim, somente aqueles que nao tém nada a perder. Um cidadao livre corre sérios riscos, ao contrario, de se perder no contato com a arte. A boa convivéncia em sociedade depende de uma certa a-pathia (em grego “quséncia de pathos” = afeto, paixao, sentimento). Por isso os artistas ndo sao apenas luxo, mas também lixo, devendo ser expulsos da cidade, para que esta possa continuar a ser uma sociedade justa e feliz (Cf. A Republica, 606a). A depreciacao platonica da arte fundamenta-se na suposigéio de que arte é sempre imitagao (em grego: mimesis). Para Platao, a obra do artista ndo é apenas uma reprodugdo, mas algo inferior e inadequado tanto em relagdo aos objetos como as idéias que os pressupdem. O pintor s6 é capaz de reproduzir superficialmente a materialidade da cama, somente sua aparéncia sensivel. Na cama apresentada pelo pintor nao se pode dormir. Por outro lado, o leito pintado é também uma reproducdo inadequada da idéia universal de cama. Se a idéia apresenta a esséncia imutavel do objeto, a reproducdo artistica nos dé apenas um exemplo particular, uma cama individual, congelada em uma tinica perspectiva, que assim sera sempre inferior as camas produzidas pelo marceneiro, nas quais se pode deitar, além de poderem ser observadas sob varios Gngulos. Ao contrério do artista, o carpinteiro tem como modelo de seu trabalho a idéia e nao a pura aparéncia. Ser mesmo imposstvel dormir em uma cama pictérica? ‘Observe 0 Quarto de Vincent em Arles (1889), de Van Gogh (1853-1890), Para o pintor holandés, as cores azul e amarela eram sugestivas de sono e de descanso. A vista do quadro deveria fazer repousar a cabeca e sobretudo a imaginagao. A idéia de que arte deve modernidade, embora ainda tenha seus defensores mesmo no século XX Quando 0 pintor francés Matisse expds pela primeira ver 0 quadro Retrato de Madame Matisse no salao de outono de Paris em 1905, foi duramente criticado por ter marcado © rosto da mulher com uma enorme faixa de verde brithante. “Nao existem mulheres verdes’, teriam dito indignados, Conta-se itar a realidade comecou a ser questionada jé na que Matisse teria retrucado: “Isso néo € uma mulher, isso € uma pintura.” A expulsdo dos artistas de A Reptiblica é, em principio, a indicacao de que para Platao a arte pouco ou nada tem a ver com a verdade, mas apenas com a ilusdo € a superficie. Nada se aprende da arte, porque ela nao repousa sobre nenhum conhecimento efetivo. Embora essa critica parega injusta, ela tem uma justificativa politica. Platdo pretendia despertar 0 senso critico de seus concidaddos, que consideravam a obra poética de Homero uma enorme enciclopédia, um manual de conduta para questées tanto de ordem cotidiana, como moral, administrativa ou religiosa. Se Platao vivesse no século XXI, talvez expulsasse a midia de massa da sua cidade ideal, pois é ela que serve atualmente como a principal fonte das informag®es, que costumam ser recebidas como se fossem fatos acabados e nao como interpretagées. De qualquer maneira, a suspeita platénica acabou se tornando um gesto mecdnico, um gesto de desconfianca em relagdo a obra de arte. Existe algo de verdadeiro na arte? Apesar da suspeita de que a arte seja perniciosa para a cidade, Platao aceita em A Repiiblica que as criancas sejam educadas com miisica, desde que ela estimule a disciplina e 0 controle do corpo, como as marchas ¢ os cénticos de guerra. Em um dislogo tardio, As Leis, Platao elo a are egfpcia por apresentar seus objetos de forma esquemdtica e geométrica. Ao contrério da arte grega, que imita o exterior das coisas e acaba por provocar enganos € ilusdes, a arte egipcia valorizaria 0 que hé nelas de eterno e substancial. Pintura na tumba de Ramsés Il, mostrando © soberano fazendo uma oferenda a0 deus Osfis. Atrés deste esta a deusa Isis, que faz um esto protetor com suas asas. Os corpos das figuras, sfo apresentados na arte egipcia simultaneamente sob miiltiplos angulos (cabega e pernas de perfil; ombros ¢ tronco de frente). Esse recurso retira a mobilidade das figuras, representadas quase como se fosser esséncias permanentes e atemporais.

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