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144 axTONINo FERRO &ROBERTORASILIECOne) Meelssner, We W. (1996). The Therapeutic Alliance. New Haven: Yale Untversity Press, Meltzes, D. & Harris Willlams, M. (1988). The apprehension of beauty: The role of aesthetic confit in development, art and violence, Perthshire, Scot [Buenos Aires: Spatia, 1990). Sandell, R. (2005, Match). Learning Fram the Patients Through Research. Peper presen ted at the 18th Conference of the Kuropean Psychoanalytical Federation. Vilamoua, Portugal. (reference to be completed, published by nov I expect). Sandler J, (1960), The background of safety. International Journal of Psychoanalysis, 4; 352-356, Sroufe, LA. (1996). Emotional Development: The Organization of Emotional Life the Early Years. New York: Cambridge University Press, ‘Veemote, R. (2005). Touching Inner Change: Peychoanalyticely Informed Hospltaliztion- Based Treatment of Personality Disorders: A Process-Outcome Study. Leuven, Belgium: Catholic University Press, ‘Winnicott, D. (1960). Ego distortion in terms of true and false self tn: Winneoxt,D. W, The Maturational Processes and the Faclitating Environment. (p. 140-152), London: Hogarth Press. ‘Winnicott, D. W. (1969). The Use of an Object. ntemational Journal of Psychoanalysis, 50: 711-716, ‘Winnicott, D. W. (1971). Playing and Realty, New York: Basic Books. O terceiro analitico: trabalhando com fatos clinicos intersubjetivos ‘Thomas H, Ogden INTRODUCAO leste capftulo, so apresentadas duas sequéncias clinicas, em um esforco a cesctever os métodlos pelos quiais 0 analista tenta reconinecer, compreen: ler€ simbolizar verbalmente, para si e para 0 analisando, a natureza espect da interagio, momento @ momento, da experiéncia subjetiva do analista, experiéncia subjetiva do analisando e da experiéncia gerada intersubjet famente pelo pet analitico (a experiéncia do terceiro analftico}. A primeira iscussfo clinica descreve como a experiéncia intersubjetiva eriada pelo par inalitico se torna acessivel ao analista, em parte, por meio da experiéneia leste com “suas préprias” reveries, formas de atividade mental que mutitas es parecem ser naca mais do que autoabsor¢do narcisista, distragio, ru- inacio compulsiva, pensamentos on{ticos em vigilie e afins. Uma segunda serigéo clinica se centra em um ¢aso em que o delirio somatico do analis- ‘em conjunto com as experiéncias sensoriais e as fantasias relacionadas ao po do analisando, serviu como principal meio para o analista vivenciar € seguir entender o significado das principais ansiedades que estavam sen- geradas (intersubjetivamente). Bele terd poucas probabilidades de saber o que deve ser feito, a menos que viva naquilo que nao é apenas o presente, maso momento presente do pasado, « menos que estela consciente, nfo daquilo que est morc, ras do que ja estd vivo, (TS. Eliot, 1919, p. 11) 146 anroxivorenno @nonEnTO RASILE Orgs) Nesta ocasiio da celebragio do 75° aniversério de fundagao do Interna. tional Journal of Psychoanalysis, tentarei abordar um aspecto do que entendo ser ‘o momento presente do passado” da psicanilise. Acredito que uma faceta importante desse “momento presente” para.a psicanilise 60 desenvolvimento de uma coneeituacéio analitiea sobre a natureza da interagio entre subjetiy. dade e intersubjetividade no setting analitico e a exploragao das implicagtes desse desenvolvimento conceitual para a técnica, Neste capitulo, apresentarel material cinico de dus andlises, em um es. forgo para ilustrar algumas das maneiras em que o entendimento da intera- fo da subjetividade e da intersubjetividade (Ogden, 1992a, 1992b) influen- cia prética da psicandlise e a maneira como se gera a teori clfnica. Comase veré, considero 0 movimento dizlético de subjetividade ¢ intersubjetividade um fato clinico central da psicanclise, que todo o pensamento clinico analitico tenta descrever em termos cada ver mais precisos e proclutivos. A concepgéo do sujeito analftico, conforme elaborado na obra de Klein € Winnicott, gerou cada vez mais énfase na interdependéncia entre sujeito ¢ objeto em psicandlise (Ogden, 1992b). Acredito ser possivel dizer que 0 pen- semento psicanal{tico contemporineo se aproxima de um ponto onde néo se possa mais simplesmente falar do analista e do analisando como sujeitos se- parados que tomam um ao outro como objeto. A ideia do analista como una tela branca neutza para as projegBes do paciente ocupa uma posigido cade vez ‘menos importante nas concepgdes atuais do processo analitico. Nos iikimos 50 anos, os psicanalistas t8m mudaco seu ponto de vista sobre seu pr6prio método. Atualmente, ests amplamente difundido que, em vex de se tratar da dindmica intrapsiquica do paciente, a interpretacao deve ser feita sobre a interacio de paciente e analista em um nivel intrapsiqulco (O'Shaughnessy, 1983, p. 281)! Minha propria concepeio de intersubjetividade analitica dé uma énfa- se central & sua natureza dialética (Ogden, 1979; 1982; 1985; 1986; 1988; 1989). Esse entendimento representa uma elaboragio € uma extensio da n0- gio de Winnicott de que “nao existe bebé” [fora da proviso materna]" (Win nicatt, 1960, p. 39). Acredito que, em um contexio analftico, nao existe ana lisando fora da relago com 0 analista, nem analista fora da relagao com © analisando, A afirmagéo de Winnicott é, creio eu, intencionalmente incomple- ta Fle pressupée que re entenderé que a ideia de que nio existe bebé é ludl- ‘camente hipetbélica e representa um dos elementos de uma afirmagéo part doxal mais ampla. A partir de outra perspectiva (do ponto de vista do out “polo” do paradoxo), obviamente existe um bebé e uma mae que constitu centidades fisicas e psicoldgicas separadas. A unidade mae-bebé coexiste ¢™ tensio dinmica com a mae e 0 bebé separados. . Da mesma forma, a intersubjetividade analista-analisando coexiste ¢™ tensfio din mica com 0 analista e 0 analisando como individuos separados: com seus préprios pensamentos, sentimentos, sensagdes, realidades corpo” cawvoanatitico 147 ‘ais, identidades psicoldgicas e assim por diante. Nema intersubjetividade da ‘mae-bebé nem a do analiste-analisando (como entidades psicoldgicas sepa- radas) existe na forma pura. 0 intersubjetivo e o individualmente subjetivo criam, negam e preservam um ao outro (ver Ogden, 19925, para uma discus- sio sobre a dialética de unidade e dualidade no inicio do desenvolvimento e “na relacio enalitica), Em ambas as relacdes, da mae com o bebé e do analis- ta com 0 analisando, a tarefa néo é separar os elementos que constituem a _relacéo, em um esforgo para determinar quais qualidades pertencem a cada participante, mas sim, do ponto de vista dla interdependéncia entre sujeito ¢ objeto, a tarefa analitica envolve uma tentativa de descrever, tanto quanto possivel, a natureza especifica da experiéncia de interagdo entre subjetivida: individual e intersubjetividade, Neste capftulo, tentarei tracar, com algum detalhamento, as vicissitudes ‘da expetiéncie de estar simultaneamente dentro ¢ fora da intersubjetividade alista-analisando, o que chamarel de “terceiro analitico”. Essa terceira sub- Jetividade, o terceiro analitico intersubjetivo (0 “objeto analitico” de Green 75), € um produto de uma dialétice singular gerada pelas (entre) subjeti idedes separadas de analista e analisando dentro do setting analftico® ‘Vou apresentar partes de duas anélises que destacam diferentes aspectos da interagio dindmica das subjetividades que constituem o terceiro analiti- ¢0, O primeiro fragmento centra-se na importincia dos aspectos mais munda- ‘ose cotidianos do funcionamento de segundo plano (background) da mente (que parecem néo ter qualquer relacao com o paciente) a servico de reconhe- ste abordar a transferéncia-contratransferéncia, ‘A segunda vinheta clinica permite examinar um exemplo em que o tercei Yo analftco foi vivenciadlo por analista eanalisanclo, em grande parte, por meio fe ilusio somatica e outras formas de sensagSes corporais e fantasias relaciona: dias a0 corpo. Discutire! a tarefa do analista de usar simbolos verbais para falar om uuma vor que viveu dentro do terceiro analitico intersubjetivo, fot modifica- por essa experiéncia e é capaz de falar sobre ela, em sua propria vor, coma alista ao analisando (que também fez parte da experiéncia do terceito).. ISTRAGAO CLINICA: A CARTA ROUBADA. luma recente sessiio com o St; L.~ um analisando com quem eu vinha tra- Ihando hd cerea de trés anos ~eut me vi olhando para um envelope na mesa 40 Indo da minha cadetra, em meu consuitério. Durante a semana ou os dez as anteriores, eu vinha usando esse envelope para anotar ntimeros de te- lefone deixados em minha secretiria eletr6nica, idelas para as aulas que es- fava dando, coisas que tinha que fezer e outras anotagées para mim mesmo. Embora o envelope estivesse & vista por mais de uma semana, até aquele mo: Mento eu néo notara uma série de linhas verticais na parte inferior direlta da 148 ANTONIO FERRO & FOBERTO BASILE (Orgs) ssua frente, que pareciam indicar que a carta tinha sido parte de uma mala direta, Fui surpreendido por um sentimento nitido de decepedo: a carta que havia chegado naquele envelope era de um colega na Italia, que escrevera so. bre um assunto que considerava delicado e deveria ser mantido em absolut sigilo entre nés, A seguir, olhel os selos e, pela primeira vez, notei mais dois detalhes, Os selos nao tinham sido catimbados, e um dos trés selos tinha palavras que, para minha surpresa, eu conseguia ler. Enxerguet “Wolfgang Amadeus Mo. zait” e petcebi, com um momento de atraso, que as palavras eram um nome que ett conhecia e eram “es mesmas” em italiano e em ingles, Enquanto me recuperava desse reverie, eu me perguntava qual pocteria ser a relagdo disso com o que acontecia attalmente entre o paciente e eu. 0 esforgo para fazer essa muclanga de estado psicoldgico se parecia com a diffe batalha na tentativa ce “lutar contra a repressio” que eu softia ao tentar me Jembrar de um sonho que vai escapando ao acordar. Nos tiltimos anos, tenho deixado de lado esses “lapsos de atencio” e me dedicado ao esforgo de enten- der 0 que o paciente esti dizendo, uma vez que, ao retornar desses reveries, estou inevitavelmente um pouco etrs do paciente. Percebi que desconfiava da autenticidade aparentemente transmitida pela carta, Minha fantasia fugaz de que a carte fazia parte de uma mala dire- ‘a refletia um sentimento de que eu fora enganado, e me senti ingénuo e ere dul, disposto a acreditar que me estavam confiando um segredo especial. a tinha algumas associagées fragmentadas, que inclufam a imagem de uma se- cola de correio cheia ce cartas com selos que néo tinham sido carimbados, ura ninho de aranha, A Menina ¢ 0 Porquinko (Chariotte's Web), a mensagem de Charlotte na teia de aranha, 0 rato Templeton eo inocente Wilbur. Neahum esses pensamentos parecia penetrar minimamente na superficie do que esta ‘va ocorrendo entre 0 Sr L. eeu: eu me sentia como se estivesse simplesmente atravessando os movimentos da anélise de contratransferéncia de uma ma neira que parecta forgada Enquanto ouvia o St. L, ~um homem com 45 anos, diretor de wma gran- de orgenizagéo sem fins lucrativos —eu estava ciente de que ele estava falan- do de uma forma muito caracterfstica dele, patecia cansado e sem esperang?y e ainda essim avancava obstinadamente com sua produgdo de “associagies livres”, Durante todo 0 perfodo da andlise, o Sr. 1. vinha lutando bravamente para escaper dos limites de seu extremo distanciamento emocional de si ¢ de outras pessoas, Pensei em seu relato de como dirigiu até a casa onde mora ¢ nfo conseguiu sentir que era sua casa. Quando entroa, foi saudado pela “mt Iher e as quatro criangas que moram ld”, mas nio conseguia senti-los como ‘sua esposa e seus filhos. “E uma sensagéio de que eu mesmo no estou no qué dro e, no entanto, eu estou 1d, Nesse segundo de zeconhecimento de no cencaixer, é um sentimento de estar separado, o que estd bem préximo de #¢ sentir sozinho”. canpoanatinica 149 Experimentei, em minha prépria mente, a ideia de que talvez.eu tenha ‘me sentido enganado por ele e tenha sido tomado pela aparente sinceridade de seu esforgo para falar comigo; mas essa ideia me soou vazia. Lembrei-me dda frustracao na voz de Sr. L. quando me explicava, uma e outra vez, que sa- bia que devia estar sentindo alguma coisa, mas néo tinha ideia do que pode- ria ser (Os sonhos do paciente eram regularmente preenchidos com imagens de pessoas patalisadas, prisioneiros e mudos. Em um sonho recente, ele tinha conseguido, depois de gastar uma energia enorme, romper e abrit uma pe- ‘dra, encontrando hieréglifos esculpidos em seu interior (como um f6ssil). Sita alegria inical foi extinta pelo reconhecimento de que néo conseguia compre- ‘ender um tinico elemento do significado dos hierSglifos. No sonho, sua des- ‘coberta foi momentaneamente emocionante, mas acabou em uma experién- cia vazia, de um sofrimento tantalizante, que 0 deixou em profundo deses- pero. Mesmo o sertimento de desespero foi quase imediatamente destrafdo _apés ele despertar, e se transformou em um conjunto de imagens de sonho sem vida que ele me “telatou” (em vez me contat), 0 sonho tinha se trans- formado em uma meméria estéril e no mais parecia vivo como conjunto de ‘sentimentos, Eu cogitei que minha propria experiéncia na sesso pudesse ser pensa- -da como uma forma de identificagéo projetiva, na qual eu participava da ex- -periéncia de desespero do paciente por no conseguir discernir e vivenciar ‘uma vida interior que parecia estar atrés de uma barreita impenetrdvel, Essa formulagdo tinha sentido intelectual, mas parecia cliché e insuficiente emo- onalmente, Entdo, fui levado a uma série de pensamentos competitivos € ar cisistas relativos a quesides profissionais, que comecaram a assumir uma Walidade reflexiva. Estas reflexes foram cesagradavelmente interrompidas ‘pela percepea de que o meu carro, que estava em uma oficina, ceria que ser irado antes das seis horas, quando a loja fechava. Fu teria que ter cuidado fe terminar a titima hora analftica do cia precisamente as 17h50min, para ‘ter qualquer chance de chegar & oficina antes de fechar. Em minha mente, ett inha uma vivida imagem em que estava em frente as portas da oficina fecha- , com o tréfego rugindo atrés de mim. Senti muito desampato e raiva (além. -de um pouco de autopiedade) com relacdo & forma como o dono da oficina inha fechado a porta precisamente as seis horas da tarde, mesmo eu tendo ido um cliente regular por anos ¢ ele sabendo que eu preciso do meu carro. ‘Nessa experiéncia fantasiada, havia um sentimento profundo e intenso de de- Solacio ¢ isolamento, bem como uma sensagio fisica palpavel da dureza do Pavimento, do fedor da fimaga do escapamento e da textura rugosa do vidro Sujo da porta da garagem. ___ Embora ett ndo estivesse plenamente consciente daquilo na 6poca, ‘olhando agora, consigo ver melhor que estava muito abalado por essa série ide sentimentos e imagens, que tinha comecado com minhas reflexdes narci- 150 ayrowiyo Fiano nomERTO BASILE (Ore) sistas/comperitives e terminado com as fantasias de encerrar impessoalments a sesso do meu tltimo paciente do dia e, em seguide, o proprietétio da gara. gem me fechar a porta na cara. Ao voltar a ouvir 0 Sr, com mais atengao, trabalhet para juntar as eo}. sas que ele estava diseutindo atualmente: a imersdo de sua esposa no traba. Iho e 0 esgotamento que ele e ela sentiam no final do dia, os problemas f\- nanceitos e a feléncia iminente de seu cunhado, uma experiéncia enquanto praticava corrida, na qual 0 paciente foi envolvido em um pequeno acidente com um motociclista que andava de forma imprudente. Eu poderia ter toma- do qualquer uma dessas imagens como simbolo dos temas que tinhames dis- catido anteriormente, inciuindo o préprio distanciamento, que parecia per- mear tudo 0 que o paciente falava, assim como a desconextio que eu sentia ‘tanto em relagao a ele quanto a mim mesmo, No entanto, decidi no intervis, porque achava que, se fosse tentar oferecer uma interpreiagdo neste momen: to, sé estaria me repetindo e dizendo algo para garantir que tinha o que dizer, O telefone do mew escritério tocara no inicio do encontro e a seeretéria eletrénice tinha clicado dues vezes para gravar a mensagem, antes de reto- mar sua vigflia silenciosa. No momento da chamada, eu nao tinha pensado conscientemente em quem poderia ter ligado, mas, neste momento, olhei o relogio para ver quanto tardaria até et. poder ouvir a mensagem, Senti alivio ‘ag pensar no som de uma voz. nova na fita da secretéria eletrOnica. Nao que ‘eu imaginasse encontrar uma boa noticia especffica; eu ensiava por uma vo nitida e clara, Havia um componente sensorial na fantasia ~ ew podia sentit ‘uma brisa fresca lavar meu rosto ¢ entrar nos meus pulmées, aliviando o si- léncio sufocante de uma sala superaquecida e mal ventilada, Lembrei-me dos selos novos no envelope —clatos, de cores vibrantes, sem serem obscurecidos pelas marcas sombrias, mecdinicas, indeléveis, feitas pelas maquinas de ca- rimbar. Olhei de novo para o envelope e percebi algo de que eu tinha tido cons- cigneia apenas subliminar o tempo todo: meu nome e endereco haviam sido digitados em uma méquina de escrever manual e no em computador, nao por rotulagem mecéinica, nem mesmo com uma maquina de escrever elétrice. Senti-me quase alegre com o tom pessoal em que meui nome tinha sido “dito” Eu quase podia ouvir as imegularidades idiossincréticas de cada letra datilo- sgrafada: a inexetidéo da linha, « forma com que faltava a parte superior aci- ma da barra de cada “”, Isso me pareceu como o sotaque e a inflexao de uma ‘voz humana falando comigo, sabendo o meu nome, Esses pensamentos € sentimentos, bem como as sensagées associadas a essas fantasias, trouxeram a mente (€ ao corpo) algo que o paciente tinha me dito meses antes, mas néo voltara a mencionar. Ele me disse que se sentia ‘mais préximo de mim nfo quendo eu dizia coisas que pareciam certas, ¢ sim quando eu me enganava, quando eu errava. Fu levara esses meses para en~ tender de maneira mais ampla o que ele queria dizer com isso. Naquela altura campoawauirico 151 do encontro, comecei a conseguir deserever para mim mesmo os sentimentos de desespero que eu vinha sentindo sozinho, e busca frenética do paciente dealgo humano e pessoal em nosso trabalho juntos. Também comecei a achar que entendia um pouco do panico, do desespero ¢ da raiva associados & expe- sléncia de colidir de novo ¢ de novo com algo que parece humano, mas que se sente mecfinico e impessoal. Lembrei-me da descrigéo que o St. L, fez de sua mie como *morta c2- ebral”, O paciente no conseguia se lembrar de um tinico caso em que ela tivesse demonstrado evidéncias de raiva ou um sentimento intenso de qual- quer espécie, Fla mergulhava no trabalho doméstico e “na culinéria comple- tamente sem inspiracio”. As dificuldades emocionais eram respondidas cons- tantemente com platitudes. Por exemplo, quando o paciente, aos 6 anos, fi- cava apavorado todas as noites por achar que havia eriaturas debaixo da sua eama, sua mae the dizia: “Nao ha nada af para ter medo”. Essa dedlaragéo se tomou simbolo, na andlise, da discérdia entre a preciso da declaragao, por 1m lado (no havia, de fato, criatura alguma debaixo da cama), e, por outro, da falta de vontade/incapacidade de sua mae de reconhecer a vida interior do paciente (havia algo de que ele tinha medo e que ela se recusava a reconhe- ‘cer, identificar-se, ou mesmo ficar curiosa a respeito). ‘Accadeia de pensamentos do Sr. L., que incluia a ideia de se sentir esgo- tado, 2 faléneia iminente do cunhado € os acidentes potencialmente graves ou mesmo fatais, impressionavam-me agora como reflexo de suas tentativas inconscientes de falar comigo sobre 2 sensacéo que comesava a surgit nele, de que a andlise estava esgotada, felida e moribunda. Ele estava experimen- tando os rudimentos de uma sensacio de que ele e eu néo estévamos falando um com 0 outro de forma que parecesse viva; em ver. disso, eu Ihe parecia in- capaz de ser algo além de mecinico com ele, assim como ele néo conseguia ser humano comigo. Eu disse zo paciente que achava que nosso tempo juntes deveria lhe pa- ‘tecer um exercicio obrigatério triste, algo como um emprego em uma fébrica, onde ele bate 0 ponto para entrar e sait. Acrescentei que tinha a impressio de que, as vezes, ele se sentia to desesperadamente reprimido nas horas que assava comigo que deveria parecer como se estivesse sufocando em algo que arece ar, mas vacuo, ‘A voz do St. L. ficou mais alta. mais cheia, como cu niio ouvira antes, quando ele disse: “Sim, eu durmo com as janelas escancaradas por medo de sufocar durante a noite. Costumo acordar apavorado com alguém me sufo- cando, como se tivessem posto um saco plstico na minha cabeca”. O paciente continua cizendo que, quando enttaya no meu consultétio, costumava sen tir que a sala era muito quente e que ar estava preocupantemente viciado. Ele disse que nunca Ihe tinha ocorrido me pedir para desligar o aquecedor {0 pé do diva, nem para abrir uma janela, em grande parte porque nio tinha consciéncia plena, até entio, de se sentir assim. Ele disse que foi muito de~ 152 ANrovivorenno& ROBERTO BAsttEt Orgs) sanimador perceber 0 quélo pouco ele se permitia saber sobre 0 que estava acontecendo dentro de si, a ponto de nfo saber quando uma sela estava mui- to quente para ele. Sx, L. ficou em siléncio durante os 15 minutos restantes da sesso. Un silncio to longo no tinha ocorrido antes na andlise, Durante esse tempo, no me senti pressionado a falar. Na verdad, houve um sentimento conside- rdvel de tranquilidade e alfvio nessa pausa naquilo que agora eu considerava como a “atividade mental ansiosa” que tantas vezes preenchera as horas. Tb- mei consciéncia do tremendo esforgo que o Sr I. € et fazfamos regularmente para impedir que a andlise cafsse no desespero: eu imaginava a nés dois no passado, freneticamente tentando manter uma bola de praia no at, jogando lum para 0 outro. Mais préximo ao final da sesso, fiquei com sono ¢ tive que me esforgar para néo dormi, © paciente comegou a préxima sessio dizendo que tinha sido desperta- do por um sonho, cedo da manhi, No sonho, ele estava debaixo d'4gue e po- dia ver as outras pessoas, completamente nuas. Ele notou que também estava ‘nu, mas néo se sentia constrangido por isso. Estava prendendo a respiracio e sentia pénico de se afogar quando ndo conseguisse mais, Um dos homens, que obviamente respirava debaixo d’égua sem dificuldade, disse-lhe que nao havia problema em respirar e ele, muito cautelosamente, respirou fundo e descobria que conseguia. A cena mudou, embora ele ainda estivesse debaixo égua, Estava chorando, em soluges profandos, e sentia uma enorme triste- za, Um amigo, cujo rosto no conseguia discernir, falou com ele. O St. L. dis- se que se sentia grato ao amigo por no tentar tranquilizé-1o nem animé-lo. ‘O paciente contou que, quando acordou do sonho, sentia-se 2 beita das lagrimas, Ble disse que tinha safdo da cama porque s6 queria sentir 0 que ¢s- tava sentindo, embora ndo soubesse por que estava triste. O Sr. L, notouio ini- clo de suas tencativas conhecidas de transiormar o sentimento de tristeza em sentimentos de ansiedade com relagao a problemas do trabalho ou se preo- ‘eupar com quanto dinheito tinha no banco, ou outros assuntos com os quel se “distrai”, Discussao A descrigo acima foi apresentada no como exemplo de um divisor de aguas em uma andlise, ¢ sim na tentativa de transmitir uma sensagio de movimen- to dialético de subjetividade e intersubjetividade no setsing analftico. Tentei descrever um pouco a maneira como minha experiéncia de analista (incluin- do 0 funcionamento em segundo plano [background] quase imperceptivel € frequentemente mundano da minha mente) é contextualizada pela experién- cia intersubjetiva criada por anolista e analisando, Nenhum pensamento, se- timento ou sensagao pode ser considerado 0 mesmo quie foi ou sera fora do CAMPOANALETIC 153 contexto espectfico (¢ em permanente mudanga) da intersubjetividade cviado poranalista e analisando.* Eu gostaria de comecar a discuss dizendo que estou bem ciente de que a forma com que apresentei o material elinico fot um pouco estranha, no sen- tido de que quase ndo ofereco informacées, do tipo usual, sobre o Sr. I., até um momento bastante posterior na apresentagio. Isso fol felto como tentativa de dar uma ideia de até onde o Sr L., &s vezes, estava completamente ausente de meus pensamentos e sentimentos conscientes, Minha atencéo no esteve rem um pouco voltada para ele durante esses periodos de “reverie” (eu uso 0 termo reverie, de Bion, para me referir no apenas Aqueles estados psicolégi os que refletem claramente a receptividade ativa do analista ao analisando, ‘mas também a um conjunto variado de estados psicoldgicos que parecem re- fletir a autoabsorgéio narcisiste do analista, sua reflexividade obsessiva, seus pensamentos onfricos em vigflia, Fantasias sexuais ¢ assim por diante). Voltando-me aos detalhes do material clinico em si, da maneira com que se desenrolou, minha experiéncia com o envelope (no contexto dessa andli- se) comegou por eu noté-lo, Apesar de ter estado fisicamente presente por settianas, naquele momento ele ganhou vida como evento psicol6gico, porta- dor de sentidos psicolégicos, que no existia antes disso. Considero esses no- vos sentidos niio como reflexo de um alfvio de uma represséio dentro de mim, mas sim, entendo 0 evento como reflexo do fato de que um novo sujeito (0 terceiro analttico) estava sendo gerado por (entre) o StL. € eu, que resultou na criagio do envelope como “objeto” analitico (Bion, 1962; Green, 1975). Quando notei esse “novo objeto” na minha mesa, fui atraido a ele de uma forma que era completamente egossinténica, a ponto de set um evento qua- se totalmente inconsciente para mim. Fui tocado pelas marcas mecanicas no envelope, que, mais uma vez, até entéo nio haviam estado ali (para mim): -ivenciei essas marcas, pela primeira vez, no contexto de uma matriz de sen- tidos relacionada a decepgio por néio sentir que me falavam de uma maneira ‘que parecesse pessoal. Os selos néo carimbados foram igualmente “eriados” € tomaram seu lugar na experiéncia intersubjetiva que estava sendo elaborada. s sentimentos de distancia e estranheza aumentaram até o ponto em que eu mal reconheci o nome de Mozart como parte de uma “linguagem comum’. Um detalhe que requer alguma explicagio é a série de associagdes frag- mentadas que estio relacionadas aA menting € 0 porquinho, Apesac de alta- Imente pessoais e idiossineréticos em relagio minha prépria experiéncia de ‘Vida, esses pensamentos e sentimentos também estavam senclo rectiados den- to do contexto da experiéncia do terceiro analitico. Ku sabia conscientemen- te que A menina eo porquinho era muito importante para mim, mas o signi- ficado especifico do livro estava nio sé reprimido, mas ainda nao tinha che- gado a tomar forma de modo a existir naquela hora. Somente semanas aps A sessfio que estd sendo descrita eu me dei conta de que o livro havia estado, no inicio (e estava no processo de se tornar), intimamente associado a senti- 154° aytonino FEano & nouErto masiLs (orgs) mentos de solido, Percebi, pela primeira vez (na semana seguinte), que ex lera esse livro varias vezes durante um perfodo de intensa solidao na minha {inffncia, e que tinha me identificado completamente com Wilbur como um desajustado e marginalizado, Considero essas associagSes (em grancle parte, inconsclentes) com A me- nina e o porquinho nao como lembranga de uma meméria que havia sido re- primida, mas como criagéo de uma experiéncia (na e através da intersubje- tividede analitiea) que nao existiam anteriormente na forma que assumiam agora, Essa concepgio de experiéncia analitica ¢ fundamental para este capi- tulo: a experiéncia analitica ocorre no auge do passedo e do presente, ¢ en- volve um “passado” que estd sendo eriado de novo (para analista e analisan- do), por meio de uma experiéncia gerada entre analista ¢ analisando (ou seja, no terceito analitico). Gada vez. que minha atengéo consciente passava da experiéncia de “meus préprios” reveries ao que o paciente estava dizendo e como estava me dizendo ¢ estando comigo, et nio estave “voltando” ao mesmo lugar do qual tinha saféo segundos ou minutos antes, Em cada caso, fui modificado pela ex- periéncia de reverie, por veres, apenas de modo imperceptivelmente peque- no, No decorrer da reverie que acabamios de descrevet, ocorrera algo que nfo deve, de forma nenfuma, ser considerado magico nem mistico. Na verdade, que ocorreu foi tao comum, tio discretamente mundano, que é quase inob- servével como evento analitico, Ao voltar a me concentra no St |. apés a série de pensamentos e sent'- mentos relacionados ao envelope, eu estava mais receptivo & qualidade esqui- zoide de sua experiencia e ao vazio das tentativas dele e das minhas proprias de criar algo em conjunto que parecesse real. Eu tinha mais consciéncia do sentimento de castalidade associado 20 sentido que ele tinha de seu lugar na familia e no mundo, bem como o sen timento de vazio associado ao meu proprio esforgo de ser analista para ele. Entéo, det infcio a uma segunda série de pensamentos e sentimentos au- toenvolvicios (segundo a minha tentativa apenas parcialmente satisfatéria de conceituar o meu préprio desespero ¢ o do paciente em termos de identifi- cagao projetiva).* Meus pensamentos foram intertompicos pelas fantasias © sensacGes de ansiedade com relagio ao fechamento da oficina e minha neces- sidade de terminar a tiltima hora analitica do dia “pontualmente”. Mew ear- ro tinha passado o dia na oficina, mas foi s6 com 0 Sr. L., precisamente nesse ‘momento, que o carro foi criado como objeto de andlise. ‘A fantasia que envolve o fechamento da oficina fol criada naquele mo- ‘mento, nao por mim de forma isolada, mas através da minha participagio nt cexperiéncia intersubjetiva com o Sr. L. Os pensamentos ¢ os sentimentos s0- bre o carro e a oficina nio ocorreram em qualquer das outras horas anaittices de que patticipei nesse dia, campo avatirico 155 Na reverie sobre o fechamento da oficina e minha necessidade de encer- sar “pontualmente” a tiltima hora anelitica do dia, a experiéncia de esbarrar em desumanidade mecinica imével em mim ¢ em outros se repetiu de varias, formas. Entrelagadas as fantasias estavam sensacdes de dureza (pavimento, vyidro e textura) e asfixia (a fumaga do escapamento), Essas fantasias geraram em mim um sentimento de ansiedade e urgéncia, que me era cada vez mais, diffe ignorar (apesar de que, no passado eu pudesse muito bem ter desconsi- derado essas fantasias e sensagdes como algo que nao tem qualquer significa do para a andlise, exceto como uma interferéncia a ser superada). “Yoltando” a ouvir o St. L., eu ainda me sentia muito confuso com rela- ‘gio ao que estava ocorrendo na sesséo e tentado a dizer alguma coisa para dissipar meus sentimentos de impoténcie. Nesse momento, algo que tinha ‘ocorrido” mais cedo dentro da mesma hora (0 telefonema gravado pela se cretéria eletrénica), ocorreu pela primeira vez.como evento analitico (ou seja, como evento que tinha sentido dentro do contexto da intersubjetividade que estava sendo elaborado). A “voz” gravada na fita da secretdria eletrnica, agora prometia ser a voz, cle uma pessoa que me conhecia e falava a mim de uma forma pessoal. As sensagées fisicas de respirar livremente e de sufoca- ‘mento eram portadoras de senticos cada vez, mais importantes. O envelope se tornou um objeto analitico ainda mais diferente do que havia sido no infcio da sesso: agora, tinha um sentido de representago de uma vor idiossincrsti- ‘eae pessoal (0 enderego datilografado com um “t” imperfeito), ( efeito cumulativo dessas experiéncias dentro do terceiro analitico le- "you 8 transformagio de algo que o paciente havia me dito meses antes sobre sentir-se mais prdximo a mim quando eu cometia erros. A declaragio do pa- ciente assumiu um novo significado, mas eu acho que seria mais preciso di- tet que a declaragio (lembrada) era agora uma nova declaracéo para mim, ¢ nesse sentido, estava sendo feita pela primeira vez, ‘Nesse momento da sesso, comecei a conseguir usar a linguagem para descrever a mim mesmo um pouco da experiéncia de confrontar um aspecto de outra pessoa, e de mim mesmo, que parecia assustador e irrevogavelmen- “te inumano, Um certo mimero de temas de que o St: I. vinha falendo assu- mia agora, para mim, uma coeréncia que ndo tivera até entio: os temas me areciam convergir a ideia de que o Si. L.. estava vivenciando a mim e ao dis~ ‘uso entre nés como falido ¢ moribundo. Novamente, esses “velhos” temas ‘estavam agora (para mim) se tornando novos objetos analfticos que eu aca~ bara de encontrar. Tentei conversar com o paciente sobre como eu sentia sua “experiencia comigo e com a andlise como algo mecénico e desumano. Antes de comecar a intervengio, eu nao planejara conscientemente usar as imagens de maquinas (@ fébriea e o relégio de ponto) para transmitir o que tinha em ‘Mente; eu estava inconscientemente usando as imagem de meus reveries s0- bre o final mecéinico (determinado pelo relégic) de uma hora analitica € 0 156 AxTONINOFEANO & ROBERTO BASILE (Ores) fechamento da oficina. Considero minha “escolha” de imagens um refiexo da ‘maneira com que eu estava “falando a partir” da experiéncia inconsciente do terceiro analftico (a intersubjetividade inconsciente que estava sendo erieda pelo st; L, € eu). Ao mesmo tempo, eu falava sobre o terceiro analitico a partir de uma posicio externa a ele (como analista), Gontinuel, de modo igualmente nilo planejado, falando ao paciente sobre a imagem de uma cémara de vécuo (outra maquina), em que algo que parecia ser oxigénio que sustenta a vida era, na verdade, vazio (aqui, eu estava inconscien- ‘emente aproveitando as imagens-sensaco da experiéncia fantasiada com 0 ar cheio de escapamento na frente da oficina e do at fresco respiraco em associacio fantasia da secrevétia eletrOniea).5 A resposta do Sr... & minha interven¢Zo en- volveu uma plenitude de voz que refleta a plenitude da respiragio (um dar e re- ‘ceber mais pleno), Seus préprios sentimentos conscientes e inconscientes de ser privado do humano tinham sido vivenciados na forma de imagens ¢ sensagies de sufocamento nas méos da mée/analista que mata (0 saco de plistico {seio] que ‘oimpedia de ser enchido com oxigénto que sustenta a vida). O siléncio ao final da sesséo era, em si, um novo evento analitico ¢ re- fletia a sensagio de repouso em contraste marcante com a imagem de ser vio- entamente asfixiado em um saco plastico ou de se sentir perturbadoramente sufocado pelo ar parado do met consultério. Ainda houve dois outros aspec- tos da minha experiéncia durante esse siléncio que tinha importéncia: a fan- tasia de uma bola de praia mantida freneticamente no alto ao ser jogada en- tte 0 StL, ¢ eu, e minha sensagéo de torpor. Embora eu me sentisse bastante aliviado pela maneira com que conseguimos ficar em siléncio juntos (em uma combinagao de desespero, exaustdo e esperanca), havia um elemento na ex- periéncia do siléncio (em parte, refletido na minha sonoléncia) que parecia um trovio distante (que eu vie egora como raiva repelida), Comentarei brevemente 0 sonho com que o Sr. L. comecou a sessfio se guinte. Eu o entendo simultaneamente como resposta a sessio anterior ¢ 0 infclo de uma delimitagio mais nitida de um aspecto da transferéncia-con- tratransferéncia, em que o medo que o Sr. L. tinha do efeito de sua raiva em mim ¢ de seus sentimentos homossexuais em relagéo a mim estavam se tor- nando ansiedades predominantes (mais cedo, eu tinha tido pistas sobre eles, que consegui usar como objetos analiticos, por exemplo, a imagem ¢ a sem sagio de barulho de tréfego atrds de mim, na minha fantasia com a oficina). Na primeira parte do sonho, o paciente estava debaixo d’égua com ou- tras pessoas nuas, incluindo um homem que the disse que no haveria proble- ma em respirer, apesar de seu medo de se afogar. Ao respirar, ele tinha dificul- dade de acreditar que realmente conseguisse. Na segunda parte do sonho do Sr L,, ele solugava de tristeza enquanto um homem, cujo rosto no conseguia Aiscemnit, ficou com ele, mas nio tentava animé-lo. Gonsideto esse sonho, em parte, como expresséo do sentimento do St. L. de que, na hora anterior, nés dois tinhamos vivenciado juntos e comegado campo anatinico 187 a entender melhor algo importante sobre a vida inconsciente dele (“debaixo Pégua”) € de que eu nao tinha medo de ser dominado (afogado) por seus sentimentos de isolamento, tristeza e futilidade, nem sentia medo por ele, Como resultado, ele se atrevew a deixar estar vivo (inspirar) 0 que antes te- mia que 0 sufocasse (0 seio-vécuo/analista). Além disso, houve uma sugestio de que a experiencia do paciente nao Ihe parecia totalmente real, na medida ‘em que, no sonho, ele achava diffcil acreditar que realmente conseguiria fa- ‘zer 0 que estava fazendo. Na segunda parte do sonho, 0 St. L representou mais explicitamente sua maior capacidade de sentir tristeza, de tal forma que ele se sentiu menos des- conectado de si mesmo e de mim, O sonho me parecia, em parte, uma expres- sfio de gratidao a mim por néo Ihe ter roubado os sentimentos que ele estava comegando a sentir, ou seja, por ndo interromper o siléncio no fim do encon- tro do dia anterior com uma interpretagio nem tentar de outra forma dissipar ou mesmo transformar sua tristeza com minhas palavras ¢ ideias. Fu achava que, além da gratidfo (misturada com dtivida) que o St. L. estava sentindo em conexo com esses eventos, havia menos sentimentos ad- mitidos de ambivaléncia em relagio a mim, Fu fui alertado para essa possibi- lidade, em parse, por minha prépria sonoléncia no final da sesso anterior, 0 que muitas vezes reflete meu estado defensivo. ‘A fantasia de bater na bola de praia (seio) sugeria que poderia muito bem set a raiva que estava serdo repelida, Eventos subsequentes na andlise me le- varam a me convencer cada vez mais de que a auséneia de rosto do homem na segunda parte do sonho era, em parte, uma expresso de raiva que o paciente (transferéncia materna) tinha de mim, por ser to evasivo a ponto de ser dis- forme e indefinido (como ele sentia a si préprio). Essa ideia foi confirmada nos anos seguintes de anilise, & medida que a raiva que o Sr. L. tinha de mim por “ser ninguém em particular” foi expressada diretamente. Além disso, em ur ni- vel mais profundamente inconsciente, fato de o paciente ser convidado pelo homera nu a respirar na égua reflete o que eu sentia como uma intensificagio dda sensagéo inconsciente do Sr. L. de que eu o estava seduzindo para que es- tivesse vivo na sala comigo, de uma forma que muitas vezes provocava ansie~ dade homossexual (representada pelo incentivo do homem nu para que o Sr. L. recebesse 0 fluido compartilhado em sua boca). A ansiedade sexual refletida nesse sonho sé foi interpretada muito mais tarde na andlise, Alguns comentirios adicionais Na sequéncia clinica desctita acima, no foi uma simples easualidade que mi- nha mente “vagasse” e chegasse a se concentrar em um conjunto de marcas feitas por uma maquina em um envelope coberto de niimeros de telefone 1a- biscados, anotagdes para aulas e lembretes sobre coisas a fazer. O envelope 158 AnroxIvoFERNO& ROBERTO BASILE (Orga) em si, além de pottar 08 sentidos jf mencionacos, também representava (9 que tinha sido) 0 meu préprio discurso privado, uma conversa privada que nfo era ditigida a qualquer outra pessoa; escrito nele estavam anotagées em, que ew falava comigo mesmo sobre os detalhes cla minha vida. O funciona. mento da mente do analista durante horas analiticas dessas formas “natu. ais”, néo constrangidas, so aspectos altamente pessoais, privados ¢ embara- gosamente mundanos da vida, os quais raramente se discutem com coleges, muito menos se comentam em relatos publicados de andlise. K necessério um, grande esforgo para aprender esse aspecto do pessoal e do cotidiano na dea de reverie que nao é autorreflexiva, com o propdsito de falar conasco mesmos sobre a maneira como esse aspecto da experiéncia foi transformado de forma 2 se tomar uma manifestagio da interagio dos sujeitos analiticos. O “pessoal” (0 individualmente subjetivo) nunca volta a ser 0 que fora antes da sua cria- fo no terceito analftico intersubjetivo, nem é totalmente diferente do que ti- tha sido. Acredito que uma importante dimenséo da vida psicoldgica do analisia no consultério com o paciente assume a forma de devaneio sobre os detalhes ordindtios e cotidienos de sua prépria vida (que so, muitas vezes, de gran- de importéincia narefsica para ele), Nessa discussio clinica, tentei demonstrar que esses devanelos nao so apenas de reflexos de desatengio, autoenvolvi- mento narcisista, conflitos emocionais nio resolvidos e assim por diante; essa atividade psicolégica representa formas simbélicas e protossimbdlicas (basea- das em sensagio) dadas a experiéncia néo expressada (e, muitas vezes, ainda ndo sentida) do analisando ao tomarem forma na intersubjetividade do par analitico (ou seja, no terceiro analitico) Esta forma de atividade psicolégica muitas vezes é vista como algo por {que 0 analista deve passar, que deve pbr de lado, superar, etc., em seu esforco para estar emocionalmente presente ¢ atento ao analisando. Estou sugerin- do que uma visio da experiencia do analista que desconsidera essa categoria de fato cinico o leva a diminuir (ou ignorar) o significado de grande parte (em alguns casos, da maior parte) de sua experiéncia com o analisando. Mi- nha opinifo é que um fator importante para a desvalorizacdo de uma parce- Ja téo grande da experiencia analitica ¢ 0 fato de que tal reconhecimento en~ volve uma forma perturbadora de autoconsciéncia, A andlise desse aspecto da transferdneia-contratransferénela exige tum exame da maneira como fala- mos a nés mesmos e do que nos dizemos sobre um estado psicoldgico priva- do, relativamente sem defesas, Nesse estado, a interagio dialética de consc- éncia e inconsciéncia foi alteraca de formas que se essemelham a um estado de sonho. Ao nos tornarmos auttoconscientes dessa forma, estamos mexenco ‘com um santuaio interior essencial da vida privada e, portanto, com uma {as pedras angulares da nossa sanidade, Estamos pisando em territ6rio sa grado, uma drea de isolamento pessoal na quel, em grande medida, estamos nos comunicando com objetos subjetivos (Winnicott, 1963; ver, também, Os- caupoanatirico 159 den, 1991). Essa comunicagio (como as anotagies feitas para mim mesmo no envelope) néo se destina a mais ninguém, nem a aspectos de nés mesmos {que residem fora desse “beco sem saida” sofisticadamente privado/mundano (Winnicott, 1963, p. 184). Esse dominio da experiencia transferencial-contra- transferencial é to pessoal, tio arraigado na estrutura de eardtet do analis- ta, que & preciso um grande esforgo psicolégico para entrar em um discurso ‘consigo mesmo, de um modo que é necessdrio para reconhecer que mesmo ‘esse aspecto do pessoal foi alterado por nossa experiéncia no terceira analiti- ‘co € com ele, Se quisermos ser analistas em um sentido pleno, ¢ preciso ten- ‘tar conscientemente trazer até mesmo esse aspecto de nés mesmos para 0 processo analitico, A PSIQUE-SOMA E O TERCEIRO ANALITICO Na préxima parte deste capitulo, vou apresentar um relato de uma interagéo analftica em que uma ilusio somética vivida pelo analista e um grupo rela- cionado de sensagies eorporais e fantasias relacionadas ao corpo vivenciadas pelo analisando constituem o principal meio pelo qual o terceiro anelitico foi experimentado, compreendido ¢ interpretado, Como ficard evidente, a con- dutta dessa fase da andlise dependia da capacidade do anclista de reconhecer e fazer uso de uma forma de fato cifnico intersubjetivo manifestado em gran- de parte através da sensacio/fantasia corporal. Mustragao clinica: 0 coracao revelador Nessa discussio clinica, vou deserever uma série de eventos que ocorreram no terceiro ano da anilise da Sra. B., uma advogada casada de 42 anos e mée de duas eriangas em idade de laténcia. A paciente havia comecado a anlise por azes que nfo estavam claras para nés dois; ela sentia uma vaga insatisfacao ‘com sua vida, apesar de ter““uma familia maravilhosa” ¢ estar se saindo bem no trabalho. Ela me disse que nunca teria imaginado que “aeabaria no consultério de um analiste”, “parece que eu saf de um filme do Woody Allen’. © primeiro ano e meio de anélise foi mareaéo por um sentimento forsa- do e vagamente perturbador. Eu estava intrigado com as razies pelas quais Sra, B, vinha a suas sessbes didrias e ficava um pouco surpreso a cada dia, quando ela aparecia. A paciente quase nunca faltava, raramente se atresava €,na verdade, chegava a tempo de usar o banheiro do meu consultério antes de quase todas as sessies, A Sra. B. falava de forma organizada, um tanto obsessiva, mas pensati- ‘va: sempre havia temas “importantes” a ciscutis, incluindo o citime que a mae sentia até mesmo de pequenas quentidades de atengio dadas a paciente por 160 ayrontvo renno &nonenronasits:(onys) seu pai, A Sra, B. achava que isso estava ligado a dificuldades do presence, tals como sua ineapacidade para aprender (‘assimilar as coisas”) de sdcias lores no trabalho. No entanto, havia uma superficialidade nesse trabalho e, com o pastar do tempo, a paciente parecia ter que fazer mais e mais esforyo para “encontrar coisas para falar”. Ela falava sobre néo se sentir totalmente Presente nos encontros, apesar de seus esforgos para “estar aqui”, No final do segundo ano de anélise, os siléncios se tornaram cada vez nals frequentes e consideravelmente mais longos, muitas vezes com duragao de 15 a 20 minutos (no primeiro ano, raramente havia um siléncio). Tenet falar com a Sra. B. sobre como ela se sentia por estar comigo durante um po- Hodo de siléncio, Hla respondia que se sentia extremmamente frustrada e em. perradla, mas nio conseguis aprofundar o assunto. Apresentei minhas préprias tentativas de pensar sobre o possivel relacio- znamento entre um siléncio ¢ a experiéncia de transferéncta-contratransferén. ca que pode ter precedido imediztamente o siléncio ou, talvez, tenha ficado mal resolvida no encontro anterior. Nenhuma dessas intervenes parecia al- terara situagio, A Sra. B, pedia desculpas repetidamente por nao ter mais a dizer ¢ se Preocupava por estar falhandlo comigo. Como o passar dos meses, houve uma sensagéo crescente de cansago e desespero associado com os siléncios e com a falta de vitalidade geral da andlise. A paciente continuava se desculpando comigo por esse estado de coisas, mas de modo cada vez mais técito e trans- mitido por sua expressio facial, sua maneira de andar, seu tom de vor, ete. ‘Além disso, neste momento da enélise, a Sra. B. também comecou a retorcer as méos durante as horas analtticas, e ainda mais vigorosamente durante os siléncios. Ela puxava com forca os dedos das mos e apertava muito os n6s dos dedos e os dedos, até suas miios ficarem avermelhadas ao final da sessio. Descobri que minhas prdprias fantasias e meus pensamentos oniricos em vigilia eram extraordinariamente esparsas durante esse perfodo de traba- Iho, ¢ também notei que tinha menos sentimento de proximidade com a Sra. B. do que eu esperava, Certa manha, enquanto dirigia para 0 consultério, estava pensando nas pessoas que atenderia naquele dia e nao consegui me lembrar do primeiro nome da Sra, 8, Eu racionalizei que tinha anotado aperas seu: sobrenome na ‘minha agenda e nunes me dirigia a ela pelo primeito nome, e ela tampouco mencionaya o primeiro nome ao falar de si, como fazem muitos pacientes. Imaginei-me como uma mie incapaz de dar nome a um bebé depois do nas: imento, como resultado de uma profunda ambivaléncia em relagéo a esse naselmento. A Sra, B, me contara muito pouco sobre seus pais e sua inféncia, afirmendo ser muito importante para ela me falar dos pais de forma “justa € precisa”. Hla disse que ira me falar deles quando encontrasse as palavras ¢ © Jeito certos, campo avatinico 161 Durante esse periodo, desenvolvi o que pensava ser uma leve gripe, mas consegiti manter meus compromissos com todos os pacientes. Nas semanes que se seguiram, percebi que eu continuava ndo me sentindo bem fisicamen- ‘te durante minhas sessdes com a Sra, B., sentindo nduseas, mal-estar e ver- tigem. Eu me sentia como um homem muito velho e, por razées que eu nao conseguia entender, essa imagem de mim mesmo me dava algum conforto, ao mesmo tempo em que me incomodava profundamente, Eu néo tinha conheci- ‘mento de sentimentos ¢ sensagGes fisicas semelhantes durante qualquer outra parte do dia. Concluf que isso refletia uma combinacio do fato de que os en- contros com a Sra, B deviam ser particularmente desgastantes para mim, com 0s longos periodos de siléncio em suas sessées, que me permitiam ter mais consciéncia do meu estado fisico do que com outros pacientes, Agora eu consigo reconhecer que, durante esse perfodo, comecei a sentir uma ansiedade difusa nas horas que passava com a Sra. B., mas, na época, eu sabia apenas subliminarmente dessa ansiedade e néo conseguia diferencid- -la das sensagies fisicas que estava experimentando. Pouco antes de minhas sessGes coma Sra. B,, eu costumava encontrar coisas para fazer, como dar te lefonemas, organizar papéis, encontrar um livro, etc., todas com 0 efeito de fetardar 0 momento em que teria que encontrar a paciente na sala de espe- 2. Como resultado, &s vezes et me atrasava um minuto ou mais para come. ar a sesséo. A Sra. B. parecia me olhar atentamente no inicio e no fim de ceda hora, Quando Ihe perguntei sobre isso, ela se desculpou e disse que nao estava cien- te de fazé-lo. O conteiido das associagdes da paciente parecia estérile alta~ mente controlado, ¢ era centrado em suas dificuldades no trabalho ¢ preo- cupagées com os problemas emocionais que ela achava que os filhos podiam ‘estar tendo ~ ela levou o filho mais velho a uma consulta com um psiquiatra infantil por se preocupar com sua falta de concentracéo na escola. Comentei ue achava que a Sra, B. estava preocupada com seu prdprio valor como mie, da mesma forma como se preocupava com seu valor como paciente (essa in. ‘erpretacdo era parcialmente correta, mas néo conseguia tratar da ansiedade central da sessio porque, como vou dliscutir, eu estava me defendendo incons- cientemente de reconhecer isso). Logo depois de minha intervencio sobre as dividas que a paciente tinha acerca de seu valor como mae ¢ analisanda, tive sede e me inelinei na eadeira Para tomar um gole de um cope dégua que deixo no chio, ao lado da cadelra {em muitas ocasides, eu tinha feito a mesma coisa durante as sessées da Sra, B., bem como com outros pacientes). Quando eu ia pegar 0 copo, a Sta. B me essustou ao se virar abrupta- mente (¢ pela primeira vez, na andlise) no divd para olhar para mim, Ela tinka ‘uma expressio de panico no rostoe disse: “Eu sinto muito, eu nao sabia o que estava acontecendo com voce”. 162 avronivo renno & ROBERTO RASILE (Orgs) Foi apenas na intensidade desse momento, em que houve um sentimen. to de terror de que algo catastréfico estava acontecenclo comigo, que conse. gui dar nome ao terror que vinha carregando ha algum tempo. Tomei cons. cigncia de que a ansiedede que eu vinha sentindo ¢ 0 medo (predominante- ‘mente inconsciente e primitivamente simbolizado) dos encontros com a Sra, B, (fefletido em meu comportamento protelatério) tinha relacgo direta com, uma sensagio/fantasia inconsciente de que os meus sintomes sométicos de nduseas, mal-estar e vertigem eram causados pela Sta. B., € que ela estava me matando. Eu agora entendia que, por vérias semanas, vinha sendo emocio- nalmente consumido pela conviecio inconsciente (uma “fantasia no corpo", Gacidini, 1982, p. 143) de que tinka ume doenca grave, talvez um tumor ce- rebral, ¢ que, durante esse periodo, eu tinha medo de estar morrendo. Sen. ti uma imensa sensegfo de alfvio naquele momento da sesso em que vim a ‘entender esses pensamentos, sentimentos e sensacdes como reflexo de even- tos da transferéncia-contratransferéncia que ocorre na anélise. Em resposta & atitude de se virar para mim com medo, eu disse & Sra. B. que achava que ele tinha medo de que algo tertivel estivesse me acontecendo e que eu puudesse até estar morrendo. Ela disse que sabia que parecia loucura, mes quando ou: vviu eu me mover na cacleira, foi tomada pela sensacao de quee eu estava tendo um ataque cardiaco. Fla aerescentou que vinha me achando pélido hé algum tempo, mas nfo queria me insultar nem me preocupar dizendo isso (a capa cidade da Sra. B, de falar comigo dessa maneira sobre suzs percepcées, senti- mentos e fantasias refletia uma importante mudanca psicolégica que j4 havia comegacio a acontecer). Enquanto isso estava ocorrendo, percebi que eta a mim que Sra. B. que ria levar ao médico, e néo seu filho mais velho. Reconheci que a interpretactio que eu apresentara na sessAo sobre as diividas que ela tinha de si mesmia es- tava consideravelmente equivocada ¢ que a ansiedade sobre a qual a pecien- te estava tentando me falar era 0 seu medo de que algo catastréfico estivesse ocorrendo entre nds (que mataria a um cu aos dois) € que deveria ser encon- trada uma terceira pessoa (um pai ausente) pata evitar o desastre, Muitas ve- zes eu me movera na cadeira nas sessdes da Sra. B., mas foi s6 no momento descrito acima que o barulho do meu movimento se tornou um “objeto ana: Iitico” (portador de sentido analitico gerado pela intersubjetividade) que néo cexistia anteriormente. A capacidade da paciente e « minha prépria de pensar ‘como individuos separados havia sido cooptada pela intensidade do delirlo fantasioso/somatico inconsciente compartilhado em que ambos fomes enre- dados. A fantasia inconsciente refletia um conjunto importante ¢ altamente conflituoso das relagées objetais internas inconscientes da Sra. B., que esta- vam sendo criadas de novo na andlise, na forma de meu delirio somético em conjunto com seus temores delirantes (sobre o meu corpo) ¢ sutas préprias ex- periéncias sensoriais (p. ex., a torgio das maos). CAMPO ANatirico 163 Eu disse & Sra, B, que achava que ela tinha medo nio apenas de que eu es- tivesse morrendo, mas também de ser a causa direta e imediata. Eu disse que as- sim como tinha se preocupado por estar tendo um efeito nocivo sobre seu filho e 0 levara 20 médico, ela estava com medo de ter me deixando muito doente e que eu fosse morrer. Nesse momento, as torgSes das mis e puxdes dos dedas da Sra, B, recuaram, ¢ eu percebi, quando ela comecou a usar os movimentos das ‘mos para acompanhar a expresso verbal, que eu nao conseguia me lembrar de Jamais ter visto suas mos funcionarem (isto é, nem tocar uma & outra, nem se mover de uma maneira rfgida, desajeitada). A paciente disse que 0 que estéva- mos dizendo Ihe parecia verdadeiro de forma importante, mas ela estava preoci- pala com esquecer tudo o que tinha acontecido no nosso encontro daquele di O tiltimo comentdtio da Sra. B. me trouxe & meméria minha propria in- capacidade de me lembrar de seu primeiro nome e da minha fantasia de ser tuma mae néo disposta a reconhecer plenamente o nascimento de seu bebé {ao nfo the dar nome) ‘Agora eu achava que a ambivaléncia representada pelo meu proprio ato de esquecer e a fantasia associada (assim como a ambiveléncia da Sra. B., re- presentada em sua ansiedade que ira destruir toda a meméria desse encon- {0) refletiam um medo, que ambos tfnhamos, de que the permitir ‘nascer” (ou seja, tornar-se verdadeiramente viva e presente) na andlise representa- ria um sério perigo para nés dois. Eu achava que tinha criado uma fantasia inconsciente (em grande parte, gerada na forma de experiéneia corporal) de que se ela ganhasse vida (seu nascimento) eu poderia ficar doente e morrer. Por nés dois, era importante que fizéssemos todos os esforcos para evitar que esse nascimento (e morte) ocorresse. Eu disse & Sta, B. que achava que agora entendia um pouco melhor por que ela sentia que, apesar de todo 0 esforgo que fazia, nao conseguia se sen- tir presente aqui comigo ¢ cada vez menos era capaz de pensar em qualquer coisa para dizer, Eu Ihe disse que achava que ela estava tentando ser invisivel em seu siléacio, como se nao estivesse realmente aqui, e que esperava que, a0 fazé-1o, fosse menos um fardo para mim e me impedisse de adoecer. Ela respondeu que estava cliente de se desculpar continuamente e que, ‘em um momento, sentiu'se tio farta de si mesma que pensou, mas nio me disse, que lamentava ter “se metido nisso” (a andlise) e desejou poder “apa ‘zat, fazer com que munca tivesse acontecido". Acreseentou ter pensado que ‘eu também ficaria melhor ¢ imaginou que eu devia estar arrependido de ter concordado em trabalhar com ela. Ela disse que isso parecia um sentimen- to que tinha tido desde que conseguia se lembrar. Embora sua mie repetida- mente Ihe assegurasse que vibrara ao engravidar dela e tinha esperado muito © seu nascimento, a Sra, B. se achava convencida de ter “sido um erro” e de que sua mae nem queria ter tido filhos, A mae dela tinha 30 ¢ tantos anos ¢ © pai, 40 € poucos, quando a paciente nasceu; ela era filha tinica e, até onde 164 axronino remo &nonnTO BASILE (Orgs) sabla, nao houve outra gravidez, A Sra, B, me contou que seus pais eram pes. soas muito “dedicadas” e, portanto, ela se sentia extremamente ingrata por dizer isso, mas a casa de seus pais nao Ihe parecia um lugar para criangas, Sua mae guardava todos os brinquedos no quarto da Sra. B. para que seu pai, um “académico sério", nao fosse perturbado enquanto lia e onvia musica & noite nas tardes de fim de semana. © comportamento da Sra. B. na andlise parecia refletir um imenso esfor- go para se comportar “como adult” e nao fazer uma bagunge emocional na “minha casa’ (a andlise) ao enché-la de pensamentos, sentimentos ou com- portamentos irracionais ou infantis, Eu me lembrei de seus comentatios no primeito encontto sobre a estranheza e o sentimento de irrealidade que sen- tia no meu consultério (sensagéo de ter safdo de um filme do Woody Allen). A ‘Sra, B, tinha estado inconseientemente dividida entre a necessidade de obter ajuda de mim e seu medo de que o préprio ato de reivindicar para si um lagar comigo (em mim) me esgotasse ou matasse. Eu consegui entender a minha fantasia (e as experiéncias sensoriais associadas) sobre ter um tumor cerebral como reflexo de uma fantasia inconsciente de que a prépria existéncia da pa~ clemte era uma espéce de erescimento que, de forma fvida, egoista e dest tiva, assumiu um espago que néo deveria ocupar. ‘Tendo me falado de seus sentimentos sobre a casa dos pais, a Sra, B, rei- terou sua preocupagio com a possibilidade de apresentar uma imagem im- precisa deles (particularmente a mie) e me fazer ver a mfe de uma forma que néo refletia com precisio a totalidade de quem ela era, No entanto, 2 pa- ciente acrescentou que dizer isso parecia mais reflexivo do que real dessa vez. Durante essas interagies, pela primetra vez na andlise, senti que havia duas pessoas na sala, conversando uma com a outra. Pareceu-me que nao sé a Sra, B. conseguiu pensar e falar mais plenamente como um ser humano vivo, mas eu também senti que estava pensando, sentindo e experimentando si sagées de uma maneira que tinha uma qualidade de realismo e espontan dade da qual que eu ndo havia sido capaz nessa andlise. Em retrospecto, mett trabalho analftico com a Sra. B. até ali parecia, as vezes, envolver uma identi- ficagao excessivamente obediente com o meu proprio analista (0 “velho”). Eu tinha ndo s6 usado frases que ele usara regularmente, mas também, is vezes, falara com uma entonagéo associada a ele. Foi s6 apds a mudanca na endlise que acabamos de deserever que eu reconheci isso integralmente. Minha ex periéneia nessa fase do trabalho analitico tinha “me cbrigado” a experimen- tar a fantasia inconsciente de que a plena realizacéo de mim mesmo como analista s6 poderia ocorrer & custa da morte de outra parte minha (a morte de um objeto interno analista/pai). Os sentimentos de conforto, ressentimen- to e ansiedade associados @ minha fantasia de ser um velho refletiam tanto a seguranga que eu sentia em ser como (estar com) meu analista/pai quanto 0 desejo de estar livre dele (na fantasia, de maté-lo). O titimo desejo trazia consigo o medo de morrer no processo. A experiéncia com a Sra. B., incluin- cAMPOANALINIGO 165 do oato de colocar em palavras meus pensamentos, sentimentos e sensagies, constitufa uma forma especial de separacdo e luto da qual eu néo tinha sido capaz até esse ponto, COMENTARIOS FINAIS SOBRE O CONCEITO DE TERCEIRO ANALITICO Para encerras, vou tentar reunir uma sézie de idelas sobre @ nogdo de terceiro analitico que foram desenvolvidas explicita ou implicitamente no decurso das duas discussbes clinicas. © processo analitico reflete a interacio de trés subjetividades: a do ana- lista, a do analisando e a do terceiro analitico. O terceiro analitico é uma cria- so do analista e do analisando e, ao mesma tempo, analista e analisando (enquanto analista ¢ analisando) so eriados pelo terceiro analitico (nfo exis- te analista, analisando nem andlise na auséncia do terceiro). Corno 0 terceiro analitico ¢ vivido por analista e analisando no contexto de seu préprio sistema de personalidade, hist6ria pessoal, configuragao psi- ‘cossomitica, etc., a experiéncia do terceiro (embora ele seja criado conjunta- mente) nao ¢ idéntica para cada participante. Além disso, o terceiro analitico uma construgio assimétriea, porque gerada no contexto do setting analitico, ‘© qual € fortemente definido pela relacdo entre os papéis do analista e do ana~ lisando. Como resultado, a experiéncia inconsciente do analisando ¢ privile- giada de uma maneira espectfica, ou seja, & a experiéncla passada e presente do analisando que é tomada pelo par analitico como principal tema (embora no exclusivo) do diseurso analitico. A experiéncia do analista no e do tercei- 10 analitico e ¢ usada principalmente como vetculo para compreender a ex- periéneta eonsciente e inconsciente do analisando (analista e analisando nao esti envolvidos em um processo democratico de andlise mtitua). Oconceito do terceito analttico fornece um quadro de ideias sobre a i terdependéncia entre sujeito e objeto, de transferéncia-contratransferéncia, ‘que auxilia 0 analista em seus esforgos para prestar muita atengio e refletir claramente sobre a mirfade de fatos elfnicos incersubjetivos que encontra, se- Jam eles aparentemente divagagSes internas sua mente, sensagdas eorporals ‘que aparentemente nada tém a ver com 0 analisando ou qualquer outro “ob- Jeto analitico” intersubjetivamente gerado pelo par analitico. NOTAS 1. Bstd fora do alcance deste capitulo apresentar uma ampla revisio da literatura sobre o desenvolvimento ce uma compreensi intersubjetiva do processo analitico 166 arronivorenno & nonento nAsiLe cor.) § ga narureza da inerago de ansfertcieecontatransterénci. Ua parial da grandes consbulées a esses aspects do dilogo analifeo Inch: Atroot ffoloron (1984) Balin (1968), Bion (1952; 1958; 1962); Blechner (1992); Pose 1987} Boyer (1961; 1983; 1992); Coli (1986); Ferenc! (1990); Coneesh (2991); Giovacchini (1979); Green (1975); Grinberg (1962); Grotstetn ase; open (2980); Hofman (1992); Jacobs (1891); Joseph (1982); Kempo (1976); Khan (1974); Klein (1946; 1935), Kohut (1977); Little (1951); MeDou- yc4978) Melaughts (1991); Meltzer (1966); Milner (1969); Mitchel (198, ‘Money-Kyrle (1956); O'Shaughnessy (1983); Racker (1952; 1968); D. Rosenfeld (1992): H, Rosenfeld (1952; 1965; 1971); Sandler (1976); Scharf (1092) Sex $5279) Seal (1981); Tansey e Burks (1965); Videnan (1979) e Whanizae(Io4h 1951), ara revises recentes dos aspeciosdesse grande corpus de itraturceolre transferéneta-coniratransferénca, ver Boyer (1993) e Etehegoyen (1991), 2. Embora, por eonveniénda, eu as veres me refi ao “Yerelto enalico titers ‘etivo” como “tercero analtico" ou simplesmente“o treo", eae concelto ny deve ser confurdido com oteceiro edlpica/simbélico (0 “nome do pol” dean {1953)), Este timo conceto se referea um ‘meio term” que ea entvesinvon, inbolizado, entre a propria pessoa e sua experléncia sensorial imediata vive

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