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Enquanto seus ilustres predecessores não xeque o poder e os que o desafiam? Nosso ob
haviam se rendido à objetiva, Lampião, du jetivo é analisar o status ambíguo dessas ima
rante todo o período em que governou o can gens, a princípio destinadas a ser uma marca
gaço e reinou sobre o sertão, vai empenhar-se do real, no calor da hora, porém dotadas de
em ilustrar, com inúmeros retratos, os gran uma significação política e impregnadas de
des momentos de sua vida: sua "chegada", uma forte dinâmica. Analisaremos essa refe
em 1922, à frente de um grupo de cangacei rência à imagem através das fotografias e do
ros em substituição ao ex-chefe de bando filme realizado por Benjamin Abrahão em 1936.
Sinhô Pereira, sua entrada triunfal na cidade
de Juazeiro em 1926 e sua incorporação, jun OS REGISTROS DE BENJAMIN ABRAHÃO
to a 49 cangaceiros, aos batalhões patrióti Benjamin Abrahão Botto, nascido em 1890,
cos que lutavam contra a Coluna Prestes no originário do Líbano, emigrou em 1915 para
sertão do Ceará; depois, nos anos 1930, o o Brasil, onde já morava parte de sua famí
advento de uma nova forma de banditismo, lia. Nos anos 1920, instalou-se em Juazeiro, no
mais sedentário, com a integração de mulhe Ceará, como comerciante, e logo se tornou
res. Enquanto as forças da ordem não conse secretário pessoal do Padre Cícero. Benjamin
guiam agarrar o Rei do Cangaço em seu antro, Abrahão promoveu a visita de Lampião a
este último teve o topete de aceitar a oferta Juazeiro em 192ó e coordenou as diversas au
do fotógrafo e cameraman Benjamin Abrahão diências que ele concedeu aos notáveis e per
para fazer um filme sobre a atividade de seu sonalidades da cidade; foi também ele que
bando. Esses registros realizados em 1936, fez a ponte para o jornalista Otacílio Macêdo
verdadeira provocação, deveríam constituir entrevistar Lampião e arranjou as sessões de
um instrumento para a glória de Lampião e fotos com os fotógrafos Pedro Maia e Lauro
um desafio para seus adversários (pp. 285- Cabral de Oliveira. Foi nessa ocasião que con
294). Nessa profusão de imagens, podemos cebeu o projeto de fazer um filme documentá
não só ver a marca de um homem seguro de rio sobre Lampião.
sua invulnerabilidade, como igualmente per A partir de 1934, Benjamin Abrahão exerceu
ceber, em-filigrana, uma tentativa de conjurar a função de coiteiro, fazendo inúmeras vezes
o perigo e a morte. o trajeto até Recife com somas elevadas des
Paralelamente a essa proliferação de ima tinadas a comprar bebidas caras e munições,
gens suscitadas por Lampião, surgiram foto sumindo em seguida no sertão durante certo
grafias impressionantes encomendadas por tempo. Essas atividades permitiram-lhe entrar
seus adversários. Às fotos que mostravam as em contato com o grupo de Lampião e tor
forças da ordem em ação ou posando com nar-se seu fornecedor. Já tendo estabelecido
determinação, sucederam as de cangaceiros laços de amizade com Lampião em Juazeiro
presos; mais tarde, nos anos 1930, imagens em 1926, não lhe foi difícil ganhar a confiança
de cadáveres mutilados. Essas fotografias do cangaceiro.
circularam e incendiaram as imaginações. A Após a morte do Padre Cícero, em 1934,
imprensa era uma espécie de terreno de luta, Benjamin Abrahão, a fim de filmar e foto
onde a imagem fotográfica tornava-se arma grafar Lampião, aproxima-se de Ademar
e instrumento de comunicação. Albuquerque, negociante e dono da Abafilm,
O que nos revelam essas imagens? O que empresa de distribuição de filmes e de venda
exprimem para além de sua dimensão do de material fotográfico e cinematográfico ins
cumentária? Como interpretar a utilização talada em Fortaleza em 1934. A empresa devia
da fotografia pelos autores da repressão por encarregar-se da distribuição do filme dedica
ocasião de acontecimentos que punham em do a Lampião em todo o Brasil, bem como no
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exterior, com o apoio da Zeiss, firma alemã de No filme, a meio caminho entre o documen
matéria! fotográfico e óptico, implantada no tário e a ficção, Benjamin Abrahão,compartilha
Brasil desde os anos 1920 e representada em conosco o cotidiano do grupo; np entanto, nes
Fortaleza'pela AbaFilm. É muito provável que ses momentos aparentemente tirados da vida,
t
outra empresa alemã, a Bayer, também insta os cangaceiros atuam o tempo todo. Encaram
lada no Brasil, onde distribuía produtos farma a lente permanentemente; mesmo represen
cêuticos, tenha participado financeiramente tando um simulacro de combate, por exemplo,
na elaboração do filme com fins publicitários. riem, recuam com os olhos pregados na lente,
Mas foi só em 1936 que Benjamin Abrahão divertindo-se em imitar a si próprios; Lampião
pôde realizar seu desejo de filmar Lampião, ao dedica-se a falsos preparativos contra inimigos
conseguir entrar em contato com ele por inter imaginários, dando ordens aos seus homens,
médio de coiteiros do bando de cangaceiros. O que riem às gargalhadas; Lampião avança para
filme, em preto e branco 35 mm, foi rodado de a câmera com uma faca na mão e dirige-se a
junho a outubro de 1936 na caatinga. Os can um público imaginário; Lampião costura à má
gaceiros eram filmados no meio em que viviam, quina, vários cangaceiros sangram um animal,
em seu território. Durante diversas temporadas, outros dançam alegremente, voltando perma
o cineasta morou com o grupo de Lampião e nentemente o olhar para a câmera. Uma cena
filmou cenas de seu cotidiano. Nelas, os canga é particularmente teatral, aquela em que, num
ceiros aparecem nas mais diversas atividades, profundo recolhimento, toda a trupe reza, reu
dançando, rindo, Lampião costurando, lendo nida em torno do chefe, que lê o ofício religioso.
um livro de Edgar Wallace, sendo penteado por Benjamin Abrahão fotografou separada
Maria Bonita, dando ordens, exibindo com or mente as diferentes unidades que constituíam
gulho o armamento do grupo e demonstrando o grupo de Lampião (pp. 293 e 294). Todas es
sua capacidade militar, acariciando dois cães, sas fotografias parecem obedecer ao mesmo
escrevendo uma carta com uma pena, pas ritual: fornecer uma imagem idealizada do
sando em revista seu estado-maior... O grupo, grupo, manifestar sua coesão, enfatizar o sta-
confiante, rendeu-se à câmera, desvelando os tus particular de certos cangaceiros com rela
momentos que considerava os mais significati ção ao chefe. Foi, aliás, essa imagem de coe
vos de sua vida de cangaço. rência e coesão que permaneceu na memória
Não foi por acaso que Lampião aceitou ser dos antigos cangaceiros que sobreviveram ao
fotografado e, sobretudo, filmado por Benjamin massacre de Angico.
Abrahão. Sempre desconfiando dos jornais, que Não existe fotografia mostrando canga
publicavam sobre ele artigos cujo teor ele não ceiros sem armas. Eles as exibem segundo
podia controlar, Lampião certamente compreen critérios de representação sempre idênticos,
deu que as fotografias e o filme de Benjamin conjugando força e riqueza. Observamos,
Abrahão lhe permitiríam impor uma imagem contudo, que, mesmo existindo uma unidade
sobre a qual nenhuma intervenção ou distorção nesse requinte e na ornamentação dos atribu
seria possível. Enquanto escritores e jornalistas tos guerreiros, os motivos e ornamentos são
zombavam de sua linguagem tosca, que denun diferentes de um cangaceiro para outro, cada
ciava sua origem camponesa, sua imagem foto qual permanecendo livre para expressar sua
gráfica e cinematográfica, muda e incontestá individualidade.
vel, devia mostrar ostensivamente seu êxito e o Maria Bonita, a companheira de Lampião,
de seu bando. Benjamin Abrahão foi a primeira diferencia-se das outras mulheres: veste-se
vítima desse jogo de cartas marcadas: morreu quase sempre como as mulheres da cidade
em Águas Belas, no estado de Pernambuco, em e ostenta inúmeras joias. Distingue-se igual
9 de maio de 1938, com 42 facadas. mente das outras mulheres ao posar com
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Tcielüoe: 250
End. lelogr.: Opsvo 1
O Deputado Demo-
crito Rocha protesta
com veemencía
■O caso dos 242 .C9610S .devidos pelo Governo
Federal aos contratados e fornecedores do Serri-
ço EspcítmealaJ dí ír.rigsç&o do íJcrdeHe. ttri»*o
rctewate .aoe mtse» de Abril. Maio e Jaaho da
1934~lem dado quH- Inzer, '■
Apreee.otaclo ezn -£íêt«n.btfo. o projeto o. 201,
pelo deputoeo Dt.aspcriu? .Rocha, leve o mesmo
a sproveçüo da. Cpaxisfão de Finanças e lol um-
hem aprovado em ia. e 2a. dincurs/j^s copleuarlu
d» Cntcar».
Foi Quacdo. * mandado do ar. Pedro Aleixv.
o deputado mineiro- Stmsò da Cucb» requereu a
roitfl co projeto í CexnlM&o de F|Daaç«». pnra
ver oavldo õ.AHòÍísIío- da: Agricultura.
Ore. 0 .proietp fórh JustíJictdQ exatameois
cctn doía oíicins do ía.Asricirlrur*. pedlnft» eo
previdente da Republico nqueíe credito.
Eítavn provedO^ poíe. o iniuito rncgrlotorln
liv JWer úh tat>loria.. H*o obstanle. o er. Dto^
t-rílo jtccb» çxJfelo-tb* o cl cio do Ministro publi
cado no «Diana Oíiclftl* .aioda dê 3J de Julho.
■ Wjts p projeto cnniír,nav* jóea d« ordt-m do
dio c o dcçuiecp DemOffito Rocbe. «m viste <jis«u»,
Bpre*et;titi teouerfOJtcio pcrtindo a Induado do
ít-ts»o r,c avelfO das ínut.ertas a víiiflr.
V>ja ** «iters. o qo9 acóotfcoeu ame ultima
ri-qov.*lOjeow,p*Ja» .discursos abaixo, proüuoclhdf-í
oo «estão co verpers de A‘o!al:
*0 *r. Drmocr-iQ Rocba (fofrrv a atai-Sr.
preal, enur. fc*» mela c-e jjcbs *en»na* tive »«;**•
Mdtrde x£é etjCBicictoftr a v. m-x va requerlmeolo
pedindo ltic1o*3.«, tm ordem do dia. do projeto o.
O nosso companheiro Jofio _Jsq’>e». em cro i 3(Jl-A. de 1930. )& «provado em primeira e segan
e*c* publicada ontem neste joroa». mvcieoa. pvlol do dUcuííflo.
primeira *tx, u sensaç-ioD»! noticia de qutt cm re-l Este projeto, tejro que eproTudo em «egun-
potfer tptojçrafjco do Ccarà vem *e snirtçaoflo. b» j tí» di*cu«íio, Foi prcjadJcodu por nm requerimen
letípo*, á arriscada e audaoloça tareia "do ap« j to d.e otn er. dvpuiudu mitieiro, solleüaadc o v.
nliü- um Tiltne -elaemstotrrtirico de LstopeOi*. co ; ex. que o (izevsv vollur á Comissão do Fíoodçb»,
1be“do o Am ílsjrranie* pttorescPs, nos senCtcs Jo- i por» . er onrldo o ar. MioUtrv da AgrlçuUur*. Fer*
■ioJ do Nurdeetc. Juatameote com sus mulher r cebl iciedlatcBienle. no requcrJtnento daquete no
««o» sequaz»?*. bre coitçs de otn Estado do sul. o propostlo do
A noticia. roSo gtodo cofiitltuisío ura turo doe prejudicara minha tciclatlVR. que ofio v(«nru h
mui» lotercsMptes. daria ataryetn a durldaaa des- ohertura de crídrto pora aquislçtu» ou compra do
cobflsaçaa em torno de tu» veracidade, enquanto prertios para o Mlolsteno dn Guerra, ou qualquer
* impreoea nôo documentosve o vcnio quual ío- '•■bjelUo de nsiur.fz* contraria aos interesses da
crivei narrada pelo çrooi«ú>. Nbç^o t«n Dtnlmminteresse poMtco, mas con-
Por isso mevcco, tudo envidamos. de ontem «ubunoclavs utu pedido leito pelo «r. Ministro da
para boje. ao sentido de poder ofertar sos nosso* Agricultora m> »r. PrefWeolc da Republica du
leitores » prov# io*oÍiíaiBvel de que. etett.o* crçdju. secessarla ao pasnoralo de otn irlocetre
meole. um cor&Jor© o inteligente amador conse -de reocicceotoa atraír-dos de tuDClonarlo* con-
guira otilrarcm contacto dom o temível bandolei tratados dn Serviço de Jrrigcç&o d<i Norde.te.
ro. obtendo o-POP*e»t.laí«»to do toet-mo par* Io- atraso estr que -vem desde o soo de 1934.
tojçrafiMoe filmá-lo pcj di versou «specioa. V. ex. porém, a despeito do projeto ur sida
Os ooaeoa desejo» forno cornado* de rx>to JwpW».cs(J«- cem a transcrição ür um oíicio dc »r.
coo» maito maior prwSeM Co que esperavamos .Miotftro <}a Agrjc-ultura. txpliceof*.- o aatarezs da
e oS lém os leitores, *o iad»? deei» noticia. du*» despeza e a necessidade de ser aberto o credito',
•eflçaciotMtliF foic-grelia», coibidas peio eovladoda deferiu o reque/itoíoio daquetc depufado. O pro
«Aba-Fiíme* em pieaa tealtt nordestino. jeto. vitime dOFSé lotqitó proteíalorto e Juconvc^
N* prltoelie. 7«.*e o arupo do l-impeio. o nietJte ao* interesse» do meu Estado, volloo, pote.
qoal lisjurs ao 1-tlo de sua snullwr e do *r. íien- 6 Cotnistfio tle Ficnoças.
jamlo Abftdo, qfle loí O Iniograro-nmador autor Depdla <Je me baver eoteosUdo cora o ar. da-
da «enaaciodsi FepõrMçrm pulado Pedr-i Aleixa. teader da mntorln. expondo
N*:aseumia. lígutam, lado t> lado. n Urtivtl Jhv vs»«>* circunslBOciae, que or» relembro, «gusr.
íadaora. ius rsuJber. ct*m o* dedo# cheios de dei rr. presidente, que t- projeto volvesse 6 ur
ancí#, e o corajeso lotoçrajo-acaadsr, tendo •* tt dem do dl*, sflm de ser aprovado ou rcpvita-JP
racofo uma maqulnn coa p dirrico du II- t-ut leteeirn dhcusfSo
»e». Cxitao tc; dwsç- tal prorlder c'í. que. allá», rao
Ewe cavalheiro, qno 1e*. por multo* anca, o bavia «tido prometida, eccaznicbei « v. ex. nat
«crelarlo porticotar <Jo Padre Cícero, e já coche- lequvrímeMo pedindo a respectlra ioctut&O eto
«la Latnprâo deítde qo« » iseaxno t»lew noJoa ordem do dia.
JClro, meisu ao cabeça a Idé* de apanhar uma De*** leü». tt. presidente, v. ex drrlvotl
pcllcol* ciaetaaiograficí» do opdaçJcsr- bandido e para o plenário » creisflo. e o meu requerlmemo.
*etí» astcclrs; c, poro lrj*o. cor4aod.o com o p* . ba ceico dc qufoze dias. consta do avulso Du
trnclnio ds *Ábn Ffjrar*. Jli estere repetides re* rante tíBo fftr.tsoc. «3s malr. Jigorou em ulisoiti
tea ona locais o ode atús t> grupo *ÍDl«!ro. cota o legar. iDdllerente 6 marcha das decanta malvrias
, rri Je* grsadô amizade. .aUogJndo. asifím. u #eas que lhe estavam «olecedentcs e a» moálücaçóea
■. ativos. que ae «perani no mesmo avulso, «o virtude de
. As doas lologrsttas que hoje publicamos sfto e.proveçao de projeto» c-u salda de outros.
BQ alestado d* foteUgeaci* e do ssbrdii Irlo des Hoave um dia em que a matéria Sol esgota
se moço. qne. grsçst A mjft tenacidade o a -eeu da qudsI totBlmeotç o o meu rvquerlmeoto iieve
desiensor. cbievo aqoiM> que o.s maiores repórteres quasi cm primeiro lugu.r. Vieb» tu. «pesar de
fc topjllcos do Rio ainda cflo -cocfegalram. doesle, ccmpareceudo ilComara cca '-o uolco ln>
301
os homens de confiança de Lampião, como Luís
Pedro ou Juriti, o que atesta seu status especial
(p. 291). Lampião arroga-se o privilégio de simu
lar um combate sozinho, quando sabemos que os ABAIXO
cangaceiros sempre lutaram em grupo. Benjamin Abrahão.
Na maioria das fotografias de grupo, as mu O cangaceiro
Corisco e Dadá, sua
lheres denotam seu pertencimento a um deter
companheira, com.a
minado cangaceiro, ao mesmo tempo que se cachorra Jardineira.
integram à comunidade. A partir de 1930 e da Sertão nordestino,
entrada de Maria Bonita no cangaço, formaram- nas proximidades
do rio São Francisco,
se casais. Os chefes de bando que afirmavam seu
1936. Arquivo digital.
status em inúmeras fotografias também fizeram
Acervo Instituto
questão de aparecer como maridos ou compa Moreira Salles/©
nheiros, o que traduzia uma modificação radical ICCA e Sociedade do
na estrutura do cangaço. As fotos de casais tira Cangaço
das por Benjamin Abrahão permitem ao mesmo PÁGINA ANTERIOR PÁGINA AO LADO
tempo descobrir tipos diferentes de relação ho- O Povo, Fortaleza, O Povo, Fortaleza, .
mem-mulher, concepções diferentes do cangaço 29.12.1936, ano IX, 31.12.1936, ano IX,
n. 7.413, capa. Acervo n. 7.415, capa. Acervo
e personalidades originais.
O Povo O Povo
Embora a maioria das fotos realizadas por
Benjamin Abrahão manifeste uma preocupação
com a mise-en-scène, algumas delas remetem a
modelos que, aparentemente, estão muito distan
tes da cultura à qual os cangaceiros pertenciam.
Ao passo que os outros chefes de bando apare
cem nas fotografias como cangaceiros, e exciusi-
vamente como tais, Lampião e Maria Bonita deixa
ram-se seduzir por outros tipos de representação:
ora posando à maneira dos burgueses do litoral, ora
imitando o gestual de atores de cinema famosos,
cujos retratos viam nas revistas ilustradas. É possí
vel ver em certas imagens uma forma de provoca
ção, um desafio lançado à alta sociedade do litoral,
não para questionar sua legitimidade - Lampião
não tem consciência política-, mas para significar
que a interlocução se dá de igual para igual.
Numa das fotografias de Benjamin Abrahão,
Maria Bonita está sentada, cercada por seus cães
(p. 288). Traja um vestido de mulher urbana, mas
usa as indefectíveis alpercatas, indispensáveis para
caminhar na caatinga. A maneira como cruza as
pernas, como acaricia seus cães, a meiguice de seu
olhar, tudo evoca o conforto de uma mulher mun
dana ou uma atriz. Embora Maria Bonita tenha se
apropriado dos modelos de representação de um
mundo que lhe é alheio, age com naturalidade.
302
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I Oi
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Podemos nos perguntar qual imagem de si mesma,
qual identidade, ela reivindicou para posar assim.
Os jornalistas, a propósito, não deixarão de ironizar
suas pretensões a adotar maneiras e um tipo de
representação estranhos a seu universo.
Outra fotografia mostra Lampião em pé, lendo
um livro ao lado de Maria Bonita com seu vestido
de citadina. Dois cães acorrem até Lampião, que,
curiosamente, carrega o fuzil a tiracolo. Tem o ar se
vero de um pregador e parece dirigir-se a um públi
co. Trata-se de seu bando ou daqueles que contem
plarão a fotografia? Estamos longe da imagem de
guerreiro arrogante propagada por Corisco. Nessa
época de sua vida, Lampião não tem mais como úni
ca ambição ser um chefe guerreiro; exerce também
outras funções no seio do grupo; introduziu a leitura
do ofício religioso, é encarregado das r.eiações com
os potentados locais e os ricos fazendeiros a quem
recebe em audiência, como um monarca; arbitra os
litígios no âmbito do grupo, lê, para seus compa
nheiros, poemas de cordel e artigos de jornais, so
bretudo os que lhe concernem. Aquele de quem os
jornais e escritores contemporâneos sublinhavam a
falta de instrução e o quase analfabetismo é aqui
representado, em pé, lendo, com certa solenidade.
Maria Bonita, ao seu lado, não faz nenhum gesto
Benjamin Abrahão.
na direção do companheiro: olha fixamente para a
Lampião e Maria
Bonita. Sertão
lente. O fotógrafo representou um casal cujos la
nordestino, nas ços são tão evidentes aos olhos de todos que eles
proximidades do não experimentam a necessidade de demonstrá-lo.
rio São Francisco, São personagens que já entraram para a história e
1936. Arquivo digital.
se comportam como tais. A fotografia registra um
Acervo Instituto
Moreira Salles/© momento de repouso na caatinga: Maria Bonita
ICCA e Sociedade do está sentada, as pernas cruzadas, acariciando seus
Cangaço dois cães. Ao seu lado, em pé, Lampião parece ab
sorto na leitura de um jornal ou uma revista, pro
vavelmente A Noite Ilustrada. Todos os ingredientes
de uma fotografia "burguesa" estão presentes, mas,
na falta de filhos, são os cães que posam ao lado
de Maria Bonita (lembremos que a vida no canga
ço não permitia conservar as crianças, geralmente
entregues a pessoas de confiança). Lampião segura
desajeitadamente o jornal com as mãos cobertas
de anéis e, na última página, vemos claramente
a fotografia de uma mulher em trajes sumários,
o que é surpreendente quando conhecemos seu
304
extremo recato. Os cães, assim como o cenário na
tural, as moitas, o solo juncado de lenha seca, as
árvores raquíticas, a atitude canhestra de Lampião,
seu jeito requebrado de andar, tudo isso recoloca
inevitavelmente esses dois atores no contexto.cruel
do cangaço.
Benjamin Abrahão produziu inúmeras fotogra
fias em que os cangaceiros tinham a ilusão de
controlar sua imagem. No entanto, as fotografias
mais comentadas na imprensa são as que ilus
tram momentos da vida cotidiana do bando e que
não são objeto do mesmo controle por parte dos
cangaceiros. Enquanto o primeiro grupo de foto
grafias deixava transparecer nitidamente a inten
ção do(s) sujeito(s) fotografado(s), seu desejo de
reconhecimento ou respeitabilidade, sua liberdade
Benjamin Abrahão. PÁGINA 307
de copiar este ou aquele modelo de figuração de Lampião. Sertão O Povo, Fortaleza,
outros grupos sociais, o segundo grupo escapa em nordestino, nas 15.08.1938, ano XI,
parte ao que é mostrado. São fotografias em que proximidades do n. 3867, capa. Acervo
rio São Francisco, O Povo
percebemos claramente a intenção daquele que as
1936. Arquivo digital.
capturou e nas quais vislumbramos o uso que a im
Acervo Instituto
prensa lhes dará. Moreira Salles/©
Quatro fotografias difundidas em diversos jor ICCA e Sociedade do
nais chocaram particularmente os contemporâneos Cangaço
305
fonética e evocava o sotaque nordestino, confi fotografias de Benjamin Abrahão foram utiliza
nando-o à sua região e à sua classe social, o que das para figurar no verso de cartões de visita que
fazia a alegria dos jornalistas e escritores da época. serviam de salvo-conduto. Uma delas estampa
Totalmente consciente do fosso existente entre sua va Lampião, cigarro na boca, o cáchorro ao lado.
escrita e a dos livros ou jornais, nunca sentiu vergo A outra, que originalmente mosfrava Lampião e
nha por isso e continuou a se comunicar por escrito. Juriti, foi recortada a fim de que nela figurasse
Incontestavelmente, a fotografia que mostra apenas Lampião. Esses salvo-condutos ilustrados
Lampião lendo o ofício religioso para seus compa com fotografias feitas por Benjamin Abrahão fo
nheiros ajoelhados foi a que mais impressionou os ram distribuídos por todo o sertão em 1936. Em
jornalistas. Enquanto estes últimos não se cansa torno desse mesmo ano, e mais ainda em 1937,
vam de demonizar o personagem, havia coisa mais quando Lampião preferia esconder-se para levar
contraditória do que vê-lo responder com a imagem uma vida quase sedentária, confortável e menos
de um cangaceiro profundamente devoto? Esse pa perigosa, sua imagem circulava em grande par
radoxo foi objeto de um comentário incisivo e irôni te do sertão, espécie de corpo figurado que vinha
co na revista O Cruzeiro em sua edição de ó de mar substituir simbolicamente o corpo real do guerrei
ço de 1937: "Fé em Deus e fé no rifle. Lampião reza ro que, antigamente, sulcava a região.
o 'Adoremus' ao cair da tarde para seus asseclas".
Sabemos que na época em que Benjamin
Abrahão rodou seu filme, a vida dos cangaceiros A MISE-ENSCÈNE DA NORTE DE LAMPIÃO
mudara. Haviam enriquecido. Lampião dava-se Publicadas na imprensa, as fotografias de Lampião
com notáveis, chefes políticos e alguns meios abas e seus cangaceiros constituíam uma verdadeira
tados do sertão, que estavam permanentemente provocação e foram certamente percebidas pelas
em contato com as grandes cidades do litoral do autoridades policiais e governamentais como um
iil
Nordeste. Lampião, por seu intermédio, adquirira desafio ao qual era preciso reagir. As fotografias
gostos de luxo e conforto. Utilizava o telefone e o ilustrando os sucessos, a riqueza e a invencibili ’y.\
telégrafo para lançar desafios a seus inimigos, ti dade de Lampião, cumpria então opor imagens V-
nha sempre café quente em sua garrafa térmica, eficazes, indicando nitidamente onde estavam o
possuía um impermeável, uma lanterna, óculos es poder e a ordem. Ao espetáculo de um bandido in
curos, mandava vir revistas e jornais do Rio de vulnerável a despeito de perseguido durante duas
Janeiro, como Fort Fort!, A Noite Ilustrada, O Cruzeiro, décadas, respondiam imagens traduzindo uma
viajava inclusive de caminhão ou automóvel. vontade férrea e uma autoridade implacável.
Cúmulo da modernidade, preocupado com a falsifi Ao lermos os jornais do litoral nordestino, fica
cação de sua correspondência e a utilização do seu claro que a fotografia desempenhou um papel
nome por usurpadores desejosos de extorquir a po não desprezível na instalação dessa relação de
pulação, mandou confeccionar, em 193ó, em forças entre Lampião e seus adversários. Ao mito
Fortaleza, cartões de visita que faziam as vezes de de Lampião, irão opor um contramito: o do oficial
salvo-conduto e traziam seu retrato no verso. e soldado das volantes disposto a destruir uma das
Sabemos que, a partir dos anos 1930, os coitei- formas mais espetaculares de barbárie do sertão.
ros que se beneficiavam da proteção de Lampião Depois de mais de 20 anos no cangaço, Lampião
em troca de seus serviços costumavam carregar podia se gabar de ter se tornado um personagem
consigo cartas assinadas por ele atestando seu público. No fim dos anos 1930, não sobrevivia mais
status privilegiado. Essas cartas evitavam que graças a seus feitos guerreiros, e sim porque ti
fossem extorquidos por outros bandos de canga nha conseguido tecer toda uma rede de relações
ceiros, os quais, embora estivessem sob o controle de clientela e corrupção no interior do Nordeste.
de Lampião, muitas vezes não resistiam à tenta Parecia quase evidente que as forças policiais
ção de se aproveitar de sua riqueza. Em 1936, duas acomodavam-se a esse estado de fato. Essa rede,
306
Trez Tripylaittes a seis
Passageiros
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todavia, não foi capaz de resistir ao sistema autori os degraus da igreja (p. 295). Em volta de todas
tário imposto pelo Estado Novo a partir de 1937. Para essas cabeças foram distribuídos, com grande es
o regime de Getúlio Vargas, com efeito, era inadmis mero na simetria, as armas, caftucheiras, embor
sível que Lampião pudesse continuar a desafiar não nais e chapéus dos cangaceiros, b,em como duas
só as autoridades policiais, como todo o sistema po máquinas de costura. A disposição das cabeças
lítico centralizador sobre o qual repousava a ditadu não foi aleatória: a de Lampião, o chefe, o insti
ra recém-instaurada. A pretexto de impedir qualquer gador, o arquiteto, o "Rei do Cangaço", foi isolada
manifestação de desordem no território nacional, o das dos outros, está no primeiro plano, na base
Estado Novo, em 1937, incluiu Lampião e seus can da composição. Os símbolos da riqueza e da força
gaceiros na categoria dos "extremistas". A sentença guerreira dos cangaceiros estão ali, moldura e ao
não demorou a sair: a ordem era matá-los. mesmo tempo cenário de uma espécie de nature-
Em 28 de julho de 1938, Lampião e parte de sua za-morta macabra. Esses vestígios - bordados, or
tropa foram surpreendidos pela volante do tenente namentos, moedas de ouro-de um brilho que nos
João Bezerra, em consequência da traição de um dizem estar definitivamente perdido contrastam
de seus coiteiros. Uma vez "terminado o massacre", violentamente com as cabeças cortadas, reme
a força volante decapitou os cadáveres e partiu tendo infalivelmente aquele que observa ao ato
com as cabeças em direção à cidade de Piranhas, de decapitação e profanação do cadáver.
onde o povo pôde finalmente "regozijar-se" com o Entretanto, a despeito da vontade de perenizar
fim de Lampião, "a própria encarnação da morte". a morte física e a destruição de Lampião mediante
Numa espécie de resposta à-alegação de oni imagens irrefutáveis, o mito da imortalidade des
potência e invulnerabilidade do célebre canga se herói persiste, expandindo-se ainda nos dias de
ceiro, exibiram as cabeças como troféus, a fim hoje: mesmo diante das cabeças dos cangaceiros
de mostrar aos olhos do mundo que aquele corpo mortos, alguns sertanejos não acreditaram na
fechado, impermeável às balas e ao facão, podia morte de Lampião. Não acreditaram no que lhes
ser fragmentado. A morte de Lampião foi ence era apresentado como uma evidência: nenhuma
nada e seus adversários recorreram a todo tipo imagem-prova, nenhum suporte visual, seja qual
de simbólica religiosa: transportaram as cabe for, pode resistir à força da crença.
ças de Lampião e de seus companheiros de cida As fotografias que mostram Lampião e seu
de em cidade, de vila em vila, numa espécie de grupo, sempre ambíguas, são dotadas de um di
procissão macabra, misturando tradições solenes namismo inegável, pois teatralizam a realidade e
e manifestações de júbilo popular, o sagrado e o também sua fragilidade, uma vez que denunciam
profano. Na cidade de Piranhas, festas, desfiles, o usurpador em cada um dos atores desse épico e
manifestações de um entusiasmo mais ou menos refletem um conflito que passa não apenas pelo
espontâneo, fogos de artifício e banda de música próprio corpo, mas igualmente pelo corpo figurado,
acompanharam o cortejo macabro. constituindo, ao mesmo tempo, provas e falsifica
Uma das primeiras preocupações dos organi ções da história.
zadores e jornalistas presentes foi fotografar os
diferentes momentos daquela cenografia sinis Traduzido do francês por André Telles.
tra e repassar as imagens para a imprensa. Uma
das mais célebres, ilustrando a tragédia final, é ELISE JASMIN é historiadora. Há mais de 20 anos,
incontestavelmente a que mostra as cabeças de participa de exposições na Europa e América Latina
Lampião e de seus companheiros dispostas no como curadora, produtora, autora ou coordenadora.
Autora de Lampião: senhor do sertão - vidas e
adro da igreja de Sant'Ana do Ipanema: essa foto
mortes de um cangaceiro (São Paulo: Edusp, 200ó)
grafia é produto de uma mise-en-scène bastante
e Cangaceiros (São Paulo: Terceiro Nome, 2006).
elaborada. As cabeças dos onze cangaceiros fo
ram dispostas num pano branco estendido sobre
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