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MISSÃO TERRASSOL

HERMAN AUGUSTO SCHMITZ

Contos de Ficção Científica

(publicados originalmente no livro Terrassol)


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Missão Terrassol

Fix-up dos seguintes contos do livro TERRASSOL:

Introdução
Relatório Final de Terrassol
O Raio Esterilizante
Mundo Animal

***

Copyright © 2014 by Herman Schmitz


ISBN 978-85-62586-44-6

Copyright © 2022 by Herman Augusto Schmitz


ASIN B07QM9C3MS

***

Ilustração da capa
Oscar Holguin

Adaptação Digital
O Autor
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INTRODUÇÃO

Desde os tempos mais remotos que ouvimos falar da polêmica em


torno da existência ou não de uma civilização inteligente em Terrassol.
Muito se tem especulado sobre o povo que teria habitado um planeta
distante, situado quase no extremo da galáxia – um planeta pequeno e
insignificante, mas que era peça fundamental para a nossa tentativa de
invasão à galáxia de Andrômeda.
Como tantos gostariam de esquecer esse período desagradável
da história galáctica, houve um esforço deliberado do nosso Conselho
Galáctico Universal, no sentido de ocultar todos os elementos relacionados
a essa fracassada tentativa de invasão.
Mas tudo mudou, graças a um acaso surpreendente ocorrido nas
últimas férias em Vortex, no centro da galáxia: encontrei uma série de
documentos impressionantes, com relatos escritos pelos próprios terras-
solenses, e achei que essas histórias lançarão outra luz sobre a existência
desses pretensos seres inteligentes.
Minha principal fonte de informações foi o próprio espólio docu-
mental de Lorde Yanoz, que presidiu o Conselho Galáctico Universal
durante o período conturbado da tentativa de invasão.
Tais documentos estavam amarrados em quatro grandes fardos, a
servirem de base para uma cama improvisada pelo último dos herdeiros,
Lorde Yanoz Sexto, em seu castelo praticamente vazio. “Véio Yanoz”, como é
chamado agora pelo populacho desrespeitoso com a casa real, infelizmente
definha miseravelmente no subúrbio de uma das mais decadentes cidades
de Vortex. (Ingrato destino esse para uma família que liderou toda a galáxia
por gerações...)
Os quatro blocos de documentos foram trocados por uma cama
verdadeira, alguns licores e por fim tive de deixá-lo imitar as diversas cria-
turas que, segundo a tradição dos Yanoz, formavam o Conselho Galáctico
Universal naqueles tempos.
Os relatos das histórias estavam extraviados no meio de outros papéis
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não tão declaráveis nem vendáveis por serem somente velhas promissórias
das fartas dívidas familiares acumuladas pelos Yanoz ao longo dos séculos.
Lendo esses documentos, cheguei a fazer uma ideia mais completa
do que aconteceu naquele momento histórico no qual as viagens por
meio do hipnoespaço quântico abriram a possibilidade de chegarmos à
galáxia vizinha de Andrômeda, e, com a ânsia conquistadora vigente na
instituição do Conselho Galáctico Universal, não se mediu esforços para
atingir objetivo tão distante.
A maioria dessas informações foi coletada por Lady Cortezuma, que
na época dominou com mãos de ferro os braços exteriores da Galáxia. E
foi graças aos seus esforços pioneiros que se encontrou na atmosfera do
planeta de Terrassol a combinação de gases ideais para reagir e amplificar
nosso combustível ancestral, o alium de Spat – Lady Cortezuma espionou
essa civilização rudimentar por muitos anos, e quando percebeu que os
terrassolenses estavam perigosamente destruindo o nosso combustível,
então ela requereu, por moção especial no Conselho Galáctico Universal,
a decisão de tornar improfícuos esses seres inconvenientes por meio de um
programa complexo e caro de emissão de raios esterilizantes, lançados à
superfície do planeta de modo a eliminar especificamente a única espécie
dita inteligente de Terrassol.
Quando me recolhi à minha cúpula no satélite de Zhor, com todas
aquelas informações maravilhosas à mão, tive a ideia de juntá-las de uma
maneira mais divertida.
Realizei algumas verificações posteriores na polícia galáctica, nos
relatórios das comissões de controle e eliminação dos zoológicos galácticos
e nos institutos reguladores da propaganda galáctica.
Leiam calmamente e sem julgamentos acerca da veracidade desses
documentos, afinal, são relatos antigos os quais procurei deixar o mais
inteligíveis possível.
Promovi alguns cortes deliberados e algumas liberdades de linguagem
ao editar os documentos encontrados, mas, de modo geral, acredito que
sejam suficientes para dar uma ideia mais aproximada da espécie dita inte-
ligente que habitou esse distante planeta chamado Terrassol.
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RELATÓRIO FINAL DE TERRASSOL

— Está aberta a Sessão Extraordinária do Conselho Galático


Universal! – exclamou o meirinho na cúpula multiplanetária que abriga
emissários de todos os mundos inteligentes da galáxia. — Na Presidência
da mesa executora, temos Lorde Yanoz, do planeta Vortex, situado no centro
do incalculável sistema estelar. Nas mesas deliberadoras, os Nobres repre-
sentantes dos planetas Principais. Nas mesas denunciadoras, os Nobres da
primeira espiral. E, por fim, na mesa investigadora, os Nobres da segunda
espiral. As nossas terceiras e quartas espirais estão representadas no grupo
pioneiro por Lady Cortezuma, que é a solicitante desta sessão extraordi-
nária para decidir o destino da espécie dita inteligente do planeta chamado
Terrassol, localizado numa pequena região entre a terceira e quarta espiral
da galáxia. Convoco agora Lady Cortezuma a dirigir-se para o centro da
cúpula e dar início aos argumentos recolhidos em suas missões de reconhe-
cimento das condições locais de Terrassol.
Nisso, movimenta-se a deslumbrante biosfera toda dourada, que,
como sempre, veste roupas impactantes. Desta vez é uma espécie de bulbo
esverdeado, em que se prendem duas pétalas enormes amarelas com raias
vermelhas, nas suas costas e na frente, babados do mesmo amarelo, leve-
mente franjados, que delicadamente deixam entrever Lady Cortezuma,
rumando ao centro daquele amplo auditório como uma enorme flor exótica
em movimento.
— Nobres do Conselho Galáctico Universal – manifestou-se Lady
Cortezuma, em sua primeira intervenção –, tendo em vista que esse planeta
insignificante está no caminho de nossa expansão para Andrômeda, tendo
também em conta que a sua rara atmosfera, tão necessária como combus-
tível às nossas naves, está sendo perigosamente destruída, solicito a maior
atenção de todos, pois apresentaremos aqui uma versão resumida dos
principais fatos que nos levam a tomar decisão.
– Convoco agora o Capitão Mirador, que irá nos mostrar as imagens
da situação lamentável em que se encontra Terrassol – disse o meirinho.
Ergue-se então, nos fundos do auditório, a figura elegante e
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uniformizada do Capitão Mirador, com o olhar contrito e sério, em contraste


com a virtuosidade de Lady Cortezuma. Traz nas mãos uma larga fita de
pérgamo, que encaixa em um visor multidimensional para que as imagens
registradas em Terrassol possam ser vistas.
Lady Cortezuma não se contém, ao ver surgir no grande visor a
imagem do planeta, e vocifera:
— Os habitantes esfoliaram Terrassol! Revolveram cada centímetro de
terra útil que encontraram, derrubaram as florestas e poluíram os oceanos,
o que está transformando seu ar no seu próprio veneno.
Agora se vê uma montagem de décadas de imagens sobrepostas, e os
nobres presentes podem contemplar horrorizados ao progressivo desbota-
mento das florestas verdes e do azul dos mares daquele planeta, turvando-se
para um cinza pálido.
A seguir, a câmera vai se aproximando e já se pode ver as grandes
cidades do lugar, como Nova Iorque, São Paulo, Londres… Incontinente,
Lady Cortezuma continua seu discurso:
— Os habitantes desprezam a energia abundante do seu Sol, utilizando
como fonte de energia os pobres recursos do subsolo. E as consequências
vocês veem na fumaça tóxica que cobre a maioria das cidades. Isso os levará
ao colapso iminente. Vejam bem, Nobres do Conselho, eles já estão total-
mente condenados…
No visor se vê os habitantes de Terrassol em desfiles e passeatas, com
bandeiras tremulando e música em alto volume.
— Esses seres, eminência, se amontoam em pequenos grupos a que
chamam raça, com o único objetivo de competirem infinitamente entre
si, para saber quem é o mais forte – continua Lady Cortezuma, dessa vez
dirigindo-se a Lorde Yanoz.
Na continuação, as imagens de massacres e tiranias guerreiras causam
comoção, e muitos Nobres do Conselho, revoltados por semelhante ultraje
autoimposto, já bradam indignados contra essa espécie dita inteligente de
Terrassol.
— E tem mais, Nobres do Conselho, meus observadores, implantados
ao longo de mais de cem anos locais para colher informações, revelaram
que esses seres ditos inteligentes somente se preocupam com o próprio
bem-estar e que suas invenções têm sempre o objetivo de facilitar as coisas,
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para que possam viver cada vez mais despreocupados e indiferentes ao seu
próprio planeta – ela prossegue.
No visor multidimensional, agora aparecem criaturas sedadas,
passivas em frente a uma caixa em que pulam imagens, exaltando a tortura
dos mais fracos e o orgulho do próprio corpo.
— Nobres do Conselho, peço minhas sinceras escusas pelas cenas
fortes a que os submeti. Mas vejam que esses seres, mesmo em suas tímidas
iniciativas no desbravamento do espaço, nunca o fizeram pensando na
possibilidade que nossa Comunidade Galáctica enseja, e sim apenas com
o pensamento ardiloso de controlar ainda mais o espaço – segue Lady
Cortezuma.
Nesse átimo, no grande painel se avista panoramicamente o planeta
Terrassol, com suas nuvens cinzentas, seus oceanos no mesmo tom e suas
terras somente um pouco mais escuras. O visor se apaga e o Capitão Mirador
enrola o pérgamo que trouxe, retirando-se sob o aplauso geral do Nobre
Conselho.
Lady Cortezuma agora flutua com sua biosfera reluzente no amplo
salão, encarando os Nobres do Conselho e finalizando seu aparte:
— Portanto, peço aos Nobres Guardiões da Galáxia que aprovem
esta minha moção e autorizem o extermínio TOTAL dessa espécie dita
inteligente de Terrassol! E que para isso utilizemos o nosso raio esterilizante
até não restar uma só dessas criaturas, de forma que possamos usufruir das
riquezas naturais de Terrassol sem a presença dessa espécie inconveniente,
responsável por destruir cada vez mais rápido a atmosfera que tanto nos
interessa em nossa expansão para Andrômeda. Sem mais, no momento,
peço somente a vossa aprovação à causa tão pertinente!
Com isso, Lady Cortezuma se afasta do centro da cúpula com a
sua biosfera radiante, e o meirinho anuncia mais um intervalo na Sessão
Extraordinária do Conselho Galáctico Universal.
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O RAIO ESTERILIZANTE

Caro Lorde Yanoz Segundo,

Antes de responder à sua pergunta sobre o meu envolvimento no


caso Terrassol, eu quero transmitir aqui, tanto a V.S.ª quanto ao seu mais
digníssimo pai, Lorde Yanoz, o meu imenso pesar pelas acusações que o
afastaram do cargo presidencial, por ocasião do episódio lamentável que
foi nossa tentativa de invasão à galáxia vizinha de Andrômeda.
Eu e o seu pai nos conhecemos quando da minha saída da Vacuum
– foi também, curiosamente, nesse período que encerrei meu trabalho em
Terrassol. Nessa época, começamos a frequentar um planeta de veraneio
nas proximidades da estrela Bizarh.
Foi então que eu contei para ele exatamente como aconteceu essa
coisa toda de Terrassol que vou gravar nesse holocubo e enviá-lo na próxima
quantum – e rio com minhas 500 bocas ao lembrar as nossas imitações dos
terrassolenses naqueles tempos anteriores a essa crise toda.
Bom, voltemos aos fatos.
Depois da aprovação do extermínio total da raça dita inteligente de
Terrassol, nós, da Vacuum Enterprise Serviços Galácticos, começamos os
preparativos para a instalação do raio esterilizante.
Por uma convenção galáctica, essas máquinas devem manter-se
ocultas e disfarçadas em agentes naturais próximos. Por isso a empresa
escolheu o único satélite natural de Terrassol, que, por facilidade, tem um
lado permanentemente escuro e sem visibilidade em relação ao planeta alvo.
Eu, Zork e Zyrk – meus robôs assessores diretos para essa tarefa –,
desembarcamos no solo poeirento do satélite, que os nativos de Terrassol
chamavam de Lua, e iniciamos as perfurações para fixar a base da estrutura
que recebe o corpo do emissor e também a antena direcionadora, que deve
ser regulada de acordo com o efeito desejado.
Deu um bocado de trabalho prender os pinos de sustentação nesse
solo fofo e esburacado, mas, depois de fazer algumas amarras laterais nas
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rochas da crosta lunar, conseguimos deixar o canhão firme o suficiente


para aguentar o tempo da missão.
Lá naquele finzinho de mundo, tão longe da capital do Império
Galáctico, pela primeira vez eu me senti solitário, pois meus dois compa-
nheiros são somente máquinas sofisticadas e especializadas em trabalho
duro. Maldita mania de economia da Vacuum! Eu pedi uma equipe
completa, e eles me dissuadiram, falando que era a coisa mais simples do
universo vir até aqui, escolher o lugar e botar Zyrk e Zork para trabalhar.
E depois voltar para casa e receber centos de tamises...
Mas logo quando cheguei me enviam uma quantum, explicando que
deveria permanecer em Terrassol até o início do processo. E, além disso,
deveria pousar na sua superfície e capturar um casal de espécimes especifi-
cado no holocubo numerado com A2, para mapear o seu padrão genético,
e depois baixar essa informação na programação do raio esterilizante.
Só depois de receberem a minha confirmação que os efeitos preten-
didos haviam começado é que me seria enviada outra quantum com as
novas ordens.
Essa foi uma brincadeira de muito mau gosto dos executivos da
Vacuum, pois eles sabem bem o pavor que eu tenho das raças inferiores
do nosso universo.
Pelo estado do planeta, a coisa estava feia. Na primeira observação
foi difícil identificar o que quer que fosse, pois a atmosfera estava tão
carregada de partículas poluentes, que o meu identificador de elementos
não parava de piscar em todo o seu espectro a cada camada que a sonda
de imersão ia penetrando.
Portanto, programei algumas microssondas de varredura visual
horizontal para navegarem no interior do planeta.
Seus resultados foram embaçados e confusos no princípio, mas
depois de algumas viagens já se reconheciam os contornos das maiores
cidades, os oceanos e os principais acidentes geográficos do planeta.
Vendo toda essa fuligem, lembrei-me do nosso trabalho no
asteroide de Vort, que outrora foi um planeta importante na estrela de
Zapak, na segunda espiral, mas que foi também castigado pelo Conselho
Galáctico Universal, só que com o raio vitrificante, e ainda teve a sua
órbita deslocada para transformar-se em um asteroide vitrificado a servir
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de alerta aos povos sem noção daquele setor da galáxia.


Para o meu azar, o Conselho Galáctico tinha um interesse muito
especial no ar “puro” de Terrrassol, visto que ele junto do alium de Spat
formariam um anel hiptoeno capaz de propulsionar espaçonaves anos
luz no hipnoespaço com uma só baforada.
Então, procurei no analisador de imagens os tais terrassolenses
que constavam no holocubo A2. Típicos animais bípedes, correndo de
um lado para outro, eles eram aparentemente sem nexo. Confesso que
fiquei bem mais tranquilo depois dessa visão, pois mesmo que ainda
fossem vermes horrendos, já não me pareciam tão perigosos e capazes
de descobrir a minha nave e atrapalhar de algum modo a missão.
Com essas imagens, eu pude calcular seus pesos e suas medidas e
inserir essas coordenadas no raio trator da espaçonave auxiliar. Fiz então
a programação da rota e enviei Zork com a missão de capturar o par de
criaturas.
Enquanto isso, fiquei revirando o conteúdo dos meus holocubos de
instruções. E encontrei muito pouca informação sobre os terrassolenses.
Acho isso o cúmulo do serviço mal feito. Como pode esses observadores,
implantados pelo Império Galáctico na região por mais de cem voltas do
planeta em torno do seu sol, coletarem tão poucos dados? Isso só prova a
minha teoria de que as estatais devem ficar de fora dos negócios. Se fosse
uma empresa como a Vacuum, isso não teria acontecido.
Mas algumas coisas importantes foram relatadas. Aqueles idiotas não
conseguiriam passar tanto tempo somente jogando Cosmotron, e estou
agradecido por suas informações sobre a melhor região para abordagem
ser, segundo a cartografia terrestre, no lado sul do planeta. Nos relatórios,
se fala muito dos povos hostis do outro hemisfério, que por diversas vezes
abriram fogo contra as naves do próprio Conselho Galáctico. Elas só não
reagiram para não violar o código – o que as obrigaria a ficar mais tempo
ainda vigiando Terrassol.
Portanto, a região programada para a abordagem situava-se na orla
de um grande oceano chamado nos seus mapas de Atlântico. Escolhi um
lugar bem populoso, pois, segundo o manual, quanto mais pessoas houver
em uma região, menos se notam as abduções.
Através do multivisor retrostático pude assistir a abordagem de
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Zork. A nave chegou pelo oceano na costa de uma cidade bem agitada, com
morros repletos de construções e uma figura terrassolense esculpida em
pedra, com os seus dois tentáculos superiores abertos em um ângulo reto.
Parecia haver uma grande festa nativa em andamento em uma larga
avenida cercada de terrassolenses seminus amontoados e parados em frente
a uma fila de alegorias, representando as mais toscas e estúpidas entidades
alienígenas imagináveis. Zork, com habilidade, pairou discretamente sobre
o desfile e foi me enviando imagens surpreendentes.
Estupefato, presenciei o que a imaginação limitada do terrassolense
concebe como interestrelar: seres esverdeados, cabeçudos e com olhos em
formato de gota. Os veículos espaciais, então, eram toscas imitações daquelas
naves originais enviadas para espiar Terrassol a mando de Lady Cortezuma.
Mas não me detive muito nessas curiosidades terrassolenses, pois
Zork, uma máquina de executar, levou o conceito de “quanto mais gente
melhor” tão a sério que, justamente quando um dos casais de terrassolenses
bailava no centro absoluto da avenida, ao som de uma música insistente
e rítmica, ele acionou o raio trator. Previ um grande desastre com essa
súbita ação, mas, para a minha surpresa, o povo todo começou a aplaudir
efusivamente a dupla de terrassolenses ascendendo à nave, tracionada pelo
raio trator.
Assim que chegaram, eles foram imediatamente criogenados na
cúpula biodésica, isso porque naquele tempo se capturava em bloco com o
raio trator – um cone de luz era lançado e sugava o objeto alvo e o envolvia
em uma bolha com o seu meio ambiente. Essa era uma forma de garantir
todos os elementos necessários para poder manter o espécime vivo caso ele
fosse realocado em um ambiente similar. Muito diferente de agora, com esse
sistema não invasivo com o qual capturamos a criatura e todo o seu meio no
escâner telemolecular 18D. Agora temos uma cópia dela perfeitamente igual
em tudo. Se houvesse essa tecnologia na época que trabalhei em Terrassol,
eu poderia ter centos de terrassolenses na minha cabine, e não somente
aqueles dois desgarrados…
Nós que fomos da Vacuum Enterprise, já vimos de tudo no
universo conhecido, mas essa dupla de terrassolenses, desde o primeiro
contato, me pareceu das mais bizarras e antipáticas. Quando os analisei
no genomoscópio, pude ver que algo no seu padrão não condizia, mas a
pressa por ver concluída essa missão, a solidão lunar e aqueles centos de
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tamises me esperando… Bom, eu resolvi acelerar o processo.


Então baixei as coordenadas moleculares dos dois espécimes
capturados para o núcleo de processamento do raio esterilizador.
Enfim, foi estartada a automontagem do raio, o qual se ergueu
imponente no lado mais escuro da Lua, levantou a antena giroscópica em
direção a Terrassol e começou a cuspir, compassadamente, os seus raios,
invisíveis aos nativos, mas que lentamente eliminariam um gene dessa
espécie, determinado pelo computador do código ADN terrassolense –
somente a remoção de uma pecinha traiçoeira de código inocente seria
a responsável pela esterilização genética de todos os nativos pensantes
lá de Terrassol.
Passei muito tempo jogando paciência espacial, enquanto aguar-
dava os resultados do raio esterilizante. Os métodos avaliativos, segundo
o protocolo do holocubo A3, eram levantar os gráficos da densidade
populacional dessa espécie no planeta e relatar uma queda significativa
nas gerações subsequentes.
Mais a coisa não andava. Não havia nenhuma queda na população
de Terrassol. A sede da Vacuum estava insatisfeita com o atraso de minha
missão e ameaçava reduzir os meus tamises, caso não houvesse alguma
notícia positiva no próximo século.
Resolvi dessa vez, então, mandar Zyrk em uma tarefa de reconhe-
cimento visual da nova situação.
Para evitar outra violação no código, enviei uma nave mascarada no
formato de nuvem cúmulo terrassolense, e por meio de suas câmeras super-
potentes procurei saber melhor o que estava acontecendo em Terrassol.
Por precaução, programei a mesma rota de abordagem. Lá estava
aquela imensa orla em forma de arco, repleta de construções em meio a um
intrincado sistema de ruas separatórias. O ar estava muito diferente, tanto
que não havia nenhuma fuligem nem aquela fumaça densa da outra vez.
O céu estava de um azul tão limpo que a nossa nave em forma de nuvem
cúmulo era uma perigosa violação no cenário.
Além do clima, o que mais chamava a atenção eram os seres das areias
e das calçadas, pois eu só via nas águas, nas ruas, um só gênero: as fêmeas!
Enviei novos comandos para Zyrk aproximar a nave mascarada
um pouco mais, mesmo correndo o risco de uma séria quebra no nosso
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protocolo interestrelar.
Assim que comecei a procurar com o tele-emissor os seres relativos
ao padrão dos machos, e depois de muito procurar, acabei localizando
um ou outro, bem poucos, para dizer a verdade, e todos parados de forma
estupidificada ou sentados, isolados uns dos outros, e em alguns lugares
pareciam estar somente cuidando de grandes ninhadas de terrassolenses.
Foi então que notei outra coisa espantosa. Muitos daqueles seres que
apareciam nos visores como seres machos, pela comprovação do tele-e-
missor, eram fêmeas fantasiadas de machos.
Você sabe o que é ter um arrepio em cada uma das suas três mil
caudas? Não era possível que eu estivesse me enganado daquele jeito.
Como a nave posicionou-se sobre as construções da cidade, direcio-
nando as lentes às janelas das edificações, continuei a observar poucos
machos entocados. Quando havia, estavam sempre no interior de suas
covas mimando as grandes ninhadas de terrassolenses.
Num rompante de inspiração, passei para o analisador os dados
das duas criaturas capturadas na biosfera criogenada e imediatamente
compreendi o meu erro: eram dois machos! Eu tinha capturado
dois espécimes do mesmo sexo. Por séculos eu havia empreendido o
extermínio somente dos genes machos, e o que aconteceu foi que os
terrassolenses bolaram uma estratégia para dar continuidade normal-
mente à população do planeta, criando os machos somente para a
reprodução e os aproveitando também para cuidar das crias menores,
enquanto as fêmeas continuavam da mesma maneira, vivendo suas
aventuras.
Voltei ao visor e comecei a reprogramar Zyrk para obter uma
dessas fêmeas pelo raio trator.
Numa esquina bem movimentada, analisando as informações do
tele-emissor para não haver mais erros, capturamos um belo espécime.
Quando a nave retornou, tive de refazer toda a programação do
raio esterilizante, baseado agora nessas novas coordenadas.
É incrível como o tempo passa e um erro desses pode ser fatal,
atrasando em mais de cem voltas o extermínio de uma raça, que, aliás,
já estava até dando um jeito no seu planetinha.
Mas eu realmente não podia fazer nada mais ali. Um trabalho
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é um trabalho. Levei então os meus três espécimes em suas biosferas


criogênicas ao conselho fiscal da Vacuum Enterprise Serviços Espaciais,
juntas com um novo holocubo que continha todas as justificativas para
cada procedimento em cada fase de seu desenvolvimento.
A população inteligente de Terrassol estava afinal, como era esperado,
caindo continuamente. O tempo perdido na órbita daquele planeta já era
mais do que uma punição, e não seria justo eles descontarem metade dos
meus tamises.
Sabe o que eles fizeram comigo? Eles descontaram meio cento de
tamis! Mas sabe o que eu fiz? Deixe eu me lembrar bem o que eu fiz… Ah!
Ah! Eu fui ao almoxarifado da Vacuum, na hora da iguaria principal, e fui
logo pedindo pro novato de plantão os meus três terrassolenses.
Ele exigiu a ordem de expedição. Pus na sua frente uma daquelas
notas brilhantes de dez tamises que eu havia ganhado da Vacuum. A coisa
foi rápida e sem testemunhas.
E foi nessa mesma tarde que eu parti com a minha carga num cruzeiro
para a segunda espiral. Eu sabia de um sujeitinho lá num planeta do final da
segunda espiral que pagaria miles de tamises por esses três.
Foi assim que tudo aconteceu, que eu me lembre, de importante no
caso envolvendo Terrassol.
Mande um trilhão de beijos para o netinho da casa, que você me disse
estar a caminho, e também lembranças ao Lorde. Manifesto ainda os desejos
que o seu repouso absoluto o deixe apto, em breve, a nos encontrarmos
novamente nas termas acolhedoras de Bizarh.
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MUNDO ANIMAL

Segundo consta no anexo 20.015 da Divisão de Propaganda


Interplanetária, os operadores de rádio estrelar costumavam abusar das
frequências reservadas na onda quântica para transmitir anúncios de
produtos em troca de brindes e outros valores. O roteiro a seguir é um
exemplo bem típico disso.
INÍCIO DA TRANSMISSÃO
Conheça o Zoológico Galáctico de Parra! Quando visitar a segunda
espiral da galáxia, não deixe de visitar o mundo de Parra e o nosso fantástico
zoológico interplanetário. Agora totalmente remodelado. A nova direção
resolveu antigos problemas e agora em toda Parra é possível fazer aterrisa-
gens mais seguras. São instalações mais adequadas às diferentes formas de
vida, cozinha diversificada para todos os apetites do universo e voos orbitais
programados todos os dias. Venham todos! Reserve já a sua temporada
no zoo de Parra. Conheçam o Grande Lagarto Branco de Dzijau, a maior
criatura do universo, seu tamanho se mede em quilômetros e as suas patas
chegam a duas mil. Sua pele é toda cristalina, pois o mundo de Dzijau
é um imenso cristal gélido e viscoso. Isso o torna um predador pratica-
mente invisível. Ele pode ser visto em sua enorme cúpula geodésica, no
deserto sul de Parra. Aceitamos metais raros como pagamento! Conheçam
também a Formiga Inteligente de Lonch: pouco antes de o Planeta Lonch
ser cruelmente destruído pela explosão de uma supernova vizinha ao seu
sol, esses seres minúsculos, mas incrivelmente inteligentes, construíram
frotas de formigueiros espaciais que se espalharam por toda a galáxia.
Infelizmente, a maior parte sucumbiu às condições do espaço, mas nós
conseguimos resgatar um desses formigueiros e o instalamos em nossa
órbita. Reserve já a sua cabine especial na nossa estação orbital e acompanhe
as circunvoluções fantásticas desse micro mundo ao redor do planeta Parra.
Conheçam também as Flores Falantes de El Mirrad. Destinada aos amantes
da flora, essa sessão exclusiva, chamada zoobotânica, expõe as intrigantes
flores falantes de El Mirrad, que não são somente flores, possuem ainda
inteligência e o dom da comunicação em qualquer idioma que se lhes ensine.
17

Visite também a gaiola dourada, onde estão todas as espécies voadoras do


universo. Condições especiais de pagamento para grupos. E também para
você, amigo operador de rádio estrelar.
(Retransmita já esse anúncio e ganhe um mascote na ocasião de sua
visita.)
FIM DA TRANSMISSÃO

***

Segue o aparte do Chefe de Divisão de Propaganda Interplanetária,


o Nobre Bakxtim, do planeta Mentol e veterano operador de rádio
interestrelar:
— Quando eu fui operador de rádio, na astronave Cygnus IV, uma das
coisas mais irritantes que tive de anunciar foi a propaganda infame desse
zoo interestrelar em Parra. Agora, como Chefe da Divisão de Propaganda
Interplanetária, quero deixar no Conselho Galáctico Universal o meu
repúdio ao que se chama de cativeiro espacial. E que se bloqueie urgente-
mente essa aberração galáctica! Devemos insistir para que esse zoológico
deixe de funcionar e que todas as criaturas aprisionadas sejam retrans-
portadas imediatamente aos seus mundos de origem. Isso não pode ser
admitido nem continuar existindo na nossa galáxia.

***

Um salto persec depois, na sala de rádio da astronave Cygnus IV,


duas criaturas de Mentol – o planeta dos habilidosos comunicadores e dos
grandes trapaceiros – estão preocupadas com as declarações que acabaram
de interceptar.
— Então foi isso que o nosso antigo Chefe disse no Conselho
Galáctico, Bilgol?
— É, Arche… Ele foi um dos últimos a falar antes da votação.
— Então foi tudo proibido mesmo!
— É, Arche, não vai ter nenhuma apelação, tanto os zoológicos como o
comércio de espécies estão proibidos. A polícia galáctica já está mobilizada.
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Teremos problemas ao chegar em Trentz.


— Eu sabia que os terrassolenses não iam dar em nada, Bilgol, e agora,
o que fazemos com essa carga?
— Não podemos devolver os humanos porque o planeta Terrasol foi
esterilizado por ordem do Conselho Universal.
— Eu sabia, Bilgol, a carga que transportamos já era ilegal antes
mesmo desse anúncio. Por que não os jogamos no espaço agora? Eles não
valem mais nada mesmo…
— Não seja panzo1, Arche. Investimos centos de tamizes nesse
negócio! Logo agora que eles iam valer bem mais. Alguém ainda vai se
interessar por eles… Mas teremos que agir rápido, pois o tempo de vida
deles é curto.
— Que azar, hein? Além de tudo não podem mais se reproduzir…
— É, Arche, mesmo assim vamos mantê-los ocupados, copulando nas
jaulas térmicas, e ver o que acontece. Se acalme, Arche. Conheço um cara
num planetinha da segunda espiral que deve saber como a gente se livra
disso e ainda por cima ganha alguns tamizes… Relaxa, Arche!

1 Panzo: Gíria do planeta Mentol. Indivíduo de pouca inteligência.


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Sobre o autor

Herman Augusto Schmitz é natural de Curitiba e reside em


Londrina desde os anos 1990, onde vem atuando como escritor,
produtor e artista gráfico no cenário artístico e cultural. Participa
do LONDRIX (Festival Literário de Londrina) desde 2006. Em
2010 foi contemplado com a Bolsa FUNARTE de Circulação
Literária com o projeto Poesia In Concert. Publicou os livros Os
Maracujás de poesia, as coletâneas de ficção científica: Terrassol
e O Clone de Si Mesmo e outros contos breves e BJ Grafados,
antologia de trechos de literatura mundial. Academicamente é
Mestre em Letras — Estudos literários, pela Universidade Estadual
de Londrina (UEL), tendo defendido o pós-humanismo com a
pesquisa: Sonha a Ficção científica com um futuro pós-humano?
Atua também como programador e locutor na web rádio Arte
Viva.
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Conteúdo

Missão Terrassol  2
Introdução  4
Relatório Final de Terrassol  6
O Raio Esterilizante  9
Mundo Animal  16
Sobre o autor  19

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