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NAPALM

Poemas

Jardel Felipe Santiago

1
Copyright © 2020 by Jardel Felipe Santiago
Diagramação Jardel Felipe Santiago
Capa Jardel Felipe Santiago
Revisão Jardel Felipe Santiago

S235n Jardel Felipe Santiago


Napalm / Jardel Felipe Santiago / 1. ed./ Campo
Belo/MG
Esta obra é uma produção independente
ISBN 978-65-901569-1-4
Copyright (2020) by Jardel Felipe Santiago
Todos os direitos desta edição reservados ao autor
da obra
1.Poesia – Brasil 2. Literatura brasileira

Índice para catálogo sistemático


1. Poesia – Brasil CDD B869.1
2. Literatura brasileira CDD B869

2
Sozinhos somos quase nada no
mundo, porém na companhia certa e
caminhando ambos no mesmo rumo,
com certeza este mesmo mundo
ganhará algo muito mais precioso.

3
4
À minha família:
Juselma, esposa e
companheira, e
Arielle, minha filha
querida, presente de
Deus.

5
6
Sumário

As Bruxas ......................................................................11
(Todas mulheres me encantam) ..................................11
Exílio .............................................................................13
Represas .......................................................................14
Às vezes ........................................................................16
Dúvida ..........................................................................18
Napalm .........................................................................20
Era uma vez ..................................................................21
Por entre os dedos .......................................................22
Muito mais ...................................................................23
A ilha .............................................................................25
Funâmbulo ...................................................................26
Amanhã ........................................................................28
O coração .....................................................................29
Sem deixar rastros........................................................30
Procissão ......................................................................31
Pássaro ferido...............................................................33
Aconteceu ....................................................................36
O ferreiro ......................................................................37
“Data venia” .................................................................39
O cadafalso ...................................................................40

7
O coração - parte II .......................................................42
Olhos no céu.................................................................44
Raio de luz ....................................................................45
Fissão ............................................................................47
Sonhos ..........................................................................49
Mais uma vez................................................................50
Saudade ........................................................................52
Tantas vezes .................................................................53
Sexo ..............................................................................54
“Deja vu” ......................................................................56
Quem me dera .............................................................57
“Voyeur” .......................................................................58
Ex-amigos .....................................................................60
Asfixia ...........................................................................61
Mulher infiel .................................................................63
Delírio quântico ............................................................65
Lembranças ..................................................................66
Na trilha de Dante ........................................................68
Universo .......................................................................70
Eclipse...........................................................................71
Urgente ........................................................................73
Insônia ..........................................................................74
Meu caminho ...............................................................76

8
Doce inferno .................................................................78
O grito...........................................................................80
“Mea culpa” .................................................................82
Ave Prozac! ...................................................................84
E o sonho acabou .........................................................86
Primeira pessoa ............................................................88
Bichos famintos ............................................................90
Um gato no muro .........................................................92

9
10
As Bruxas

(Todas mulheres me encantam)

Tantas bruxas morreram


E outras tantas
de almas santas,
sobreviveram
Atravessaram séculos e séculos
deixando rastros no vento
e um perfume no ar
A vassoura, a verruga, o caldeirão
A gralha
e o gato de olhos vermelhos
A lua, a noite fria,
o uivo do lobo
A moeda no fundo do poço
O desejo do moço,
do guerreiro
de bom coração
O espelho, o encanto,

11
a beleza, o fascínio, a paixão...
Por fim, a magia
da mais bela flor
oculta e macia
À espera daquele
que a sempre regou
com o choro
contido pela razão

12
Exílio

Todos têm um resto de felicidade


que se esconde num canto
da casa vazia
Pode ser um mero perfume,
um livro ou uma fotografia
Ou ainda, quem sabe?
Apenas o eco de um riso profano
Eu, por enquanto, não sei
Contento com minhas dores,
meus sonhos ou, até mesmo,
um devaneio tirano
que me prendem nos quartos,
na sala e nos corredores
Por isso flutuo pensando
Até quando poderei resistir
ao silêncio
e à luta
contra este exílio insano?

13
Represas

Quem foi que viu a mesma flor


que eu vi na infância?
Quem foi que sonhou como eu,
o sonho de agarrar às estrelas e voar no infinito?
Quem foi que seguiu o mesmo caminho
que desenhou minha pipa no meu céu de criança?
Quem foi que navegou nos mesmos barcos de papel
que flutuaram nas represas
que eu menino fiz logo que a chuva parou?
Quem foi que bebeu do mesmo conhaque maldito
e experimentou o êxtase do vôo
sobre o triste deserto da demência?
E quem conseguiu atravessar o mesmo rio da
cidade
que desenhei no meu primeiro caderno escolar?
Não sei! Talvez ninguém,
ou talvez alguém que ainda não aprendeu a sorrir
Que alguém me decifre eu acredito,

14
mas não creio que alguém me compreenda
Por mais que olhem meu rosto,
analisem meus gestos ou estudem meus passos
Ninguém ouvirá os sussurros de meu coração
e muito menos os gritos de minh’alma.

15
Às vezes

Às vezes sinto tua falta


Às vezes desejo de ti um beijo
Às vezes pondero, às vezes não
Talvez porque sempre te quero nua
na palma de minha mão
Às vezes suspiro, cansado de te esperar
Às vezes espero poder te encontrar
Quem sabe onde?
Talvez nas esquinas, nos montes, em qualquer
lugar
Recuo, contento quando tu apertas a minha mão
Às vezes é suficiente, às vezes não
Às vezes me és como o mar, distante, medonho
Às vezes és pura luz vinda do céu
que me alcança entre as montanhas
Às vezes me fazes sonhar
Às vezes roubas meu sono
Às vezes corro de ti fugindo de mim

16
E agora? - Não sei, só faço esperar
Às vezes sou assim
metade sisudo, metade feliz
Rio quando penso
que às vezes sentes falta de mim

17
Dúvida

Muitos muito me disseram


sobre tudo e a vida que devia viver
Muitos escolheram
e mostraram-me tantos caminhos,
retos, tortos, tortuosos...
- Sou dúvida
Um lado meu quer seguir, agredir
O outro não,
sucumbe, vaga
Perambula entre escombros
Tantas janelas se fecham
deixando-me apenas as luzes do céu
Então surge aquela luz que tento evitar
A doce e fria luz da quinta estrela
que me confunde,
ofuscando-me os sentidos
A palidez me fascina
A forma me seduz

18
Titubeio
Penso pensar
Sigo,
pisando firme no ar

19
Napalm
Era um tempo de cores,
de sonhos e licores
Éteres, ópio e filosofia
Paz, amor, contra-cultura
e não-faça-guerra
Sexo, drogas e rock’n’roll
Ácido e busca da felicidade
Viagens, sons, espiritualidade
Perigo! Veneno!
Este lado para cima!
“Yellow Submarine”
e Sociedade Alternativa
Nirvana, Buda,
Krishna – Hare, Hare
Virgem Santa!
Era o mundo
Vietnã, napalm
Céus!
Era a resposta

20
Era uma vez

Contem-me histórias,
divertidas,
se possível
Quero rir,
preciso rir
encantar-me,
iludir-me
E até mesmo acreditar
no era uma vez que ecoa
no coração das crianças

21
Por entre os dedos
Tudo pra mim é ontem
Nada pra mim é hoje
Tudo urge
Menos a vida
que esvai-se em pó
por entre os dedos
dos deuses de barro
Ah! Doce loucura
que me faz sonhar
E rir desta vida sofrida, etílica,
de bar em bar
Caminho, converso sozinho,
danço na chuva, olho pro céu
Flutuo
Acho que sou feliz
Porque sei
que malucos não voam
Simplesmente
repousam no ar

22
Muito mais

Muito mais
que o desejo dos amantes
Muito mais
que a fé dos beatos
Muito mais
que a esperança dos peregrinos
Muito mais
que a saga dos heróis
Muito mais
que a fome dos excluídos
Muito mais
que o sonho dos rebeldes
Muito mais
que a paciência dos alquimistas
Muito mais
que a vontade dos justos
Muito mais
Que a astúcia dos jogadores

23
Muito mais
que a ousadia dos infiéis
Muito mais
que a paz dos inocentes
Muito mais
que a disciplina dos magos
Muito mais eu guardo
no fundo do coração
quando escuto teus passos
quando ouço tua voz
quando vejo teu rosto
quando sinto teu hálito
quando afagas meu peito
quando me abraças sorrindo
Muito mais eu desejo
quando acaba meu sonho
Muito mais...

24
A ilha

A ilha
é um ponto
de existência
no oceano a flutuar
O farol
que tudo vê
não existe sem o mar
E um barco
sem o céu
não consegue navegar

25
Funâmbulo

Eis que tudo é mais difícil que o impossível


E nada mais faz sentido
Restando apenas caminhar
Um caminhar cego no acaso de cada passo
Qual funâmbulo embriagado de tédio,
de remédios pesados, num torpor de desejos juvenis
Meus grilos se misturam
às figuras pálidas que saem dos bares
Mergulho no ser, no sentir, no palpitar do coração
e caio no olho do cisco
no mundo minúsculo do quase lá
Experimento a firmeza da corda e
compartilho a cumplicidade das partículas
que bailam e giram numa ciranda profana
A verdade nos espelhos
A inutilidade dos conselhos
A dança das facas, das moscas
e das mariposas na grande cidade

26
Tudo é um risco constante,
é mentira, é meio, é fim
e tão duro de ver, de viver...
E o homem que habita entre feras
é fera também
Mas eu
sempre me visto de anjo, com asas
e olhos brilhantes
E ganho até orações
dos infiéis, dos crentes
e dos ateus não praticantes

27
Amanhã

Estou só
num planetinha azul
deslizando pelo espaço
pensando...
ruminando idéias
e evitando o delírio
Tantos mapas
passam sob meus pés
e eu salto sobre minas...
Hoje sol,
amanhã chuva
E a chuva virá
como nunca veio antes
Amanhã
uma chuva de estrôncio
regará os cogumelos

28
O coração

O coração é burro,
egoísta, inconsequente
Não envelhece
É sempre adolescente, sem rumo
Queria fosse ele cinzento, pensante,
de neurônios e fosfato
Mas não,
É músculo pulsante,
de fato
É vermelho, temido
Regado a sangue
Sangue é vida
E vida não tem sentido

29
Sem deixar rastros...

Foi assim
No começo tudo negro
Agora quase
Talvez um dia voarei,
ou caminharei
Porém,
sem deixar rastros

30
Procissão

Fugi da praga,
do raio
e das maldições
Fugi das ilusões
das multidões
e das orações
Calei,
assisto sozinho
o deslizar anêmico
de uma procissão
Tantos bonecos seguindo,
repetindo palavras ocas
que brotam da boca
de um sacerdote cego
Tímidos, omissos, submissos,
simplesmente aceitam e,
claudicantes,
caminham “felizes”,

31
cantando um hino
apocalíptico

32
Pássaro ferido

Caí
Meus companheiros seguiram em bando no céu
Minhas asas doem
Estou ferido
As areias de um deserto desconhecido me arranham
as costas
No entanto, a dor pelo corpo, embora intensa,
tem um sabor diferente, de um acaso doce
Sou antes do porém
Estou no cerne do enquanto
A saudade me corrói as entranhas e me turba a
mente
Sei que voei muito e percorri tantos caminhos no
céu,
Sobrevoei rios, lagos, montanhas, cidades e flores
Entre os espinhos das rosas suguei as doces gotas
do orvalho das manhãs
E agora sinto o mesmo sabor adocicado, como se
mel fosse
Mas, não

33
É sangue, na boca e no coração
Estou só e nada sei sobre meu último ninho
Garras afiadas tentam me arrastar pelas frestas de
um mundo cinzento
Enquanto mãos suaves de uma figura esguia e
pálida me acariciam
E não me deixam levar os sentidos, nem a razão
A luz forte do sol me ofusca a visão e a dor ainda
me confunde
Onde ficaram ou para onde foram aqueles que me
amaram?
Tudo em um minuto ainda é vida
E o que me resta além de dor e lembranças?
Estou dentro de um agora, numa janela do tempo e
por dentro de mim rio feliz
Porque, amparado por dois seres angélicos, amigos
desconhecidos que me auxiliam
Não estou mais só
E com grande afeto me suspendem no ar
Liberdade!
Estou de novo no céu
E vejo no chão meu corpo frágil caído

34
Um monte de penas coloridas afagadas pelo vento
morno de uma tarde qualquer
Talvez ali, algum dia, nascerá uma árvore que dê
frutos
E alimente o viajante, o peregrino
Ou, talvez, ali mesmo, em pleno deserto da vida
humana, surja a semente da paz
E desabroche uma flor na alma dos seres de
amanhã.

35
Aconteceu

Como se fosse ontem


hoje eu vou
como sempre sou,
da mesma forma
Foi assim
No inverno passado,
quando te conheci
Aconteceu
Acontece sempre
quando te encontro
nua de coração

36
O ferreiro

Trabalhei duro na forja


Martelei na noite
Suei intensamente
A cada batida na bigorna
Centelhas voavam se espalhando no ar
Iluminando a escuridão como se estrelas fossem
Tudo é tão belo e mágico
Que me faz ignorar o cansaço
E por isso continuo martelando
Dando forma ao aço
Bela peça que surge e reluz incandescente
Uma espada feita de aço, fé e suor
Por ali o carvão, a brasa,
A faísca acesa pelo bafo do fole
Meus olhos que brilham
Encharcados de felicidade
E o suor que me escorre na face e se junta na água
Onde mergulho o ferro em brasa

37
A poção, o calor da fornalha
A visão turva pela fuligem impregnada
A satisfação do ferreiro, artesão incansável
Que não se contenta
E contempla sempre a penúltima obra
Ofício nobre de um homem simples
A dignidade de ser, criar e...
Transformar
Alma, coração, espada e o trabalho – devoção
Por isso importante é martelar,
Martelar, martelar...
Martelar na escuridão

38
“Data venia”

Em nome da ordem
a hierarquia besta,
senão o caos
(justificam!)
Por isso,
respeitemos os julgadores
Mesmo aqueles
indignos de nossa admiração,
os parciais
e os que laboram uma justiça lenta
Porém, “data venia”,
Se é lenta, não é justiça
É conveniência!
Lamentemos...

39
O cadafalso

O som do vento, dos pingos da chuva,


na manhã de um dia tão curto
As mãos, os acenos,
gestos obscenos da multidão
Tudo é tão frio
como o fio do machado
E tão negro
quanto o corvo e o carvão
Negro também
o capuz do carrasco e
o futuro em duas mãos
Agora o sinal
Então se espalha o vermelho,
tingindo de dor o chão encharcado
Entre rosas, tulipas e mandrágoras
vige a lei
Os justos se foram
Restam os tambores,

40
os senhores
e o cadafalso
Flores?
- Vida longa ao rei!

41
O coração - parte II

O coração não dói


Mas o peito sim
A cabeça também
E o corpo todo reflete a mesma dor
O coração bate, resiste
É forte, determinado.
O corpo é fraco, a mente vacila
O coração bate, bate, bate...
E o sofrimento?
Existe?
Sim, mas o coração insiste
É a vida, o motor, o moto-contínuo
Vêm as perdas, o coração bate
As despedidas, o coração bate
A saudade, o coração bate
Tum, tum, tum, tum...
O eco da vida – um som no espaço
A mesma cadência, a mesma toada

42
É o coração que bate, no mesmo compasso
Bate e bate, com fé, disciplina e nobreza
Ignorando a tristeza e até o cansaço
O começo de tudo, antes do primeiro choro
Até quando não sei
Ah! Coração, segue teu rumo!
Cumpra tua missão!
Espalhe, bombeie o sangue por todo o corpo do
homem!
Elimine a dor, lave a alma e eleve o mundo!
Incansável obreiro
Lá em cima, no céu, alguém pulsa contigo
E espera
Espera o silenciar calmo, suave, sereno, indolor
Para que possa dormir na eternidade
Junto ao “tum-tum” Criador

43
Olhos no céu

Muitos procuram o amor


iludidos pela transparência
de um olhar
Roubam no céu
um beijo da lua
inserindo no coração
os fluidos mágicos da noite
Agora o coração bate,
o amor existe
Meus olhos no céu
sempre vêm a tua imagem

44
Raio de luz
Doce raio de luz
que se faz moça-criança
bailando leve entre plumas
dentro de uma tarde qualquer
Entre anjos e devas
do mundo das cores
surge um brilho tão lindo
quanto um raio de sol
Um canto acalanto
um sorriso e cirandas
e a leveza de ser
U’a imagem de fada
de aura dourada
reluz em mil faces
do mais raro cristal
Espero então que o vento
traga sempre o sorriso,
a alegria
e a magia de ser feliz

45
E derrame essa imagem
nas retinas
de quem sempre a vê
com os olhos do coração

46
Fissão

Derramem o óleo!
Preparem as lanças!
Disparem as flechas!
Girem as maças!
Empunhem as espadas!
Vençam! Vençam!
Tantos bradaram
nas espirais da história
Venceram
E agora?
Coitados
Retornam ao caos
Partiram o indivisível
Inquietas partículas
se perdem no ar
Pequenas bestas
que nos mordem as células
Aguardem-nos megatérios

47
fluorescentes e rastejantes
Amanhã voltaremos
Talvez pela porta dos fundos

48
Sonhos

À noite o mundo é mais mundo


Tudo é espesso
E há tantas portas, janelas, passagens...
E, claro, passageiros, viajantes, entrantes...
E os sonhos?
Meros sonhos que nos abrem as portas
Sonhos tão claros, contínuos, divinos,
que neutralizam a escuridão,
o medo e até mesmo o pensar.
Despertar?
Pra que?
Os sonhos nos bastam,
enquanto flutuamos no rio da vida
Agora sei
que apenas quem morre
aprende para que servem os sonhos
Que não há morte
E que a vida é sempre um novo sonhar

49
Mais uma vez

Ainda que minha voz


não fosse tão forte
como a voz de um simples desejo
Ainda assim tentaria
soltar um pequeno balão
cheio de palavras suaves
como o perfume da flor
do mais belo jardim
Esperaria então que o vento
manso da primavera
o levasse de encontro aos ouvidos
regidos pelo silêncio ditado pelos comuns
Aí sim teceria
novos versos de luz
pois tantas sementes germinariam
com o pulsar forte, vibrante
de um só coração
Tentarei sempre mais uma vez

50
Até quando não sei
Talvez até quando
puder / conseguir
dizer sempre:
- mais uma vez!

51
Saudade

Quando apareceu seu rosto


na janela do meu pensamento
eu agradeci
e quase chorei
Quando a saudade
levou meu sorriso
pra longe de mim
eu adormeci
e até sonhei
Quando no meu sonho
você me abraçou
não acreditei
apenas sorri

52
Tantas vezes

Entre tantas
vezes quantas
muitas foram
Entre muitas
tantas vezes
quantas foram
Não importa
Simplesmente basta
sentir-se perto
quando o longe
é longe agora

53
Sexo

O quanto me assombram os desejos,


a vontade que me toma
Mais uma vez
a tez branca, pálida,
me desperta
E o estranho, o vulgar,
como em um sonho,
me fascinam
Instinto, esforço, dor e prazer
Que fazer?
Esperar?
Adiar?
Talvez sempre
Figuras disformes
desfilam em meus pensamentos
Ouço frases sem nexo,
sons, vozes, desvario
Rio, retenho meu sonho

54
A vontade contida me escapa do peito
Tremo, apalpo, tateio
Sou passageiro
Tudo é um simples complexo
Diria Freud: - É sexo!

55
“Deja vu”
É como se fosse ontem
e me restasse apenas um vão
Um abismo faminto engolindo lembranças
A vontade que tomba
e cai num vazio dos sentidos
entre as sombras de um hiato existencial
As horas em marcha-ré
A mesma voz que ainda ouço
O mesmo gosto de sal
O mesmo cheiro agridoce que me fere as narinas
E a mesma cena vivida repetidamente,
numa seqüência previsível
de um futuro distante
que se encontra com um passado perdido
Por isso eu sei que daqui a pouco
tudo novamente acontecerá
como se fosse antes
E agora eu me vejo por inteiro
em cada fragmento de um espelho partido.

56
Quem me dera

Quem me dera
restassem atendidas
todas as preces feitas
por aqueles que me amam
Mas não
Sei que me basta o chão
duro e frio
que me fere os joelhos
e prolonga o dia
Pois que assim
sentir-me-ei forte
pra seguir o caminho dos justos
ao lado da força
do anjo que me guia

57
“Voyeur”

Cada olho que vê


é um olho normal
Outros raros que olham
se perdem nas faces
de um sonoro cristal
Sinto cheiro da noite
Ouço cores, tateio
Apalpo sons e rio
da minha doce loucura
do mel que lambuzo
os teus seios graúdos
Nada mais é tão sério
Por isso não me deixem
sem olhos
É puro gozo de ser, divertir,
calar e sentir, no meio
de um mundo acanhado
E ficar encolhido, na sombra,

58
pendurado nas teias, nas ligas e meias
da meretriz perfumada
que ainda não veio

59
Ex-amigos
Meus amigos se foram
Meus ex-amigos
(que amigos nunca foram)
Talvez porque de mim nada receberam,
além da lealdade
Dispersaram-se
Seguiram cambaleantes e sós
Certamente seus pés doerão
pelo caminho mal escolhido
que nada mais é do que um sulco de dogmas,
áspero e tortuoso,
traçado na aridez de seus corações
Não me ouviram
Porque escutam
apenas o eco de seus próprios sentimentos impuros
Estão surdos e míopes
Com certeza agonizarão
E seus lamentos se farão ouvir
junto ao clamor das multidões insatisfeitas

60
Asfixia

Ainda que algo me falte


sacrificar-me-ei
Mesmo que surjas
em branco e preto
de lentes e papel
figuras aleatórias me bastarão
É o que posso
por ora
E até me permito
ousar dos meus próprios sonhos
Retiro peças, partes e vestes
e me sobram reflexos
da montagem que fiz
Escapo pensando e
contemplo a imagem cortada em fatias
E agora, de tudo que me resta,
apenas o quarto
e a cama vazia

61
Pois, como sabes,
és o ar que me falta
no fim do dia

62
Mulher infiel

Enquanto o sono
cobre de culpa
tão bela mulher
Contemplo quão belas formas
se mostram
parcialmente nuas
É certo que
o desejo cego
empurrado pelo vento insano da paixão
selou de fato o pecado do cúmplice
Porém, desperto-me
e penso calado
O peso do choro contido me sufoca
Por isso lamento e,
Sorrindo, dou graças ao dono do céu
Que bom!
O fim do sono,
do sonho

63
e da insana cumplicidade
Que venha o sol
Bom dia
Mulher infiel!

64
Delírio quântico

Mundo estranho
Isso tudo que me cerca
As flores, os rios, as montanhas
E as estrelas também
O sol, a chuva e a lua
E porque não dizer?
A rua
A minha rua, onde me criei
Os becos, os guetos
O balé quântico
Doce delírio, sonhos, devaneios
E até mesmo, pesadelos!
Pares e trincas de quarks
E o sonambulismo atômico
Lá longe, na fronteira do nada
o elétron que salta e brinca
como eu brincava
de pique-esconde

65
Lembranças

Tantas datas ficaram


na parede caiada, penduradas
entre quadros de santos
e de fotografias
dos entes que já partiram
E meus dentes que doem
são meros fiapos
de lembranças caladas
abafadas pela planta
de um pé claudicante
E agora José?
Até quando não sei
Só faço rezar e dedilho meu terço
tecendo versos plangentes
que me secam as lágrimas
e encharcam o coração
É o pó, a poeira do tempo,
as sombras e a voz que não diz

66
Mas sei que um resto de mim
ainda busca nas frestas do céu
um raio de sol
e refloresce no chão

67
Na trilha de Dante

Afasta-te do Aqueronte
Oh Musa!
E mesmo que agasalho ou roupas
Não os tenha
Corra com o vento, nua, veloz
E sempre adiante
Que bulam os Centauros
E até outras bestas
Mas segues o caminho reto
Por sobre as pegadas que deixei
Nas margens do rio infernal
E, apesar dos seixos e pedras
Que te cortam os pés
Busque no norte a luz da cidade
Ali estarei, porque nada mais posso fazer
A não ser esperar-te (sempre)
Sendo, pois, que assim impõe-se
A cada um de nós – a missão de viver

68
Sei que chegarás cansada
Mas estender-te-ei a mão
Suba comigo e sinta o calor do rei sol
É a volta
Restarão atrás, bem no fundo do chão
As dores, o choro e lamentos
Daqueles conduzidos por Caronte
E as vozes da noite noticiarão
A ousada fuga da moça
Para o coração do moço
Que há muito
Também deixou o mundo dos mortos

69
Universo

Quando nada existe,


é frio
Quando existe nada,
é mais
Quando nada mais existe,
será frio
Quando mais nada existe,
seria
E assim será
um eterno flutuar
de corpos, luzes e mundos,
todos sonhando, expandindo,
em busca do calor maior
Será vida?

70
Eclipse

De repente,
um manto de sombras
que engole o dia
Um eclipse
Um aviso dos céus – um presságio
Lá em cima, asteroides, planetas,
corpos celestes em fuga
Agonia estelar – um quasar aflito
A ciranda cósmica...
Aqui embaixo, girassóis, violetas, rosa-dos-ventos
norte, sul, leste, oeste
continentes que se movem
latitude, longitude e... as borboletas
Das trincas do tempo surge um anjo vendado
que despeja no chão um jarro de sonhos
de uma nova existência
Tantos seres que dormem
e se consomem nos vícios, embriagados de tédio

71
Que voem todas as aves
e as borboletas também
E batam as asas cada vez mais forte, intensamente
Mudem os rumos e os pensamentos
Galopem no vento
sobre o abismo da nescidade dos homens
Domem os tornados, os tufões e os furacões
E com afeto despertem
apenas aqueles que aprenderam a sonhar

72
Urgente

Dos cálices,
o vôo insano no ar.
Da noite,
o luar que me tira o sono.
Do circo,
o furo no pano.
Das léguas,
a volta à casa do pai.
Das botas,
o caminhar de chumbo.
Do céu,
a liberdade do vôo.
Das minas,
a prata contra o vampiro.
Do pai,
o presente – a felicidade.
Esse tempo que não me cabe
- Sou muito mais que urgente!

73
Insônia

Cai a noite
Um tique-taque cansado, ensurdecedor,
invade meu quarto, rasgando meu sono,
trazendo um desfile de pensamentos incoerentes
Rolam os dados, rumo ao acaso
O império ruiu
O carro conduz a imperatriz vaidosa,
o cetro e o escudeiro morto
E o bobo, coitado,
dependurado nas teias da eternidade,
de ponta-cabeça, assiste aflito
a queda, a invasão da cidade
A torre, a morte, os amantes e a lua fria no céu
Um louco perambula pelas sombras do aleatório
em busca da razão de sua insanidade
Mergulha na noite e costura seus próprios abismos
com frágeis lembranças
de uma infância perdida no tempo

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Meu tempo ainda é bastante,
o suficiente eu sei,
para dormir e sonhar, lutar, vencer
e seguir nos braços
daquela que não me deixa dormir

75
Meu caminho

Meu caminho é longo


Nunca gostei de atalhos
No entanto, nunca voltei
Às vezes paro, reflito,
depois sigo
Meus pés doem, os olhos ardem
O coração é todo saudade
E a saudade
é como um vento frio, cortante,
que me congela o corpo e,
estranhamente, me aquece o coração
Árduo caminho – duro, pedregoso
E mesmo assim
guarda milhões de pegadas
onde tantos pisaram
Sei que outros tantos
seguirão a mesma trilha
Mas apenas quem busca

76
e segue a mesma estrela que brilha no céu
Encontrará meu rastro
cravado no chão
na poeira dos séculos, no rumo da eternidade

77
Doce inferno

De quando em quando
vem a impiedosa
e insana cobrança
Acusam-me
Sou infiel quando canto
Mesmo quando a música
surge do acaso
que impregna minha mente
Desde quando cantar é trair?
Indago, rastejo, choro, lamento e...
caio por entre os vãos
de uma noite oca
As lágrimas tombam,
foscas, sem brilho,
molhando meu peito que arde
Doce inferno criado, frio, eternizado,
tecido com as linhas
de uma paixão vil

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Por que me batem?
- Não sei!
Talvez porque sempre apanharam...
porque sofreram..
porque são infelizes – Coitados!
Ainda não sabem que hoje
metade de mim
é silêncio
A outra é nada!

79
O grito

Enquanto morro, grito


Após o grito, o eco
Outro grito
O ranger de dentes
O suor e um olhar míope
Caio,
Sangro,
Mijo
Escapo pela braguilha
de uma calça puída
E os ratos se coçam
À espera do lixo da noite
das folhas de chá
dos penicos das damas
que surgem da luz de neon
Estou só
Sem RG, CPF ou DNA
As botas, um sonho

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De novo as botas
que marcham na noite
e me ferem de morte,
pisando, calcando meus pensamentos
Estou só, como bicho acuado,
sem forças, longe do mato
das manchetes,
das fotos, dos fatos
Não sou lixo, sou quase
Minha alma
talvez escape
dos disparates
do desvario
do escárnio dos ratos

81
“Mea culpa”

O sono não veio


Já não sou mais eu
como pensei que fosse
Busquei a vida, a felicidade
Tornei-me escravo de uma culpa
“Mea Culpa”
E agora, sem dormir nem sonhar
Castigo-me
Ouço meu nome
Como um hálito gutural
Sem vogais, sem eco, nem sal
Sinto-me escorrendo
pelo ralo da incoerência
ou da demência – sei lá!
Afundo no chão
Esbarro nos anjos de louça
nos santos de barro
nos escarros da noite

82
Misturo-me à escuridão
como vampiro sedento
Uma estampa sem cor
E a dor, só a dor é real
O resto é um rastro
de um feitiço equivocado, desleal
Ouvi gritos e sussurros
Despertei-me de um sono falso
E agora as vogais de meu nome
se encaixam nos ruídos noturnos
no uivo de um cão solitário
no vento e até mesmo no pó
E o que me basta por ora
é apenas respirar
o ar da miséria
de existir só

83
Ave Prozac!

Não tenho nada


além de uma noite fria,
quase glacial
Cansei e parei no meio da luta
contra um mundo imbecil e banal
Não rezo mais
Minhas orações não valem
Acho que nunca valeram
Por isso valho-me apenas
do santo “prozac”
O remédio dos esquecidos,
dos adormecidos
e dos entorpecidos,
que se contentam apenas
com o sono que pesa,
o torpor que engana
e se contorcem na cama
Sinto frio

84
Então espero o tempo passar
por um simples relógio
a gotejar tiquetaques
junto com minhas lágrimas
que caem no chão
Agora viro pro canto,
choro e me cubro
com o manto escuro da solidão

85
E o sonho acabou

Furo, escavo, penetro,


busco dentro das coisas
que encontro nas ruas
o espírito do caos, a coerência da ordem
E abro mão de um tolo desejo
Aquele de conquistar a tal liberdade
de ser, de existir, de falar, de cantar e
declamar poesias, poemas e até orações
Os discursos de sempre me ferem
e as falácias me irritam
Sucumbiram os fracos
e os puros também
Restaram os moucos
e o cetro do rei caído no chão
corroído pela corrupção
E assim o show terminou
E os loucos? Pobres diabos!
No afã de vencer e abraçar o poder

86
acordaram no meio do sono,
no meio do nada
E o sonho acabou!

87
Primeira pessoa

Eu vi a dança do urso
E recebi de herança um elefante de circo
enquanto decifrava alguns manuscritos de alquimia
e estudava certas cartas de astronomia
Depois olhei pro céu
e vi Nibiru
Que sono!
Bocejei, ri, senti cãibras
Então viro outra página
de um velho almanaque
E aparece um monge dervixe
que reproduz a dança do urso no céu
Não quero dinheiro,
dispenso heranças
Quero sim transformação
de tudo que existe no coração das crianças
para uma coisa boa
Só isso

88
Pois não sei até quando
serei
a primeira pessoa.

89
Bichos famintos

A mulher de barba
O leão, o chicote
e a dor
A febre, o suor
E eu que saio correndo
pra ver o palhaço feioso
a equilibrista
o cavalo
e os bichos famintos
esquálidos, insones,
puros coitados
No mais, ainda sou eu
que furo a lona e vejo
o futuro em cacos
manchado, marcado,
impregnado de dor
Então admiro o que resta,
ou seja,

90
apenas o doce refrigerante
que escorre
das mãos
dos pobres macacos

91
Um gato no muro

No muro passeia
um gato mirrado
que lança na noite
um miado triste,
abafado
E eu, no meu quarto, pensando,
me sinto no corpo
do pobre felino,
olhando a janela da vizinha magrela,
bem longe num passado distante
em que eu, jovem, sonhava
poder abraçá-la e,
quem sabe,
casar-me com ela,
Entre todas a mais bela
Hoje nem tanto, coitada!
Velha, acabada e trêmula
Acabou-se o encanto, o desejo

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e o sonho também,
de fato
Que bom!
Ainda bem
que eu nunca fui gato!

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