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DA SERVIDÃO À REBELDIA: AS PEDAGOGIAS DESCOLONIZADORAS


BRASILEIRAS

Ana Lúcia Goulart de Faria1; Alex Barreiro2; Elina Macedo3; Flávio Santiago4; Solange
Estanislau dos Santos5 - Gepedisc-Culturas Infantis (FE/UNICAMP)

O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente
que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele
permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-
se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social
muito mais do que instância que tem por função reprimir (FOUCAULT,
2012, p. 45).

Os estudos sobre as crianças e as infâncias no Brasil estão marcados por diferentes


aportes teóricos e metodológicos, dentre eles, podemos destacar os trabalhos científicos
produzidos por perspectivas marxistas e também pós-colonialistas. São nas tensões entre esses
estudos - marxistas e pós-coloniais - que nossas pesquisas encontram possibilidades de
estabelecer diálogos com distintos arcabouços teóricos, enriquecendo os instrumentos de
análises, e favorecendo novas investidas práticas no que se referem as pedagogias da infância
brasileira. Portanto, ao questionarmos e resistirmos aos dispositivos do modelo canônico
científico europeu, não se trata apenas de negar ou estabelecer hierarquias com relação aos
valores culturais e científicos dos países colonizadores do norte do mundo, mas sim, o oposto,
ou seja, trata-se de desconstruir valores hegemônicos, marcados pela herança patriarcal,
androcêntrica e racista que submetem as crianças desde a mais tenra idade a um conjunto de
sistemas que oprimem as diferenças étnico-raciais, sexuais e de gênero, posicionando essa
multidão de pequenininhos e pequenininhas a uma maquinaria que os/as esquadrinha e os/as
disciplina por meio de diferentes práticas pedagógicas colonizadoras, fundamentadas em
1
Docente da Faculdade de Educação da UNICAMP e coordenadora da linha Culturas Infantis do GEPEDISC-
Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferenciação Sociocultural . cripeq@unicamp.br
2
Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP; Membro do GEPEDISC-Culturas Infantis
e do GEISH. barreiro_alex@ig.com.br
3
Doutoranda em Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP; Membro do GEPEDISC- Culturas
Infantis. elinamac@gmail.com
4
Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP; Membro do GEPEDISC-Culturas Infantis.
flavio.fravinho@gmail.com
5
Doutoranda em Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP; Membro do GEPEDISC-Culturas
Infantis. solestani13@yahoo.com.br
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princípios adultocêntricos, transfóbicos, sexistas, homofóbicos, machistas, racistas,


gordofóbicos.
Os estudos pós-coloniais não constituem propriamente uma matriz teórica
única. Trata-se de uma variedade de contribuições com orientações distintas,
mas que apresentam como característica comum o esforço de esboçar, pelo
método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica
crítica às concepções dominantes da modernidade. (COSTA, 2006, p.117).

Cabe então analisar essa questão numa visão mais macro e entender que
A expansão colonial europeia institucionalizou e normatizou
simultaneamente, a [sic] nível global, a supremacia de uma classe, de um
grupo etnorracial, de um gênero, de uma sexualidade, de um tipo particular
de organização estatal, de uma espiritualidade, de uma epistemologia, de um
tipo particular de institucionalização da produção do conhecimento, de
algumas línguas, de uma pedagogia, e de uma economia orientada para a
acumulação de capital em escala global. (GROSFOGUEL, 2012, p.342).

O autor aponta que “não e possível entender estes processos separadamente.”


(ibidem). O capitalismo histórico expandiu e consolidou algumas hierarquias, além da
“divisão internacional do trabalho”, “sistema interestatal político-militar”, tem a hierarquia de
classe, etnorracial, gênero, sexualidade, pedagógica global, linguística, estética. Essas
hierarquias fazem parte da “colonialidade do poder global”, que expandiu a soberania do
“homem branco, capitalista, heterossexual, militar, cristão, europeu”. (ibidem, p.343).
Acrescentamos também a hierarquia de idade, na qual sobrepõe o poder do adulto sobre a
criança, numa relação colonial que desqualifica o saber, a língua e a cultura desses sujeitos.
Toma-se assim o colonialismo também como uma relação etária assim “como uma relação
política, econômica, sexual, espiritual, epistemológica, linguística de dominação
metropolitana no sistema-mundo e uma relação cultural/estrutural de dominação etnorracial”
(GROSFOGUEL, 2012, p.345) que gera a subordinação.
A hierarquização produzida pelos discursos colonialistas permeia nossa vida e
atravessa também nossos corpos marcando-os como subalternos, seja pelos traços da nossa
ancestralidade (negras e indígenas) seja pela rebeldia expressa na sexualidade que não se
conforma em padrões pré-estabelecidos, seja pelas marcas deixadas pelo trabalho duro que
indicam nosso pertencimento de classe ou por tantas outras diferenças.
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Da servidão...

As pedagogias a que fomos submetidos e submetidas desde que os invasores aqui


chegaram propagam esta hierarquização à qual resistimos, assim como resistiram nossos
antepassados.
As escolas desde sempre cumpriram o papel de conservar a ordem vigente e “colocar
cada um em seu lugar” estabelecendo uma hierarquia de valores e distinção entre os que
sabem e os que não sabem, e os que podem e os que não podem.
A creche e pré-escola ao institucionalizar a criança, coloca seu corpo em uma
operação de movimentos e gestos, estilizando a maneira de sentar, agir e falar, reproduzindo
em seu espaço geográfico um histórico legado que se mantém na educação das famílias
tradicionais, prescrevendo as formas e possibilidades - do que é, e de como - ser homem ou
mulher. Histórico legado herdado do colonialismo que desde o século XVI no Brasil impôs
seus hábitos culturais e saberes acerca das organizações sociais.
Assim, a primeira etapa da educação básica pode se tornar uma importante peça, uma
engrenagem desta poderosa máquina que define e delimita o que pode ou não um sujeito
portador de um determinado sexo fazer, e, por conseguinte atribuindo ao biológico a
capacidade de realizar certas tarefas com excelência em detrimento do sexo oposto,
fomentando preconceitos e discriminações caso estas linhas que demarcam as fronteiras do
gênero sejam borradas.
Guattari (1987, p.53) alerta que elementos essenciais à lógica capitalista e à
subordinação ao capital estão presentes desde a creche. Instituição que cumpre o papel de
incuti-los na subjetividade das crianças pequenininhas ao mesmo tempo em que limita a sua
liberdade expressiva “consiste em extirpar da criança, o mais cedo possível sua capacidade
específica de expressão e adaptá-la o mais cedo possível aos valores, significações e
comportamentos dominantes”.
Portanto, a separação das fileiras entre meninos e meninas, a divisão das caixas de
brinquedos contendo em algumas delas: bonecas, casinhas, lacinhos, etc. enquanto em outras:
caminhões, espadas e escudos, tais práticas configuram uma pedagogia comprometida com o
aparelho sexista, ocupando-se também de corrigir a posição de sentar dos meninos quando
cruzam as pernas, das meninas quando falam palavras grosseiras, da cor dos lápis e das
massas de modelar que irão usar em suas atividades, em suma, inscrevendo sobre os corpos
das crianças e as ensinando a compreender essas marcas e registros de como serem homens
masculinizados e mulheres femininas.
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De qualquer forma, investimos muito nos corpos. De acordo com as mais


diversas imposições culturais, nós os construímos a modo de adequá-los aos
critérios estéticos, higiênicos, morais, dos grupos a que pertencemos. As
imposições de saúde, vigor, vitalidade, juventude, beleza, força são
distintamente significadas, nas mais variadas culturas e são também, nas
distintas culturas, diferentemente atribuídas aos corpos de homens e
mulheres. Através de muitos processos, de cuidados físicos, exercícios,
roupas, aromas, adornos, inscrevemos nos corpo marcas de identidade e,
consequentemente, de diferenciação. Treinamos nossos sentidos para
perceber e decodificar essas marcas e aprendemos corporalmente, pelos
comportamentos e gestos que empregam e pelas várias formas com que se
expressam (LOURO, 2010, p.15).

A sexualidade infantil também passa a compor as preocupações deste sistema vigente,


ensinando as crianças que a legitimidade e legalidade afetiva e sexual estão culturalmente
inscritas numa suposta ordem “natural”, ou seja, a heterossexualidade. Desta forma, a
heterossexualidade torna-se compulsória, e outras manifestações do desejo são denominadas
por abjetas, são subalternizadas. Estes pressupostos passam a constituir as práticas
pedagógicas e monitorar o corpo infantil, policiando seus comportamentos e disciplinando-os
em diferentes circunstâncias.
A luta pela desconstrução destes valores culturais hegemônicos que incidem sobre os
corpos das crianças e sobre as pedagogias colonizadoras é uma luta histórica. Foram através
dos chamados “novos”6 movimentos feministas que algumas autoras (SCOTT, 1990;
SPIVAK 1994; BUTLER, 2008; HARAWAY, 2009) passaram a denunciar o dispositivo 7 de
manutenção da maquinaria de produção de corpos dóceis e obedientes, que sistematizava
sexo-gênero-sexualidade sob um olhar marcado pelo binarismo e por uma perspectiva
patologizante. Dispositivo denominado heteronormatividade8(BUTLER, 2008).

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O termo “novo” é utilizado pelo fato desses movimentos terem emergido após o movimento operário e
trabalhador e por trazerem para a arena pública demandas políticas que estavam além de redistribuição
econômica, e passando a denunciar o corpo enquanto território sob o qual o Estado governa, daí a necessidade de
desvincular a sexualidade da reprodução, ressaltando a importância do prazer e das desigualdades de gênero e
sexuais. Os chamados novos movimentos sociais estão com suas preocupações inclinadas para o controle
biopolítico exercido sobre os sujeitos e pela fabricação de identidades que isso implica.
7
O dispositivo é: “1) a rede de relações que podem ser estabelecidas entre elementos heterogêneos: discursos,
instituições, arquitetura, regramentos, leis , medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não dito. 2) O dispositivo que estabelece a natureza do nexo que pode
existir entre esses elementos heterogêneos. Por exemplo, o discurso pode aparecer como programa de uma
instituição, como um elemento que pode justificar ou ocultar uma prática, ou funcionar como uma interpretação
a posteriori dessa prática, oferecer-lhe um campo novo de racionalidade. 3) Trata-se de uma formação que, em
um momento dado, teve por função responder a uma urgência. O dispositivo tem assim uma função estratégica”.
(CASTRO, 2009, p. 124)
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A heteronormatividade é a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo.
“Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de
5

Descolonizar essas práticas exige uma reflexão sobre a rotina escolar, sobre a
organização dos espaços e em especial, sobre o tratamento e o cuidado que aprendemos a
desenvolver ao longo da história com relação às diferenças anatômicas.
De modo mais amplo, as sociedades realizam esses processos e, então,
constroem os contornos demarcadores das fronteiras entre aqueles que
representam a norma (que estão em consonância com seus padrões culturais)
e aqueles que ficam fora dela, às suas margens. Em nossa sociedade, a
norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem branco,
heterossexual, de classe média urbana e cristão, e essa passa a ser a
referência que não precisa mais ser nomeada (LOURO, 2010, p.15).

O termo gênero foi empregado, inicialmente, pelas feministas de língua inglesa na


década de 70, para romper o caráter biológico dos termos sexo e diferença sexual e para
insistirem no caráter fundamentalmente social das distinções calcadas sobre o sexo. Dessa
maneira, ressalta Scott (1990, p.05), “gênero passa a ressaltar construções sociais,
relacionadas à criação de ideias sobre os papeis adequados a homens e mulheres, bem como
uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de
homens e das mulheres”.

Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo


nossa localização dentro de relações globais de poder. Nossa inserção nessas
relações globais de poder se realiza através de uma miríade de processos
econômicos, políticos e ideológicos. Dentro dessas estruturas de relações
sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas como categorias
diferenciadas, tais como “mulheres da classe trabalhadora”, “mulheres
camponesas” ou “mulheres imigrantes”. Cada descrição está referida a uma
condição social específica. Vidas reais são forjadas a partir de articulações
complexas dessas dimensões (BRAH, 2006, p. 341).

A utilização do gênero como categoria de análise, implica conhecer e


desconstruir a normatividade prescrita sobre o que é ser um homem/ menino e ou que é ser
uma mulher/menina, procurando entender as relações culturais e sociais que se articulam na
construção deste indivíduo. Gênero, como destaca Scott (1999), pode ser compreendido como
uma forma de dar significado às relações de poder, se estabelecendo como um meio de
decodificação entre as condições sócio-históricas construídas e as interações humanas. A
partir desta prerrogativa a instituição da categoria analítica gênero, possibilita tornar visíveis
as diferenças, hierarquias e a dinâmica social frente ao processo de representação das amarras
do binarismo masculino e feminino e o legado colonialismo do patriarcado.

gênero” (MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Autêntica Editora, 2012, pp.
43-44).
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A educação infantil9 pode ser ou tornar-se um lócus de reprodução das desigualdades


de classe, gênero e racializador, daí a necessidade de vigiarmos nossas condutas e refletirmos
sobre as práticas pedagógicas já naturalizadas. Questionar e transformar é preciso!
A customização dessas práticas e a construção dessas referências promovem o que
alguns/algumas pesquisadores/as chamam de “racialização”. Racializar se trata de um
processo conjuntural no qual as práticas institucionais, sociais e familiares utilizam para
descaracterizar, desqualificar ou, muitas vezes, subalternizar as origens de pertencimento
étnico de um povo, neste caso, dos “povos africanos”, termo racializador por generalizar esses
povos como advindos de um único local e cujas referências são presumidamente
iguais/semelhantes, quando na verdade desconhecemos o rico arcabouço cultural de seus
grupos e sociedades. Por isso quando empregamos a expressão “povos africanos” sem nos
remeter que povos são esses, fica em evidência não apenas a ignorância com relação ao outro,
mas também, a maneira homogeneizadora que encontramos para pasteurizar os saberes e os
laços culturais dos desconhecidos.
Um exemplo de práticas racializadoras está relacionado aos cabelos das crianças. A
professora da educação infantil vive em uma sociedade cercada por propagandas de
alisamentos, por imagens televisas que enaltecem o cabelo louro e liso como padrões estéticos
de uma beleza imitável, por programas televisivos que se apropriam do cabelo crespo para
representarem personagens que não obtiveram ascensão social ou privilégios econômicos.
Nesta ofensiva, esse conjunto de representação que qualifica e desqualifica os sujeitos pelos
adornos da estética passam a se integrar nas pedagogias das pré-escolas, mobilizando, como
destacou Santiago (2014) as professoras a prenderem os cabelos de meninas e meninos
negros, evitando o “trabalho”, diante as dificuldades de se pentear um cabelo “ruim”, ou
quando durante as leituras de literaturas infantis, as crianças passam a não gostar do crespo de
seus fios que se assemelham ao cabelo das bruxas, personagens das histórias lidas antes da
hora de dormir.
Ao mesmo tempo em que o processo de racialização produz a inferioridade do negro
através do olhar do outro, também legitima a aculturação forçada pelo imperialismo colonial,
criando imagens tomadas como modelos ou referências. Neste sentido, não basta somente
alocar os negros em condições subalternas, é necessário também negar sua negritude e criar
um imaginário negativo sobre ela, desenvolvendo a ideia de que as produções dos europeus
brancos são as melhores para compor as instrumentalidades da vida chamada de civilização.

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Segundo a legislação brasileira a Educação Infantil inclui as creches (crianças de 0 a 3 anos) e pré-escolas
(crianças de 4 a 5 anos e 11 meses) e é a primeira etapa da Educação Básica.
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As pesquisas sobre as relações raciais que abordam a criança negra no espaço


institucional da educação infantil (TRINIDAD, 2011; SOUZA, 2002; OLIVEIRA, 2004;
CAVALLEIRO, 2003) apontam a racialização como um dos elementos mediadores das
relações sociais estabelecidas entre as crianças e entre os/as docentes e as crianças. Por meio
desse processo são construídas hierarquizações sociais, bem como desapropriações dos
pertencimentos étnico-raciais dos meninos pequenininhos negros e meninas pequenininhas
negras.
O processo de racialização se infiltra em todos os espaços, ecoando ideias que mutilam
as possibilidades de existência, construindo vidas encarceradas dentro de uma sobrevivência
subalterna. Para a efetivação desse processo, inúmeras ações cotidianas adensam estereótipos,
fixando destinos pré-estabelecidos para as crianças pequenininhas negras, as mulheres negras
e os homens negros.

No Centro de Educação Infantil os banhos são dados de modo coletivo, hoje a


docente chamou Henrique (menino branco), Joaquim (menino branco) e Ogan
(menino negro) para tomarem banho juntos, as crianças adoram esse momento,
pois podem brincar livremente por alguns momentos. Enquanto os meninos
tomavam banho a docente disse:
- Gente olha o tamanho do pipi do Ogan!! Que grandão!!
Os meninos se entreolharam e olharam para o órgão genital do menino negro e
deram risada. A docente dá uma risada também e diz:
- Ogan é corinthiano, jogador de futebol, homem varão!
(Fragmento do Caderno de Campo, 27 de setembro de 2012) (SANTIAGO, 2014,
p.47)

A fala da docente explicita, com base no ideário social, um destino marcado por uma
sexualidade e um padrão de comportamento para o gênero masculino, criando a ideia de que é
possível ligar a tonalidade negra da pele a uma prática sexual a ser desenvolvida na vida
adulta e a um modo de ser masculino, colonizando os corpos negros com adjetivos que muitas
vezes não lhes pertencem.
Frantz Fanon (2008) demonstra que a racialização constrói um “outro colonizado”
visto como selvagem e primitivo, cujas marcas expressam sinais de uma aberração da
natureza, referindo-se a uma biologização da sexualidade negra, a hipersexualidade do negro
e sua representação e linguagem como elementos destituídos de humanidade.
As crianças negras são cotidianamente violentadas e destituídas de sua ancestralidade,
criando a necessidade de processos reiterativos que apaguem o seu pertencimento étnico-
racial e as tornem sujeitos desejantes de uma cultura dominante imposta pela força colonial.
Dentro deste contexto, as crianças negras aprendem a ser a/o outra/o, aquele/a que não
é representado no contexto da educação infantil, ou sequer mencionado, passando somente a
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ser um desconhecido, um qualquer, o/a subalterno/a. Para a legitimação desse processo é


necessário a criação de um terrorismo colonial que, segundo Miskolci (2012), segue a lógica
da violência, fazendo da negação o seu princípio fundamental, criando espaços somente para a
legitimação das normas e a imposição do padrão.
Este tipo de percepção constrói um ideário racista que nasce quando se faz intervir
características biológicas e culturais como justificativa de tal ou tal comportamento. Para
Munanga (2000, p.25): “é justamente o estabelecimento de relação intrínseca entre os
caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que constitui o
que podemos denominar de racismo”.
Em oposição à tendência de considerar o racismo como “algo que tem a ver com a
presença de pessoas negras”, Brah (2006) salienta que tanto negros como brancos
experimentam seu gênero, classe e sexualidade através da raça. A racialização da
subjetividade branca não é muitas vezes manifestamente clara para os grupos brancos, porque
branco é significante de dominância, mas isso não torna o processo de racialização menos
significativo.
No entanto, é importante destacar que o gênero e a racialização como formas de
diferenciação estão cotidianamente interseccionados com outros marcadores sociais de
diferença. Essa é uma característica processual e estrutural dos mecanismos capitalistas que
cortam a vida humana (MOORE, 2000).

À rebeldia...

Os sons que ecoam nas creches e pré-escolas nos dizem muito mais do que barulhos,
nos mostram a força que as crianças pequenininhas projetam a fim de resistirem à violência
dos processos de colonização. Contudo, nem sempre essas linguagens infantis são ouvidas;
muitas vezes são deixadas à margem, esquecidas na insensibilidade construída pelo
colonialismo. Dentro desse processo os meninos e meninas pequenininhos/as gritam, os/as
docentes resmungam e ninguém se ouve, a impossibilidade de escuta assola o adultocentrismo
e legitima todas as formas de racismo.
Aqui reside uma das chaves fundamentais para a construção de uma educação
descolonizadora, pois somente através da ruptura do “pacto colonial adultocêntrico” e da
ampliação do olhar para as culturas infantis é que será possível criar elementos que
possibilitem destruir as amarras racistas presentes no cotidiano das creches e pré-escolas.
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Como afirma o poeta Mario de Andrade (2006), ouvir é um ato que não deve conter
qualquer tipo de preconceito. Tem de ser desinteressado. Para o poeta, o verdadeiro ouvinte “é
aquele que, livre de todos os preconceitos, ignorando todos os ídolos, se conserva naquela
Lexata atitude de contemplação passiva que lhe permitirá gozar e amar” (ANDRADE, 2006,
p.67).
Os gritos de insatisfação, os movimentos artísticos criados pelas crianças
pequenininhas corrompem a lógica do silêncio, criando palavras de ordem escritas sem
nenhum grafismo, recriando a vida e modificando as lógicas artísticas que existem dentro de
uma creche e pré-escola. Ao encontro desse pensamento, propomos como um dos princípios
básicos para a construção de uma educação descolonizadora a desinibição dos ouvidos para a
escuta de diferentes linguagens infantis. Faz-se necessário escutar os ruídos das paredes, dos
móveis, os dizeres proferidos pelas crianças pequenininhas, é indispensável que os/as
docentes se ouçam. É necessário ouvir. Escuta?
Policiar a linguagem também nos auxilia a evitar que juízos de valores morais passem
a discriminar e menosprezar aquilo que se remete ao negro, ao preto. Frases que já nos
acompanham há décadas, como “a ovelha negra da família”, “isso não é serviço de branco”,
“parece casa de preto”, “olha a negrice”, muitas vezes, são ditas sem que as pessoas se dêem
conta do legado racista e discriminatório que elas possuem, o que não absolve quem a
pronunciou por inocência, uma vez que se trata de eliminar esse legado racista e conscientizar
o agressor da violência contra aqueles/as que não são brancos.
Apesar de parecer que estejamos muito esclarecidos com relação aos sentidos
ofensivos de frases como essas, no interior dos espaços da educação infantil elas ainda são
pronunciadas frequentemente, ora de maneira esclarecida, ora de forma travestida, ou seja,
como piadas.
Portanto, cabe aos/as profissionais docentes10 e não docentes da educação revisitarem
o dia a dia das creches e pré-escolas e refletirem sobre as práticas que já se encontram
naturalizadas em muitas de nossas ações, as quais racializam, estabelecem valores
hierárquicos e produzem gêneros nos corpos infantis.

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Que exerçam a docência e atuem diretamente com as crianças independente de terem ou não licenciatura em
pedagogia.
10

Pedagogias descolonizadoras brasileiras

Propor pedagogias descolonizadoras em uma sociedade estritamente marcada pela


valorização das culturas colonizadoras é propor políticas e práticas que desafiem o estatuto de
servidão construído sob um colonialismo perene que nos move a lutar contra as configurações
dos sistemas vigentes, num estado de eterna rebeldia.
As pedagogias brasileiras foram fortemente influenciadas por epistemologias
hegemônicas, cujo principal objetivo é manter a servidão dos países colonizados. Mesmo
depois da suposta independência, o ideal de nação ainda se edifica numa relação de
subordinação com os países colonizadores. Recorremos à arte, fantasia e a imaginação como
rebeldia que confronta a colonização do pensamento.
Vivemos no campo educacional uma batalha constante entre o paradoxo da
sobrevivência política e econômica, ditada pelos órgãos internacionais que financiam,
fiscalizam e doutrinam os sistemas de ensino e as práticas de resistências de profissionais que
lutam por uma educação emancipadora, descolonizadora. Como diz Calvino (1990)
procurando no meio do inferno o que não é inferno e abrindo novos espaços. Espaços de
rebeldia e transgressão que questionam a ordem vigente e propõe novas formas de lidar com
as diferenças.
A educação infantil se situa nesse cenário já com algumas vantagens. Sua recente
história institucional a colocou nessa arena de luta com alguns elementos revolucionários
diferente da escola. Mesmos nos países do norte surgiu como uma possibilidade de encontro
entre os coetâneos em que o principal objetivo era a possibilidade de brincarem em grupos.
Sua origem entre o assistencialismo doutrinário ligado ao higienismo e os movimentos
feministas faz dessa etapa da educação um espaço de resistência, transformação e
descolonização importante para o presente e para o futuro do país.

Construído nesta articulação entre o cuidar e educar com a organização não


disciplinar do currículo que preserva o complexo pensamento das crianças pequenas que
segundo Harvey (2013, p.22) “são muito dialéticas, veem tudo em movimento, em
contradição e transformação.”
11

No campo acadêmico as produções científicas produzidas nos últimos anos nos


permitem vislumbrar Epistemologias do Sul11, que além de partir da realidade brasileira e
propor pedagogias macunaímicas12, colocam a criança no centro, como sujeito histórico,
social e produtor de culturas infantis.
Temos também políticas públicas13 que estão se atentando para as especificidades
infantis e brasileiras e, aos poucos, estão colocando as crianças como protagonistas do
processo educativo.
Neste sentido, nosso objetivo tem sido produzir pesquisas, estudos e saberes que
desafiem e interroguem as práticas docentes colonialistas, em busca de inspiração e da
antropofagia que nos fortifica para que cresçam outras pedagogias que possibilitem às
crianças licença poética de seus corpos e valores, e a legitimidade das culturas infantis.
Faria (2009, p. 84) destaca o movimento antropofágico de Oswald de Andrade (1928),
como a primeira manifestação do que podemos chamar de pensamento pós-colonialista no
Brasil. Afirma que este conteúdo não escolarizado presente nos Parques infantis criados por
Mário de Andrade atua como problematizador das relações hierárquicas entre adultos e
crianças, como também entre a classe operária e as elites. Aponta assim, que na pedagogia
macunaímica as

[...] ideias antropofágicas – comer o inimigo para adquirir sua força estão
no Tropicalismo do final dos anos 60 , na poesia concreta, e numa pedagogia
da educação infantil em busca da emancipação através da convivência com
a diferença , então, o herói sem nenhum carater, Macunaíma é o herói com
todos os carateres: branco, negro e indígena.

E em favor de uma pedagogia da infância descolonizadora temos também a afirmação


de Guattari (1987, p.53) de que: “Se a impregnação aos modelos imaginários, perceptivos,
sociais, culturais, etc...não é bem sucedida em fases precoces ter-se-á grande dificuldade em
modelar os indivíduos às tarefas que lhes serão confiadas nos sistemas altamente
diferenciados da produção.”

11
Uma Epistemologia do sul, para Boaventura de Souza Santos (1995, p.508) “assenta em três orientações:
aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul”.
12
Termo utilizado por Ana Lúcia Goulart de Faria, que por sua vez se inspirou em Mario de Andrade.
13
Destacamos aqui os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil – volumes 1 e 2 ; Critérios
para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças; Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil; Educação Infantil e práticas promotoras
de igualdade racial; Oferta e demanda de Educação Infantil no campo. Disponíveis em
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12579%3Aeducacao-
infantil&Itemid=1152
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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sexualidade infantil brasileira nos discursos de J.P Porto-Carrero. Dissertação de mestrado,
Programa de Pós-graduação em educação, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP,
2014.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. V I. São Paulo: Librairie Gallimard, 1970.

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BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. Campinas, 2006, v. 26,
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__________. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”.


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CALVINO, Italo, Cidades Invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

CAVALLEIRO, Eliane. S. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e


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COSTA, Sérgio. Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. Revista


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FARIA, Ana Lucia Goulart de, Mário de Andrade, Macunaíma e as crianças pós-colonialistas.
In: X Congresso Luso Brasileiro de Ciências Sociais: sociedades desiguais e paradigmas em
confronto. Universidade do Minho, 2009, Braga, Portugal. Título dos anais do evento: X
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