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Ana Lúcia Goulart de Faria1; Alex Barreiro2; Elina Macedo3; Flávio Santiago4; Solange
Estanislau dos Santos5 - Gepedisc-Culturas Infantis (FE/UNICAMP)
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente
que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele
permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-
se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social
muito mais do que instância que tem por função reprimir (FOUCAULT,
2012, p. 45).
Cabe então analisar essa questão numa visão mais macro e entender que
A expansão colonial europeia institucionalizou e normatizou
simultaneamente, a [sic] nível global, a supremacia de uma classe, de um
grupo etnorracial, de um gênero, de uma sexualidade, de um tipo particular
de organização estatal, de uma espiritualidade, de uma epistemologia, de um
tipo particular de institucionalização da produção do conhecimento, de
algumas línguas, de uma pedagogia, e de uma economia orientada para a
acumulação de capital em escala global. (GROSFOGUEL, 2012, p.342).
Da servidão...
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O termo “novo” é utilizado pelo fato desses movimentos terem emergido após o movimento operário e
trabalhador e por trazerem para a arena pública demandas políticas que estavam além de redistribuição
econômica, e passando a denunciar o corpo enquanto território sob o qual o Estado governa, daí a necessidade de
desvincular a sexualidade da reprodução, ressaltando a importância do prazer e das desigualdades de gênero e
sexuais. Os chamados novos movimentos sociais estão com suas preocupações inclinadas para o controle
biopolítico exercido sobre os sujeitos e pela fabricação de identidades que isso implica.
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O dispositivo é: “1) a rede de relações que podem ser estabelecidas entre elementos heterogêneos: discursos,
instituições, arquitetura, regramentos, leis , medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não dito. 2) O dispositivo que estabelece a natureza do nexo que pode
existir entre esses elementos heterogêneos. Por exemplo, o discurso pode aparecer como programa de uma
instituição, como um elemento que pode justificar ou ocultar uma prática, ou funcionar como uma interpretação
a posteriori dessa prática, oferecer-lhe um campo novo de racionalidade. 3) Trata-se de uma formação que, em
um momento dado, teve por função responder a uma urgência. O dispositivo tem assim uma função estratégica”.
(CASTRO, 2009, p. 124)
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A heteronormatividade é a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo.
“Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de
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Descolonizar essas práticas exige uma reflexão sobre a rotina escolar, sobre a
organização dos espaços e em especial, sobre o tratamento e o cuidado que aprendemos a
desenvolver ao longo da história com relação às diferenças anatômicas.
De modo mais amplo, as sociedades realizam esses processos e, então,
constroem os contornos demarcadores das fronteiras entre aqueles que
representam a norma (que estão em consonância com seus padrões culturais)
e aqueles que ficam fora dela, às suas margens. Em nossa sociedade, a
norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem branco,
heterossexual, de classe média urbana e cristão, e essa passa a ser a
referência que não precisa mais ser nomeada (LOURO, 2010, p.15).
gênero” (MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Autêntica Editora, 2012, pp.
43-44).
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Segundo a legislação brasileira a Educação Infantil inclui as creches (crianças de 0 a 3 anos) e pré-escolas
(crianças de 4 a 5 anos e 11 meses) e é a primeira etapa da Educação Básica.
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A fala da docente explicita, com base no ideário social, um destino marcado por uma
sexualidade e um padrão de comportamento para o gênero masculino, criando a ideia de que é
possível ligar a tonalidade negra da pele a uma prática sexual a ser desenvolvida na vida
adulta e a um modo de ser masculino, colonizando os corpos negros com adjetivos que muitas
vezes não lhes pertencem.
Frantz Fanon (2008) demonstra que a racialização constrói um “outro colonizado”
visto como selvagem e primitivo, cujas marcas expressam sinais de uma aberração da
natureza, referindo-se a uma biologização da sexualidade negra, a hipersexualidade do negro
e sua representação e linguagem como elementos destituídos de humanidade.
As crianças negras são cotidianamente violentadas e destituídas de sua ancestralidade,
criando a necessidade de processos reiterativos que apaguem o seu pertencimento étnico-
racial e as tornem sujeitos desejantes de uma cultura dominante imposta pela força colonial.
Dentro deste contexto, as crianças negras aprendem a ser a/o outra/o, aquele/a que não
é representado no contexto da educação infantil, ou sequer mencionado, passando somente a
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À rebeldia...
Os sons que ecoam nas creches e pré-escolas nos dizem muito mais do que barulhos,
nos mostram a força que as crianças pequenininhas projetam a fim de resistirem à violência
dos processos de colonização. Contudo, nem sempre essas linguagens infantis são ouvidas;
muitas vezes são deixadas à margem, esquecidas na insensibilidade construída pelo
colonialismo. Dentro desse processo os meninos e meninas pequenininhos/as gritam, os/as
docentes resmungam e ninguém se ouve, a impossibilidade de escuta assola o adultocentrismo
e legitima todas as formas de racismo.
Aqui reside uma das chaves fundamentais para a construção de uma educação
descolonizadora, pois somente através da ruptura do “pacto colonial adultocêntrico” e da
ampliação do olhar para as culturas infantis é que será possível criar elementos que
possibilitem destruir as amarras racistas presentes no cotidiano das creches e pré-escolas.
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Como afirma o poeta Mario de Andrade (2006), ouvir é um ato que não deve conter
qualquer tipo de preconceito. Tem de ser desinteressado. Para o poeta, o verdadeiro ouvinte “é
aquele que, livre de todos os preconceitos, ignorando todos os ídolos, se conserva naquela
Lexata atitude de contemplação passiva que lhe permitirá gozar e amar” (ANDRADE, 2006,
p.67).
Os gritos de insatisfação, os movimentos artísticos criados pelas crianças
pequenininhas corrompem a lógica do silêncio, criando palavras de ordem escritas sem
nenhum grafismo, recriando a vida e modificando as lógicas artísticas que existem dentro de
uma creche e pré-escola. Ao encontro desse pensamento, propomos como um dos princípios
básicos para a construção de uma educação descolonizadora a desinibição dos ouvidos para a
escuta de diferentes linguagens infantis. Faz-se necessário escutar os ruídos das paredes, dos
móveis, os dizeres proferidos pelas crianças pequenininhas, é indispensável que os/as
docentes se ouçam. É necessário ouvir. Escuta?
Policiar a linguagem também nos auxilia a evitar que juízos de valores morais passem
a discriminar e menosprezar aquilo que se remete ao negro, ao preto. Frases que já nos
acompanham há décadas, como “a ovelha negra da família”, “isso não é serviço de branco”,
“parece casa de preto”, “olha a negrice”, muitas vezes, são ditas sem que as pessoas se dêem
conta do legado racista e discriminatório que elas possuem, o que não absolve quem a
pronunciou por inocência, uma vez que se trata de eliminar esse legado racista e conscientizar
o agressor da violência contra aqueles/as que não são brancos.
Apesar de parecer que estejamos muito esclarecidos com relação aos sentidos
ofensivos de frases como essas, no interior dos espaços da educação infantil elas ainda são
pronunciadas frequentemente, ora de maneira esclarecida, ora de forma travestida, ou seja,
como piadas.
Portanto, cabe aos/as profissionais docentes10 e não docentes da educação revisitarem
o dia a dia das creches e pré-escolas e refletirem sobre as práticas que já se encontram
naturalizadas em muitas de nossas ações, as quais racializam, estabelecem valores
hierárquicos e produzem gêneros nos corpos infantis.
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Que exerçam a docência e atuem diretamente com as crianças independente de terem ou não licenciatura em
pedagogia.
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[...] ideias antropofágicas – comer o inimigo para adquirir sua força estão
no Tropicalismo do final dos anos 60 , na poesia concreta, e numa pedagogia
da educação infantil em busca da emancipação através da convivência com
a diferença , então, o herói sem nenhum carater, Macunaíma é o herói com
todos os carateres: branco, negro e indígena.
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Uma Epistemologia do sul, para Boaventura de Souza Santos (1995, p.508) “assenta em três orientações:
aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul”.
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Termo utilizado por Ana Lúcia Goulart de Faria, que por sua vez se inspirou em Mario de Andrade.
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Destacamos aqui os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil – volumes 1 e 2 ; Critérios
para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças; Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil; Educação Infantil e práticas promotoras
de igualdade racial; Oferta e demanda de Educação Infantil no campo. Disponíveis em
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12579%3Aeducacao-
infantil&Itemid=1152
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. Campinas, 2006, v. 26,
p. 329-376.
BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York:
Routledge, 1993.
CALVINO, Italo, Cidades Invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
FARIA, Ana Lucia Goulart de, Mário de Andrade, Macunaíma e as crianças pós-colonialistas.
In: X Congresso Luso Brasileiro de Ciências Sociais: sociedades desiguais e paradigmas em
confronto. Universidade do Minho, 2009, Braga, Portugal. Título dos anais do evento: X
Congresso Luso Brasileiro de Ciências Sociais: sociedades desiguais e paradigmas em
confronto. Universidade do Minho, 2009, Braga, Portugal, 2009, p.84-84.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade; Tradução dos artigos:
Tomaz Tadeu da Silva – 3. Ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
SANTOS, Solange Estanislau dos. As crianças invisíveis nos discursos da educação infantil:
entre palavras e imagens. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação –
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, FE- UNICAMP, 2014.
SCOTT, John. W.. “Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica.” Traduzido pela
SOS: Corpo e Cidadania. Recife, 1990
SOUZA, Yvone. C. Crianças negras: deixei meu coração embaixo da carteira. Porto Alegre:
Mediação, 2002.