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HUMULUS, o MUDO
",'.
O AIO: fraque preto, calça cinza
claro, gravata preta e branca.
ADUQUESA - Meus amigos: sin-
to-me comovida com a vossa pre-
HUMULUS (menino): roupa de ma- sença e vossas boas intenções. Mas
de Jean Anouilh eJean Aurenche
rinheiro com apito, blusa branca, há tradições que uma Brignoc não
(Trad de Maria Julieta Drummond) calça azul marinho. pode infringir. Tenho de receber os
cumprimentos de meus filhos antes
UM CRIADO: casaca vermelho escuro de receber os dos empregados. Um
com flor-de-lis nas mangas, um pouco de paciência. Meu neto, o sr.
espanadorzinho na botoeira, co- Humulus, não deve tardar. Heitor,
lete verde esmeralda com listas lembra-se do meu pequeno Humu-
pretas, luvas brancas. lus?
HELENA: corpete e saia plissada azul HEITOR - Mal. Se não me en-
claro, "canotier" enfeitado de flor- gano, ele tinha dezoito dias quando
zinhas' colarinho "Claudine", gra- parti para as ilhas.
vata cor-de-rosa. Bicicleta enfeita-
PERSONAGENS: ADUQUESA - Você o encontrará
da com florzinhas.
A DUQU~SA muito mudado. É um bom menino,
HUMULUS: (adolescente) costume um pouco tímido. Se não fosse a
Heitor de Brignoc de ciclista "pied de poule", boné doença, ele seria um duque encan-
chato, gravata azul claro, meias tador. '
Humulus - menino, depois adoles- brancas com riscas. Bicicleta en-
cente feitada com florzinhas. HEITOR - Se não me engano, o
O Aio pobre garoto é mudo?
Os criados (no mínimo três) ADUQUESA- Era, Heitor, era!
CENA I Vê-se bem que você só regressou
Helena
ontem. Deus fez um milagre durante
CENÁRIOS: A Duquesa espécie de personagem a sua permanência nas Ilhas.
fabulosa, numa poltrona imensa de HEITOR - Deus sempre protegeu
Osalão da duquesa orelhas, armoriada. A seu lado, o os Brignoc.
Oelemento mais importante é a pol- tio Heitor, um fidalgote alto, magro, ADUQUESA- Um médico inglês,
trona da Duquesa e estragado, que põe alternadamente à custa de esforços, conseguiu que
Depois, uma estrada margeada de o monóculo no ôlho direito e no ele pronunciasse uma palavra por
plátanos esquerdo, sem êxito. Ouve-se uma
dia.
orquestra.
Depois, um jardim público HEITOR - Só uma palavra?
Mas nenhum cenário é indispensável A DUQUESA- Heitor, esta Iesti- A DUQUESA- Uma só. Mas ele
nha cada ano me proporciona um é tão pequeno! Esperamos que,
FIGURINOS:
novo prazer. quando crescer, ele possa falar mais.
A DUQUESA: vestido carmim, com HEITOR - A orquestra é encan- De resto, Heitor, é bom você saber
rendas pretas e douradas, mitenes tadora. que, se o meu pequeno Humulus se
pretas, cabelos malva (violeta cla- ADUQUESA - É sim. Os músicos abstiv~r um dia d~ pron~nciar a su~
ro), borboleta multicor na cabeça, são caríssimos. Tive que regatear ! palavnnha, no dia segumte podera
jóias, brincos, colar de pérolas, com eles, como se fosse uma neeo- b dizer duas.
anéis, etc. - bengala de ouro. ciante. HEITOR - Então será possível
HEITORDE BRIGNOC: jaquetão ver- : fazê-lo recitar uma dessas fabulazi-
de, calça castanho escuro, gravata (Entram os criados em fila indiana, nhas que as crianças da sua idade
I'

rosa velho, botinas amarelo claro. carregando ramalhetes.) sabem de cor? , 15


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I
A DUQUESA .- Já pensei ni~so. e valente :omo um verdadeir~ Brig- Mas todos envelheceram muito. Há
Mas levaria mUlto. tempo. Para dizer I noc: Querra-me ~em, ~ nao me também um pequeno groom, no fim
a divisa dos Bngnoc: "Menos a queIra mal se eu so o veJo por oca- da fila dos criados. Música.
honra", meu caro Heitor, ele é obri- sião das grandes festas. Todo o meu ADUQUESA - Meus amigos, sin-
gado a ficar três dias sem falar. Faço tempo está tomado pelos meus po- to-me comovida com a vossa pre-
esse sacrificiozinho todos Os anos, bres. Agora venha beijar-me e di-
sença e as vossas boas .intenções.
por ocasião da festa da cidade, mas zer-me a sua palavra. Sr. Aio, mande
Mas há tradições de família que uma
não poderia passar muito tempo sem parar a música para que o meu neto
Brignoc não pode infringir. Tenho de
ouvílo dizer a sua palavra. Pois, venha me dizer a sua palavra. receber os cumprimentos de meus fi-
como eu exigi, Humulus vem todas
lhos antes de receber os dos empre-
as manhãs me dizer a sua palavra. (O Aio sai. Pára amúsica. Ele volta
gados. Um pouco de paciência. Meu
Ontem, por exemplo, sexta-feira, ele para oseu lugar ebate discretamente
neto, o Sr. Humulus, não deve tar-
me disse "bacalhau". com as mãos. Então Humulus, ver- dar. Na sua opinião, Heitor, que es-
melho, com as sobrancelhas franzi- tará ele fazendo?
(Entra o aio.)
das, começa a caminhar lentamente
HEITOR - Quem sabe se ele não
A DUQUESA - Então, Sr. Aio, para a Duquesa. Todo mundo sorri, está repetindo a palavra, diante do
meu neto está pronto? enternecido. Ao passar diante do
espelho?
O AIO - Ele aí vem, Sra. Du- último criado, já quase no fim, deixa
quesa. Procuramos longamente esco- cair as flores. O criado apanha-as e (Entra o Aio)
lher o que diria o Sr. Humulus este as entrega a Humulus. Então, no si-
ano, no dia de Ano-Bom. É claro lêncio, depois de ter lutado um ins- ADUQUESA - Então, Sr. Aio?
que não faltam cumprimentos para tante, escarlate, entre vários deveres O AIO (que parece nervoso) -
seremusados por jovens, mas todos igualmente bem inculcados): Sra. Duquesa, o Sr. Humulus solicita
eram muito extensos. Foi por isso, a honra de vir apresentar-lhe os seus
Sra. Duquesa, que pensei que a pa- HUMULUS - Obrigado. cumprimentos. O Sr. Humulus pro-
lavra mais indicada, mais expressiva (Horrível algazarra na orquestra. nunciará a palavra "prosperidades".
e, se ouso dizer, mais resumida, era Todo omundo tapa orosto, conster-
a palavra "felicidades". nado.) (A Duquesa sorri com indulgência.
A DUQUESA - Perfeito, Sr. Aio. A orquestra pára. Silêncio. Humulus,
OAIO - Infeliz criança! Sua pa- já agora rapazinho, é introduzido. O
(O aio sai e volta empurrando ilu- lavra foi pronunciada! como é que aio pigarreia, Humulus fica quietQ.)
mulus, um grande idiota de calças vai dizer agora "felicidades" à Sra.
curtas, atrapalhando-se todo com um Duquesa? A DUQUESA - Diga a sua pala-
imenso ramalhete. Murmúrio dos ADUQUESA - Sr. Humulus, o Sr. é vra, meu querido filho.
criados, em fila, que se inclinam para um desajeitado!
(Silêncio. As pessoas se entreolham.)
vê-lo.)
(Elasai, acompanhada do tio Heitor A DUQÚESA- Não se perturbe,
A DUQUESA - (Detendo-o com um e de todos os Qcriados. Humulus fica meu caro Humulus. Uma avó é sem-
gesto na extremidade da filados cria- sozinho no meio da cena, com o pre indulgente.
dos) Sr. meu neto, sua avó, antes ramalhete. O aio está sucumbido,
mesmo que o Sr. lhe tenha apresen- nos degraus do estrado.) (Silêncio.)
tado os votos, quer ser a primeira
a lhe exprimir a sua ternura no limi- A DUQUESA - Que tem a dizer,
ar deste novo ano. Desde que a sua CENA 11 '?
Sr. AIO.
pobre mãe faleceu, Humulus, sou eu O AIO (enrolando as palavras)·-
que o amo. O Sr. tem uma avó, Mesmo cenário. As personagens Eu. .. estou extremamente surpreen-
16 aproveite para escutá-la. Seja bom estão na mesma posição do princípio. dido, Sra. Duquesa ...
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ADUQUESA - Humulus, você já para a senhora este papel, Sra. Du- O AIO - ... "que trinta pala-
teria pronunciado a sua palavra? A quesa. vras serão suficientes para esta de-
palavra que, no limiar de cada ano, c1aração... Venho pois desculpar-
deve reservar à sua avó? (Lê): -me, Sra. minha avó, de não poder,
HEITOR - O maroto com certeza O AIO - "Senhora minha avó,
neste dia de Ano Bom, dizer-lhe a
soltou algum palavrão quando ten- palavra "prosperidades".
estou loucamente apaixonado por
tava dar o nó na gravata. uma mulher chamada Helena ... A DUQUESA - Chega, Sr. Aio!
O AIO - Isso é desconhecer o Tamanha ingratidão me revolta. Re-
meu discípulo, Sr. Barão. O Sr. Hu- (A Duquesa solta um grito terrível, cuse-me a ouvir mais. Esta noite não
mulus não diz palavrões. e desmaia. Algazarra na orquestra. comparecerei à festa. Sr. Humulus, o
ADUQUESA - Sr. Aio, uma pala- Tumulto, desordem, todos se preci- senhor é insolente! Que tem ares-
vra não se perde assim. O Sr. vigiou pitam.) I ponder?
bemo meu neto essa manhã? O AIO - A senhora bem sabe
A DUQUESA - (erguendo-se) que ele não pode falar, Sra. Duque-
O AIO - Não abandonei o Sr. Heitor, mande sair os criados! sa...
Humulus essa manhã, Sra. Duquesa,
salvo por ocasião da sua toalete, e (Heitor empurra os criados para A DUQUESA - Aio, o senhor é
posso atestar que. .. fora.) um idiota!

(Humulus dá-lhe uma cotovelada.) ADUQUESA - Sr. A'10, suas .mso- (Sai)

A DUQUESA - Parece-me que os l lência~ me fizera~ desmaiar diant~ HEITOR - Bravo, meu rapaz! És
senhores dois estão combinados um da cnadagem. Nao me esquecereI um verdadeiro Brignoc: na tua ida-
com o outro. Está me escondendo jamais desta humilhação de que oSr. de, eu já tinha uma pequena no
alguma coisa, Sr. Aio. é culpado. Continue: Vaudeville.
O AIO - Pois é, Sra. Duquesa. O AIO - Permito-me respeitosa- (Sai)
O céu é testemunho que eu não pen- mente, Sra. Duquesa. ~ . .
OAIO - O senhor me obriga a
sava estar agindo mal ao aceitar as A DUQUESA - Nao se permita
representar papéis bem tristes, meu
propostas do Sr. Hu~ulus. mais nada! Continue! I caro d'ISClpU
, Io. Suas fantasias me
A DUQUESA _ Propostas? Expli- O AIO (retoma a.'eitura) - "Es- levarão ao túmulo.
que-se, Sr. Aio. Que propostas são tou loucamente apaixonado por uma
estas? mulher chamada Helena ... (Sai)
O AIO - Propostas que eram ver- ADUQUESA - ~enha cu~dado em
dadeiras injunções, Sra. Duquesa. saltar as passagens mconvenentes. .. I CENA III
ADUQUESA - Injunções? Heitor, O AIO - ... "por uma mulher
você está compreendendo alguma chamada Helena. Espero declarar-lhe o panl) levanta-se. Vê-se uma es-
trada margeada de plátanos; Helena
coisa das palavras do Aio? o meu amor o mais cedo possível.
aparece de bicicleta. Carrega no
HEITOR _ Hesito entre várias hi- Como a ~inh.a triste en!e~midade só "gllidan" lima caixinha preta. Atrás
póteses igualmente penosas me permite dizer uma umca palavra dela, HU11Iulus, também de bicicle-
.. por dia, resolvi, a partir de hoje,
A DUQUESA -:- Sr. AIO, ordeno- abster-me de pronunciar durante um ta, seguindo-a visivelmente. Primeiro
lhe que se exph~ue c1ara.mente! mês a minha palavra quotidiana. Eu descrevem algumas curvas, depois ela
O AIO - ASSim ofarei, Sra. Du- e o senhor Aio calculamos ..." Este salta da bicicleta. Hwnulus também
salta.
quesa, não só para aliviar minha ponto não é exato, Sra. Duquesa.
consciência como também para satis- HELENA - Desculpe, senhor, po-
fazer aos desejos do Sr. Humulus. (Como leque, ela lhe faz sinal para de me dizer quantos quilômetros há
O Sr. Humulus pediu-me que lesse continuar.) daqui até a praia? 17
(Humulus inclina-se sem responder, para soprar, no caso de haver algu-
com a mão no coração.) ma dificuldade, ou que me afaste um
pouco?
HELENA - Muito obrigada, se-
nhor. Não é muito longe. Tenho (Humulus· faz um gesto, o aio se
tempo de ir até lá antes do almoço. afasta. Sozinho, Humulus relê o
texto com os gestos mais apaixona-
(Monta na biclicleta e sai, sorrindo dos. Helena entra de bicicleta e, por
para ele. Humulus também monta e um instante, faz curvas em redor de
a segue. De longe, tocam as cam- Humulus, sem que ele a veja. Final-
painhas.) mente a campainha de Helena o tira
de suas divagações; empalidece, diri-
CENA IV ge-se para ela relendo pela última vez
o papel. Helena desce da bicicleta e,
Um jardim público. Entra o Aio sorridente, o vê aproximar-se.)
com um papel na mão, e dirige-se
HUMULUS (com voz estertórica,
para Humulu5.
que ninguém esperava) - Senhorita,
O AIO - Sr. Humulus, trabalhei era eu que estava atrás, de bicicleta,
muito, pode acreditar; não preguei o naquele dia. Asenhorita me pergun-
olho essa noite, para dar a última lou o caminho. Pois bem, dali até o
demão a este documento. Mas fazer mar havia dez quilômetros.
uma declaração em trinta palavras é
tarefa extremamente árdua. Meu (Detém-se, muito pálido, apavorado,
caro discípulo, seria injusto acusar- e murmura ainda, como a contra-
-me de não ter posto bastante pala- gosto:)
vras de amor. Há proposições, arti-
gos e conjunções, que são palavras HUMULUS (que só tem duas pala-
neutras, sem dúvida, porém neces- vras para dizer) - Amo-te! I
sárias à boa compreensão do texto. HELENA (sorrindo sempre) -
Aqui está. Peço-lhe perdão, senhor, mas meu
(Lê) ouvido é um pouco duro, não escutei
nada.
O AIO - "Senhorita: Um violento
amor invadiu-me desde aquele dia. (Tira da caixinha preta no "guidon"
• Que as minhas lágrimas e os meus uma enorme corneta acústica, que
suspiros possam enternecer a vossa adapta ao ouvido; depois gentilmen-
cruel beleza. Um só gesto seu curaria te):
minhas feridas". São trinta. Eu real-
mente não devia me prestar a essas HELENA - Quer repetir, por
loucuras. Mas eu também amei, e obséquio?
essa aventura me traz recordações (Humulus a encara, e a' algazarra
bem doces. da orquestra abafa o seu desespero,
(Tira o relógio.) enquanto cai o pano.)

O AIO - A mocinha não deve


18 lardar... Prefere que eu fique aqui FIM

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