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CRIMINOLOGIA

A esquerda
punitiva
MARIA LÚCIA KARAM

1. As primeiras reivindicações ção do sistema penal no combate aos


repressoras: o combate à atentados ao meio ambiente, acaba
criminalidade dourada por atingir os mais amplos setores da
esquerda.
Na história recente, o primeiro mo-
mento de interesse da esquerda pela Distanciando-se das tendências
repressão à criminalidade é marcado abolicionistas e de intervenção míni-
por reivindicações de extensão da re- ma, resultado das reflexões de crimi-
ação punitiva a condutas tradicional- nólogos críticos e penalistas progres-
mente imunes à intervenção do siste- sistas, que vieram desvendar o papel
ma penal, surgindo fundamentalmen- do sistema penal como um dos mais
te com a atuação de movimentos po- poderosos .instrumentos de manuten-
pulares, portadores de aspirações de ção e reprodução da dominação e da
grupos sociais específicos, como os exclusão, características da formação
movimentos feministas, que, notada- social capitalista, aqueles amplos se-
mente a partir dos anos 70, incluíram tores da esquerda, percebendo ape-
em suas plataformas de luta a busca nas superficialmente a concentração
de punições exemplares para autores da atuação do sistema penal sobre os
de atos violentos contra mulheres, membros das classes subalternizadas,
febre repressora que logo se esten- a deixar inantigidas condutas social-
dendo aos movimentos ecológicos, mente negativas das classes dominan-
igualmente reivindicantes da interven- tes, não se preocuparam em enten-

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der a clara razão desta atuação desi- combate à corrupção, não só esque- sjja ís, n o mínimo esquecidos de qu e
gual, ingenuamente pretendendo que cidos das lições da história, a demons- a desigualdade inerente à formação Perdendo sua antiga visão crítica
os mesmos mecanismos repressores trar que este discurso tradicionalmen- social capitalista que,Jógica e natu- sobre a "imprensa burguesa",.
se dirigissem ao enfrentamento da te monopolizado pela direita já fun- ralmente, proporciona àqueles réus setores da esquerda reproduzem
chamada criminalidade dourada, mais cionara muitas vezes como fator de melhor utilizacãgjJos mecanismos de literalmente o que dizem
especialmente aos abusos do pocíêr legitimação de forças as mais reacio- defesa, certamentejiã^i_^e_res2liiexia os órgãos massivos de informação
LH^ po.IItico e-do poder econômico. nárias (basta lembrar, no Brasil, da COTÍI a r^tir^Ha rloJrlirpifO-V P garímt1- quanto a um aumento
eleição de Jânio Quadros e do golpe as, cuja vulneracão repercute sim — descontrolado da criminalidade
w^ Parecendo ter descoberto a supos- de 64), como incapazes de ver acon- e de maneira multo mais intensa — sp-
ta solução penal e talvez ainda in- tecimentos presentes (pense-se na' bre as classes subalternizadas,_ciue bros das classes dominantes, servin-
conscientemente saudosos dos para- simbólica vitória dos partidos aliados vivem o dia-a-dia da Justiça-Griminal, do o excepcional sacrifício, represen-
digmas de justiça dos velhos tempos a Berlusconi nas eleições italianas, no constituindo a clientela para a qual tado pela imposição de pena a um ou
e de Stalin (um mínimo de coerência auge da tão admirada Operação esta prioritariamente se volta. outro membro das classes dominan-
deveria levar a que em determinadas Mãos Limpas). tes (ou a algum condenado enrique-
manifestações de desejo ou aplauso Inebriados pela reação punitiva, cido e, assim, supostamente podero-
a acusações e condenações levianas Este histérico e irracional combate estes setores da esquerda parecem so), tão somente para legitimar o sis-
e arbitrárias se elogiassem também os à corrupção, reintroduzindo o pior do estranhamente próximos dos arautos tema penal e melhor ocultar seu pa-
tristemente f a m o s o s p r o c e s s o s de autoritarismo que mancha a história neoliberais apregoadores do fim da pel de instrumento de manutenção e
Moscou), amplos setores da esquer- de generosas lutas e importantes con- história, não conseguindo perceber reprodução dos mecanismos de do-
da aderem à propagandeada idéia quistas da esquerda, se faz revitaliza- que, sendo a pena, em essência, pura minação.
que, em perigosa distorção do papel dor da hipócrita prática de trabalhar e simples manifestação de poder — e,
do Poder Judiciário, constrói a ima- com dois pesos e duas medidas (o no que nos diz respeito, poder de Não percebem estes setores da es-
gem do bom magistrado a partir do furor persecutório voj.ta-s£__ap_e_nas classe do Estado capitalista — é ne- querda que a posição política, social
perfil de condenadores implacáveis e contra adversários políticos, eventu- cessária e prioritariamente dirigida e econômica dos autores dos abusos
severos. Assim, se entusiasmando ais comportamentos não muito ho- aos excluídos, aos desprovidos deste do poder político e econômico lhes
com a perspectiva de ver estes "bons nestos de companheiros ou aliados poder. Parecendo ter se esquecido dá imunidade à persecução e à impo-
magistrados" impondo rigorosas pe- sempre sendo compreendidos e jus- das contradições e da divisão da so- sição da pena, ou, na melhor dís hi-
nas a réus enriquecidos (só por isso tificados) e do aético princípio de fins ciedade em classes, não conseguem póteses, lhes assegura um tratamen-
vistos como poderosos) e aproprian- que justificam meios, a incentivar o perceber que, sob o capitalismo, a se- to privilegiado por parte do sisteTna
do-se de um generalizado e inconse- rompimento com históricas conquis- leção de que são objeto os autores penal, a retirada da cobertura de in-
qüente clamor contra a impunidade, tas da civilização, com imprescindí- de condutas conflituosas ou social- vulnerabilidade dos membros das
estes amplos setores da esquerda fo- veis garantias das liberdades, com mente negativas, definidas como cri- classes dominantes só se dando em
ram tomados por um desenfreado fu- princípios fundamentais do Estado de mes (para que, sendo presos, proces- pouquíssimos casos, em que conflitos
ror persecutório, centralizando seu Direito. sados ou condenados, desempenhem entre setores hegemônicos permitem
discurso em um histérico e irracional o papel de criminosos), naturalmen- o sacrifício de um ou outro responsá-
Desejando e aplaudindo prisões e te, terá que obedecer à regra básica vel por fatos desta 'natureza, que co-
Tomados por um desenfreado condenações a qualquer preço, estes de uma tal formação social — a desi- lida com o poder maior, a que já não
furor persecutório, amplos setores da esquerda reclamam contra gualdade'na distribuição de bens. Tra- sirva. Não percebem que, quando
' setores da esquerda centralizaram o fato de que réus integrantes das tando-se de um atributo negativo, o chega a haver alguma punição relaci-
seus discursos em histérico e classes dominantes eventualmente status de criminoso necessariamente onada com fatos desta natureza, esta
irracional combate à corrupção, submetidos à intervenção do sistema deve recair de forma preferencial so- acaba recaindo sobre personagens su-
não só esquecidos das lições da penal melhor se utilizam de mecanis- bre os membros das classes subalter- balternos.
história, como incapazes de ver mos de defesa, freqüentemente pro- nizadas, da mesma forma que os bens
acontecimentos presentes pondo como solução a retirada de e atributos positivos são preferenci- Ao centralizarem o combate à cor-
direitos e garantias penais e proces- almente distribuídos entre os mem- rupção na utilização da reação puni-
tiva e somarem suas vozes ao clamor nômicos, trabalhar com a responsa- eficaz de proteção dos interesses e dado a determinados locais — certa-
contra a impunidade e ao apelo por bilidade 'penal de pessoas jurídicas, valores dominantes de sociedades mente do Rio de Janeiro — onde rou-
uma maior eficiência da repressão, pois a individualização e a demoni- que supostamente deveriam ser trans- bos praticados principalmente por
estes setores de esquerda aderem à zação do criminoso são característi- formadas. meninos de rua acontecem com cer-
idéia de que um maior rigor repressi- cas inerentes à reação punitiva, em- ta freqüência, voz"es preocupadas em
vo seria necessário para acabar com presas ou instituições também poden- 2. As novas preocupações com a aumentar a segurança para combater
aquelas práticas de corrupção e com do perfeitamente ser individualizadas, criminalidade de massas e com tal violência, parecendo ter trocado
a impunidade de seus autores, assim e demonizadas, de igual forma se a criminalidade organizada de posições, agora desempenhando
ignorando o fato de que nenhuma re- ocultando, através destes mecanis- o papel de EUA, na busca de fórmulas
ação punitiva, por maior que seja sua mos ideológicos, a lógica e a razão Majsjgrayes do que as ilusões polí- para conter o avanço dos vietcongs...
intensidade — e ainda que fosse pôs; do sistema gerador e incentivador dos tico-ideológicas que levam às reivin-
síyel a superação dos condicionamen- abusos do poder realizados em ativi- dicações de extensão da reação pu- Talvez esta troca de posições tam-
tos de classe — pode pôr fim à impu- dades desenvolvidas naqueles orga- nitiva aos abusos do poder político e bém pudesse ser uma boa explicação
nidade ou à criminalidade de qual- nismos. econômico, são as novas preocupa- para a acrílica aceitação da expres-
quer natureza, até porque não é este ções da esquerda com a criminalida- são narcotráfico, que se incorporou
seu objetivo. AJTTOnppolizadora reacJicMaurHtjva de de massas e com as reais ou su- ao vocabulário da esquerda, refletin-
contra um ou outro autor de ^:ondu- postas manifestações da chamada cri- do sua submissão às regras da inter-
A imposição da pena, vale repetir, tas^ socialmente negativas, gerando a minalidade organizada, preocupações nacionalização da política de drogas,
não passa de pura manifestação de satisfação e o alívio experimentados que logo se seguiram àquela sua des- ditada pelos EUA, a partir da década
poder, destinada a manter e reprodu- com a punição e conseqüente identi- coberta do sistema penal. de 80, quando, simultaneamente ao
zir os valores e interesses dominan- ficação do inimigo,, do mau, do peri- desenvolvimento da "guerra contra as
tes enfurna dada sociedade. Para isso, goso, não só desvia as atenções como O abandono da utopia da transfor- drogas", pautada pela eleição elo
não é necessário nem funcional aca- afasta a busca de outras soluções mação social, cedendo lugar a dese- agente externo (os produtores, e dis-
bar com a criminalidade de qualquer mais eficazes, dispensando a investi- jos mais imediatos de conquista de tribuidores dos países latino-america-
natureza e, muito menos, fazer reca- gação-das razões ensejadoras daque- cargos políticos no aparelho de Esta- nos) como o inimigo a ser enfrenta-
ir a punição sobre todos os autores las situações negativas, ao provocar do, parece ser uma primeira explica- do, adotou-se o uso do radical da
de crimes, sendo, ao contrário, impe- a superficial sensação de que, com a ção para o surgimento destas novas palavra inglesa narcot/cs; utilizável
rativa a individualização de apenas al- punição, o problema já estaria satis- preocupações. Mas, talvez, se deva também em espanhol ou em portu-
guns deles, para que, exemplarmen- fatp,riamente resolvido. Aí se encon- pensar também no processo de enve- guês, passando-se então a falar cie
te identificados como criminosos, em- tra um dos principais ângulos da fun- lhecimento e. estabilização material narcotráfico, narcodólares, etc. inobs-
prestem sua imagem à personalização cionalidade do sistema penal, que, de grande parte dos antigos .militan- tante o principal alvo da política-do
da figura do mau, do inimigo, do pe- tornando invisíveis as fontes gerado- tes — em sua maioria, oriundos das momento — a cocaína — sequer pu-
rigoso, assim possibilitando a simul- ras da criminalidade de qualquer na- classes médias —, agora temerosos e desse ser visto como narcótico, tra-
tânea e conveniente ocultação dos tureza, permite e incentiva a crença sensibilizados com a violência da cri- tando-se, ao contrário, de evidente es-
perigos e dos males que sustentam a em desvios pessoais a 'serem comba- minalidade de massas, á ameaçar seus timulante.
estrutura de dominação e poder. tidos, deixando encobertos e intoca- 'novos ideais de "paz" e tranqüilidade.
dos os desvios estruturais que os ali- Envernizando suas inquietações
A excepcionalidade da atuação do mentam. Perdendo sua antiga visão crítica com a criminalidade convencional de
sistema penal é de sua própria essên- sobre a "imprensa burguesa", amplos massas (decerto ameaçadora "pãTa
cia, regendo-se a lógica da pen.a pela Chega a ser, assim, espantoso que setores de esquerda reproduzem lite- quem quer usufruir dos privilégios de
seletividade, que permite a individu- forças políticas que se dizem (ou/ ralmente o que dizem os órgãos mas- uma estabilização material, sem ser
alização do criminoso e sua conse- pelo menos, originariamente, se dizi- sivos de informação, quanto a um au- incomodado com roubos e furtos) e
qüente e útil demonização, processo am) voltadas para a luta^por transfor- m<ento descontrolado da criminalida- preocupados em melhor justificar sua
que se reproduz mesmo quando se mações sociais prontamente forne- de, sendo comum ouvir de suas vo- ideologia repressora, amplos setores
pretende, como nos delitos sócio-eco- çam sua adesão a um mecanismo tão zes a repetição do apelido de V/e£nam da esquerda aderem ao apelo de mai-

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Rio de Janeiro trouxe ao discurso des- te, associações de moradores de fa- em aderir ao discurso dominante (tal-
Quando se concilia com a idéia tes setores criminalizantes da esquer- velas, como se estes não vivessem vez para não dissentir dos reclamos
de que o enfrentamento da da o verniz de que necessitavam, pas- nos mesmos bairros onde se situavam repressores e punitivos da opinião pú-
criminalidade corresponde a sando a justificar sua ideologia repres- as associações das classes médias. .blica, em tempos de sonhadas vitó-
uma situação de guerra, não se sora e punitiva com os argumentos de rias eleitorais), nem mesmo o antigo
pode pretender dos agentes da que aquela dita criminalidade organi- Talvez antes de lamentar uma su- instrumental de análise, que antes pa-
repressão respeito aos direitos dos zada estaria dominando as favelas do posta perda de associações de mora- recia lhes permitir desvendar as leis
eventuais violadores da lei Rio de Janeiro e oprimindo seus mo- dores para o tráfico e se assustar com da economia e do desenvolvimento
radores, controlando as associações a violência da criminalidade, a ponto social, conseguiu estimular estes se-
or intervenção do sistema penal, tra- pela intimidação e cooptação de li- de se unir ao desejo dominante de tores da esquerda a buscar uma com-
balhando — à semelhança da ideolo- deranças (generalização, aliás, bastan- repressão e punição, devesse a es- preensão mais profunda da realidade,
gia dominante — não com aquelas te questionável), assim sufacaado_QS querda retomar às sessões de auto- para assim encontrar a melhor forma
mais verdadeiras inquietações com a movimentos populares. Será mesmo crítica (sempre saudáveis, desde que de transformá-la.
criminalidade convencional, mas com que é a intimidação ou a cooptação naturalmente podadas de seus exces-
poderosos fantasmas de uma supos- de lideranças que impedem a organi- sos históricos), de modo a reconhe- Fazendo sua a política de guerra
ta criminalidade organizada (aqui zação popular? Não seria esta uma cer, e superar os "desvios" que a le- interna contra as drogas, sem notar a
também reproduzindo discurso im- cômoda desculpa para a incapacida- varam a contribuir, ainda que incons- semelhança com a política externa de
portado dos países centrais), fantas- 'de política da própria esquerda? cientemente, para a institucionaliza- seus antigos arquiinimigos nos anos
mas que, ecoando nos sentimentos de ção de nosso apartheid social. 80, optando pela falsa e fácil solução
insegurança e no medo coletivo difu- Uma análise séria da organização penal, não enxergam aqueles setores
so, característicos das sociedades e dos movimentos populares não po- Embora apelando para aquela su- da esquerda a contradição (que, em
contemporâneas, favorecem os cres: deria omitir a distorcida política que posta responsabilidade do tráfico pela tempos outros, se diria antagônica)
centes anseios de segurança, de in- presidiu á formação das associações desorganização de movimentos popu- entre a pretendida utilização de um
tensificação da repressão, de maior de moradores,no Rio de Janeiro, po- lares e tentando manter alguma coe- mecanismo provocador de um proble-
rigor penal,,fortemente presentes no lítica que, mais do que provocar o en- rência com seus originários ideais, ao ma como solução para este mesmo
momento histórico em que vivemos. fraquecimento daqueles movimentos, sugerir que suas preocupações, nes- problema. Ao optarem pela reação
compactuou com o acirramento das te campo, decorreriam da necessida- punitiva, não percebem que, no cam-
Trabalhando com estes fantasmas diferenças entre os habitantes das fa- de de romper com a opressão impos- po de negócios ilícitos, é exatamente
do mal definido fenômeno da chama- velas e os habitantes do asfalto, acir- ta aos moradores das favelas pelos esta mesma reação punitiva a criado-
da criminalidade organizada, estes ramento que certamente contribui agentes do comércio varejista das ra da criminalidade (organizada ou
setores da esquerda apressam-se em para uma maior agressividade recípro- drogas ilícitas lá instalados, o fato é não) e da violência por ela gerada;
identificá-lo — como o discurso domi- ca e, conseqüentemente, para um au- que tais preocupações só aparecem não percebem que é o processo de
nante — na atuação dos varejistas do mento de atitudes violentas. Em sua quando a violência dos conflitos tra- criminalização que, produzindo a ile-
comércio das drogas ilícitas estabe- organização, impulsionada pela es- vados nas desorganizadas disputas de galidade do mercado de bens e servi-
lecidos nas favelas cariocas, embora querda, notadamente no início da pontos de comércio de drogas, no Rio ços de grande demanda (como as dro-
quem foi acostumado a ter na práti- década de 80, as associações de mo- de Janeiro, se mostra ameaçadora- gas ilícitas ou o jogo), igualmente pro-
ca o critério da verdade talvez deves- radores foram divididas em duas ca- mente próxima dos locais de moradia
se prestar mais atenção à sinalização tegorias, que reproduziam a artificial das classes médias, assustadas com as As preocupações com a opressão
que vem -da realidade, dando conta e reacionária separação morro x as- "balas perdidas", perturbadas em seus imposta pelo tráfico aos moradores
das-constantes disputas por pontos de falto, Criando-se associações de bair- anseios de paz e tranqüilidade. das favelas só aparecem quando
venda, a melhor sugerir uma certa de- ro, que, tendo maior crescimento na a violência dos conflitos se mostra
sorganização em tal atividade. Mas, zona sul, integravam em seus quadros Compactuando com a repressão, ameaçadoramente próxima
organizada ou desorganizádamente, moradores das classes médias, com não procurando qualquer alternativa dos locais de moradia
o fato é que esta criminalidade liga- predominância de militantes de es- mais sólida e menos perniciosa do das classes médias
da ao tráfico de drogas nas favelas do querda, e, paralela e distanciadamen- que a reação punitiva, apressando-se

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duz a inserção neste mercado de or- ao permitir que os moradores das fa- melhor estruturação dos aparelhos d<
— e, portanto, de manutenção do sta-
ganizações criminosas, simultanea- tus quo — a requerer medidas imedia- velas reavaliassem suas relações com repressão do sistema penal. Sempre
mente trazendo a violência e a cor- a autoridade pública, em explícita fazendo suas as palavras do discurso
tas de repressão e controle, medidas
rupção como subprodutos necessá- como, de regra, dirigidas contra as defesa da necessidade de uma violen- dominante, fazem coro aos que di-
rios das atividades econômicas assim ta educação das classes subalterniza- zem que "a polícia está podre" e pre-
classes subalternizadas.
desenvolvidas. Tampouco conseguem das para a submissão. cisa ser reestruturada (aqui também,
perceber que, por mais rigorosa que como quer a mídia, referem-se espe-
Trocando quaisquer inquietações
seja a repressão, estas atividades eco- Mas, talvez este imobilismo não cialmente à polícia do Estado do Rio
de um passado próximo pela adesão
nômicas ilegais subsistirão enquanto deva ser assim tão surpreendente, re- de Janeiro), reivindicando medidas ur-
à suposta necessidade inadiável de
estiverem presentes as circunstâncias fletindo a mesma postura (quem sabe, gentes, adotando as mesmas razões
aprofundamento do combate à crimi-
como em outros tempos também se — ou desrazões — que abriram espa-
socioeconômicas favorecedoras de nalidade, os mais amplos setores da
diria, determinada por condiciona- ço para a j a comentada utilização das
uma demanda criadora e incentivado- esquerda tranqüilamente aceitaram
mentos de classe) de quem, antes, Forças Armadas em um suposto com-
ra do mercado, o que, no mínimo, aquela indevida utilização das Forças
com suas associações, não se incomo- bate ao crime, no Rio de janeiro, no
deveria sugerir uma alteração de ru- Armadas nas tarefas de segurança pú-
mos, buscando-se instrumentos me- blica, em nenhum momento levantan- dara em apartar os moradores dos final de 1994.
nos perniciosos e mais eficazes de do suas vozes (talvez, ainda uma vez, morros dos habitantes do asfalto, de
quem não hesita em dar sua adesão Repetindo aquela simplista afirma-
controle de uma tal demanda. não querendo dissentir da opinião
a uma pretendida "paz" classista e ção de que "a polícia está podre", ne-
pública — ou, mais propriamente, da
Desvinculados de uma análise sé- excludente, de quem, priorizando o cessitando de urgente reestruturação
opinião publicada — provavelmente
combate à criminalidade, parece ter (admitindo-se até mesmo sua disso-
ria da realidade e acompanhando a preocupados com os efeitos de um
definitivamente relegado a segundo lução), em verberações que, neste
exacerbação do desejo punitivo, que tal dissenso na campanha eleitoral
segue o ideal imediatista de "viver em plano as medidas mais profundas e de campo da atuação -do aparelho poli-
que então se.desenrolava), nem mes-
paz", sequer estranham aqueles seto- longo prazo que, aptas a criar melho- cial, priorizam os males da corrupção
mo se impressionando com a tática
res condições de vida e maiores opor- que estaria a deteriorar aquela atua-
res da esquerda esse desejo de paz da repressão militarizada, centrada no
que admite até a guerra, como expres- tunidades sociais para as classes su- ção e enfraquecer o desejado com-
cerco e ocupação das favelas cario-
sado na proposta de transferir as ta- balternizadas, simultaneamente con- bate ao crime (especialmente e, como
cas, conquistadas como se fossem ter-
refas de segurança pública para as tribuam para o rompimento com os sempre, o crime organizado), não se
ritórios inimigos, tática que sequer dis-
mecanismos excludentes (tão eficaz- detêm nas razões dos desviados com-
Forças Armadas, concretamente en- farçava a genérica identificação das clas-
saiada, no Rio de Janeiro, no final de mente reproduzidos pelo sistema pe- portamentos de alguns agentes poli-
ses subalternizadas como classes peri-
1994, e só abandonada porque, como nal) e conduzam a uma — não impor- ciais, ou de muitos, ou mesmo da
gosas> tradicionalmente feita de forma
seria de esperar, não se produziram os ta quão distante — transformação so- maioria — não é isto o mais importan-
mais sutil através do normal funciona-
resultados concretos com que a fanta- mento do sistema penal. cial, voltada para a construção de re- te.
sia da ideologia repressora sonhava. lações mais iguais e mais solidárias
entre todas as pessoas, que assim pos- Não notam estes setores da esquer-
Preocupada com a criminalidade,
Nem mesmo esta explícita (e, de- sam efetivamente viver em paz. da que toda forma de corrupçío
embotada pelo desejo repressor e pu-
certo, antagônica) contradição entre (como ocorre com aquela mais refi-
nitivo, deixou a esquerda passar des-
o ideal de viver em paz e o apelo à 3. O discurso simplista contra a nada, objeto central de suas campa-
percebido o editorial de um grande
guerra — contradição, sem dúvida, corrupção e a violência policiais nhas contra a criminalidade dourada)
jornal, que, preocupando-se em mini-
mais facilmente percebível .do que tem sempre dois vértices, não se per-
mizar a falta de resultados visíveis da
aquela mais sutil, mas, de todo modo, Em seus acenos com a violência turbam com as cotidianas e fnúmêras
Operação Rio e justificar as ilegais,
certamente existente, entre paz e pu- real ou imaginária de uma suposta cri- práticas desonestas repetidas e inte-
violentas e humilhantes revistas pes-
nição — despertou maiores questio- minalidade organizada, a clamar por riorizadas pela maioria das pessoas,
soais dirigidas até contra crianças,
namentos sobre os estreitos limites maior repressão, os setores criminali- desejosas de atender às exigências e
bem esclarecia a real finalidade da re-
classistas deste novo ideal, sobre sua zantes da esquerda recheiam suas re- obter os favores e reconhecimentos
pressão militarizada, sugerindo que
transformação em um ideal de ordem flexões com a necessidade de uma de uma sociedade egoística e cxclu-
seus objetivos teriam sido atingidos,

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dente, que certamente não aposentou te diante de ações mais divulgadas e ciso manter a ordem aqui se traduz
a velha máxima do "levar vantagem mais particularmente cruéis, como na idéia de que é preciso combater o "Os policiais exercitavam sua
em tudo". aconteceu com o massacre do Caran- crime, gerando todo tipo de violên- missão, bem como tinham a
diru, em São Paulo, com os extermí- cia — da tortura ao extermínio — nas obrigação de evitar a fuga do
Por que apenas a polfcia estaria nios coletivos da Candelária e de Vi- ditaduras, contra os dissidentes, e, perigoso indivíduo que era um
podre e seria, a partir de uma supos- gário Geral, no Rio de Janeiro, ou com nas democracias mais ou menos re- verdadeiro micróbio social
ta reestruturação, transformada, o homicídio atribuído a um policial ais, contra os "delinqüentes", vistos (...)absolvido assim, neste Planeta,
como num passe de mágica, em uma militar, em frente ao shopping Rio-Sul, como os inimigos, os maus, os peri- pela sua morte" (Registro de
ilha de honestidade? Não conseguem também no Rio de Janeiro. gosos. Ocorrência, 8.7.1982)
ver estes setores da esquerda que o
discurso histérico e vazio contra a Não percebem que o clima geral Quando se concilia com a idéia de ação mais violenta da repressão, con-
corrupção policial é análogo ao dis- de exacerbação do desejo punitivo, que o enfrentamento da criminalida- seguiu perceber a inadequação da
curso mais geral sobre a criminalida- que conta com seu decidido apoio, é de corresponde a uma situação de escolha.
de, selecionando preferencialmente o grande incentivador da violência da guerra, não se pode, ao mesmo tem-
nas classes subalternizadas (de onde repressão informal, dirigida contra po, hipocritamente pretender que os Os agentes policiais, que ilegal-
vem a imensa maioria dos agentes po- aqueles que correspondem à imagem agentes da repressão pautem sua atu- mente eliminam os supostos crimino-
liciais) personagens que, convenien- de criminosos. Não percebem que o ação pelo respeito aos direitos de sos ou suspeitos com que se defron-
temente estigmatizados, desempe- apelo à autoridade e à ordem e a am- eventuais violadores da lei. Em guer- tam, da mesma forma que os integran-
nham o papel de maus, para que os pliação do poder punitivo do Estado ras, como é sabido, o combate ao ini- tes de grupos de extermínio ou os pa-
demais possam seguir desempenhan- — resultado da demanda de maior re- migo significa sua eliminação, não pa- catos cidadãos autores de linchamen-
do seu papel de "cidadãos de bem". pressão à criminalidade — embute recendo assim lá muito coerente exi- tos, na realidade, apenas reproduzem
uma crescente desumanidade no gir rigorosa punição para quem, atu- e concretizam a divulgada idéia — que
Tão nefasto quanto este discurso combate ao crime, favorecendo o ando, como se estivesse em guerra, conta com o apoio de amplos seto-
estigmatizante contra a corrupção é aprofundamento e a crueldade da re- ponha em prática tal ensinamento. E res da esquerda — de que o combate
o discurso, igualmente simplista e hi- pressão informal, seja através da atu- não há dúvida de que amplos setores à criminalidade há que se fazer a qual-
pócrita, contra a violência policial. ação ilegal de agentes policiais, seja da esquerda parecem convencidos de quer preço, com leis excepcionais,
através da ação de grupos de exter- que o combate à criminalidade efeti- com condenações sistemáticas (ain-
Seguindo a linha da individualiza- mínio, seja através de linchamentos. vamente corresponderia a uma situa- da que arbitrárias), ou até mesmo
ção e demonização de alguns auto- ção de guerra. Não bastassem a pas- com lições extraídas da guerra.
res de condutas definidas como cri- O que alimenta a repressão infor- siva aceitação da convocação das For-
mes, como determina a opção pela mal, desenvolvida à imagem e seme- ças Armadas para assumir, no Rio de Esquecidos desta sua inconsciente
reação punitiva, limitam-se estes se- lhança da repressão formal, é a pró- Janeiro, no final de 1994, as tarefas contribuição para o incremento da vi-
tores da esquerda a clamar contra a pria ideologia que sustenta o sistema da segurança pública, ou a adoção da olência policial e já acostumados com
impunidade de policiais acusados de penal. A idéia de pena, de afastamen- denominação de Vietnam para luga- a fácil e falsa solução penal, os seto-
atos violentos ou a exigir maior rigor to do convívio social, de punição, ba- res supostamente perigosos, tal con- res criminalizantes da esquerda dire-
em eventuais punições, especialmen- seia-se no maniqueísmo simplista, que cepção fez-se mostrar ainda mais cla- cionam suas reivindicações, neste
divide as pessoas entre boas e más: ramente na escolha de oficiais-gene- campo, pelo repisado clamor contra
Em 1988, a ÜERJ analisou 42 o criminoso passa a ser visto como o rais das Forças Armadas para assumi- a impunidade, pretendendo pôr fim
inquéritos de homicídio e 2 de mau, o outro, o diferente, o que irá rem os cargos de Secretários de Esta- àquela violência com o rigor puniti-
. lesão. Das 44 vítimas, 33 eram permitir e alimentar a violência puni- do na área da segurança pública, pe- vo que querem se despeje contra os
negras e 19 foram mortas tiva realizada fora do direito (a repres- los dois Governadores eleitos pelo PT policiais eventualmente alcançados
com tiros pelas costas. 35 desses são informal). Produz-se, neste cam- nas últimas eleições, um deles aca- pelo sistema penal. Assim se mobili-
inquéritos foram arquivados, e po, um processo semelhante ao que bando por exonerar seu Secretário, zam, prioritariamente, com questões
sequer indiciados os policiais alimenta a repressão política das di- quando, somente diante de declara- secundárias, simples decorrências de
taduras, em que a idéia de que é pre- ções explícitas de estímulo a uma atu- outras questões maiores, como a pre-

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gação. A sólida resistência de tais prá- controle social, proporciona e alimen- rização no convívio entre as pessoas
As vítimas, quando não são ticas a mudanças políticas gerais ou ta o crescimento da demanda de mai- que avultam nas sociedades contem-
mortas,transformam-se em réus, a trocas de comandos nas instituições or repressão, de maior rigor punitivo, porâneas, certamente, estão a clamar
acusados de tentativa de homicídio policiais, que nenhuma repercussão de maior intervenção do sistema pe- porque se reavive a generosidade dos
contra os policiais e até de crime apresentam na redução destes aten- nal, trazendo desmedida ampliação ideais de transformação social para
de formação de quadrilha, no caso tados aos direitos fundamentais de do poder punitivo do Estado. construção de sociedades melhores e
dos trabalhadores rurais conservação da vida e da integrida- mais justas, que historicamente distin-
de física, já bastaria para demonstrar Sofrendo mais diretamente aquela guiram as lutas da esquerda.
tendida extinção das Justiças Milita- a inutilidade e a injustiça de medidas decepção enfraquecedora das utopi-
res Estaduais, ou, mais modestamen- que, como o rigor punitivo que aque- as, conseqüente ao desmoronamen- A compreensão de novas contradi-
te, a transferência para a Justiça co- les amplos setores da esquerda que- to das traduções reais do socialismo, ções que se põem nas sociedades
mum da competência para o conhe- rem fazer abater sobre um ou outro amplos setores da esquerda voltam- contemporâneas e o rompimento
cimento de causas relativas a homicí- policial acusado da prática de tais se para objetivos mais imediatos, com as diversas formas de autorita-
dios atribuídos a policiais militares. atentados, deixam intacta a concep- abandonando a perspectiva de cons- rismo, que desvirtuaram a concretiza-
ção ideológica traduzida no desejo trução de uma nova sociedade e se ção do socialismo, são passos indis-
Dominados pelo desejo da repres- geral da repressão e do castigo. entregando a um pragmatismo políti- pensáveis na necessária retomada do
são e do castigo, deixam de lado — co extremamente distante dos princí- caminho histórico das lutas da esquer-
como ocorre sempre que se opta pela 4. A luta por transformações pios e ideais que a viram nascer. da pela transformação social, pela
monopolizadora e superficial reação sociais e a necessidade de construção de sociedades melhores e
punitiva — a questão maior consubs- rompimento com a O equivocado discurso sobre a cri- mais justas, que, sendo mais genero-
tanciada na militarização da ativida- ideologia da repressão minalidade, encerrando a entusiasma- sas e solidárias, necessariamente de-
de policial, a sugerir, dentre outros da crença no sistema penal e as rei- vem ser mais tolerantes.
temas, o questionamento da existên- A adesão de amplos setores da es- vindicações repressoras, na linha des-
cia de polícias militares, instituídas querda à ideologia da repressão, da te pragmatismo político-eleitoral, sem Este caminho transformador não
como forças auxiliares do Exército, lei e da ordem, seu interesse por um princípios e sem ideais, favorecedor pode ser trilhado com a reprodução
este sim — e não a derivada existên- implacável combate à criminalidade, da ampliação do poder punitivo do dos mecanismos excludentes caracte-
cia de uma justiça especial — consti- sua "descoberta" do sistema penal Estado, hoje faz de amplos setores da rísticos das sociedades que se quer
tuindo um ponto relevante no deba- surgem em um tempo em que os sen- esquerda uma reacionária massa de transformar. Não há como alcança r
te em torno daquela atividade, que, timentos de insegurança e o medo co- manobra da "direita penal" e do sis- sociedades mais generosas e solidá-
entretanto, é bom ressaltar, certamen- letivo difuso, provocados pelo proces- tema de dominação vigente, parecen- rias, utilizando-se dos mesmos méto-
te não se esgota na forma de realiza- so de isolamento individual e de au- do dar suporte aos que enganadora- dos que se quer superar.
ção do policiamento ostensivo e pre- sência de solidarização no convívio mente sustentam que a contraposição
servação da ordem pública. social, aliam-se à decepção enfraque- entre direita e esquerda teria perdi- Quando se aceita a lógica da rea-
cedora das utopias e à necessidade do sua razão de ser. ção punitiva, está se aceitando a ló-
Mantido o quadro ditado por uma de criação de novos inimigos e fan- gica da violência, da submissão e H -i
suposta necessidade de combate im- tasmas capazes de assegurar a coe- Entretanto, esta contraposição, cer- exclusão, em típica ideologia de clas-
placável à criminalidade, não serão são em formações sociais que, com tamente, ainda se faz fundamental.
eventuais punições rigorosas, seleci- o desmoronamento das traduções re- "É preciso sujeitar o gentio e
onadamente impostas (como é da re- ais do socialismo, não mais têm A ordem injusta de sociedades fazê-lo guardar a lei natural.
gra da imposição de penas), que irão exigida a demonstração de sua supe- inigualitárias, nas quais os privilégios Sem sujeição, os gentios
reduzir o elevado número de homicí- rioridade democrática. dos que se colocam no topo da esca- continuam a matar e comer corpos
dios praticados por policiais contra la social se contrapõem às privações humanos sem exceção de
supostos crimjnosos ou suspeitos, ou O quadro vivido neste novo tem- e às discriminações sofridas pelos que pessoas."(Cartas dos Primeiros
romper com a rotineira permanência po, proporcionando campo extrema- são subalternizados, o isolamento Jesuítas do Brasil)
da tortura como método de investi- mente fértil para a intensificação do egoísta e a desumana falta de solida-

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w*}
se dominante — ideologia presente indispensável garantia da liberdade in-
nos trágicos e nefastos equívocos que dividual e do direito à diferença, para CRIMINOLOGIA
conduziram às perversidades totalitá- que a solidariedade no convívio su-
rias do socialismo real. Convivendo pere e afaste a crueldade da repres-
com a dominação, ao contraditoria- são e do castigo, para que um exercí-
mente pretender aprofundar a demo- cio democratizado do poder faça do
cracia através da ditadura do proleta- Estado tão somente um instrumento
riado, assim apenas substituindo a do- assegurador do exercício dos direitos
minação de uma classe pela domina-
ção de outra (ou de seus supostos re-
presentantes), certamente não pode-
e da dignidade de cada indivíduo.
A violência contra
ria a proposta socialista assim mate-
rializada representar a tradução dos
generosos ideais transformadores e os oprimidos:
emancipadores de que nasceu a es-
querda.

Uma esquerda adjetivável de puni-


seis tipos de análise
tiva, cultivadora da lógica antidemo-
crática da repressão e do castigo, só LEONARDO BOFF
fará reproduzir a dominação e a ex-
clusão cultivadas, seja na formação
social capitalista, seja na contrafação
do socialismo, que se fez real. A violência é crescente no Brasil. tranqüilize o futuro. Tal situação con-
Os fatos conhecidos dos seqüestres, figura, objetivamnete, um estado de
Na retomada da utopia e das lutas do extermínio de crianças de rua e de violência. Mais que atos de violên-
pela transformação social, não há lu- chacinas por parte de policiais não cia, temos a ver com atitudes perma-
gar para uma tal esquerda. A realiza- podem ser entendidos como episó- nentes e continuadas de violência. É
ção dos generosos e solidários ideais dios. Uma análise mais cuidadosa seu caráter estrutural. Vamos anali-
igualitários, que a todos assegure o mostra uma conexão de tais fatos sar-lhe as causas por seis caminhos di-
atendimento das necessidades funda- com a totalidade social. Esta é ferentes.
mentais para a sobrevivência e as marcada por um modelo altamente
mesmas oportunidades de acesso às predatório de capitalismo levando a 1. Causas históricas: um pecado
riquezas e ao desenvolvimento pes- uma extrema degradação da força de de origem, nosso passado
soal, há que se fazer de forma a esta- trabalho. O número dos excluídos é colonial
belecer a síntese que incorpore os cada vez maior. É um luxo hoje ser
ideais libertários, asseguradores da explorado pelo sistema do capital que O Brasil tem no seu começo um
livre expressão e realização dos direi- compra de forma aviltada a força de pecado original: a violência da con-
tos da personalidade de cada indiví- trabalho, remunerando-a miseravel- quista e da invasão. Fomos e conti-
duo. O rompimento com a excluden- mente com a pequena vantagem, de nuamos a ser colônias. A colonização
te e egoística lógica do lucro e do por lei, o f e r e c e r um mínimo de implica um ato de extrema violência
mercado, há que ser acompanhado seguridade social. Cerca de 35% da organizada, sistemática e continuada:
do rompimento com qualquer forma população é excluída. Está, quando é colocar toda uma nação, com sua
de autoritarismo, para que a bens eco- muito, no mercado informal, mas fora população, com sua cultura, com
nômicos socializados corresponda a de qualquer benefício social que lhes tudo o que tem à depedração do ou-

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