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202 o moDeRmiswo () Na“Nota preliminar”,reproduzida na pagina 204 deste capitulo, Fernando Pessoa discorre sobre acriago de “um poeta que seja varios poetas”. F justa- mente esta a mais rica, densa ¢ intri- gante faceta de Pessoa: sua eapacida- de de despersonalizar-se e reconstruir- se em outros personagens, todos eles igualmente poctas. E a esses “varios poetas” Fernando Pessoa deu uma biografia, earacteres fisicos, tragos de personalidade, formaglo cultural..As- sim é que, além de Fernando Pessoa ele-mesmo, “nasceram” seus heterd- nimos: 0s poctas Alberto Caciro, Ri- cardo Reis e Alvaro de Campos. E importante nao confundir heterénimo com pseudénimo, Pseudénimo € um nome falso, sob o qual alguém se ocul- ta Oheterdnimo vai além: 6 um outro nome, uma outra personalidade, uma outra individualidade— diferente, por- tanto, do eriador. Reta de Fernando Pessoa (196), eo de Amado Neg Para entendermos melhor esse fendmeno da heteronimia, transcrevemos a seguir trechos de uma carta cenviada por Fernando Pessoa a seu amigo e critico literdrio Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de janeiro de 1935, Nessa carta, 0 proprio Fernando Pessoa nos conta a origem dos heterénimos, bem como as caracte risticas de cada um, Acreditamos que, apesar de um pouco extensa, sua leitura é fundamental. “Passo agora a responder & sua pergunta sobre a génes ver se consigo responder-Ihe completamente. Comego pela parte psiquistrica. A origem dos meus heterdnimos é 0 fundo trago de histeria que existe em mim, Nao sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propria mente, um histero-neurasténico, Tendo para esta segunda hipétese, porque ha em mim. fenémenos de abulia que a histeria, propriamente dita, no enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, @ origem mental dos meus heterénimos est na minha tendéncia orginica e constante para a despersonalizagao e para a simulagio. (..) (..) Vou agora fazer-Ihe a histéria direta dos meus heterdnimos. Comego por aqueles, {que morreram, e de alguns dos quais jé me nao lembro — os que jazem perdidos no passa- do remoto da minha infincia quase esquecida, Desde crianga que tive a tendéncia para criar em meu torno um mundo fieticio, de me cerear de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Nao sei, bem entendido, se realmen- teniio existiram, ou se sou eu que nfo existo. Nestas coisas, como em todas, nio devemos ser dogmatticos. ) Desde que me conheco como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, cariter e historia, varias figuras reais, que eram para mim tio visiveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. (..) e dos meus heterdnimos. Vou Lembro, assim, 0 que me parece ter sido o meu primeiro heterénimo, ou, antes, © meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, nfo inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeigdo que confina com a saudade. (..) ‘OMODERMSMO Esta tendéncia para criar em mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginagio. Teve virias fases, entre as quais esta, sucedida j4 em mai- oridade. Ocorria-me um dito de espirito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja historia acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto— imediatamente eu via diante de mim. E assim arran- jei, e propaguei, varios amigos ¢ conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distancia, oigo, sinto, vejo. Repito: oigo, sinto, vejo... E tenho saudades deles. ((.) Basta de magada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterénimos literarios, que ¢ afinal o que V. quer saber. Em todo 0 caso, 0 que vai dito ‘acima da-Ihe a histéria da mie que os dew a lu) Ai por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me & idéia escrever uns poemas de indo pagi. Esbocei umas coisas em verso irregular (nao no estilo Alvaro de ‘Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esbocara-se-me, contudo, numa penumba mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aqui Jo. (Tina nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.) Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida a0 Sé- sneiro de inventar um pocta bucdlico, de espécic complicada, eapresentar-tho,j4 me 0 lembro como, em qualquer espécie de realidade, Levei uns dias a elaborar 0 pocta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistra — foi em 8 de margo de 1914 — acerquei-me de uma cémoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como tescrevo sempre que posso. E eserev trina e tantos poemas a fio, numa espécie de éxtase cuja natureza nfo conseguir definir. Foi o dia triunfal da minha vide, e munca poderei ter outro assim. Abi com um titulo ~ “O Guardador de Rebanhos”, Eo que se seguiu foi 0 aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo 0 nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu meste. Foi essa a sensagio imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trintae tantos poems, imediatamente peguei noutro papel e eserevi a fio, também, os seis poemas que constitu ema "Chuva Obliqua”, de Fernando Pessoa, Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele sb. Ou melhor, foi a reago de Fernando Pessoa contra a sua inexisténcia como Alberto Caeiro Aparecido Alberto Cairo trate’ logo de Ihe descobrir—instintivaesubconscientemente uns diseipulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobr-the nome, eajustei-o a si mesmo, porque nessa altura ja o via. E, de repente, em derivagio posta de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo individuo. Num jao, ¢& miguina de escrever sem interrupeéo nem emenda, surgi a “Ode Triunfal” de Alvaro de Campos a Ode com esse nome e o homem com 0 nome que tem. o) Mais uns apontamentos nesta matin... Eu vejo diante de mim, no espaco incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caco, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-thes a idades eas vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (nao me lembro do dia més, mas tenho-os algures),no Porto, é médico e est presentemente no Brasil, Alberto Caciro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Nao feve profissio nem educagio quasealguma, Alvaro de Campos nas teu em Tavita, no dia 15 de outubro de 1890 (1:30 da tarde, diz-me o Fereira Gomes; © $ verdade, pois, feito o hordscopo para essa hora, esté certo). Este, como sabe, & enge- heiro naval (por Glasgow), mas agora esti aqui em Lisboa em inatvidade. Caciro era de statura média, e, embora realmente frgil (morreu tuberculoso), nao parecia to fégil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais sec. 03 204 o.moDERNISHO(D Alvaro de Campos ¢ alto (1,75 de altura, mais dois centimetros do que eu), magro ¢ um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos —o Caciro louro, sem cor, olhos azuis; Reis, «de um vago moreno mate; Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu portu- _gués, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monéculo. Caeiro, como disse, no teve mais educagio que quase nenhuma ~ 6 instruglo primaria; morreram-lhe cedo © pai ea mic, ¢ deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma ta velha,tia-av6. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuitas, , como disse, médi- co; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser mondrquco; é um latnista por educasio alheia ¢ um semi-helenista por educagio propria. Alvaro de Campos teve uma educaglo vulgar de iceu; depois foi mandado para a Esedcia estudar engenharia, primeiro mecinica e depois naval. Numas ferias, fez a viagem ao Oriente de onde resultou ‘0“Opiirio”. Ensinou-Ihe latim um tio beitio que era padre. Como escrevo em nome desses trés?.. Caeiro por pura e inesperada inspiraglo, sem saber ou sequer calcular que iriaescrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberagio abs- ‘rata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos quando sinto um stbito impulso para escrevere iio sei o qu. (..) Caeiro escrevia mal o portugués. Campos razoavelmen- te, mas com lapsos como dizer “eu proprio” em vez de “eu mestno”, etc. Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.(.)” (Fernando Pessoa. In: Fernando Pessoa ~ Obra poética) Incrivel, niio?! Como diz o proprio Fernando Pessoa na continuacdo da carta, parece que estamos “em, meio a um manicOmio”. Mas, acrescentariamos: um manicomio extremamente sadio, logico e coerente. Difi- cil & acreditar que esses heterénimos de fato no existiram, E. para ter uma melhor idéia dessa coerénci trabalho seguinte 6 agrupar as caracteristicas de cada um. clei/tslriuvleria Nota preliminar (fragmento do texto introdutério de Fiegdes do interhidio, denominagiio que engloba a obra completa dos ts heterdnimos) primeiro grau da poesia lirica é aquele em que o poeta, concentrado no seu sentimento, exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma criatura de sentimentos varidveis ¢ vérios, exprimiré como que uma ‘multiplicidade de personages, unificadas somente pelo temperamento € o estilo. Um passo mais, na escala poética, etemos o poeta que ¢ uma criatura de sentimentos varios eficticios, mais imaginativo do que senti- ‘mental, e vivendo cada estado de alma antes pela inteligéncia que pela emogio, Este poeta exprimir-se-& como ‘uma multiplicidade de personagens, unificadas, nao ja pelo temperamento eo estilo, pois que o temperamento esti substituido pela imaginagio, eo sentimento pela inteligéncia, mas tfo-somente pelo simples estilo. Outro ppasso, na mesma escala de despersonalizacio, ou seja, de imaginacdo, e temos 0 poeta que em cada um dos seus estados mentais varios se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza, de sorte quc, vivendo analiticamente esse estado da alma, faz dele como que a expresso de um outro personagem, e, sendo assim, ‘© mesmo estilo tende a variar. Dé-se 0 passo final, ¢ teremos um poeta que seja varios poetas, Um poeta ‘dramitico escrevendo em poesia lirica. Cada grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se ‘tomaré uma personagem, com estilo proprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos, a0s tipicos do poeta na sua pessoa viva. (.) Oo mopeRuIsMo ) 205, Por qualquer motivo temperamental que me nao proponho analisar, nem importa que analise, construt dentro de mim varias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribui poemas varios ue nfo so como eu, nos meus sentimentos ¢ idéias, 0s esereveria Assim tem ests pocmas de Caciro, os de Ricardo Reise os de Alvaro de Campos que serconsderado, Nao hi que busearem quaisquer dees idgias ou sentiments meus, pois muitos deles exprimem idéias que no aceito,sentimentos que nunca tive, Hé simplesmente que os ler como estio, que € alias como se deve let. () 0 cachinbo do Pessoa (Fada ea emand Psonic 1. No texto acima, Femando Pessoa nos fala sobre o processo de despersonalizagdo do poeta. Para tanto, estabelece uma escala de quatro graus. Para melhor compreender o texto, responda: a) A partir de que grau o poeta passa a substituir sentimento pela inteligéncia? b) A partir de que grau se concretiza o processo de despersonalizagio, variando, até mesmo, 0 estilo do poeta? No quarto etiltimo grau dessa escala, dado 0 passo final, temos a completa despersonalizacio, que nio € apenas a variagio do estilo: o poeta “eria” outros poetas. Esses “outros poetas” tém a mesma visio de mundo do poeta-criador? Considerando a escala proposta por Fernando Pessoa, faa as relagdes: (2) 1 grau (@) o temperamento varia, o estilo permanece tinico (2) 2 grau_(b) 0 poeta se multiptica em outros poetas (3) 3" grau_ (©) a produgio poética é unificada pelo temperamento ecestilo (4)4 grau_ (4) oestilo-e o temperamento 2. Quando um autor de teatro ou de romances cria personagens que pensam, agem, defendem suas idéias, enfim, tém uma vida propria (que niio pode ser confundida com a do autor), voce diria que ele esté mais proximo de que grau, na escala estabelecida por Fernando Pessoa? Em virias de suas composigdes, Chico Buarque assume uma persona feminina; s20 exemplos “Atras da porta”, “Tatuagem”, “Com agticar € com afeto”, “Olhos nos olhos", entre outras. Nessas composigdes, através de um trabalho de imaginagdo e intelecto, 0 autor expressa sentimentos que nio sio os seus, mas de variados ssonagens femininos, Entretanto, em todas elas podemos reconhecer o estilo inconfundivel de seu autor. Em que grau dessa escala voce situaria Chico Buarque? assim este tipo de poeta lirico & em geral monocérdio, ¢ 0s scus poemas giram em torno de eral pequeno, de emogGes, Por isso, neste género de pootas, & vulgar dizer-se, porque com razo, que um é ‘um poeta do amor’, outro ‘um poeta da saudade’, um terceiro ‘um poeta da tisteza’." (Fernando Pessoa) determinado niimero, em ‘A que grau dessa escala se refere o texto acima? . No ultimo pardigrafo do texto, Femando Pessoa situa sua obra poética em relagio a essa escala, Em qual grau’ Justifique

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