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KATE MILLETT

ser, mas também, sem dúvida, o que actualmente toda a rapa-


riga consciente ambicionará para si. Ela quer ser livre; ela
está louca por escapar, aprender, trabalhar, viajar. Ela inveja
a cada homem a sua ocupação, a John a sua profissão de
médico, a Paul as suas pesquisas de erudito, tanto como lhes
inveja a educação. Ambos beneficiaram da melhor instrução
possível, que lhes foi dada como preparação para a vida, Lucy
nunca tivera nada de tão precioso:

[...] Retratem-me durante os próximos oito anos


como um barco em repouso sob um tempo calmo, numa
enseada lisa como um espelho — o timoneiro esten-
dido na ponte, rosto virado para o céu, olhos fecha-
dos. [... ] Se se pensar que numerosas mulheres e rapa-
rigas passam mais ou menos as suas vidas deste
modo — porque não eu, tal como elas? [...] Contudo,
deve dizer-se que, neste caso, terei de certo modo
caído da borda ou terá talvez havido um naufrágio,
afinal (1).

Ela fora rejeitada da burguesia de modo traumatizante,


sem ter sido preparada para a vida, porque todo o mundo
acreditava que ela esperava subsistir como parasita. No en-
tanto, faltavam-lhe as condições requeridas para tal: um rosto,
relações sociais respeitáveis, e pais que a arrumassem. É uma
serva sem senhor condenada a tornar-se escrava de um salá-
rio, nomeadamente governanta ou professora. A sua única
saída, e é uma tentativa desesperada, consiste em iniciar-se no
mundo dos livros. Villette conta-nos como conseguiu por si
instruir-se nos dois sentidos, tradicional e ao sabor do acaso.
Mas que espécie de trabalho pode Lucy executar; que
ocupações lhe estão abertas? Dama de companhia, ama de
crianças, governanta, mestre-escola? Tudo isto não passa de
variantes, com nomes diferentes, de um mesmo destino servi-
çal. Todas essas ocupações implicam salários de miséria que
só uma longa vida de economia poderia transformar em res-
gate. O estatuto de serviçal comportava outra humilhação que
pesava enormemente com especial rigor sobre os ombros das
mulheres da classe média, que ao arranjarem um emprego des-

(1) Ibid., p. 32.

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POLITICA SEXUAL

ciam um degrau na escala social. (Como dama de companhia,


Lucy reencontra uma antiga colega, agora dona de casa, quando
vinha de fazer uma visita a outra criada na cozinha.) De mais
a mais, neste género de ocupação era necessário estar as vinte
e quatro horas do dia «a postos» e aceitar uma vigilância
permanente, como numa prisão. Lucy apenas pode trabalhar
em circunstâncias que, se lhe trazem a independência econó-
mica, lhe impossibilitam simultaneamente toda a realização
pessoal. Não é, pois, difícil de compreender por que motivos
inveja a satisfação e o statu quo que para Paul e John são
automaticamente dados com a sua profissão. Podemos pergun-
tar-nos, como Lucy o faz incessantemente, se em tais condições
vale realmente a pena trabalhar. Não será mais fácil deixar-se
ir no sonho do príncipe encantado que há-de vir pedir a sua
mão, como o conservadorismo proclama? Ê com efeito tomar
uma medida fácil a fim de obter a segurança e uma posição
social pouco custosa, à falta de melhor. Substituem assim, à
falta de melhor, uma satisfação sexual absolutamente proibida
para as mulheres que trabalham como Lucy.
Villete faz pensar, por vezes, num novo debate entre as
teses opostas de Ruskin e de Mill. Lucy será para sempre a
vítima da alternativa entre a aspiração a encontrar o belo
cavaleiro que há-de libertá-la e o estrénuo realismo de análise
de Mill. Bronté demonstra, no entanto, que conhece bem o
terreno que pisa. Lucy perderia a sua consistência real se não
se encontrasse continuamente a ponto de se sacrificar ao con-
formismo, se não fosse umas vezes pateta e outras sensível e
inteligente. Deste modo, tinha momentos em que ela desejaria
possuir a beleza de Fanshawe e a riqueza de Polly; ocasiões
em que daria alegremente a vida por um olhar de Graham.
para que ele notasse que ela existia. Aprisionada num meio
em que é objecto para-a-vida e para-a-morte de juízos impiedo-
sos fundamentados em critérios artificiais de beleza, Lucy
encontra-se verdadeiramente obsessionada pelo espelho; de
cada vez que se vê, renega a sua existência — recusa olhar-se
mais. Lucy é um dos casos mais interessantes de sentimento
de inferioridade da literatura, despreza o seu ser exterior e
quer forjar uma personalidade odiando-se a si mesma. Mas
vivendo numa sociedade que tem em grande apreço o maso-
quismo, considerando-o normal na mulher, e que para mais lho
ensina a cultivar, Lucy combate e vence pela sedução que con-
seguiu exercer no sadismo de Paul.

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KATE MILLETT

Mas Charlotte Brontë tem de contar com os seus censores


públicos tanto como com os seus censores privados. O que
explica o rumo que toma a sua história, as suas incursões per-
manentes nos meandros da sentimentalidade aos quais a cons-
trange o espírito do tempo com risco da destruição de si mesma.
Todos os romances vitorianos devem terminar por um casa-
mento feliz; sobretudo os escritos por mulheres. Brontê pre-
tende contemporizar. Por um lado sacrifica ao conformismo
casando Paulina Mary e o príncipe John e por outro esquiva-o
graças à fuga de Lucy.
A fuga é o tema que ressurge a cada momento por todo
o livro; Villette lê-se como uma longa meditação sobre o arrom-
bar da clausura. Lucy não desposará Paul, mesmo depois de
o tirano haver suavizado. Ele foi o seu carcereiro ao longo de
páginas e páginas do romance, e a astuciosa cativa que parece
adormecida em Lucy não pensa senão na fuga. Ela simula de
submissa, aprende com ele tudo o que ele lhe pode ensinar, o
segredo da instituição vigente: as suas matemáticas, o seu
latim e a sua autoconfiança. Ela faz o papel de aluno estu-
dioso perante um homem que odeia e que teme as mulheres
inteligentes gabando-se de ter feito perder o lugar à única
mulher docente que tinha sido capaz de lhe desafiar a inte-
ligência. Lucy suporta as impertinências de Paul acerca da
«inferioridade natural das mulheres», com as quais a tortura
durante as lições, deixando-a compreender que a parte do sec-
tarismo do mestre apenas se desvanece quando ela se revela
como boa aprendiza e assim lisonjeia a sua vaidade pedagógica.
No entanto, na sua puerilidade, ele comete um erro, ensinan-
do-lhe como usar as chaves do saber. No momento em que ela
se dá conta, fazendo-se amorável para que ele lhe empreste
dinheiro a fim de poder dirigir o seu próprio estabelecimento
de ensino, coisa a que se decide com coragem libertando-se
da Sr.a Beck — abandona-o. O amável carcereiro não conta mais
para ela, e Paul, que se apaixonara, afoga-se.
Lucy é livre. Livre significa só; acossada a escolher entre
o «amor», no melhor sentido do termo para a época, e a liber-
dade, ela escolhe o individualismo da sua humanidade que
nutrira desde sempre em si, ainda que a expensas da sua vida
sexual. O leitor sentimental bem poderá qualificar Lucy de
«pervertida», mas Charlotte Brontê é bastante perspicaz para
saber que Lucy não poderá viver com um homem do seu meio
social e simultaneamente permanecer livre. Quando Brontê

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