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ABORDAGENS DO P6S-MODERNO AVEO rey A INCREDULIDADE NAS METANARRATIVAS E O SABER MUSICAL CONTEMPORANEO, JOAO PAULO COSTA DO NASCIMENTO 1 A CONDIGAO POS-MODERNA, DE JEAN-FrANcols LYOTARD Contexto No infcio de século XXI, a teoria do pés-modernismo encontra- -se mais estabelecida em relago 20 seu momento de chegada na fi- losofia durante o final da década de 1970 e inicio da década de 1980 do século XX. Apés o aparecimento dos principais trabalhos filos6- ficosnesse periodo, muito jé se refletiu sobre a influéncia dessecon- ceito, sobre suas bases € sobre suas origens, de modo que um ma- peamento do pensamento pos-moderno jé nao escapa totalmente a uma sistematizacio de seus procedimentos, como aconteceu em dé- cadas anteriores. ‘Sao numerosas as publicagées dedicadas a apresentar um pano- rama da teorizagio e do debate em toro do pés-moderno. Como cexemplo, podemos citar a obra de Perry Anderson, As origens da ds-modernidade (1998), a de Cristopher Butler, Postmodernism: A Very Short Introduction (2002), oua de Steven Connor, Cultura pés- -modemna: introducdo as teorias do contempordneo (1992). A essas obras soma-se uma grande quantidade de compéndios que apresen- ‘tam uma visdo panoramica dos mais importantes influentes auto- res para 0 debate pés-moderno, acompanhada de artigos e ensaios referentes ao tema em sua relacdo com as mais diferentes éreas, como 22. JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO asartes €as ciéncias humanas. Esse é0 caso do Compéndio Routledge para o pés-modemismo, editado por Stuart Sim, autor do texto de apresentagio da diversidade de teorias relacionadas ao pés-moder- nismo. A constatacdo da existéncia de uma vasta lista de publica- ‘gbesa respeito de taislinhas tedricas exime-nos da responsabilidade de tragé-las novamente aqui. No entanto, algumas informagdes se- io fornecidas com o objetivo de ilustrar o momento histérico do debate no qual A condicao pés-mcderna foi publicado. Perry Anderson, em As origens da pés-modernidade, traga um historic do termo e da ideia de ps-modernismo, dividindo o pa- znorama em quatro etapas: primeérdios, cristalizago, compreensioe efeitos posteriores. Aos primérdios ele vincula Federico de Onis, Amnold Toynbee, Charles Olson, Wright Mills, Irving Howe, Harry Levin, Leslie Fedlere Amitai Etzioni. A geracao da crstalizagao esta ligadaa Willian Spanos, Ihab Hassan, Robert Venturi, Denise Scott ‘Brown. Steven Izenour. RobertStern. Charles Jencks. Jean-Francois, Lyotard e Jiirgen Habermas. A compreensio é um momento reser- vado a obra de Fredric Jameson. Os efeitos posteriores esto rela- ionados a Terry Eagleton, a David Harvey e a Alex Callinicos, © livro de Anderson nao apresenta alguns autores importantes para 0 debate pés-moderno. No entanto, ele possui grande mérito por se propor a pensar uma linha histérica evolutiva para 0 conceito e por apresentar um quadro detalhado das teorias anteriores a década de 1970, quando a nogao de pos-moderno se restringia aos dominios da critica literdria e das cigncias sociais. Steven Connor, em Cultura pis-modema, de 1989, atribui a trés filbsofos 0 papel de orientadores das discussdes da pés-modernida- de, Dois deles, Lyotard e Jameson, coincidem com o panorama de Anderson. © outro é Jean Baudrillard. A presenga desse nome em obras dedicadas a tragar um panorama das teorias do pés-modernis- mo abre o precedente para a inclusdo de uma série de outros autores na lista dos pensadores influentes nos debates dedicados ao tema. ‘Nomes como Michel Focault, Jacques Derrida, Luce Irigaray, Gilles ‘Deleuze e Félix Guatari tim certaimportincia para uma compreen- ‘io da pés-madernidade em um campo mais amplo de influéncia, [ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 23 porém, a semelhanga de Baudrillard, nao sereportam aos termos pés- -modernismo/pés-modemo/pés modernidade em suas obras mais significativas. Esses filésofos, muitas vezes agrupados soba designa- io de desconstrucionistas ou de pés-estruturalistas, so, por esse ‘motivo, tidos também como pilares das nogées de pés-modernismo. Stuart Sim, em seu ensaio Postmodernism and Philosophy (1999), cenfatiza o grupo de pensadores designados comumente como pés- -estruturalistas ou desconstrucionistas (Derrida, Focault, Deleuze e Guatari). Além desses autores mais inclinados a desconstrugio do legadoestruturalista, Sim inclui, no seu panorama filos6fico do pés- -modernismo, Lyotard, Habermas, Jameson e Eagleton (nomes jé comentados por Anderson) acrescidos de outros pensadores como Baudrillard, Ernest Laclau, Chantal Moufe e Richard Rorty. Ele atribui a estes tltimos a designayao de “pés-marxistas” — eles se- riam nao somente dedicados a superagao do legado marxista como também intelectuais devotados & revisio e ampliaco do marxismo (Sim, 1999, p.11). Nessa discussio, Sim tenta uma separacio: por um lado coloca ospensadores que, dluz de teoria marxista, negama legitimidade da nogdo de pés-modernismo sob o argumento de que a aceitacao des- ‘sanogio seria aceitasdo da ordem capitalista contemporanea, colo- candoo pés-modemismo como idzologicamente suspeito; por outro, 1 pensadores que, imersos no processo de desconstrugao das auto- ridades modernas intelectuais, politicas e culturais, veem 0 pés- -modernismo como uma perspectiva fértl ao desenvolvimento de novas formas do pensar. A especificidade de Jean-Francois Lyotard Em 1979, quando foi publicado o original francés de A condigio pds-moderna, 0 debate sobre ops-modernismo ja se encontravaefer- vvescentenos dominios da critica literaria, da arquitetura eda socio- logia, em especial da sociologia norte-americana. Naquele momen- to, 2 utilizacdo dos termos pés-moderno, pés-modernismo ou 24 JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO ‘pOs-modernidade havia transposto em muito aquela origem embrio- nria da critica literdria latino-arericana da década de 1930. Havia sido transposta, também, a utilizacio realizada pelos intelectuais, norte-americanos e ingleses, na sua maioria criticos de literatura e sociélogos. Algo da nova denominacio solidificava-se na obrae nos escritos de Robert Venturi, Charles Jenks e Ihab Hassan Diferentemente da década de 1930 ou da década de 1950, os fins dda década de 1970 a viviam o grande impacto das mudangas de con- texto sécio-historico iniciadas depois da Segunda Guerra Mundial. © colapso de valores humanos presenciado durante a guerra com- pletava pouco mais de trinta anos e possibilitava reflexdes sobre os ramos da humanidade até entdo pouco imaginadas. Assim, falarem. [p5s-modernismo nao era somente um refluxo ao modernismo euro- peu, como o forana década de 1930 na América Latina.*Tampouco se restringia a um debate decorrente apenas do despertar de uma nova e promissora poténcia econimica como ocorreu com os Esta- dos Unidos na década de 1950, Nesse momento, 0 otimismo econé- rico norte-americano de antes jédava sinais de uma certa decadén- cia e de uma possivel revisio de saas metas. E nesse contexto, mediante as diversas mudangas de transmis so e armazenamento de informegdes proporcionadas pela expan- sio da informética, que o Conselho das Universidades do estado de Quebec encomenda a Lyotard um relatério sobre o conhecimento no mundo atual. As condigdes scb as quais o livro foi escrito reve- lam as opgies pelo titulo e subtitulo da obra ‘Além da compreensdo do mencionado contexto no qual A eon- digao fo escrito, deve-se atentar para o percurso tracado por Lyotard até 1979. Lyotard havia destinado grande parte de sua obra ao tra- tamento de questoes referentes destéticae politica. Viveu na Ar- lia durante parte de sua juventude, onde lecionou filosofiae inte- 1 A utilzagdo do terme pée-modernismo na critica literria de lingua espanhola durante a década de 1930, realizada por Federico de Onis, refere-sea um “re- ‘luxo concervador dentro do prépri modernism" presente na poesia latino americana eteativo, prem, 20 modernismo europeu (Anderson, 1998, p.10) ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 25 grou um movimento de forte cunho revolucionério e marxista cha- mado Socialisme ou Barbarie. Durante esse periodo, escreveu uma série de ensaios reconhecidamente polémicos a respeito da situacéo na Argélia, editados posteriormente em Political Writings (1993). Segundo Simon Malpas, 1966 marca o ano do desencantamento de Lyotard com o marxismo, ano em que ele “deixou o Socialismo ou Barbarie para comecar a desenvolver a sua prépria filosofia politi- a" (2003, p.5). A partir de 1968, Lyotard volta-se para as questdes da relagio entre poder e conhecimento. Sua tese de doutorado e sua primeira obra de grande porte, Discours, Figure, datam de 1971. Ela coloca, a partir de questdes aparentemente restritas ao dominio da estética, conclusées importantes sobre fundamentos da génese do conheci- ‘mento, de forma a acentuara importincia da psicanélise e dos escri- tos de Freud para essa compreensdo. Em 1974 publica L’économie Libidinale. ivro pelo qual rejeita de até certo ponto os grandes es- «quemas de pensamento tais como 0 marxismo. De certa forma, os ‘momentos anteriores a publicagio de A condigdo revelam que, soba influéncia da psicanélise, Lyotard realiza 0 cruzamento de alguns dominios filoséficos distintos. Inicialmente, os dois mais aparentes toa filosofialigada arte e politica. Mas aepistemologia écoloca- da também em foco quando ele trata da estética e da politica orien- tado pelas ideias freudianas a respeito dos esquemas psfquicos que subjazem na base de todo o conhecimento. Isso justificaria a exis- ‘téncia de um olhar peculiar sobre natureza eo estado do saber con- ‘tempordneo relatados sob a sua rubrica, mesmo nao sendo a filoso- fia da ciéncia o seu dominio especifico. Sociedade pés-industrial e cultura pés-moderna (© paragrafo de abertura de A condigo ja se mostra muito clucidativo quanto aos elementos que seriam desenvolvidos por Lyotard: 26 JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO Esteestudo tem por objetivo acondigiodo saber nas sociedades mais desenvolvidas. Decidiu-se nomeé-la "pis-moderna”. A palavraestaem ‘uso no continente americano, na escrita de socidlogos e citicos. Ela de- signa o estado da cultura apés as transformagbes que afetaram a regra, dos jogos da cigncia, da literatura e das artes a partir do fim do século XIX. Essas transformaydes serdo situadas aqui relativamente a crisedas narrativas. (2003, p.11) Nesse trecho ja se Iéa localizayao exata de sua discussio, focali- zando como pés-moderna uma condicio cultural presente nas so- ciedades mais desenvolvidas. Essas sociedades sio marcadas pelo desenvolvimento econdmico atrelado ao desenvolvimento tecnolé- sgico que, a partir as transformagées cientificas e artisticas iniciadas no final do século XIX, culminam, no pés-Segunda Guerra Mun- dial, emum verdadeiro apogeu. Essa condico esté definida pelacrise das narrativas, ou como abordaremos mais adiante, a crise das me- tanarrativas de legitimagao do saber. No inicio do livro, a questao clas metanarrativas encontra-se exposta da seguinte forma: ‘A Cioca esd originariamente em conflto com as narrativas. De acordo com os seus proprioscrittios, a maior parte destas aparece como fabulas. Mas ciéncia, do mesmo modo que sendo reduz a enunciagio 4e regularidades tise procuraoverdadeiro, tem de legitimar as suas egras do jogo, Por iso ela mantém sobre sew proprio estatuto um dis- corso de legitimacio a que se chamou “filosofia". Quando este meta- iscurso recorreexplicitamenteaesta ou dquela narrative, como. dia- léticado Espirito, a hermentutice do sentido, aemancipacio do sujeto racional ou trabalhador, 0 desenvolvimento da riqueza, decide-se cha- ‘mar “modea' a citncia que aes se refere para legitmas[..] Simplificando ao extremo,considera-se que o pés-moderno éa in- credulidade em relagdo as metanarrativas. (idem, p.11-2) Esses dois trechos, presentes na introdugio do livro, circunscre- ‘vem bem a discussio a ser desenvolvida, Malpas alerta-nos sobre 0 seguinte: “Provavelmente, o melhor lugar para comecara tentativa de descobrir sobre o que A condigiio pés-modema esta falando é pelo [ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 27 cexame estrito de seu subtitulo: um relatério sobre o saber.” (Malpas, 2003, p.16). Dois aspectos ressaltam nessa observacio: a escritura de um relatério e seu respectivo essunto —o saber. Malpas observa que um relatério, em geral, “é um escrito formal dos resultados de ‘uma investigagio dentro de um assunto especifico, normalmente realizada por peritos, que tracam um conjunto de evidéncias dispo- niveis no sentido de chegar a uma conclusio especifica” (idem, ‘ibidem). A condigao apresenta, em suas notas de rodapé, uma vasta re- feréncia de publicagées, de documentos ede outros relatdrios, mui tos deles produzidos por instituigdes governamentais americanas e ceuropeias demonstrando certa condigado de pericia de seu autor. Ele ccumprea tarefa de tracar um relato sobre o saber na medida em que propicia uma visio abrangente scbre as tendéncias da produgio do conhecimento em uma época determinada, definindo, ao longo de seu desenvolvimento. um campode trabalho. uma hipétese bisicae ‘um método especifico. Nao pretende, portanto, elencar uma série de descobertas etrabalhos cientificos importantes nas mais diferen- tes dreas especificas da produgac cientifica como uma atualizagao das mais novas descobertascientificas. Ao contrario, Lyotard foca- liza no relato uma questo mais fundamental e organizadora: a na- tureza eo estado do saber. O carater de elatério, um escrito de circunstancia, induziuacri- ticas por parte de seus comentadares quanto ao poder de descriga0.€ de alcance da formulacio lyotardiana, acentuando-se que o saber (mais especificamente as questdes epistemol6gicas) nao era o tema sobre o qual Lyotard se debrugara na maior parte de seus escritos. Estes davam conta, em geral, de questées pertinentes a estética ea politica, Mas o que esta na base das consideragées de Lyotard no relatério éa conexao entre o saber, o vinculo social ea legitimidadea cle conferida pelo consenso de seus sabedores em termos de verdade ede finalidade. Dessa forma, as questées de produgio, transmissio cearmazenamento do conhecimento estao fortemente ligadas as pri- ticas culturais, a formagii da identidade subjetivae ao vinculo entre os integrantes de uma suposta sociedade. 2B. JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO ‘Como se verifica no paragrafo de abertura da obra, o conheci- ‘mento colocado em discussio é aquele presente nas “sociedades mais, desenvolvidas”. Ao apresenter, no decorrer da obra, o que 6 entendido como seu campo de irvestigacao, Lyotard define de for- ‘ma mais satisfatéria o que se entende por sociedades mais desenvol- vidas: elas seriam as "sociedades informatizadas” (2003, p.15). O foco da anilise de A condicéo pés-moderna “é a natureza eo estado [do] conhecimento: qual conhecimento &¢ como cle é gerado, orga- nizado e empregado” (Malpas, 2003, p.18) nas sociedades influen- ciadas etransformadas por tais avangos. Algo se altera na dindmica e na avaliagio do conhecimento dentro dessas sociedades, o que ‘marcaria uma mudanga cultural euma mudanga na estrutura do vin- culo social A hipétese de A condigao no campo de investigagdo que sio as sociedades mais desenvolvidas cu informatizadas “é que o saber muda de estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram na era dita pés-industrial e as culturas na era dita pés-moderna” (Lyotard, 2003, p.15). Alguns escritos e seus respectivos autores sio citados por Lyotard como furdamentos dessa associagao. Den- tre eles, podemos destacar La société postindusrielle (1969), de A. ‘Touraine; The Coming of Post-Industrial Society (1973), de D. Bell, The Dismemberment of Orpheus: Toward a Post Modern Literature (1971), de Ihab Hassan, De Touraine e Bell, Lyotard retira a ideia de sociedade pés-industrial, enquanto o termo pés-moderno é to- ‘mado “diretamente da Hassan. Trés anos antes, ele tinha dado uma conferéncia em Milwaukee, orgenizada por Hassan, sobre 0 pos- -moderno nas artes performaticas” (Anderson, 1999, p.31) ‘Anderson ainda acrescenta: Para Lyotard, achegada dara pn-moderalignva-seao surginento de ua sociedade pés-industria ~ teoizada por Daniel Bell e Alain, “Tete alo Sohal cnet pcipl faa Seb ‘mica de producao numa corrente desviada dos Estados nacionais. (idem, p32) [ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 29 ‘A passagem para a sociedade pés-industrial “comesou, pelo ‘menos, nos fins dos anos 50” (Lyotard, 2003, p.15). As transfor- ‘mages que interessam a Lyotard nesta passagem para a sociedade 1pés-industrial sio aquelas relativas incidéncia das transformagbes tecnologicas sobre o saber, afetando suas duas principais fungées: a investigagio e a transmissio doconhecimento. Essa mudanga na investigagio e na comunicagio das informagées, por sua vez, gera ‘uma mudanga na sua utilizaglo e na sua avaliagio. © armazena- mento e transmissdo das informagées trazem ao saber certa inde- pendéncia em relagio ao seu sabedor, 0 que possbilita a comercia- lizago do conhecimento. O conhecimento ganha cariter de mercadoria, podendo ser comprado e vendido, tornando-se a base do poder na sociedade pés-industrial. E notivel que o conhecimente disputado em termos de politicas ‘mundiais como fonte de poder esta diretamente vinculado a ciéncia eo gerenciamento de informactes. Essas relagées. condensadas por Lyotard, possuem, em certa medida, um carater profético quando se observa o aumento da preocupacio dos Estados, empresas e ins- tituigdes de pesquisa com formalizagao das regras de patentes inte- lectuais e propriedades cientificas. Nesse processo, a mercantiliza- ‘dodo conhecimento éacompanhada por uma descrenca nos antigos objetivos que impulsionavam e legitimavam sua produglo. O co- nhecimento como mercadoria deixa de ser um objetivo por sis, es- tando a servigo de outras regras de legitimidade e de utilidade. Mas é interpretada como aameaca do terror, ou seja, a ameaca de extingdo de jogos ejogadores que nio se alinham com aexigéncia de eficiéncia de um sistema geral. Ea pos- sibilidade iminente de extingdo de um jogador, de sua exclusto do jogodo saber, seria a base do desmanche do vinculo social, por isso, terror. No entanto, aincredulidade nas metanarrativas libera ara- 2o para uma revisio nos seus mais variados termos, jé que Lyotard identifica essas metanarrativas de legitimagao da ciéncia como nar- rativas culturalmente localizadas, a despeito de suas pretensdes de universalidade, salientando suas vocagdes para a dominagio impe- talista de outras narrativas ndo earopeias. Ele pontua, ainda, que a inexisténcia de metanarrativas de legiti- ‘magio nfo exclui a existéncia de pequenas narrativas, ou narrativas locais, nem exclui a possibilidade de retomada futura de grandes, narrativas. Essa abertura para a possibilidade de uma existéncia fu- ‘tura de uma metanarrativa satisfatdria € um primeiro vislumbre do «que, mais tarde, 0 autor chamaria de “reescrita da modernidade”’ “este titulo [referente ao texto Reescrever a modemnidade, presente no ivro O inumano], reesctevera modernidade, [...], parece-mepre- ferivel as rubricas habituais como 'pés-modernidade’, ‘pés-moder- nismo’, ‘p6s-moderno’, sob as quais € colocado geralmente este tipo dereflexaio” (1997, p.33). ‘A mudanga terminolégica, perém, nio invalida o fato de que o ‘termo pés-moderno, derivado de A condigdo, permaneceu uma “ru- brica” constante da reflexao contemporénea, com essa obra conti- nuando a influenciar pensadores de diferentes areas das humanida- 56 JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO des. A condigao € um livro que, zo dedicar-se a relatar 0 estado do saber, concentra-se em questdes relacionadas ao conhecimento cien- tifico, néo detalhando, portanto, as relagées existentes entre essa condigio eo atual estado das artes. Essa articulacdo nao deixaria de ser feita, visto que o filésofo dedicou a maior parte de seus trabalhos aquestées daarte eda politica, o quecolocao relato de 1979 em uma pposigdo excepcional dentro do conjunto de sua obra. Complemen- tandoa primeira formulagao do p5s-moderno de Lyotard com con- ceitos presentes em obras posteriores a essa, verificamos outros ele- mentos que guiam as interpretagdes feitas por diversos autores a respeito de suas posigdes referentes ao pés-modernismo, incluindo os debates referentes a arte e a miisica.* sublime pés-moderno e a paralogia Em Answering the Question: What is Postmodernism?,* Lyotard presenta uma proposta de definigio do que seria pés-modernismo quando o assunto principal é arte. O condutor para tal proposta éo conceito de “sublime”, Herdado pelo século XX de uma tradigao de pensadores romanticos, o conceito sofre, em sua leitura, diversas particularizacées. Eleéretirado, mais especificamente, das obras de Edmund Burke e de Kant para apontar trés momentos das artes: 0 realismo, o modernismo e o pés-modernismo. O sublime é redefinido por Lyotard da seguinte forma: ‘O sentimento sublime, que étambém o sentimento do sublime, é, de acordo com Kant, uma poderosa e ambigua emogdo: ela carregaam- 8 Valesaientarquel_yotard também tem passagens nas quaistece comentériosa espito da musica. Porém, este assanto no toma proporgées muita grandes dentro de sua obra, {9 Eeoe texto foi publicado pela primeira vez na revista Critgue #19, em abril de 1982, trésanos, portanto,apésa primeira edigéo de La Contin postmodern, pela Les Edition Minuit de Paris, er: 1979, Na primeir edigionorte-america nada obr, ele foi adicionado come um apindicediigido as questies do pos moderne na ate ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 57 bos prazer e dor. Ou antes, seu prazer procede da dor. Na tradigio da filosofia do sujeito derivada de Agostinho e Descartes — que Kant nio) questiona radicalmente ~essa contradigao [..] desenvolve-se como um conflito entre todas as faculdades do sujeto, entre «faculdade de con- ceber algo ea faculdade de “representat” algo. (idem, p.6) Verifica-se, em Howard Caygill, um verbete que mapeia bem a utilizagao feita por Kant de tal conceito. Ela nos ajuda a compreen- der a proposta de Lyotard. “O sublime aparece numa lista de con- ceitos parcialmente analisaveis"” zcompanhado de outros sentimen- 10s, tais como “belo”, “repugnant”, “espago” e “tempo” (Cayaill, 2000, p.297). Segundo Kant, beloe sublime nao sio analisaveis em virtude do fato de resultarem ““nio tanto da natureza de coisas ex- ternas que o suscitam quanto da propria disposigdo de cada pessoa ppara ser induzida por eles ao prazer ea dor" (idem, ibidem). A ca- racterizagio oferecida por Kant para sentimento de sublime ocor re, principalmente, "por meio de contraste com o belo: ambos apra- zem, mas enquanto o belo encasta, o sublime ‘comove™ (idem, ibidem). Na Critica do juizo, o conceito é ampliado para incluir “o sentimento despertado pelo fracasso da imaginacao para compreen- der o ‘absolutamente grande’, quer em termos de medida (sublime ‘matemitico) ou de poder (dinamicamente sublime)’ Central na definigéo de sublime é 0 modo como cle parece “trans- reir os Fins de nossa faculdade de julgamento, adaptar-se mal nossa faculdade de apresentacio e constituir, por assim dizer, uma afronta a imaginaglo" (Cl §23) Entretanto, embora o sublime sea, com efeito, ‘um entrave (Hemmung) para as foras vitals, ele € “seguido imediata- ‘mente por uma descarga por iss> mesmo ainda mais poderosa (§23) Esse movimento ocorre porque ao entrave &faculdade do jizo segue- -se uma concretizagio do poder eextenso das ideias da raza (§27). sublime nanatureza nada mais € que um reflexo das ideas da razdo que lemos nela por meio da sub-recepsi0, 04 a "confusio de um respeito pelo objeto com o respeito pela ideia de humanidade em nosso sujeito" (27). Esse aspecto no epresentivel do sublime tornou. “Analitica do sublime” extzemamente significatva para as interpretacées de Derrida 5B. JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO «Lyotard que sublinham os modos como a filosofia eritica é perpetua- ‘mente interrompida por momentos irefreaveis de excesso, como o su- bblime. (idem, p.298) ‘Assim, 0 sentimento de Sublime é marcado por um lapso das fa- culdades, o que gera uma incompatibilidade paradoxal nao existen- tenosentimento do belo. © belo proporciona um sentimento de pra- zer resultante da capacidade de representar 0 concebido, da alianca entre imaginacio erepresentacio, do acordo comunicativo entre essas das faculdades do sujeito coeso ¢ bem-conformado. Essa 6a estéti- cado “gosto”. No sublime, tal prazer apresenta-se em uma condi- .¢io ambigua com a dor provenieste do lapso, da falta de acordo en- treas faculdades resultando no sentimento de desconexio interna e instabilidade subjetiva (Lyotard, 1993, p.21-9). Desse modo, a es- tética do gosto presta-se melhor a uma estética mimética na qual os esquemas de entendimento e fruigdo artistica se coadunam com a boa representacdo figurativa da natureza entendida como fonte do real. Lsse € via do "realismo” que, tanto nas obras pré-modernis- tas quanto em algumas manifesta;bes da arte contemporinea, utii- zaa imitagio das formas reais/naturaisno sentido de estabelecer um cédigo comunicativo nas obras. Jaa estética moderna, a0 peutar-se por um afastamento da rmimésis, privilegiaré o sentimento de sublime: “com a estética do sublime, a aposta das artes durante o século XIX e XX é testemu- nhar do indeterminado existente” (1997, p.106). Isso sejuntaacon- cepgio moderna de busca do “absoluto”, pois a expresso deste € marcada por esse carater irrepresentavel. E na estética do sublime que “a arte moderna (incluindo a literatura) encontra seu impeto e na qual a logica da vanguarda fixa seus axiomas” (Lyotard, 1992, p.6). O movimento de abstragao, percebido na arte modernista dos fins do século XIX e no século XX, responde a essa tendéncia de buscar oirrepresentavel e proporcionar um sentimento nao da bele- ado gosto, e sim do sublime. No entanto, o sublime pode aparecer de dois modos, um mo- demo e outro pés-moderno, Lyotard chama de “moderna aarte que [ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA. 59 devota sua ‘técnica trivial’, como Diderot a chamou, a apresentar a cexisténcia de algo irrepresentavel. Mostrando que existe alguma coi- ‘sa que nés podemos conceber que nés no podemos ver ou mos- tat". A expressio dessa contradigio—a contradig&o de mostrar algo que nao pode ser mostrado, de dizer o indizivel ~ da-se por uma “representagio negativa”. Isso corre, na pintura moderna, pelo “ evite da figuracdo ou representagdo”’: dito de outro modo, pela abs- ‘rasa formal Mas a diferenga entre o sublime na arte moderna e na pés-mo- derma é apenas uma diferenga de “acento”, de énfase. No moderno, acento recai na “inadequagio da faculdade de representagio, na nostalgia da presenga experienciada pelo sujeito humano e no obs- ccuro e itil desejo que o anima a éespeito de tudo”. No pés-moder- no, © acento recai “sobre a faculdade de conceber, na qual alguém ppoderia clamar a sua ‘inumanidade’ e na extensdo de ser ejubilagao «que provém da invencio de novas regras do jogo. tanto pictéricas. artisticas, ou quaisquer outras” (idem, p.8). Mostramos outro modo de esbogar tal diferenga, descrevendo, primeiramente, o moderno: Acestética moderna é uma estitica do sublime, mas ela € nostalgica; cla permite que o inrepresentavel ja invocado apenas como auséncia de contetido, enquanto a forma, cbrigatria para sua consistincia reco- nhecivel, continua a oferecer, aoletor e ao espectador, material para cconsolagioc prazer. (idem, ibidem) Posteriormente, 0 pés-moderno: Opés-moderno seria aquele cue no modernoiinvocaorrepresenti- vel em apresentagdo dele mesmo, que recusa a consola¢do das formas ‘corretas, que recusa 0 consenso co gosto permitindo a experiéncia co- ‘mum da nostalgia pelo impossivel, e inquire em novas representagées— ‘do para ter prazer nelas, mas para melhor produzir 0 sentimento de ‘que existe algo ircepzesentivel. (Hem, ibidem) ‘Alem de pontuar a presenga de valorizacio da categoria do subli- ‘me, tanto na arte moderna quanto na pés-moderna, Lyotard insere 60. JOK0 PAULO COSTA DO NASCIMENTO cem sua explanagao outra afirmacdo que evidencia o desligamento dessa separagdo de uma possivel cronologia linear hist6rica dos esti- los. Ao responder “o que é pés-modernismo?”, ele afirma que esse é “indubitavelmente, parte do moderno”. O que se chama de pés- -moderno em arte nio pode ser ertendido como “o modernismo em seu fim”, mas como o “modernismo em estado nascente”. Essa afir- ‘magio, aparentemente paradoxal, desmancha oentendimentodeque © pés-modernismo seria um estigio da arte posterior ao modernismo finalizado, que, por sua vez, seria posterior ao realismo figurativo. Aatitude de questionamento das regras do jogo da arte, o que é entendido come pés-modemno, éanterior mesmo ao modemno: “uma cobra pode tornar-se moderna apenas se ela € primeito pés-moder- nna” (idem, p.7). Nessa afirmagao, esta escondida a visio de que o sublime moderno sofre uma tentativa de conformagdo de sua irrepresentabilidade e de sua imponderabilidade a matematizagao do abstracionismo formal. enquanto o sublime pés-modemo pro- cura evento imponderivel em simesmo. A sensagao da existéncia do imponderavel é anterior a tentativa de sua representagio. O mo- demnismo tenta reestruturar esse representaglo, enquanto 0 pés- -modernismo tenta vivé-la como um evento em si mesmo. ‘O sublime, apresentado em simesmo, aqui, é associado ao.card- ter paradoxal, ao elemento “desestruturador” do sistema explana- t6rio que, no moderno, ainda encontra o consolo das formas, mes- ‘mo que abstratas, Portanto, aatitude do artista pés-moderno naoé sgovernada por regras a priori: (Oartista ouescritor pos-modzrno esta na posigao de filésofo:o tex- to queecleescreve ou a obra que ele cria no €, em principio, governada por regras preestabelecidas e ndo pode ser julgada de acordo com um julgamento determinante pela aplicacao de categorias dadas para esse texto ou obra. Essasregrase categoias sio oque a obra ou o texto estio investigando. (idem, p.8)" 10 E interessante observar como a poctura de Lyotard se assemelha a de Arthur Dantonoque diz respeitoaofim de uma narrativasobrea arte, oque caracter- [ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA. 61 Em Answering the Question: What is Postmodemnism?, o campo de discussdo estética limita-se as artes visuais ea literatura. Sua no- gio de realismo envolve comentérios a respeito da configuragio de uma demanda contemporanea — 20 redor da década de 1980— pela “suspensao da experimentacao artistica” e pela “liquidacao do lega- do das vanguardas” (1992, p.3). “Nesses varios convites a suspen- der a experimentagio artistica existe o mesmo chamado a ordem, 0 desejo pela unidade, identidade, seguranga e popularidade (no sen- ‘ido de[...] achar um péblica)” (idem, p.2) Lyotard avalia o realismo pela sua intengao comunicativa na es- tabilizagdo de um referente reconhecivel que permite a identifica- ‘gdo de um significado, de uma sintaxe e de um léxico nas manifesta~ ‘g6es artisticas, Isso possibilitarie 0 reconhecimento de imagens e ssequeéncias decodificadas, como sea arte portasse um cédigo comu- nicativo (idem, p.3). Com o advento da fotografia edo cinema, tan- to pintura quanto literatura se viram obrigadas a revisar suas pers- pectivas realistcas, Contemporaneamente,o realismo desempenha © papel da satisfagio do desejo de unidade, de ordem, de identidade cede popularidade,e se pauta pele recuperasio de comunidades co- municativas. Esse realismo traduz-se no ecletismo contemporaneo, que se guia pela reconhecibilidade de padrdes culturais bem formatados — pastiches — e na fruicdo artistica em fungdo “gosto”, ‘ou seja, na multiplicidade de produtos culturalmente padronizados, como as possibilidadescitadas por Lyotard: “vocé ouvereggae, voc’ assistea um faroeste, voc come um MacDonald's ao meio-diaeuma cculinéria local a noite [...] £ facil encontrar um piblico para obras aria pés-moderno. Mas Danto atibui inicio do pis-modernismo artistico justamente a fato dea pritica artistic elega o questionamento filosético- brea arte’ propria flosofia, de moda que a arefa de descobrir a definigso mais profunda da arte deixa de er uma taefa dos artistas. No momento das artes vinuais da déeada de 1960 dos Estados Unidos, Lyotard reconhecea presen do “sublimeem si mesmo" nas arts performativatenos trabalhos de Newman (Lyotard, 1997, p.95-12,p-139-146,,eDanto reconhece o momento iio da saree moderna no questionamento scbre anatureza da are expresso nas obras de artistas como Andy Warhol (Darto, 2006, p.3-19) 62. JOKO PAULO COSTA DO NASCIMENTO cecléticas”. E Lyotard ainda acresenta que “esse realismo do qual- quer coisa vaié o realismo do dinheiro: na auséncia de critério estéti- cos6 € possivel e itil medir uma cbra de arte pelo lucro que ela pro- duz” (grifo nosso). Nessas passagens, oque esta exposto éuma das possbilidades de legitimacao do saber pés-modern9. Ele pode se legitimar pela para- logia, o encontro com o paradoxo, ou pela performance, a eficiéncia dentro de uma concepsio sistémica do capitalismo. Ea possibilidade aqui descrita €a segunda: “a investigacao artisticae literdriaesta du- plamente ameagada: pelas ‘poiticis cultura’ de um lado, pelo mer- cadode obrase livros do outro” (idem, p.5). Nessa possibilidade exis- teaproducio de obrasdirecionades aum determinado piblicoe bem. formatadas para atender as suas demandas de perfil Maso realismo, ja presente er um passado da arte e renascente noecletismo cultural contemporaneo, éresultadode uma estéticado ‘gosto na qual a expectativa por um prazer comunicativo imediato é saciada. A esse realismo contrapie-se uma estética do sublime. A cexplanasio de Lyotard traz consigo a possibilidade de que a coexis- tncia de realismo, modernismo e pés-modernismo seja possivel na diacronia historica. No entanto, a necessidade de experimentagao relaciona-se diretamente com as vanguardas artisticas. E o contexto cultural posterior a década de 1980 porta uma demanda em favor da “liquidagao do legado das vanguardas”, da “suspensio da experi- ‘mentasio artistica”, tendendo a reutralizar a busca pelo paradoxal, equivalente, aqui, ao irrepresentivel, ao sublime. Quando nos re- portamos & Condigdo, resgatamos as duas possbilidades de legiti- ‘magiodo saber pés-moderno, asaber, legitimacio pela performan- .e (eficiéncia econémica) ea legitimagao pela paralogia (paradoxo). ‘A ameaga posta por Lyotard da possibilidade de legitimagao pela ficigncia, diante da incredulidade nas metanarrativas filoséficas, é a volta a um sistema totalizante, neste caso, o sistema capitalista Sublime pés-moderno e realismo so equivalentes, respectivamen- te, alegitimago do saber pela paralogia ea legitimagao do saber pela performance. Isso explicao porqu’ de orealismo contemporineo no ser tratado explicitamente como uma forma de arte pés-modema, ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 63 pois ele recupera a possibilidade de totalizagao e pretende, pela efi- ciéncia comunicativa,o fim da divida presente no paradoxo. Esse é também o fim da diivida entre paralogia e performatividade, com uma opgdo direcionada a segunda. Nisso Lyotard difere de muitoscriticos daart, inclusive de mui- tos criticos musicais. E possivel abrir a janela de questionamento a respeito das obras sobre as quais Lyotard ampara a sua separaclo entre moderno e pés-moderno. Néo precisamos recorrer a muitas ppassagens para perceber que as obras pés-modernas se encontram zo dominio do que é considerado, por muitos, o proprio modernis- ‘mo musical, enquanto oecletisme, marca do que muitos autores tra- tam soba insignia de pés-modernismo, é chamado, por Lyotard, de realismo. A pesquisa em miisica, ao utilizar essa concepgao de su- blime paraaabordagem do pés-modernismo musical junto com toda problematica da incredulidade nas metanarrativas, tem de se haver, certamente. com o embaraco dessa transposicao. tanto em termos de correspondéncia dos termos quanto em termos de suas respecti- vvas pertinéncias, visto que ofocode Lyotard recai sobre as artes vi- suais ea literatura, Pode-se tentar, portanto, retirar da ideia da incredulidade nas ‘metanarrativas uma resposta que satisfaga a necessidade de enten- dimento do pés-moderno emartee, neste caso especifico, em mt ca, Isso ocorre pela alianga estabelecida com a reflexao sobre a dife- renga entre sublime e belo, possbilitando o reconhecimento da autonomizacio da obra musical junto coma valorizagao do sublime cejunto da recusa da mimesis realist. Malpas afirma que, tanto quanto ‘anogio de paralogia, outras nogdes possuem forca desestabilizado- ra de sistemas, o que possibilita sempre uma analogia com o efeito «que a paralogia exerce na formulasio cientifica. Lyotard escreve: E preciso imaginar um pode: que desestabilize as capacidades de cexplicagéo ¢ que se manifeste pela promulgagio de novas normas de inteligincia ou, se se preferir, pel proposta de novas regras do jogo de linguagem cientifica que cizcunscrevern um nove campo de investiga- ‘slo, (2003, p.122) 64 JOKO PAULO COSTA DO NASCIMENTO (O “poder que desestabilizaa capacidade de explanacao é central para o pensamento de Lyotard e ganha diferentes formas em seu texto”, podendo ser “ligado a termos como ‘diferendo’, ‘sublime’, ‘signo’ e“evento™ (Malpas, 2003, p.31). ‘As metanarrativas, essas narrativas de alta ordem que referen- iam outras narrativas, agrupam em torno de si nao somente os jo- gos de linguagem da verdade ou da ética, mas também o da estética. Somados aos critérios de verdade e de justica, os crtérios da arte sofrem as consequéncias da fragmentagao das metanarrativas. In- dependentemente do juizo estabelecido atualmente sobre essa teo ria, ¢ inegavel sua influéncia e irradiago por todos os setores nos quais a pretensio de entendimento do pés-moderno existe. Reco- hecer o modo como o saber musical se reporta a essas metanarrati- ‘vas e como a condigdo de incredulidadea elas conferida influenciao fato musical p6s-moderno s4o as metas dos préximos capitulos. 2 ABORDAGENS DO POS-MODERNO EM MUSICA ‘As metanarrativas e o modernismo musical por meio do puramente musical ‘Como demonstrado no capitulo anterior, o pés-modernismo, enquanto condigdo cultural contemporinea, é marcado pela incre- dulidade nas metanarrativas de legitimacao do saber. A metanarra- tiva especulativa ea metanarrativa da emancipacdo perderam aca- pacidade de aglutinacao dos diversos saberes ¢ instituigdes sociais| em torno da empreita do conhecimento absoluto e da liberdade ab- soluta. A incapacidade de aglutinacao gera o aspecto fragmentario da pés-modernidade, na qual os siberes possuem legitimidade den- tro de suas préprias regras de jogo sem a necessidade de se reporta- rem a uma metarregra. Em fins do século XIX, jé se reconhecem as rachaduras do edificio metanarrativo, enquanto a intelectualidade de unidade perdida, conforme o exemplo da geracao de intelectuais, vvienenses do periodo.' Lyotard percebe que, dentro desse contexto, icio do século XX possui um sentimento de nostalgia dessa 1 Sobre o pessimism desencadeado rela crise da legitimagdo, Lyotard escreve: “Este pessimismo é 0 mesmo que alimentou a geraszo do principio do século 66. JOKO PAULO COSTA DO NASCIMENTO ‘Wittgenstein se destaca por “naoter [se] alinhado do lado do positi- vvismo que era desenvolvido pelo =irculo de Viena” (2003, p.85-6). (O pés-modernismo instaura-se, de fato, quando o contexto tec- nol6gico da informatizacao do pés-guerra permite o abandono da nostalgia da unidade ea proliferagio da multiplicidade dos jogos de linguagem dos saberes, suplantando definitivamente a crenga nas, ‘metanarrativas. A consequéncia da falta de um principio totalizante de legitimagao dos saberes, papel desempenhado na modernidade pelas metanarrativas, €a possibilidade de legitimagao pela eficién- cia ou pela paralogia. No primeira caso, os saberes tornam-seamea- sados pela homogeneizagio dos jogos de linguagem, estando essa busca pela eficiéncia fortemente vinculada ao pensamento sistémi- coimposto pelos decisores do capitalismo. Essando deixade ser uma possibilidade latente de totalizagzo, No segundo caso, a legitimida- de da ciéncia de modo especifico (considerada independente dos outros jogos de linguagem) est atrelada & busca pelos paradoxos desestabilizadores dos sistemas de explicagao do mundo, como lan- ces novos que obrigam a revisar suas regras de jogo. Deve-se lem- brar que. ciéneia é considerada um subconjunto do conhecimento que, por sua vez, € um subconjunto do saber (2003, p.46-7). Em A condigao pés-moderna, a formulecao lyotardiana encerra-se nesse posicionamento ambiguo entre eficiéncia e paralogia. ‘Ao tratar de questdes musicais, a transposicio dessa formulagdo no ocorre de maneira direta. O proprio Lyotard, aoestendera nogdo de pés-moderno as artes, véa necessidade de incluir uma nogdo ine- xistente em A condigdo: 0 sublime. Porém, antes de tomar essa via para aexplicagéo do pés-modena em miisica, é possivel reconhecé- -lopelaafirmagao estandarte desta condigdo, asaber,aincredulidade ‘nas metanarrativas. A passagem pelo conceito de sublime nao deixa de ser elucidativa e desempenha papel importante na compreensio de algumas abordagens sobre o pos-moderno ea miisica. No entan- cm Viena: artistas Musi, Krauss, Hofimannsthal. Looe, Schooaberg, Broch, ‘mas também os filésofos Mach e Wittgenstein”. (2003, p85) [ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 67 to, ela é uma resultante posterior ce uma ideia mais geral contida nas, anilises das metanarrativas, quando se olha o pés-modernismo e as cexplicagdes de Lyotard a partir de A condicao. O exame dos critérios artisticos (como dos cientificos e politicos) deve levar em considera- ‘¢i0.0 mesmo pano de fundo sobre o qual a sua negociacio constante se realiza 0 vinculo social. Portarto, a compreensio das afirmacées sobre o sublime necessita, anteriormente, da compreensio da incre- dulidade nas metanarrativas decerrente da heterogeneidade dos jo- gos de linguagem negociados a partir das comunidades de sabedores (Gogadores). ‘Mediante tal posigdo, torna-se necessvio compreender qual re- lagio 0 modernismo musical martém com as metanarrativas de le- sitimagio do saber apontadas por Lyotard como caracteristicas do contexto do saber moderno, Paralisso, uma definigo mais clara do que seentende por modernismo musical tomna-se necessaria. Essa tarefa serdfeita tomando-se por base as definicdes encontradas nos escritos sobre o pés-moderno em rxisica, possbilitando a compreen- ssio dos pontos de ancoragem sotre os quais esses mesmos escritos estabelecem sua visdo do pés-modernismo. Vejamos, primeiramen- te, como algumas das abordagens sobre o pos-moderno em musica caracterizama modernidade musical: ‘A modernidade em miisicatinha correspondido evidentemente a certo niimero de movimentos — como a expressionismo em torno da Escola de Viena eo futurismo~ que durante os anos 1908-1913 haviam langado, com mais ou menos viruléncia, as premissas de uma arte pela qual os criadores se situavam dentro de uma atitude baseada no eitismo, 10 individualismo e no historicismo. .] As palavras modernidade e vanguarda puderam, entdo [apés a Segunda Guerra], ter por sinénimo Damstadt, onde se realizavam cur- 506 efestivais depois de 1946. Boulez, que por vezes & designado como co emblema dessa vanguarda, escreveu em 1952, dentro de seu artigo "Schoenberg esti morte”, a profissio de f€ modernista que, mais que autoritria, tonou-se oélebre: “todo compositor é intl fora das pes- ‘quisas seriais”. (Ramaut-Chevassus, 1998, p.20) 6B JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO (© pensamento modernista em miisica, inaugurado por Debussy (Griffiths, 1994), buscava alguma aproximago com outras expresses cestéticas, como a literatura ea pintura simbolistae relista. A maneira livre de Debussy utilizar as comb nasies harmonicas oriundas do siste- ‘ma tonal abriu caminho para outras especulagées, como a superposicao de tonalidades (politonalidade ou polimodalidade), o uso de escalas al- teradas em “modos de transposicio limitados" (tons inteiros, octatdni- 2), atonalismo, dodecafonismo ¢seralismo. A época em que surgiram essas “técnicas”, sua representacio estéti- ‘ca denotava a intencio de rompimento e superacio do “passado tonal”, ‘mediante o uso de novas formas de organizar 0 material sonoro. Poste> rlormente, essa organizacio avancou sobre outros parimetros musicais, cculminando com o serialismo integral e com 0 uso de ruidos, esbocados pelos faturistase realizados pela misica concretaeeletrénica, [..] O que é interessante para a delimitagdo da modernidade musi- cal é seu gosto em diego a0 nov>, Esse é 0 sentimento de “moderno” ‘que se poderia aplicar a musica. Salles, 2003, p.96-97) Ha a questao fortssima da tradigao moderna que se estabelece no pperiodo cléssico-romintico e cuja ressonincia se faz sentir por todo o século XX. Essa tradicao esté na base de reformulagbes radicais do pen- samento musical do século XX, do atonalismo de Schoenberg [1] a0 serialismo total de Boulez [.], do neoclasicismo de Stravinsky [..] 4 _iisicaeleteinica de Stockhausen [.]. Em todos esses compositores,€ muito forte a ideia de formalismo musical, consolidado no periodo mo- derno [..] Até mesmo quando sargem as masicaseletroacisticas, no inicio dos anos de 1950, a musica se mantém presaatradicio moderna. (azzeta, 2005, p.228, gifo nosso) Historicamente, 0 modernisiso rusia inicia-e com o Préhde a [Apr mid un Faune (1892-1894), de Claude Debus. (idem, p.230) “Mais que um conhecimento de histéria da misica, acistica eestéti- a, harmonia e contraponto, a mtsicologia moderna ambiciona especi- ficamente, mesmo positivsticamente, um projetoepistemolégico. Seus ‘métodos vio dos esquemas de anélise formais estruturalistas (como a hhjerarquia de niveis [Stufen] ou linhas [Ursatz/Urlinier] de Schenker, ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 69 culminando nas expresses preciss e matematicamente anaisadas do alto modemimoterico), até a tentativa de apanhado da eoria musical tradicional de Schoenberg culminando na sua prépriateoria composi- cional modernista dos doze sons. (Babich, 2001, p.1-2) As formas modemistas de entendimento musical atribuem uma ‘inica autorreferencialidade para miisica, nterpretando-a [de forma] altamente opaca do ponto de vist extramusical, (Kramer, 1995, p.13) E decisivo retornar ao texto fundador da modernidade musical, 0 célebre Do Belo Musical, publicado por Hanslick em 1854, e ponto de partida néo somente da estética estruturalista, mas também —o que é ignorado com muita frequéncia~do pensamentoestruturalista, tal como lembrou Vietor Ehrlich (1969, p59 e 274) em sua obra a respeito dos formalistasrussos.(Nattez, 2005, p.117) Os fragmentos de texto acimacolocados carregam nomes e afir- ‘mages que se interconectam, formando um panorama da caracte- rizagio do modernismo musical por parte dos autores que tratam dda questio do pés-moderno. Trés vias de earacterizacio tornam-se evidentes: 1. Attentativa de delinear o periodo histérico do modernismo musi- cal, apontando, inclusive, seus fatos e nomes fundadores (fatos € ppersonagens com atua¢do compreendidos entre as décadas finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX). 2. A alianga entre as ideias de inavagao musical, vanguarda e mo- dernismo, ambos vinculados a superagio tonal. 3, Arelagio esbocada entre uma estética formalista, o estruturalis- ‘mo € 0 modernismo como formas de compreenso musical que, de certa forma, valorizam o puramente musical em detrimento de questdes extramusicais. A inauguracdo do modernismo musical 6 atribuida a diferentes rnomes e fatos. Para Nattiez,o fato inaugural esta ligado a Hanslick. Para lazzeta e Salles, o fato estdligado a Debussy. Nesse caso, € per- 70. JOK0 PAULO COSTA DO NASCIMENTO tinente retomar a diferenciagao ertre os termos mademidade, como ‘um recorte temporal histérico, e 0 modernismo artistico, como um. periodo caracterizével estilisticamente.* Nesses excertos, a separa- ‘do nao é rigorosa. Porém, € possivel verficar que o que se entende por modernism musical, comecado na metade final do século XIX, @ uma decorréncia da construgao conceitual desenvolvida pela mo- demnidade histérica. Esse modernismo musical, portanto, herdeiro da tradigio musical classico-roméntica que, por sua vez, éintegran- te do contexto cultural da [dade Moderna, seguindo-se as divisdes dahistéria. Segue-se, portanto, uma linha evolutivaa partir das obras, de Mozart e Beethoven (geragio cléssico-romantica), chegando até Debussy, Schoenberg e Stravinsky (entendidos por alguns autores, como os primeiros representantes do modemnismo musical de fato, em confusio com o inicio das vanguardas musicais), e continuando dentro do século XX, até nomes como Stockhausen ¢ Boulez. Do onto de vista da teoria musical. personagens como Eduard Hanslick (1825-1904) e Heinrich Schenker (1868-1935) nao se vinculam di- retamente a temiitica das vanguadas musicais. Porém, so inspor- tantes construtores do modernismo musical por conta da influéncia que exercem sobre as abordagens teéricas modernistas, Em muitos casos, 0s termos modernismo musical e vanguarda ‘musical se confundem. As vanguardas, nas artes de modo geral, po- dem ser entendidas como a radicalizagao do projeto moderno, ou seja, uma espécie de culminagao do constructo intelectual da mo- dernidade histérica. O surgimento dessas vanguardas é datado de fins do século XIX. Pode-se destacara utilizacao do termo “moder- ro" na obra O pintor da vida modema, de Charles Baudelaire, pu- blicado postumamente em 1869. Considerado marco pela utiliza- 2 Aspublicagdes de Terry Eagleton e¢e Teixeira Coelho salientam anecessidade 4e operar com uma diseriminacio entre os terms modemo, moderismo € sodemidade Teinsira Coelho, ¢.d,p-13-20),eseusrespectivesrclativos pe -moderno, p-mmadersism e pés-modernidade.Pos-moderno €um adjtivo. Pée-modernismo referee a uma tindénciarelatva a0 pés-moderno, ama forma de cultura contemporinea. Pés-modemidade possui um significado periodiczante Eagleton, 1998, p.7-). [ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA. 71 «a0 e conceituagao do modernismo artistico, €um escrito altamente influente para os movimentos vanguardistas, revelando-se como sgerme da postura artistica valorizada no século XX em diregio "ao novo". Para os movimentos vanguardistas,a inovacdo desempenha ‘um papel importante na evolucioda linguagem artistica na compo- io das caracteristicas das obrasproprias de seu tempo, amarcada ‘temporalidade na hist6ria das obras. No caso especifico da vanguarda ‘musical, a superagdo da tonalidade constr6i uma linha evolutiva importante como guia da inovagio. E os nomes de compositores como Debussy (0 fundador do medernismo musical segundo lazzeta Salles), Stravinsky, Schoenberg, Stockhausen e Boulez so 0s mais, citados e arrolados na lista de compositores modernistas. Ennotavel que, em diversos casos, é tragada uma associagao entre ‘uma estética formalista, a abordagem musical schenkeriana, ateoria estruturalista ea musicologia moderna. Hanslick,' autor de Do Belo Musical (1854), fundou o que se convencionou chamar de teoria formalista da mésica, tornando-se um guia para a abordagem esté- tica da miisica no século XX. Schenker desenvolveu um método de analise musical no qual propde a separagao das estruturas de uma cobraem trés niveis, um superficial, um intermediarioe um profun- do. Sua abordagem da andlise 6 um importante pilar para o pensa- ‘mento, chamada de “ideologia doorganicismo” por Joseph Kerman (1987, p.83), ou seja, uma ideologia de valorizagio da obra musical como tum todo orgiinico coerente eauténomo. O que os criticos das formas modernas de entendimento musical apontam que, aliados Ateoriaestruturalista,organicismo e formalismo determinam omodo como a modernidade compreende a obra musical pela valorizagio de seu aspecto “puramente musical” em detrimento das questes centendidas como extramusicais. Essas trés vias de compreensio (tempo histérico pos-Revolugio Industral; tradigdo/inovacao/vanguardas; organicismo/estrutura- lismo/formalismo) resumem bem os caminhos pelos quais as teorias| 3 A repeito das espocificasbestaéricas de Hanslick, vera obra 0 romantismo¢ 0 Belo Musical, de Mario R. Videia J 72. JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO cdo pés-moderno em miisica descrevem e interpretam o termo no qual ‘pos-moderno se referencia, omederno musical. Noentanto, apesar da reconhecida importincia da teoria lyotardiana, nenhuma dessas descrigdes revela de forma diretaa relacdo existente entre o moder- nnismo musical e as metanarratives (da especulago e da emancipa- ao) de legitimagao do saber. A incredulidade nas metanarrativas aparece, em geral, como uma quaiificagio da condigdo cultural con- temporiinea. Aludem essa condido, deforma arelacioné-lacomas, questdes musicais, os autores Ramaut-Chevassus, Derek Scott, Friedmann Salis, Francis Dhomont e Andrew D'ell Antonio. Mas ‘uma identificagio subjacente das metanarrativas no pensamento musical moderno, necesséria a compreensio do pés-modernismo ‘musical, nfo &tracada de forma direta e consistente. Como as tradi- «es da vanguarda, da inovacio, do formalismo, do estruturalismo e do organicismo se relacionam com a busca pelo conhecimento abso- luto ou pela liberdade absoluta? A miisica participa dessa empreita dossaber sob a égide da filosofia (pois deveria participar caso se aceite a proposta de Lyotard para a compreensio do pés-modernismo) em busca do progresso do conhecimento? Comoo modernismo musical eavanguarda artistica serelacionam no tempo com a credulidade ou com a incredulidade nas metanarativas? Enrico Fubini e Carl Dahlhaus fornecem bases para que se pos- ‘sa aproximar as metanarrativas descritas por Lyotard de nogées e conceitos fundadores da modernisdade musical, aos quais os te6ricos do pés-moderno em miisica se relerem. Para tracar essa associacao, Enecessério lembrar que, segundo Lyotard, o momento de formu- lagio mais satisfatéria das metanarrativase de maior credulidadena sua capacidade de aglutinagao das diversas areas do saber €aquele ‘no qual encontramos as obras dos filésofos do idealismo alemao eo ‘momento politico do pés-Revolusdo Francesa. A trama enciclopé- dica, qual Lyotard se refere, amarrada pela metanarrativa especu- Iativa, €sistematizada pela obra de Hegel e fornece as bases do mo- delo organizacional da universidede de Berlim, tal como idealizada por Humboldt (2003, p.68-78). E a compreensio dessa sistemitica hegeliana envolve o entendimento do papel atribuido a musica no ABORDACENS DO POSMODERNO EM MUSICA 73 contexto filoséfico do inicio do século XIX, conforme esse perfodo de grande formulacdo das metanarrativas. Qual seria o papel da ‘miisica nessa trama enciclopédica caracteristica da crenga na espe- culagdo em busca do absoluto? Para a filosofia do inicio do siculo XIX, a mtisica se revelava a senhora das artes. Essa mudanga torna-se compreensivel visto quea virada do século XVIII para o XIX marca 0 momento em que as definigGes filoséficas da beleza deixam de se pautar pelo belo natu- ralem busca de uma definigdo do belo artistico, criado pelo homem. E notavel como, na abertura de Estética A Ideia e 0 Ideal, Hegel afirma ser a estética “a filosofia, a ciéncia do belo e, mais precisa- mente, do belo artistico, pois dela se excluiu o belo natural” (1999, .27). Videira, ao expor 0 pensamento hegeliano a respeito do belo artistico, escreve: Hegel atribui um alto posto as artes em geral, no imbito de seu sis- tema filos6fico. Para ele, a arte é uma figura do Espirito Absoluto, @ ‘qual se seguem a Religidoea Filosofia. Assim, Hegel [. considera que belo artistico esté acima da natureza, pois “a beleza artistica 6a beleza nascida e renascida do espirito”, logo, nee estio presentes espiritualida- de liberdade. (2006, p.81, grifodo autor) Nessa afirmagio podemos encontrar indicios de como a arte se vincula com as nogbes de especulagao e de liberdade por meio da “espiritualidade” eda “liberdade” acima citadas. Mais adiante, Vi- deira afirma que, “para Hegel, importa compreender a arte como resultado do percurso que o espitito percorre”,ressaltando-se que a definigdo de espirito utilizada pelo autor é aquela fornecida em Fe- nomenologia do Espirito (1999), segundo a qual o espirito €"aess cia efetiva e viva", “a esséncia absoluta real que a si mesmo se sus- tém” (idem, p.81-3). Portanto, o pensamento hegeliano sobre arte esté incluso no mesmo sistema filos6fico ao qual Lyotard se refere ao descrever as metanarrativas deespeculagio e deemancipacio, de forma que arte também depende da nogiode espitito especulativo que orienta, no aparato metanarrativo, todo tipo de saber. 4. JOKO PAULO COSTADO NASCIMENTO ‘Amiisica, aarte queencontrou maior dificuldadeem ser norma- tizada a partir da estética de imitagdo da natureza e da doutrina dos afetos livre daobrigatoriedade deimitar anatureza ousimplesmente representar os afetos, assume um papel preponderante na producdo dobelo criado pelo homem. A respeito dessa geragaio de pensadores do inicio do século XIX e de seus continuadores romanticos, pode- ‘mos destacar os comentrios de Fubini: (O grande interesse pela misica que emerge na cultura romintica pode reconhecer-se pelo lugar que os grandes fildsofos Ihe reservaram ‘nos seus sistemas: Hegel, Schelling, Schlegel, Schopenhauer, Nietzsche ete. consideram a masica um elemento essencial eintegrante do seu sis- tema expeculativo eestétien, (2008, p.124) ‘© que Fubini coloca nessa passagem é a importéncia atribuida a ‘mtisica pelos fildsofos romanticos importancia iniciada como impe to “iluminista” de valoriza-1a como “linguagem auténoma dos senti- ‘mentos" (idem, p.123). Em inicios do século XIX, essa valorizaga0 (exemplificada por textos de Hoffmann, Stendhal, Wackenroder € Mendelssohn) enfocaa “assemanticidade da miisica”, motivo de sua desvalorizacio perante as outras artes no classicismo racionalista: “O. esforgo dos romanticos vai no sentido de encontrar um espago ex- pressivo préprio da miisica, gracas ao qual essa encontra no somen- te uma diferenciagéo, mas também um privilégio face as outras ar- tes" (idem, ibidem), Joseph Kerman descreve 0 mesmo momento salientando o inte- resse que a histéria da miisica (mais especificamente da mtisica da Bach, Haydn, Mozart e Beethoven) despertou em inicio de século XIX. Dentre os criticos musicais citados por ele esta onome de E. T. ‘A. Hoffmann, nome importante para a tendéncia ques firmaria pos- teriormente, chamada por Kerman de “ideologia do organicismo”, nna qual a figura de Schenker estd incluida. Esse novo “interesse na historia da miisica foi acompanhadlo de uma nova posigdo na hierar- «quia dasartes, sob o termo recém-cunhado de ‘estética” (1987, p.82). ‘Ai Kerman se refere ao recente surgimento do dominio da estética

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