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IDADE E FRAGMENTACAG SOCIEDADES COMPLEXAS! Quero narrar aqui um episédio que me parece exemplar ¢ Glil ra uma reflexie sobre o estudo das sociedades complexas. 10 caso, especificamente, estarei voltado para a contribuicke dle uma andlise antropoldgiea para um melhor conhecimento- da sociedade brasileira, Bram cerca de dezessete horas na Av. Nossa Senhora de Copa- cabana, Posto Seis, perto da esquina da Rua Francisco 84, Copa- cabana, Zona Sul do Rio de Janeiro. © episédio se passa no final da década de 1979, agosto de 1978, exatamente. Era um dia de semana, Fstava caminhando em direcéo a Ipanema. Notei um ajuntamente de pessoas. A primeira hipétese foi dealgumn aciden- te ou deaiguém passando mal, A medida que fui me aproximan- do, 0 ajuntamento comegon a tomar forma. Notei uma espécie de fila sendo organizada. No seu inicio, vi um senhor negro, forte, de uns sessenta ¢ pauicos anes, cabesa branca, com trajes modes- tos, sentedo em um peguen banco, Naguele momento, a fila tina entre quince e vinte pessoas, homens mulheres, jovens, pessoas de meia-idade e mais velhas, brancos, negros ¢ pardos. Procurel me informar. Um sofdado da Policia Militar ajudava a organizar a fila. Entabulei conversagio-cons um senthor de terno, guarenfo. Na sua frente estavam duas empregadas domésticas. Vi senhoras de “classe media vestidas com um certo apuro, 1. Coniertnela peoferida por ccasidn do concurso paca professor titular do Museu: Nacional ’UFRI, em 10 dosutesnibro e192. Publieada weiginalmente em Valho, Giberto e Velho, Otsiio, Divas cvlerédcws. Rio de Janeiro, Camara He Estudos Avangados/ECC/ UFR) 1592, u praynee metumorte fancionarios de um banco queencerrava aexpediente, moteristas e trocadares de um ponto de nibus préxime. Alguns colegiais rondavamt a fila até que duas adolescentes nos seus quinze anos acabaram por aproximarem-se. Eram, portanto, individuos de distintas categorias sociais que se reuniatm para participar, au “observar participando” de um evento especifica. Com o que ¥i ecomas informagSes obtidas, rapidamente, ficoudelineado o que estava se pasando, @senhor, foca das atenges, estava caminhan, do $6 ¢, aparentemente sem maiores prefinbulos, teria incorpe- rado um “preto-velho", Fortanto, um espitito, uma entidade de umbanda, “descew”, fomando conta do mitium, “cavalo”. A pare tirdaquele momento, osenhor estava posstride. Temporariamente, ‘9 dono do compe passava a ser um espitito, reconhecido e identi- ficado pelas pessoas em volta como um “preto-velho”* Nesta situagl, poderia até haver alguma redundancts devide so tipo Fisica de médiusy: um senhor negro, sexagendrio, deeabeca bran- ca, Isso nfo € regra geral, Um “preto-velho” pode ineorporar em. homens, mulheres, brancos, negros, pardes, pessoas mais velhas ou mais novas.'O fatode Raver, no caso em pauta, esta “¢oinct déncla" servia, talvez, como elemento de veforga da identidade do espirite, Nao set sealguém poderia ter pensade que ali estava ‘9 proprio “preto-velho”, nde apenas como espirito possessor mas cotpotificado, © fata é que o modo de falar, o corpo meio encur~ vado etorto, todaa técnica deapresentaso. de postiara e, de certa forma, de construg&o do personagem, amunciavam a presenga de um “preto-velho" incorporada.‘ Os consulenttes epiokimavait se som im bem apre- 1a o “peeto-velho" @ ientificada, em princi antigo ecctavo, sabio, Bondaso e experiente, embora powsa lan sentar uma dimensto guerreiea de Velhe atrteano Frombagira” pode “descer" e comunicar-se através > do tex genet neascallne 4 Sobre umbanda, transe e possessiu existe uma Bibtlografia br ecids edeboa qualidade. Para apresente disevedo va Maggie, Y ste era: von etc ial e conte Rio Ue Fina, Za nage @ Lut, Mares Aurel Biers, Pats les Ria de. salves: laneies, PRGAS. Museu Je Fvgownlag cv soit semplense 1% respeitosamente, ¢ em voz mais baixa apresentavam bese problemas ao “preto-velho” quees atendia, dando t orientagto. A fila aumentou. Muitos curioses ferant ido, A essa altuta, duas senboras € um senor esta- slessinipenhanco 0 papel de “filltos-de-santo”, figis mais gra- ‘gue assistiam A entidade e organizavam a situagao. Detl- “fhlem seus contomos e limites. Assim é que. depois de cerea de ‘won hera de consulta, clecidiram encerré-la. Murmuraram pala- ‘vias ininicligiveis para quem nao estava perto, pararam a fila, € fw inddinm sai dé tanse, amparado e ajudada, Em pouces mi- ulos, a fila se desfez, a5 pessoas se dispersaram e 0 préprio ‘yiitium entrou em tim énibus e fol embora sozinho. x Quando um antropdlogo faz uma etnografia, uma de suas ta Telas mais dificeis, como sabemos, ao harrarumevento, € trans- ‘miit o cHiiid, 0 don, do que estd descrevendo. A sucessio dos [alos no tempo, o mimero de participantes, a reconstituigae das | interacdes, sfo etapas fundamentais mas, quasesempre,ficase “com a censagio ¢/0u sentimento de que falta algo crucial. No aso, 0 que me parece mais importante & tentar transmitir a Jdéia de que, para ax pessoas envolvidas, nada particularmente fitoxmal eslava ocortendo. Havia uma certa surpresa, curiosi- dade, graus diferentes de famitiaridade mas, observei, sobre- ‘wido, un forte interesse combinado com evidente respelto. Cer- jamente, ma multid’o que percorria a Avenida Copacabana estavam pessoas que no se preocuparam ou nfo notaram 0 que estava se passando. Sem diivida, nem todos pararam para singressar na fila da consulta. Porlanto, nde s6 nto afizmo que ‘todos os passantes fessem umbandistas, como estou certo que podleriemos encontrar individuos céticos, indiferentes, ou mes- Noclonal/UFR} (dissertagio de mustrado), 1983; entre outros. Para uma bibliografin mais geral vee Lambdm Crapanrano, Vincent. The Hamada: @ “sndy 1 oraccor Ehapsychsalry. Berkeley, University of California Press, 1974 Berti, fobave Midleton, Johan (orge.). Spit Mediumestip and Society fn fica. Londres, Reratledge & Kegan Paul, 1969. Me pryete emetamonfse mo hostis aquela manifestagio, Como discutirel no decorner deste teabalho, esta é uma das principais caracteristicas das sociedades compiexas — a coexistincia de diferentes extllosde vida e vises de mundo,* No enitanto, neste casa, ficou bem nitido que fol formado um griipd com uma ago coletiva orga- sustentada em érencas € Valotesicompartilhades, Ow seja, em um ambiente exersplatmente metropolitane, com to- das as caracteristicas classicas, inclusive de relative anonima- ta produziu-se um dnteresse, tim foca de atengio que congre- .gou individuos e categorias sociais nitidamente distintos di- ferenciados. O mais relevante para.a dimensio cultural do ep’ sédio 6 a identificacao de umailinguayent, expresso de uma ste ile significardosynos termos de Geettz — web of mieaiiags. Pata as pessoas que se aproximatam ow mesmo Para as que passavam sem se deter, a informaczo de que alguém estava “recebendo um preto-vetho” era compreendida ¢ assimilada. Por outro facto, como ja observel, houre consensa na iden cago da entidade. As téenicas do corpo, a apresentacéa, 0 modo de falar, a pestura etc, constituiam um utr tipo de linguagem, conhecido pelos que ali se reuniam. Convém regi trar que no é comum a scorréncia deste tipe de situacio no meio da rua, no horario de trabalho. As entidades descem habitualmente em terreitos e em lugarese momentos especiais. Fitualizados, como nas festas de passagem de ano nas prains. us para wna sirapolgia fe aneico, Zaha, 1981, Cap. L 3. ed. Jorge inumel, Georg, “The Metropolis and Mental Life”, in Ox Fudivids- {ty anit Socal Fares, Donald Lecine (org l. Chicago, University of Chicago 902] 191, p. 229-34; Park, Robert. “The City: Suggestions for the invest gatiog of human behavior in the urban environment” american Journal of Sawiagy MO, 1818, p 77-812. Tradugdo brasileira: “A cidade: sugesties omportamento humane no meio wrhano” an tivo . mo urhina Rio de faneiro, Zahar, 1967, p. 29-72. @ ‘Vath, Gilberto ¢ Machado da Silva, Luis AntSnia. "Organizagto social do mio urbanc”. Anime Artropobipiea "6, 1977. p. 71-82 3 Ver-Gaen, Clifford, The Inerpelaien of Caitures. Nava York, Basie Books, 1972. Tradujie bvaaileirs: A stlerpetayde dv culls. Ris de Taneira, Zahar, 1978, . outade a Pagmenngra wn seviededes compare 15, a, por conseguinte, algo de atipico naquela incorparagio, D individio 5, fora do terreiro e do ritual, entron em transe ‘ecebendo um “preto-velho”. Como disse, no inicio, nie era ma aberracio na medida em queparecia ser um fenémeno eonhecido, embora nio banal, para aquele universo.Conversei lepois com colegas antropélogos, estudiosos do assunto, assim come umbandistas, que, decerta forma, confizmaram o inusi- tado do episédio. A possessao, em principio, se dé dentro do ritual. No entanto, pode ocorrer que uma entidadese incorpore fora de um terreiro edtos momentas previstes, Soubede outros episédios semelhantes que ilustram essa possibilidade, A idéia basica € que o controle sobre os espirites ¢ sempre um tanto precirio e que hi, inevitavelmente, uma margem de imprevisl+ bilidade na relacko som o sobrenatural, Nas sessies, nos ter- reirds e, fora deles, em momentos e situngdes especiais ha uma certa domesticacao dessa relagae, com especialistas presentes que devem saber lidar com os espfrites e com a passessdo. a Quero dar destaque a duas vertentes do episédio narrado. Su- glto que, através do jogo e da relagdo entre estas, 6 possivel penceber mecanisres ¢ cataeteristicas fundamentais da socie- dade brasileira, o que também contribuira para uma teoria mais getal das sociedades complenas, Enlatizei a presenca ¢ participagio de individues de categorias socials distintas, Convént esmiucar isg0 um pouco mais, Mencio- nel empregadas domestica esenbaras de “classe média” que, em ese, poderlam ser suas patroas. Certamente, nao era a hora de invocar o "voot sabe com quem esié falando?", nos termes da ‘ndlise de Roberto da Matta A relagio hiesérquica entre 68545 categorias desaparecia na fila de consulenies, sem nenhuma precedéncia explicita, a nao ser aquela estabetecida pelo miomento dechegada. Isto, alls, seapli- 8, Da Motta, Roberta. Carnzouis, wsizntros e heres, Rio de Janeiro, Zahar, 1679, 1h pagets praetor cava a todos os membros da fila. Moloristas trocadores de Onibus, com seus uniformes maliratados, misturavam-se a ban- ccarios de terno e gravata — uns carregando 0 palets, outros com a.gravata desabotoada ete: Sabemos que pademics distinguis tipos socials n80 86 pelos temos au qualquer outra indumentaria, mas pelo mod de usé-los. Te temo egravata estat ar tantbéns alguns profissionais liberals. Conversel com uni engenheiro, com um advogado € cont um professor de gengrafia de cursn secundirio. As pessoas mals welhias incluinm alzsine apesentadios chvis ¢ mi Hitares. Aigm. dos estudauvtes unilormzadus, estavam presentes omltas fovens, coma hays e mogas Cesticlis com roUpas de logs conhecidas. Adiferencityo estabuieaoussceam a atuagio des trés individuos, jf mencionades, que wesunurain a papel de fpr de conhecedows do ritual. Fram, ne 1 fecyuuniadores Re gulares de (erreiras, talvex ocupant 2 poesia 187 HeRat- quia religiova, Nio sci se inva fei anuincinsur ow sity phesmenty, eles se impuseram pela sua atiliake © jh nF) AV Bate Ge assumirama Fideranga tha situagivsongtti/aiste-a, comlands com a ojuda, ado sé do pelicial militar, sont os, em wma de monstragte Insofismavel de roconhe iment Dialogavam com a entidanfe, chamavaun su Fam Par encertar © evento NE Moment que ply Foi enunciada, de maneita clara, a ineamentenein de prolongar as consuiltas, pois “havia hora pra tude” e“mutla gente links sido atendida”. alguém informau queagoeie “preto-elhy traba- mum terreiro em Maxdurcira — subtirbin da Rio de fo chogou a ser uma operacho de marketing, Focam comentérios discretos, sem distribuichs de cartes ¢ ender “Aparentemente, ninguém ficou sobettdo com prectsk query era omédium, Chegou andnims, tecebvu a entidade, dew consulta e depois vollow ao ansniinato. ram opartuno * Assinalei, portanto, a densidade de uma sittaagdasocial, encon- tro de diferentes individuos que circulavem ea wina das prin cipais vias da Zona Sul do Rio de Janeiro, Enguianto estis eram juntos, participaram do mesmo interesse, tinham um foc co- logis vr Sut is dtengdo c suspenderam, ou adiaram, outras atividades misses. Compartilharam, por algum tempo, de uma ‘camuon de rea'iade, operaram na mesma provincia de ado, nos termos de Alfred Schutz * Interagiram através uma rede de significados, conforme a defini de Geertz. ‘Alwaram dentro de um sistema compartilhado de crencas & Valores. Mesmo admitindo uma certt variagio individual, o ‘comportamento ea atitude dos participantes apresentavam no- tivel homogeneidade. Uns estavam mais sérios ¢ quietos. Ou- {ros conversavam e seagitavam mais, Como id observe, o tom dominante era respeitoso e atento, Havia ¢ reconhecimento da ptesenca do sobrenatural, com a incorporagio de entidade co- nhecida. A heterogencidade sob 9 ponto de vista socinlégico, quanto & estratificagac social, faixas etdrlas, distribuigao ocu- pacional, diversidace étnica ete., nde obscurecia o fenémena de uma participagao comum naquele contexto religioso, mar cado por uma relasao particular com os espiritos e, de modo mais amplo, com o sobrenatural. Simbolos compartilhados, linguagem basica comum, gramaticalidade no processo de in- teragdo e negociaglo da resfidade, expectativas e desempenhos ete ‘papéis congruentes, tudo isso configurara um quadro do que ‘poctériamns chamar de consisténeia cultural, Mas ha também um outro nivel de analise necessario. Georg ‘Simmel, em seu attigo clissico "A metnépole ea vida mental”, de 1902, chamava a atengio para a especificicdade da vida social nos granstes centros utbanos surgidos da Revolugio Industrial, da forma;o dos grandes estados nacionals ede um compleco mer cad internacional.!' A obra de Simmel é vasta e densa, apresen- tande diferentes énfases eplanos deanilise. Um deseus objetivos esse texto era contrastar um estilo de vida metropolitano-com @ modo de vita tradicional, rural. A grande cidade — trata-se de artigo que faz noventa anos — cardelerizar-se-a, sobretuda, pela 9. Schule, Alleod. Fenouiviologit ¢ relents awume Rio de Janein, Zahat op. ‘mime, Georg. Cn Eedirleilly ove Seehal Zev, Donald Levine ong Chicago, University of Chicago Press, 71 1 projur e welrmwepose gtande quentidade ¢ diversidade de estinntlos, Isso geraria um “excesso”, provocando uma adaptagio no nivel individual que defintu como bias#. Decenvolverseia uma espécle de capa prote- tora, uma indiferenga, como defesa da ameaca de fragmentagic. Simmel, aqui eem outros momentos de sua obra, via na multi plicidade e diferenciaglo de dominios e niveis de realidade da ‘Sociedade moderna urn desafie a integridade do individuo peso slégico. Em outro trabalho importante, “Subjective Culture”, de 1908, analisava 6 enornte desenvolvimento ecrescimento de uma dimensio externa aos individuos, que denomumou de cultura 0b jetioa, em detrimento da riqueza e harmonia internas do que definin como cultura subjeiica.* Esse desequiltbrio entre as duas dimensées e/ou cultucas seria, também, uma das marcas da mo- demidade. Pode-seaventar uma possivel nostalgia ou idealizegao do passado por parte de Simmel. Na realidade, estava expressan do uma tradicéo humanista onde as idéias de Biiduing e seffcult vation remontavam, pelo menos, a Goethe. Nessa linha de pensa- mento, a modernidade da metnipoie e da sociedade industrial constituiriam, senao inipedinvento, pelo menos um forte ebiceaa desenvolvimento integrade dos individuos. ‘A antropologis, em geral, e, particulnrmente, os estudos em meio urbano, tém lidado de diversas maneizas com essa proble- miitice. Cteio que osaso narrado do “preto-velhs” em Capacaks- nna pode ajucar nesse sentido a aprofundar nossa reflexte. De uma multisite, aparentemente de andnimos, de transeuntes de diversos tipos, desiaca'se um ini gueentia em transee recebe, incorpora, um espirito conhecide dos terreiros de umban- de um da. Algumas dezenas de pessoas se decém e participa ritual improvisado mas nio desorganizade, Temos um unt fim claramente definitos e marcadas, Sera qite os 1 pararam, nos termos da indlagacao de Simmel sobre Berlim: 0 que acontece Ruma metrépole moderna quando param os reldgios* No case, eriow-se um intervalo quanto detxou deser cantrolade eavaliads. Bletivamante, processou-se uma nazoriagay io totalmente explicitada, que permititi que aquela si 12, Slomel op, de unidaie e frageieutigle emt scicdedes complesas 19 sustentassepor algum tenipo. Por outro lado, salientando a outta vertente do acontecimento, enfatize-se o fato de centenas de pes- spas passarem por ali, no espacs de uma hora sem se detezem, Quem eram esses outros transeuntes? Pela aparéncia, de um modo geral, néo pareciam diferir draiaticamente daqueles que formaram a fila. Impressionisticamente, poderia arriscar digendo que entre os consulentes existia uma proporcie win poudco malor de pessoas mais modestes ¢ de cor segunde o senso comm, ropresentadas, sobretudo, pelas empregadas domésticas e redo- virios. Estes, repito, omibcearram com homens € mulheres de camadas médias de varios tipos, brands, edticados, com sinais, de status, que, em certos-cases, poderiam até miesnno identifica membros de elites sdcio-econémicas. Ha varias explicagtes para fas pessoas no se detevem. Algumas podem nid ter tido sia alengéo sequer deapertada, absortas em suas atividades, Qutras talver nao tivessert curiosidade suficientementy forte para des- viar-se de sen rumo. Tanibém & possivel notar 0 ajuntamento, peneber o que sepassara e, contude, decidir prosseguir com seus alazeres. Nao se pode também descattar reagtes de med, rejel flo, ou #té repugndincia Poderia apresentar outras possibilidades, mas crelo ter fisado [clara a existéncia deuma margem clereacbes: opgieg e alterna: tivas, Certamente, ndo estava assistindo a um tipo dé ritual que congregasse toda ou quase toda a camunidade como em classicos exemplos tribais.® Nem era um local sagrado, com identidade definida onde se reunia um grupo de fiéis para uma cerimdnia prerista em um calendario, De algum modo, parte dos compor- lamentos descritos pode estar associada a alitude blésédescrita por Simmel, com os individes se protegendo de um “excesso de estimulos”. Mas o quejuigo mais significative 6.4 explicllagdo de um cauipo de possitlidides praprio a saciedadecomplexa modem: ‘All, naquele espaco, naquele periods de expo, cruzaram-se V4 ras trajetorias e trilhas sociologicas ¢culturais. Assim, se por um Jade identificamos a comps cieline ampere ecarmeee 8 As religifes ecultos de possessio sto fundamentaisna canstituigio da sociedade brasileira. O recente crescimento de cultos protestantes, caro a Igrefs Universal, cam a pratica disse- imtnada du esorcismo, reforga a percepedo da crenca em espiritos como fenimens generalizado, Como vimas, existent fis cuja vidaesla centrada nos cullos e também aqueles passanies cario sos que respeitam, tement e, de alguma forma, acreditam no sobrenatural, em espiritos © na sua participagio no mundo da vida caliiana. 2. Gongalius. 3B Ver Velho te aneinu, Zar 187 sores de aadnopeagie sacl. Ria ced, late Faneury, Jorge Zahar, 1989, projet tedintere Tomel este exemple come um caso limite, uma situago social exprossiva de problemstica mais ampla da sociedade brasileira e das sociedades complexas em geral. Os individuos transitam er ‘tre os dominios do trabalho, do lazer, do sagzado etc., com pas- ssagens &s vezes quase imperceptiveis. Estdo na intetsegdo de di- ferentes mundos, repetindo Simmel. Podem a qualquer momento transiiar de um para o outro, em fancio dé tint ¢tidigo relevante para suas existéncias. A Tragmentagio das celagSes ¢ paptis soxiais na sociedade moderna demana dominios distintes, como também mostrou Max Gluckman, contrasiando com as relagées reultipler das so- ciedades tribais.* Mas o trinsito entre os dominies se di constan- temente, de modo desdramatizado. Os individuos vive milti- plos papéis, em fungde-dos diferentes planos em que se movem, que podleriam parecer incompativels sob 0 ponto de vistadeuma Gtica linear, Sabenios que preciso tomar cuidado ao estabelecer contrastes com secidades tribais e tradicionsis para nfo exagerar em polarizagdes que possam perder sua efiedcia de tipos ou mo- delos ideais. Nenhuma soviedade @ monolitien culturalmente, sempre apresentando planes ¢.dimensdes diferenciados em fun ko do seu modo singular deconstrigao da realidade, No entanto, (© caso da sociedade modemio-contemporinea aparece como limi+ teem relacdo & multiplicidade e fragmentagio de papé’s e domi- nnios. Schutz compara a fragmentagio da saciedade modema com ‘a unidade do sistema cultural elissico chinés analisado por Gra- net! Com sua abordagem fenomenoldgica, Schutz, busea dar conta, 2 partit de nossa sociedade, da questéa dos mtltiplos dominios e provineias de significado, nfo 86 do social em sentido rrestrito, mas do real sociaimentecanstruido, de modo mais abcan- gente. Com isso, tertta perceber a gramaticalidade das mudangas de paptis 2 de identidade em cliferentes contextos e experiéncias. ‘Assinala que 06 individuos vivem em diversos planes sinvalta- neamente, Varia @ grau de adesdo, commilment, comprometivrent. 24. Gluckman, Max. Escops ou the Ritual of Scent Retétiona, Daryll Forde et al, Manchester Manchester University Press, 1982. Schutz. op it. vesidade e fagmentagle eo socndades complesas 2 Sem cuivida, certas situagdes tgm carSter mais totalizantee excl- sivista, No caso mencionado, © “preto-velho” incorperando-se num terreiro estaria dentro de um rilual ende os alores, em prin cipio, apresentam o mesmo cemitiffival, Os limites expaciais e femporais configurariam o perfil da situagio social, marcando sua dimensto religioss, fina nia,em meio ao burburinho usbano, @ evento eorria paralcla a outras situagies, dealgum modo, con- correntes. Assim, na sociedade complexa, particularmente,a coexisténcia de diferentes mundas constitui a sua propria dinimica, Essa no- ‘glo encontramos em varios autores mas, em Simmel e Schulz, para mim especialmente importante, identifica processos de de- marcagio entre esferas de atividade e previncias de signifiendo. A continuidade e as transformagbes da vida social dependem do telacionamento, mais ou menos contradit6rio e conflituaso, entre cesses mundes © os cédigos a eles associados. Erving Goffman demonstrou, brilhantentente, como os individuos vivem, inter- prelam entuam no transito entre essas diferentes esferaseAA nogdo de consirusio social da realidade elaborada por Schutz e divul- gada, entre outros, por Peter Berger e Thomas Luckmann® é instrumento fundamental para o desenvolviniente dessas refle- ades. Forexemple, retomande © dislogeSimmel Dumont, pode se perceber os individuos se deslocando entre contexts hierat- quizantes/holistas e individualizantes/igualitérios. Partilham.@ acionamt esses codigos em situagSes, momentos ¢ planos diferen+ tes de suas trajet6rins. Existe uma relacio entre essas ideologias e as provincias de signifiaato socialmente construidas. 0 individua- * sme modem, metropalitano, nfo exchsi, por conseguinte, a vivéncia eo englobamento por unidades abrangentes e experiéa- cins comunitarias, Permite e sustenta maiores possibilidades de triinsito e circulacio, nao $6 em termos socioldgicos, mins entre dimensOes e esferas simbélicas. Saliente-se que a intensa partici- pagdo em, por exenplo, rtuais comunitirios, em sigum nivel desindividualizantes, com foco numa identidade coleliva, nap 28 prance elimina 0 nivel de escothar de opefo. de um individiio /sujeito, Hdando cam um repentério finite, mas com extenso elonca de cambinagies. ‘Procuro, com estas idéias, assinalar poutos chaves para 0 do Senvalvimento de uma anteopolagia cas sociedades complexas. "As nogdes de cima: de possibididndes e de yrejeto com que Wenho teabalhando ha vdzios anos, a partir de indluéncias significativas como a dos muilas vezes citados Sinumel ¢ Schuts, buscar lidar ‘com a problemitica da unidade ¢ fragmentagso. Camo de poss iades trata. do que é dado com as altemativas cons ruidas _processe séxia-histérico ¢ com o potencial anterpretativo co mun- “Mo simbéilco da cultura,O projeténo nivel mdivistuai lida com a performance} as exploragaes, o sfesempenho eas apgoes, ancora dias a avaliacSes e lefinigdes da realidade, Estas, por sua vez, nos lermos deSchutz, sie resultado de complexos processos de nego- clacto econstrucao quese desenvolsem com e constituem toda a vida socio, inextricavelmente vinculados aos codigos culturais e 0s processos historicos de dengue dunce Par ouiro indo, a nogio schutaiana de provsuctas de sigarifcado> finitas inspicada em Willara James, permite-nos perceber os di ferentes mundos que constituens ura sociedade em sua singuls- “Fdade e nas telagiies de uns com os outros. © trinslto entre exsas provincias e mundos é uma das questies cruciais para a com preersio saciolégica e antrop oldgica. No caso que relatei, temos tum exemplo expressivo dessa problemética com a possessio do rédium ¢ com todas as interaghes sociais resultantes, A nidanga do tipo de attention a fe vie, cam a erupsao de Umh fendmeno religioao cle transe no ritinde do sstidiano, de trabatho ou do lazer, Hustza a dialética de unidade e fragmentagao, assim como a lens6es e comunicagto entre diferentes planos ¢ esferas da realidaden Em uma sociedade em que a ctenga em espititos é generalizada fica problertica a definigao da provincia de signif- sido da vida valid) ana como realidade suprema, conforme propse Schutz," 9 nla ser que se assinale a possibilidade permanente de Iransito e de wansiqaes, através de um eéddigo que os viabilize, 27 Schulz op.cit p24. ind ragtime pies 29 witande choques espetaculares e tranmaticos, Insisto que no estamor Hidardo apenas com contextos sociais diferentes, mas com distintos planos e niveis «le realidade savialmente constrsi- dos, Pa-ece-mequeessa percepyao é fundamental pata una teoria da cultura mais sofisticada, Faz parte da competéncia normal de tum agerle social mover-se entre as procuiicias de signtfiemo e ser capaz ce passat, como vimes, do munde do trabalho para o reine lo sagiacdo. Mas a5 fronteiras entre essas provincias podem ser ntais [nus ousingelas exw tefnsitas menos solenes @ pomposor, Essa_ permanente laténcia implica 0 que poderiamos chamar de pwlouail dv metamorfose, distribuido destgualmente por toda a sostodsde. O repertinio de papéis socials mio sé nto esté situade fem um tinico plano, mas a sua propria existéncia esta condicio- nada a estas mulltiplas reatidades. Com isso, talvez, passamos escapar de falsos problemas ditades por uma visio linear da experiencia sociocultural, Sem duvida, a nogis de #etancefese deve set usada com 0 devido cudade, pois 0s individuos, mesmo nas passagens ot silo enre dominios ¢ experiéncias mais diferenciadas, mantém, em geral, uma identidade vinewlada a grapes de referéncia ¢ fmplementada ateayés de mecanismos socializadores bésices con~ trastivos, come familia, etnia, regio, wizinhanga, religito etc. A tendénsia & fragmentacao nfo anula totalmente certas Ancoras furdamentais que podem ser acioaadas em momentos estratég- s93,Por outro lado, fragmentagto nilo deve ser entendida come tm estracalhamento literal de individuo psicolégico, O- transite entre 0: diferentes mundos, planos e provincins € possivel, just mente, gragas & natureza simbolica da covistrugho social da res dade ulilizacia de diferentes <6digos e discursos relativizn, contest indo, a nogaa dk Nase, desenvolvida por Simmel em 1902. Nao & © mesme individuo Unica que recebe passivamente estina.os los e diferenciados. © proprio Simmel, através da ieta de chllitna subjetioa, permite pensar que esta pode ser construida em muiltiplos planos. A rrelamarfow cle que falo possi- baila, rtraves doacionamento de eddigos, associados a contextos e dominios especiticos — portanto, a universos simbélicos dife- tunciséos — que os individuos estejam sendo permanenteniente ides Assim, eles ndo se esgotant nunta dimensae bioke 30 prayers g mtamorsne gico-peicologizante, mas se transformam no por voligSo, mas que fazem parte, cles proprios, do proceso de construgie social da realidade. ‘Accomplexidade e, por conseguilnte, # mislor indeterminagio da sociédade moderne-contemporinea evidenciam com mais ni- Fidez esse fenémeno queé da propria natureza do social i TRAJETORIA INDIVIDUAL E CAMPO DE POSSIBILIDADES Em 1971, durante estadia nos Estados Unidos, passet 0 verdo local, de fins de maio a inicio de agosto. relizando pesquisa de treinaments com a populagdo portuguesa da Nova Ingiater- ra, Essa atividade fez porte do meu programa detsabalho como “special student” no Departamento de Antropologia da Unt- versidade do Texas em Austin, Assim, eu ¢ Yvonne Maggie mantinhames nossos lacos cam o Texas dialoganda com os professores Richard N, Adams e Anthony Leeds, enquante.con- tavamos ng érea de Boston com @ apoio dos professores David Maybury-Lewis. Shelton Davis e Roberto Cardoso de Oliveira, enbio visitante na Universidade de Harvard “Meu trabalho de pesquisa anterior fora no bairro de Copaca- bana, no Rio de Janeiro, base de minha disseriagdo de mestrado Que originaria o livia A lowe wrlwua, publicado em 1973) A oportanidade de fazee pesquisa ex outra area metropolitana, em outro pais ¢ cultura, foi de importancia fundamental para o de- iment de reflexdes « elaboragies futuras, O cotejo das sas em Copacabana ¢ na regio de Boston constituiu-se em is de uma tentativa mais sistemética de pes: uum dos momentos analise de soci Alguns antropologes beasllewos vlets junto a coldnia portuguesa da Nova Ingiater ata teallzar grabalhos Cabe mencionat, i rbura. ny Fatue dt antropologée soxtel. Ria ce Janeim, Zahae 5. ed, Rio de Jancito, Jorge Zanae, 195

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