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AVE Uma ave agonizante entrou-te no quarto, ing 0 apenas uma sombra que se enlaca noutra: assim definiste a meméria, a cidade que se mineraliza quando rodeias essa sombra-ave com os dedos apavorados. 282 ARRANCAR P UM POEMA Fiama, «Sinais de vida», 34 Continuo, ainda, depois de tanto tempo, a rocar a testa pela luz poente que vou sorvendo. O livro abre-se. Panegirico onde a justa serena imagem da Natureza é 0 tema. ‘A imponderdvel imagem nao tropecard na sua mecAnica descri¢ao. Mas o pensamento oferece-me somente 0 vestigio, uma mio cheia de treva. FIAMA Definirfamos do mesmo modo a estranha poesia, 0 animal magnifico que sei habitar um dos seus bestiarios. Semelhangas — um certo ar de familia — eclodiriam no reciproco amplexo definicional. Como num desses exercicios em que alguém procura 0 entendimento que ume assembleia tem do que é uma ave. Que mapa se desenha quando d- guém diz a palavra «aver? E cimplices — de uma amizade intransi- gente — s4o aqueles que na palavra «ave» véem o assombro. Um pavao que desdobra a sua cauda e grita na noite? Melhor seria consi- derar 0 cisne, o enorme cisne vertical a deslizar em siléncio sobre a Agua. Talvez fosse assim que em acordo vissemos 0 mundo. Haveriao lento ¢ imenso deslizar do cisne. Haveria 0 tempo em suas miiltiplas, insondaveis metdforas. Haveria 4gua. E haveria o sentimento de a profunda dgua ser mutavel. ARRANCAR PENAS A UM CANTO ARTE PRIVADA Deveria ter feito da minha mtisica um amor mais silencioso como se de uma arte privada se tratasse. Ati, a quem falo de poesia, a ti que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que nao compreendes, respondo-te que também eu nao compreendo, que nao h4 que compreender, porque nada nos condena & fala antes que as palavras acontecam. Por exemplo, esse poema comecado numa manha de Junho enunca terminado: um principio de Verao, ajanela que dé para o alcatrao sem trafego serpenteando pelas colinas. Atua de dia de semana eo arquipélago da solidao despertando para as poucas coisas que procuro eque 0 poema ira entretecer se entretecer. Avirtude que, cega, vai conhecendo o seu caminho. Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras, ese ficamos tristes nao era para ficarmos, pois nao existem momentos irrepetiveis. AIMPRECTSA MELANCOLIA 757 - Eles aninham-se no sangue ¢ voltam a mergulhar-nos na experiéncia: um dia de Verao, um bosque, colinas onde a serpente de alcatrao se enrola. A auséncia de tréfego como motivo. ‘A pouco € pouco vou recuperando a gravura. Agora sei que havia uma ave sobre as colinas pois ha sempre uma ave, ou a sombra dela, nos meus poemas. Que havia 4gua, 0 cheiro das inusitadas chuvas pela manhé de Junho. O rumor da imagem colado aos dedos. O ocre escuro das areias espalhado na mesa éum simbolo da infancia, mas nao o reconheco ainda. O poema é uma enumeracao que nao teve lugar, que nunca terd. Eu, a beira do fracasso, nao o reconhego ainda. Enquanto isso tem lugar em mim 0 advento do que me define, € o barro de que sou feito coze por dentro. IMAGENS Ferida esté a face dos livros pela luz. O mundo ¢ jé sem rima. Os versos sucedem-se sem ordem. As ruinas sao ameacadas pelo som de quem as devolve somente como imagens dentro de imagens. DEPOIs DA MUSICA 147 PRECIP{[CIO ‘As imagens gastas de tao lidas €08 sofisticados lugares-comuns da poesia colam-se-te 4 pele — incémodo trajo do bom senso edo bom gosto que repudias. Vil chegada do que amaste, e que agora recordas, A poesia faz-se contra 0 esquecimento? Melhor seria dizer, contra a meméria se faz a poesia. Sem a arruinada ponte nao ha precipicio? O que conta ¢ 0 precipicio além da arruinada ponte. ARRANCAR PENAS A UM CANTO DE GISM 434 O DIA CLARO (ou Mario Cesariny vai a banhos) Como é varia a vida de um homem celebrando 0 Agosto sem julgar celebrar coisa alguma O escandalo é coisa para outros, nao para ti, meu caro Mario, ¢ eu que me subtraio & tua alegria de jovem sem rodeios ou obtusa gravidade, eu distante. Nao fosse este escripulo idiota assoreando mégoas, assolando-se de dividas para com os civilizados da literatura, fugir-me-ia para a homenagem. O mar abre-se ao azul como a flor heliotrépica ao so Faz um secreto bem procurar o fio que horizonte e rebenta¢ao entretecem, visitar hipocampos enlouquecidos € navios alados, vis6es e videntes no dia claro. Ha boas raz6es para estarmos aqui. Eu neste arrazoado pottico, € tu no teu bom senso de banhista feliz. Mas nenhuma forte o bastante para continuarmos aqui Do mar, é entrar e sair, €& margem do Agosto e dos fins permanecer,

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