AVE
Uma ave agonizante
entrou-te no quarto,
ing 0
apenas uma sombra
que se enlaca
noutra:
assim definiste
a meméria,
a cidade
que se mineraliza
quando
rodeias
essa sombra-ave
com os dedos
apavorados.
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ARRANCAR PUM POEMA
Fiama, «Sinais de vida», 34
Continuo, ainda, depois de tanto tempo,
a rocar a testa pela luz poente que vou sorvendo.
O livro abre-se. Panegirico
onde a justa serena imagem da Natureza é 0 tema.
‘A imponderdvel imagem nao tropecard
na sua mecAnica descri¢ao.
Mas o pensamento oferece-me
somente 0 vestigio, uma mio cheia de treva.FIAMA
Definirfamos do mesmo modo a estranha poesia, 0 animal magnifico
que sei habitar um dos seus bestiarios. Semelhangas — um certo ar de
familia — eclodiriam no reciproco amplexo definicional. Como num
desses exercicios em que alguém procura 0 entendimento que ume
assembleia tem do que é uma ave. Que mapa se desenha quando d-
guém diz a palavra «aver? E cimplices — de uma amizade intransi-
gente — s4o aqueles que na palavra «ave» véem o assombro. Um
pavao que desdobra a sua cauda e grita na noite? Melhor seria consi-
derar 0 cisne, o enorme cisne vertical a deslizar em siléncio sobre a
Agua. Talvez fosse assim que em acordo vissemos 0 mundo. Haveriao
lento ¢ imenso deslizar do cisne. Haveria 0 tempo em suas miiltiplas,
insondaveis metdforas. Haveria 4gua. E haveria o sentimento de a
profunda dgua ser mutavel.
ARRANCAR PENAS A UM CANTOARTE PRIVADA
Deveria ter feito da minha mtisica um amor mais silencioso
como se de uma arte privada se tratasse.
Ati, a quem falo de poesia, a ti
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que nao compreendes,
respondo-te que também eu nao compreendo,
que nao h4 que compreender,
porque nada nos condena & fala
antes que as palavras acontecam.
Por exemplo, esse poema comecado numa manha de Junho
enunca terminado: um principio de Verao,
ajanela que dé para o alcatrao sem trafego serpenteando pelas colinas.
Atua de dia de semana
eo arquipélago da solidao despertando
para as poucas coisas que procuro
eque 0 poema ira entretecer
se entretecer.
Avirtude que, cega,
vai conhecendo o seu caminho.
Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras,
ese ficamos tristes nao era para ficarmos,
pois nao existem momentos irrepetiveis.
AIMPRECTSA MELANCOLIA 757
-Eles aninham-se no sangue
¢ voltam a mergulhar-nos na experiéncia:
um dia de Verao, um bosque, colinas
onde a serpente de alcatrao se enrola.
A auséncia de tréfego como motivo.
‘A pouco € pouco vou recuperando a gravura.
Agora sei que havia uma ave sobre as colinas
pois ha sempre uma ave, ou a sombra dela,
nos meus poemas. Que havia 4gua,
0 cheiro das inusitadas chuvas
pela manhé de Junho.
O rumor da imagem colado aos dedos.
O ocre escuro das areias espalhado na mesa
éum simbolo da infancia,
mas nao o reconheco ainda.
O poema é uma enumeracao que nao teve lugar,
que nunca terd. Eu, a beira do fracasso,
nao o reconhego ainda.
Enquanto isso tem lugar em mim 0 advento
do que me define,
€ o barro de que sou feito coze por dentro.IMAGENS
Ferida esté a face dos livros pela luz.
O mundo ¢ jé sem rima.
Os versos sucedem-se sem ordem.
As ruinas sao ameacadas
pelo som de quem as devolve
somente como imagens
dentro de imagens.
DEPOIs DA MUSICA 147PRECIP{[CIO
‘As imagens gastas de tao lidas
€08 sofisticados lugares-comuns da poesia
colam-se-te 4 pele — incémodo trajo do bom senso
edo bom gosto que repudias.
Vil chegada do que amaste, e que agora recordas,
A poesia faz-se contra 0 esquecimento?
Melhor seria dizer, contra a meméria se faz a poesia.
Sem a arruinada ponte nao ha precipicio?
O que conta ¢ 0 precipicio além da arruinada ponte.
ARRANCAR PENAS A UM CANTO DE GISM434
O DIA CLARO
(ou Mario Cesariny vai a banhos)
Como é varia a vida de um homem
celebrando 0 Agosto sem julgar celebrar coisa alguma
O escandalo é coisa para outros, nao para ti,
meu caro Mario, ¢ eu que me subtraio & tua alegria
de jovem sem rodeios ou obtusa gravidade,
eu distante.
Nao fosse este escripulo idiota
assoreando mégoas, assolando-se de dividas
para com os civilizados da literatura,
fugir-me-ia para a homenagem.
O mar abre-se ao azul como a flor heliotrépica ao so
Faz um secreto bem procurar o fio
que horizonte e rebenta¢ao entretecem,
visitar hipocampos enlouquecidos
€ navios alados,
vis6es e videntes no dia claro.
Ha boas raz6es para estarmos aqui.
Eu neste arrazoado pottico,
€ tu no teu bom senso de banhista feliz.
Mas nenhuma forte o bastante para continuarmos aqui
Do mar, é entrar e sair,
€& margem do Agosto e dos fins
permanecer,