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InTRODUGAO Ao VoLUME III EDUARDO LOURENCO, habitante da aventura poética I. Génese Esse tal futuro (préximo?) livro tratard justamente de Tempo e Poesia. Como sendo ‘tempo e nada mais que tempo’ dentro dele operamos ou se opera aquela con- versdo ou transfiguragao que melhor do que todas imita a ilusdria e necessdria eter- nidade de que cada um precisa para acreditar que existe? Nisso se resume para mim a Poesia, triunfo (precério) do tempo dentro do tempo. E disso ou em torno disso Salaré 0 futuro ensaio. EDUARDO LOURENGO (Didrio de Noticias, Abril de 1971) O iivro Tempo e Poesia, de Eduardo Lourengo, foi publicado em 1974 e repre- senta um marco no ensaismo portugués, constituindo-se como obra de referéncia para a leitura de poesia. Ainda que grande parte dos ensaios jé tivesse sido dada a co- nhecer em publicagées periédicas, a perspectiva oferecida pela reunido destes textos em livro permitiu ver melhor a sua novidade absoluta no nosso panorama literario e cultural, Trata-se de um momento alto (a par da publicacao de Pessoa Revisitado, com saida préxima no tempo, no ano anterior) na consolidacao de um nome que, no final da década de 40, com a publicagéo de Heterodoxia, comegara a chamat a atengao de um niimero resttito de leitores. presente conjunto de textos, publicados no ambito do plano das Obras Com- pletas de Eduardo Lourengo, da Fundagao Calouste Gulbenkian, representa, em meu entender, a mais importante obra sobre poesia alguma vez editada em Portugal. Seo volume agora dado a conhecer revela materialmente uma espessura distinta da do livro saido cm 1974, cssa extensao sé aparentemente provocara estranheza aos leitores que véo acompanhando a produgao do autor sobre esta matéria. Apesar de as mais imediatas instancias de recep¢ao critica nao terem dado conta da relevancia do volume (0s focos de atengao dominantes no periodo pés-revolucionério eram ou- tros), Tempo e Poesia tornou-se uma espécie de livro de culto. Centremo-nos, pois, na edigao de 1974, Este volume reflecte um procedimento dominante de organizagao das obras pelo seu autor: 0 formato da compilagio. Talvez Tempo e Poesia seja um dos exemplos mais eloquentes do modo como se processa essa tendéncia organizadora. Escrevendo maioritariamente sob solicitagéo, em diversas A TT TT 10 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO. frentes e sobre assuntos diversos, para jornais, revistas, preficios, Eduardo Louren- go adopta em geral critérios tematicos de semelhanga, ao seleccionar os textos € a0 arrumé-los em livro. Recorde-se a justeza intituladora, quando uma das suas recolhas escapou a um princ{pio unificador e recebeu precisamente o nome Ocasionais (1984). Numa entrevista, sublinhou 0 procedimento prevalecente que o leva aos livros: “Todos os meus livros sao de citcunstncia, ou antes, sio-me impostos. De resto jé s6 escrevo de empreitada: fulano vai fazer uma conferéncia a tal parte, é preciso que eu escreva, eu escrevo. Sendo nao escrevia nada. Nunca teria escrito nenhum destes tex- tos” (entrevista por Inés Pedrosa, Jornal de Letras, Lisboa, 6 de Dezembro de 1986). Existem, ainda, motivagées e circunstancialismos de outra ordem, embora minori- trios, e que comandam outro tipo de participacées, concretamente na imprensa, como € 0 caso de artigos que foram propostos pelo autor a jornais, motivados com frequéncia pelo impulso de resposta ou pela investida polemizadora. Curiosamente ha dois livros que de alguma forma se ligam a Tempo e Poesia e que so os raros exemplos que contraditam o principio propulsor da escrita comandada pela encomenda. Refiro-me a Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (1968) e a Pessoa Revisitado (1973), redigidos totalmente fora do circuito da solicitago. Tanto um li- vro como 0 outro foram motivados por fundas razées pessoais; 0 primeiro resultou de um impulso, uma forma de resolver uma questdo pessoal (com um dos poetas tratados no livro, o amigo Carlos de Oliveira); 0 segundo é um livro de uma urgéncia também pessoal. As datas da publicacao destas obras estao muito proximas das datas que balizam a demorada reuniao em livro dos ensaios de Tempo e Poesia. No final do prefacio a esse volume encontramos a seguinte referéncia espacio- temporal: “Nice, Margo de 1969/Marco de 1973”. A indicago de um periodo preciso de quatro anos (de Margo a Margo) inscrita na instdncia prefacial pode ser corrobora- da por elementos que confirmam aspectos relevantes do processo da génese do livro, como por exemplo cartas do editor e de poetas sobre cujas obras 0 ensaista tinha escri- to ou escreveria ensaios a serem inclufdos no livro (caso de Eugénio de Andrade e de Anténio Ramos Rosa), declaragées em entrevistas ou manuscritos com planos da obra. No espélio de Eduardo Lourengo (organizado por Joao Nuno Morais Alcada, Biblioteca Nacional de Portugal), encontramos uma carta do editor Cruz Santos, datada de 5 de Novembro de 1968, em que este menciona uma intermediagao deci- siva no processo que conduziré a este livro: Eugénio de Andrade. f 0 poeta, amigo de Eduardo Lourengo, quem pée em contacto ensaista e editor e quem transmite in- formag6es relativas a um projecto de livro, a ser futuramente publicado com o titulo ‘Tempo e Poesia, O editor acolhe a ideia da publicagao de “um original seu na nossa colecgao de ensaios ‘As Palavras ¢ as Coisas’, possivelmente intitulado Poesia e Tem- po”. Esta correspondéncia dé conta do modo como o tempo interferiu no processo transcorrido entre a delineagao e a concretizacao do projecto. No ano seguinte, em carta de 19 de Junho de 1969, o editor refere que recebeu, mais uma vez por inter- médio de Eugénio de Andrade, “uma parte do original destinado a Poesia e Tempo” Introdugio a0 Volume Ill - EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POETICAL. (éassim, com este titulo, que Cruz Santos, nesta correspondéncia inicial, continua a referir-se ao futuro livro de Eduardo Lourengo), acrescentando: “Aguardamos com vivo interesse a recepcdo da parte restante”. Ainda nesta carta, apés solicitar outras colaboragées, escreve o seguinte: “Consta-nos que tem em andamento um ensaio sobre Fernando Pessoa, Caso nao haja qualquer outro compromisso, temos muita satisfagéo em propor-lhe a sua edicdo na nossa série ‘Civilizagao Portuguesa’, que esta hoje bem langada com 0 éxito de ‘Inquisigao ¢ Cristéos-Novos’ de Anténio José Saraiva”. As cartas s4o representativas das etapas que levam a efectivacao do livro. Em 1970, numa nota a uma carta-circular (13 de Fevereiro) relativa a um volume colectivo de artigos sobre Eugénio de Andrade (que viria a sair em 1971, na Edito- rial Inova, com o titulo 21 Ensaios sobre Eugénio de Andrade), 0 editor reporta-se a um texto de Lourenco para integrar o referido volume, como pertencente ao livro por ele referido sob o nome “Poesia e Tempo”. No inicio de 1973 (18 de Janeiro), Cruz Santos escreve a comunicar que o livro se encontra na tipografia. Mas aguardando a chegada do prefacio e do iiltimo ensaio, dedicado poesia de Ramos Rosa... A indicagéo da gréfica relativa ao fecho da impressio, apresentada no final do livro sera: “Dezembro 1974”. Contudo, como jé referi, o papel decisivo para a materializacao deste projecto € indiscutivelmente o da presenga instigadora de Eugénio de Andrade. A correspon- déncia enviada pelo poeta a Eduardo Lourengo mostra como em varios perfodos se manifesta essa instigagao. Destaco dois momentos: um mais recuado que se relacio- nacom aescrita de um prefacio de Eduardo Lourengo para uma antologia de poemas (na editora Delfos, em 1961), texto que posteriormente sera integrado em Tempo e Poesia, € 0 momento que se reporta aos didlogos especificamente direccionados para a publicagao de um livro de reuniao de ensaios de poesia. ‘A 22 de Abril de 1959, o poeta envia uma carta para Eduardo Lourengo, que na ocasido se encontrava no Brasil, contendo um pedido: um prefacio para uma anto- logia (“Quer eu, quet 0 editor, pedimos a tua colaboracio. Eu faria a escolha dos pocmas, tu farias o estudo. Nenhum ensaista portugués podera falar com mais inteligéncia ¢ sensi- bilidade dos problemas da poesia e dos meus versos”). Dois meses depois, através de nova carta de Eugénio, ficamos a saber da anuéncia do ensaista. Com o agradecimento reafirma- se a confianga apresentada como inevitabilidade na escolha do nome (“De resto, se tu recusasscs, muito me custaria convidar outra pessoa, pois foi a ti que escolhi desde o primeiro momento”, 23 de Junho de 1959). Numa carta datada de 7 de Janeiro de 1960, lemos as palavras incitadoras: “Quando é que te resolves a publicar novo volume de ensaios? Fala, estatua de si- léncio!” (Porto, 7 de Janeiro de 1960). Nesta altura, além do optisculo sobre Miguel Torga, publicado em 1955, de Eduardo Lourengo apenas tinha sido editado um livro de recolha de ensaios em 1949: Heterodoxia. Um dos tépicos recorrentes em varias missivas é 0 do imperativo para que quebre o siléncio. Escreve provocadoramente, a 21 de Janeiro de 1967: “comega a ser ‘perversidade’ o siléncio em livro em que te man- 12 _OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO téns” O que estd implicado em muitas destas interpelagées é a escrita prometida de textos sobre o préprio poeta, que tardam em ver a luz do dia, como se lé numa carta de 18 de Marco de 1961: “E se sempre esperei o teu ensaio com impaciéncia agora a impaciéncia redobra ~ néo me crucifiques com o teu siléncio”. Na mesma carta, antes destas palavras, encontramos um passo que merece ser relevado e que se reporta forma como o poeta esteve sempre atento a necessidade e a importancia da publica- do de um livro de ensaios: “Nao hé uma linha tua com que depare que deixe de ler ~ eu que tao pouco interesse tenho pelo que por cé se vai publicando. Penso sempre invariavelmente: ‘Que raio!, quando é que o Eduardo recomegard a publicagao dos seus ensaios!” Agora tu proprio me afirmas que tens um volume encalhado na tipo- grafia. Porqué?, com tanta coisa excepcional que vais publicando?!”. Se este “livro encalhado na tipografia” nao é 0 livro de ensaios sobre poesia, registe-se, daqui para a frente, a insisténcia e o empenho da parte de Eugénio de Andrade para que se con- cretize uma edig&o de ensaios reunidos. Nesse mesmo ano, interpela nesse sentido 0 ensaista, de forma muito directa: “E preciso que comeces a juntar os teus ensaios e os envies ao editor” (1 de Novembro de 1961). Um dos tragos recorrentes, em muitas afirmagées encontradas nas cartas de Eu- génio de Andrade, diz respeito & leitura amplificadora que os ensaios de Eduardo Lourenco propéem. Sao textos sobre a poesia de um dado autor, mas séo também, ou sobretudo, reflexdes sobre a poesia e 0 poético em sentido lato. Referindo-se a “Paraiso sem Mediac4o”, mais do que uma vez, em momentos distanciados no tempo, sublinha essa perspectiva; a respeito da primeira parte deste ensaio, acabada de rece- ber, escreve: “ou eu me engano muito ou tu escreveste uma das raras coisas notaveis que em portugués foram escritas sobre Poesia” (17 de Julho de 1961); seis anos depois, volta a repetir a mesma ideia: “(A propésito, e desculpa tanto paréntese, ainda em carta muito recente o Ramos Rosa me falava do teu ‘Paraiso sem mediagao’ como do mais belo ensaio que se escreveu em Portugal sobre Poesia.)” (20 de Janeiro de 1967). Em 1968, no meio de uma rajada de interrogagées, aparece a inevitavel referén- cia a Pessoa e uma sintomatica estranheza por uma noticia entretanto chegada sobre um livro de Eduardo Lourengo acabado de sair. E com ironia que atira as interroga- des: “O livro que o Vergilio deveria ter prefaciado ainda esta disponivel? Queres editd-lo aqui? E o teu ‘Pessoa’? Falam-me de um livro teu sobre poesia neo-realista; que ¢ isso? Poesia neo-realista? Terei entendido bem?” (9 de Julho de 1968). Daqui para a frente, nas cartas de Eugénio de Andrade, torna-se muito nitida a fungao intermediadora. A 9 de Maio de 1969 ¢ 0 proprio poeta que recebe um con- junto de originais do futuro livro, que por ele é encaminhado para o editor. Em varias das cartas, relembrando hipéteses de inclusao de alguns ensaios, avanga mesmo com conselhos: “Ha jé alguns dias que recebi parte do original do teu livro, que imedia- tamente enviei ao editor, tendo-lhe junto o prefacio da minha Antologia, como me havias pedido em Nice. Folheei apenas os originais, j4 todos meus conhecidos. Lem- bro-te dois textos - 0 de Pessoa, publicado em ‘O Primeiro de Janeiro, de que em Inrodugdo ao Volume Ill - EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POBTICA 13 tempos te mandei cépia, e o que recentemente publicaste, no ‘Comércio do Porto’ sobre mim - ambos indispensdveis ao que me parece”. As interrogagdes sucedem-se cada vez mais focadas; a 26 de Maio deste ano, a pergunta muito concreta vai no sentido de saber quantos capitulos faltam para acrescentar: “Convinha nao perderes muito tempo, para o livro sair, se possivel, nos primeiros dias da préxima época”. No final do ano, num cartéo postal, enviado no més de Dezembro, a desejar as Boas Fes- tas, dirige-se ao ensaista como se fosse 0 préprio editor ou organizador do volume: “Vi o artigo sobre 0 Ramos Rosa. Bonito para o teu livro. F.a propésito ~ quando vem o preficio? Manda cépia - ou pede ao Ramos Rosa para a remeter ~ sem gralhas = do artigo para o incluirmos no volume”. E 0 livro tarda. Relembramos a inscrigao das datas no preficio ¢ lemos, ainda a meio do caminho, as palavras de Eugénio de ‘Andrade: “Quando é que acabas o preficio ao teu volume de ensaios? Nao achas que & tempo (¢ poesia)?” (23 de Abril de 1971). Para IA desta correspondéncia, importa considerar alguns testemunhos do pré- prio Eduardo Lourengo, seja em entrevista, seja em notas manuscritas relativas a0 livro encontradas no espélio do autor (depositado na BNP). Uma entrevista de Abril de 1971 concedida a Nelson de Matos para o Didrio de Noticias abre justamente com a referéncia do jornalista a um livto que estaria para sair em breve. E é muito interes sante atentarmos na resposta de Eduardo Lourengo: “O livro a que alude ja deveria ter sa{do hé trés anos pelo menos. A culpa cabe-me inteira. Vou-me especializando em li- vros ‘péstumos’ a tudo. [...] Muitos dos ensaios que 0 compdem jé nao sao inéditos no sentido comum do termo. Mas que isso nao assuste o complacente editor: em Portu- gal tudo o que se publique com um intervalo de semanas é sempre inédito’. Pela boca do autor temos aqui um assumir dos atrasos da publicacao, matizado por um registo irénico, que nao deixa, contudo, de caucionar a efectiva novidade da obra futura. ‘Ao ineditismo apontado pelo autor nao serd alheia a ordenagao da obra (e a ideia de livro que essa arrumagao supée). No espélio, encontram-se elementos que dio conta do processo, designadamente varias folhas com listagens de textos para serem inclufdos no volume. Pode observar-se uma considerdvel variabilidade, no arrolamento das propostas de inclusdo. Percebe-se também que estas listas foram elaboradas em momentos diversos, a0 longo do tempo em que 0 livro foi sendo pro- gramado, Deparamos com algumas listagens apresentando um niimero reduzido de textos ao lado de outras bastante mais extensas Dentre as listas mais pequenas, hd uma com a indicagao de cinco ensaios apenas. Trata-se do documento mais completo relativamente aos dados bibliograficos sobre as proveniéncias (jornais ou publicagées periddicas onde os textos foram originaria- mente editados); todos os ensaios desta pequena lista foram integrados no livro. Ha mais duas listas breves (uma com sete referéncias, outra com oito) que suscitam algu- ma atengio, especialmente pelo facto de nelas se repetit a indicacao de dois textos que acabaram por néo ser incluidos no livro: “A Condi¢ao Angélica” e “Orfeu e Abraao owa Poesia entre a Lucidez e a Fé”, A primeira referéncia diz respeito ao titulo de um 14 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO livro de Nuno de Sampayo, que seria objecto de atengao critica por parte de Eduardo Lourengo; sobre o ensaio escrito a partir desse livro falaremos adiante. O outro ensaio referido permaneceu inédito até 2008, tendo sido publicado no n.° 22 da revista Re- Limpago, dedicado a Eduardo Lourengo, com uma pequena variagao no titulo. Outra questo que merece ser relevada prende-se com o facto de as duas listas ex: tensas apresentarem nicleos similares aos das listas reduzidas (sensivelmente os mesmos textos, com pequenas variacées),€ com o facto de as diferengas (0 que as expande) residi- rem numa enumeracao de nomes de poetas contemporaneos. Concretamente: Vitorino Nemésio, José Gomes Ferreira, Mario Cesariny, Casais Monteiro, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Sophia de Mello Breyner Andresen, Salette Tava- res, Raul de Carvalho, José Terra, Alexandre O'Neill, Anténio Maria Lisboa, Ruy Cinatti. Percebe-se que os nomes elencados constituem reenvios para textos jé existentes, para textos jé iniciados e que esperam desenvolvimento e conclusao, ou para textos meramen- te programados. Importa sobretudo sublinhar a ideia de que nos varios documentos pla- nificadores se deixa entrever a estrutura de base do livro assente na incluso de ensaios sobre a poesia eo poético, textos em torno de alguns niicleos consistentes (como Orphew ou Presenga), ¢ ainda leituras especificas dedicadas is obras de poetas contemporancos, ‘Atente-se agora com mais detalhe em duas listagens. Uma delas apresentada em duas paginas com um indice das propostas de ensaios a incluir, e outra apresentada numa sé pégina, incompletamente preenchida, com a referéncia as datas As prove- niéncias dos ensaios. Vejamos a lista das duas paginas do plano de inclus6es, que esta muito préxima (embora nao lhe corresponda totalmente) do que viria a ser a versao final do indice do livro. Apenas trés textos previstos neste sumArio nao entraram: “Ex: plicacao pelo Inferior”, “José Gomes Ferreira”; “A Musica Atonal de Casais Monteiro”. “Explicagéo pelo Inferior ou a Critica sem Classe contra Fernando Pessoa” (um dos textos sugeridos por Eugénio de Andrade) foi posteriormente incorporado no livro Ocasionais I (artigo incluido no vol. II das OCEL); 0s outros dois néo foram in- tegrados em Tempo e Poesia. O ensaio “A Miisica Atonal de Casais Monteiro” ficou mesmo inédito & espera de um acabamento que nao chegou (tendo sido revisto pelo autor para o presente volume). Refira-se ainda que um dos ensaios que apareceré na edigéo de 1974 nao é elencado no indice deste plano encontrado no espélio, Trata-se do ensaio dedicado a Vitorino Nemésio. Curiosamente o texto aparece referido na outra folha existente no espélio, que acima mencionei, ¢ que funciona cumo apoio a0 indice do livro em pteparasao, folha que é encimada com a indicagao “Datas dos artigos de ‘Tempo e Poesia’ ‘Na folha que apresenta o plano ¢ interessante observar ainda o propésito quase diddctico (orientacao para si préprio? Para o editor?) relativamente as partes cons- titutivas do livro: “Tempo e Poesia compoe-se de duas partes ou painé “A Poética Mitica compée-se dos seguintes ensaios:”; —— Introducio 20 Volume I~ EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURAPOETICA _15 “Por sua vex. A Imagem no Tapete compoe-se dos seguintes ensaios:”. ‘A maior parte dos livros de Eduardo Lourengo compostos a partir de recolhas de ensaios anteriormente publicados obedece a uma coeréncia, a uma unidade ¢ a um ébvio sentido de ordenacao. Esta nota do autor sobre as partes do volume ¢ extrema- mente elucidativa em relagio a esse procedimento. Convém sublinhar ainda um aspecto que dé conta do propésito organizativo do Livro, O texto “Explicagao pelo Inferior...” (posteriormente excluido) surgia inicial- mente como um dos quatro ensaios integrantes da primeira parte “Poética Mitica”, que efectivamente ird conglobar quatro textos, mas 0 quarto texto que fechard esta secgio, “O Irtealismo Poético ou.a Poesia como Mito’, na folha de sumirio existente no espolio que aqui estamos a seguir, aparecia noutra secedo (“A Imagem no Tape- te”) e muito apropriadamente foi deslocado para a primeira parte do livro. Por seu turno, a folha de apoio das datagées, encontrando-se incompleta (ha bastantes elementos por preencher), apresenta, no entanto, uma ordenacao prati- camente fechada e muito proxima da listagem dos ensaios que integrarao 0 volume. “Apenas dois nao sao ali nomeados: “O Irrealismo Poético ou a Poesia como Mito” e “pjaléctica Mitica da Nossa Modernidade’”. Este texto, datado de 1971, manteve-se inédito e seré dado a conhecer pela primeira vez no livro Tempo ¢ Poesia. £ importante atentarmos no arco cronolégico configurado pelas datas de publi- cagio dos textos compilados no livro (da década de 50 & de 70). A partir dessa am- plitude temporal poder-se-& acompanhar o pensamento de Eduardo Lourenso sobre © pottico. A propria seleccio operada pelo autor, a0 retomar textos provenientes de lugares diversos, langa pistas, na medida em que essas localizagSes séo relevantes para perspectivar o seu percurso ensaistico, sobretudo até ao inicio da década de 70. Os ensaios seleccionados, pertencentes a diversos tempos, oferecem uma representativa amostragem da variagao e da recorréncia em torno da reflexio sobre a poesia, desde o texto fandador de 1951, “Esfinge ou a Poesia”, saido na Arvore (revista de um grupo geracional em que o ensaista também se inscreve), um texto alegérico de fundo recor- te poético, até ao tiltimo ensaio, sobre a poética de Ramos Rosa, publicado em 1974. ‘Aselecc4o ¢ a agrupacao dos ensaios incluidos no livro revelam um caminho, uma aproximacao lenta, que espelha a propria via indagativa sobre a leitura de poesia. Il. Percurso ‘Numa das suas inumeriveis reflexdes sobre o tempo, Eduardo Lourengo contra- poe a dimensao abstracta de ordem cosmoldgica a dimensao histérica da vivencia temporal. Nao é 0 tempo césmico que nos interpela - “aquele onde nunca como “individuos,, a bem dizer, existimos, que de algum modo jé nos viu morrer antes de nascermos” (“O Que o Tempo Traz”, prefacio a Carlos Camara Leme, Os Passos em Volta dos Tempos de Eduardo Lourengo, 2014). © tempo em que existimos, o da “huma- 16 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO nidade a que pertencemos”, e que nos interroga, é outro. Lapidarmente, testemunha na primeira pessoa: “Para mim, foi o tempo encarnado, o que mal ou bem chamamos Histéria, como se fossemos o dono dela, que, desde jovem e para sempre, me foi a figuragao real, objectiva, da mitica Esfinge” (id.), Em todas as linhas vémo-lo ligado, profundamente ligado, ao tempo em que vive. Mesmo os ensaios sobre poesia que parecem obedecer 3 assungao de uma pers- pectiva nao historicista nunca implicam uma anulagao da temporalidade. A inquic- tude e os dilaceramentos do devir histérico ¢ cultural, o desejo voraz de o acompa- nhar em miltiplas direcgdes, repercutem sempre nas suas paginas. A jungao de fios soltos ¢ 0 seu redireccionamento para uma visdo orginica, subja- cente preparacdo do presente volume, permite-nos, atentando na cronologia, perspec- tivar a coeréncia extraordinéria do livro e ler o percurso desenhado pela obra de Eduar- do Lourengo. Podernos mesmo ler Zémpo e Poesia (nesta sua edicéo alargada) como uma espécie de autobiografia intelectual: “A minha maneira de falar de mim é falar através de Fernando Pessoa, ou de outro autor com quem eu tenha afinidade. Na verdade, eu falo de mim em todos os textos: tanto me faz que seja sobre politica, literatura ou qual- quer outra coisa” (entrevista por Inés Pedrosa, JL, 1986). As pistas vo sendo oferecidas, mais ou menos ironicamente, aos hermeneutas: Pessoa Revisitado como romance; Sentido ¢ Forma da Poesia Neo-Realista como episédio de outro romance, envolvendo persona- gens conviventes do tempo coimbrio, etc. O trajecto de Tempo e Poesia acolhe tempos diversamente vividos. O préprio titulo do livro, que concentra uma das mais fundas verdades do percurso lourenciano, pode ser lido como uma espécie de divisa. As proveniéncias dos ensaios e as suas datas de publicacao sao especialmente relevantes para o entendimento do caminho que leva ao aparecimento de Tempo e Poesia, em 1974, mas também em relagao aos ensaios escritos posteriormente, agora integrados na presente edigao. Importa acompanhar o movimento definido por essas. datas e esses lugares na medida em que nele se delineiam aspectos determinantes para a afirmagao do lugar da poesia no percurso do ensaista. Com a chegada a Coimbra, no inicio da década de 1940, para preparar os exames de admisséo A universidade, inicia-se um tempo de leituras sortilegas, do abalo nietzschiano ao perturbador fascinio literario. Assinale-se uma nitida de- marcagio de dois tempos relativos A permanéncia na cidade: 0 tempo da licen- ciatura (1941-1946) e o tempo em que foi assistente de Filosofia na Faculdade de Letras (1947-1953). Coimbra constitui-se como um tempo determinante no seu despertar para as coisas literdrias. A cidade é 0 espaco de abertura aos estimulos culturais, com todas as tensdes explicitas e implicitas. Eo proprio ensaista quem o sublinha: “foi a terra mais importante, decisiva, para o meu percurso intelectual - e continua a ser uma presenga muito forte na minha meméria” (entrevista por José Carlos de Vasconcelos, Visdo, 22 de Maio de 2003). Vemos primeiro Eduardo Lourengo associado a um grupo de colegas de curso que o conduzird até & Vértice ~ “expressao de uma geragao que através dela descobria o mundo, a sociedade, a Introdugio ao Volume II - EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POETICA 17 historia e tomava posicao em face deles” (“Revisitagao de Vértice”, ¢f. vol. II das OCEL). Mas Lourenso de Faria era um “hibrido”, que, alids, durante algum tempo ainda se manteve ligado ao CADC (Centro Académico de Democracia Crist); por isso, na Vértice, segundo o seu depoimento, lhe foram atribuidas tarefas re- censeadoras de livros com “vivéncias idealistas do mundo”, como 0 livro do ca- télico Francisco Costa, para que os questionasse. Entre a formagao catélica ¢ as concepsées ideologicamente interventivas que lhe vém do grupo ligado & revista neo-realista, absorve outras influéncias, no meio das intermindveis leituras, na universidade e fora dela: a fenomenologia husserliana, 0 existencialismo e 0 este- ticismo, Heidegger, Rilke... Se quisermos procurar um lugar que seja seu, diremos: entre. Lemos no fecho do seu poema “Aceitagao”, publicado na Vértice, em 1944, versos que iluminam uma visdo das coisas néo divisivamente excludente, mas intersticial - “que tudo morre em mim/entre o sim e o no/da minha contradigao” (¢f: vol. II das OCEL). Viven- do por dentro 0 desassossego da modernidade, convoca os poetas modernos para a sua leitura de eleigao, e acompanha-os no desespero que vem do abandono a que os deuses nos votaram. Esta auséncia de deuses iria tornar-se uma das mais poderosas inscrigdes do préprio discurso do ensafsta. ‘A operacao critica de Eduardo Lourengo coincide quase sempre com um forte envolvimento estético. Data relevancia deste segmento espacio-temporal na narrati- va biogrdfica aqui relembrada: a passagem por Coimbra parece ser particularmente digna de registo para o enquadramento do seu ensaismo em torno da poesia, Mais do que cenario ou “mito cultural”, o lugar foi propiciador de um mundo em que a poesia ganhava terreno. E em Coimbra (ow a partir de Coimbra) que a perspectiva sobre 0 real — o mundo ~ se expande, seja na agudizacao de uma consciéncia social, seja num questionamento dilacerado de feigao filos6fica ¢ cultural. Na primeira Heterodoxia, 0 primeiro andamento é a Europa. Na poesia, mesmo quando centra a visio em algum. poeta, as suas leituras pressupdem o perspectivismo. Nao se pode dizer que o autor de Heterodoxia tenha transitado da filosofia para aliteratura. Ele jé estava ld. Estava na perspectiva de uma atengao testemunhante do homem na cultura, que era antes de tudo literdria, Esta é uma constatacdo que se reti- ra da observacao mais imediata do percurso biografico (biobibliografico) de Eduardo Lourengo, o ensaista que quis dar um testemunho no tempo, marcado pela urgéncia do dizer. Entre fidelidades e afectos, 0 exercicio do pensamento € sempre de sopro largo. O final da década de 40 e o inicio da década de 50 esto associados a um momen- to decisivo na consolidagao do ensaismo de Eduardo Lourengo. Manifesta-se neste perfodo a centralidade da literatura nas andlises que faz da cultura portuguesa e do pais. Nos anos 40, para além de alguns textos e recensdes que comega por publicar na Vértice, publica também na Seara Nova (e importa lembrar aqui a presenga de Antonio Sérgio, sobre quem escreverd mais tarde em O Tempo ¢ 0 Modo, quando da sua morte, desmontando admiravelmente a intervengao ensaistica deste autor). 18 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO O lugar da poesia aparece fundamentado pelo papel que, na sua visio, o ensaista Ihe confere dentro do sistema cultural: “a cultura nao tem outta realidade que a do didlogo que os actores dela — os poetas em sentido largo ~ travam entre si” (Poesia e Metafisica). Por isso a recorrente afirmagio da pertenca & familia dos poetas € a reite- rada referéncia a essa repercussdo nos seus modos de ler: “Fago de tudo uma espécie de leitura poética, de puzzle de ficgdo. Unamuno pensava que Hegel era um grande filésofo porque era um grande poeta. E Heidegger entendia que 0s filésofos so, a seu modo, poetas” (Entrevista por José Carlos de Vasconcelos, Visdo, 2003). Dai também falar da “démarche romanesca” dos seus mais préximos — “os auténticos poetas de uma época nao so sempre aqueles que visivelmente o parecem, mas todos cuja obra é fonte de energia e impulso animico, como queria Dilthey. Vergilio Ferreira, Bessa- Luts sao neste sentido puros poetas ao lado dos que nao precisam ser mencionados” (prefacio a 3.* edigao de Mudanga, de Vergilio Ferreira, 1978). E claramente na década de 50 que Eduardo Lourengo comega a ter uma inter- venco digna de registo em algumas revistas ¢ jornais de referéncia, adquirindo a partir daqui maior visibilidade no espago publico e intelectual. A profunda consci- éncia critica, aliada a um manifesto sentido civico de participagao, nao esmorecem com a saida de Portugal. Passando a desempenhar fungées de leitor no estrangeiro, munca se desliga intelectualmente do que se passa no pats, € a este respeito é muito significativa a sua intervencdo na imprensa portuguesa. Refira-se aqui especialmente a sua colaboracao em Unicérnio (vd. 0 ensaio “Ideia para Uma Historiografia Existen- cial do Pensamento Portugués”) ¢ nos “cérnios” seguintes, a convite de José-Augusto Franga, por intermédio de Adolfo Casais Monteiro, assim como em jornais com uma expressiva difuséo a nivel nacional, em particular no suplemento cultural de O Co- mércio do Porto; tanto na revista de Lisboa como no jornal portuense publicou alguns dos textos que foram integrados em Tempo e Poesia (Tetracérnio: “Orpheu ou a Poesia como Realidade”; 0 Comeércio do Porto: “Duas Mansardas Poéticas”, “Angelismo e Po- . ”). Gostaria ainda, a propésito, de sublinhar esia’, “Presenga ou a Contra-Revoluga a dinamizagdo operada na organizagao do inquérito que dé origem a um marcante dossier em Bicérnio, sob o tema “Como Vivem os Intelectuais Portugueses ¢ a Sua Relacdo com a Cultura Passada em Portugal”. £ admiravel 0 sentido mobilizador deste inquérito de 1952, que pretendia dar a conhecer um “Corpus Scriptorum onde a nossa imagem se guardasse como tinica sem costuras”. Os termos com que Louren- 0, na “Nota Final”, faz uma sintese dos resultados do inquérito séo reveladores do que constitui a sua maneira de colocar os desafios, no seio da prépria interrogacao, longe de qualquer espécie de dogmatismo, recusando-se “a conciliar o inconcilivel” eassumindo o equivoco como intrinseco & natureza dos préprios problemas: “sé com equivoco se pode falar dos problemas”. Podemos considerar 0 percurso como uma incessante abertura de sentidos endo como uma busca de protocolos de sistematizagao. Existe um desejo de conhecimen- to propulsionador ~ que o ajuda a inscrever-se no territério, onde com um grande Introdugao ao Volume III - EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POETICA 19 A-vontade dialogard com criadores e criticos, e com criadores-criticos. £ a partir dai que se sentiré & vontade para fazer a critica a Mario Dionisio ou a Joao Gaspar Si- mies (no caso deste num embate que se prolongaré no tempo). ‘A saida de Portugal e o abandono da carreira académica em Filosofia sao deter- minantes para o futuro e multimodo Eduardo Lourengo: 0 posto de leitor de Portu- gués, primeiro na Alemanha (Hamburgo, Heidelberg), depois em Franga, a que se segue a ida para o Brasil, e por fim, a Franga, de novo, onde se fixara. Eduardo Lou- rengo nunca escreveu verdadeiramente de fora, A sua interrogayao esctita passa pela acutilante radiografia da realidade portuguesa. Escreve cedo sobre os que o rodeiam e vai reafirmando que é na literatura que melhor se vé a terra desolada: uma discreta forma de abrir janelas na era da asfixia salazarista. Mais tarde, uma face mais visivel desse estar dentro ser perceptivel naquilo a que j4 se chamou “mito Lourengo”: a recorrente diccao publica no Portugal do pés-25 de Abril. Lembre-se que é paradoxalmente a adop¢ao de um ponto de vista de quem esta de fora que conduziré a lucidez de uma visao de dentro. E importante sublinhar este ponto. Como no recuo do pintor que olha a tela em processo, Eduardo Lourengo escreve do lugar do continuo pensar ensaiando-se. Do lugar que deixa ver 0 gesto do pensar. O recuo (0 vago distanciamento) é 0 modo de estar dentro criticamente. Nesse sentido faz-se acompanhar dos poetas para dizer a sua reflexao dentro do tem- po. E é espantoso observar como, desde esses anos 40 do final da guerra, Eduardo Lourenco sempre convocou os poetas para entender e para mostrar a cidade. E nesse dizer, ao lado deles, ergueu também uma tapegaria tao verdadeira quanto poética, isto é, tao real — um lugar de dizer que é equivalente ao poema. ILL. Didlogos, encontros O que os poetas fazem, fundamentalmente, séo variagbes infinitas sobre esse ob- _jetto, 0 tempo, que émais esfingico que todas as esfinges, porque é ele que nos olba no “fundo dos olhos sem dar resposta. A resposta somos nds préprios que a temos de dar com a nossa vida, com a nossa existéncia. (Eduardo Lourengo, “Sobre o Tempo”) Areflexio sobre v tempo tem em Eduardo Lourengo uma forte matriz filoséfica ancorada no pensamento de Heidegger. O texto “Tempo e Poesia”, que dé o titulo ao livro, é uma peca-chave nesta direcc&o. O ensaista vai perseguir continuamente 0 propésito de que “a ideia da relagao entre verdade e tempo nao se desenvolve por mediagao da filosofia propriamente dita, mas por mediacdo dos préprios poetas” (Relémpago, n.° 22, entrevista por Anténio Guerreiro). Entre poetas, procura a forma de testemunhar o tempo vivido, entrando no préprio Amago do tempo: “Como no sou Chateaubriand, mas pertenco também a uma geraco que parte, prefiro escrever as minhas memérias sem além-timulo, na companhia dos 20 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO que estao na plenitude das suas vidas ¢ dos seus dons. E uma maneira como outra de estar menos morto” ~ escreve no inicio do texto sobre o ensaismo de Vasco Graca Mou- ra, colocando em epigrafe palavras deste poeta, inscricdo de uma forca identificatéria absoluta, dir-se-ia pela propria mao: “O tempo é também uma criagio verbal”. Uma interpretagao sub specie autobiographica do mais emblemético dos livros de Eduardo Lourengo sobre 0 poético pode ser pensada a partir de elementos de ordem biografica que nos mostram o ensaista desde vedo entre os poetas. Eduardo Lourenco leitor de poesia, mas também Eduardo Lourengo instigado por poetas que muitas ve- zes esto na origem de alguns dos ensaios. Por exemplo, as cartas de Torga, de Eugé- nio de Andrade ou de Ramos Rosa (poetas que habitam de modo singular esta obra) do-nos pistas sobre esses encontros e sobre a génese do livro, como ja foi referido. As solicitagées revelam a forma como os poetas interagem com o critico, no re- conhecimento do seu inigualavel ensafsmo, e o modo de configuracdo da obra a partir desse didlogo. Algumas cartas ¢ bilhetes que se encontram no espélio testemunham 0 reconhecimento agradecido dos poetas pelas leituras, mas também o incitamento, os pedidos para serem lidos. Entre muitos exemplos, veja-se um cartao de Salette Tavares, datado de 1957. A poetisa anuncia o envio de um livro seu ¢ aguarda a opiniao do criti- co: “Chegou o seu postal de Viena quando olivro jé estava pronto. Recebo-o hoje e ja lho mando desejosa de saber as suas impressées”: As breves palavras, a enderecar os votos de Boas Festas para o ano de 1958, Salette Tavares junta um post scriptum: “Gostaria de ter uma critica sua. Ser possivel, num dos jornais onde V. escreve?”. Houve ensaios que fi- caram inéditos, por se ter pretendido um desenvolvimento que nao chegoua acontecer. Alguns desses textos sao aqui revelados. Foi o que aconteceu com “O Espelho Cego ou a Impossivel Transparéncia’, uma leitura do referido livro enviado por Salette Tavares ao ensaista, Eduardo Lourengo reviu este texto para ser publicado na presente edicao. Desde muito cedo a sua interrogacao sobre o acto poético é uma atengao critica aos contemporaneos. Porque estava rodeado pelos vivos, e porque ele mesmo se ins- crevia no modo presente de dizer a desergao dos deuses ¢ a orfandade ow a cisio do tempo dividido. E se jd em 1955, na sua primeira publicacao (fora da filosofia) sobre o poeta convivente, inclui as “novas geracdes” na sua leitura (apresentadas alids no pré- prio titulo que afirmativamente sublinha a polarizac4o ampliadora), em 1968 voltard As fidclidadcs c aos afectos de vinte anos antes. No prélogo ao livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, com extrema clarividéncia, justifica a necessidade de uma isenta e produtiva atengao critica aos coevos. Denuncia af uma cerceadora “pequenez geogra- fica”, entrevista como responsével por um panorama empobrecido onde nao hé lugar criticamente livre para a “atengdo viva e vivificante, salvo sob forma hiperbdlica de lisonja ou de mais aberrante denegrimento em relagao ao que nos cerca”. Coloca-se as- sim do lado oposto ao das tendéncias dominantes: a “singular admiracao funeraria e comemorativa” diante dos mortos ¢ 0 cullto “da elegia e do sarcasmo” diante dos vivos. Desta convivéncia resulta um tom cimplice ¢ uma simpatia, que atravessam muitas das leituras marcadas por uma generosidade iluminadora, especialmente Introdugio ao Volume I - EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POETICA 2] acentuada a partir do momento em que, com a passagem do tempo, revisita obras de autores que lhe estiveram préximos. A propésito desses regressos, lembrem-se nomes ligados & revista Arvore, a quem dedicaré uma atengao grata, em particular Ramos Rosa, mas também Raul de Carvalho e Albano Martins. Publica-se também na presente edigdo um texto escrito em francés, que se encontrava inédito, sobre esta revista e sobre aquilo que representou esse tempo: “Le Moment Arvore”. Esta revista teve quatro niimeros publicados entre 1951 € 1953. Foi justamente no primeiro ni- mero de Arvore que o proprio Eduardo Lourengo colaborou com o ensaio “Esfinge ou a Poesia”, texto integrado em “Poética Mitica’, a primeira seccao do livro Tempo e Poesia. Nao é por acaso que a palavra “tempo” aparece gravada neste que é um dos seus mais importantes livros sobre poesia. As quest6es do tempo contingente, em tensio com aleitura de pendor fenomenolégico, séo essenciais para ouvir nos versos 0 cora- 40 da terra. Veja-se, a este respeito, como se opera o efeito da temporalidade (tem- po dentro do tempo) nas releituras de livros de poesia e dos préprios ensaios. Num texto de 1988 (retomando uma leitura anterior sobre Eugénio de Andrade, que fora apresentada num dos importantes ensaios, do inicio dos anos sessenta, dedicados ao poeta) assume a visdo de perspectiva, quando se reporta ao tempo em que surgem As ‘Maas e os Frutos: “Ao mistério dessa harmonia nos poemas celebrada, acrescentava-se qualquer coisa de insélito, tao estranho parecia esse canto da maturidade adolescen- te, A imagem humana do tempo dilacerado onde surgi, como uma fonte em pleno deserto.” [“A Breve Musica Nocturna de Um Poeta Solar (Relendo As Méos e os Fru- tos)". No interior dos proprios ensaios, dé conta frequentemente da sua vivéncia do tempo, no modo como dentro deste alterou a percepgao de poéticas de autores que conheceu, e af mesmo apresenta propostas de revisdo. Veja-se 0 texto sobre David Mourdo-Ferreira “Fulgurante Meméria”, Fala do tempo na obra do poeta, mas tam- bém da forma como ele préprio, enquanto ensaista, alterou a sua perspectiva: “Nada mais melancélico que o sentimento sem remissao de ter passado inatento ao que por to familiar ¢ idealmente intimo era a misica e a viagem nada secreta do nosso pr6- prio tempo”, Com a passagem do tempo, revisita também a obviedade das leituras no tempo histérico por si mesmo vivenciado: “E tempo de examinar com outros olhos ‘a subversao’ e os labirintos poéticos dela que.As Evidéncias cientemente quiseram ser e foram, como manifestacao irreprim{vel de um combate do poeta nos limites do jé- dito ¢ do inter-dito” (“As Evidéncias de Eros”). Leitor de poetas, entre poetas, experiencia processos de intensas identificagdes € desidentificagdes: “A descoberta da moderna literatura portuguesa fizera-a primeiro com autores da Presena, e o mesmo sucedera, deixando de lado as criticas cosmopolitas, com a critica literaria” (Expresso, 22 de Maio de 1982). Nao é por acaso que em alguns dos seus depoimentos e entrevistas a Presenga surge como um lugar inspirador. Creio que algo do espirito da Presenga ou, mais do que isso, do inquieto espirito regiano sintetiza os 22 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO paradoxos que, nesse tempo de encruzilhadas, Lourengo necessariamente vivenciaria, e dos quais partiria para ler a vastidao e a complexidade do mundo. Nao esquecendo evidentemente 0 mais fundo abalo - Orpheu, Pessoa, a literatura moderna... Do CADC A Vértice e ao circulo de Torga, o que transportard desses dias? Os sinais da camaradagem e as inquietagdes sdo bem visiveis nos seus textos. Sob 0 es- pectro da devastagao, reflexo angustioso de um pés-guerra tao proximo, a poesia devolve-Ihe uma imagem mais viva da terra. Como habité-la? Como gerir o proclamado distanciamento, quando fala dos poetas préximos? Enuncia no préprio discurso um combate que ¢ abrigo do paradoxo triunfante. Des- de muito cedo foi recorrente a reflexdo sobre o acto critico. £ também isso que torna fascinante o ensafsmo de Eduardo Lourengo: a atitude questionadora que o leva a problematizar-se continuadamente no acto que exerce. O sentido de pertenga a uma tribo (estar dentro) é perspectivado a partir da consciéncia da falha ¢ da distancia. Baptiza por isso de “tribo melancélica” o grupo em que se inscreve. £ essa mesma consciéncia viva que o faz entrever o lado positivo do combate. E é entéo 0 paradoxo que triunfa: “O paradoxo é que este combate perdido é uma espécie de vit6ria. A ini- ca que os deuses concedem a espécie critica. O dever dessa tribo melancélica é de ter consciéncia da distancia que a separa do milagre divino da Poesia. E falar dela como se ndo fosse o misterioso espinho que ao mesmo tempo nos fere ¢ nos transcende como pura alegria” (“Siléncio em Forma de Eco”). As leituras da poesia de Eugénio de Andrade destacam-se no conjunto do en- saismo de Eduardo Lourenco pelo ntimero de textos que so dedicados a esta obra (ainda que muitos deles de pequena extenséo) e sobretudo pela cumplicidade e a forte empatia que demonstram. Presenca préxima com quem conviveu, foi também um dos poetas que mais 0 instigou. “Em S, Lazaro vivia rodeado de musica. Ja era assim, mas os discos eram os dos seus amigos Vale, em Coimbra, na roda de quem © conheci, esbelto, atrevido, provocante, insolente quando calhava” (“Siléncio para Eugénio”). Os dois ensaios sobre Eugénio incluidos na edicao de 1974 séo um dos melhores exemplos de como os textos impulsionam o movimento que nos leva da leitura de uma poética prépria & reflexéo amplificadora sobre 0 poético e sobre a poesia contemporanea. A este respeito é significativo o titulo “Angelismo e Poesia’. Naturalmente que ecoa neste nome a t6pica rilkiana que deixou marcas fortissimas na poesia do século XX. Trata-se de uma leitura que Eduardo Lourenco perseguiu desde cedo (lembre-se também a revelagao que foi para ele a poesia de Rilke, nos anos 40, em Coimbra, pela mao de Paulo Quintela) e repercutiu em muitos textos mais recentes (por exemplo, no que escreveu sobre Al Berto). Aceste propésito, importa referir o lugar de um ensaio inédito dado a conhecer na presente edigfo: “A Hora da Condic&o Angélica’, O texto escrito a partir do livro de Nuno de Sampayo, 4 Condigiéo Angélica (1960), anuncia o ensaio “Angelismo ¢ Poesia’ Séo varios os pontos de contacto entre o texto sobre o livro de Nuno de Sam- payo ¢ 0 texto publicado pela primeira vez, em 1968, nas paginas de O Comércio do tntroducio a0 Volume I~ EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POETICA _23 Porto (“Angelismo ¢ Poesia ~ de Eugénio de Andrade a Herberto Helder”). A aproxi- magao patenteia-se, antes de tudo, no comparecimento de uma epigrafe comum, ver- gos de Ricardo Reis (0 texto sobre Nuno de Sampayo apresenta mais duas epigrafes de poetas proximos de Lourenco: Alberto Lacerda, José Terras 0 ensaio “Angelismo Poesia”, que se centra na obra de Eugénio de Andrade, apresenta também uma epi- grafe de Casais Monteiro). Os dois ensaios falam da presenga iluminante ou ofusca- Gora dos anjos na poesia. “A Hora da Condi¢ao Angélica” comega por reenviar para ésea realidade que é a presenga dos anjos na histéria da cultura: “Na realidade, em todo o tempo, quer dizer, sob ¢ acima dele, os anjos, mesmo ausentes, iluminaram, balizaram a terra insélita da nossa tinica realidade.” Este enquadramento sobre o lu- gar do anjo reaparecerd em “Angelismo e Poesia’. Uma das caracteristicas da critica Jourenciana, que também surge no texto sobre a poesia de Nuno de Sampayo, € aam- plificagao especulativa de vasto alcance a partir de um nome, de um titulo, de alguns Versos. Aqui o titulo € decisivo para mover o pensamento, “a condigao angélica’s e para mostrar também o confronto que “desde ha séculos s6 a poesia guarda [...] com is realidades tiltimas da condicao terrestre’. Sublinho outra oposicao tratada com grande agudeza: o confronto entre “estrondo” e “discrigao”. Grande parte das vezes a audacia nao estd do lado do estrondo, mas sim onde o siléncio se pode ouvir. Importa prestar uma atengdo particular & incluso em Tempo ¢ Poesia de um pe- queno livro anterior, O Desespero Humanista em Miguel Torga eo das Novas Geragées, ¢ ao facto de a escrita deste ensaio ter resultado do encontro e do didlogo estreito com © poeta cuja obra € ali objecto de leitura. Este ensaio constitu, & época, 0 texto de maior fdlego sobre literatura escrito pelo autor. Existem elementos de ordem biogréfico-literaria sobre as circunstancias da referida publicagéo que séo relevantes para o entendimento do percurso do ensaista. Atente-se numa carta que Torga dirige a Eduardo Lourengo, quando este ja se encontrava no ¢s- trangeiro, escrita a 14 de Dezembro de 1954, e que apresenta consideragées sobre o texto: “[...] mas sempre penetrante ¢ original. Por isso, parece-me que valia a pena que se nao perdesse nas paginas efémeras dum jornal (onde, de resto, s6 poderia vir aos bocados), ou fosse agonizar em qualquer das moribundas revistas de que me fala. Procurei dar-lhe vida mais longa numa pequena brochura de quinhentos exemplares. Propus 0 caso & Coimbra-Editora, e consegui convener 0 Saraiva. Conte, pois o meu Amigo com provas dentro de dias. Provas que devolverd o mais depressa possivel, com as emendas que entender\...] PS. Claro que o Dr. estd ainda a tempo de dizer que nao Ihe interessa esta so- lugo. Nesse caso, eu arcarei com a responsabilidade da composi¢ao executada até a data da sua resposta. A minha pressa foi para se aproveitar a época do ano novo.” 24 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO Trés dias depois (a 17 de Dezembro), Torga escreve outra carta, a acompanhar o envio das provas, com novas observagdes e sugestdes, tendo tomado a liberdade de pedir na gréfica mais espago para que o autor do ensaio pudesse expandir o seu texto. Q encontro com Miguel Torga acontecera alguns anos antes, Precisamente em Coimbra, em 1947, ano em que Eduardo Lourenco entrara como assistente na Faculda- de de Letras: “Ai comegémos uma conversa que nao devia ter fim, mas se interrompeu com a minha partida para Hamburgo e uns anos mais tarde se quebrou sei se quebrar” (“Evocagao Espectral’, JL, 1a 14 de Agosto de 2007). Em 1947, Miguel Torga ja era 0 autor a quem letrados emergentes pediam salvo-conduto para entrar num qualquer Pantedo no reino das letras [“figura ja emblemética de Coimbra, onde cada gera¢o de poetas (¢ todas o séo) aspirava ter a sua béncdo literdria”]. A década de 40 constitui um ponto alto na consolidagao do nome do escritor. Como dir mais tarde Eduardo Lourengo, num registo de sintese sobre a producao literéria deste periodo, os anos 40 abriram justamente com Bichos, que viria a ser 0 mais reeditado e traduzido dos livros do autor, o qual publicaria nos quatro anos seguintes “o essencial da sua ficg40” (“A Fic- 40 dos Anos 40°, O Canto do Signo). E este escritor “célebre e celebrado” que acolhe no seu circulo 0 jovem “assistente de filosofia, a respirar inteligéncia e inquietagao”, como a ele se referird na linha com que o faré entrar em A Criapéo do Mundo. A heterodoxa maneira de ler 0 mundo implica uma predisposigao da parte do jovem ensaista para cruzar universos. Nao se colando a vis6es ideolégica e esquemati- camente condicionadoras, néo se conforma com os dominantes modelos vinculados a0 catolicismo ou ao marxismo. A aproximagao a Miguel Torga deve ser entendida no quadro desse processo indagativo. O autor de Contos da Montanha construira uma singular via de afirmasao: vindo da Presenga, depressa se independentizara por consi derar que este grupo solipsisticamente se fechava ao mundo (e aos seus dramas sociais € politicos), mas também nao alinhou com as manifestagdes estéticas, surgidas nessa década de 40, estreitamente vinculadas & vulgata marxista. O ensafsta em formacao encontra na figura do escritor mais velho um exemplo que o ajuda a problematizar algumas inquietagdes, como aquelas decorrentes das suas relag&es com os jovens co- legas neo-realistas, os quais foram realmente importantes para a constituicéo da sua consciéncia ideolégica c estética, ainda que ele sempre se tenha mantido um “impuro”. Na distancia dos anos, esta amizade suscita uma produtiva leitura de feicdo psi- canalitica. Os préprios ensaios e testemunhos varios de Eduardo Lourenco consti- tuem elementos nucleares para essa interpretacdo. No final de 1954, j4 estava em Heidelberg, ¢ é de lé que envia uma carta ao autor de Penas do Purgatério, acusando a recepgao deste livro, que sera justamente a alavanca motivadora para a escrita do en- saio que sairé no ano seguinte, A carta fala da poesia no tempo: “Nao creio que haja hoje entre nés um livro de poemas mais significativo da nossa consciéncia actual, A sua situagao pessoal por um destes ndo-acasos que cabem a certos criadores acha-se tao fundida com o sentido da nossa existéncia histérica que é quase sem surpresa Para quem o conhece ver nascer com toda a naturalidade esses versos amargos e pu- Introducio a0 Volume Ill - EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POETICA 25 ros, bem merecidos se se pensa no poeta e quase mal merecidos se se pensa na triste realidade que os suscita assim, cristais talhados no lodo vil do tempo nosso, ai e em toda parte” (11 de Novembro de 1954). E também a questao do tempo ¢ da leitura da poesia no tempo que levard a que o ensaio se alargue 4 obra de outros poetas do seu tempo contemporaneo ~ “as novas geracoes”. Se Torga representa no momento do encontro com Eduardo Lourengo um indis- cutivel modo de superacdo de referentes literarios demasiado constritores, este rela- cionamento acabou por ficar marcado por complexos mavimentos tensivas. Torna-se claro que existiu da parte de Eduardo Lourengo uma genuina admiragao pela obra torguiana ¢ pela grandeza ea frontalidade do exemplo civico do escritor. Quase se poderia falar de ansiedade da influéncia, nos termos de Harold Bloom. Um dos vec- tores mais significativos nesta historia de encontros e desencontros prende-se com a poderosissima interferéncia pessoana, ou seja, com a forma como o nome e a obra de Pessoa se interpdem entre Lourengo Torga. Pessoa, cuja obra lhe tinha aparecido quase ao mesmo tempo, configura, num certo sentido, o tinico relacionamento de pendor identificativo, quase irrestrito, nascido de um encontro congenial. A partir daf, Lourenco jamais poderia ler Torga, ou qualquer outro autor, da mesma maneira. Pessoa e Torga so dois nomes que representam dois pélos distintos de mani- festo alcance para a formagao do ensaista. Duas figuras que de modo diferente o interpelam. Torga, o mais afirmativo escritor com quem conviveu nesses anos, € que espectralmente estard presente ao longo de muito tempo. Pessoa, do lado das sinte- ses superadoras, que contém em si a nao-resolugao. £ com Pessoa que se dé o ponto alto da sua entrega a literatura, isto ¢, a poesia. Em relacao a Torga dominar a leitura ambivalente ¢ fantasmatizada, onde se percebe 0 posicionamento tensivo que vai dos processos de identificagao (patente em muitas cartas) A reserva critica. Mas Lourenco nao entra em disputa literdria. Na verdade, o seu territério é ou- tro, Ele entra no circulo como filésofo fascinado pela estética e pela literatura; é nes- te processo que se torna o nosso maior ensaista literdrio. Como que nasce aqui. E é aqui que além da sua expresso ensaistica se manifesta a mais livre expresso artistica aque ele deu algum desenvolvimento, de certa forma em didlogo com a obra torguia- na € com Pessoa no horizonte: o formato do Dizrio. Entre os papéis conservados no espélio, pode observar-se a existéncia de um curioso recurso com vista 4 assinatura de textos au de projectos de textos naa ensa- isticos. Encontramos uma série de variagées onomésticas que ocorrem no comple- mento de um termo fixo, motivadamente procurado: Tristéo Marcel, Tristéo Ge- orges ou Tristéo Bernardo. Neste tiltimo nome, anagramaticamente encontramos 0 eco do nome préprio. Entre os projectos (inscritos em folhas soltas), deparamos com alternancias, oscilages que revelam os termos da nao-fixag4o. Um exemplo extraor- dinariamente eloquente no dominio das capas (folhas de rosto) dos planos prende-se com a transi¢ao, com o modo como o mesmo projecto tanto é assinado por Eduardo Lourengo como por Tristao. £ 0 que se pode ver relativamente a ideagao de um texto 26 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO ficcional para o qual nao s6 existem titulos, como também listas de personagens. Trata-se de um projecto em relacao ao qual se encontram, no espélio, varias folhas, datadas de 1950 ¢ de 1951. As intitulagdes mais recorrentes para este projecto so “Os Cravos Brancos” e “Ana Silvia” (Espélio de Eduardo Lourenco, BNP). A questéo da assinatura, contudo, nao surge apenas neste contexto. O fascinio pelo jogo com os nomes, em exercicios ficcionais, pode servir-nos de pista, entre outras. O que € posto em movimento nao é o jogo presencista do duplo e do uno como aquele que foi praticado por Régio e Torga. Também Eduardo de Faria se de- bateu com as questées da assinatura, tendo subscrito, muito cedo, alguns textos com onome Eduardo Coimbra além dos textos sobre literatura publicados na Seara Nova, em 1947, Eduardo Lourengo assinou com este nome um texto na Vértice no ano an. terior). Recorde-se a propésito que também a escrita ficcional de Eduardo Lourenco, sob a forma de diario, teve varios projectos de titulos e que o inicio dos anos 50 (1952, 1953, 1954) foi a este respeito um perfodo particularmente fecundo. Em 1953, 0 titulo possivel era Tristéo ou o Livro da Alma. Didrio Existencial Apresentado por Edu. ardo Lourengo. E aqui emerge uma poética ao contrério da poética torguiana. Existe mesmo um fragmento datado de 10 de Setembro de 1953, de reminiscéncias gidianas © com ecos pessoanos, onde é questionada a ideia da auto-representacao autoral, que marca a producdo diaristica de Torga, construida esta sob o signo da unidade. Tris. to contrapropée como alternativa o caminho da imagem “baralhada”, “destruida” ~ “Sinto que o Torga devia fazer esforgos nao para carregar no espirito dos seus leito- res a imagem Torga, a vis4o-das-coisas Torga mas para a baralhar, direi mesmo para a destruir” (Espélio de Eduardo Lourengo, BNP). Mais tarde, em Agosto de 1965, no suplemento cultural de O Comércio do Porto, publicard um texto decisivo sobre a escrita diaristica de Torga (“Uma Empresa Singular: O Diétio de Torga”) que estard na origem de uma ruptura entre o escritor ¢ 0 ensaista. IV. Perspectivas No espélio de Eduardo Lourengo, existe uma carta de Torga, enviada de Coim- bra, a 30 de Abril de 1957, que comega assim: “Sé depois de lhe ter escrito a carta de antes de ontem soube da existéncia deste artigo do Casais, que agora consegui e jun- to. Creio que teré gosto em Ié-lo, pois é na verdade o mais justo e caloroso estimulo que até hoje vi sair da pena inteligente e azougada daquele diabo. Oxalé ele consiga aquilo que cu préprio luto por conseguir: que o meu Amigo trabalhe e nos dé a obra de pensamento que todos esperamos de si”. O recorte do referido artigo de Casais Monteiro encontra-se junto da carta ¢ tem o titulo “Critica e Filosofia” A mao, no recorte de jornal, aparece a inscri¢ao da data: “24-4-957” Trata-se de um texto de extrema importancia, escrito a propésito da publicagao de O Desespero Humanista de Introducio a0 Volume Ill - EDUARDO LOURENGO, HABITANTEDA AVENTURA POBTICA 27 Miguel Torga eo das Novas Geragées, mas que no se situa no émbito da mera recenséo. Todo ele € marcado pelo diagnéstico (0 vazio do panorama critico-filoséfico em Por- ugal) ¢ pelo augiirio (a esperanca no nome Eduardo Lourenco). Casais Monteiro j4 era na época uma voz autorizada no nosso espago cultural ¢ literdrio, O diagnéstico sobre o panorama critico em Portugal pée anu a pobreza do pensamento filoséfico dominante, nos mais diversos dominios: “O ponto de vista de Eduardo Lourenco, caso raro de fildsofo que entende ¢ sabe falar de poesia, da excep- cional significado & sua atitude, e pode ser tomado como uma indicagio positiva de uma regeneragéo do pensamento portugues cada vez. mais necessdria, ¢ que em v4o esperamos nestes iltimos vinte ¢ tal anos, de uma série de homens dados ao pensa- mento puro, ou pelo menos a interpretagao dos problemas & luz de uma ou outra filo- sofia”, O ponto central da generosa intervengao de Casais Monteiro prende-se com 0 reconhecimento attibuido ao ensaista emergente e com presciéncia face ao que viria aser, de facto, um percurso extraordinario no nosso panorama ensafstico. Caminho assente na intima relagéo entre a filosofia ¢ a poesia: “Eis o que podemos esperar talvez de Eduardo Lourenso, se as promessas que nos tem dado se concretizarem na obra que dele temos o diteito de esperar”. Sobre a questao do viés filoséfico na leitura do poético, sobre a articulagao entre poesia ¢ filosofia, importa atentarmos nas reflexes apresentadas na carta de Eduar- do Lourengo a Casais Monteiro, de 13 de Setembro de 1960, publicada em anexo no presente volume. £ no contexto do didlogo a volta do ensaio “Presenga ou a Contra- Revolugéo do Modernismo Portugués?” que surgem estas palavras esclarecedoras: “O meu parti-pris ¢ filoséfico se se quiser no sentido de que depende, pressupde ou institui uma filosofia estética (expresso pleondstica alids), E uma certa ideia ou vi- véncia do poético que justifica implicitamente no meu ensaio todas as consideragoes. Em esquema a fundura poética manifesta-se-me pela realidade de uma auséncia (re- alidade e nao ‘evocagao dela’) para a qual tudo concorre no poema, a qual, na outra face nés lemos como segunda realidade ou realidade-outra ¢ cuja diferenga com a que nos serve de trampolim cria o movimento da ‘finalidade sem fim’ do ‘mistério’ do ‘encanto’ ou do que se queira a que se liga o fendémeno poético em geral’. No percurso de Eduardo Lourengo, no modo como a poesia se intersecta com a filosofia, de novo, todos os caminhos vao ter a Pessoa. A seguir a esta descoberta, es- creve, como consequéncia, o texto “A Esfinge ou a Poesia”, que reflecte precisamente esse entrecruzamento: “Encontrava ali uma poesia com um grau de questionamento interno paralelo ou andlogo ao da prépria filosofia [...] Isso fez com que no principio dos anos 50 eu tenha escrito um texto ‘A esfinge ou a poesia’, um texto alegérico que é uma mitificagao do lugar da poesia na existéncia” (Reldmpago, n.° 22, entrevista por Anténio Guerreiro). ‘A revelagéo da poesia de Pessoa foi o grande “choque” que o transformou, nos anos 40, na sua estrada de Damasco, onde ocorreu o mais profundo abalo de alicer- ces: “Qualquer coisa que me causou uma perplexidade de toda a ordem, nao apenas 28 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO estética” (id.). Como se a filosofia por si nao Ihe bastasse em resposta as interrogag6es liltimas. Para Eduardo Lourenco o fascinio da literatura vem-lhe justamente dum espago interestelar, zona de confluéncia onde lugares se intersectam: “Esse espanto liricamente expresso, sem a preocupagao de uma resposta, aberto, é Poesia [...] No fundo, todo o poeta persegue sob a forma do onirico o mesmo desejo de entrar em contacto com qualquer coisa que engloba o Sentido geral da sua prépria experiencia” (entrevista por Inés Pedrosa, JL, 1986). © posicionamento ¢ a pratica criticas assentam fortemente numa base diferen- ciadora face ao panorama dominante. A formagao de Eduardo Lourengo é essencial para o lugar em que ele se vai afirmar na cena cultural portuguesa, e em concreto no ensaismo literdtio, Hé uma decisiva afirmagao fundadora que se sustenta na ideia- chave de que o literdrio nao é perspectivado apenas como literdrio. O que no literério se contém é dominio maximizado do inominado... “Para mim, a literatura é a expres- sao de alguma coisa mais, que no fundo nao tem nome”, Esta afirmacao surge em resposta a entrevista feita por Inés Pedrosa, quando questionado sobre o facto de o interesse por Pessoa nao parecer apenas literdrio. Na mesma resposta, alude & separa- ¢Ao tedrica relativamente a geragao da Presenga, sobretudo em relagdo As perspectivas criticas de Régio e de Gaspar SimGes, para afirmar a proximidade em relacdo a outro nome do grupo, Casais Monteiro, em especial pelas afinidades filosdficas. No cruzamento de lugares em que a obra de Lourenco se situa temos dificuldade em classificar as leituras propostas: leituras fenomenolégicas, metafisicas, ontolégi- cas? Recorde-se 0 que disse de Jorge de Sena, quando se referiu ao facto de o autor de Peregrinatio ad Loca Infecta nao ter sido “inclinado a formular acerca da poesia um tipo de discurso que de perto ou de longe se possa rotular de filosofia ou metafisica do po- ético”, para acrescentar que “todavia, como poucos poetas falou continua e magnifi- centemente, para empregar expresso sua, de poesia e de poetas nela. Por essa ordem € conscientemente” (“Poesia ¢ Poética de Jorge de Sena”). Sobre Eduardo Lourenco se poderia dizer que falou a filosofia ou a metafisica do poético com poetas dentro. Desde o inicio, combateu a deformagao das interpretagées que procuram ajus- tar-se a extrinsecas motivagées. Nesse sentido reagiu as leituras dogmaticas, tendo como alvo primacial a vigéncia critica de Gaspar Simées, mas também a limitacao tendenciosa de leituras da esfera neo-tealista (vejam-se as reaccdes a criticas feitas por Mario Dionisio ou por Anténio José Saraiva). Atentemos agora numa pega importante para um adequado entendimento das pers- pectivas criticas em Eduardo Loureco: o prefacio a Tempo e Poesia. Os textos metacriticos € 0s paratextos constituem pecas nucleares para a compreensao do ensaismo literétio do autor (¢ em concreto do ensafsmo sobre poesia). £ por isso necessario destacar devida- mente o papel ocupado por este prefiicio, assim como pelas notas no final do livro. O preficio ao livro Tempo e Poesia (“Critica e Metacritica. Balizas para Um Itine- rério sem Elas”) é uma pega nuclear, como o sao outros prefacios (vejam-se as intro- dugdes a Sentido ¢ Forma da Poesia Neo-Realista, Pessoa Revisitado, O Canto do Signo...) Introdugo ao Volume II ~- EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA PORTICA __29 ‘Trata-se, neste caso, de um texto muito esclarecedor sobre o percurso do ensaista e sobre o mapa que o livro desenha. Assinale-se a lourenciana despistagem, o modo da indecidibilidade (das hipéteses de fixacdo de um itinerdrio, em balizas, & concretiza- go pela auséncia: “sem elas”). Podemos por conseguinte ler este prélogo como um texto progtamético. Um dos pontos-chave é a sua posigao face a critica detentora de juizos sumérios como se em sede de tribunal, O préprio prefacio se erige como contraponto a essa pratica. Refere mesmo que todas as suas consideragées introdu- tbrias “se destinam a combaté-la [essa prética critica] e, ao mesmo tempo, sem pudor algum, a justificar um itinerdrio que s6 tem sentido em fungao dessa impugnagao’. Mais do que em qualquer outro lugar, encontramos aqui uma sintese iluminadora: “Na realidade, como sempre sucede, o percurso foi mais sinuoso, mas no essencial a. componente anticritica constituiu a motivag4o 20 mesmo tempo passional e inte- Iectual da exegese literdria que me interessava. A obsesséo de julgar a Obra, antepés- seme a urgéncia de uma espécie de osmose com ela, de modo a que o meu discurso sobre ela fosse uma espécie de duplo, nao do seu préprio discurso ~ 0 que nenhuma Obra é ~ mas da claridade, da evidéncia interna, do movimento, em suma, da vida iluminante que na Obra existe, por ser o que é” Existe no espélio uma vers4o manuscrita deste prefacio com outro titulo mui- to significativo relativamente aos aspectos ai tratados: “Critica ¢ Poesia: Razées de Fundo e Forma” O prefacio constitui uma pega igualmente representativa do modo como nele o ensaista procura a inscrigao e a justificagéo do seu lugar enquanto cri- tico. Eduardo Lourenco assinala o arco temporal (“mais de vinte anos”) das suas in- tervengGes ocasionais, mas organicas, que no passaram totalmente desapercebidas (0 autor tem consciéncia disso) mas que nem sempre foram compreendidas; 0 caso dbvio, a que no preficio se faz referencia, é 0 mais célebre dos ensaios que integram 0 volume: “Presenga ou a Contra-Revolugao do Modernismo Portugués?”. Importa também atentarmos na forma como se nos revela a auto consciéncia de um projecto critic subjacente aos textos disseminados e a impossibilidade da visio de perspec- tiva ¢ intencionalidade decorrentes dessa disseminagio: “A propria dispersividade no espaco ¢ no tempo impedia uma razodvel apreensao do projecto ‘critico’ que iam cumprindo”, Eduardo Lourengo apresenta neste texto um lucidissimo diagnéstico relativamente 4 genealogia préxima, e prossegue, situando-se geracionalmente no campo da critica. Este posicionamento é importante para a leitura dos ensaios reuni- dos ¢ para o entendimento dos pontos de vista assumidos. O autor releva ainda o fac- to de ter sentido um particular apoio da parte da geracdo dos criticos mais jovens. O que é interessante aqui éa forma de este prefacio funcionar como certificado de con- firmacéo para a entrada na esfera critica. Existe a geracao anterior. Existe aquela a que ele pertence, e o modo de o ensaista diferenciadamente encontrar af o seu lugar. Este prefacio assume igualmente uma importancia fulcral para o entendimen- to do percurso critico de Eduardo Loureno pela forma como nele o préprio autor faz uma leitura desse seu percurso, dele procurando dar conta com extrema clarivi- 30 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO déncia, Se aponta para as muitas influéncias possiveis, como a do ensaismo de Paul Valéry ou, no campo filoséfico, a exegese fenomenoldgica, destaca dois eixos, duas tendéncias da critica que o instigam profundamente e que aqui tém vindo a ser refe- ridas: uma que o antecede geracionalmente (o presencismo) ¢ outra que é a dos seus contemporaneos (0 neo-realismo). Ao apresentar este quadro, descarta as vias redu- toramente esqueméticas no processo de busca da voz prépria: “Entre a Cila de um psicologismo idealizante e a-hist6rico e a Caribdis de um marxismo redutor obceca- do pela mensagem interventora imediata, se processou entdo a busca da passagem, sempre aleatéria, do noroeste enigmatico da geografia critica. Nao eram estes dois os linicos escolhos da topografia cultural do tempo no plano critico, mas eram os tinicos de actuagao relevante e de afirmado projecto tedrico” A preocupacao em torno das perspectivas contestadas e dos pontos de vista seguidos avulta, com mais insisténcia do que se poderia pensar, em intermindveis pequenas anotagées, no interior das préprias leituras. Em O Desespero Humanista em Miguel Torga e 0 das Novas Geragées, ao falar da Presenga, apresenta uma lapidar jus- tificagdo: “Nao censuramos, nem elogiamos. Verificamos apenas”, JA neste texto de 1955 se vincava a oposigao critica dogmatica e judicativa e a opgao por uma critica valorizadora, precisamente aquilo que constituiré uma tnica de toda a sua escrita, Se nao ¢ um esquadrinhador meticuloso, Eduardo Lourengo € 0 mais rigoroso dos leitores, consigo transportando uma espantosa bagagem de saberes, apesar da rasura de notas e de referencias bibliogréficas. Nao ha nisso contradicao alguma. No texto vibram as mil alusdes, muitas vezes imagética e metaforicamente convocadas. O modo de aproximagao a leitura coloca em pauta varios pressupostos que a0 longo do tempo vao sendo apresentados de forma mais ou menos directa, em mo- mentos anteriores ao livro de 1974, e também posteriormente. Um dos pontos de aproximagio diz respeito a questdo da pardfrase da parte de muito discurso critico que “envolve” a poesia lida “sem realmente [a] penetrar”, como refere no prélogo de outro livro, Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista. “Também nés oscilmos entre a glosa do sentido e a parafrase poética, duplo escolho da critica de poesia”, Outras interrogagdes em torno do método podem ser inventariadas. £ 0 caso do reconhe- cimento do enfoque spitzeriano em textos seus (concretamente neste livro sobre a poesia neo-realista) ou, por outro lado, a chamada de atencao para o reducionis- mo das leituras estil{sticas, em sentido estrito. A inquietaco critica é em Eduardo Lourenco consciéncia licida, atencao e adverténcia que sobre si mesmo exerce, E no Pensamento movente, na intuicao, que se concentram a novidade, o traco dinamico, a fulguragao, tudo aquilo que esté para ld da assuncdo de quaisquer exclusivistas re- gras metédicas. Em Tempo e Poesia, a expresso mais claramente afirmativa é a da escolha dos guias: os poetas, do lado de quem mais fundamente se aproxima do poema — “Deci- di, por conseguinte, que os Poetas seriam os meus guias ¢ nao os criticos, quero dizer aespécie critica que vive na iluséo de uma superioridade de estado do sen préprio es- Introdugio ao Volume Ill - EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POETICA 31 tatuto critico e da instancia (quando nao instituigao...) em que se constitui. Abdica- ¢fo do acto de julgar que por definicao ¢ 0 acto critico por exceléncia? Simplesmente, deslocacao de modelos e de normas tedricas que nao preexistem a experiencia vivida da leitura criadora (nos dois sentidos da viagem) da Obra”. Na senda da busca de compreensao do fenémeno poético, em toda a sua magni- tude, vamos encontrar da parte de Eduardo Lourenco interrogagées plasmadas em textos muito diferenciados que procuram captar a questdo a partir de angulos diver- sos, em quadros distintos. E 0 que podemos ler também em varios dos textos que foram sendo publicados apés a edicao de 1974. Eo que podemos ler igualmente em varios inéditos aqui dados a conhecer. O enfoque filoséfico é uma linha central no ensaismo de Eduardo Lourenco, como jé foi referido, e deve ser sublinhada a sua dominancia em muitos textos iné- ditos aqui reunidos, especialmente nos fragmentos. Em jeito de exemplo, aponte-se um titulo expressivamente meta-reflexivo: “Da Poesia como Auto-Consumpg¢io da Poesia”. Outras abordagens diferenciadas sao claramente perceptiveis. “O Poeta e a Reputagao Oral” centra-se num atgumento que tem por base 0 Angulo de visio sociolégico: a reputagao oral sobrepde-se frequentemente ao efectivo conhecimen- to das obras. O texto escrito por ocasiao da morte de Afonso Duarte constitui uma deriva sobre 0 poético, com a obra do autor de Ossadas em fundo. Pressupde-se que 0 texto ficou inédito a espera de um outro desenvolvimento. Refira-se, também a guisa de exemplo, outra admirdvel sintese, em outro tex- to inédito (“Do Poeta como Critico”), que aborda uma diversa faceta relevante: a dimensio critica de alguns poetas ¢ a dimensao poética de alguns criticos. Vai-se sempre desembocar no territério denominado “realidade poética”. E ¢ a partir dai mesmo que se podem equacionar, nas diversas frentes, as questées que buscam a compreensao do fenémeno poético. O tema comega por ser perspectivado sob um escopo cronolégico, destacando-se alguns poetas-criticos do nosso tempo e alguns momentos da histéria literdria portuguesa: “a realidade do poema consiste precisa- mente em ser palavra que fractura, desloca, silencia a nossa propria palavra interior enquanto presenca morta de nés a nés mesmos. E 0 poema que nos acorda, que nos transfigura, que nos instala num espaco sem nome quando como poema se vive em nés ou melhor, nés nele. Sempre de maneira diferente, e sempre da mesma maneira”. Estando ausente da perspectiva de leitura lourenciana a dominante focagem de pendor histérico-literdrio stricto sensu, no deixamos de encontrar uma possibilidade de leitura que nos permite aceder a um quadro muito completo dos movimentos da poesia portuguesa do século XX. Como jé referimos, é crucial em todas as suas lei- turasa inscrigéo no tempo histérico e, em muitos casos, sao claramente decisivos os enquadramentos epocais ou geracionais para as leituras encetadas. 32 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENGO Estas perspectivagdes contextualizadoras conduzem a estimulantes leituras de reconfiguragao de lugares-comuns estabelecidos. Por exemplo, leia-se 0 que Edu- ardo Lourengo escreve sobre a profunda marca presencista na produgdo inicial de consagrados autores neo-realistas como Namora, Cochofel ou Joaquim Namorado: “Os primeiros livros dos futuros poetas neo-realistas so um didlogo poético com a presenga de Régio e Torga e por vezes com téo intenso narcisismo que nao se vé bem como a produgao classica do “Novo Cancioneiro” emergiu deste canto 4spero, Sauce, centzado sobre o destino individual romanescamente sonhado” (“Evocagio ‘Truncada de Mario Dionisio”). Os enquadramentos assumem uma particular visibilidade em textos panorami- cos agrupados no presente volume na sec¢ao “Sentido e forma da moderna poesia Portuguesa’: Estes panoramas contribuem, como fios encadeadores, para a configu: tagdo do fluxo. Surpreende a naturalidade do efeito concatenador, mesmo quando se impée a centralidade concedida a alguns nomes e a algumas obras, Muitos ensaios centrados na leitura de uma poética especifica nao dispensam um pertinente quadro contextualizador. Por exemplo, quando fala de Albano Martins, comesa por enqua- dré-lo numa “genealogia geracional”, para mostrar o caminho prdprio do poeta: “Se Albano Martins e a sua vocagao prépria precisassem de genealogia geracional, quer dizer, uma familia que deixa uma precisa marca num tempo pottico singular, as suas afinidades com a geragéo de drvore bastariam para o situar” (“Do Imponderével”). Mas também se socorre dos enquadramentos, mesmo quando se trata da dificulda. de em “encaixar” as obras em horizontes geracionais ou grupais determinados; por exemplo quando fala de Jorge de Sena ou de Helder Macedo, em excepcionais recor- tes que captam em sintese as linhas de forga matriciais destas obras poéticas, Em consonancia com estas perspectivas contextualizadoras, destaque-se a di- mensao comparatista do ensaismo de Eduardo Lourengo. £ notavel a capacidade de convocar linhas de relagao, de unir fios, de fazer reenvios, de conectar eixos. A leitura ganha folego a partir dessa extraordindria disposi¢o e do dominio dos intertextos detectados (“Toda a grande poesia é natural intertexto e sob ele reconfiguracéo do mito original a que deu corpo ¢ vida: o de Orfeu”; “Obscura Luz”). HA 0 caso da pre- senga de Pessoa, como matriz absoluta, sobre a qual nos deteremas mais & frente, mas ha outras linhas de entrelagamento, Veja-se, a este respeito, entre muitos exemplos, 0 texto “Fulgurante Meméria” sobre David Mouréo-Ferreira: por um lado, é a prépria poética de Mourao-Ferreira que instiga esta leitura, mas, por outro, o olhar lourencia- no, ele mesmo, reactiva exponencialmente as leituras de pendor comparatista. Sublinhe-se outro dos tragos relevantes do ensaismo de Eduardo Lourengo: a anilise mitico-critica. Muitas das leituras de poesia sio também, & semelhanga de outras anélises, perspectivadas em clave mitogréfica. A anélise dos fenémenos po- ético-culturais como mitos constitui uma recorréncia. Um dos textos que melhor traduz esse caminho é “Presenga ou a Contra-Revolugao do Modernismo Portugués?”, Em Tempo e Poesia, outros ensaios propdem leituras sob esse angulo; é o caso de “Or. Introdugio ao Volume Ill - EDUARDO LOURENGO, HABITANTE DA AVENTURA POETICA 33 fu oua Poesia como Realidade” ou “Dialéctica Mitica da Nossa Modernidade”. E em ‘muitos textos escritos posteriormente, e que esta edi¢ao integra, reflecte-se esse pon- to de vista. Veja-se mesmo como para a leitura de um poeta (Eugénio de Andrade), um pequeno texto recebe o nome “Da Poesia como Mito” Eduardo Lourengo Ié as poéticas individuais muitas vezes sob este prisma, mas também procura entender o fenémeno colectivamente entrevisto como fenémeno nacional. Porqué, entre nés, a atengdo (institucionalizada) aos poetas? “Ninguém explicou por que razdo somos nao s6 uma cultura de poetas mas de bons poetas. O que noutras culturas é excep, na nossa é devocao. A ideia justa de que os homens s4o naturalmente poetas nao basta para explicar o que entre nds é, ao mesmo tempo, um jogo, um prazer refinado e uma mistica. Mas 0 mais estranho ¢ 0 seu papel mitico, ‘o reconhecimento do poeta e da poesia no meio de uma Cidade tao aparente, ou real- mente prosaica como a nossa. Serd para compensar? Tudo se passa como se, na nossa cultura, tio estruturalmente adorante, os poetas tivessem tomado o lugar dos santos. Quem se queixaré? Ou quem o estranha?” (“Clube dos Poetas Vivos’, 4 David). No entanto, é dificil categorizar o seu ensaismo literario como mitocritico, comparatista ou filoséfico. Nao pretendendo que a leitura do poema seja 0 pro- Jongamento de um mistério ou a devogao a um fogo ritual, mostra-nos como a interrogagao, e mesmo a diivida, séo elas também reveladoras. E nesse processo torna visivel o acto de pensar, como se quisesse incluir o leitor no movimento desse pensar. Transportador do espanto, inquieto intérprete de poetas, desvenda as coi- sas repousadas, simplesmente como quem alimenta o siléncio da casa. Vendo por dentro. Levando o leitor a ver o dentro. Néo visa instituir um modo de leitura, mas investir o acto critico (a leitura) de uma forte carga osmética que possibilite o encontro com o poema. Para obter, por outras palavras, a recompensa... E nds somos agarrados pela forca magnetizadora do discurso que circunda o poema, no mesmo plano do poema ele mesmo; ¢ isso que faz com que 0 poema nio saia do centro da interpretacao. Por isso o préprio ensaista, muito pessoanamente, insiste que, em grande medi- da, é feito de textos porque vive neles. Escritor que discretamente quis ter biografia em texto, no registo de “glosa” ou de “acompanhamento melancélico da mao esquer- da”, sabendo de antemao que o brilho das vozes dos outros era, desde o primeiro mo- mento, o da prépria voz. Ou por outras palavras: ele é dos poucos que se aproximam do objecto € no-lo devolvem com uma luz. em que o explicado nao anula o imprescin- divel inexplicado, modo de continuar a fazé-lo brilhar. Fale-se de uma poética da brevidade que assume grande relevancia no ensaismo de Lourengo. Se essa vertente é imediatamente visivel em intervengées atentas ¢ pon- tuais nas suas p4ginas diaristicas, mas também em textos de pequeno formato como nos breves obitudrios de figuras marcantes do nosso tempo, ou ainda em certeiras anlises de acontecimentos da vida politica, gostaria de assinalar a presenga desse trago nos ensaios mais ou menos extensos sobre poesia. Aquilo a que se pode deno- 34 OBRAS COMPLETAS DE EDUARDO LOURENCO minat de insight, que grande parte das vezes assume formas aforisméticas, e que ad- quire uma espantosa forga nos prevalecentes enunciados interrogativos. No volume de 1974, encontramos uma das mais belas reflexdes que fala do tempo ~ 0 magnifico texto que da nome ao livro (“Tempo ¢ Poesia”); & precisamente pela interrogacao que mais préximo se encontra da voz do poema: “E da luz que a palavra poética concentra misteriosamente que a nossa existéncia recebe o maximo de claridade, Essa uz, porém, é impenetravel. Com que limpada explorariamos 0 coracao do sol?” Podem recolher-se dezenas de exemplos de idéntico fulgor (sobre a poesia, sobre o Poeta) muitas vezes a abrir os textos: “Toda a grande poesia integra como sombra ou luz paradoxalmente excessiva a sua poética” (“Entre o Extase e 0 Siléncio”); “O que ¢ um poeta? Uma maneira de ser mundo € um modo inédito de o dizer” (“Como uma Torrente”), Estamos diante daquilo que acontece em irrepetiveis instantes, na leitura de po- emas, quando os comentirios se defrontam, ¢ quando se atinge uma aproximacao a0 Poema, numa espécie de polifonia sintonizada. O que muito poucas vezes a leitura orientada e estruturada (com achegas tedricas e enquadramentos contextualizado- res) consegue dizer. Nao creio que essa experiéncia se equipare a qualquer sorte de vivéncia epifanica (tanto mais que por trés desse acontecer esté uma deliberada ¢ enta preparagao), mas seguramente esses momentos recordam-nos o que, entre nds, €m texto, 86 vejo verbalizado por Eduardo Lourengo. Nessa aproximagao como que se toca o poema (como que se € tocado pelo poema). Emerge a questao da habitabi- lidade, de uma forma de vivéncia que é a da leitura passional, testemunhante, Visio continuamente reeditada, e que o préprio apresenta em “Singular Pr(o)émio”, a nota prefacial a Pessoa Revisizado, na edigao de 1980: “Prefiro e assumo esse perfil ctitico Passional, eco atenuado do que me foi convivio e intima exaltagao com uma das po- csias mais fulgurantes do nosso século, & neutralidade do olhar imaginariamente frio da instituicgao ¢ do poder cultural criticos, quaisquer que sejam”, E numa luminosa sintese sobre o outro (Octavio Paz) que, em espelho, encon- tramos o mais conciso dos auto-retratos: “um dos maiores ensa(stas contemporine- os, habitante e visiondrio peregrino da aventura poética” (“A Hora ¢ a Vez de Octa- vio Paz", Expresso, Revista, 20 de Outubro de 1990). Eduardo Lourengo, habitante da aventura poética, ensaista entre poetas ou ensaista poeta. Interessa aqui falar da busca que ele enceta ao interior do poético, como impulso nao restritivo, pois implica-se © mundo no seu posicionamento face ao poético. Porque é que o poético traduz 0 lugar da problematizagao de uma forma que nenhum outro discurso propicia? Por- que mais do que em qualquer outro (registo, discurso, voz...) se encontra af o lugar da inacessibilidade, da indizibilidade, das zonas intervalares de questionago, mas também o lugar da habitagao do ser. Eo autor de Tempo e Poesia colocou assertivamente, no limiar da casa, um lema de matriz heideggeriana, como ninguém entre nés o havia feito: “E poeticamente que habitamos 0 mundo ou néo 0 habitamos” (“Tempo e Poesia”). Para lé do lugar- Introdusio a0 Volume III EDUARDO LOURENGO, HABITANTEDA AVENTURA POBTICA 35 comum, este modo de ver o ensaista ressoou profundamente nos préprios poetas ‘como vivencia intensa, testemunho e didlogo. Dois exemplos: as palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen, os versos de Gastao Cruz. As palavras de Sophia sao de carta datada de 23 de Marco de 1978, e reportam-se ao prefaicio que Eduardo Lou- renco escrevera para a 4.* edigio da sua Antologia, na Moraes, saida nesse ano: “Penso que o seu texto é 0 melhor que foi escrito sobre a minha poesia. Néo sé pela agudeza ¢ inteligéncia que h4 na sua leitura mas pela simpatia (no grave sentido grego da palavra) que ha nessa Icitura. E porque é uma leitura poética e nao uma leitura ape- nas estética, ou intelectual. Pois nao se limita a ver 0 poema ‘por fora’ mas o habita” (Espélio de Eduardo Lourengo, BNP). Os versos de Gastao Cruz nasceram de uma afirmacdo de Eduardo Lourengo, em entrevista por Antonio Guerreiro (Reldmpago, n° 22), sobre o movimento que anima a leitura do poema: “uma viagem no interior do texto nao para Ihe acrescentar qualquer coisa mas para o habitar’. £ num poema de homenagem que apresenta a glosa: “Entrar no poema é habitar a casa/beber 0 vapor de Agua que humedece/o deserto do quarto inabitavel”. (in Pensar Nove Décadas de Amizade, 2013, ofg. Joao Tiago Pedroso de Lima; incluido posteriormente no livro de Gastao Cruz, Oxido, 2015). ‘A impossivel totalizag4o configura-se afinal como modo de chegar mais perto do conhecimento, ¢ o poema é 0 proprio meio de resgatar a habitacdo do ser: “Dese- jo, injungéo ou calmo olhar sobre o fundo das coisas, a palavra de Hélderlin tao ce- Iebrada por Heidegger rediz a intemporal verdade de onde o saber nao-poético nos expulsa” (“Tempo e Poesia”). Em Eduardo Lourenco, o lugar do poema é 0 contrario do lugar sitiado, O poema, como imagem do mundo, diz a cidade libertada, ainda que plena de contradigées. E 0 poema que é 0 préprio emblema oua cidade é que ¢ 0 emblema dele? A carga alegérica do icone comportard um forte pendor idealizante. Mas nessa herdldica reinventada a cidade ergue-se como interrogagao. A mesma que reeditard quarenta anos depois, no belissimo texto “O Poeta na Cidade (hoje)”: “Em meio século, passdmos da visdo da esséncia € do papel da poesia como casa do ser ~ quer dizer, da utopia romantica que vé na poesia o acto fundador da Humanidade, o tinico que lhe confere um sentido, como 0 evocado por Hélderlin — para uma espé- cie de ‘no man’s land’ de filme apocaliptico, entre cujos destrogos buscamos os vest{- gios do esplendor perdido”, Eo ensaista prosseguird, a falar da poesia como o préprio territério resgatado. Ela nos revelaré a nossa vocagéo para a alegria. A habitagao do mundo (no seu texto) vive da largueza interior vista com os olhos dos poetas. O en- safsta é 0 melancélico refugiado no poema, vasto mundo recriado pela sua leitura. Quase tudo desagua nessa visdo fundadora em que 0 real é criado pela palavra, em que 0 poético é mais real que o real. Em torno da dizibilidade e do ofuscamento de luz ou sombra, que vem das palavras, gira quase toda a hermenéutica lourencia- na. Num pequeno texto, uma dessas sinteses deslumbrantes que encontramos a todo © passo, um depoimento sobre Ramos Rosa, a formulagéo esté l4, a iniciar com 0 truismo (“nenhuma realidade nos é dada fora da palavra que a nomeia”) para es-

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