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Clarice Lispector (1920 - Mais um grafismo que uma escrita

1977)
Fernanda Drummond - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Questionar a “grafia”, o “grafismo” e a “escrita"
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar
sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de
se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de
telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que
valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria
linguagem.
Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais
uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isto perdi?
Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos.

A
Paix
ão
Segu
ndo
G.H.,
1964
A intuição
A epifania
O contato com o feio, o horror
Pintura rupestre no Parque do Catimbau, Pernambuco, nordeste do Brasil

Grafismo indígena da região Tupi-Guarani, no


Xingu, Pará, norte do Brasil
Arabesco islâmico
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a
Terra, o mundo. Por puro carinho,“Digite
mesmo, semuma nenhuma
citação prepotência
aqui.” ou glória, sem o menor senso de
superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse
mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho
e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. (…) E assim como meu
carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
–Jaime
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em Silveira
menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de
viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais
profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um
poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras:
um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver.
Felicidade Clandestina, Perdoando Deus, 1971.
João Camillo Pena, “O nu de Clarice Lispector”, 2010.
A epifania representa uma irrupção na “ordem linear” dos eventos cotidianos, uma justaposição
descontínua dos eventos.
É uma súbita apreensão do sentido de um objeto, ser, circunstância. Epifania traz a síntese de um real.

Alétheia ( ἀλήθεια) é a verdade e a realidade. É um desvelamento que se vela ao mesmo tempo. O


registro da coisa, a aparição dela, sendo o que ela própria é.
Aparência = essência.
“Digite
“Sei queuma
se eucitação aqui.”
o entender é porque estou errando.
Entender é a prova do erro.”
Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”
–Jaime Silveira
 Incapaz de se mover para apanhar
suas compras, Ana se aprumava pálida.
Uma expressão de rosto, há muito não
usada, ressurgia-lhe com dificuldade,
ainda incerta, incompreensível. O
moleque dos jornais ria entregando-lhe
o volume. Mas os ovos se haviam
quebrado no embrulho de jornal.
Gemas amarelas e viscosas pingavam
Laço
entre os fios da rede. O cego
s de
interrompera a mastigação e avançava Famí
as mãos inseguras, tentando lia.
Néli
da
Piño
n,
Veja
Rio,
2020
Alguma Bibliografia

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