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Poesia 61 Hoje
Poesia 61 Hoje
ORGANIZAÇÃO:
POESIA 61 HOJE
R IO D E J A N E IR O | 2011
© Jorge Fernandes da Silveira e Luis Maffei (Organizadores), 2011
© Oficina Raquel, 2011
Editores:
Raquel Menezes e Luis Maffei
Assistência Editorial:
Beatriz Helena
Diagramação:
Julio Cesar Baptista
(jcbaptista@gmail.com)
Capa:
Isabella Latufo
CDD B869.91
www.oficinaraquel.com
SUMÁRIO
Luis Maffei
LEMBRAR COMO AMAR ........................................................ 7
Alílderson de Jesus
CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA .............. 20
Caio Laranjeira
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO ................................................. 30
Cinda Gonda
O QUE DIZEM AS ÁGUAS – A FORÇA DE UM DIÁLOGO:
CASIMIRO DE BRITO E ANTÓNIO RAMOS ROSA................ 40
Ida Alves
DE LEONOR A TERESA – ESCRITA DOS SENTIDOS ............. 64
Raquel Menezes
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA .................................... 108
Luis Maffei
50 ANOS A 5
Casimiro de Brito
(1938)
7 1
a palavra na relva
Ergo a palavra da relva Um homem
e o sol a cobre vai no seu corpo
de novos frutos e subitamente
cai. Ouço
E sou a mão clara que os colhe desmoronar-se
à luz do silêncio a sílica do coração.
à flor do sangue E ouço também
a terra e o ar
E então o seu corpo se confunde acolherem os ossos
sobre um leito de caruma do filho pródigo.
ao meu corpo Em si este acontecimento
não é nada original
E amanheço mas dói. O vento
e cabem nas minhas mãos do Outono
o vício a lama e as estrelas morde-me os ossos
e dói.
Canto Adolescente, Poesia 61 Livro das quedas, 1999
onde
Gastão Cruz
(1941)
Os soldados em manobras
têm noite por espingarda
Colhei os lírios do corpo
meninas de saia travada
à Manuela Nascimento
A Magnólia
A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.
A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,
* Este comentário foi feito pelo autor em uma entrevista de televisão transmitida pela
SIC.
CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA 23
falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta
Neste poema, que uso como pretexto para introduzir uma dis-
cussão em torno de Casimiro de Brito – tarefa que me coube no hon-
roso espaço desse capítulo – temos, a “coser” “todo o corpo/ à gar-
ganta” “com uma agulha de sangue”, um “falo”. Ou, por outro lado,
temos um “eu” que fala “com uma agulha de sangue” a coser-[lhe]
todo o corpo. A ambivalência de que falei há pouco se faz presente
aqui. E, seja qualquer via que se tome para dar um sentido a sua se-
gunda estrofe, ela apontará, ao menos, para duas atividades proibidas
num regime de exceção: fala e gozo.
24 POESIA 61 HOJE
Frente ao mar
Meu corpo ardente e nu de marinheiro pelo sangue.
Fervem-me nas veias
um milhão de ondas em repouso (1961, p. 11)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITO, Casimiro de. Canto adolescente. In. VVAA Poesia 61. Faro: edição
dos autores, 1961.
BRITO, Casimiro de. Corpo sitiado. Lisboa: Iniciativas Editoriais, s/d.
______. Prática da escrita em tempo de revolução. Lisboa: Caminho 1977.
CANTINHO, Maria João. Casimiro de Brito. In Digestivo cultural. Dispo-
nível em http://www.digestivocultural.com/colunistas/imprimir.
asp?codigo=819.
CORREIA, Natália. Prefácio. In CORREIA, Natália (org.). Antologia da
poesia erótica portuguesa - dos cancioneiros medievais à actualidade.
2. ed. Lisboa: Antígona & Frenesi,1999. p. 11-17.
JORGE, Neto Luiza. 19 Recantos e outros poemas. Organização de Jorge
Fernandes da Silveira e Maurício Matos. Rio de Janeiro: 7letras, 2008.
LINS, Ronaldo Lima. O felino predador. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ,
2002.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 26. ed. São Paulo: Cultrix,
2008.
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO
Caio Laranjeira*
* Grifei. Para todas as referências à poesia de Fiama, uso a versão da Obra breve: poesia
reunida, lançada em 2006 pela Assírio & Alvim.
** E o sintagma “descobrir-se no discurso” nutre grande débito para com a beleza de “as
palavras são densas de sangue / e despem objectos” (p. 15) – estrofe do mesmo “Grafia 1”.
32 POESIA 61 HOJE
(...)
A teoria do poema resume-se
a esta idiossincrasia. Discorro,
enquanto esses dentes de árvores
pertencem a esta mesma imagem.
Geram pequenos botões de flor
pardos, que correspondem
a um renovo. Não é estranha
a posição saliente dos braços
mortos onde o prodígio da linguagem
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Obra breve: poesia reunida. Lisboa: Assírio
& Alvim, 2006.
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 39
parência que dela emana. Sua maneira de ser, moldável, lhe permite
tomar a forma do corpo que a aprisiona.
A concepção do livro, gestado “durante um ano” (4ª capa da
edição), oferece um desafio duplo ao leitor. Por um lado, o de se en-
contrar diante do caráter enigmático da poesia. Outra questão tem
por alvo a autoria – os poemas não vêm assinados. Cabe ainda não
perder de vista aquele, de abertura do livro, em que o vocativo “Diz-
-me António”, nos fornece uma chave:
Se nada existe
A não ser a morte
Quem ilumina
As suas noites?
Alguém escuta
Um grão de silêncio. (p. 30)
Talvez as mulheres
Sejam iguais: húmidas
E pobres como a terra
Apenas
Poderá possuir-me
Esse que me visita
E não deseja nada
A esse pedirei humildemente
Que beba o rumor
Da minha água. (p. 38)
A VOZ DA ÁGUA
Tão delicada
É a voz
Da água
E os seus cálices
Que não contêm nada
Eu direi
Que é da luz
A nudez do silêncio
Ouves?
O centro é branco
O ar é ar
Ouves?
Ninguém canta
As veias da montanha são claras
O vaso na limpidez desaparece. (p. 39)
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 49
Ou ainda:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Vivo em chama.
Pegou-se o fogo ao fato
que morte e vida
irmana.
Luiza Neto Jorge
à nouveau effacée
et giratoire (p. 298)
* Cf. http://www.relampago.pt/luizanetojorge/lnj-biografia.htm
** Disponível no You Tube. Cf. LUIZA_IINEW.wmv. As duas citações seguintes têm a
mesma referência.
FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO 57
Por isso é que se pode dizer que Luiza Neto Jorge, não só como
poeta, mas como tradutora, deixou uma obra inigualável, tendo tra-
balhado com livros de autores como Céline, Sade, Verlaine, Margue-
rite Yourcenar, Jean Genet, Witold Gombrowicz, Apollinaire, Iones-
co, Anaïs Nin, entre outros.
Afora sua produção poética, trabalhos de tradução, roteiros para
cinema e textos para montagem teatral, Luiza Neto Jorge escreveu
alguns poemas em francês, publicados originalmente em 1983. Éclair-
cissements foi publicado na revista Colóquio-Artes 59 e o conjunto
Sept Poèmes, em Ariane 2. Luiza viveu em Paris de 1962 a 1970. As
suas referências culturais eram francesas, e também a formação uni-
versitária (que acabou por não concluir). Em depoimento, afirma que
“também foi em Paris, distante, que eu aprendi a conhecer Portugal
(...). E foi lá pela distância, pela distanciação, vamos lá, não é, pela
diferença, pela ausência, que eu realmente comecei a conhecer Portu-
gal”. No que diz respeito ao ambiente político-social repressivo vivi-
do em Portugal até 74, Rosa Martelo pensa que não se pode “ignorar
aqui (...) mesmo se (ou se também por isso mesmo) grande parte
desta obra foi escrita em Paris” (1998, p. 70).
Se disse que falaria acerca da autora da poesia mais erótica da
Literatura Portuguesa do século XX, não posso deixar de perceber
58 POESIA 61 HOJE
Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia, (p. 240)
o meu amigo
(o melhor amigo)
na vala
comum
do medo
apodreceu *
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
INCITAÇÃO À FALA
É o poema
Curto, turvo
incompleto na pele da página
* Em nota da autora, na abertura do referido livro, explica-se que foram utilizados: “a)
Transcrições de documentos oficiais da época; b) Transcrições de correspondência, diá-
rios, cadernos e outros documentos particulares da época; c) Citações autênticas de fon-
tes identificadas; d) Transcrições de poemas com autoria identificada. Os poemas de
abertura dos capítulos são todos da autoria de Leonor de Almeida, marquesa de Alorna.”
(2011, p. 7).
** A partir de agora, MTH.
66 POESIA 61 HOJE
Quem te disse
e propagou
perdida?
* Os livros de MTH citados neste trabalho estão inseridos em Poesia reunida (2009).
Utilizamos também a antologia brasileira Cem poemas [antologia pessoa + 23 inéditos],
2006. Ao lado do título de cada livro é indicado o ano da primeira edição.
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 67
Quem usou
abusou
da tua voz?
(…)
Quem te matou
te assassinou
te envenenou de mal?
Quem recusou de ti
tudo o que
vinha?
Quem te meteu
no corpo
este punhal? (2009, p. 455)
* Vale lembrar os títulos desses romances, para além de Novas Cartas Portuguesas: Am-
bas as Mãos sobre o Corpo, 1970; Ana, 1974; Ema, 1984; Cristina, 1985; A Paixão se-
gundo Constança H., 1994.
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 69
este grito
que tenho
nas mãos misturadas
Incontáveis as armadilhas
as grutas os becos
os desvios do poema
Obsessiva memória
que o tempo despreza
e a mão não acalma (2009, p. 794)
* Outro poema muito citado da poeta é “Minha senhora de mim”, de livro homônimo,
de 1971: “Comigo me desavim/ minha senhora/ de mim// sem ser dor ou ser cansaço/
nem o corpo que disfarço// Comigo me desavim/ minha senhora/ de mim// nunca dizendo
comigo/ o amigo nos meus braços// Comigo me desavim/ minha senhora/ de mim// recu-
sando o que é desfeito/ no interior do meu peito” (2009, p. 304.).
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 73
náufragos da noite
o tempo dos cabelos
em clepsidras de água
o tempo da queda
no gesto
o tempo do olhar
nos olhos dos espiões
gerações submersas
alheias ao testemunho
da distancia
recomecemos no ventre
da água incerta
* Jorge Fernandes da Silveira, em seu estudo mais do que referencial para a compreensão
da Poesia 61, ao comentar o livro Tatuagem, de Maria Teresa Horta, afirma: “Possuidora
de um domínio imagístico invulgar, Maria Teresa Horta constrói uma poesia de difícil
leitura. À primeira vista, o leitor sente-se incapaz de coordenar o intenso ritmo de pala-
vras sobre palavras, de imagens sobre imagens, como se fosse uma espécie de música
para além dos limites da pauta. (…) Tatuagem é um livro que se insubordina contra a
ordem das relações sociais e as formas de opressão na linguagem. Sintagmas partidos, e
a consequente atomização de suas partes significativas, ficam a exigir um trabalho de
‘reparação’ do leitor.” (1986, p. 183).
74 POESIA 61 HOJE
urge-nos a planície
de quilómetros assimétricos
onde nos refugiamos
expectantes do último naufrágio (2009, p. 47)
Digo do corpo
o corpo
e do meu corpo
digo do corpo
o sítio e os lugares
de feltro os seios
de lâminas os dentes
de seda as coxas
o dorso em seus vagares
Lazeres do corpo
os ombros
as lisuras o colo alto
a boca retomada
Digo do corpo
o corpo
e do teu corpo
as ancas breves
ao gosto dos abraços
os olhos fundos
e as mãos ardentes
com que me prendes
em súbitos cansaços
76 POESIA 61 HOJE
Vícios de um corpo
o teu
com o seu veneno
Digo do corpo
o corpo
o nosso corpo
digo do corpo
o gozo
do que faço
Digo do corpo
o uso
dos meus dias
a alegria do corpo
sem disfarce (2009, p. 400-401)
Se a língua ganha
a dimensão da escrita
E a escrita toma
a dimensão do mundo
(…)
Aí podes parar
e retornar à boca
Esse espaço de beijo e de cinzel
78 POESIA 61 HOJE
Espelho e aço
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
II. Das três etapas acima apontadas, uma quarta, meio conclusi-
va, estabeleceu índices que, adotados critérios metodológicos segun-
do Maria Alzira Seixo e Jorge Fazenda Lourenço (cf. Bibliografia),
organizam a obra de Fiama por gêneros, já que ela é autora de poe-
mas, narrativas, ensaios, peças de teatro e traduções: a) textos sobre
a obra de Fiama Hasse Pais Brandão; b) textos de conjunto incluindo
referências significativas à obra da Autora; c) entrevistas da Autora;
d) entrevistas sobre a Autora.
Desse investimento em progresso da bibliografia estabelecida,
está em elaboração um livro, o corpus vivo, metodológico e teórico
da pesquisa.
E, basta-me saber
que este rio é, em mim,
tudo o que eu quiser.
O problema é insolúvel:
dentro de mim está um rio sem água.
Tudo fora.
Cheguei.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. O Texto de Joao Zorro. Porto: Inova, 1974.
______. Obra breve. Lisboa: Teorema, 1991.
______. Obra breve. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
______. Espólio. Separata da Revista Ocidente. 1989.
_____. O labirinto camoniano. 2 ed. Lisboa: Teorema, 2007.
_____. Cenas vivas. Lisboa: Assírio & Avim, 2000.
LOURENÇO, Jorge Fazenda Lourenço e WILLIAMS, Frederick G. Uma
bibliografia cronológica de Jorge de Sena. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 1994.
SEIXO, Maria Alzira. Bibliografia e Bibliologia. Para uma Bibliografia Pas-
siva de António Lobo Antunes. Metamorfoses, 5. Lisboa, Rio de Janei-
ro: Caminho, Cátedra Jorge de Sena, 2004.
SILVEIRA Jorge Fernandes da. BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. BIBLOS,
Enciclopédia VERBO das Literaturas de Língua Portuguesa. V. 1. Lis-
boa/ São Paulo: Verbo, 1995. p. 755-756.
_____. Lápide & versão, o texto epigráfico de Fiama Hasse Pais Brandão.
Rio de Janeiro: Bruxedo, 2006.
VASQUES, Eugénia. O Manifesto Teatro de Fiama. Metamorfoses, 6. Lis-
boa, Rio de Janeiro: Caminho, Cátedra Jorge de Sena, 2005.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA,
EM QUATRO OU CINCO ATOS
Luis Maffei*
emos nossas leituras do poético com muito do que está fora de versos,
ainda bem, caldeamos nossas outras leituras pela poesia e pelo poéti-
co (dobramento e desdobramento de mundo, logo de sentidos, logo
de mundo), ainda bem de novo. Se a linguagem, quebradiça, nos da-
diva alguma densidade interseccional, nós, humanos dados ao poéti-
co, achamos na poesia lugar de encontro mais difícil, mais, não obs-
tante, profícuo.
Tudo para começar a dizer que a poesia de Gastão Cruz partici-
pa da minha vida. Pretendo, neste texto, falar de Gastão e de mim, ou
do modo como os versos de Gastão estão dentro da vida, a minha:
DENTRO DA VIDA
menos do que ignora, mas uma de suas peculiaridades é ser das pou-
cas linguagens humanas (a única?) cônscia de que ignora mais do que
conhece. “Dentro da vida”, poema de ardência e movência camonia-
nas, de lúcido despreparo pessoano, ensina-me bastante da sábia igno-
rância que marca a poesia. O poema de A moeda do tempo (2006) é
aqui pré-ato, ato zero: “Não estamos preparados para nada” nem
“para o nada”, pois estamos, “dentro da vida”, “todos à espera da
morte” (2000, p.334), como se lê no Húmus de Raul Brandão. É estu-
pefato e nada tolo que, “dentro da” redoma-vida à espera de não-re-
dentora morte, pergunta: “Que nos redime”?, como faz o leitor ávido
do poeta, Camilo Pessanha, que assinalou uma redenção impossível
ao perguntar: “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho/
Onde esperei morrer – meus tão castos lençóis?” (2009, p. 79).
Cada ato, já se imagina, tem um poema. O primeiro:
* Os nomes desses corpos é livro de 1974, com segunda edição em 1979, e lembrei-me
desse título, evidentemente, porque grafei o sintagma “os donos daqueles corpos”. É se-
vera a provocação a que essa coincidência (?) me leva: ao evocarmos pessoas amadas que
estejam longe, mortas ou vivas, usamos seus nomes, ou suas posições em relação a nós
(pai, mãe etc.). Será que nossa vontade de extrapolar a língua terá de aceitar a grande
94 POESIA 61 HOJE
semelhança entre “os donos desses corpos” e Os nomes desses corpos? É, agora, impres-
cindível lembrar que o poema de abertura do referido livro possui estrofe central na
poética gastoniana: “Tinha deixado a torpe arte dos versos/ e de novo procuro esse exer-
cício/ de soluços” (2009, p. 131).
* Outra expressão que figura na lírica do autor de Referentes: “Com Augusto Abelaira”,
A moeda do tempo: “Estávamos no café/ uma tarde de sábado/ como antes quantas ve-
zes/ porém desta vez sós// e à minha pergunta/ sobre o seu corpo vivo,/ o fim está à vista/
respondeu;// o silêncio/ seguiu-se por um tempo/ como se entre nós dois/ se erguesse já a
morte” (2009, p. 330).
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 95
No inverno tão
quente semelhante
a um verão amamos a
incerteza
* Esta nota é apenas para ressaltar que a edição portuguesa de outro livro de Eucanaã,
Desassombro (Quasi, 2001), tem prefácio de Gastão Cruz.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 97
* O farense Gastão Cruz, ao contrário, não aprecia frio, gosta de sol, calor e praia.
** Gastão dialoga diretamente com esse poema em “Um conto” e “Atravessando o Alen-
tejo”, ambos de A moeda do tempo.
98 POESIA 61 HOJE
* Se Gastão, em livro que não Hematoma, tem uma seção intitulada “A leitura”, Carlos
de Oliveira, em livro que não Mãe pobre, mas Pastoral, tem poema intitulado
“Leitura”.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 101
* É mais preciso dizer que a série começa no poema anterior a este, “A avestruz, de novo,
ou o mal total”, em virtude de seu encerramento: “a avestruz pensante destroçada/ tal o
morto faisão à beira-estrada,// liberta da infância, o real total/ entende com a mente do
102 POESIA 61 HOJE
sujeito e lhe fornece boa parte de suas memórias, inclusive uma forte-
mente associada ao domingo; o poema seguinte da série chama-se
“Lava”: “Na minha infância o futebol saía/ de janelas funestas que se
abriam/ como crateras na cidade rasa” (2009, p. 244).
É domingo o dia clássico do futebol, manifestação humana que
Gastão Cruz não aprecia, ao contrário de mim, que, como Ruy Belo
e João Cabral de Melo Neto, sou ardoroso amante do jogo. O futebol
,sombriamente localizado, pela memória do sujeito, numa infância
cercada por “janelas funestas”, tem lúgubre aspecto na poesia gasto-
niana, sendo, inclusive, fornecedor de eficaz vocabulário funéreo em
outro poema de Crateras, “Sinal vermelho”. Minha infância também
foi marcada pelas narrações futebolísticas radiofônicas. Diversas ve-
zes, a criança que eu fui perguntou a porteiros, em dominicais digres-
sões pela cidade, o resultado provisório da partida em andamento,
sobretudo quando meu time, o Vasco da Gama, jogava. Nessas ocasi-
ões precisas, eu não podia escolher onde estar (havia eventualmente o
aniversário da tia, a visita à avó, o compromisso familiar); se pudesse,
escolheria estar no local do jogo. O ambiente do estádio, quando eu
me via longe dele, figurava-se-me encantamento inacessado – bem,
não menos fascinante o era também nas muitíssimas vezes em que eu,
infante, lá estava, acompanhado de meu pai, tendo a simpatia sabia-
seu mal” (2009, p. 243). Em rigor, o único poema em que a “avestruz” aparece sem a
nomeação da infância é “A avestruz”, enquanto a “infância” segue sem a nomeação da
ave em outros poemas, até “Lembrança da ria de Faro”, que da infância ruma a cantar a
“ria” e é o primeiro de uma série de barcarolas – paro por aqui o elenco das pequenas
séries de Crateras, pois meu assunto agora é o domingo. No entanto, algo me salta aos
olhos: o “corpo”, em “O Réquiem de Fauré”, d’A moeda do tempo, é o “real total”
(2009, p. 345) definição, no poema de Crateras que principia esta nota, de “infância”. O
leitor de Gastão Cruz fica obrigado a considerar a ausência de transcendentalismo reden-
tor nessa poética, assim como a rever aí um romantismo excessivamente totalizante.
Outra abordagem desse tópico me sabe importante agora, o dístico “Depois da fala”, de
Referentes (1983): “O criador de imagens arrepende-se/ no líquido lugar da realidade”
(2009, p. 168). Entendendo “criador de imagens” inclusive como poeta, a relação desse
tipo de indivíduo com o “real” ou a “realidade”, não é minimamente dócil, e sequer o
será a própria “realidade”, coisa que escapa à fala e a seu “depois”.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 103
* É inevitável trazer ao texto “Há domingos assim”, comovente poema de Ruy Belo
presente em Toda a terra (1976): “Há domingos em que o nevoeiro poisa múltiplos pés
miúdos no mar/ e os múltimplos pés miúdos que poisa já de si no mar/ se vao ainda des-
vanecendo multiplicando minuto a minuto/ e o nevoeiro é uma vasta mão no mar e al-
gumas casas brancas da vila ao longe cada vez mais longe/ que há pouco na névoa eram
ainda mais brancas alvejavam visivelmente mais/ se perdem também agora na imensa
superfície indecisa levemente móvel/ infinitamente divisível boiando no espaço dissolven-
do tudo até mesmo o mar” (1990, p. 172, 173). Um experimento que se dedicasse a in-
vestigar o domingo na literatura portuguesa não poderia deixar de pôr em perspectiva
“Metáfora” e “Há domingos assim”, pois a melancolia que há em ambos não deixa de,
no mais antigo, conviver com certa beleza que, para o poema, só o domingo tem.
104 POESIA 61 HOJE
CORAZONADA
se é que voa
à tela onde as palavras se embaralham e meus
olhos são
do bicho
a imagem de um poema posto à prova (2011, p. 12)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Um sinal qualquer
um desatino
uma amargura incerta que desata
Maria Teresa Horta, “Destino”
ROSA DO JOELHO
* Os poemas deste texto são citados da antologia Cem poemas (Rio de Janeiro: 7Letras,
2006), por isso terão apenas o número da página em sua referência.
110 POESIA 61 HOJE
OUTUBRO
ou estes olhos
de polos
distanciados no nada
este grito
que tenho
nas mãos misturadas
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA 111
Ou mãos misturadas
que tenho
de outubri
no sabor picante
sentido das casas (p.28)
O livro foi escrito a seis mãos, mas, tendo como premissa o que
afirma Maria de Lourdes Pintasilgo, no prefácio da edição de 1974,
este livro, as Novas cartas, é de autoria de uma voz una, da qual faz
parte decisiva a de Maria Teresa Horta. Afirmo o que afirmo em vir-
tude da tensão entre escrita e erotismo que encontramos na poeta de
“Segredo” – poema no qual, diga-se de passagem, a tensão nos é apre-
sentada –, pois em “Português”, poema de Vozes e olhares do femini-
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA 117
não desatada?
Um abismo obscuro
que dormia
quando a saudade não tinha a ver com nada
Um sinal qualquer
um desatino
uma amargura incerta que desata
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
* Conferir: “aves /como peixes/ transitam lentamente errando/ nas palavras” (Órgão de
luzes, p. 154 de Os poemas). A partir daqui, referiremos Os poemas (1960-2006), reu-
nião da obra, 2009, por meio da sigla OP, citando ao lado o título do livro em que se
insere cada texto.
** Manuel Gusmão, em 1990, na Introdução a Órgão de luzes, poesia reunida, ressalta os
ecos de Sá de Miranda e de Camões na obra cruciana como a expressão de uma afinidade
com componentes de atitude maneirista (1990, p. 17).
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 123
* Água-forte é uma modalidade de gravura feita em uma base de liga metálica, sob a
ação corrosiva de ácidos ou sais.
124 POESIA 61 HOJE
(...) Nada
* Sua obra poética compõe a “continuidade de um projeto”, para Eduardo Prado Coelho
(1972, p. 255).
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 129
* http://www.spautores.pt/page.aspx?idCat=68&idMasterCat=67&contentID=34&idL
ayout=8&idLang=1
** Conferir a ocorrência de recursos como retrato, fotografia, lente de aumento na poesia
de Gastão.
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 131
A MOEDA DO TEMPO
* Cf. soneto de Shakespeare, “Since brass, nor stone, nor earth, nor boundless sea” (1944,
p. 172).
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 133
Poderá a poesia
reter essa serpente
que desperta na triste
madrugada do mundo
as chuvas do verão
recolher fugitivas
e deter o furtivo
solitário segundo? (OP, O pianista, p. 211)
* Traduzi “Zum Augenblick, dürfte ich sagen:/ Verweile doch, du bist so schön!” como
“Queria dizer ao momento que passa:/ Pois eterniza-te, és tão belo!”. In: Göethe, Johann
Wolfgang von . Faust. Eine Tragödie. Edição preparada por Albrecht Schöne. Frankfurt:
Deutscher Klassiker Verlag, 1994. Vv. 11581-2.
** A imagem do “sol negro” da melancolia – também denominada “bílis negra” por Ben-
jamin (1984, p. 176 e 178) e Kristeva (1989, p. 12) –, que circula da poesia de Nerval
para o texto elegíaco de Gastão Cruz, preside o livro As pedras negras.
134 POESIA 61 HOJE
margens incandescentes
alberga a
dor das formas ilusão
do estio primitivo
como se flores, de
novo, perfeitas nos cobrissem
(OP, As pedras negras, p. 223).
* Aos seus livros foram atribuídos os mais significativos prêmios literários portugueses:
Prémio PEN Clube de Poesia 1985 para O pianista; Prémio D. Dinis 2000 da Fundação
Casa de Mateus, por Crateras; Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de
Escritores 2002 para Rua de Portugal; Grande Prémio de Literatura DST 2005, por Re-
percussão; Prémio Correntes d’Escritas/ Casino da Póvoa 2009 para A moeda do
tempo.
136 POESIA 61 HOJE
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
pre que o verso tiver sofrido qualquer alteração (para possibilitar a concordância de gê-
nero ou número na frase em que está inserido), será usado o itálico no lugar de aspas.
* Café Müller é descrito minuciosamente, cena a cena, e analisado por Ciane Fernandes
em seu estudo da obra de Pina Bausch e do Tanztheather Wuppertal (Cf. FERNANDES,
2007). O próprio espetáculo pode ser visto integralmente, em vídeo, no youtube: http://
www.youtube.com/watch?v=ruIFz3lUV3g&feature=mfu_in_order&list=UL (Acesso em
06 de junho de 2011.)
NO CAFÉ MÜLLER, COM LUIZA NETO JORGE 141
* A recorrência da porta como limiar na poesia de Luiza Neto Jorge é analisada por Rosa
Maria Martelo (MARTELO, 2004, p. 151-161).
142 POESIA 61 HOJE
* Agradeço imensamente a Helena Franco Martins as sugestões feitas a uma versão pre-
liminar deste texto, sobretudo no que diz respeito ao sossego em Luiza Neto Jorge.
** Talvez remetendo também a Sá de Miranda, no poema que dá título ao livro de Luiza
surgem duas figuras como que em paralelo: um “herói que morreu” (ao qual é construí-
do um obelisco) e um “herói que não fala” (P 48).
NO CAFÉ MÜLLER, COM LUIZA NETO JORGE 143
* Cf. “SO-NETO Jorge, Luiza” (P 209) , poema estudado por Marcia Arruda Franco
(FRANCO, 2001).
** A hipótese de uma homologia entre corpo e escrita, ou entre erotismo e escrita é inves-
tigada por José Ricardo Nunes, em Um corpo escrevente: a poesia de Luiza Neto Jorge
144 POESIA 61 HOJE
(NUNES, 2000), e ainda por Rosa Maria Martelo no já referido ensaio “Luiza Neto
Jorge e a máquina de oscilar”, de seu livro Em parte incerta (MARTELO, 2004).
NO CAFÉ MÜLLER, COM LUIZA NETO JORGE 145
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Nota
1
Transcrevo aqui na íntegra o poema “Baixo-relevo” (P 37-38), com
que se abre o livro Quarta dimensão:
(trilhos de formigas
descem no cabelo
patinado de pó o coração)
Tu e eu
só estátuas de amanhã
Não temos na mão a flor
um livro uma espingarda
uma cadeira gasta onde morrer
E sem o monstro gótico apunhalado aos pés
Tu e eu
baixo-relevo
vendidos tocados expostos em vida
perseguidos pelos milionários
e pelos mortos talvez que invadiram já
o pedestal das estátuas
Tu e eu
elípticos de sexo
ontem gritada no teu peito
hoje secreto no meu ventre
deserdados da sombra
já sem gesto
escultura de amanhã
Este livro foi impresso
em papel Polen bold 90g,
com a fonte Sabon LT Std em dezembro de 2011.