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POESIA 61 HOJE

ORGANIZAÇÃO:

Jorge Fernandes da Silveira | Luis Maffei

POESIA 61 HOJE

R IO D E J A N E IR O | 2011
© Jorge Fernandes da Silveira e Luis Maffei (Organizadores), 2011
© Oficina Raquel, 2011

Editores:
Raquel Menezes e Luis Maffei

Assistência Editorial:
Beatriz Helena

Diagramação:
Julio Cesar Baptista
(jcbaptista@gmail.com)

Capa:
Isabella Latufo

CDD B869.91

Fernandes da Silveira, Jorge e Maffei, Luis


Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2011.

148 págs. isbn 978-85-61129-33-0

1. Ensaio 2. Poesia Portuguesa Contemporânea


3. Silveira, Jorge Fernandes e Maffei, Luis.

www.oficinaraquel.com
SUMÁRIO

Luis Maffei
LEMBRAR COMO AMAR ........................................................ 7

Jorge Fernandes da Silveira


POEMAS COM LEGENDAS DE UMA COMEMORAÇÃO ...... 9

Alílderson de Jesus
CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA .............. 20

Caio Laranjeira
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO ................................................. 30

Cinda Gonda
O QUE DIZEM AS ÁGUAS – A FORÇA DE UM DIÁLOGO:
CASIMIRO DE BRITO E ANTÓNIO RAMOS ROSA................ 40

Evelyn Blaut Fernandes


FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO ................................. 52

Ida Alves
DE LEONOR A TERESA – ESCRITA DOS SENTIDOS ............. 64

Jorge Fernandes da Silveira


O ESPÓLIO DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO ..................... 79
Luis Maffei
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU
CINCO ATOS ............................................................................. 90

Raquel Menezes
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA .................................... 108

Simone Caputo Gomes


GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA
POESIA ....................................................................................... 120

Sofia de Sousa Silva


NO CAFÉ MÜLLER, COM LUIZA NETO JORGE ................... 139
LEMBRAR COMO AMAR

Luis Maffei

G osto muito de comemoração, não tanto pela mera festa da efe-


méride, mas pela ideia de memória atualizada. Poesia 61 hoje é
livro que comemora, pois, a partir da lembrança de que a publicação
coletiva que reuniu Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão,
Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta cumpre, neste
2011, cinquenta anos, celebramos cada uma dessas obras.
Ao celebrá-las, não voltamos apenas ao ano de 1961, mas nos
dedicamos a ler cada um desses cinco poetas. Pareceu, a Jorge e a
mim, interessante que fossem dois os ensaios sobre cada poeta, para
que as miradas tivessem comemorativa e celebratória diversidade. As-
sim, este livro reúne dez ensaístas brasileiros em torno da obra dos
cinco poetas que, há cinquenta anos, mudaram bastante a face da
poesia feita em Portugal.
Orgulha-nos haver várias gerações envolvidas neste livro – jo-
vens pesquisadores encontram-se com ensaístas de vasta experiência.
Orgulha-nos também marcar essa comemoração em nosso país, por
vezes tão alheio à poesia que se faz em Portugal (a recíproca, infeliz-
mente, não é falsa). A realidade da pesquisa universitária brasileira
em assuntos de literatura portuguesa, no entanto, é rigorosamente
outra: por aqui, esse trabalho é fecundo e crescente, haja vista o que
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se mostra em diversos de nossos programas de pós-graduação. Não é


exagero dizer que alguns trabalhos incontornáveis sobre a produção
literária portuguesa têm sido feitos no lado de cá do Atlântico, e já há
algum tempo.
Orgulha-nos estar com esses poetas, com essas poéticas. Orgu-
lha-me dividir esta organização com Jorge Fernandes da Silveira, pio-
neiro nos estudos que contemplam Poesia 61 e seus poetas. Portugal
maio de Poesia 61 continua sendo texto necessário para que se di-
mensione a força revolucionária daquelas plaquetes e daqueles jovens
autores.
Orgulha-nos poder apresentar ao leitor brasileiro este livro, pois
dele poderão vir novas leituras dessas líricas e novos abraços nesses
poetas tão vivos, tão de agora. Já se passaram cinquenta anos desde
que Poesia 61 se mostrou ao mundo, e muita poesia foi feita por Ca-
simiro, Fiama, Gastão, Luiza e Maria Teresa, cada um a seu peculiar
e distinto modo – aliás, a reunião das plaquetes jamais se pretendeu
um movimento. Sendo assim, mais que visar a uma revisão, o traba-
lho de cada um de nós neste conjunto talvez tenha como efetivo com-
prometimento os próximos cinquenta anos, quando, certamente, to-
dos esses poetas ainda estarão vivos, talvez até mais que agora.
Não posso encerrar sem agradecer, em vivíssima voz, aos autores
dos ensaios. Todos, a partir da fértil mistura entre amor à poesia e ao
outro, comemoram, inclusive (mesmo que isso não seja explicitamen-
te dito, e nem seria necessário), a amizade que nos une e fortalece.
Agradeço publicamente, também, a Raquel, que está no livro como
editora e autora de um dos textos, mas que, além disso, embalou o
projeto com afagos de poetisa.

Rio de Janeiro, primavera, de versos ainda perversos, 2011


POEMAS COM LEGENDAS DE UMA
COMEMORAÇÃO
Jorge Fernandes da Silveira

Para Luiza, a filha de Mauricio

In these songs, melodies conform realistically


to the natural inflections of the voice and language.
Mussorgsky, um dos compositores do Grupo dos Cinco
(The Russian Five, The Mighty Handful, The Mighty Coterie),
autor da suíte para piano Quadros de uma Exposição
(Pictures at an Exhibition).

50 ANOS A 5

É simples a matéria deste ensaio sobre os 50 anos de Poesia 61.


Lado a lado, poemas afastados no tempo formam uma dupla, à
qual se segue um texto breve, como se fosse uma legenda ao “qua-
dro”, ou seja, aos poemas dispostos em duas colunas.
Sublinhando a passagem dos anos nos poetas, não necessaria-
mente pelo traço da diferenciação, essas legendas têm por único obje-
tivo dar notícia dos Poetas 61 hoje.
Como conclusão, ao invés de carregar nas tintas de que sempre
foram diferentes desde 1961, dá-se preferência a algumas linhas de
força (uma metáfora, na verdade) entre os 5 e àquilo que os inscreve
como nomes (com as devidas distinções, a critério de quem os lê) in-
contornáveis na Poesia Portuguesa desde sempre.
10 POESIA 61 HOJE

A quem interessar possa, informo que em Portugal maio de Poe-


sia 61, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, eu, Jorge
Fernandes da Silveira, desenvolvo uma minuciosa leitura desses li-
vros: Canto adolescente, Casimiro de Brito; Morfismos, Fiama Hasse
Pais Brandão; A morte percutiva, Gastão Cruz; Quarta dimensão,
Luiza Neto Jorge; Tatuagem, Maria Teresa Horta.

Casimiro de Brito
(1938)

7 1
a palavra na relva
Ergo a palavra da relva Um homem
e o sol a cobre vai no seu corpo
de novos frutos e subitamente
cai. Ouço
E sou a mão clara que os colhe desmoronar-se
à luz do silêncio a sílica do coração.
à flor do sangue E ouço também
a terra e o ar
E então o seu corpo se confunde acolherem os ossos
sobre um leito de caruma do filho pródigo.
ao meu corpo Em si este acontecimento
não é nada original
E amanheço mas dói. O vento
e cabem nas minhas mãos do Outono
o vício a lama e as estrelas morde-me os ossos
e dói.
Canto Adolescente, Poesia 61 Livro das quedas, 1999

Em folhas de relva, imagem de cultura poética (Whitman), entre


a colheita, a vida, e o recolhimento, a morte, contam-se as idades de
“um homem” de inclinação para o absoluto. Naquele tempo, era o
verbo em primeira pessoa (“ergo”) e, segundo os sábios da escritura,
o amor tudo concertava. Hoje, no corpo (a) que se assiste em terceira
pessoa, é escrita com outra sabedoria a parábola dos bens derrama-
POEMAS COM LEGENDAS DE UMA COMEMORAÇÃO 11

dos. Em folhas caídas, a estação dos frutos multiplica-se numa metá-


fora camoniana romanticamente viva (Garrett): um acidente medie-
vo-clássico-modernista (Dante-Eliot-Drummond), um“acontecimento
nada original” dolorosamente biobibliográfico. Ou, rente a ocidente
dobrado num haikai, quem sabe, descobrir-se-á, por ventura, em mais
uma volta à portuguesa, a desejada parte oriental.

Fiama Hasse Pais Brandão


(1938-2007)

Grafia 1 Quod Nihil Scitur


Água significa ave Água significa ave isto é
a forma de exprimir a parte míni-
se ma das essências. Diminuir a área da
imagem. Mas profusa. Separando
a sílaba é uma pedra álgida nomes. Dividir o abstracto
sobre o equilíbrio dos olhos em fotões. Nomear para viver
parcimoniosamente na lite-
se ratura. Paradoxo causado pela Ode.
Pela Presença.
as palavras são densas de sangue
e despem objectos Frase, fruto do texto passageiro. Olhar
para as palavras. Ver o vazio a pre-
se encher-se linearmente. Erro ino-
cente. Um equívoco pictográfico.
o tamanho deste vento é triângulo na água
o tamanho da ave é rio demorado

onde

as mãos derrubam arestas


a palavra principia

Morfismos, Poesia 61 Três rostos, 1989

Confrontando-se os poemas, é como se o segundo fosse não só a


leitura explícita do primeiro, mas uma errata às suas hipóteses de
12 POESIA 61 HOJE

que, como representação de possíveis semânticos, a metáfora tensio-


na e transforma o chão onde se produz, inequivocamente, o discurso
da revolução poética. “Que nada se sabe”, em bom português, devol-
ve o latim do título ao seu contexto filosófico (Francisco Sanches), em
que a sabedoria da Poeta filóloga está em reconhecer, na equivocatio,
o que é distinto no segundo poema. Isto é: o princípio de expor “ares-
tas”, o que de imaginária sofística há no texto anterior, o “erro”, não
iníquo, equivocado, “inocente”, de tentar controlar a errância das
palavras da língua ao verso, cobrindo-lhe os vazios, unindo o gráfico
ao icônico; um gesto de escrita sem ambiguidades, com algum escár-
nio, imputado à Literatura.

Gastão Cruz
(1941)

à Luisa Ducla Soares A Forma do amor


e ao J. C. Passos Valente

O sol amarga a luz apodreceu Uma vez mais acende-se a renúncia


a presença do sono gela a boca como um caudal nocturno arrastando as palavras
quem encontrou no cemitério verde despertos repetimos a essa luz os sons
o cadáver intacto deste choro? agudos que tínhamos cantado

Dorme-se e apodrece o pesadelo A noite não será igual a tantas outras


o sol nunca existiu e o resto é lodo nem decerto o amor tem a forma de espada
temos a boca aberta ao desespero porém tudo é idêntico ao fotograma estático
e do choro jamais alguém falou de súbito retido no correr das imagens
Encerramos num círculo a garganta Parámos nesse ponto em que o choro da noite
o corpo dilatado os órgãos lisos perdeu a consistência e se desfez em mármore
quando já temos sobre a voz o pântano o amor tem a forma que as palavras
não podem dar à hora da paragem da alma
das luzes e dos fornos incendidos
e a pausa necessária da cidade
e o cadáver dos astros abatidos

A morte percutiva, Poesia 61 A moeda do tempo, 2006


POEMAS COM LEGENDAS DE UMA COMEMORAÇÃO 13

Sobre/sob o acento grave do presente, configura-se a natureza


morta nos poemas. “No cemitério verde”, o eterno retorno, um tem-
po em círculos, onde o começo e o fim batem-se à porta dum já arrui-
nado imaginário jardim. “Uma vez mais”, a sabedoria de trazer na
construção rigorosa do soneto, ou na variante contemporânea em
três quartetos livres, a chave-mestra, camoniana, de pôr à prova des-
concertos de amor; à sua maneira, porém. Com “um caudal noctur-
no” de fonte sinestésica, à Pessanha, assiste-se na apurada composi-
ção à revisitação do modo de estar no entre-lugar à portuguesa na
segunda metade do século XX. À pergunta que responde à tortura do
sono, à censura que a sujeita, expressa a maneira de, em nós, questio-
nar a recepção ao grito ou ao choro; este, “cadáver intacto”, “em
mármore”, aquele, “a boca aberta ao desespero”, “tem a forma de
espada”. Técnicas discursivas, onde a noite portuguesa, em imagens
movidas por inércia ou aceleração, é uma causa neorrealista dita na
linguagem ou um efeito do realismo de linguagem por dizer.

Luiza Neto Jorge


(1939-1989)

Balada Apócrifa Minibiografia


Olhai os lírios do campo Não me quero com o tempo nem com a moda
meninas de saia rodada Olho como um deus para tudo de alto
íris de teias de aranha Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
desvendam o mar nas searas Me faz a todo o passo errar a coda.

Olhai os lírios de pedra Porque envelheço, adoeço, esqueço


em copos de limonada Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
Os soldados em manobras O formato mulher se me acomoda.
enterram a sombra caiada
(Bebei os lírios de água E se a nave vier do fundo espaço
com grandes bicos de aves) Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
Sofreram sempre derrota À cena do mais árduo e do mais escasso.
deixaram mãos enforcadas
14 POESIA 61 HOJE

sem lençóis com clarins Um poema deixo ao retardador:


grades de pernas doadas Meia palavra a bom entendedor.

Olhai os lírios do tempo


meninas virgens por dentro

Os soldados em manobras
têm noite por espingarda
Colhei os lírios do corpo
meninas de saia travada

à Manuela Nascimento

Quarta Dimensão, Poesia 61 A Lume, 1989

Minibiografada, Luiza Neto Jorge está hoje posta em sossego.


Em duas dezenas de anos, nos limites entre o biográfico e o poético,
os seus poemas são corpus vivo nas relações genealógicas entre o tex-
to literário e o contexto histórico. Pessoa e Persona gêmeas, não idên-
ticas, como as acima, abertas à visitação pública. De maneira sarcás-
tica, uma fingida cantiga de amor-amigo abala o campo lírico dos
lírios, se se é virgem e não se sabe atravessada pelo campo bélico das
armas. Com arte e engenho, Luiza desvela a retórica da guerra dos
sexos, em moda, e, manobrando-a, com gozo, chega além da idade
adulta, sem mistérios, nem feia, nem velha, nem sandia, na ambigui-
dade; sabe quando custa pouco ceder a vida cedo e o quanto vale a
pena a espera do “bom entendedor”, o leitor único (diria Fiama). E,
quase em so-neto, apócrifa finda.
POEMAS COM LEGENDAS DE UMA COMEMORAÇÃO 15

Maria Teresa Horta


(1937)

Outubro Amêndoa Amarga

Estas noites de mar Esse travo inteiro


incrustadas a amêndoa
de luz amarga

ou estes olhos A ameixa


de polos a doce a ferver no tacho
distanciados do nada
Esse travo na língua
Este ódio de chuva a fermentar no corpo

este dia montanha A febre a nascer


a crescer debaixo
Esta arma de boca
ou tempo encontrado Em baixo...
com relógios na a saia a subir nas coxas
montra e esse cheiro mais grosso se entreabro

Este ardor de palavras As pernas os lábios


no perfil e o gosto
das bocas onde o sabor da amêndoa
se torna mais amargo
este grito que
tenho É esse o momento
nas mãos misturadas o instante exacto
em que tudo se prende
ou mãos misturadas ao gesto sem sentido
que tenho
de outubro A calda no ponto
no sabor picante deixa a língua em brasa
sentido das casas
E eu tiro pela cabeça
o meu vestido

Tatuagem, Poesia 61 Destino, 1997


16 POESIA 61 HOJE

São as moradas de Teresa. O presente é já passado e o passado


está no presente. Misturados, essa “arma de boca” é hoje este “travo
na língua”. O por vir cos[z]e-se a todos os sentidos em que pulsam os
sentimentos de mulher sujeito em estado de absoluta possessão do
objeto amado. E na morada Teresa destempera a revolução de “outu-
bro”: o destino é um vestido estampado, já tatuado, que se lhe atira
dos pés à cabeça. Pela vagina, a “amêndoa amarga”.

POETAS 61 HOJE (1961-2011)

Do verde pinho (“ay flores, ay flores do verde pinho”) e das


variações da primavera em Dom Dinis (“o tempo da frol”, “quand’a
frol sazon á”, “no tempo en que ten a color a frol consigo”) à
sua sagração em Pessoa (“o plantador de naus a haver”), há uma
magnífica cultura da metáfora da Flor(a) na Poesia Portuguesa.
Antológica por natureza, é tão bela quanto trágica em versos.
Como, por exemplo, a mudança do locus amoenus (“toda’las aves
do mundo d’amor cantavan”) ao horrendus (“vós lhi tolhestes
os ramos en que pousavan”) como que censurada em refrão de
cantiga de amigo, que, inalterado, como sói acontecer, imprime um
juízo perverso (dir-se-ia, hoje, histérico) à desmesura de morrer ou
ensandecer d’amor: “leda mh-and’eu”.
Jardim à beira mar plantado, País de Poetas, Portugal é
fértil em metáforas de amor e morte sobre o chão da história.
“No cemitério verde”, “sobre um leito de caruma”, Gastão Cruz
e Casimiro de Brito, Poetas 61, movidos por uma tradição de há
séculos, sob a super visão de Camões, revisitam o tema do concerto/
desconcerto do sujeito no mundo.
Passados 50 anos da publicação coletiva, relidos e
contextualizados os versos dos dois poetas algarvios, surpreende a
atualidade da metáfora sobre o real. Isto é: na Primavera de maio
de 1961, os 5 poetas jovens de Poesia 61 lançam de novo a lume a
portuguesa imagem assinalada da Flor(a).
Em versos e em títulos são muitas as imagens da primavera
na poesia de Gastão Cruz. Por exemplo: “Primavera” (série de 4
POEMAS COM LEGENDAS DE UMA COMEMORAÇÃO 17

poemas em A doença), “Não penses nas canções da primavera


que” (com epígrafe de Keats), “Esperas a primavera neste” (Teoria
da fala), “Primavera” (O pianista), “Ante-primavera” (Crateras),
“Noite de primavera a que respondo” (Escarpas). E, last but not
least, em se tratando de um poeta for all seasons, com a devida
atenção voltada para o título do livro, Repercussão, cita-se “A
Primavera revelada”, sublinhando nos últimos “versos” (trata-se
de um poema em prosa) o que há de revisitação ao título de Poesia
61, A morte percutiva, e de vontade de que “no cemitério verde” o
efeito do realismo de linguagem seja de novo uma projeção sobre
a noite portuguesa:

Não a primavera interior, interdita, a da casa, nascendo


dentro, entrando para as ruas, memórias breves, marcas
eternas subitamente extintas, dissolvendo a parte fechada
dos parques, absorvendo os narcisos, em infernos exí-
guos, agora antigos, não a primavera definida pelos aro-
mas fixos, de interrupção impossível, a não ser na muta-
ção dos corpos, no conhecimento das ínfimas estrias, no
futuro então explícito, nas ruas de colunas ondulando ao
ar frio, não essa primavera tardia, no futuro retida, mas a
revelação revista, a sucessão das ondas, como quando a
primeira primavera sobre o corpo corria.

Figura ainda em construção, “a primeira primavera”, a sua es-


pantosa contemporaneidade emociona, igualmente, quando posta em
boca das 3 mulheres Poetas 61.
Em Luiza Neto Jorge (a subida “à cena do mais árduo e do mais
escasso” mais parece uma versão diminuída de “junto de um seco, fero
e estéril monte”) e Maria Teresa Horta, a flor sazonada em fruto passa
pela lenta metamorfose geradora de novas artes e engenhos poéticos.
Duas senhoras de si, curtidas nos artifícios do erotismo, que, a seu tem-
po e a seu modo (uma numa queda de amor com “a cabeça em ambu-
18 POESIA 61 HOJE

lância”; outra, desmitificando segredos, a vir-se toda com a cabeça no


vestido), põem no gênero feminino o que de mais perverso (o feitiço
contra o feiticeiro) há na experiência de ser objeto da paixão por poe-
mas de amor em forma de cantigas, baladas, odes, sonetos, numa pala-
vra, da paixão por mulheres conformadas a gêneros literários.
São versos perversos, se neles se misturam a flor e o fruto, “os lírios
do corpo” e “a amêndoa amarga”, na mudança de gênero, em proveito
de uma versão vintage, corrigida, de mulher “coytada”, “mísera e mes-
quinha”, em vias de estar alegre (“leda” “de [s]eus anos colhendo doce
fruto), pois se sabe dar conselho. Como que reflexiva, numa bela volta
à canção de amor amigo à maneira de Casimiro de Brito, em Opus
Affettuoso seguido de Última núpcia: “Sombra de mim velida/ decanta-
da/ imagem de mim primitiva/ e sempre flexível e jamais/ repousada.”.
Ou são “Frase fruto do texto passageiro”, como diz Fiama Hasse
Pais Brandão, autora de Poemas galaicos e “Catálogo botânico da pri-
mavera” (a primeira das suas seis “Poéticas”), que, em poema de aniver-
sário, em comunhão, comemora na transformação dos frutos, na sua
passagem repetida (herança e errância), o renovado nascimento para a
Idade da Poesia, dos Cancioneiros ao “Modo histórico da cidra”:
(...)

Meus anos expostos (a frutos) que formas


confirmaram; ou, mais longínquo,
houve o soalho; no espaço a hora ocorre.
A omissão de cidra ou mármore ágrio é um dom
do luto: meu exercício e o mundo.
E que urna ou ornamento (essa mesa)? É
um sentido vário; não que pereça,
mas, quando imóvel, muda. A emoção de ser
corpo (um fruto) decomposto que hoje
recrio ou lego: a minha existência
(entre os iberos) urge.
15 Agosto 69
POEMAS COM LEGENDAS DE UMA COMEMORAÇÃO 19

Em suma, no campo restrito às imagens dos poemas escolhidos


para este ensaio, há uma flor já de culto (o bom canteiro a sabe) na
memória poético-afetiva dos Poetas 61: Luiza Neto Jorge, “A
Magnólia”.
E com ela termina a homenagem:

A Magnólia

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe


onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora −
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico


desfolhando relâmpagos
sobre mim.

Rio de Janeiro, no 37º aniversário da Revolução dos Cravos


CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA
Alílderson de Jesus*

G ostamos de oposições bem claras: dicotomias que nos protejam


do perigo de “realizar”. “Realizar” não apenas com significado
de pôr em andamento uma empresa qualquer, mas com sentido (mais
usual na língua inglesa) de “dar-se conta”, “aperceber-se” “dar con-
tornos à realidade”. Afinal, um mundo binário de antinomias irrefu-
táveis – realidade/ fantasia, bem/ mal, Deus/ Diabo, mito/ verdade –
nos deixa a confortável impressão de que, como provoca Ronaldo
Lima Lins, “sabemos quando algo é e quando não é”.
Por outro lado, os mesmos princípios maniqueístas que nos con-
fortam e que inclusive geram totalitarismos nos fazem descuidar do
fato de que, como assevera o próprio Lima Lins, “há ocasiões em
deixamos de saber”:

Conceitos silhuetas, realidades se superpõem – e se pro-


cessa um estado de mutação. Uma pessoa à qual conferí-
amos amizade, afeto, sinceridade, surpreende, choca, de-
cepciona. É a mesma e não é. Idêntica, parece outra. (....)
do mesmo modo, concepções movem épocas, sociedades.
De repente, tornando-nos estrangeiros de nós mesmos,
caem as convicções. (2002, p.11)

* Doutor em Literatura Portuguesa/ UFRJ


CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA 21

E então, o mundo deixa de ser o que é. Ou o que supomos saber


que ele seja.
Pois justamente em Portugal – num panorama bem parecido à
descrição feita por Ronaldo Lima Lins, sob a mão de ferro de Salazar,
no mesmo ano, aliás, em que seu Ministro da Defesa Moniz Botelho
tenta um de Golpe de Estado e fracassa – surge Poesia 61.
Diga-se de passagem, um período também de grande ebulição
dos movimentos civis mundo afora, dentre eles o feminismo, que,
juntamente com o movimento pela igualdade racial nos Estados Uni-
dos, começa a ganhar corpo. Na mesma medida, a repressão recru-
descia, não só no campo político, mas também no terreno moral.
Por conta disso a literatura da época (bem como outras formas
de arte) precisava ser enquadrada nos limites do discurso oficial. Era
“preciso” controlar as mentes, e, sobretudo, os corpos. O regime sa-
lazarista, que sairia ileso das ambições golpistas de Moniz Botelho,
bem o sabia.
Como contrapartida à imposição de limites e de controle, Poesia
61 – que, segundo Maria João Cantinho, haveria de marcar a poesia
portuguesa, tendo sido importante na criação de uma contracorrente
literária – nascia no olho daquele furação; não como um manifesto de
apoio ao golpe orquestrado por Botelho, muito menos ainda como
um endosso público a uma das ditaduras mais longas da História.
Poesia 61 surgia a partir de uma reunião feliz de cinco grandes nomes
da poesia portuguesa – Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa
Horta, Fiama Hasse Pais Brandão e Casimiro de Brito – em torno de
ideias, num momento em que, como se sabe, ter ideias podia ser mui-
to arriscado.
Movimento embrionário das atividades promovidas em Faro
por Casimiro de Brito, ao lado do amigo António Ramos Rosa, foram
os Cadernos do meio-dia, cujo caráter essencial era a convivência
harmônica de diferentes estilos. Apesar de não ser uma reação panfle-
tária aos sombrios acontecimentos de então, num “país em que a di-
tadura amarfanhava e sufocava todos os movimentos literários que
22 POESIA 61 HOJE

não se integrassem no panorama do regime político”, a revista “seria


apreendida pela censura”, de acordo com Cantinho.
Como se vê, assim como à época de Mao Tsé-Tung, Mozart e
Stravinsky eram tidos como inimigos do que o ditador chinês deno-
minava “Revolução Cultural”, os Cadernos do meio-dia e, depois,
Poesia 61, perturbavam o sono de Salazar.
Todavia, devo acrescentar ao tom irônico da afirmação de há
pouco o fato de que “a ação rebelde” dos jovens poetas de 1961 –
embora deva ser primordialmente reconhecida como erupção estética
– não era desprovida de um sentimento reativo ao panorama que
então se desenhava. Inclusive, segundo Gastão Cruz,* este sentimento
manifestava-se através de toda uma alusão indireta àquela situação
asfixiante, seja através da adoção de títulos provocativos como He-
matoma, seja através da inclinação temática para tabus relativos ao
prazer do corpo e ao corpo do prazer.
Movidos por um desejo de ruptura e pela ambição de inovar, os
jovens autores de Poesia 61 “visam uma poesia que superasse de uma
vez por todas as sombras pessoanas e presencistas que haviam paira-
do sobre muito da produção dos anos 50.” (Moisés, 2008, p. 443).
Poesia 61, então, propugnava a revalorização da palavra trazen-
do-a para o centro do texto poético, com vias de explorar os sentidos,
tanto os da palavra, como os do corpo. O que significa dizer que a
percepção das coisas necessariamente passa pela vivência, ou seja,
pelo contato, não exclusivo, mas premente, com a realidade material,
a ponto de as muitas nuanças dessa realidade serem expandidas pelo
uso recorrente da ambivalência.
Via de regra a serviço do erotismo, a ambivalência cria neste
contexto poético liberdades inconvenientes agravadas em seu teor re-
volucionário ao serem expostas ou reivindicadas por uma voz no fe-
minino. Afinal, historicamente, “o triunfo do patriarquismo cristão

* Este comentário foi feito pelo autor em uma entrevista de televisão transmitida pela
SIC.
CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA 23

dentro do qual se expande a neurose doutrinária dos homens obceca-


dos pela danação da ama assegurada a quantos desfrutavam os pra-
zeres da carne”, diz Natália Correa, “trouxe como conseqüência a
degradação da mulher, que encarnava a luxúria” (1999. p. 15).
O erotismo no feminino traz à tona a verbalização, a imposição
e a proposição da sexualidade de um grupo social historicamente
mais reprimido e, portanto, mais rebelde ao adotar tal conduta dis-
cursiva, como se vê em “O poema”, de Luiza Neto Jorge:

Esclarecendo que o poema


é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem

falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta

e a esta terra imóvel


onde já a minha sombra
é um traço de alarme (2008, p. 32)

Neste poema, que uso como pretexto para introduzir uma dis-
cussão em torno de Casimiro de Brito – tarefa que me coube no hon-
roso espaço desse capítulo – temos, a “coser” “todo o corpo/ à gar-
ganta” “com uma agulha de sangue”, um “falo”. Ou, por outro lado,
temos um “eu” que fala “com uma agulha de sangue” a coser-[lhe]
todo o corpo. A ambivalência de que falei há pouco se faz presente
aqui. E, seja qualquer via que se tome para dar um sentido a sua se-
gunda estrofe, ela apontará, ao menos, para duas atividades proibidas
num regime de exceção: fala e gozo.
24 POESIA 61 HOJE

Casimiro de Brito – a quem de certo modo o poema de Luiza Neto


Jorge me conduz como espécie de ilustrativa síntese da obra desse autor
– é um poeta que justamente transmite um sentimento de que fala e gozo
são bens inalienáveis. Assim como é também um poeta que – a seu modo
– indica que o poema é um “dedo” “apontado ao coração do homem”.
Casimiro de Brito se apresenta ao mundo como o corpo se apresenta,
não só na lírica de Luiza Neto Jorge, mas também na dos demais poetas
de Poesia 61: em constante movimento.
Artífice de um texto afinado com o desejo de estabelecer uma
relação unívoca entre vivência e ação, Casimiro de Brito tem, como
método criativo, um discurso fatiado e remontado numa equilibrada
economia de peças:

Canto as raízes do silêncio: o mar e a sua gênese. O


fundo do mar é um seio dissolvido onde sou uma pedra
em flor. Tenho os olhos abertos debaixo de água e falo
aos corais que desabrocham sombra. Incido em
mim . Sou, neste momento de cinza, a medida mais
sensível de mim mesmo. Respiro-me amplamente. (1961, p. 3)

Por outro lado, a poesia de Casimiro de Brito, além dessa econo-


mia, propõe ma fusão entre corpo e natureza, ou ainda uma indistin-
ção à beira (senão a fundo) do atavismo. Uma idéia que por sua vez
pode ser lida como aproximativa da concepção grega de physis.
Como é sabido, os primeiros estudos anatômicos, repletos de
equívocos, aliás, partiam desse principio. Diga-se que, descontados
alguns dos muitos enganos, posteriormente viemos a saber que a base
de tal raciocínio guardava, sim, grande conexão com a realidade.
Em Canto adolescente (de que citei há pouco um trecho), feito a
propósito de Poesia 61, a sobreposição, ou ainda interpenetração, de
elementos naturais dá-se a partir dum corpo atravessado por “mar” e
suas variantes lexicais. Agregam-se a esse corpo os conceitos de ori-
gem e de morte:
CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA 25

A morte respira é bela nela me reflicto e sou alto


Como um profeta ante o nada Tudo é saudável no
fundo do mar. A ninguém incomoda meu corpo quase
dissolvido. Há muito sei estar só e nu ao mesmo
tempo (1961, p. 8)

A ideia mesma de fusão se concretiza também na disposição grá-


fica dos poemas, na sua lírica arranjada a partir da forma de peque-
nos textos em prosa e de poemas que se apresentam com a forma
mais habitual do verso livre.
Emerge, então, de Canto adolescente uma quebra de fronteiras
a partir da mistura entre “gêneros”, a partir dum passeio do poeta
por distintas formas de escrita.
Esta mesma tendência a combinar diferentes formas vê-se num ou-
tro livro que, a princípio, aparenta ser um livro de ensaios: Escrita e
prática em tempo de revolução. Há nele textos que podem ser lidos como
artigos, contudo são desobedientes às regras elementares desse formato.
As ideias são expostas em jatos, frêmitos próximos do que chamam de
prosa poética. Afora isso, no mesmo livro há textos em que o verso, em
menor quantidade em meio a textos em prosa, parece um “acidente”.
Percebe-se também, no processo criativo de Casimiro de Brito,
um apreço pela serialização, como se o poeta, ao compor sua poesia,
almejasse a tessitura de vasos comunicantes. Para esse aspecto, Maria
João Cantinho aponta ao afirmar: “Desde sempre, Casimiro de Brito
trouxe bem consciente a ideia arquitectónica de uma obra, que se foi
desenvolvendo como uma ‘tapeçaria’ onde os diversos livros se liga-
vam entre si”.
Do mesmo modo engenhoso atuam associações caras ao poeta
em questão: mar-mãe (seio dissolvido), mar-corpo. Ambas associa-
ções, inclusive, funcionam como um constante fio condutor de um
animismo sempre em progresso à medida que avançamos na leitura
de Canto adolescente. Por sua vez, o poeta, imbuído desse espírito
animista, em diversos momentos executa a intersecção de elementos
26 POESIA 61 HOJE

a ponto de provocar inversões imagéticas como as que ocorrem no


confronto com o universo especular:

Frente ao mar
Meu corpo ardente e nu de marinheiro pelo sangue.
Fervem-me nas veias
um milhão de ondas em repouso (1961, p. 11)

Aqui se observa uma inversão: “os marinheiros” do mar seguem


“pelo sangue”, enquanto ondas em repouso “fervem nas veias”.
É também possível sentir na poesia de Casimiro de Brito um
despojamento linguístico associável à oralidade. Essa inclinação, o
poeta atribui ao convívio em sua infância com as histórias que os
avós lhe contavam quando no Algarve se reuniam para jantar. Talvez
isso também esteja na origem da simplicidade apaixonadamente des-
critiva de um texto poético que, entre outras coisas, se recusa a utili-
zar uma sintaxe asfixiante.
Não é de se estranhar, portanto que o livro aqui comentado com
mais ênfase chame-se Canto adolescente, algo que se pode entender
como remissão à origem oral (cantada) da poesia.
A essa inquietação poética que se manifesta a partir de um desejo
remissivo à oralidade, soma-se uma tendência, não exclusiva, mas
forte, à denúncia social. Ao tomar essa via, o poeta revela uma influ-
ência do texto de Bertolt Brecht, cuja poética – menos interessante
que a dramaturgia – parte do mesmo gosto pela oralidade. Diferente-
mente do que se percebe em Brecht, não é visível, na poética de Casi-
miro de Brito, ao menos de forma gritante, a propensão mesma a se
dirigir a uma “classe” e pedagogicamente iniciá-la. Por outro lado,
como em alguns textos políticos de Brecht, há na obra do poeta por-
tuguês uma necessidade do reconhecimento de laços que nos fazem
seres universais e codependentes. Tal reconhecimento dá-se, em mui-
tos momentos, pela exortação a princípios como os da igualdade en-
tre indivíduos e, principalmente, duma possível irmandade entre o
CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA 27

poeta (escritor/ artista) com o trabalhador. Sendo assim, o homem de


criação nivela-se espiritualmente ao homem da labuta diária, como se
pode verificar no poema a seguir:

Não sou mais poeta do que tu irmão


tu cavas na terra a semente da vida,
eu cavo a vida na libertação.

Somos partes perdidas dum só


que a razão de ser das coisas
separou. Não sou mais poeta do que tu, irmão
A mãe que te gerou, a mim me gerou – (s/d, p.18)

Em Canto adolescente, no entanto, este caráter de denúncia so-


cial é substituído por uma entrega que Cantinho chama de “audição
as coisas do mundo”, e uma entrega ao erotismo. Trata-se, nesse caso,
de constatar uma comunhão entre mistérios: mistério-corpo e
mistério-mar.
Essa poesia apresenta, portanto, um eu lírico prenhe do frescor da
descoberta feita a partir do contato com as coisas mais simples. Talvez
isso venha para o poético a partir de uma reminiscência da infância de
Casimiro de Brito, período em que era através dos avós apresentado
aos nomes dos frutos das arvores do sítio onde eles moravam.
Por conta disso, uma leitura de Canto adolescente sugere, entre
outras coisas, que não existe um mundo poético paralelo ao mundo
real. O real contém o poético e o poético contém o real. Ocorre que
ambos precisam ser inventados.
Talvez por isso mesmo, o espaço da natureza reivindicado por
Casimiro de Brito para sua poesia não é o do sonho bucólico, ou
mesmo do “refugio” presente na velha oposição campo/ cidade vista
no Arcadismo. Creio que ao dizer isso volto ao ponto de onde iniciei,
quando falei do perigo (ou segurança) das dicotomias. Casimiro de
Brito, sendo capaz de cantar o amor à Pátria, a solidariedade ao povo,
28 POESIA 61 HOJE

o grito por liberdade e de exprimir-se com e sobre o desejo físico, é


ainda capaz de enxergar os “perigos do refúgio”.
Para escapar a tal “ameaça” e dar contornos ao que supomos ser
realidade, Casimiro adota a partir do erotismo a quebra de paradig-
mas através de versos como: “peço a tua virgindade/ para dar-te a
minha/ e criarmos a nossa (1961, p.16)
Em nossa civilização, como se sabe, a troca sexual está ligada à
perda e à culpa. No breve poema aqui transcrito, a proposta carnal
desenvolve-se a partir da idéia de troca e de ganho.
O mar – elemento chave na poesia casimiriana – se junta a essa idéia
de troca, tendo o ganho como resultante, ao fazer o papel constante de
mediador entre o mundo externo e mundo interno do sujeito poético. A
simplicidade linguística e até certo ponto temática vista em Casimiro de
Brito mostra-se como uma liga a fortalecer tal mediação. De outro modo,
promove o encontro inadiável entre um emissor desejoso por revelar seu
universo (o poeta) e o receptor iniciante na nova forma de perceber aque-
la astronomia que se revela. Sendo assim, o traço que se reconhece nessa
lírica é feito com tintas que atraem o olhar para a paisagem.
A pena de Casimiro de Brito, então, evoca uma memória e uma
vivência universais que se traduzem em composições cujos objetos se
expõem ao alcance das sensações. São objetos concretos, ainda que
magnetizados por aura de espiritualidade. É, portanto, a poesia de
Casimiro de Brito um ambiente arejado longe da falsa escolha entre
dois mundos, mesmo porque a poesia, cujo étimo aponta para o sig-
nificado de criação, não precisa escolher entre duas medidas ou duas
opções: ela pode reinventar as múltiplas escolhas e se dar ao luxo de
sequer escolher, tendo em vista o horizonte maior que é a busca.
Bem, se ainda alguma coisa falta a ser dito (isso é pura retórica,
sempre falta algo a ser dito), há o leitor de me perdoar. O poeta é
grande, o espaço curto e a vida breve. Paradoxalmente ou não, justa-
mente por isso o bom senso exige de mim um ponto final.
Para cobrir as linhas que me restam até o ponto vindouro, reto-
mo mais uma vez o que disse sobre o “paraíso” e o “inferno” das di-
CASIMIRO DE BRITO: UM MUNDO NUM POEMA 29

cotomias. Faço-o para compará-lo ao mundo físico e, talvez por isso,


igualmente metafísico de Casimiro de Brito.
Afinal, o mundo pronto das dicotomias que tanto nos conforta e
agride é um mundo irreal e apóetico, enquanto o mundo poético de
Casimiro de Brito é percepção e consciência de mundo e do movi-
mento constante de suas roldanas. Creio que talvez por isso o poeta
diga que “o problema não é meter o mundo no poema” (1977, p. 57).
Portanto, ao falar do “mundo de Casimiro”, me sinto a falar de um
mundo que nos invade sem que nos demos conta. Um mundo de aro-
mas apto à degustação, para o qual todos os sentidos são acionados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRITO, Casimiro de. Canto adolescente. In. VVAA Poesia 61. Faro: edição
dos autores, 1961.
BRITO, Casimiro de. Corpo sitiado. Lisboa: Iniciativas Editoriais, s/d.
______. Prática da escrita em tempo de revolução. Lisboa: Caminho 1977.
CANTINHO, Maria João. Casimiro de Brito. In Digestivo cultural. Dispo-
nível em http://www.digestivocultural.com/colunistas/imprimir.
asp?codigo=819.
CORREIA, Natália. Prefácio. In CORREIA, Natália (org.). Antologia da
poesia erótica portuguesa - dos cancioneiros medievais à actualidade.
2. ed. Lisboa: Antígona & Frenesi,1999. p. 11-17.
JORGE, Neto Luiza. 19 Recantos e outros poemas. Organização de Jorge
Fernandes da Silveira e Maurício Matos. Rio de Janeiro: 7letras, 2008.
LINS, Ronaldo Lima. O felino predador. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ,
2002.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 26. ed. São Paulo: Cultrix,
2008.
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO
Caio Laranjeira*

e eu que devo fazer na pura terra


contigo, lado alado, ó laborioso?
Fiama Hasse Pais Brandão

A sugestão vem de Cecília Meireles: “Já não sei mais a diferença /


de ti, de mim, da coisa perguntada,/ do silêncio da coisa irres-
pondida” (1997, p. 147). Com uma sugestão, portanto, começamos.
Uma suspeita. Iniciamo-nos neste trabalho num sublugar – forma hu-
mílima de se chegar ao texto poético. Consideremos: na pulsão do
fenômeno estético de cada poema há um entrecruzar de forças múlti-
plas em sensibilidades e inteligências. O leitor e o autor concertam
suas vozes num dueto que não sonega a efervescência de um rol de
outras vozes, mais extenso talvez do que possa ser flagrado no suspi-
ro do texto. Convém, portanto, aprender, de cabeça erguida, a lição
de Luiza Neto Jorge: “o poema ensina a cair” (JORGE, 2008, p. 64).
Radicalizar a leitura dos poéticos textos quiçá seja tomar tal ati-
vidade como um trabalho ainda por se desenvolver. É preciso reco-

* Mestre em Literatura Portuguesa/ UFRJ


FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 31

nhecer, no gesto da leitura, a sua insuficiência de dar moldes definiti-


vos ao objeto lido. Ler, pois, tem a ver com a hipótese de autoafirmação
do sujeito. Trata-se de um engenho cuja arte é justamente a de fazer
emergir a voz naquele emaranhado de atuantes textuais, “de ti, de
mim, da coisa perguntada,/ do silêncio da coisa irrespondida”. O tex-
to passa a ser a imbricação social dos indivíduos que negociam senti-
dos em suas malhas. Somos nós que, textualmente, hipotecamos o
nosso autoconhecimento em nome de nos reconhecermos no uso que
o outro textual faz dos mesmos nomes. Como em um dos últimos
personagens claricianos: “É paixão minha ser o outro” (LISPECTOR,
1978, p. 37). O nome, com efeito, materializa uma hipótese de mun-
do, uma suspeita de vida – vida essa que, sabe-se lá, talvez só exista
mesmo no espaço da sugestão ou do cogito.
Sábio será assim o texto Fiama.
O trabalho poético de Fiama Hasse Pais Brandão fornece, a es-
paços curtos, pistas do seu caráter hipotético de construção. A poeta
prodigaliza os caracteres-operários do texto, os quais, manuseando
as virtualidades da língua, sublimam os novos reinos da palavra, sem
esconder os andaimes do edifício. A lapidar tese com que Fiama es-
treia em poesia reconfigura-se, no cair da leitura, uma hipótese: “Água
significa ave/ se / a sílaba é uma pedra álgida (...)”* (p. 15) (de “Grafia
1”, Morfismos). O pacto com o leitor é estabelecido sob a regência da
seguinte cláusula: partir do conhecimento (a tese) rumo a uma inves-
tigação dos mecanismos que sustentam, como conjecturas, a afirma-
ção inicial. Já ali, naquele poema de 1961, o texto escolhia a direção
e a intensidade do enfoque. Conquanto importante, menos parecia
interessar à poeta dar contornos ao conceito do que atravessar o lexi-
cal leito em busca das fontes da linguagem e do pensamento. A poeta
maravilhava-se em se descobrir no discurso**.

* Grifei. Para todas as referências à poesia de Fiama, uso a versão da Obra breve: poesia
reunida, lançada em 2006 pela Assírio & Alvim.
** E o sintagma “descobrir-se no discurso” nutre grande débito para com a beleza de “as
palavras são densas de sangue / e despem objectos” (p. 15) – estrofe do mesmo “Grafia 1”.
32 POESIA 61 HOJE

Em 2002, com o lançamento de As fábulas, as quatro décadas


dedicadas ao universo poético, como esperado, potencializam, em
Fiama, um saber só de experiências e leituras feito. A produção poé-
tica, se inicialmente falava muito em roturas, em arestas derrubadas,
vai chegar, solene e humilde, a um estágio em que a linguagem se as-
sume diretamente como um conglomerado de conhecimentos diver-
sos (de versos). Nesse nível, a poeta dá mostras de se sentir ainda mais
à vontade para intercambiar, com o corpo das tradições, o estatuto (e
a estatura) de sua própria voz. Sem receio algum de ver-se obliterado
por estrela de maior grandeza, o discurso de Fiama aceita, fraternal,
a tarefa de projetar luzes ao lado de outros discursos, sejam eles tam-
bém literários, sejam filosóficos ou míticos. Em “Do amor I”: “A né-
voa disse à árvore:/ tu, cedro, perdes a tua forma,/ se eu te abraço.
Disse/ o cedro: o Sol ama-me mais,/ toma o meu corpo inteiro/ no seu
corpo e dá-lhe/ ser, figura” (p. 727). De maneira simultaneamente
igual e dessemelhante, Fiama põe-se a explorar a ainda producente
mina das fábulas, que seguramente tem Esopo como evidência dos
primeiros quilates ali descobertos.
Pensemos, mais detidamente, no poema de Fiama. Seu roteiro
tem pontos de contato com a forma tradicional das fábulas: prosopo-
peia e moral. Porém, a marca diferencial ali vislumbrada trata de um
amor que não embaça; antes, o sentimento amoroso miscelaneia-se
de tal modo ao outro, que lhe passa a ofertar “ser” e “figura” pró-
prios – essência e aparência num só golpe. Ou melhor, abraço. E será
justamente abraçando o corpo dos textos lidos e produzidos que a
poeta vai parir uma dicção sob a superfície/no âmago da qual possam
ser reconhecidos diálogos com escritores das mais variadas literatu-
ras, no tempo e no espaço.
Camões, Pessoa, Cesário, Luiza, Ruy Belo, e mais; Goethe, Hugo,
Hölderlin, Rilke, e além; “poetas oitocentistas” (p; 224) *, clássicos e
contemporâneos. A lista de referências com as quais a poeta afina o

* “Aos poetas oitocentistas”: poema de Homenagemàliteratura, de 1976.


FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 33

tom e refina a voz revela-se uma vitaminada massa substanciosa. O


leitor consente e participa, dramatizado, do banquete lírico: “Tu vês
avançar para ti a literatura,/ a resfolegar e a chiar. (...) Exegeta, o que
tu viste,/ com o teu único olho ciclópico,// é um paralelepípedo onde/
a voz ou o silêncio da voz / adquiriram uma figura sólida” (p. 384).
Resta ao leitor abraçar a literatura: receber o “ser, figura” “sólida”
que os textos lhe dão como fábula do amor.
É exponencial perspectivar, creio, que esse mesmo leitor não
será convocado para, passivamente, apenas receber o que lhe chega
pelas letras. Cabe a ele também fermentar as páginas da Obra breve,
intumescendo os textos com as riquezas que, na condição de agente
da leitura, traz como elementos de construção de sentidos. Em al-
guns momentos, é para o rosto do leitor que a poeta apontará: “só
deve ler-me quem não tema reconhecer-se como leitor único” (de
Homenagemàliteratura, p. 235) e, sem esgotar a possibilidade de
exemplos, “Entre todas as presenças, eu esperei/ a do leitor. Quis ver-
-lhe os cílios / tremerem com a mancha poética” (de Cenas vivas, p.
612). O leitor único encontra a poeta à sua espera, num texto que
aguarda ter sua energia potencial – vocábulo impresso nas folhas de
um livro – traduzida em energia cinética – palavra expressa nas pá-
ginas de uma obra.
Aliás, de energia cinética – aquela do movimento, do dinamismo
dos corpos – o texto Fiama parece entender muito bem. Afinal, a
questão do movimento povoa zonas centrais da poética da autora de
Melómana. Porque, conforme me sopra a unicidade de leitor, a ques-
tão do mover-se em poesia deslinda-se quando a poesia põe em ques-
tão o comover-se. São os versos, as metáforas, as palavras e as ima-
gens que bailam, velidos, nessas cantigas de agora: “Elas eram raras./
Raras, raras. Tão leais,/ que no momento mais vivo/ do seu encanta-
mento eram/ passageiras. Amo-as, amo-/ -as, amo-as, amo-as (...)” (p.
348). A raridade das imagens perseguidas, pois vivas, fá-las tão pas-
sageiras quanto amadas. A metáfora, antes de ser a produção de um
concerto, um registro duma possível harmonia entre conceitos distin-
34 POESIA 61 HOJE

tos na empírica realidade, é o retrato de um desespero, de uma obses-


são. A repetição ecoa longamente nos olhos do leitor: “raras. / Raras,
raras”; “Amo-as, amo-/ -as, amo-as, amo-as”. Considerar raras e pas-
sageiras as imagens que habitam os poemas impinge sobre a figura
autoral a vital necessidade de buscar uma expressão sempre outra
para re-atualizar os objetos que devem pulular na dinâmica textual.
Assim, os alhear-se se revela uma serena maneira de reivindicar para
si mesmo o foco da linguagem:

(...)
A teoria do poema resume-se
a esta idiossincrasia. Discorro,
enquanto esses dentes de árvores
pertencem a esta mesma imagem.
Geram pequenos botões de flor
pardos, que correspondem
a um renovo. Não é estranha
a posição saliente dos braços
mortos onde o prodígio da linguagem

colocou os rebentos usuais


que vão florescer. Outras consciências
sentiram a imanência da Natureza.
Eu sinto-me fora de mim.
com o estômago devorado. as mãos
esfaceladas. Não digo que sou
nem uma árvore, nem nenhum ser.
Não me associo a nenhum sentido.
Ao ver a figura de outros
balanceando ao alcance dos olhos,

sinto-me também outra.


(...) (p. 310)
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 35

“Ir para o além” é, simultaneamente, um eufemismo para a mor-


te e uma tradução quase literal para o que vem a ser metáfora. Não
deixemos deitar gratuita tal coincidência. O sujeito que enuncia “sin-
to-me também outra” é um sujeito que reside tanto literalmente na
metáfora quanto vivamente na morte. Demais não será relembrar a
palavra de Maurice Blanchot:

Minha palavra é a advertência de que a morte está, nesse


exato momento, solta no mundo, que entre mim, que
falo, e a pessoa que interpelo aquela surgiu subitamente:
ela está entre nós como a distância que nos separa, mas
essa distância é também o que nos impede de estarmos
separados, pois nela reside a condição de todo entendi-
mento. Somente a morte me permite agarrar o que quero
alcançar; nas palavras, ela é a única possibilidade de seus
sentidos. Sem a morte, tudo desmoronaria no absurdo e
no nada. (1997, p. 312)

Toda linguagem é uma proclamação da vida em nome da morte:


falar de “água” e “ave”, se por um lado traz à tona esses referentes,
serve para expressar-nos que eles simplesmente não estão ali. A língua
dá conta da ausência do ser, porém cria um substituto, a palavra, para
ocupar não o seu lugar no mundo, mas sim o seu lugar no texto. Con-
vocado o leitor, a água que existe num rio e a ave que circula no céu
se tornam recriadas, reconstruídas e repotencializadas nas palavras.
Nesse decurso, quando leio “água” no texto Fiama, em minha condi-
ção de pesquisador de literatura portuguesa, avassala-me súbita a
imagem dos mares nunca de antes navegados camonianos. Outro lei-
tor único poderá recuperar a imagem de outras águas, fictícias, poéti-
cas, cinematográficas, bioquímicas, pictóricas ou qualquer coisa de
intermédio. Nunca basta, porque a morte é sempre ampla: são esses
espaços entre mim e o outro, essa distância que, parafraseando Blan-
chot, separa e une os habitantes da linguagem.
36 POESIA 61 HOJE

O texto, como vidas em trânsito, não é uma via de mão única ou


dupla; é a virtualidade das direções que podem ser assumidas. “Não
me associo a nenhum sentido”, afirmara a poeta, num exemplo breve
do grau de sabedoria que nos pode ofertar. A poesia é essa substância
rara, passageira e viva, que, na “advertência de que a morte está ali”,
transforma a “voz ou o silêncio da voz”, a “coisa perguntada” e o
“silêncio da coisa irrespondida”, numa “figura sólida” como um “pa-
ralelepípedo”. Tudo isso, ou: a nova história antiga do amador que,
por virtude do muito imaginar, transformara-se na coisa amada. Que
se escolha a melhor fórmula.
Tenho dito com certa veemência que interessa verificar a questão
do movimento na poesia. Há alguma possibilidade de o nome migrar
e de plantar vidas nos intervalos que o silêncio da voz calará como
morte. Ou como mote. Porque, quando Fiama enuncia “Eu sinto-me
fora de mim”, evocam-se outros poetas que se lambuzam no lastro
das lúcidas letras: Rimbaud e Pessoa diretamente; Sá de Miranda e
Clarice Lispector, por desvios na leitura. Mas todos eles, e outros,
parecem arfar a pena num afã de circular no nome lírico que Fiama
constrói. Sentir-se fora de si pode ser tomado como o gestual supremo
do poeta. Dissera Paul Valéry: “na floresta encantada da Linguagem,
os poetas entram expressamente para se perder, se embriagar de ex-
travio, buscando as encruzilhadas da significação, os ecos imprevis-
tos, os encontros estranhos” (2002, p. 22). Cantara Fiama: “Todas as
frontarias me demonstram que o gosto pelo decorativo/ foi uma es-
sência. Admiro também a flora/ divergente tal como as tâmaras no
pátio velho no vácuo” (p. 223).
Densa floresta, flora em tensão, a textura poética, no seu desen-
volvimento, vai-se acusando num tom acima, a exigir do leitor uma
vontade de elevação, para participar concertado daquele canto. Ali,
sobeja a clara e manifesta consciência de que a poesia não é um apa-
relho sedativo com cuja utilização aceitaríamos a asfixia formal e
ideológica do século. Ali tampouco se imagina o labor poético como
um veículo de escapismo a bordo do qual sonegaríamos a realidade
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 37

respirável do cotidiano. O discurso da poesia é, sobremaneira, o viés


sinistro e sinuoso da afirmação do homem no mundo. O labor poéti-
co: “Aquela muralha começa a ser objecto/ da escrita. Desloco-a”
(“Lousã II”, Visões mínimas, p. 200). Dar movimento às figuras é o
amoroso gesto que a escritura propicia. É nessa linguagem que fervi-
lham os coruscantes talentos da palavra em não legitimar nada: ma-
téria que desconstrói significados no espaço-tempo em que a razão
procuraria colher tão somente certezas e a emoção recolheria excla-
mações e vertigens.
Para além de uma reles querela entre o racional e o emotivo, o
texto Fiama despende as franjas de seu bordado. Uma literatura de
sapiência, deveras. No entanto, saibamos: é uma estratégia discursiva
de dinamização da leitura o que nutre e vivifica a sabedoria textuali-
zada da escritora. Ou seja, a poeta não canta porque é sábia. É só
depois de cantar que o seu canto passa a ser, desde sempre, um canto
de sabedoria: “Será sempre sem dúvida a leitura o que/ através da li-
nha do tempo ressuscita o aedo” (“Louvor dos antigos”, Âmago II, p.
464). Poetar, nesse sentido, confunde-se com um continuado entre-
gar-se, um pacto com o outro, uma comunhão:

Os povos antigos traziam nas carroças


os nomes e os objectos, colhiam nas árvores
nomes e alguns frutos, e dos mares
e das montanhas arrastavam
múltiplos nomes do ar e dos ares;
magnânimos, trocavam ou vendiam objectos,
porém davam as palavras. (p. 617)

À revelia das relações comerciais e dos diversos panoramas polí-


ticos que deram matéria à existência do homem como animal social,
é na relação deste ser com a linguagem – no matrimônio inextrincável
do indivíduo com o nome – que pulsa o acúmulo de afetos de que
somos capazes. A poesia cuida do nome como seu abrigo e ponto de
38 POESIA 61 HOJE

perspectiva. Logo, é ela a possibilidade de negociação gratuita das


hipóteses de entendimento entre as pessoas. Cônscia da radicalidade
poética, Fiama oferece terreno movediço sobre o qual o leitor deve
construir horizontes. Para pisar solo dessa natureza paralela – campo
traiçoeiro sem perfídia, pampa vacilante com sustância –, é mister
usar os pés das letras, aqueles fenômenos gráficos que se querem sig-
nificadores do complexo conceitual “água-ave”.
Sejam homeopáticas, sejam cavalares, os brasileiros precisamos
urgentemente de doses incontáveis dessa poesia de vocação explicita-
mente melomaníaca. Porque a música repõe, sobre a pauta de nossa
existência, algo sumamente sério, grave, ainda que por vezes diverti-
do. A tradição modernista da poesia brasileira talvez nos tenha infec-
tado com certo diabrete cômico, hilário, e do qual só a muito custo
conseguimos em alguns momentos nos ver apartados. É o próprio fi-
lhote do Astuto quem tem reclamado às musas tupiniquins um boca-
dinho de risadas, de humor, mesmo que seja da cara do Amor...
Não confundamos o mostrar dos dentes: o riso crítico edifica,
sem dúvida. Disso Aristóteles já sabia. Mas verdade é que os poemas-
-piada invadiram com tal força a produção poética brasileira, sobre-
tudo nas últimas décadas do século XX, que ler uma poeta que se
entregue venturosamente à grave melodia de existir na literatura é
uma ação que tem turvado a ânsia de muitos bons leitores de poesia.
Mas há de se apreciar não o riso banal, mas a lírica alegria de um
êxtase de descoberta: “A alegria das coisas não é a posse/ mas a seme-
lhança delas com os nossos dedos./ Nem as coisas têm forma própria/
mas a que lhes dá a mão, usando-as” (p. 616). Fiama, um texto: lírica
voz num extasiante desafio de existir com o outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Obra breve: poesia reunida. Lisboa: Assírio
& Alvim, 2006.
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 39

BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer.


Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
JORGE, Luiza Neto. 19 recantos e outros poemas. Organização de Jorge
Fernandes da Silveira e Maurício Matos. Rio de Janeiro, 7Letras, 2008.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio,
1978.
MEIRELES, Cecília. Poesia completa. vol. 3. Rio de Janeiro: Nova Frontei-
ra, 1997.
VALÉRY, Paul. Discurso sobre a estética. In. LIMA, Luiz Costa (org.). Teo-
ria da literatura em suas fontes. vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2002, pp. 15-34.
O QUE DIZEM AS ÁGUAS – A FORÇA DE UM
DIÁLOGO: CASIMIRO DE BRITO E ANTÓNIO
RAMOS ROSA
C INDA G ONDA *

Para Jorge Fernandes da Silveira

Os rios, de tudo o que existe vivo,


vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
“Os rios de um dia”, João Cabral de Mello Neto

O verso “Cantar é encontrar o encontro antiqüíssimo e jovem”


(Rosa e Brito, 1989, p. 90**) traduz de modo perfeito a história
de uma amizade – a de António Ramos Rosa e Casimiro de Brito. O
lugar de origem, o Algarve, a vocação poética e ensaística, a luta con-
tra a opressão que tão bem conheceram, as revistas literárias que aju-
daram a criar, renovando a poesia em Portugal, confirmam o diálogo
entre sensibilidades mais do que parecidas. A vasta produção, reco-

* Professora de Literatura Portuguesa/ UFRJ


** A partir de agora, esta edição será referenciada apenas pelo número da página.
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 41

nhecida e premiada, nacional e internacionalmente, asseguraram a


ambos um lugar de destaque no cenário intelectual português. Ainda
a identificá-los, há uma lucidez que causa impressão, a adesão radical
à vida – tudo contrariando a tendência de uma realidade morna, neste
tempo destituído de paixões.
Quando os dois escritores decidiram se unir e publicar Duas
águas, um rio talvez estivessem percorrendo o caminho previsto por
Mallarmé: “Tudo no mundo existe para chegar a um livro” (1965, p.
378). Convém lembrar que o poeta francês também acenaria com a
hipótese de que o livro fosse análogo a uma conversação. Sabe-se que
a imagem do rio associada ao diálogo é antiga. Acha-se no Fedro, de
Platão, fruto do encontro de Sócrates e Fedro, quando, juntos, se di-
rigem para as margens do rio Ilisso. Aparece no salmo 136: “Junto
dos rios de Babilônia, ali nos assentamos a chorar, lembrando-nos de
Sião”. Imagem recuperada por Camões nos versos: “Sôbolos rios que
vão /Por Babilónia, me achei, /Onde sentado chorei /As lembranças
de Sião /E quanto nela passei” (1963, p. 497). Figura nos versos de
James Joyce, segundo Leon Edel, um dos artistas mais feridos de nos-
so tempo: “Sangro à margem do negro riacho, / Do meu ramo parti-
do” (Apud Barthes, 1987, p. 272). O próprio Casimiro de Brito, em
1983, no plano ficcional, publicara, o romance Pátria sensível ou que
Fazer do Corpo com os seus Rios, Margens & Afluentes.
Em Duas águas, um rio, um encontro tecido por “fala e escuta”
* se dá vigiado pela imagem do rio, alertando-nos em sua passagem
sobre a transfiguração a que somos submetidos pelo tempo. Lição
que já nos ensinara Heráclito e é retomada posteriormente por Caei-
ro. Talvez aí resida nossa incontornável condição de seres finitos, nos
quais o permanente se contrapõe ao transitório, ao ser, ao devir, num
processo de mutação permanente, no combate sem tréguas entre a
continuidade e a descontinuidade.
No rio que corre, renovam-se as vozes dos poetas (as duas águas?)
que se fundem, se confundem, ensinando-nos que a condição da água
é tudo reunir. Em sua primeira natureza, a líquida, conserva a trans-

* Cf. Roland Barthes em O Rumor da Língua (1987, p. 272).


42 POESIA 61 HOJE

parência que dela emana. Sua maneira de ser, moldável, lhe permite
tomar a forma do corpo que a aprisiona.
A concepção do livro, gestado “durante um ano” (4ª capa da
edição), oferece um desafio duplo ao leitor. Por um lado, o de se en-
contrar diante do caráter enigmático da poesia. Outra questão tem
por alvo a autoria – os poemas não vêm assinados. Cabe ainda não
perder de vista aquele, de abertura do livro, em que o vocativo “Diz-
-me António”, nos fornece uma chave:

Que sangue alimenta esta árvore


A sombra desta árvore a que se acolhe
A dor a resignação dos humanos

Que teia de raízes minuciosas


Se concentra no formigueiro de ventos e marés
Da grande solidão mineral

Que seiva ilumina os velhos troncos


Onde em silêncio os ossos encostamos
E o sal da morte interrogamos

De que morte falamos como se ela


Fosse da vida uma fuga um abrigo
No meio da noite seca e sem destino

Diz-me António digam-me palavras


Que sangue habita nestas árvores
Que paciência vegetal nos alimenta? (p. 13)

Todo canto ou convite da instância que interroga (“Que paciên-


cia vegetal nos alimenta?”) requer a presença do outro, na voz que se
desdobra, espécie de alter ego. Estamos diante do segundo poema, o
de Ramos Rosa. Enigmas dentro de enigmas engendrados dentro de
outros enigmas. Resta saber como eles se articulam.
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 43

Recuperemos o exemplo de Casimiro de Brito. Os traços domi-


nantes da sua arte poética ali se destacam – o sangue (associado à
vida, às paixões, ao vinho e aos rituais por ele desencadeados, como
o da embriaguez da escrita, como o da criação). Parecem confirmar o
que, por repetidas vezes, o poeta confessara: “alguns acumulam, esva-
ziam gavetas; eu depuro” (1985, p. 281). Outra particularidade que
lhe é cara está na temática da solidão, ou da incomunicabilidade, re-
presentada pelo silêncio. Como declarara em entrevista: “escrevo
porque ainda não mereço o silêncio”.
O mesmo ocorre em relação à poética de António Ramos Rosa.
Algumas palavras “iluminam” sua trajetória estética: a lâmpada
(“Atravessei as dilaceradas lâmpadas da insônia”) (p. 14); o “deus
nulo, ”um deus desfeito”, “o deserto”, “o círculo branco”, sinais aos
quais se associam suas obsessões –“ Estou só e continuarei a estar só,
na árida e ávida deambulação destas palavras sem caminho. (...) Es-
tou dentro de um círculo calcinado.” (1988, p. 11). Ou ainda: “ Escre-
vo, talvez, para manter a nascente aberta, embora nunca a possa des-
cobrir (...) que o silêncio diga obrigado à palavra, silêncio, que por
sua vez, se agradece” (1988, p. 5).
Nas fendas de semelhante intervalo, Ramos Rosa desenha a pai-
sagem, o cenário de sua poesia, feita de árvores e pedras, de ar e de
sol, de espelhos e águas, de areia e vento, ou a do corpo de uma mu-
lher. “Até à tua nudez, mulher de areia e vento. A iminência dura na
tua dispersão: sem centro nem formas tocas a partitura do vazio na
alta parede branca e lisa.”. (1989, p. 17).
Duas águas, um rio é obra que pede leitor atento, capaz de inter-
rogar vocábulos, examiná-los com cuidado, captar o que sussurram,
perceber a trança que une os sentidos que deles emanam, como, por
exemplo, no final de “Celebração ou Balbucio”:

Nasceu já, nascerá na palavra que diz


E que desdiz através do abismo
O rumor da delícia iluminada
Na leve espessura de umas sílabas. (p. 16)
44 POESIA 61 HOJE

retomado por Brito em “Matricial”:

Na leve espessura destas sílabas*


Ouço o ar a passagem do ar
No coração do homem no coração
Da montanha no aroma das estevas
E dos pinheiros ouço o vento a respiração
Uma só respiração que se aproxima
Do silêncio um só pulmão de água (p. 171)

Tal procedimento, que contará com sutis variações, ficará im-


pregnado na leitura do livro.
Podemos observar no poema a transposição dos elementos, a
fusão da água e do ar, do ar que se metamorfoseia em respiração,
responsável pela vida, mas que, volátil e com um ritmo próprio, cir-
cula: “Uma só respiração que se aproxima /Do silêncio um só pulmão
de água”.
O silêncio não surge como impossibilidade e sim como lingua-
gem, e, por consequência, significa, sugere.
Um tempo suspenso, marcado pela imobilidade, no espaço de
algo que ainda não se consumou e já se anuncia: como em “Obses-
são”, de Casimiro de Brito:

Se nada existe
A não ser a morte
Quem ilumina
As suas noites?

Alguém escuta
Um grão de silêncio. (p. 30)

* Ambos os grifos são nossos.


FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 45

Um traço dramático se localiza no silêncio. Ainda que a palavra


sobreviva, é memória da morte. O fragmento, “Um grão de silêncio”,
nos devolve a aspiração pelo todo. Ao contemplarmos “o grão”, mer-
gulhamos em direção a algo perdido, algo que nos leva assumir o
mundo no sentido de uma coesão originária.
Restaura-se o desejo de conciliação ou de superação com o uni-
verso que parece inventado pelo dizer poético, por ele renovado na
busca incansável pela permanência:

Eu sei que tudo passa –


Ainda bem

A luz e a sombra as águas que levam


A febre a discreta pulsação
Deste momento

Eu sei que tudo morre


Ainda bem

A rosa efêmera a mesa tumular


Onde o medo inscreveu palavras
Roídas pelo vento

Eu sei que tudo volta -


Ainda bem

Por isso me sento silenciosamente


A ver as águas que não se cansam
De nascer por mim. (p. 19)

Um diálogo no interior do poema de vozes que constatam o tran-


sitório, a fugacidade da vida que, melancolicamente, serve de consolo,
tem lugar. Um começo que, incessante, se resolve, presente e ausente,
46 POESIA 61 HOJE

imediato e longínquo, no eterno retorno de “águas que não se cansam


/ De nascer por mim”. O drama dos opostos - o início e o fim - o po-
ema não por acaso se intitula “Sono e Nascimento”, prolonga-se em
Ramos Rosa:

Ninguém inventou esta adolescência de colina


Em que desperto num esplendor de sossego
E um puro discurso oiço ou um leve marulho.
É apenas o murmúrio do sol, a voz da água
Que ilumina o ócio com o álcool vegetal?
Ninguém pode dizer nada sobre este vago aroma
De pedra e flor de imóvel brisa
Em que cheguei num remoto nascimento.
Estou em casa como um cântaro iluminado
Onde tudo foi extinto mas não a adolescência
Que flutua leve resvalando quase imóvel
No cálido candor do seu nome de espuma. (p. 20)

De certo modo, a dose de melancolia, enunciada por Casimiro de


Brito, ganha luminosas cintilações em Rosa, nas intricadas relações
entre o homem e a natureza, entre homem e universo. Daí o retorno
ontológico à adolescência, à casa, a nos devolver a nostalgia da con-
tinuidade, na individualidade perecível do que somos. Pela arte, a
busca de um tempo que se quer renovado, “no cálido candor do seu
nome de espuma”. Nomear é criar, vertigem, embriaguez ou condição
demiúrgica de todo poeta.
Na multiplicidade de vozes que se cruzam entre Ramos Rosa e
Casimiro de Brito, uma outra vem à tona. Os versos nos conduzem a
um tempo dentro do tempo, a unir o clássico ao contemporâneo, no
rigor da forma, na exatidão das palavras.
Não demora muito e vislumbraremos um corpo, o desejo como
carência, como o vazio de um espaço que pede para ser preenchido:
Vejamos “Do amor escrevo”:
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 47

Talvez as mulheres
Sejam iguais: húmidas
E pobres como a terra

Talvez elas sejam


A sombra doce do mesmo vaso
Onde o tempo se acolhe

Talvez nas mulheres


Eu possa tomar a forma
Da água que me falta

Mas numa só delas saciei


A pedra sequiosa e fiquei
Mais sedento ainda. (p. 19)

Os signos atingem uma dimensão erótica, Rosa completa o cír-


culo mágico onde o mundo alcança unidade total: “A última
membrana”:

Talvez eu tenha encontrado uma matéria


bárbara
que é um vazio e o mais suave veneno
espessura nocturna e clareira
talvez eu tenha sido uma força elementar
um impulso feroz e desesperado para a claridade
e nada havia a salvar no olhar cúmplice da
desordem
e a inclemência divina consumava-se no canto (p. 37)

A realidade se desnuda. A imagem da mulher corporifica-se, tra-


duz-se em água. Chegam-nos ecos de um cântico (Cântico dos cânti-
cos?) vindos de longe, de um tempo primordial – fruto de uma traves-
sia. É o que nos revela Casimiro de Brito, em “O Rumor da Água”:
48 POESIA 61 HOJE

Apenas
Poderá possuir-me
Esse que me visita
E não deseja nada
A esse pedirei humildemente
Que beba o rumor
Da minha água. (p. 38)

Entrelaçadas num harmonioso diálogo, as fronteiras desapare-


cem. Na vertigem do amor, o mundo se unifica. Toca-se a substância
que nela se oculta. Do “rumor”, o círculo se fecha, atingimos a
plenitude.

A VOZ DA ÁGUA
Tão delicada
É a voz
Da água
E os seus cálices
Que não contêm nada

Eu direi
Que é da luz
A nudez do silêncio
Ouves?
O centro é branco
O ar é ar

Ouves?
Ninguém canta
As veias da montanha são claras
O vaso na limpidez desaparece. (p. 39)
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 49

“Eu direi /Que é da luz /A nudez do silêncio” – tudo parece en-


contrar o seu sentido. A aspiração pela totalidade se fundamenta na
completude do silêncio, medida de todas as coisas.
Breton certa vez declarou: palavras fazem amor. Em Duas águas,
um rio, variados são os modos de se exprimir amor. De um desloca-
mento por espaços e lugares, sombras e cores onde interioridade e
exterioridade se tocam, se cruzam, se fundem, um outro tem lugar – o
corpo. O canto se transforma em plenitude e alegria, elegia e desespe-
ro. O tema da mudança e da diferença se impõe:

Ontem amei-te mas hoje


O sim é não o não é sim as águas
Sombrias
Em movimento. E já não sei
De que lado
Sopra o vento. (p. 46)

Ou ainda:

A luz veio nua


Como um sopro Ouvia-se
O silêncio entre as abelhas
A felicidade era um diadema no imenso
E uma fonte que latejava entre a pele. (p. 48)

Sabemos que toda arte nasce de um vazio, confirmando o que


nos diz Rimbaud – a verdadeira vida está ausente. Assim, a poesia se
transformaria na revelação de ângulos inéditos da experiência, na
presença do que está ausente, tentativa de preenchimento de um espa-
ço aberto, aspiração por uma totalidade originária. No intervalo, fei-
to de palavra e silêncio, desenha-se a criação:
50 POESIA 61 HOJE

A palavra passa, a palavra perde-se. Mas no


intervalo da brancura o caminho é mais vivo, a
chama mais pura. (p. 91)

Na introdução de seu livro Tempo e poesia, Eduardo Lourenço


adverte que, em sentido radical, não há nada a dizer de um poema,
pois é ele mesmo o dizer supremo. E continua: “Ou se vive poetica-
mente, ou não se vive” (1974, p. 21), para mais tarde acrescentar: “É
poeticamente que habitamos o mundo ou não o habitamos”. (1974,
p. 38).
Nos versos de António Ramos Rosa e Casimiro de Brito, ecoa o
rumor das águas. São elas que nos transportam em direção ao desco-
nhecido. No movimento circular, de eterno retorno, realizam para
nós o aprendizado da diferença.
É do desejo de permanência, do sentido da vida, ou da consciên-
cia desse sentido, no território da condição humana, ou apenas para
exorcizar a morte, que se ergue o canto de Duas Margens, um Rio.
Consola-nos do drama da finitude.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. O Rumor da língua. Tradução de António Gonçalves.


Lisboa: Edições 70, 1987.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução Padre Antônio Pereira de Figueiredo, notas
Mons. José Alberto L. de Castro Pinto. Rio de Janeiro: Barsa, 1966.
BRITO, Casimiro. Ode & ceia - Poesia 1955-1984. Lisboa: Dom Quixote,
1985.
CAMÕES, Luís de. Obra completa. Organização, Introdução, comentário e
anotações do Prof. Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Aguilar,
1963.
LOURENÇO, Eduardo. Tempo e poesia. Porto: Inova, 1974.
MALLARMÉ, Stéfane. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1965.
FIAMA, DO HÚMUS AO UNO 51

RIMBAUD, CROS, CORBIÈRE, LAUTRÉAMONT. Ouvres poétiques com-


plétes. Préface de Hubert Juin. Paris: Éditions Robert Laffont, S.A.
1980.
ROSA, António Ramos. Três lições materiais. Lisboa: Kairos, 1989.
_____. O deus nu(lo). Viana do Castelo: Cronos, 1988.
ROSA, António Ramos António e BRITO, Casimiro. Duas Águas, um Rio.
Lisboa: Dom Quixote, 1989.
WILSON, Edmund .Os Anos 20. Organização e Introdução de Leon Edel, Seleção de
Michael Hall e Paulo Sérgio Pinheiro, Tradução de Paulo Sérgio Pinheiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO*
Evelyn Blaut Fernandes**

Vivo em chama.
Pegou-se o fogo ao fato
que morte e vida
irmana.
Luiza Neto Jorge

M aio de 1939: nasce a poeta Luiza Neto Jorge. Maio de 1961:


cinco autores um tanto diversos reúnem-se em Faro e compõem
o grupo Poesia 61. Maio de 1989: é publicado postumamente o livro
A Lume.
Passados cinquenta anos da publicação das cinco plaquettes, falo
de Luiza Neto Jorge, autora da poesia mais erótica da Literatura Por-
tuguesa do século XX (Cf. Silveira, 2003, p. 348), que escreveu versos
nos quais vida e morte se conjugam de maneira inextrincável. Já em
Quarta Dimensão, no poema “A porta aporta” (p. 44, 45), a porta
conduz – “a porta roda bússola enterrada ao invés dos olhos” –, apor-

* Cf. o poema “O Simulacro”. In JORGE, 2001, p. 151. Os números entre parênteses


referem-se à página desta edição.
** Doutoranda em Literatura Portuguesa/ UC/ CLP/ CAPES
FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO 53

ta “na terra pequena”, obstrui – “(...) pregos são estrelas mortas/ a


porta pregada” – e se aparta de uma máquina repressora. A obra po-
ética de Luiza Neto Jorge é uma porta aberta de sentidos. “[A] porta
roda” salienta a condição de acesso, se lida como um substantivo
composto; “roda” também admite a interpretação como forma verbal
e sugere o movimento giratório da porta “que, rodando sobre o pró-
prio eixo, pode reconduzir quem entra ao preciso lugar donde viera,
ou pode mesmo manter na circularidade do seu movimento quem,
sem entrar nem sair afinal, permanece no ‘não-lugar’ que esta porta
significa”. À imagem da porta associa-se, portanto, “o limiar, a passa-
gem, a simultânea união e fronteira entre universos distintos” que
“pontua regularmente toda esta obra poética” (Martelo, 1998, p. 67).

Sempre viver inclui andar percorrer voar


de avião ou com os braços ou num ser de mais
rodas que nos conduza
a outro sentido ambulatório. (p. 179)

No prefácio à edição que compila a obra de Luiza, Fernando


Cabral Martins explica que, “[c]omo o poema, a porta é animada de
um movimento que faz parte da sua natureza oscilante (...). É huma-
na, como o poema, e como ele material. Uma porta é uma folha,
como num livro, rodando no seu encaixe. Abrir um livro é entrar
dentro de uma casa, hospitaleira” (2001, p. 11). Assim se pode rela-
cionar o movimento da porta giratória com o movimento da própria
vida. Em “L’entrée”, um dos sept poèmes, la porte giratoire adquire
um sentido metapoético, partilhando a intermitência de uma via osci-
lante. No poema “Pelo corpo”, a mesma imagem surge através da
aproximação entre a palavra/escrita e a união sexual, no qual o texto/
corpo é marcado pela caneta/falo. Segundo Rosa Martelo, “[n]o fun-
do, imagens como as da porta roda ou da porta giratória podem ser
vistas como a afirmação da circularidade aberta do sentido enquanto
efeito do texto” (1998, p. 68).
54 POESIA 61 HOJE

Porte griffonnée E tu oscilante porta


par où l’on entre que em teus gonzos nos apertas
e nos devoras por dentro (p. 252)
puis effacée puis
soigneusement percée

à nouveau effacée
et giratoire (p. 298)

A porta giratória é a imagem da “máquina de oscilar”, título pro-


visório do que veio a compor Os Sítios Sitiados, livro de 1973. O
movimento giratório da porta roda sugere velocidade, intensidade, “a
porta sexo a vida toda” (p. 44), a porta que se abre como as pernas (se
abrem nos passos). “Ou como a boca se abre no riso ou no grito, ou
como as pálpebras se abrem ao ver. É uma porta-Sésamo, que dá para
dentro. Ou para fora” (Martins, 2001, p. 10-11). A porta também
evoca uma ideia de intenso vaivém: “a porta maré que vem e que vai
que bate e que fecha” (p. 44). Como local de passagem, chegada e sa-
ída, torna-se o símbolo da circulação, a porta parto, nascimento e
morte, rito de iniciação: “Venho de dentro, abriu-se a porta:” (p. 230)
as metáforas da porta e do círculo girando sobre o próprio eixo, a
abertura das portas simbolizam o livre acesso. Convite à travessia, a
porta tem um valor dinâmico. Abrir uma porta e atravessá-la é mudar
de nível, de meio, de vida. A porta batente, “que bate e que fecha”,
nem sempre simboliza o livre acesso, dificulta ou mesmo impede a
passagem, ameaça o fechamento.
As portas da morte ou da morada dos mortos representam o
poder de um abismo do qual não se pode escapar: “Um dia acorda-
-se e o abismo é berço” (p. 248). O abismo torna-se o lugar de con-
figuração de um novo tempo, em que o mundo continua a rodar
sem a presença daquele que morreu. Para a filósofa e tradutora
Françoise Dastur, “a morte é (...) um fenômeno que faz parte da
vida” (2002, p. 73):
FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO 55

o morrer é uma definição do que é a vida humana (...).


No sentido mais exato, só os humanos são “mortais”,
pois só eles são “capazes” de se referir à sua própria mor-
te e de fazer “existir”, assim, a morte. É de um ponto de
vista que o idealismo alemão, com Novalis e Hegel, já ti-
nha percebido claramente, quando via no suicida a capa-
cidade de dar a si mesmo a morte, a origem da humani-
dade. Pois essa interrupção, esse corte radical que é a
morte, o fim do existir, o ser pensante não se refere a esse
ponto como um limite externo, mas, ao contrário, como
um fim interno, a partir do qual seu próprio ser-no-mun-
do ou seu próprio ser-na-vida torna-se possível. (2002,
p.77-78)

Jorge Fernandes da Silveira alerta, em sua tese de doutoramento


– Portugal Maio de Poesia 61 –, para a “estrutura em abismo” de “A
porta aporta” em que “a anáfora insiste no título do poema: artigo
que se aglutina a substantivo e juntos transformam-se em verbo; ver-
bo depois a desfazer-se em artigo e substantivo – num processo onde
não há começo nem fim” (1986, p. 175).
Uma porta, se estiver fechada, aberta, trancada a chave, batendo,
é presença ou ausência, “a porta sexo a vida toda” ou “a porta com
máscara de morte” (p. 44) / “a porta azul da morte” (p. 41) – ato ou
intenção são assim representados pela cinematografia de uma ima-
gem que se movimentou. A porta giratória dá “a dimensão estética da
estátua como transformação do passado [que] corresponde ao movi-
mento e ao acontecimento de que resultam, enfim, sexualidade e
vida” (Silveira, 1986, p. 234).
Portanto, a porta representa a passagem da vida à morte, mas
também da morte à libertação; é a dupla corrente cíclica, expansão e
integração. Símbolo privilegiado do deslocamento, das condições de
lugar e do estado espiritual que lhes é correlativo, a roda, sua estrutu-
ra radial, seu movimento cíclico, está incontornavelmente relaciona-
56 POESIA 61 HOJE

da aos movimentos de rotação – giro ao redor do próprio eixo – (re-


volução) e translação (tradução).
O tradutor, em sua leitura lenta, interrompida a cada frase, vive
uma intimidade extrema com o fluxo de ideias, as hesitações do au-
tor. A tradução, um momento de apagamento subjetivo, de cumplici-
dade com o original, deve transpor não apenas a barreira natural
imposta pela falta de equivalência literal entre as línguas, mas tam-
bém interpretar um modo particular de ver o mundo, determinado
pela língua do original e a cultura que ela produziu. Lembra Gastão
Cruz* que, no início da década de 80, foi produzido para a RTP (sé-
rie Artes e Letras) um filme de cerca de quinze minutos realizado por
João Roque. “A tradução como o amor”, diz o narrador deste filme**,
“pode revestir formas muito violentas” e é, quase sempre, uma ver-
são que comporta perdas, como diz Luiza no seu poema
“Traduction”:

Je tape les mots à la machine


métaphorique je traduis le mot
d’autre façon, celui que j’ai appris
je l’oublie
seul son poids me pèse, scintillant (p. 299)

A primeira estrofe de “Traduction” “pode ser uma boa introdu-


ção à Luiza tradutora e um excelente meio para uma compreensão
mais completa da sua obra poética, no fundo, uma fulgurante produ-
ção ao longo dos anos 60, que, nas duas décadas seguintes, se vê
praticamente consumada (e consumida) num extraordinário (ciclópi-
co) trabalho de tradução” (Silveira, 2011, p. 145). Em entrevista, no
filme de João Roque, Luiza fala sobre seu trabalho como tradutora:

* Cf. http://www.relampago.pt/luizanetojorge/lnj-biografia.htm
** Disponível no You Tube. Cf. LUIZA_IINEW.wmv. As duas citações seguintes têm a
mesma referência.
FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO 57

Eu já em Paris fazia traduções para cá e quando vim para


cá fiquei a viver exclusivamente disso. Eu acho que a tradu-
ção é um trabalho... um trabalho solitário, que me isola,
que me isola muito, que me prende à casa, é um trabalho...
é um trabalho absorvente e pouco compensador. É sem dú-
vida um trabalho de amor, mas eu acho que muito rara-
mente é um trabalho de prazer. Por exemplo, eu, sei lá, com
40, 50 livros publicados de tradução e outros tantos não
publicados, ainda não posso dar ao luxo, ainda não posso
dar ao prazer de escolher, de ser eu a escolher o meu autor
ou o meu poeta. Isso também é pouco compensador.

Por isso é que se pode dizer que Luiza Neto Jorge, não só como
poeta, mas como tradutora, deixou uma obra inigualável, tendo tra-
balhado com livros de autores como Céline, Sade, Verlaine, Margue-
rite Yourcenar, Jean Genet, Witold Gombrowicz, Apollinaire, Iones-
co, Anaïs Nin, entre outros.
Afora sua produção poética, trabalhos de tradução, roteiros para
cinema e textos para montagem teatral, Luiza Neto Jorge escreveu
alguns poemas em francês, publicados originalmente em 1983. Éclair-
cissements foi publicado na revista Colóquio-Artes 59 e o conjunto
Sept Poèmes, em Ariane 2. Luiza viveu em Paris de 1962 a 1970. As
suas referências culturais eram francesas, e também a formação uni-
versitária (que acabou por não concluir). Em depoimento, afirma que
“também foi em Paris, distante, que eu aprendi a conhecer Portugal
(...). E foi lá pela distância, pela distanciação, vamos lá, não é, pela
diferença, pela ausência, que eu realmente comecei a conhecer Portu-
gal”. No que diz respeito ao ambiente político-social repressivo vivi-
do em Portugal até 74, Rosa Martelo pensa que não se pode “ignorar
aqui (...) mesmo se (ou se também por isso mesmo) grande parte
desta obra foi escrita em Paris” (1998, p. 70).
Se disse que falaria acerca da autora da poesia mais erótica da
Literatura Portuguesa do século XX, não posso deixar de perceber
58 POESIA 61 HOJE

que a morte, de igual modo, sem dúvida está presente ao longo de


toda a sua obra. Em A Lume, no entanto, esse traço torna-se mais
evidente. Pensa Luís Miguel Nava que a morte “[i]ncide, por conse-
guinte, não só na pessoa dos outros (os avós, o irmão), mas na pró-
pria. Parece, a este respeito, sintomático – dado o carácter nuclear
que os rios (...) assumem nesta obra – lermos que “os rios se afastam
para morrer” (Cf. “O Êxodo”)” (2004, p. 232-233).

Não podemos, todavia, (...) afirmar que a morte primeira


não é a morte própria, mas a do outro? Como, na verda-
de, o nada que é a morte poderia nos atingir, a não ser
através da morte do outro? (...) a solidão, isto é, a defici-
ência da presença efetiva dos outros, não é o contrário de
ser-com-os-outros, mas a experiência privativa daquela. E
é precisamente a privação do outro que é experimentada
no luto, que é um notável ser-com-o-outro, já que pelo
próprio fato da perda, o morto está presente para nós
mais totalmente do que jamais o foi em vida (Dastur,
2002, p. 66-67).

Os poemas finais, reunidos em A Lume, ensombrados pela doen-


ça e pela morte, já não são (ou são menos) tematicamente caracteri-
záveis como eróticos, quer dizer, como sexuais, porque, sim, sua obra
é relacionada à pulsão de vida, portanto, erótica. “Note-se, porém,
que, nos últimos poemas, assistimos também à perda e à degradação
do corpo e que estas são acompanhadas por uma desaceleração dis-
cursiva” (Martelo, 2004, p. 166), como nos Fragmentos ou em Silves
83. Por isso A Lume não só quer dizer luz, fulgor, incandescência, o
fogo que queima, regenera, o princípio de transformação ou de união
(que é um modo de transformação), como também se poderia dizer,
com Jorge Fernandes da Silveira, do híbrido luz/luza/Luiza que inova
o lugar-comum do nome próprio, quer dizer, a imagem de Luiza com
luz no próprio nome, lume (Cf. Silveira, 2006, p. 53), “luzindo” (p.
FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO 59

152), que alude ao conjunto “Éclaircissements”, em cujo primeiro


poema o vazio encaminha a uma porta que se abre na escuridão:

Un vide vous conduit Luzindo cheguei à porta


à cette porte éclaircie, Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
pas éclairée. (306) a porta. (p. 152)

Em 2006, a Revista Relâmpago preparou um dossiê dedicado a


Luiza Neto Jorge, onde se lê um testemunho de Gastão Cruz sobre
“Vivo em lama”, poema de A Lume:

E num dos mais intensos poemas de A Lume apresenta-


-nos uma vida deitada em “cama/ de pregos, vidros/ den-
tes de fera”, vestida com o “fato/ que”, devorado pelo
fogo, “morte e vida/ irmana”. Este poema pode bem ser
visto como síntese de toda a sua poesia, imagem de um
conceito de vida que é simultaneamente uma poética
(2006, p. 130-131).

“Morte e vida/ irmana” é a conclusão do poema da gestão do


fogo. Quero dizer com isto que “Vivo em lama/ Vivo em cama/ Vivo
em chama”, para além da rima clara (e através dela), evidencia uma
sequência, em alternância, da terra úmida, orgânica, à cama de sexo/
leito de morte, ao fogo – “amor ardente”, furor sexual, fulgor lumi-
nescente, cremação, fogo-fátuo. Como bem mostra este poema, “não
podemos mais diferenciar a morte da sexualidade” (Bataille, 1987, p.
58). O mundo é como uma roda numa roda. Como disse Jorge Fer-
nandes da Silveira a propósito de Poesia 61, “ao discurso que para
conter a vida expande a morte, Poesia 61 opõe um outro em que con-
-ter vida implica conhecer essa morte em expansão” (1986, p. 236).
Neste sentido se pode afirmar que, assim como o vazio faz parte do
texto, o silêncio da música, a imutabilidade do movimento, a morte
faz parte da vida e, por conseguinte, “a morte, ruptura [de uma] des-
60 POESIA 61 HOJE

continuidade individual a que a angústia nos prende, se nos propõe


como uma verdade mais eminente que a vida” (Bataille, 1987, p. 18).
Seria o mesmo que dizer, com Françoise Dastur, que a “morte é uma
maneira de existir” (2002, p. 78). Daí se seguem quatro excertos de
poemas de Luiza que manifestam uma forma lúcida de lidar com o
morrer e com a própria morte:

E se a nave vier do fundo espaço


Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso. (p. 254)

Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia, (p. 240)

E morro eu de morte como toda a gente (p. 246)

nós que medimos a morte,


(...)
E às jazidas do sêmen, ao tenro veio da
Madre
Século após século retornamos. (p. 232)

Retornamos século após século. O mundo é como uma roda


numa roda – a criação contínua, a contingência, a perecibilidade, os
ciclos, as renovações. A roda se revela como uma representação do
mundo. A porta giratória, entrada e saída do mundo, põe em movi-
mento o destino humano, como escreve Luiza, neste trecho de “O
facto importante”:

E eu que não, que a nossa vontade anda condicionada, a


par-e-passo, por todas estas múltiplas portas giratórias, e o
FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO 61

que há a fazer é quebrar-se-lhes os gonzos (mas que força


que é preciso!) ou então entrarmos também no jogo, e ver-
mos tudo a andar muito depressa para trás e nós depressa
para a frente, mas sempre à roda, assim como acontece
quando se bebe demais, ou com as crianças, a jogar ao
corropio. Claro que já nada disto tinha a ver com a porta,
(...) mas connosco, com a nossa vida. (p. 292, 293)

Não existe nenhum poder que seja capaz de inverter o sentido de


rotação da roda, a roda continua a girar pela velocidade adquirida.
As rodas são atravessadas por seu eixo, “sexo a ser eixo” (p. 208), é
o motor que as constitui. Pelo movimento, simbolizam a mudança, o
retorno das formas da existência, a sucessão do tempo, o emblema do
vir a ser cíclico. É o movimento que faz girar a roda como em “Balada
Apócrifa” que “adopta aqui o ritmo das danças de roda infantis, com
o recurso ao heptassílabo e ao modelo de variações dentro da sime-
tria das cantigas paralelísticas” (Martinho, 2011, p. 24).
Para José Ricardo Nunes, a (des)continuidade é uma caracterís-
tica essencial do discurso de Luiza Neto Jorge (2000, p. 15). “A mor-
te”, no entanto, “é a maior das continuidades, o abismo para lá do
qual se encontra todo o espaço e todo o tempo (...). Não há fusão
maior: o corpo passa a comungar com o espaço e com o tempo, inte-
grando aquela roda que roda continuamente, sendo a partir desse
movimento que a matéria se transforma” (Nunes, 2000, p. 30).
Conforme explica Georges Bataille, “[e]ntre um ser e outro há
um abismo, uma descontinuidade. (...) Este abismo, num sentido, é a
morte, e a morte é vertiginosa, fascinante” (1987, p. 12, 13). A imi-
nência da morte do outro, a morte de um ente querido significa uma
fratura, um rompimento muito forte como se a perda de um membro,
um membro do próprio corpo, moral e espiritualmente lesionado. A
iminência da própria morte, sentir bem próxima a expiração do pra-
zo, ver com clareza “o FIM do tempo retine” (p. 250), é assumir, sem
tristeza, com lucidez – “éclaircie,/pas éclairée” (p. 306) –, a realização
da própria finitude.
62 POESIA 61 HOJE

o meu amigo
(o melhor amigo)
na vala
comum
do medo
apodreceu *

No filme de João Roque, Luiza Neto Jorge lê o seu poema “Frac-


tura”, escrito em 1980 e dedicado ao pintor José Escada. Como diz
Bataille, “para nós, que somos seres descontínuos, a morte tem o sen-
tido da continuidade do ser” (1987, p. 77). Diante da incontornável
consciência do morrer, da angústia durante a vida e da luta contra o
desaparecimento, quer dizer, contra o esquecimento, importa aquilo
que a nós sobrevive, a obra, como elucida, com palavras claras, a
poeta Luiza Neto Jorge: “Fractura”

é um poema que está ligado a dois acidentes, a fractura de


um braço e a morte d’um amigo, de um grande amigo
(...). Portanto, começa pela exposição dessa fractura,
fractura exposta, e pela morte, pelo mundo que se fecha,
portanto “fechados vários peitos, várias artérias,/ pela
máquina morte removidos.” E daí passa-se logo a uma
escrita, “Escritas daninhas”, escritas interiores, fala-se de
lava, de aluição, como que uma irrupção (...), um desmo-
ronamento, ao mesmo tempo. E depois surge o braço: “e
um braço na tormenta salienta-se das vagas,”. Eu tenho a
impressão de que essa ideia me foi sugerida por aquela
ideia que nos vem da escola, o Camões, o poeta... o poeta,
o braço do poeta com a obra, portanto, aqui o braço... o
braço é já o poema, é a obra, é o poema. E será isso, será

* Cf. “diálogo com o melhor amigo”. Disponível em: http://www.relampago.pt/luizane-


tojorge/lnj-dactiloscritos-1.htm
FEZ-SE UMA RODA NO MÊS DE MAIO 63

esse o braço que vai frutificar, que se vai implantar no


“corpo escasso”, quer dizer, na aridez, no silêncio, e que
vai ser ele (...) “Membro em viço, irmão braço vem/ por
dentro semear-nos!”. Portanto, ele vai ser a semente, a
seiva que pode dar origem a mais coisas*.

Rio de Janeiro, maio de 2011.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.


DASTUR, Françoise. A morte: ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: Difel,
2002.
JORGE, Luiza Neto. Poesia 1960-1989. 2. ed. Organização e prefácio de
Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.
MARTELO, Rosa Maria. Furores e fulgor na poesia de Luiza Neto Jorge.
Hífen: Cadernos de Poesia. vol. 12., dez. 1998. pp. 67-72.
MARTINHO, Fernando J. B. Texto e contexto de Poesia 61 num quadro
tardo-modernista. Colóquio/Letras n° 177, maio-agosto 2011. pp.
9-27.
NAVA, Luís Miguel. Ensaios reunidos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
NUNES, José Ricardo. Um corpo escrevente: a poesia de Luiza Neto Jorge.
Lisboa: & etc., 2000.
Silveira, Jorge Fernandes da. Portugal maio de Poesia 61. Lisboa: Impren-
sa Nacional – Casa da Moeda, 1986.
_____. Verso com verso. Coimbra: Angelus Novus, 2003.
_____. Aparelhando Luiza. Relâmpago 18. Dossiê Luiza Neto Jorge. Lisboa:
Fundação Luís Miguel Nava, 2006. pp. 37-58.
_____. Primeiras impressões de Luiza tradutora. In. ALENCAR, Ana, LEAL,
Izabela & MEIRA, Caio (org.). Tradução literária: a vertigem do pró-
ximo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011. p. 143-153.

* Cf. LUIZA_IB.wmv. You Tube.


DE LEONOR A TERESA
ESCRITA DOS SENTIDOS
Ida Alves*

INCITAÇÃO À FALA

Não é mais o espesso silêncio


que se cala

É o poema

Curto, turvo
incompleto na pele da página

Que me incita à fala


Maria Teresa Horta

E m 2011, Maria Teresa Horta publicou o livro As luzes de Leonor.


Não se trata de apenas mais uma obra num conjunto já extenso de
cerca de trinta livros publicados ao longo de cinquenta anos de vida
literária, mas um título singular e muito significativo no percurso da

* Professora de Literatura Portuguesa/ UFF/ CNPq


DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 65

autora. Não é um livro de poesia, mas um romance que recupera,


entre os caminhos da história e da ficção*, parte da vida de D. Leonor
de Almeida Portugal, 4ª Marquesa de Alorna, a qual nas malhas do
tempo veio a ser a avó do trisavô de Maria Teresa Horta**.
A Marquesa de Alorna, que viveu no século das Luzes sob o des-
potismo do Marquês de Pombal, foi recolhida, em regime de quase
clausura, ao Convento de São Félix, em Chelas, de 1758 a 1777, com
sua irmã e mãe, penalizada pela perseguição feita à sua família, os
Távoras, acusados de traição. Nesse espaço viveu reclusa dezoito
anos, mas soube aproveitar o cotidiano conventual para desenvolver
sua cultura, tornando-se escritora, pensadora e tradutora de notório
reconhecimento no seu tempo. A pesquisadora Vanda Anastácio, em
prefácio ao livro de MTH, considera a Marquesa de Alorna “mulher
extraordinária do século das Luzes, inteligente, culta, espirituosa, bo-
nita, sensível, voluntariosa, sofredora” (2011, p. 9).
Esse livro de MTH, como já referi, não é de poesia, mas quero
começar por ele pois é, sem dúvida, uma obra maior produzida pela
escritora. Não falo da extensão do livro, exatas 1065 páginas, mas do
seu projeto de execução. A esse romance, cuja principal figura é a
Marquesa, MTH dedicou treze anos de pesquisas e oito versões, re-
construindo um mundo tão afastado de nós, mas, ao mesmo tempo,
tão próximo por suas questões e seus impasses em torno da razão.
Romance polifônico, vemos não só o cruzamento de vozes narrado-
ras, como também de gêneros, já que a escrita se desenvolve utilizan-
do formas poemáticas e estruturas narrativas diversas, seja de teor
histórico, documental (cartas originais pesquisadas, registros e teste-

* Em nota da autora, na abertura do referido livro, explica-se que foram utilizados: “a)
Transcrições de documentos oficiais da época; b) Transcrições de correspondência, diá-
rios, cadernos e outros documentos particulares da época; c) Citações autênticas de fon-
tes identificadas; d) Transcrições de poemas com autoria identificada. Os poemas de
abertura dos capítulos são todos da autoria de Leonor de Almeida, marquesa de Alorna.”
(2011, p. 7).
** A partir de agora, MTH.
66 POESIA 61 HOJE

munhos da época), seja de base ficcional (pseudoescrita diarística ou


relatos de outros personagens, além de poemas diversos).
Destaco esse livro mais recente, pois vem coroar a obra de uma
escritora que é, notoriamente, alguém que sempre usou a escrita para
discutir o lugar do feminino, em todos os seus aspectos, na sociedade e
na cultura portuguesa, e não é mesmo à toa que se dedique tão longa e
empenhadamente a recuperar a vida dessa mulher de outrora, a qual
aliou poesia e política de forma inovadora e corajosa, e foi considerada
por muitos a “Mme de Stäel portuguesa”. À poeta de espírito comba-
tivo do passado une-se, portanto, a do presente, pois assim é também
a Teresa de hoje, que, ao longo de seus livros de poesia e de narrativa,
igualmente no âmbito de seu trabalho jornalístico, sempre expôs com
destemor e sem pudor sua luta pela afirmação dos direitos da mulher
portuguesa e os valores do corpo. É muito interessante pensar que a
Teresa de nossa contemporaneidade reencontra na Leonor do passado,
dama nobre, uma longa história do feminino, uma longa história de
solidão e silêncio a igualar tantas mulheres no espaço e no tempo, a
provocar a vontade de enfrentamento, que, de repente, eclode nos tra-
balhos da mão por meio da escrita. Um curto poema de Mulheres de
Abril*, de 1977, poderia ser a síntese desse encontro de tempos e de
histórias: “Enquanto calas/ dobas o medo/ que te cresce na fala// E a
solidão bordas/ a ponto de silêncio.” (2006, p. 110). A poeta, ao expor
essas histórias cotidianas de sofrimento, maus-tratos, violação de direi-
tos e violência vividas pelas mulheres portuguesas, nega-se a silenciar,
por pudor ou por medo, uma realidade dura e completamente injusta,
utilizando a palavra poética como manifesto e denúncia.

Quem te disse
e propagou
perdida?

* Os livros de MTH citados neste trabalho estão inseridos em Poesia reunida (2009).
Utilizamos também a antologia brasileira Cem poemas [antologia pessoa + 23 inéditos],
2006. Ao lado do título de cada livro é indicado o ano da primeira edição.
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 67

Quem usou
abusou
da tua voz?

(…)

Quem te matou
te assassinou
te envenenou de mal?

Quem recusou de ti
tudo o que
vinha?

Quem te meteu
no corpo
este punhal? (2009, p. 455)

No conteúdo, a escrita de MTH marca-se por deter seu olhar no


feminino e seus papéis sociais e existenciais. Sua poesia revelou desde
o primeiro livro, Espelho inicial (1960), com epígrafe bastante sinto-
mática: “Toute ma présence est parole”, de Simone de Beauvoir, uma
perspectiva muito sensível ao aprisionamento a que a mente e o corpo
femininos foram submetidos na sociedade portuguesa e na sociedade
patriarcal em geral, com o impedimento de levantar sua voz, de vi-
venciar livremente seus desejos e projetos. Também revelou a violên-
cia sobre todos os corpos, seja da mulher ou do homem, pelos siste-
mas de poder que geram a guerra, a omissão e a opressão, como se
pode verificar no poema “1960”: “rasguemos a memória/ na dobra
dos séculos / debruados de incerteza/ de um dia a soçobrar / por entre
os escolhos// o perfil do incenso/ alastrou no sangue / como círios
entorpecidos / nas igrejas / e um girassol morreu/ durante o saque/
exercido sobre/ a esperança (...)” (2006, p. 44). Em oposição a esse
68 POESIA 61 HOJE

cerceamento, fala-se, com razão, da força da linguagem erótica tão


presente em sua obra em todos os seus recantos. A presença de Eros
se manifesta no discurso que não silencia e não se submete, que não
teme se expor na sua fragilidade e vontade amorosa. Eros é memória
e enfrentamento, não se limitando à mera exposição de lugares do
corpo. A escrita dessa poeta foi, de certa maneira, inaugural em Por-
tugal ao enfrentar, nos anos 60, o salazarismo, do ponto de vista fe-
minino. Há livros seus antológicos como Tatuagem (1961), Amor
Habitado (1963), Cronista não é Recado (1967), Minha senhora de
mim (1971) e, pós-revolução, Mulheres de Abril (1976), sem esquecer
ainda Novas cartas portuguesas [com Maria Velho da Costa e Maria
Isabel Barreno], de 1972, obra literalmente polifônica e forte denún-
cia da opressão feminina como duplo da opressão de uma sociedade
sob regime fascista. Esse livro levou para fora dos limites portugueses
os nomes de suas autoras a partir da perseguição que lhes foi feita
pelo Regime, sob acusação, em 1972, de imoralidade e a consequente
punição de censura e proibição de venda da edição.
Mesmo agora, percorrendo seus inúmeros livros de poesia e seus
romances*, vemos como sua escrita é plenamente fiel aos seus interesses
temáticos, retomando por diversas vias o dizer feminino e o seu sentir
em diálogo com o homem amado/ desejado e consigo própria. É o cor-
po um espaço permanente de atenção e conhecimento e não há um
maniqueísmo redutor a opor mulher e homem: os dois se apresentam
em sua escrita como complementares, como seres muitas vezes imersos
em condições estéreis de vida, em luta, portanto, para construírem jun-
tos uma mesma historia de liberdade e de total entrega. Nesse sentido,
o amor-criação é um tema constante a atravessar a sua obra, mas amor
como desejo de ser e intervir no mundo, de dizer e criar as condições de
uma vida realizada, plena de sensações físicas e de afetos diários. Em-
blemático disso o poema “Parto”: “Contigo/ este vínculo de parto,/ à

* Vale lembrar os títulos desses romances, para além de Novas Cartas Portuguesas: Am-
bas as Mãos sobre o Corpo, 1970; Ana, 1974; Ema, 1984; Cristina, 1985; A Paixão se-
gundo Constança H., 1994.
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 69

mistura/ com o silêncio das coisas...// que crescem” (2006, p.121). Do


ponto de vista formal, sua poética se efetiva pela busca de uma econo-
mia versificatória que pode ser lida por alguns como ausência de com-
plexidade ou excessiva comunicabilidade, mas para outros trata-se do
aproveitamento experiente de toda uma tradição lírica amorosa que
vem das cantigas medievais e passa por um romantismo à Garrett e por
formas consagradas do cancioneiro de língua portuguesa.
Realmente é visível que sua escrita prima pela simplicidade e por
uma inclinação ao breve e ao reconhecível no cotidiano da terra, da
casa e do corpo, permitindo imediata adesão do leitor, mas esse tra-
balho de ostensiva simplicidade formal denota, por outro lado, a va-
lorização da palavra como unidade de atenção e atração, matéria sig-
nificante. E, nesse sentido, é de valorizar a habilidade imagética da
poeta desde o já citado Espelho Inicial, como se constata, por exem-
plo, no poema intitulado “Mãe”: “Mãe/ terminou o tempo/ de sorrir/
desculpa-me a morte/ das plantas //(...) perdi-me noite na planície/
branca/ sobrevivente das madrugadas/ da memória// trocaram-me os
dias/ e as ruas de ancas/ verticais/ e nas minhas mãos incompletas/
trouxe-te/ um naufrágio de flores cansadas/ e o único jardim de amor/
que cultivei/ de navios ancorados ao espaço.” (2006, p. 19). Compre-
enda-se ainda a depuração da linguagem poética em busca da concen-
tração da imagem num tempo de rasura e de cerceamento, em que a
palavra devia ter o seu peso exato, sua tensão concentrada no míni-
mo, como bem exploraram os jovens poetas que se uniram numa
publicação comum que ficou reconhecida como Poesia 61. MTH foi
um deles e nessa publicação saiu o seu conjunto de poemas intitulado
Tatuagem, onde se lê o poema “Outubro”:

Estas noites de mar


incrustadas
de luz
ou estes olhos
de polos
distanciados no nada
70 POESIA 61 HOJE

Este ódio de chuva

esta dia montanha

Esta arma de boca


ou tempo encontrado
com relógios
na montra

Este ardor de palavras


no perfil
das bocas

este grito
que tenho
nas mãos misturadas

Que mãos misturadas


que tenho
de outubro
no sabor picante
sentido nas casas (2006, p. 28)

Com o desenvolvimento de sua obra, o próprio poema torna-se


um corpo prazeroso e sedutor, por isso a “escrita dos sentidos” du-
plamente: das palavras que carregam impressões e expressões e do
corpo que liberta todos os seus sentidos para o outro numa partilha
de amor e de sexualidade plena. “Jamais perco o travo/ da palavra/
onde a poesia guarda// Corpo português/ que se deita na fala” (2006,
p. 183), ou como se lê em “Poema”: “Deixo que venha/ se aproxime
ao de leve/ pé ante pé até ao meu ouvido// (…)// Sinto-o quando che-
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 71

ga, no arrepio/ da pele, na vertigem selada/ do pulso recolhido// À


medida que escrevo/ e o entorno no sonho/ o dispo sem pressa e o
deito comigo”(2006, p.185). Em livro mais próximo, como Inquie-
tude (2006), por exemplo, acentua-se essa relação com o poema tra-
balhado como corpo, matéria e sentidos. No poema “Versos”, para
citar apenas um, lê-se:

Incontáveis as armadilhas
as grutas os becos
os desvios do poema

De que a tinta aprisiona


a forma no papel
táctil e ardente

Caligrafia cruel aquela


onde os versos galgam
a volúpia do corpo
E a urdidura da alma

Obsessiva memória
que o tempo despreza
e a mão não acalma (2009, p. 794)

No contexto de uma poética portuguesa de tradição viril (e penso


aqui na épica camoniana) e de formulação altamente conceitual (a
poética do fingimento pessoano), MTH elabora sua escrita na valori-
zação de um sujeito-mulher e de uma poética do sentimento, poética
que certas vozes anteriores exploraram de forma tão intensa, como
um António Nobre, Mário de Sá-Carneiro e Florbela Espanca, com
seus sujeitos líricos tão centrados em si, tão carentes de dizer o seu
lugar de sentir. São interessantes, nessa perspectiva, os poemas de
MTH que exploram esse “mim”, na tradição longínqua de um Sá de
72 POESIA 61 HOJE

Miranda*: “Regresso para mim/ e de mim falo/ e desdigo de mim/ em


reencontro// os pontos/ um por um:// o sol/ os braços// a boca/ o sa-
bor// ou os meus ombros// Trago para fora/ o que é secreto/ vantagem
de saudade/ o que é segredo// Retorno para mim/ e em mim toda/ de-
sencontro já o meu regresso” (2006, p.77). A poética de MTH é, de
um lado, extremamente afetuosa; de outro, extremamente insubmissa.
Afetuosa na sua vontade de expressar as experiências do amor, a afir-
mação da partilha de corpos e desejos: “[...] Mas já nos toma/ a sede /
da voragem// Mas já os dedos/ vão/ na sua arte// Os meus em mim/ e
os teus tão devagar/ que em mim desfolham/ e em ti se alastram// Sede
das coisas/ onde se penetra/ piscina funda de nadarmos sós// Se o ca-
minhar em nós/ é tão secreto/ como descer ainda mais degraus/ para
caminhos ainda mais desertos?” (2006, p.99); insubmissa frente a
qualquer forma de silenciamento, opressão ou negação, como se vê
em versos do “Poema de insubordinação”, publicado em 1961: “Pre-
to/ sem submissão/ palavra de relevo agudo/ nas ruas// Preto/ de água
de vento de pássaro/ de pénis/ de agudamente preto/ de demasiado//
como um cardo submerso/ de som// […] // Preto/ de liberdade nos
rios// de liberdade no povo// de liberdade nas manhãs/ imóveis sem
cintura// Unido// urgente inenarrável// […] / Preto/ como um insecto/
um vitral uma cave// Uma língua// (…) (2006, p. 25).
É necessário ainda destacar, em relação à sua poética, uma cons-
ciência muito forte da História e da ação dos homens no tempo e, por
isso, é realmente singular no panorama da poesia portuguesa do sé-
culo XX o seu trabalho contínuo e compromissado com o feminino,
fazendo-o entrar nessa História. Assim, a poeta, a romancista e a jor-
nalista continuam, a seu modo e em seu tempo, a ascendente ilustra-
da, combatente e escritora, e um interesse comum se manifesta clara-

* Outro poema muito citado da poeta é “Minha senhora de mim”, de livro homônimo,
de 1971: “Comigo me desavim/ minha senhora/ de mim// sem ser dor ou ser cansaço/
nem o corpo que disfarço// Comigo me desavim/ minha senhora/ de mim// nunca dizendo
comigo/ o amigo nos meus braços// Comigo me desavim/ minha senhora/ de mim// recu-
sando o que é desfeito/ no interior do meu peito” (2009, p. 304.).
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 73

mente, interesse menos abordado quando se apresenta a obra de


MTH, mas que não se pode esquecer: a ação política da palavra lite-
rária. Em boa parte de seus títulos, enfrentou-se o contexto de opres-
são salazarista e de guerra colonial em que Portugal se encontrava.
Em Espelho Inicial, por exemplo, a violência, a destruição e o silencio
são ditos numa linguagem e imagética de fragmentação, de cortes
abruptos, de rasuras*. Os poemas exigem do leitor um trabalho de
recomposição das imagens e da sintaxe, instaurando uma ambiência
de dor e de dificuldades de existência, como no poema “Recomeço”:

náufragos da noite
o tempo dos cabelos
em clepsidras de água

o tempo da queda
no gesto
o tempo do olhar
nos olhos dos espiões

gerações submersas
alheias ao testemunho
da distancia

recomecemos no ventre
da água incerta

* Jorge Fernandes da Silveira, em seu estudo mais do que referencial para a compreensão
da Poesia 61, ao comentar o livro Tatuagem, de Maria Teresa Horta, afirma: “Possuidora
de um domínio imagístico invulgar, Maria Teresa Horta constrói uma poesia de difícil
leitura. À primeira vista, o leitor sente-se incapaz de coordenar o intenso ritmo de pala-
vras sobre palavras, de imagens sobre imagens, como se fosse uma espécie de música
para além dos limites da pauta. (…) Tatuagem é um livro que se insubordina contra a
ordem das relações sociais e as formas de opressão na linguagem. Sintagmas partidos, e
a consequente atomização de suas partes significativas, ficam a exigir um trabalho de
‘reparação’ do leitor.” (1986, p. 183).
74 POESIA 61 HOJE

urge-nos a planície
de quilómetros assimétricos
onde nos refugiamos
expectantes do último naufrágio (2009, p. 47)

É de destacar outro livro, Cronista não é Recado (1967), em que


a releitura da História dá aos homens comuns o seu valor e o seu
significado, pois “Faz-se a História/ com os homens/ sem mantos”
(2009, p.282). Nessa perspectiva, o sujeito lírico feminino assume sua
voz, síntese do amor e da dor, entregando-se totalmente à luta e à
esperança política de transformação. A mulher, corpo por séculos vio-
lado, maltratado, menosprezado, ferido, calado, censurado, passivo,
torna-se a representação ideal de uma sociedade, como a portuguesa,
em trabalho de parir a liberdade. É a tatuagem viva, memória perma-
nente desse desejo. “Ossifico a dor/ o dia// Tatuagem/ de tatuar o es-
paço/ livre// Onde a queda/ a neve/ ou o meio-dia/ multiplica// A mul-
tiplicação/ do sangue/ um sulco claríssimo// (...) Tatuagem/ tatuo no
ventre um filho/ mãe depois e nunca/ verificada// (...)// para sempre
estar escolhida/ entre mulheres/ sem imagem// Tatuagem/ violada/ que
se traz sob um dos/ braços// (…) // Tatuar/ de tatuagem// Sede de que-
da oxidada” (2009, p. 123-125).
A vontade de luta e de resistência não é apenas para a liberação
das mulheres, mas força em prol de todos os indivíduos cerceados de
seu direito de existir e ser. Embora livros como Minha Senhora de
Mim (1971), Educação Sentimental (1975) e Mulheres de Abril
(1976) centrem especialmente sua atenção na valorização da voz e da
ação femininas, encontra-se sempre a valorização da palavra poética
como capaz de desordenar e transformar os espaços de poder por
meio de uma sensibilidade outra frente ao mundo. Destaco em rela-
ção a isso o poema “O Corpo”, em que o ato de dizer é o ato funda-
mental de insubmissão:
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 75

Digo do corpo
o corpo
e do meu corpo

digo do corpo
o sítio e os lugares

de feltro os seios
de lâminas os dentes
de seda as coxas
o dorso em seus vagares

Lazeres do corpo
os ombros
as lisuras o colo alto
a boca retomada

no fim das pernas


a porta da ternura
dentro dos lábios
o fim da madrugada

Digo do corpo
o corpo
e do teu corpo

as ancas breves
ao gosto dos abraços

os olhos fundos
e as mãos ardentes
com que me prendes
em súbitos cansaços
76 POESIA 61 HOJE

Vícios de um corpo
o teu
com o seu veneno

que bebo e sugo


até ao mais amargo

ao mais cruel grau


do esgotamento
onde em segredo
nado em cada espasmo

Digo do corpo
o corpo
o nosso corpo

digo do corpo
o gozo
do que faço

Digo do corpo
o uso
dos meus dias

a alegria do corpo
sem disfarce (2009, p. 400-401)

Combativa, denunciante, vital, sua poesia responde a um projeto


de cidadania que requer o respeito à vida e aos seres. Sua ousadia não
está inteiramente na forma de escrever, mas numa habilidade em ir ao
encontro de uma poesia de ritmos variados, de versos populares, de
simplicidade imagética e naturalidade de expressão, promovendo um
canto da vida irremediavelmente comprometido com o mundo pre-
DE LEONOR A TERESA ESCRITA DOS SENTIDOS 77

sente. A poesia de Horta aposta no simples, no radicalmente humano,


no comum, para atingir o seu leitor no que acredita ser fundamental:
a capacidade de afeto, a entrega desejante, o liame com o outro. É
política nesse sentido de estar na pólis, entre homens, com homens. É
como se essa poética fosse, ao fim, uma didática do amor e uma defe-
sa da vida em todos os seus momentos e em todos os seus atos, eco-
ando à sua maneira o extraordinário verso seniano: “Não foi para
morrer que nós nascemos” (1988, p. 135).
O direito à palavra, o direito de habitar plenamente o corpo, o
direito de, a partir dele, nomear o mundo, é seu ato mais consequente
de escrita e, por isso mesmo, Maria Teresa Horta continua a ser, após
cinquenta anos contínuos de produção, uma das vozes mais “presen-
tes” da literatura portuguesa de nosso tempo.

Se a língua ganha
a dimensão da escrita
E a escrita toma
a dimensão do mundo

Descer é preciso até ao fundo


na busca das raízes da saliva
que na boca vão misturar tudo

Mas há ainda a presso do papel


que no tacto navega a brusca seda
Se a sede se disfarça sob a pele
descendo pela escrita essa vereda

(…)

Aí podes parar
e retornar à boca
Esse espaço de beijo e de cinzel
78 POESIA 61 HOJE

Onda a fala retoma a língua toda


trocando a ternura
pelo fel

Um lado após o outro


a dimensão está dita
O tempo a confundir qualquer abraço
entre o visto e o escrito

Espelho e aço

Nesta fundura boa


e mar profundo

Para depois subir a pulso


O mundo (2006, p.172)

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANASTÁCIA, Vanda. Palavras de apresentação. Prefácio a HORTA, Maria


Teresa. As luzes de Leonor. Lisboa: Dom Quixote, 2011, pp. 9-10.
HORTA, Maria Teresa. [Perfil poético por Maria João Reynaud]. Poesia
reunida. Lisboa: Dom Quixote, 2009.
______. Cem poemas [antologia pessoal] + 22 inéditos. Rio de Janeiro: 7Le-
tras, 2006.
______. As luzes de Leonor. Lisboa: Dom Quixote, 2011.
SENA, Jorge. Poesia II. Lisboa: Edições 70, 1988.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Portugal maio de poesia 61. Lisboa: Im-
prensa Nacional – Casa da Moeda, 1986.
O ESPÓLIO DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
Jorge Fernandes da Silveira*

A Simone Caputo Gomes,


que um dia me levou à Vivenda Azul

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,


Começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.


E recordo-me dos outros de fora da vidraça, mudos
mas autores cada um do seu frasear, generosos
quando me reconheciam em muitos anos de vida.
Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues vozes

caladas para sempre nos livros em que as lera.


(...)
Fiama Hasse Pais Brandão, “Sumário Lírico”

I. Para o número 6 da revista Metamorfoses, da Cátedra Jorge de


Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros, vinculada ao De-

* Professor de Literatura Portuguesa/ UFRJ/ CNPq


80 POESIA 61 HOJE

partamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da UFRJ,


organizei, dando prosseguimento à seção Os trabalhos e os dias, o
Dossiê Fiama Hasse Pais Brandão, um conjunto de ensaios, textos
inéditos, iconografia sobre uma personalidade importante das litera-
turas em língua portuguesa, cuja Obra reúne poesia, narrativa, dra-
maturgia e ensaística.
Do Dossiê, alinho passagens do ensaio de Eugénia Vasques, por-
tuguesa, crítica e professora de teatro, a respeito de um problema es-
pecífico, que se desdobra em outros, aqui resumidos nos dois itens
principais:
a) dificuldade em reorganizar material da dramaturga Fiama, ar-
quivado, mas de forma inadequada; b) urgência na organização e
publicação da obra para o teatro de uma verdadeira cidadã de cultu-
ra, uma humanista, dos nossos dias.
Das considerações de Eugénia Vasques que, por correspondên-
cia, informava ainda acerca de diversas pastas organizadas pelo pai
de Fiama e que poderiam estar com um dos seus filhos ou com o ex-
-marido, o poeta Gastão Cruz, nasceu a vontade de investigação nes-
se hipotético espólio familiar, sobretudo nos poemas e ensaios.
Da consulta em arquivos, bibliotecas e hemerotecas, a pesquisa
desenvolve-se em três etapas, ainda em andamento, compreendendo:
a) primeiramente, a leitura e o comentário de obras críticas e te-
óricas voltadas para a preparação e o estabelecimento de texto; b)
numa segunda etapa, voltada para a formulação de hipóteses sobre o
estabelecimento de índices ou fontes de informação primária, mais se
intensifica a pesquisa em jornais e revistas, veículos em que Fiama
desenvolveu intensa atividade, como demonstra o volume de ensaios
sobre Camões, O labirinto camoniano e outros labirintos, reunião de
matéria publicada em órgãos da imprensa, principalmente no Diário
de Notícias, nos anos de 70 e 80 do século passado; c) como terceira
etapa do projeto, para a organização da bibliografia da Autora, revi-
são crítica da fonte primária propriamente dita (jornais e revistas,
textos manuscritos, datilografados e/ou digitados).
O ESPÓLIO DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO 81

II. Das três etapas acima apontadas, uma quarta, meio conclusi-
va, estabeleceu índices que, adotados critérios metodológicos segun-
do Maria Alzira Seixo e Jorge Fazenda Lourenço (cf. Bibliografia),
organizam a obra de Fiama por gêneros, já que ela é autora de poe-
mas, narrativas, ensaios, peças de teatro e traduções: a) textos sobre
a obra de Fiama Hasse Pais Brandão; b) textos de conjunto incluindo
referências significativas à obra da Autora; c) entrevistas da Autora;
d) entrevistas sobre a Autora.
Desse investimento em progresso da bibliografia estabelecida,
está em elaboração um livro, o corpus vivo, metodológico e teórico
da pesquisa.

III. Neste gênero de pesquisa, a teoria confunde-se à prática.


Inexperiente no que respeita à organização de subsídios para o esta-
belecimento e fixação de bibliografia de e sobre um autor, consciente
de que estou a compor o livro mais difícil de minha bibliografia, de-
cido começar a investigação pela Poesia, a produção de Fiama que me
interessa mais.
Para as considerações futuras, importa descrever, mesmo que su-
cintamente, e sem o rigor de uma atualização crítica, a composição
das três edições da poesia reunida de Fiama: O Texto de Joao Zorro,
Inova, 1974; Obra Breve, Teorema, 1991; Obra Breve, Assírio & Al-
vim, 2006.
O texto de Joao Zorro, com palavras notáveis de Fernando Gui-
marães na contracapa, reúne os três primeiros livros – Morfismos
(Poesia 61), Barcas novas, (Este) Rosto – e o conjunto inédito Era.
Morfismos está bastante modificado, nas suas 3 Grafias, 6 Temas
(não 7, pois do 4 salta-se para o 6) e 5 Sincronias. Se a redução dos
temas e sincronias para 3, igualando-os às grafias, sugerir a ideia de
equilíbrio, interessa notar o jogo em que o atual “Tema 1” foi, ante-
riormente, em 61, “Tema 3”, o mesmo ocorrendo, isto é, a troca de
números, nos demais temas e sincronias, com a fundamental ressalva
de que a “Grafia 1” mantém-se inalterada desde a primeira impressão
82 POESIA 61 HOJE

(mesmo que haja agora um indefinido antes de substantivo no tercei-


ro dístico). Barcas novas, por sua vez, tem as suas 5 seções – “As
Barcas”, “O Trabalho”, “Os Mortos”, A História”, “Nome Lírico”
– reduzidas a duas: “Barcas Novas” e “Nome Lírico”. No primeiro
poema, homônimo do livro, com epígrafe de Joao Zorro, a quebra da
métrica dos 9 dísticos em versos de redondilha maior é o que mais
impressiona; não passa igualmente despercebido o corte de 8 poemas
ao todo; a menos alterada das duas seções restantes, “Nome Lírico”,
é a mais importante nos destinos da poética de Fiama desde então.
(Este) Rosto não sofre mudanças de efeito. Já Era, a série inédita,
composta de “Solo Solo”, “A Era”, “Mortalidade”, traz, exatamente
neste subtítulo, no que ele indicia da correspondência entre os gêne-
ros, o primeiro motivo de interesse: os seus XII “In Memoriam”, po-
emas em prosa, são hoje “contos” publicados separadamente no vo-
lume Falar sobre o Falado, de 1988. A última seção é “Índice”. Mas é
na falsa impressão de que encerra o volume que está o grande motivo
de interesse na primeira reunião dos poemas de Fiama: sem número
de página e fora do Índice Geral está “O Texto de Joao Zorro”, o tí-
tulo da Obra.
De acordo com os versos-chave desse poema – “(...) O progresso
dos textos/ é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente” –, a Obra
breve, 1991, é altamente significativa no que se refere a Morfismos.
São mantidas as mudanças de 74 no conjunto, mas voltam a ser pu-
blicados os 6 temas e as 5 sincronias, estas, agora, (ça va sans dire)
outras, sem que se assista, porém, ao salto (o intervalo, o “intermé-
dio” à Sá-Carneiro “7”) da 4 para a 6 sincronia. Resta citar o que diz
Fiama na abertura do volume:

Em Obra Breve, os pequenos livros de meus poemas reú-


nem-se de uma forma contígua – tal qual como foram
vividos. As cortinas delimitam, confundindo-os, livros e
partes de livros; poemas inéditos preenchem alguns inter-
valos. Na verdade, cada livro tinha sido apenas um corte
O ESPÓLIO DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO 83

– a poesia vai sendo escrita, transformada, recordada, ao


correr do tempo todo.
Lisboa, Junho de 1991 (1991, p. 5)

Há, claro, os livros pós-74: Novas visões do passado, Homena-


gemàliteratura, Melómana, Área branca, Cântico Maior atribuído a
Salomão, Âmago 1, Três rostos. E, entre eles, o que a própria chama
“cortinas”, marcando-as com *.
Obra Breve, 2006, com prefácio de Eduardo Lourenço e a dedi-
cação de Gastão Cruz, mantém a estrutura anterior e republica os tí-
tulos entre 1991 e 2006: Cantos do canto, Epístolas e memorandos,
Cenas vivas, As fábulas e, inédito, A matéria simples.
Isto posto, abaixo, na interlocução entre as alíneas, numero e
apresento de maneira reflexiva os resultados da pesquisa mais rele-
vantes até agora obtidos.

1. O conjunto de sete poemas, datilografados, datados, só um


com título, “Falsos espelhos”, reunidos num envelope com o signifi-
cativo título de “Espólio”, veio pelos Correios. Não fixados em sequ-
ência cronológica, os poemas foram escritos entre 1956 e 1957; Fia-
ma ainda não se havia estreado em volume, haja vista que o seu
primeiro livro, Em cada pedra um voo imóvel, é de 1958, aos 20 anos
de idade da poeta, e o seu primeiro conjunto de poemas, Morfismos,
vem a lume na obra coletiva Poesia 61. É nesta coletânea que está
aquela que é hoje considerada a assinatura poética de Fiama, “Grafia
1” (por favor, releiam-na na minha Introdução a este volume). A lei-
tura do primeiro poema do conjunto de sete recém-investigados, da-
tado de 1957, dá informação de raiz acerca da relação da Autora com
a genealogia da sua escrita, talvez a mais forte característica de sua
Obra, e, obviamente, sugere uma linha de pensamento a ser estudada.
Cito o poema:
84 POESIA 61 HOJE

Gosto da água porque é água.

E, basta-me saber
que este rio é, em mim,
tudo o que eu quiser.

Na margem já não há água.

O problema é insolúvel:
dentro de mim está um rio sem água.

A angústia de haver um rio


e uma margem que não é rio.

No espanto de haver um rio


que não é água, em mim. (1989, s/p)

Na leitura quase comprobatória que este tipo de pesquisa impõe,


relidos esses dois poemas, não restam dúvidas de como para Fiama a
tensão entre a subjetividade de sentimentos e sensações está sujeita a
um rigoroso trabalho constante de produção com as imagens. Não
impunemente, o último poema dos sete, do ano de 1957, tem hoje
uma comovente afinidade biobibliográfica com a última Fiama, a de
“A matéria simples”, de Obra Breve, 2006. Cito os dois poemas:

Estou cálida e suave.

Nada em mim recua.

No ambiente, cada aresta


é um espelho facetado.
O ESPÓLIO DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO 85

Tudo fora.

Cheguei.

Estou claramente irreal (1989, s/p)

Na pele sinto o percurso das ondas,


mais amplo e tenso do que o périplo do sol.
E, no entanto, este vai-se gerando a si mesmo,
a cada momento, até à placidez
do meio-dia. São feitos de horas, contínuas, eternas,
aqui, na ria, os dias. Hoje,
meu dia, o coração e o dia rejubilam. (2006, p. 738)

Se a aprendiz de Poesia, nos anos de 50, parece nos dizer que no


mundo das imagens está “claramente irreal”, isto é, legível às claras
no nível das figurações verbais, a Fiama no início do Século XXI tem
a consciência luminosa, solar, de que ao longo de toda a vida de sua
poesia foi de maneira crítica, quer dizer, tensa, em meio a “arestas”,
ao encontro da harmonia entre o próprio da natureza humana, a fala,
e o próprio da Natureza, as suas cíclicas formas de expressão. Quan-
to a isso não há melhor argumento do que o “quadro” em exposição
na interlocução entre “Grafia 1” e “Quod Nihil Scitur” (cf. minha
Introdução).
Em carta a mim endereçada, de 8/7/86, nos contatos de uma
possível visita sua ao Rio, infelizmente malograda, Fiama assim defi-
ne a sua leitura entre nós: “Só irei (com forças recuperadas) se me
quiserem apenas ouvir ler e, além disso, fazer sessões que eu chamarei
escoliadas (de scolia), isto é, sessões em que marginarei poemas meus
ou de outrem com os comentários autorais possíveis, isto é, pura e
simplesmente uma suspensão da teoria.”. Os sete poemas de “Espó-
lio”, a lume na Revista Ocidente, em 1989, não foram incluídos em
nenhum dos seus 18 livros de poesia. Tal fato parece dar ao seu dese-
86 POESIA 61 HOJE

jado “leitor único”, aos seus futuros leitores-investigadores, aos seus


legentes, como diz Maria Gabriela Llansol, uma informação sem
meias palavras, que não os deve desencorajar, contudo: o de não bus-
carem o seu espólio em nenhum outro lugar que não seja a sua obra
publicada.

2. Matéria de igual interesse está em outra troca epistolar, datada


de 2/6/98: “Tenho, para sair, um livrinho de prosa auto-gráfica-bio-
-degre[a?]dável. Crónica verdadeira e muito imaginária e fictícia. De-
pois mando-te.” Trata-se da narrativa Sob o Olhar de Medeia, de
1998, em que se confirma a ideia de que, para Fiama, a sua biografia
de escritora, logo, a sua biobibliografia, está e estará nos textos vin-
dos a público. E bem sabemos o destino incerto que familiares e/ou
responsáveis dão à obra de criador morto. Diz ela, na quarta capa de
O Labirinto camoniano: “É exactamente o que me permite a distân-
cia: uma certa forma caótica, uma cronologia falsa”, “Desse sentido
homogêneo da História, ficaram-nos alguns fragmentos radiantes,
que dispersamente recordamos.”(2007, quarta capa). Daí, talvez,
diante desse seu instinto de sobrevivência, a dificuldade de consulta
aos seus papéis póstumos; no que tange ao universo poético, porém,
é nesta carta de junho de 98 que está matéria de interesse para o de-
talhamento dos resultados obtidos segundo o ponto de vista teórico e
metodológico adotado: “Agora mando-te 3 poemas de um futuro li-
vro, chamado O Esplendor da Língua, que só sairá no fim do ano,
creio.”. O livro, cujas orelhas são de minha autoria, passa a chamar-se
Cenas Vivas devido a um texto meu sobre seus poemas (cf. Bibliogra-
fia), segundo palavras da própria Fiama, e foi publicado em 2000. Os
três longos poemas enviados datilografados e fotocopiados são “Ca-
tálogo botânico da primavera”, “Foz do Tejo, um País” e “Sumário
lírico”, integrantes de “As Poéticas”, num total de seis, que compõem
a última seção do livro. Mesmo que não sejam os originais, o propó-
sito acima determinado de “buscar, confrontar e optar pela mais coe-
rente versão do material em investigação” chegava-me de maneira
O ESPÓLIO DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO 87

comovente. Lá estavam os poemas, neles os sinais manuscritos da


Poeta. Como se espera, em sua maioria correções e trocas de palavras,
com uma diferença significativa, contudo, no “Sumário Lírico”, título
redivivo de “Nome Lírico”, se comparadas à cópia datilografada e a
versão impressa. Súmula de toda uma poética voltada, desde “Grafia
1”, para a interlocução entre as palavras e as coisas, “Sumário Lírico”
registra, no último verso, “que vai descer à boca em última palavra
minha” (grifo meu), uma mudança vocabular semanticamente coe-
rente, mas de extraordinário efeito duplamente significativo, “que vai
descer à língua em última palavra minha” (cf. iconografia, Metamor-
foses 6), que, ao fim e ao cabo, acaba sendo substituída pela primeira
versão, na publicação em livro. A correção do corrigido significa que,
na linguagem poética de Fiama, há muito, o sentido do texto está no
cruzamento entre linhas descendentes (regressivas) e ascendentes
(progressivas). Em suma, entre a herança, o imaginário cultural (a
“boca”), e a errância, a produção de novas imagens (a “língua”),
inscrevem-se e escrevem-se versos.

3. Em carta de Lisboa, 24/10/84, escreve-me Fiama: “Eu acabei


de organizar um livro de poesia Âmago, para o ano que vem.” Nas
pastas compiladas pelo pai, como se guiado pelas cartas trocadas, hei
de encontrar a revisão da Autora aos originais para uma edição de
Âmago II, que, com toda a certeza não é a que foi publicada em 1989
pela Assírio & Alvim com o titulo Três rostos, mas sim aquela sonha-
da e bem guardada numa pasta em que, na primeira folha, sobressai
feito à mão de Fiama o Sol, o logotipo da Coleção Círculo de Poesia
da Moraes Editora de Lisboa.

4. No que diz respeito ainda à poesia, é curioso registrar como a


visão concreta da inclusão de um simples artigo modifica e dá mais
clareza ao escrito. Refiro-me ao poema “A roupa”, primeiramente
publicado no número 131 da Colóquio/Letras de Janeiro-Março de
1994, em que há uma única mudança entre esta versão e a do livro
88 POESIA 61 HOJE

Cenas Vivas, 2000: o terceiro verso do poema, “que em mim confir-


ma agora” (1994, p. 141), passa a ser “o que em mim confirma ago-
ra” (2000, p. 97). Com este exemplo, aparentemente simples, desejo
justificar o ponto de vista teórico e metodológico adotado. Numa
palavra: ao invés de uma rigorosa linha demarcatória de diferenças, o
material deixado pela Autora, não só o não publicado, mas, sobretu-
do, aquele publicado em que nos originais há a sua mão revisora,
deve ser estudado como matéria de avaliação e compreensão de esco-
lhas verbais que formam o estilo da escritora e informam sobre a ci-
dadã Fiama Hasse Pais Brandão. O que parece ir ao encontro do que
diz a Poeta ao Suplemento Literário do Diário de Lisboa de 25 de
maio de 1961, num recorte encontrado de entrevista para o lança-
mento de Poesia 61:

Intentei justamente, com o título deste conjunto de poe-


mas Morfismos, uma designação que sugerisse a ‘poética’
que os informa. O que na criação poemática me interessa
é realizar uma ‘forma’ verbal, que tenha qualidade estéti-
ca específica, isto é, poética. Mais particularmente: a for-
ma verbal dominante na minha poesia é do tipo semânti-
co e apenas subsidiariamente me preocupa a fonética ou
a rítmica. (1961, p. 2)

5. E, como quem acha importante terminar a construção


teórico-metodológica por onde começou, cito o último verso
do segundo poema de “Espólio”, de 1957, “Eu, na cidade, serei
pateticamente concreta.”(1989, s/p), que bate repetido quase por
inteiro no seu futuro imediato, ou seja, uma frase de Em cada pedra
um voo imóvel, de 1958: “Na cidade todas as casas são de pedra.”
E assim começa o texto epigráfico (Silveira, 2006) de Fiama Has-
se Pais Brandão.
O ESPÓLIO DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO 89

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. O Texto de Joao Zorro. Porto: Inova, 1974.
______. Obra breve. Lisboa: Teorema, 1991.
______. Obra breve. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
______. Espólio. Separata da Revista Ocidente. 1989.
_____. O labirinto camoniano. 2 ed. Lisboa: Teorema, 2007.
_____. Cenas vivas. Lisboa: Assírio & Avim, 2000.
LOURENÇO, Jorge Fazenda Lourenço e WILLIAMS, Frederick G. Uma
bibliografia cronológica de Jorge de Sena. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 1994.
SEIXO, Maria Alzira. Bibliografia e Bibliologia. Para uma Bibliografia Pas-
siva de António Lobo Antunes. Metamorfoses, 5. Lisboa, Rio de Janei-
ro: Caminho, Cátedra Jorge de Sena, 2004.
SILVEIRA Jorge Fernandes da. BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. BIBLOS,
Enciclopédia VERBO das Literaturas de Língua Portuguesa. V. 1. Lis-
boa/ São Paulo: Verbo, 1995. p. 755-756.
_____. Lápide & versão, o texto epigráfico de Fiama Hasse Pais Brandão.
Rio de Janeiro: Bruxedo, 2006.
VASQUES, Eugénia. O Manifesto Teatro de Fiama. Metamorfoses, 6. Lis-
boa, Rio de Janeiro: Caminho, Cátedra Jorge de Sena, 2005.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA,
EM QUATRO OU CINCO ATOS
Luis Maffei*

S e não for radical a relação que estabelecemos, os amantes da poe-


sia, com poesia, especialmente com os poetas que amamos, não sei
qual será – será nenhuma, talvez, pois não conheço amor que radical
não seja. Relação assim é vital, dentro da vida, passando a poesia a
ser modo de leitura de mundo, enfrentamento de real, ou real em re-
lação e, portanto, ameaça; absoluto, como supuseram e quiseram os
românticos alemães, mas precário, posto que arriscado, sacudido, al-
terado e transtornado por muito do que lhe é exterior.
Digo de outro modo: se os humanos só conseguimos perceber o
mundo através da linguagem (sim, há um atravessamento que nos
afasta das coisas, que nos faz patinar pela comunicação e nos veta
uma concretude mais, digamos, essencial), os poetas e leitores de po-
esia só conseguimos perceber o mundo através dessa linguagem em
dobra. Não que deixemos de ler filosofia, romance, antropologia, his-
tória, e não que a poesia não possa ser filosófica, vide Camões e Pes-
soa, narrativa, vide Cesário Verde, antropológica, vide as versões de
Herberto Helder, ou histórica, vide tudo o que se inscreve lírico desde
a primeira concepção de lírico. Mas lemos poesia, e, ainda que calde-

* Professor de Literatura Portuguesa/ UFF e poeta


GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 91

emos nossas leituras do poético com muito do que está fora de versos,
ainda bem, caldeamos nossas outras leituras pela poesia e pelo poéti-
co (dobramento e desdobramento de mundo, logo de sentidos, logo
de mundo), ainda bem de novo. Se a linguagem, quebradiça, nos da-
diva alguma densidade interseccional, nós, humanos dados ao poéti-
co, achamos na poesia lugar de encontro mais difícil, mais, não obs-
tante, profícuo.
Tudo para começar a dizer que a poesia de Gastão Cruz partici-
pa da minha vida. Pretendo, neste texto, falar de Gastão e de mim, ou
do modo como os versos de Gastão estão dentro da vida, a minha:

DENTRO DA VIDA

Não estamos preparados para nada


certamente que não para viver
Dentro da vida vamos escolher
o erro certo ou a certeza errada

Que nos redime dessa magoada


agitação do amor em que prazer
nem sempre é o que fica de querer
ser o amador e ser a coisa amada?

Porque ninguém nos salva de não ser


também de ser já nada nos resgata
Não estamos preparados para o nada:
certamente que não para morrer (2009, p. 337)

Já afirmei que “a sabedoria da obra de Gastão não é pouca. Em


poesia, perguntar (...) é mais sábio que responder – creio que também
fora dela, pena que um mundo como o nosso, tão alheio ao poético,
seja, consequentemente, alheio a tal sabedoria” (2009, p. 31). Digo de
outro modo: a poesia, como de resto as linguagens humanas, conhece
92 POESIA 61 HOJE

menos do que ignora, mas uma de suas peculiaridades é ser das pou-
cas linguagens humanas (a única?) cônscia de que ignora mais do que
conhece. “Dentro da vida”, poema de ardência e movência camonia-
nas, de lúcido despreparo pessoano, ensina-me bastante da sábia igno-
rância que marca a poesia. O poema de A moeda do tempo (2006) é
aqui pré-ato, ato zero: “Não estamos preparados para nada” nem
“para o nada”, pois estamos, “dentro da vida”, “todos à espera da
morte” (2000, p.334), como se lê no Húmus de Raul Brandão. É estu-
pefato e nada tolo que, “dentro da” redoma-vida à espera de não-re-
dentora morte, pergunta: “Que nos redime”?, como faz o leitor ávido
do poeta, Camilo Pessanha, que assinalou uma redenção impossível
ao perguntar: “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho/
Onde esperei morrer – meus tão castos lençóis?” (2009, p. 79).
Cada ato, já se imagina, tem um poema. O primeiro:

Sobre a cama de roupa o teu cadáver


do corpo morto não inerte ou vivo
do corpo não contente ou triste ou vivo
de morto não inerte ou de cadáver

sobre a cama de roupa morto ou vivo


sobre o teu corpo morto de cadáver
à luz do corpo vivo de cadáver
descontente ou alegre morto ou vivo

como pude chorar ou morto ou vivo


sob a chuva da morte do cadáver
do corpo morto teu ou como vivo

pude olhar-te e chorar-te o teu cadáver


sobre a cama de roupa inerte ou vivo
do teu corpo e de morto o teu cadáver
(2009, p. 91, 92)
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 93

Na primeira edição de Escassez (1967), há uma indicação, “na


morte de João Carlos Passos Valente” (1967, p. 8). Agora, isso pouco
importa, mesmo porque o apontamento biográfico desapareceu do
poema em todas as suas seguintes aparições na obra de Gastão Cruz.
Na minha biografia, a que orienta esta escrita, não é a morte de João
Carlos Passos Valente que se acha circunscrita pelo poema, nem é
morte alguma, mas uma circunstância de risco de morte, morte dese-
nhada ou anunciada. Primeiro ato: ano passado, meu pai foi subme-
tido a duas cirurgias, e, aquando da primeira, eu estava no corredor
do hospital, em companhia de outras criaturas, algumas em torno da
mesma personagem, outras acompanhando seus próprios doentes.
Poderia passear agora pelos títulos dos livros do Gastão dos anos de
1960, mas apenas sugiro a força que há em expressões como A morte
percutiva (1961), Hematoma (1961), A doença (1963) e Escassez –
mas ideias nem tão estranhas a essas não figuram em Crateras (2000),
A moeda do tempo e, tendo A morte percutiva na mesa, Repercussão
(2004)?
No hospital, em dia cinzentamente óbvio, deixara eu de dar pre-
vistas aulas a fim de estar ali, ao lado de parentes próximos, em vir-
tude de uma arriscada cirurgia vascular, procedimento prévio para
outra intervenção: meu pai, fumante por décadas, desenvolvera um
câncer de laringe, e, para que se pudesse tentar retirar o tumor cirur-
gicamente, era preciso, anteriormente, desobstruir diversas veias da-
quele corpo. Meu pai não morreu naquela tarde nem na (fracassada)
intervenção posterior, mas sim num dia em que não havia faca nem
bisturi em cena. No entanto, mal vi seu cadáver, pois, por fraqueza,
sempre evitei imagens de corpos mortos, e quão mais próximos fos-
sem os donos daqueles corpos*, mais conscientemente costumei con-

* Os nomes desses corpos é livro de 1974, com segunda edição em 1979, e lembrei-me
desse título, evidentemente, porque grafei o sintagma “os donos daqueles corpos”. É se-
vera a provocação a que essa coincidência (?) me leva: ao evocarmos pessoas amadas que
estejam longe, mortas ou vivas, usamos seus nomes, ou suas posições em relação a nós
(pai, mãe etc.). Será que nossa vontade de extrapolar a língua terá de aceitar a grande
94 POESIA 61 HOJE

tornar as imagens de seus cadáveres – assim o foi com minha mãe,


assim com meu pai.
Por isso, aquela sexta-feira foi crucial, ganhando ares de quase
despedida. Perto de gente íntima, acompanhei meu pai ao quarto que
lhe coube antes da cortante atividade ter início, e ao lado dele estava
eu quando o levaram ao interior do inacessível centro cirúrgico. Ao
ver o corpo vivo*, mas perto demais da morte (nem tão perto, mas
perto o bastante), ocorreu-me de pronto o verso “Sobre a cama de
roupa o teu cadáver”: não era o cadáver de meu pai, mas era, e essa
consciência se impôs para além de qualquer esperança de que o ho-
mem sobrevivesse. Os problemas iam muito longe: não era uma
“cama”, mas uma fria maca, não havia “roupa” a mais que um tosco
lençol hospitalar, não existia possibilidade de aquele corpo “morto ou
vivo”, “não contente”, levantar-se dali e sair andando conosco.
“pude olhar-te e chorar-te o teu cadáver/ sobre a cama de roupa
inerte ou vivo/ do teu corpo e de morto o teu cadáver”, e fi-lo melhor
porque conheço o poema. Sempre que o releio, fico impressionado
com a sugestão inexoravelmente fatal e vital (existe uma redoma-vi-
da, e não faz sentido localizar apenas na morte a gama de angústias
que toma o humano), lugubremente vital e fatal que há na repetição
de vocábulos nesse soneto de rimas exclusivamente internas. As pala-
vras-chave “cama”, “corpo”, “morto”, “vivo” e “cadáver”, além dos
refrões a meio dos versos, remetem-me ao paralelismo das cantigas
medievais. Sinistramente, no entanto, não há no poema qualquer ma-
gia, como tanto houve nas cantigas de amigo, nem qualquer circuns-

semelhança entre “os donos desses corpos” e Os nomes desses corpos? É, agora, impres-
cindível lembrar que o poema de abertura do referido livro possui estrofe central na
poética gastoniana: “Tinha deixado a torpe arte dos versos/ e de novo procuro esse exer-
cício/ de soluços” (2009, p. 131).
* Outra expressão que figura na lírica do autor de Referentes: “Com Augusto Abelaira”,
A moeda do tempo: “Estávamos no café/ uma tarde de sábado/ como antes quantas ve-
zes/ porém desta vez sós// e à minha pergunta/ sobre o seu corpo vivo,/ o fim está à vista/
respondeu;// o silêncio/ seguiu-se por um tempo/ como se entre nós dois/ se erguesse já a
morte” (2009, p. 330).
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 95

tância amorosa, como as cantigas de amor suscitavam. Há a morte e


a visão de um “corpo” sem qualquer sensação ou sentimento, corpo
que só houve por ter havido a vida.
Assim, “Irás achar que foi um erro e foi/ um erro” (2009, p. 331),
como se lê em “No sol”, de A moeda do tempo, ou

No inverno tão
quente semelhante
a um verão amamos a
incerteza

Com voz igual


o mar retrata o ávido
cheiro do corpo o aroma a
sangue
impossível de manter escorrendo
sobre a pele molhada
de outro mar

O verão do Leblon nega o seu


nome
escondemo-nos
na luz reconhecendo-o (2009, p. 274)

Ainda bem que um poeta estrangeiro é capaz de falar assim da


“Luz do Leblon”. Segundo ato: a meus olhos, o Rio é maltratado por
boa parte da poesia que lhe foi dedicada. Recorro desde já a outro
poema, “Improviso deixando o Rio de Janeiro”, do mesmo livro:
“Atrás de cada prédio/ espreita pedra/ nos extremos das ruas uma
encosta arboresce/ em redor da Lagoa vegeta uma floresta/ e por cima
das árvores até ao céu/ falésia” (2009, p. 285). Mais uma vez o olhar
é estrangeiro, por isso lida melhor com alguns perigos – exemplifico-
-os, para não visitar rincões exageradamente cheios de mulatas do
96 POESIA 61 HOJE

Sargentelli, com um poema: “Deixo que o táxi me leve. Mais que o


lugar,/ deixo que o som me leve,///bom de ouvir e dizer: Leblon.//A
primeira sílaba se eleva, anel breve,///e desaparece/ logo que a outra
em onda lenta e dilatada se desabotoa.// A resina translúcida e visco-
sa/ do que nelas é água e sal fica na boca.” (2007, p. 45).
“Sul”*, de Eucanaã Ferraz, é um evidente diálogo com “Lis-
boa”, de Sophia de Melo Breyner Andresen. O poema de Sophia é
eivado de sutil historicidade: “Digo:/ Lisboa/ Quando atravesso –
vinda do sul – o rio/ E a cidade a que chego abre-se como se do seu
nome nascesse” (1991, p. 247). O vocábulo “sul”, que em Eucanaã
aponta para o poema andreseniano e, talvez, para o fato de o bairro
do Leblon situar-se na zona sul do Rio de Janeiro, tem em Sophia
grande força: “vinda do sul”, na direção oposta à das grandes nave-
gações, é possível à poeta, num poema de Navegações, rever a cidade
visual e historicamente, com uma mirada que lembra a do Álvaro de
Campos que se sente “Estrangeiro aqui”, na “Lisbon revisited”,
“como em toda a parte” (1999, p. 148). Mas, em Sophia, há fé na
língua poética, algo que no Campos citado já terá deixado de existir,
ainda que “Lisboa”, para a autora de Mar novo, seja “cruelmente
construída ao longo de sua própria ausência” (1991, p. 247): a cidade
perdeu-se de si própria em muitas derivas históricas cruéis, o que a
impede de ter qualquer lisura e a situa num fecundo cruzamento de
luz e sombra.
Já o pouco sombrio e, portanto, nada andreseniano poema de
Eucanaã mimetiza, mesmo que involuntariamente, uma perspectiva-
ção previsível e excessivamente solar de Rio de Janeiro, assim como
boa parte das produções simbólicas que têm essa cidade como tema.
Contraexemplos seriam possíveis, mas boa parte deles investiria num
contrário que me sabe também óbvio, quase tolo: a cidade da miséria,
dona de uma contradição que só é contradição em virtude da eviden-

* Esta nota é apenas para ressaltar que a edição portuguesa de outro livro de Eucanaã,
Desassombro (Quasi, 2001), tem prefácio de Gastão Cruz.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 97

te e turística beleza que caracteriza o lugar. No poema de Eucanaã


Ferraz, tal benfazejo aspecto afirma-se num metonímico “Leblon”
necessariamente “bom”, onde a vida é “leve” como um doce passeio
de “táxi”. Insisto: mesmo quando denunciada como farsa, ou, ao me-
nos, como máscara de outra realidade, lá está a beleza do Rio de Ja-
neiro, seu encanto, o que há, como escreveu Eucanaã, de “bom” – e o
Rio continua lindo demais, poetizado de menos.
Não em “Luz do Leblon”, poema de Rua de Portugal (2002) em
que não se celebra o fato de o Rio de Janeiro turístico ser “bom” e ter
calor mesmo no inverno, mas isso, o calor sobretudo, ser uma espécie
de erro. Eu, que não aprecio calor e festejo intimamente os pequenos
frios que se dispõem aos habitantes da cidade que abrigou a família
real portuguesa no começo do século XIX, festejo também a percep-
ção gastoniana em ambos os poemas citados*. Num deles, o vocábulo
final é “falésia”: mais que o nome de um tipo de costa, metáfora viva
de perigo e atrito – sei disso porque conheço o poema de abertura de
Escarpas, “Escarpas”, de que cito o fecho: “Tantos vieram/ mudar seu
ferro em erro, é de viver/ e morrer que se trata, ferro em ferro” (2010,
p. 9). Esse Rio de Janeiro, portanto, é o das falésias, das escarpas, de
“pedra” que “espreita” e “ruas” in extremis.
E é o Rio de Janeiro, repiso, do erro. Gastão, dentro da vida, a
minha, é mestre em Pessanha, e “Luz do Leblon” me auxilia a ler
“Floriram por engano as rosas bravas/ No Inverno: veio o vento des-
folhá-las/ Em que cismas, meu bem? Por que me calas/ As vozes com
que há pouco me enganavas?”** (2009, p. 76): há um erro no mundo,
no enfrentamento do mundo e na própria linguagem. O erro: o “in-
verno” é “quente”, ou, noutras palavras, “O sol é grande, caem coa
calma as aves/ do tempo em tal sazão, que soe ser fria”: “qual é tal
coração que” “confia” (1942, p. 318) no tempo e na cidade? Lendo
melhor Sá de Miranda com o maneirista Gastão, “amamos/ a incerte-

* O farense Gastão Cruz, ao contrário, não aprecia frio, gosta de sol, calor e praia.
** Gastão dialoga diretamente com esse poema em “Um conto” e “Atravessando o Alen-
tejo”, ambos de A moeda do tempo.
98 POESIA 61 HOJE

za” e dizemos sem medo, pois no erro e na errância (é um poeta es-


trangeiro a falar do Rio, mas quando deixamos de ser estrangeiros
dentro da vida e da poesia?), o nome do bairro e da “sazão”, já que o
“verão do Leblon nega o seu/ nome” e a nós cabe o luminoso escon-
derijo dos versos e da urbe, agora sim, revista, revisited.
“O mar retrata o ávido/ cheiro do corpo o aroma a/ sangue”; um
poema de A doença se conclui com “(...) o gosto/ da tarde o sangue a
mentira/ dir-me-ás depois/ se os pude esquecer” (2009, p. 63). O livro
anterior, Hematoma (1961), ajuda-me, para além de ler Pessanha e Sá
de Miranda, a perceber melhor o que seja a poesia:

Um verso é uma zona proibida


zero prego tabu o sol nos dentes
a zona é uma voz intrometida
as pessoas são vozes doentes

Também do chão ascendeu o ciclista


também sol também água também
pessoas a vogar no chão da vida
também sombras cuspidas por dentro

e o corpo que vem a palavra que parte


o sorriso das sombras pregos húmidos
e a vida que sobe do chão ácido

também a noite súbita e confusa


as ároves as árvores as árvores
também o corpo num lugar diurno (2009, p. 43)

Uma das seções de A doença intitula-se “A leitura”, o que me


remete a “Luz do Leblon” em virtude de aquele poema ser efetiva
leitura de mundo, atenta e, felizmente, estrangeira – não o fosse, tal-
vez caísse na armadilha que prendeu Eucanaã Ferraz. É hora de ir
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 99

além na ideia de estrangeiro, etimologicamente ligada ao que é de


fora: “Dentro da vida”, fora dum à vontade perigoso em assuntos de
poesia e de existência mesma. Se Gastão me ensina, em versos, muita
coisa, estranheza semelhante à que caracteriza “Luz do Leblon” foi-
-me dita pelo próprio poeta, quando de nosso primeiro encontro. Fui
entrevistá-lo para certa revista feita por estudantes de Letras, e, após
a conversa literária, disse-me ele que lhe surpreendia o fato de uma
cidade como o Rio de Janeiro tem mar tão à mão e tão perto do ur-
bano gris. Se eu for adiante, volto ao segundo ato, mas devo ficar no
terceiro: a estranheza da cidade é exposta em versos estranhados,
logo estranhos, e por aí sigo, com gastoniano contributo, a relacio-
nar-me com poesia (e não só) pelo viés do estranhamento.
Na entrevista citada*, por exemplo, estranhei o poeta ter tecido
críticas severas a certa recente poesia feita em Portugal, cujo modelo,
segundo ele, é a antologia poetas sem qualidades. Estranhado, fui
imediatamente ler o volume, e desde então já escrevi diversas páginas
sobre alguns desses poetas. Estranhamento é coisa que tento ensinar
a meus alunos, que, em certos casos, ainda tentam traduzir poesia,
não para outros idiomas, mas para a tacanha linguagem comum. Eles
se aproximam do entendimento da intraduzibilidade da poesia se
conseguem lidar com o verso de abertura do soneto: “Um verso é
uma zona proibida”, meu ato terceiro. Por quê? Porque é zona cerra-
da, no que um simbólico cerramento possui de autonomia. “Um ver-
so”, portanto, “é uma zona” autônoma porque absoluta.
É assim e não é assim, porque a “zona” é absoluta também num
viés menos inteiro, menos romântico (penso de novo no real absoluto
segundo românticos alemães) e mais politicamente opressor: absolu-
to, autoritário é o regime que cerca o Gastão dos anos de 1960, e
política será a dicção dessa poesia. Além disso, a “zona” autônoma se
suja, pois se mistura a outras zonas mundanas – o poema se vê em

* Editada virtualmente, a entrevista pode ser lida em http://www.maxwell.lambda.ele.


puc-rio.br/6190/6190.PDFXXvmi=K0uD0RCN9i4TNHRPbVRWHAS33PCTWroIrUlr
MZgVhlQ63IVfFOcmp5qsU3nSuMBX
100 POESIA 61 HOJE

relação com o mundo, politicamente falando, humanamente falando,


e sua autonomia está sempre ameaçada. Disse que certa seção de A
doença intitula-se “A leitura”, e fi-lo em virtude de “Um verso é uma
zona proibida” propiciar o entendimento de que o ato de ler possui
severa ambiguidade: é o que impede o poema de ser puro e, ao mesmo
tempo, o que lhe dá existência. Nisso, uma lição que um poeta como
Gastão Cruz pode oferecer a estudantes de Letras, da ordem da leitu-
ra e da exigida criatividade desse ato: se “quem lê” (1993, p. 104) é
quem sente, no dizer pessoano, “quem lê” é “quem” cria a impureza
do poema, pois o lê e, lendo-o, retira-o de uma solitária estabilidade.
“Um verso é uma zona proibida” lembra-me certo poema de Car-
los de Oliveira, a parte 2 das “Odes” de Mãe pobre: “Pureza experiente
é ser-se forte/ mas a impiedade cabe bem na guerra;/ para sempre dobe
o tempo os ciclos da morte/ no tear que tece a translação da terra”
(2003, p. 46). De que “guerra” se fala? Da que a poesia luta contra a
opressão, venha do regime vigente ou de qualquer parte? Sim, e nessa,
ao menos para a parte adversária, a “impiedade cabe bem”. Mas tam-
bém da que a poesia luta contra a própria linguagem, e, aí, a ausência
de pureza, “a impiedade”, encontra-se dentro da prática poética, que
abrange escrita e leitura*. Não custa repetir, como um refrão: “Um
verso é uma zona proibida”, e “as pessoas são vozes doentes” porque,
enfim, são “pessoas”, imagens da morte vindoura do corpo e da falên-
cia que caracteriza toda linguagem, a poética inclusive – a poética es-
pecialmente, pois a esta, a falência, assim como o desmesurado êxito,
interessa, e sobre glórias e fracassos humanos interessa refletir.
E as “pessoas”, “vozes doentes”, são também imagens da vida,
da memória e de uma inexorabilidade anterior à leitura: a inexorabi-
lidade do tu. É n’A moeda do tempo que se encontra “Metáfora”,
magnífica exposição do que gente como eu pode chamar de
domingo:

* Se Gastão, em livro que não Hematoma, tem uma seção intitulada “A leitura”, Carlos
de Oliveira, em livro que não Mãe pobre, mas Pastoral, tem poema intitulado
“Leitura”.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 101

Escolho o silêncio assunto antigo para


falar deste domingo; descrevê-los
o silêncio o domingo será como
falar da escuridão e que metáfora
mais certa se as há certas, para a ínfima
luz própria metafórica do dia

A tua voz vem então como uma nave


a si mesma sulcar-se, na penumbra
tornando-se, não sei se mais igual
ou mais diversa do escuro sentido
do sentido, o tema interrompendo
do poema: o silêncio o domingo (2009, p. 334)

Gente como eu, neste caso, é quem costuma experimentar certa


melancolia aos domingos, dia de excepcional peso. Ato quarto: que
dia é esse? É, a um tempo, começo e fim, pois começo da semana e fim
do fim de semana. Dia de regresso e recolhimento, véspera da extro-
versão mal-humorada de segunda-feira. A “luz própria” do “domin-
go” é já metafórica, revela o poema circular, ele mesmo uma espécie
de “nave” que, ao regressar ao ponto de partida – “o tema” “do poe-
ma”, este “domingo” –, encontra-se modificado pela aventura domés-
tica e dominical. Em Crateras (2000), Gastão já dissera de domingo,
num poema que pertence a breve série fundada na instigante figura
da “avestruz” – cito o começo de “Numa rua da infância”: “A criança
passeia na cidade/ uma avestruz voraz segue os seus passos/ É um
domingo no outono os braços/ nadam nas montras como se a verda-
de// o mar de cinza fosse (...)” (2009, p. 243). Da ave à “infância” –
tema de outra breve seção informal começada precisamente por
“Numa rua da infância”* –, época da vida que jamais abandona o

* É mais preciso dizer que a série começa no poema anterior a este, “A avestruz, de novo,
ou o mal total”, em virtude de seu encerramento: “a avestruz pensante destroçada/ tal o
morto faisão à beira-estrada,// liberta da infância, o real total/ entende com a mente do
102 POESIA 61 HOJE

sujeito e lhe fornece boa parte de suas memórias, inclusive uma forte-
mente associada ao domingo; o poema seguinte da série chama-se
“Lava”: “Na minha infância o futebol saía/ de janelas funestas que se
abriam/ como crateras na cidade rasa” (2009, p. 244).
É domingo o dia clássico do futebol, manifestação humana que
Gastão Cruz não aprecia, ao contrário de mim, que, como Ruy Belo
e João Cabral de Melo Neto, sou ardoroso amante do jogo. O futebol
,sombriamente localizado, pela memória do sujeito, numa infância
cercada por “janelas funestas”, tem lúgubre aspecto na poesia gasto-
niana, sendo, inclusive, fornecedor de eficaz vocabulário funéreo em
outro poema de Crateras, “Sinal vermelho”. Minha infância também
foi marcada pelas narrações futebolísticas radiofônicas. Diversas ve-
zes, a criança que eu fui perguntou a porteiros, em dominicais digres-
sões pela cidade, o resultado provisório da partida em andamento,
sobretudo quando meu time, o Vasco da Gama, jogava. Nessas ocasi-
ões precisas, eu não podia escolher onde estar (havia eventualmente o
aniversário da tia, a visita à avó, o compromisso familiar); se pudesse,
escolheria estar no local do jogo. O ambiente do estádio, quando eu
me via longe dele, figurava-se-me encantamento inacessado – bem,
não menos fascinante o era também nas muitíssimas vezes em que eu,
infante, lá estava, acompanhado de meu pai, tendo a simpatia sabia-

seu mal” (2009, p. 243). Em rigor, o único poema em que a “avestruz” aparece sem a
nomeação da infância é “A avestruz”, enquanto a “infância” segue sem a nomeação da
ave em outros poemas, até “Lembrança da ria de Faro”, que da infância ruma a cantar a
“ria” e é o primeiro de uma série de barcarolas – paro por aqui o elenco das pequenas
séries de Crateras, pois meu assunto agora é o domingo. No entanto, algo me salta aos
olhos: o “corpo”, em “O Réquiem de Fauré”, d’A moeda do tempo, é o “real total”
(2009, p. 345) definição, no poema de Crateras que principia esta nota, de “infância”. O
leitor de Gastão Cruz fica obrigado a considerar a ausência de transcendentalismo reden-
tor nessa poética, assim como a rever aí um romantismo excessivamente totalizante.
Outra abordagem desse tópico me sabe importante agora, o dístico “Depois da fala”, de
Referentes (1983): “O criador de imagens arrepende-se/ no líquido lugar da realidade”
(2009, p. 168). Entendendo “criador de imagens” inclusive como poeta, a relação desse
tipo de indivíduo com o “real” ou a “realidade”, não é minimamente dócil, e sequer o
será a própria “realidade”, coisa que escapa à fala e a seu “depois”.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 103

mente futeboleira de minha mãe. Quiçá em virtude da associação que


minha memória faz entre futebol e rádio, ainda hoje costumo ouvir a
partida que se encontra diante de meus olhos, especialmente quando
vou ao campo desacompanhado.
Todavia, os domingos de mais grossa espessura não tinham fute-
bol nem porteiros, mas família, excessivas sombras e, muitas vezes, a
torturante e autoritária presença de algum programa televisivo domini-
cal. Com Gastão, posso dizer que nenhuma memória, no caso de gente
sensível a esse dia, está livre da melancolia e da infância. Domingos se
atravessam, numa espécie de cumprimento agônico – após o domingo
é segunda, dia cuja face é marcada pelas rugas das obrigações laborais,
coisa que o ser humano, desde a rebeldia que mora em seu recôndito,
costuma desapreciar sem silêncio nem revolução. Nos fins de tarde, os
domingos costumam ser ruidosos como as multidões que progressiva-
mente deixam os estádios de futebol*. Horas depois, o silêncio impõe-
-se sobre o começo de tumultuados sonos, precários porque resultantes
de um ilusório fim de semana e cheios já de um “cansaço” “nascente
como o sol” (2009, p. 37), como diz o verso final de um poema de A
morte percutiva, primeiro livro de Gastão, plaquette de Poesia 61.
“Escolho o silêncio assunto antigo para/ falar deste domingo
(...)”: a poesia acha-se diante de uma ambígua realidade, entre a fala
e o silêncio – mas o silêncio não é um dos máximos objetivos da po-
esia? Pelo “silêncio” chega-se à descrição, mas o poema é roubado em
seus assuntos, “o silêncio o domingo”, por uma “voz”, a “tua”, que

* É inevitável trazer ao texto “Há domingos assim”, comovente poema de Ruy Belo
presente em Toda a terra (1976): “Há domingos em que o nevoeiro poisa múltiplos pés
miúdos no mar/ e os múltimplos pés miúdos que poisa já de si no mar/ se vao ainda des-
vanecendo multiplicando minuto a minuto/ e o nevoeiro é uma vasta mão no mar e al-
gumas casas brancas da vila ao longe cada vez mais longe/ que há pouco na névoa eram
ainda mais brancas alvejavam visivelmente mais/ se perdem também agora na imensa
superfície indecisa levemente móvel/ infinitamente divisível boiando no espaço dissolven-
do tudo até mesmo o mar” (1990, p. 172, 173). Um experimento que se dedicasse a in-
vestigar o domingo na literatura portuguesa não poderia deixar de pôr em perspectiva
“Metáfora” e “Há domingos assim”, pois a melancolia que há em ambos não deixa de,
no mais antigo, conviver com certa beleza que, para o poema, só o domingo tem.
104 POESIA 61 HOJE

se caracteriza por ser um escurecimento em abismo – a falta de luz é


traço já, metafórico, do “dia” de “domingo”; a escuridão é própria
também do poema, como leio em “No céu negro”, de Escarpas: “Não
é usando o adjectivo escuro/ ou obscuro/ que o poema se escurece//
ele possui a sua escuridão/ uma noite que/ o esconde e molha no céu
negro” (2010, p. 79); para além de tudo, em ponto profundo do abî-
me, a memória de um “tu” falante que intensifica a melancolia domi-
nical e, posso dizer, só comparece “como nave” ao poema em virtude
de a penumbrosa realidade do domingo ser porosa. Digo de outro
modo: “A tua voz então vem como nave/ a si mesma sulcar-se, na
penumbra/ tornando-se, não sei se mais igual/ ou mais diversa do es-
curo sentido/ do sentido, o tema interrompendo/ do poema: o silêncio
o domingo”; em dia tão pouco claro, interrupções memoriais ou fan-
tasmagóricas são mais possíveis que em dias iluminados por tarefas
banais e rotinas que divorciam o indivíduo de si próprio, ou seja, de
sua memória e de seus fantasmas, seus reais totais.
Há, logo, certa generosidade nos domingos: dimensionar o tem-
po de maneira a favorecer uma autopercepção de natureza criativa, o
que não favorece muito o repouso humano que se origina no bíblico
descanso de Deus. Afinal, não é na relação com o mais fundo, com o
abîme em vários sentidos, que o poeta descansa. Nem é na relação
com outros poetas que nós, os amantes da poesia, descansamos. O
quinto ato deste texto diz diretamente da relação em palavras que
venho estabelecendo com Gastão desde meu primeiro livro de poe-
mas, de título A. Aí, um poema que chamou a atenção de Jorge Fer-
nandes da Silveira e levou o mestre a pensar nessa “máquina de ema-
ranhar imagens, poesia, cujo processo de simultaneidade entre o lido
e o vivido enquadra o poema”, que se torna, então, “instrumento que
desfoca o real e dá sentido de realidade à representação imaginária
que se tem das coisas e das pessoas. O poema chama-se ‘Fotografada
entrevista de Gastão Cruz’ (...)”. (2008, p. 75).
Não o transcrevo, apenas acuso sua existência. Em meu segundo
livro, Telefunken, dedico “Escassez” a Gastão, mas agora saliento um
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 105

dos dois intertextos com o poeta que figuram em Pulsatilla, de 2011.


Gastão dentro da vida, a minha, exige revelar como quinto ato, ato
adicional, sobra, o fato de poemas meus terem diretamente que ver
com poemas dele. O exemplo que darei, darei em virtude de um aci-
dente notável:

CORAZONADA

Deito um peixe no eixo do meu peito


diz bastante: é verso do
Gastão, paráfrase, e peixe é
sempre afora há pouco
peixe na metáfora ou na
imagem de um peixe no eixo do
coração de algum poeta
vivo
e como pode um peixe vivo viver
dentro de umas
frases de uns
sentidos? De
cor, de cor só escrever da poesia do
Gastão enquanto escrevo e um
peixe
não
um bicho de outra forma escandaliza o
ensaio pois um peixe no meu
peito
ou
um bicho de bolinhas negras corpo
cinza toca o tórax do crítico no
eixo da minha
camiseta: é um peixe é um som que
escapa ao pano e voa
106 POESIA 61 HOJE

se é que voa
à tela onde as palavras se embaralham e meus
olhos são
do bicho
a imagem de um poema posto à prova (2011, p. 12)

Não tem o mais remoto sentido comentar detidamente um poe-


ma de minha autoria. Prefiro citar sua circunstância, ainda que ela
seja legível nos versos: escrevia eu o prefácio a Os poemas quando, de
repente, notei um animal sobre meu peito, perto de onde fica, inter-
namente, a víscera chamada coração. Lembrei-me de “Paráfrase” (Te-
oria da fala, 1972), cuja abertura, “Deito um peixe no eixo do meu
peito”, é verso-chave que explora ao limite o som, traço diferenciador
da linguagem poética, e o sentido forjado pela aliança entre a explo-
ração sonora e a metáfora, ou a imagem. Ler de “um peixe” não é
deparar significados escorregando rumo a um sentido que, por sua
vez, também será escorregadio?
Não posso comentar poema meu. Deixo-o, para brincar com a
brincadeira de Luiza Neto Jorge com um dito fixado no idioma, como
“Meia palavra a bom entendedor” (2001, p. 254) apenas para encer-
rar, do modo mais autobiográfico possível (é o gráfico, obviamente,
que ressalto), o quanto a poesia de Gastão está dentro da vida, a mi-
nha. Poemas acompanham-me em experiências com a morte e a bele-
za, com o descompasso, a melancolia, a aspereza e o amor. Esse diá-
fano muro de palavras alheias que me separa do mundo, que me une
ao mundo, de nada me protege, mesmo porque representa, por vezes,
a duplicação da “dor” – para além do fingimento, Pessoa, em “Autop-
sicografia”, diz da intimidade do poetar, tanto para o “poeta” como
para quem lê, com a “dor” (1993, p. 104) mesma. Senti-la em senti-
dos múltiplos é visão de mundo e porta de apreensão do inapreensível
mundo. Dos poemas que estão sempre comigo na finita aventura de
viver, não são poucos os que foram assinados por Gastão Cruz.
GASTÃO DENTRO DA VIDA, A MINHA, EM QUATRO OU CINCO ATOS 107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRESEN, Sophia de Melo Breyner. Obra poética III. Lisboa: Caminho,


1991.
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FERRAZ, Eucanaã. Rua do mundo. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006.
JORGE, Luiza Neto. Poesia 1960 - 1989. Organização e prefácio de Fernan-
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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
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de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. O Tejo é um rio controverso. Rio de Janeiro:
7Letras, 2008.
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA
Raquel Menezes*

Um sinal qualquer
um desatino
uma amargura incerta que desata
Maria Teresa Horta, “Destino”

“D ocemente a rosa do joelho”, é o verso inicial do poema de Maria Teresa


Horta (Lisboa, em 20 de maio de 1937) elegido aqui como texto de abertu-
ra, por dar o tom sensual e erótico que figura em boa parte da obra da poeta (de) Mi-
nha senhora de mim. Cito o poema, publicado em 2006 na antologia Cem poemas
– apresentada por Ida Alves:

ROSA DO JOELHO

Docemente a rosa do joelho


o narciso oposto
na cintura

* Mestre em Literatura Portuguesa/ UFRJ.


TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA 109

a malva inclinada mansamente


onde fica dobada
e insegura

Em seguida há a mata, a moita


o arbusto lento
onde a boca poisa e depois
mergulha

lugar onde o torpor se torna


mais ardente
e o odor sedento é de cereja
pura (p.204)*

As referências ao sexo feminino, antecedido por formas sinuosa-


mente misteriosas, que têm várias possibilidades de observação de
suas reentrâncias, tal como uma “rosa” ou um “joelho”, insinuam o
tom sensorialmente sexual do poema. A objetividade do vocábulo
“cintura” é submetida a um fino e substancial enlace com metáforas
recorrentemente associadas ao sexo da mulher: “mata”, “moita”,
“arbusto”, que recebe uma “boca” que “poisa” e “mergulha” em bus-
ca de um “torpor” “ardente”. Esta proposta, a radicalização do sen-
sorial, nos projeta a um “lugar onde o torpor se torna/ mais ardente”,
o poema. É-nos oferecido um gozo textual, que nos alça a um lugar
instável de reflexão e percepção. É como se as metáforas para o sexo
feminino figurassem também como códigos de sedução no jogo
poético-linguístico.
Gesto sedutor caro a esta poetisa, desde o ano de 61, mais que
caro, topos de labuta em que imagens se filiam e se repetem na cons-
trução de uma significação densa. Para Jorge Fernandes da Silveira, a

* Os poemas deste texto são citados da antologia Cem poemas (Rio de Janeiro: 7Letras,
2006), por isso terão apenas o número da página em sua referência.
110 POESIA 61 HOJE

poesia de MTH “revela um contacto íntimo com o prazer do trabalho


de criação” (1986, p.184). E assim, as palavras são trabalhadas com
o fulgor de quem precisa falar e superar qualquer tipo de censura; são
a “arma de boca” de MTH, que em Tatuagem, escreve, com suas
“mãos misturadas”, o mês de “Outubro”:

OUTUBRO

Estas noites de mar


Incrustadas
de luz

ou estes olhos
de polos
distanciados no nada

Este ódio de chuva

este dia montanha

Esta arma de boca


ou tempo encontrado
com relógios
na montra

Este ardor de palavras


no perfil
das bocas

este grito
que tenho
nas mãos misturadas
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA 111

Ou mãos misturadas
que tenho
de outubri
no sabor picante
sentido das casas (p.28)

Nestes versos identificamos o que afirma Jorge Fernandes da Sil-


veira, autor de Portugal maio de Poesia 61; MTH é

possuidora de um domínio imagístico invulgar, (...) cons-


trói uma poesia de difícil leitura. À primeira vista, o leitor
sente-se incapaz de coordenar o intenso ritmo de pala-
vras, de imagens sobre imagens, como se fosse uma espé-
cie de música para além dos limites da pauta. Todavia, a
poesia não é pura arte do significante; a música pode-nos
servir de termo de comparação, mas não nos afasta da
tentativa de buscar nexos semânticos que promovam o
sentido do texto. Tatuagem é um livro que se insubordina
contra a ordem das relações sociais e as formas de opres-
são na linguagem. (1986, p.183)

A partir do que nos diz Silveira, observamos um “Outubro”


desdobrado em imagens. E assim, ao invés de representar “Outubro”
– remissivo ao da revolução de 1917 e, especialmente, ao da imagéti-
ca obra de Eisenstein –, Maria Teresa Horta escolhe o signo “Outu-
bro” e desdobra-o, o que dá origem às alternâncias que movem o
poema, pois “Esta arma de boca/ ou tempo encontrado/ com relógios/
na montra/ (...)/ Ou mãos misturadas/ que tenho/ de outubro/ no sa-
bor picante/ sentido nas casas” [grifo meu]. “Ou-tubro” vai e vem
dos/nos versos marcados ainda pelo eco significante nas/das palavras:
“estas”, “incrustadas”, “luz”, “olhos”, “polos”. E, na ultima estofe,
em que se lê “Ou mãos misturadas”, a relação tempo e espaço dá-se,
pois a mistura das mãos “que tenho/ de outubro” (tempo) também se
misturam “no sabor picante/ sentido nas casas” (espaço).
112 POESIA 61 HOJE

O que se nota no poema é um acentuado brilho no trabalho com


os campos semânticos, em que os significantes são rasurados e inscri-
tos por seus próprios significados: “palavra de relevo agudo” (p. 20).
Destaca-se nesta poética uma recorrência de jogos eróticos comunga-
dos com um senso estético e político, como se toda e qualquer subor-
dinação cível, seja feminina ou masculina, fosse uma não-hipótese de
construção de sentido.
Palavras que são colocadas em favor de uma ideologia erótico-
-política, palavras que em um espelho inicial principiam discursos,
debates, posturas: um éthos muito caro à poeta, à poetisa. À poesia.
Palavras que se repetem e acentuam uma variada estimulação de sen-
tidos, ritmos, formas. O pronome demonstrativo incita uma certeza
discursiva que vai sendo desdobrada, como um papiro que deve ser
bem cuidado para não se desfazer, revelando o vocábulo que dá título
ao poema. “Outubro”, mês do ano, tempo de revolução, de espaço e
de escrita, por meio das “mãos misturadas”, é descrito como um tem-
po poético para MTH. Mas é importante lembrar que há outro “Tem-
po” para a poeta. Em Cidadelas submersas, também de 61, “É o tem-
po da mentira/ É o tempo curvo de matar// a morte// É o tempo
exacto/ de estar exacta e nua// nua e longa/ na distância das frontei-
ras/ do sangue/ com cidades cortadas pelo meio” (p. 29).
Maria Teresa Horta tem em sua árvore genealógica, pelo lado
materno, uma respeitada família da alta aristocracia portuguesa. A
poeta de “insubordinação” (p. 20) tem entre os seus antepassados a
célebre poetisa Marquesa de Alorna, cuja vida e obra é tema de um
romance. MTH, poeta de formação acadêmica, estudou na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa. Personagem ativa politicamen-
te, dedicou-se ao cineclubismo como dirigente do ABC Cine-Clube,
ao jornalismo e à luta feminista, tendo feito parte do Movimento
Feminista de Portugal juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria
Velho da Costa, parceiras, nos anos 1970, na publicação do polêmico
livro Novas Cartas Portuguesas. Sua estória e a história de Portugal
se entrecruzam quando a poeta, ao lado das outras duas Marias, pu-
blica as citadas Novas cartas que, apesar de muito portuguesas, são
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA 113

tidas como imorais e por isso censuradas, com direito a mandato de


prisão para as autoras.
Na prosa e na poesia, as escolhas poéticas de MTH muitas vezes
a qualificam como poeta do erotismo ou como escritora feminista,
como observa Ida Alves: a autora “não cessa de afirmar uma história
de luta pela afirmação do corpo numa sociedade fechada e hierarqui-
zada como a portuguesa, fortemente cerceada em décadas de salazaris-
mo” (2006, p.13). Fazer parte de Poesia 61 é um gesto de entendimen-
to das necessidades (poéticas) de um tempo em que o único incentivo
é à interdição artística. Os poetas de Poesia 61 não formavam um
“grupo poético”, mas “uma coincidência literária”, como afirma Gas-
tão Cruz, na altura do lançamento de Rua de Portugal (2002). O mes-
mo Gastão Cruz, já em 2009, faz uma bela homenagem a sua parceira
editorial no Jornal de Letras cujo tema foi MTH. No periódico, tendo
em vista o primeiro livro da autora, em um belíssimo texto intitulado
merecida e afetivamente “Uma poesia nova”, afirma Gastão:

a publicação, em 1960, do livro Espelho inicial, de Maria


Teresa Horta, foi um acontecimento de cujos significados
e importância não haverá hoje grande noção, curta como
é a memória e a informação de muitos dos que à poesia
portuguesa algum interesse dedicam.(2009, p.12)

No mesmo jornal em que Gastão escreve “Uma nova poesia”,


Ana Luisa Amaral, no texto “Harmonia e insubordinação”, refere-se
à forte componente erótica na poesia de Maria Teresa Horta, plena de
“atenção dada à mulher e ao corpo feminino, ao desejo e à paixão”
(2009, p.13). Ainda nas palavras de Ana Luisa Amaral,

a própria autora (Maria Teresa Horta), em entrevistas e


depoimentos, tem salientado essa dimensão do feminino,
ligando-a à acção cívica em prol do feminino e dos direi-
tos das mulheres. Porém, sendo isso verdade, e servindo-
114 POESIA 61 HOJE

-se a autora amiudamente de temáticas e de um léxico


geralmente associados ao que se considera ser o universo
das mulheres, não será demais salientar que a sua atenção
se faz a partir de um olhar que, embora se firmando no
ser mulher, dele extrapola, alargando-se ao mais ampla-
mente humano. (2009, p.13)

No poema “Segredo”, publicado no livro Minha senhora de mim, de


1972, observamos a temática erótica feminina em um discurso de sexuali-
dade aberta, refletora de um gesto político:

Não contes do meu


vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os


cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o


anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu


novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço


com eles
a fim de te ouvir gritar (p. 83)
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA 115

O “Segredo” de Maria Teresa Horta é o encontro amoroso de


um ponto de vista feminino numa tradição amorosa portuguesa ma-
joritariamente masculina – não obstante as cantigas de amigo, cujos
autores, no entanto, eram homens. Um feminino atuante se encontra,
por exemplo, em Florbela Espanca, autora do famoso verso “Eu que-
ro amar amar perdidamente” (1997, p. 232). O “Segredo” de MTH é
uma forma de contestação do moralismo que sufocava Portugal, livre
do regime salazarista apenas dois anos depois, em abril de 1974. Nes-
se espaço secreto, porque ainda silenciado por um regime de exceção
e por uma moral machista, Maria Teresa Horta corre “os cortinados”
da tradicional casa portuguesa que já se encaminhava para a destrui-
ção, pois a mulher lusitana preparava-se para largar o “novelo” e a
“roca de fiar” – sintagmas da ordem do feminino domesticado. E
ainda: para esta mulher ativa o “anel” que vem ao caso (e não à casa)
é o que se coloca ao “redor” do “pescoço” do amado, com as “longas
pernas” da amante.; não mais, portanto, o de um compromisso insti-
tucionalizado pelas leis da igreja, ou seja, a aliança matrimonial, sím-
bolo da união marido e mulher, que não necessariamente são amado-
res, no sentido barthesiano do termo. Junto com as cortinas caem as
“sombras”, deixando a esperada nova condição feminina às claras,
“a fim de” “ouvir” gritos de prazer (e porque não de subordinação
sexual?) do amante, ser amado.
No prefácio da antologia Cem poemas [Antologia pessoal]+ 22
inéditos, Ida Aves salienta a insubmissão e o erotismo feminino. Nas
palavras da ensaísta,

à voz inaugural de Maria Teresa Horta unem-se assim


vozes de outras poetas portuguesas, citando apenas três
nomes como Luiza Neto Jorge, sua contemporânea, com
obra poética das mais instigantes a ser conhecida também
entre nós, Ana Luísa Amaral e Adília Lopes, vozes mais
recentes, inquietas e insubmissas, que constituem espaços
outros de dizer o mundo a partir da perspectiva de um
116 POESIA 61 HOJE

sujeito mulher que rompe, desvela, subverte ordens, des-


loca espaços e visões, para escrever uma outra forma de
ser “senhora de mim”. (2006, p.15)

Ou seja, estas senhoras de si, juntamente com MTH, radicalizam


a ideia de subjetivação feminina, sem necessariamente implodir qual-
quer manifestação masculina, desde que, claro, esta não seja machista
e conservadora. As senhoras inscrevem em seus textos dicções origi-
nalmente femininas, sagazes, e, com isso, registram e assinalam o Por-
tugal moderno e contemporâneo – como deve ser, diga-se de passa-
gem – em seus corpora poéticos. Isto pode ser observado em um
belíssimo trecho das Novas cartas portuguesas, em que os três sujei-
tos femininos pensam o amor, a transgressão, a paixão e o corpo (no)
feminino:

Pensemos o amor no seu jogo através do contentamento:


as palavras uma por uma no bordado empolgante dos
sentimentos e dos gestos. A mão sobre o papel traça com
precisão as ideias nas cartas que, mais do que para o ou-
tro, escrevemos para nosso próprio alimento: o doce ali-
mento da ternura, da invenção do passado ou o envene-
namento da acusação e da vingança; elas próprias
principais elementos da paixão na reconstrução do nosso
corpo sempre pronto a ceder à emoção inventada, mas
não falsa. (1974, p.118 )

O livro foi escrito a seis mãos, mas, tendo como premissa o que
afirma Maria de Lourdes Pintasilgo, no prefácio da edição de 1974,
este livro, as Novas cartas, é de autoria de uma voz una, da qual faz
parte decisiva a de Maria Teresa Horta. Afirmo o que afirmo em vir-
tude da tensão entre escrita e erotismo que encontramos na poeta de
“Segredo” – poema no qual, diga-se de passagem, a tensão nos é apre-
sentada –, pois em “Português”, poema de Vozes e olhares do femini-
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA 117

no, de 2001, “Se a língua ganha/ a dimensão da escrita”, “a escrita


ganha a dimensão do mundo” (p. 171). Desse modo, nas Novas Car-
tas, assim como nas que dão origem a estas, a escrita é feita para si
própria. Mariana Alcoforado, no século XVIII, escreveu cartas ao
Marques de Chamily para seu próprio prazer, pois, como afirmaram
as três Marias, reconstruindo o corpo da escrita eroticamente, “a mão
sobre o papel traça com precisão as ideias nas cartas que, mais do que
para o outro, escrevemos para nosso próprio alimento”, como num
gesto de (re)“invenção do passado”. (1974, p. 67).
Sozinha, Maria Teresa Horta sempre fizera isso, (re)inventar o
passado, e continuaria a fazer, em seu “Destino”, poema de 1997,
quando se vê em sessões de quimioterapia para vencer um câncer –
como afirma no já referido jornal que a homenageia pela publicação
da sua antologia Poesia toda, lançada pela Dom Quixote. Poema que
repete a estrofe inicial “O lugar destes sítios/ chama-se destino”,
como se fosse o refrão de um poema em que temas como errância
“desgraçada”, muito afim à de Camões, ou seja, canônica e tradicio-
nal, é uma constante, criando uma gramática de escrita e “Destino”,
poema com o qual termino este texto:

O lugar destes sítios


chama-se destino

Com o seu enorme peso


de pedras e de visco

Raramente se escutam as asas


e o vinho
ganha no corpo a morbidez do linho

Mas quem empunha o sabre


do destino?
Quem escuta a sua dor
118 POESIA 61 HOJE

não desatada?

Quem pensa que a torpeza


de um sonho de adivinho
se iguala à túnica branca
de um anjo que voava?

Este é o silêncio sequer o mais veloz


que se enrosca febril
em sua capa

Um abismo obscuro
que dormia
quando a saudade não tinha a ver com nada

O lugar destes sítios


chama-se destino

Com os olhos tapados e uma espada


embainhada não no desatino
mas antes, sim, mergulhada em lágrimas

Quem diz que é bom


lembrar o que se andou
numa qualquer infância desgraçada?

Não sei se o destino se inventou


se simplesmente trepou
galgando a sua água

Deixa pois que invoque


o meu destino
que é apenas um esvoaçar de asa
TEMPOS DE MARIA TERESA HORTA 119

Um sinal qualquer
um desatino
uma amargura incerta que desata

Um dragão poisado em cada ombro?


A mão que encaminhou o que é desfeito?

Uma dúvida cansada de quem chega


com uma chaga aberta no seu peito (p. 142, 143)

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artes e ideias. Ano XXIX/ n°1004. p. 12-18.
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XXIX/ n°1004. p. 12-18.
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HORTA, Maria Teresa. Cem poemas [antologia pessoal] + 22 inéditos. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2006.
PINTASILGO, Maria de Lurdes. Pré-prefácio (leitura breve por excesso de
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COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas. 3. ed. Lisboa: Mo-
raes, 1980.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Portugal maio de poesia 61. Lisboa: Im-
prensa Nacional – Casa da Moeda, 1986.
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU
ÔMEGA DA POESIA
Simone Caputo Gomes*

E fica o pó das folhas nas retinas.


Gastão Cruz

E ste breve texto é, antes de tudo, homenagem. A um Poeta Maior,


Gastão Cruz, pelas razões várias que adiante explanarei. E a um
Mestre da leitura de poesia que tem encantado gerações, de uma das
quais me orgulho de fazer parte. Pela mão de Jorge Fernandes da Sil-
veira fui apresentada em 1972, graduanda em Letras, à Poesia 61 e,
especialmente, à poesia de Gastão Cruz. No decurso de minha traje-
tória, pude verticalizar até o Doutorado, ainda envolvida pela mestria
encantatória das aulas com Jorge, a leitura da obra poética do (até
aquela data, anos oitenta do século XX) pouquíssimo conhecido e
raramente estudado escritor Gastão Cruz. Mais tarde, em contato
facilitado por Jorge, tive o privilégio de travar correspondência com

* Professora de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/ USP


GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 121

Gastão. Em 1988, com a defesa da tese de doutorado Corpoacorpo:


análise da obra poética de Gastão Cruz, na PUC do Rio, consolidei
minha trajetória de leitora realizando o primeiro trabalho universitá-
rio, em âmbito internacional, a debruçar-se sobre a integralidade dos
textos até então publicados pelo autor.
Tocada indelevelmente pelo estilo jorgesilveriano de abordagem
poética, que imprimiu marcas à carreira de inúmeros outros leitores
brasileiros de poesia, lembro ainda o dia assinalado no tempo em
que, depois de defendida a tese, conheci o Autor Gastão Cruz – até
então concebido por mim como “Entidade produtora” de textos lite-
rários – e logrei então transmutá-lo, pela proximidade, em ser huma-
no, cada vez mais admirável, percepção que, passados tantos anos,
permanece e se apura. Naquele momento, pela mão do Poeta, que
atravessou o papel e o poema para forjar comigo uma outra escrita, a
da minha história real, conheci sua família, seus amigos, seus gostos,
seu trabalho em teatro e sua para-sempre amiga Fiama, a dama da
poesia que tanto enlevou Jorge desde os seus primeiros tempos de
Pós-Graduação e que, na paixão literária do Mestre, acabou por me
enredar com sua arte e sua doçura.
Anos mais tarde, pude retribuir a generosidade do Mestre con-
duzindo-o pela mão à Vivenda Azul, em Carcavelos (onde eu já havia
estado, levada por Gastão), para um chá com Fiama Hasse Pais Bran-
dão. Ver Jorge passear embevecido com a escritora de sua predileção
no habitat de sua infância e maturidade, já descrito em vários poe-
mas, transportou-me aos meus vinte anos, sempre aluna de Jorge Fer-
nandes da Silveira, a observar com semelhante enlevo a sintonia entre
o Mestre e seu objeto de estudo (Poeta agora transfigurada em Sujeito
de amizade e trocas). Tê-lo acompanhado e sabê-lo voltar feliz para o
Brasil com Cenas Vivas (e autografadas) nas mãos reporta-me àquele
singular momento de comoção que inundará a minha vida inteira,
semelhante ao de meu encontro com Gastão Cruz, entre temor (por
conhecer a agudeza de sua apurada crítica literária) e entusiasmo (por
conviver com o Poeta Maior).
122 POESIA 61 HOJE

Desses momentos inesquecíveis com o trio de ouro – Gastão,


Fiama e Jorge –, em que se uniram com as minhas as mãos criadoras
dos poetas de 61 (e de sempre) e a mão que me ajudou tantas vezes a
virar as folhas dos livros que lhes dedicavam textos, fixam-se imagens
guardadas na memória, que atingiram a minha vivência de leitura
poética com fortes e certeiros golpes e a conduziram a momentos
como o da escrita deste texto.
Gastão Cruz, um dos grandes mestres da poesia do tempo e da
mudança, como já o afirmei em várias releituras de sua obra, perpas-
sa e ultrapassa o seu tempo, assim como o nosso tempo. Na tese de
doutorado defendida nos anos oitenta eu já considerava a arte de
Gastão Cruz como “poética de transe” e de “trânsito” (2009, p. 154)*
temporal e simbólico, no rastro do título da antologia editada em
1992 (Transe), eco percutivo de poema de Órgão de luzes (1990).
Naquela altura, e apoiada pelas inúmeras referências e intertex-
tualidades demonstradas pelo poeta-criador-leitor de poesia, busquei
demonstrar que Gastão produz “poesia de cultura poética”, epíteto
que, como crítico, ele uma vez atribuíra à obra de Ruy Belo (1999b,
p. 111). Com base nessa proposta teórica apontada pelo próprio Gas-
tão e reafirmada anos depois – “Releio poemas, mudo-os de lugar”
(OP, p. 310) –, ressaltava como filão possível** para a abordagem de
sua poética a leitura dupla que esta suscita(va), especialmente no diá-
logo com textos maneiristas.
A temática de crise (existencial, política, social, estética) e de mu-
tação, a consciência obsedante da passagem do tempo e da inevitabi-
lidade da morte, a melancolia saturnina, o labirinto, a teia, o espelho,
o teatro, o caos, o deserto, as ruínas, o túmulo, assim como a utiliza-

* Conferir: “aves /como peixes/ transitam lentamente errando/ nas palavras” (Órgão de
luzes, p. 154 de Os poemas). A partir daqui, referiremos Os poemas (1960-2006), reu-
nião da obra, 2009, por meio da sigla OP, citando ao lado o título do livro em que se
insere cada texto.
** Manuel Gusmão, em 1990, na Introdução a Órgão de luzes, poesia reunida, ressalta os
ecos de Sá de Miranda e de Camões na obra cruciana como a expressão de uma afinidade
com componentes de atitude maneirista (1990, p. 17).
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 123

ção de imagens de oposição e contraste, de artifícios formais e estile-


mas maneiristas de manipulação da linguagem foram caminhos que
optei por percorrer, nos anos oitenta do século XX, para captar o
“transe” e o “trânsito” nos versos de Gastão Cruz, entendendo a
morte e o esquecimento como transes máximos: “O tema único é
enfim a morte” (OP, Repercussão, p. 324), corrobora a voz do
poeta.
Acrescento que a melancolia das épocas de crise, expressa em
tom elegíaco por escritores que dela tinham aguda consciência, per-
passa intertextualidades da poesia cruciana com Hölderlin, Keats,
Goethe, Rilke, além de Antero, Camões, Pessanha, Pessoa, entre ou-
tros, sintetizando o encontro entre a “constelação” saturnina e o pro-
cesso constitutivo da modernidade (BARRENTO, 1995, p. 163). A
peça lapidar da iconografia melancólica, a água-forte* “Melencolia I”
de Albrecht Dürer, paira sobre essa produção poética que se propõe
como “exercício de soluços” ou “verbalização do choro” (OP, As leis
do caos, p. 201). Em entrevista a Isabel Lucas, Gastão Cruz pontuava
motivações para sua escrita meditativa sob o signo de Saturno, da
efemeridade, da morte:

Sempre tive, desde muito jovem, um lado um pouco me-


lancólico, talvez determinado por acontecimentos da mi-
nha vida. [...]. Desde cedo, esses temas, sobretudo a mor-
te, estiveram muito presentes no que eu escrevia. É
possível que isso estivesse relacionado com a perda, no
início da adolescência, do meu pai e dos meus avós pater-
nos, de quem estava muito próximo, o que criou uma
consciência de que pessoas e situações a que estamos liga-
dos afectivamente de uma forma muito forte podem mu-
dar, podem desaparecer. (2003, p. 75)

* Água-forte é uma modalidade de gravura feita em uma base de liga metálica, sob a
ação corrosiva de ácidos ou sais.
124 POESIA 61 HOJE

Escavar o tempo, para Gastão Cruz, além de uma preocupação


existencial, constitui uma estratégia poética contra a linearidade que
se alimenta da noção de cronologia homogênea: “Há um passado,
como um poço, roldana e balde. Bate o balde na água várias vezes até
entrar” (OP, Repercussão, p. 306). O olhar poético melancólico vis-
lumbra perdas que as visões progressistas da História escondem, abre
fendas na espessura de um tempo concebido como contínuo. Escavar
e lembrar permitem o “trânsito” de imagens do passado para o pre-
sente: “Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado
deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer
voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, re-
volvê-lo como se revolve o solo” (BENJAMIN, 1986, p. 239).
Refletindo, para além das escolhas existenciais do poeta, sobre a
inserção da obra cruciana na série literária portuguesa, remeto à pro-
posta de João Barrento para leitura da poesia no final do século XX
em Portugal “sob o signo de Saturno, o astro baço” (1995, p. 164), e
na tensão entre progresso e melancolia, elegendo o Tempo* como
centro da escrita. Ao conceber, com Adorno, o poema como um reló-
gio de sol, Barrento (1995, p. 158) depreende das poéticas finissecu-
lares um modo elegíaco que expressa um pathos melancólico (cf. po-
ema “On Melancholy”, OP, Campânula, p. 148) por meio de cores
outonais (vide releituras de poemas de Camões, Sá de Miranda e Ca-
milo Pessanha no livro As aves, OP, p. 100-101), estados crepuscula-
res (poema “Crepúsculo”, OP, Campânula, p. 147) e variadas figuras
(poema “Figura”, OP, O pianista, p. 186-187) da perda e da ausên-
cia. Ouçamos trechos da elegia “Trio”:

Tu que escutaste a música da morte


que no perdido trio te escutava
conheceste a verdade no espelho
em que não encontraste a tua imagem

* Tempo em maiúscula, como Cronos-Saturno, tempo melancólico. Em alguns casos,


como entidade Tempo.
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 125

(...) Nada

porém te restitui os passos irreais


que deste na exígua
casa do tempo Nada
te fará regressar do espelho onde faltavas (...)
(OP, As pedras negras, p. 224-225).

Dedicado à memória de Carlos Fernando, o livro As pedras ne-


gras, no qual se insere o poema acima, pode ser considerado um mo-
numento tumular ou réquiem que exorta os vivos ao não esquecimen-
to dos mortos. Procedimento semelhante ocorre n’O pianista, que
Gastão Cruz dedica à memória dos poetas Ruy Belo e Carlos de Oli-
veira. Na entrevista a Isabel Lucas, o autor explica que o poema “Em
tempo alheio” (OP, Rua de Portugal, p. 291), com epígrafe de Carlos
Drummond de Andrade (“Peço desculpa de ser/ o sobrevivente”), ex-
pressa o sentimento de perda (“demasiados mortos”, OP, Rua de Por-
tugal, p. 291) que o acometeu sobretudo a partir dos quarenta anos
e, poeticamente, dialoga com os memoriais que As pedras negras e O
pianista, como “pedras (ou teclas) de escrita”, erigem a esses “ausen-
tes que habitam o cenário em tempo alheio”. Constatando que “os
meses não regressam” (OP, As pedras negras, p. 218), todavia
esclarece:

Tem que ver com a noção de que, quando a vida termina,


o tempo não acaba, embora acabe para aqueles cuja vida
terminou. Mas acabará completamente? Eles existem,
nem que seja na nossa memória. [...] Uma coisa muito
presente nestes dois últimos livros é uma visão do passa-
do, a tentativa de regressar a um passado e fixá-lo, detê-
-lo através da memória, como se ela representasse mais
tempo de vida para os mortos e uma permanência das
coisas na sua forma primitiva (2003, p. 75, grifos meus).
126 POESIA 61 HOJE

O mais poderoso agente do esquecimento – a morte – afinal não


é onipotente, porque os homens constroem trincheiras de memória e
buscam “gravar” suas experiências “sobre o tapete verde e castanho
do tempo” (OP, As leis do caos, p. 204) em materiais que consideram
duradouros, tais como a pedra (“estelas”, “pedras negras”, “lápi-
des”), o metal, a tela (chapa impressora, como a definia Cézanne) ou
o poema (“inscrição”, “gravura”, “casa de escrita”):

Ourives-gravador era o ofício


do meu avô paterno: sobre mesas
dispersos utensílios buris limas
por entre chapas e, há muito, objectos

acumulados; lembro-o curvado


com a luneta, fixamente olhando
a dura mão que no metal gravava
por encomenda nomes: desenhava com

força as linhas do seu significado


como se para alguma eternidade
ilusória as gravasse, assim o poeta

com o buril inscreve na deserta


chapa do mundo não interpretado
o sentido precário de o olhar (OP, A moeda do
tempo, p. 347, grifos meus)

A cena poemática evoca-me Albrecht Dürer curvado sobre o me-


tal, a gravar, sob a forma de um anjo especularmente curvado, o tédio
e a sensação de perda perante a inutilidade de tudo. Rodeado de obje-
tos (a ampulheta, símbolo do tempo, o compasso, ferramenta tecnoló-
gica comparada ao buril do ourives ou, hoje, à caneta ou ao teclado do
computador que registram a criação poética) e com asas para o voo, o
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 127

anjo tem instrumentos para agir, para gravar-criar, se assim o quiser,


todavia permanece inerte. Ressalta Walter Benjamin que, “como a me-
lancolia, também Saturno, esse demônio das antíteses, investe as almas,
por um lado, com preguiça e apatia, por outro, com a força da inteli-
gência e da contemplação” (1984, p. 172). Portanto, o “astro baço”
estaria igualmente submetido a uma dialética cuja explicação se funda
na estrutura interna da concepção mitológica de Cronos, presidida por
um dualismo intenso e fundamental: “poderíamos caracterizar Cronos
como um deus dos extremos. Por um lado, ele é senhor da idade de
Ouro, por outro, é o deus triste, destronado e humilhado ... por um
lado, gera (e devora) inúmeros filhos, e por outro está condenado à
eterna esterilidade” (BENJAMIN, 1984, p. 171, grifos meus).
No poema acima exposto, “Gravura”, o eu poético, ao resgatar
como ourives-gravador o fluxo da ancestralidade (outra “ilusão” de
continuidade e movimento*), inscreve (escreve) em processo espelhado,
na chapa do mundo que também é “texto”, a imagem do avô no ato de
forjar uma permanência – “fotograma estático/ de súbito retido no cor-
rer das imagens” (OP, A moeda do tempo, p.332) – e lança uma luz de
esperança sobre o “sol negro” melancólico. A arte poética, como “arte
da memória” (“lembro-o”), deambula pelos interstícios do tempo e
“salva” (“fixamente”/ “gravava”) momentos perdidos, lugares abando-
nados e pessoas ausentes (“o avô paterno”), esculpindo-os, mesmo que
num relance, sobre a folha branca (ou pedra negra ou metal fundente).
A Poesia, nessa senda de leitura, é “moeda” cunhada no tempo e
pelo Tempo, ao sabor de “qualquer crepúsculo” (OP, O pianista, p.
180) ou de um quarto minguante (OP, A moeda do tempo, p. 349),
do dia (OP, Crateras, p. 249) e da noite (OP, Rua de Portugal, p. 264),
do sol e da sombra (OP, A moeda do tempo, p. 331 e 355), da infân-
cia e da juventude (OP, Rua de Portugal, p. 283), dos meses (OP, Rua
de Portugal, p. 280), das estações (OP, Crateras, p. 249). E o poema

* Representados pelas imagens do “relógio”, do “cronômetro”, do “cinema”, respectiva-


mente (OP, p. 353, 354).
128 POESIA 61 HOJE

cristaliza uma eternidade precária, instante de memória a debater-se


no mar do esquecimento.
Escavando os meandros da memória e trazendo para o presente
– “berço de todo o tempo” (OP, As pedras negras, p. 222) – a minha
imagem de leitora debruçada sobre a obra poética de Gastão Cruz no
passado (assim como o avô paterno do poeta curvava-se com sua lu-
neta sobre a chapa de metal), persisto em afirmar, com um pé no fu-
turo, que a arte de Gastão se inscreve sob o signo da (trans)mutação
agonicamente vivenciada, que se insurge contra a história e o tempo
concebidos como continuum. O “ser da mudança ou a mudança do
ser” (COELHO, 1972, p. 236) expressam-se na polivalência de metá-
foras que pretende significar a realidade instável da metamorfose,
sendo o fogo um dos elementos primordiais da transfiguração, do
Logos e do devir, como na arché heraclitiana.
A poesia de Gastão Cruz reflete em espelho convexo, qual Par-
migianino, e sobre temas como engano e desengano, transitoriedade
da vida, possibilidades/ impossibilidade de captação dos momentos-
-fulgor de humanidade, complementaridade de contrastes por meio
de agudeza e concetti: “Como um lago o poema/não repete reflecte”
(OP, Crateras, p. 253), porque o rio nunca é o mesmo, pode ser vida
ou morte, “a morte já contida no começo” (OP, A moeda do tempo,
p. 352) para o “uso dúbio / dum ser abstracto a que chamamos tempo
(OP, A moeda do tempo, p. 353).
Contudo, não somente do ponto de vista temático o texto se
elabora no diálogo com uma poética de constante alteração (“doen-
ça”, “incêndio”) e tensão: o poema também constitui um ponto de
mutação, do “destino do corpo, igual/ ao seu começo/ na fundura das
águas” (OP, Rua de Portugal, p. 287). E o fenômeno poético é conce-
bido, na dimensão formal, como em constante mutação, o mesmo* e
um outro (sempre um avanço), face ao “exercício” de investigação

* Sua obra poética compõe a “continuidade de um projeto”, para Eduardo Prado Coelho
(1972, p. 255).
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 129

permanente que leva o autor a refazer e reorganizar a poesia anterior-


mente escrita, como o documentam as sucessivas coletâneas Os no-
mes, 1974; Poesia 1961-1981, de 1983; Órgão de luzes, poesia reuni-
da, 1990; Transe, antologia 1960-1990, de 1992; Poemas reunidos,
1999; Os poemas, 2009.
Gastão reexamina cada texto e encontra novos modos possíveis
de agrupar seus poemas, descarta alguns (sobretudo dos primeiros
livros), modifica outros, instigando seu leitor fiel a receber, de cada
vez, um conjunto de obra aprimorado. Pressiona-o, de certa forma, a
aguardar sempre o seu mais recente volume de poemas reunidos,
como aqueles que o poeta efetivamente consagrou. Mais uma estraté-
gia para driblar o tempo e forjar permanência na alteração, supondo,
no sistema (As leis do caos) da obra, o lugar ativo do receptor. Para
Luís Maffei, tanto “o entendimento poemático não se conclui” (2009,
p. 21), o que torna “intenso” o trabalho do leitor, quanto a reescrita
poética constitui um “perene devir”. “Não te banharás duas vezes no
mesmo rio”, ecoa na minha memória a máxima atribuída a Heráclito
(Fragmento 49a, RAJNEESH, 1995, p. 237): nem livro, nem poeta,
nem leitor serão os mesmos.
No posfácio a’Os Poemas, como crítico de sua própria obra,
Gastão Cruz explicita: “A passagem do tempo determina, em grande
parte, os temas e os motivos dos poemas. Há imagens que a memória
não nos traz sob a mesma forma ao fim de cinco, dez ou cinqüenta
anos” (p. 371). Tratando cada fenômeno sempre como moeda de
duas faces (qual Jano*), a abordagem sobre a passagem do tempo e a
morte redunda, afinal, em reflexão sobre a vida, como esclarece o
poeta, por ocasião do lançamento de Repercussão, quando define o
livro como uma meditação “sobre os grandes temas de sempre, amor,
morte, ausência, perda, a proximidade do nosso fim e dos que nos

* Jano (latim Janus), deus romano das transições, porteiro celestial representado com


dois rostos: um que olhava para trás e outro para a frente, imagens do término e do co-
meço, do passado e do futuro.
130 POESIA 61 HOJE

acompanharam e desapareceram, afinal uma meditação sobre o sen-


tido da vida”*.
Nessa busca de um sentido para o humano, o poeta tenta captar
o devir do mundo por meio de processos iterativos para deter o fluxo
cronológico da vida – “progresso do tempo”, “avanço do tempo”
(OP, A doença, p. 65 e 66) –, retrocedendo a imagens do passado (e
mesmo antecipando imagens do futuro) que a memória e a poesia
logram (ou pensam que logram) fixar**. Contudo, o devir do mundo,
uma vez revisitado, já é outro, “diferente cada vez que se repete” (OP,
Crateras, p. 247), compondo-se do que “concorda com o que de si
difere, numa harmonia de movimentos contrários, como do arco e da
lira” (HERÁCLITO, fragmento 51, RAJNEESH, 1995, p. 11) ou em
“sucessões/ variáveis sob a constelação/fixa” (OP, Repercussão, p.
304).
Assim, à similitude desse processo de escrita cruciano, busco
aqui apreender a poética reunida, Os poemas (2009), a partir dos
textos mais recentes, deles fazendo emergir reflexões sobre “a moeda
do tempo” de cinquenta anos de poesia. Ou seja, tento decifrar as
duas faces de Jano (cara e coroa), perseguindo o devir poético plas-
mado nos movimentos heraclitianos “do arco e da lira” (ou melhor,
crucianos “da lira e do arco”), ou do que se busca reter daquilo que
não se deixa fixar.
Sob o signo da dubiedade do tempo, essa criança que move as
peças de um jogo, como propunha o filósofo grego, ou que “joga xa-
drez com os condenados” (OP, Crateras, p. 241), o poeta pensa o e no
poema: este, “sobre o mundo muda o arco do futuro/ como um vasto
universo inverso ao tempo” (OP, Crateras, p. 251). Para operar tal
alteração, “a poesia depende da memória/ É a sua matéria o que se
esquece/ou lembra, tanto faz” (OP, Crateras, p. 260). Memória e es-

* http://www.spautores.pt/page.aspx?idCat=68&idMasterCat=67&contentID=34&idL
ayout=8&idLang=1
** Conferir a ocorrência de recursos como retrato, fotografia, lente de aumento na poesia
de Gastão.
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 131

quecimento são faces de Jano, cara e coroa da moeda do Tempo.


Verso e anverso, este se compõe de vida e morte, fluxo e descontinui-
dade, captando, numa face, historicidade – “meu pai [que] parecia/
vir sempre tarde com/ oedas novas reflectindo ainda/ dia findo” (OP,
Rua de Portugal, p. 278) – e noutra, finitude: “o soluço do tempo /
audível no algodão com que taparam/a tua boca” (OP, Rua de Portu-
gal, p. 291).
Ao invés de depositar “a moeda do tempo” sobre os olhos ou sob
a língua do recém-morto, conforme o costume grego, o eu poético a
transfere para a mão daquele que fará a “passagem” (título de poema
em OP, As pedras negras, p. 221), para que a oferta a Caronte possa
conduzi-lo, através do rio da dor – “compacta” (OP, Hematoma, p.
47) – ou Aqueronte, até um dos afluentes que levará a sua alma ao
Hades:

A MOEDA DO TEMPO

Distraí-me e já tu ali não estavas


vendeste ao tempo a glória do início
e na mão recebeste a moeda fria
com que o tempo pagou a tua entrada
(OP, A moeda do tempo, p. 329).

O passe, “moeda fria”, pode dar acesso a diferentes atalhos: o rio


Styx ou Estige (da imortalidade) ou o rio Lete (do esquecimento);
recorde-se que, a partir da Teogonia de Hesíodo, Lete constituiria um
par com Mnenosyne (a deusa da Memória), que possibilitava superar
o esquecimento absoluto ou “Olvido”, nas águas da Clepsidra de Ca-
milo Pessanha: “Desce enfim sobre meu coração/ O olvido. Irretocá-
vel. Absoluto” (1995, p. 126).
Aceitando a máxima expressa pelo poeta Gastão Cruz de que “o
acontecido pertence/ aos eclipses do tempo precipícios/ em que depois
da morte ficam vivos/ os momentos/ caídos” (OP, A moeda do tempo,
132 POESIA 61 HOJE

2009, p. 331), no poema, por meio da “porta da memória” (OP, Rua


de Portugal, p. 289), o passado preservado e transmutado em imagem
pode ser devolvido ao presente – “Presente do passado” é título da
primeira parte de Repercussão (OP, p. 303) –, “abrigo de todo o tem-
po” (OP, Crateras, p. 247). A memória “guarda a imagem transitória”
(OP, A moeda do tempo, p. 336) e “protege” (OP, As pedras negras,
p. 219) o poeta/ a poesia do “esquecimento” (título de poema):

(...) Temerei que a memória, o mais mortal


atributo do tempo, sob o céu
ardente, perca a pele primordial

e a mudez do esquecimento frente


a um mundo que existe mas morreu
seja o que fica da venal serpente (OP, A moeda do
tempo, p. 341).

Atributos de Cronos – “Saturno” é título de poema alegórico da


leitura que propomos, (OP, A moeda do tempo, p. 337-338) –, a me-
mória e o esquecimento determinam o que “fica”, “de súbito retido”
(OP, A moeda do tempo, p. 332) e o que “falta” (OP, Rua de Portugal,
p. 292). Por outro lado, no poema, o presente “fixado” em flashes,
assim como na vida, logo se transforma em passado ou em ânsia de
futuro: “porvir devir lembrança expectativa/ desfazem-se no vácuo
do presente” (OP, As leis do caos, p. 196). Deter os instantes de bele-
za parece ser uma tarefa de Sísifo frente à inexorabilidade do tempo.
Somente no poema o criador pode evitar ou retardar a ruína do belo,
captando-o, com o brilho que o amor expressa, em tinta preta na fo-
lha branca*. Por meio de versos imortais – “aves feitas de tempo” que
repercutem do texto de Ruy Belo no de Gastão Cruz para representar

* Cf. soneto de Shakespeare, “Since brass, nor stone, nor earth, nor boundless sea” (1944,
p. 172).
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 133

“a matéria visceral das aves/ sempre viva e tão morta em negro/ e


branco se expandindo” (OP, Repercussão, p. 321) –, o poeta busca
sobrepujar a mortalidade ao “deter a força ameaçadora” (OP, O pia-
nista, p. 171) e destruidora “das águas” da clepsidra ou do rio do
tempo.
Os versos do Fausto, de Goethe*, ecoam no título do poema
“Verweile doch”, de As pedras negras, para amplificar a interrogação
que a obra cruciana reitera:

Poderá a poesia
reter essa serpente
que desperta na triste
madrugada do mundo

as chuvas do verão
recolher fugitivas
e deter o furtivo
solitário segundo? (OP, O pianista, p. 211)

“A luz do poema” (OP, O pianista, p. 210), “sol negro** ou claro


sol” construído por “pedras negras” (“estelas”, “dioritos” ou “casas
de escrita”, “onde a mensagem perdura[sse]”), reflete-se (“espelho
negro da poesia”, AMARAL, 1995) por meio dos “decassílabos” que
“iluminam a lenta madrugada” (OP, As pedras negras, p. 210). E a
fala poética cruciana – “jorram palavras/ chamas imperfeitas” (OP,
As pedras negras, p. 213) – carrega a dor do viandante (ou o “Tor-
mento do ideal” (1972, p. 94) descrito por Antero de Quental) que,

* Traduzi “Zum Augenblick, dürfte ich sagen:/ Verweile doch, du bist so schön!” como
“Queria dizer ao momento que passa:/ Pois eterniza-te, és tão belo!”. In: Göethe, Johann
Wolfgang von .  Faust. Eine Tragödie. Edição preparada por Albrecht Schöne. Frankfurt:
Deutscher Klassiker Verlag, 1994. Vv. 11581-2.
** A imagem do “sol negro” da melancolia – também denominada “bílis negra” por Ben-
jamin (1984, p. 176 e 178) e Kristeva (1989, p. 12) –, que circula da poesia de Nerval
para o texto elegíaco de Gastão Cruz, preside o livro As pedras negras.
134 POESIA 61 HOJE

entre as formas imperfeitas, erra (erros ou errância*), consciente de


que a luz do poema supõe o embrião da noite:

Vagueio entre elas


urdindo a viagem diurna
da imperfeição A primavera aberta nas

margens incandescentes
alberga a
dor das formas ilusão

do estio primitivo
como se flores, de
novo, perfeitas nos cobrissem
(OP, As pedras negras, p. 223).

O poema, “ilusão de óptica”, ou “luz trocando caras entre as


inexistentes instâncias temporais” (OP, As leis do caos, p. 198), con-
substancia o gesto do pianista, que “é o do poeta salvando da morte
as imagens que o tempo arrasta, aquelas mesmas que Pessanha viu
perderem-se em direção ao ‘lago escuro, onde termina/vosso curso,
silente de juncais’ ” (OP, As leis do caos, p. 197-198).
É possível depreender com clareza, do projeto poético cruciano,
o dilema entre a dificuldade de fixar as imagens-memória do presente
imediatamente já passado (“Imagens que passais pela retina/dos meus
olhos por que não vos fixais?” (1995, p. 102), registrado pela Clepsi-
dra de Camilo Pessanha) ou do futuro – que, “tão perto já cavava
covas” (OP, Repercussão, p. 307) – e a vontade de esquecer as ima-
gens trágicas de perda ou “pontos de intersecção entre a vida do po-
eta e a vida da poesia” que esta “verbalização do choro” (OP, Reper-

* Conferir, no posfácio de Jorge Fernandes da Silveira à antologia A moeda do tempo e


outros poemas, os ecos camonianos do “erro” e da “errância” (2009, p. 183).
GASTÃO CRUZ: NO OURO DO TEMPO O GRAU ÔMEGA DA POESIA 135

cussão, p. 201) retém: “Imagens que passais pela retina/dos meus


olhos por que vos fixais?” (OP, Campânula, p. 144).
A “torpe arte dos versos”, em seu moto contínuo, “aproveita o
estado de crise para se instalar” (OP, As leis do caos, p. 201) e segue
produzindo “sucessivas imagens das imagens” (OP, Campânula, p.
144) ou “fotogramas estáticos/ de súbito retidos no correr das ima-
gens” (OP, A moeda do tempo, p. 332), num duplo “transe”: primei-
ramente, entre querer e não querer “fixar” o sofrimento ou os erros
– “erros [meus] má fortuna amor ardente” camonianos (OP, Crateras,
262) – que a memória existencial e poética recupera; e, ao mesmo
tempo, na angústia de reter (“deter”), num momento irrepetível, o
impossível de fixar: a inexorável força de mutabilidade do tempo.
Considerando outra face da moeda do tempo – a demora na efe-
tivação de processos tão certos quanto necessários –, lembro Luís
Maffei, ao apresentar ao público brasileiro a poesia de Gastão Cruz:
“depois de (...) cinquenta anos de um trabalho sempre presente, Gas-
tão se vê finalmente editado em livro no Brasil. Tardou, mas bem
haja” (2009, p. 28, grifos meus). Faço coro, em voz alta, com Maffei.
Desde os anos oitenta do século XX espero por este momento de
Consagração da Beleza no Exercício da Poesia. Na arte poética “On
melancholy”, Gastão reflete sobre a beleza como razão da criação.
Por esta constante e aguda busca da Beleza, mesmo onde inadvertida-
mente se julga que ela não está, restou ao Tempo – cinquenta anos de
MAIÚSCULA escrita, do alfa de Poesia 61 ao ômega de uma poética
seguidamente premiada* – consagrar a obra cruciana como um dos
pilares da luta “com a memória” (OP, A moeda do tempo, p. 228) e
contra o próprio tempo:

* Aos seus livros foram atribuídos os mais significativos prêmios literários portugueses:
Prémio PEN Clube de Poesia 1985 para O pianista; Prémio D. Dinis 2000 da Fundação
Casa de Mateus, por Crateras; Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de
Escritores 2002 para Rua de Portugal; Grande Prémio de Literatura DST 2005, por Re-
percussão; Prémio Correntes d’Escritas/ Casino da Póvoa 2009 para A moeda do
tempo.
136 POESIA 61 HOJE

Vês os versos Protege as cicatrizes


e as glórias da pele entristecida
Por elas vives e por elas vive
a beleza que crias e te cria (OP, Campânula, p. 148).

Devorado e vencido pela mestria deste projeto poético digno da


mágica (ilusão da) perenidade de versos camonianos ou shakespeare-
anos, Cronos afinal se curvou, como o leitor sobre o Livro, ante “a
lança do deus que em vão tentava/ salvar o tempo” (OP, As leis do
caos, p. 199), seja este deus “nadador”, “pianista”, “ourives” ou poe-
ta. Os poemas de Gastão Cruz ficarão, tenho a certeza, na luz áurea
do tempo e como o pó das folhas dos livros – e da vida – nas retinas,
transfigurados em pedras (i)memoriais.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NO CAFÉ MÜLLER, COM LUIZA NETO JORGE
Sofia de Sousa Silva*

Q uem tiver lido a poesia de Luiza Neto Jorge decerto se lembrará


dela ao assistir ao espetáculo Café Müller, do Tanztheather Wu-
ppertal (Companhia de Teatro-Dança de Wuppertal), dirigido por
Pina Bausch e apresentado pela primeira vez em 1978. Mulheres e
homens dividem um espaço fechado sem terem dele uma experiência
comum, onde os seus gestos se seguem e sobrepõem sem indicar efe-
tivamente uma interação. Duas mulheres com vestidos brancos que
lembram uma camisola de dormir ou uma roupa íntima movem-se
como sonâmbulas (ou zumbis) em meio às cadeiras e mesas de um
café. Um homem de gestos rápidos procura afastar delas os móveis
como se quisesse protegê-las, evitar que se machuquem. Elas perma-
necem no seu sono ou delírio sem notá-lo. Outra mulher, de salto alto
e sobretudo, percorre o espaço apressada, como se quisesse verificar
a integridade de tudo ali. As sonâmbulas debatem-se contra a parede
e escorregam até o chão, invariáveis caem nos poços da noite (P 25)**.
Os mesmos gestos se repetem, criando longas sequências.

* Professora de literatura portuguesa/ UFRJ.


** Todas as citações da obra de Luiza Neto Jorge foram retiradas da segunda edição de
Poesia, publicada pela Assírio & Alvim, em 2001. Serão indicadas somente pela letra P e
seguidas do número de página numa tentativa de evitar que a referência bibliográfica
dificulte o fluxo da leitura, já que, além de citados, muitos versos são apropriados. Sem-
140 POESIA 61 HOJE

Há claramente uma diferença entre os personagens: os apressa-


dos, de gestos mecânicos, conscientes do espaço; e as duas mulheres,
interpretadas por Malou Airaudo e Pina Bausch, lentas, absortas,
alheias ao entorno. A mesma diferença se observa nas roupas que
usam. Os apressados, que parecem querer preservar uma certa orga-
nização, usam casaco, paletó, salto alto, calças escuras. As duas so-
nâmbulas estão descalças, vestem camisolas, parecem alienadas, do-
entes. O personagem intepretado por Dominique Mercy permanece
entre um e outro mundo: usa calças escuras e camisa clara, está des-
calço. Tem qualquer coisa de louco, mas não é indiferente ao entorno;
insone, na sua solidão, resiste a estar ali perfeitamente pedra (P 23).
No entanto, nem sequer os que compartilham uma atitude e um traje
efetivamente se comunicam. Todos parecem prisioneiros, paralisados
(ainda que se movam), reféns de uma situação que não se explica. São
“estilhaçados de inércia” (P 31). A polaridade entre os seis persona-
gens (no total) remete a oposições entre vigília e sono, ordem e desor-
dem, consciência e inconsciência, loucura e lucidez, entrega ao deses-
pero ou tentativa de resistência.*
Há também lugar para gestos abruptos, para tentativas sôfregas
de aproximação. Os personagens interpretados por Malou Airaudo e
Dominique Mercy buscam os braços um do outro, como quem pro-
cura amparo. Um terceiro vem e lhes organiza os gestos, tenta dirigir-
-lhes os movimentos. Por diversas vezes, Malou Airaudo é posta so-
bre os braços de Dominique Mercy e do seu colo rola até o chão,
tornando a levantar-se e repetindo a mesma sequência de abraço,
colo, queda. Os dois são “vendidos tocados expostos em vida/ perse-
guidos pelos milionários/ e pelos mortos talvez” (P 37). Mesmo que

pre que o verso tiver sofrido qualquer alteração (para possibilitar a concordância de gê-
nero ou número na frase em que está inserido), será usado o itálico no lugar de aspas.
* Café Müller é descrito minuciosamente, cena a cena, e analisado por Ciane Fernandes
em seu estudo da obra de Pina Bausch e do Tanztheather Wuppertal (Cf. FERNANDES,
2007). O próprio espetáculo pode ser visto integralmente, em vídeo, no youtube: http://
www.youtube.com/watch?v=ruIFz3lUV3g&feature=mfu_in_order&list=UL (Acesso em
06 de junho de 2011.)
NO CAFÉ MÜLLER, COM LUIZA NETO JORGE 141

busquem contato, carinho, falta-lhes algo. Como se essa mulher e esse


homem estivessem aquém do amor.
Diante da cena, todas as atitudes possíveis parecem sem sentido.
Tanto faz permanecer em roupa branca de dormir ou vestir-se de ne-
gro, viver da morte dos outros (P 39). Tanto faz mover-se lentamente
ou com rapidez. Tanto faz estar alheio ou atento. Tudo é inútil.
De cada lado do palco há uma porta e, no fundo, a porta girató-
ria é como a metáfora dessa situação. “A porta roda” (P 44). Ela é o
limite que, transposto, poderia conduzir para fora do ambiente opres-
sivo, para o espaço aberto, para a mudança. Mas, por ser giratória,
reconduz de volta para dentro quem nela entra.* Assim, a “porta sexo
a vida toda” (P 44), que poderia ser uma saída para a ausência de
erotismo e de vida que se vê ali é, para os personagens, porta “extinta
na trela da noite”, “pregada”, “máscara de morte”, “bússola enterra-
da” que não os pode guiar para lugar algum. Não basta para tirá-los
da sua letargia. Ou da sua inércia de movimento. Tudo é inútil.
No espetáculo do Tanztheather Wuppertal, tudo parece prestes a
cair, ou a morrer, simplesmente por permanecer sempre igual. Os per-
sonagens ali, mesmo que se esforcem em contrário, estão todos “sem
olhos sem ouvidos fala”, como a não senhora não menina do poema
“Exame” (P 50). Têm qualquer coisa de estátua. Chama muito a aten-
ção a ausência de comunicação e de erotismo nas relações que estabe-
lecem. É como se estivessem fechados não só no espaço mas sobretu-
do uns para os outros; nenhum deles se deixa afetar, penetrar, invadir
pela presença do outro. E isto é ali inescapável. Não há um fio que
lhes permita sair do labirinto ou do café. Sem olhos e sem ouvidos,
são impermeáveis aos estímulos do mundo exterior. Paralisados,
anestesiados, só um destino se lhes oferece: a queda, o fim.
A presença do silêncio, da mudez, que leva a um isolamento
e à morte, percorre o livro Quarta dimensão de Luiza Neto Jorge. O
primeiro poema, “Baixo-relevo”, diz:

* A recorrência da porta como limiar na poesia de Luiza Neto Jorge é analisada por Rosa
Maria Martelo (MARTELO, 2004, p. 151-161).
142 POESIA 61 HOJE

Dentro de um secular sossego


nós somos
a escultura de amanhã (P 37)

O sossego parece um modo algo irônico de referir-se a um silên-


cio imposto, a uma suposta tranquilidade que faz com que a nós não
caiba uma vida plena, mas uma morte em vida. “Tu e eu / só estátuas
de amanhã”: o presente é apenas uma preparação para um tempo que
o par tu-eu será inteiramente inanimado, processo que já se inicia.*
As únicas trocas que se efetuam entre o par vêm nos versos de outro
poema do mesmo livro: “Tenho os silêncios que me emprestaste” (P
41). O coração está “patinado de pó”. Os mortos talvez já tenham
invadido o pedestal das estátuas.1
As palavras sossego, silêncio, escultura e estátua ecoam outros
versos: “Caíram as estátuas de metal: / qu’al se podia esperar de cou-
sas mudas?” diz um célebre soneto de Sá de Miranda (s.d., p. 156). O
soneto quinhentista defende a superioridade da poesia, pintura fala-
da, sobre a estatuária, poesia muda. O metal, por mais sólido e dura-
douro que possa ser, não resiste ao tempo, “deus atroz que os pró-
prios filhos devora sempre”, na definição de outro poeta (PESSOA,
2008, p. 253). A palavra, frágil, quase incorpórea, tem o poder de
atravessar séculos e séculos: as musas, lembra Sá de Miranda, ainda
“nos cantam do bom tempo antigo”. Falam conosco, mais alto ou
mais baixo, conforme possamos ouvi-las. A sua fala lhes dá vida.**
Em Portugal, maio de poesia 61, na leitura que faz de Quarta
dimensão, de Luiza Neto Jorge –– livro com que esta participou da
publicação ––, Jorge Fernandes da Silveira afirma:

* Agradeço imensamente a Helena Franco Martins as sugestões feitas a uma versão pre-
liminar deste texto, sobretudo no que diz respeito ao sossego em Luiza Neto Jorge.
** Talvez remetendo também a Sá de Miranda, no poema que dá título ao livro de Luiza
surgem duas figuras como que em paralelo: um “herói que morreu” (ao qual é construí-
do um obelisco) e um “herói que não fala” (P 48).
NO CAFÉ MÜLLER, COM LUIZA NETO JORGE 143

Nestes textos de Luiza Neto Jorge há, a partir do primei-


ro poema, ‘baixo-relevo’, uma relação amorosa eu-tu vi-
timada por uma dimensão opressora: o tempo. […] A
ideia de morte cristaliza-se em ‘escultura de amanhã’, ‘es-
tátuas de amanhã’, ‘baixo-relevo’, ‘elípticos de sexo’, ‘de-
serdados da sombra’ com uma repetição implacável.
(1986, p. 164)

A análise de Jorge Fernandes da Silveira desdobra a reflexão. Se


no soneto mirandino (e lembro que Sá de Miranda é poeta citado por
Luiza*), a mudez da estátua é a causa de sua queda, a leitura feita
pelo ensaísta traz um outro problema, corresponsável pela sensação
de morte: a ausência do amor. E esse é mais um ponto de contato
entre Café Müller, de Pina Bausch, e Quarta dimensão. O amor está
interditado, os gestos são maquinais, não há trocas verdadeiras. Há
apenas a repetição de movimentos, o permanente desencontro. Os
corpos não parecem erotizados. São “elípticos de sexo” (P 38). No
poema de Quarta dimensão, tudo é vivido num presente em que o
amor não é franqueado, em que o corpo está paralisado. Como se
não houvesse um tempo para “nós”, figuras “já sem gesto” (P 38), na
iminência da transformação definitiva em matéria inerte. “Cai um
grão de pó em cada demora” (P 53).
Se a causa da vida sossegada do par eu-tu pode ser atribuída
também à falta de gesto ou de corpo, o sexo torna-se, ao lado da lin-
guagem, uma outra possível saída do deserto ou do labirinto. Surge já
nesse livro de Luiza uma questão a que sua poesia voltará em livros
posteriores: a língua como “órgão de amor”, ou a homologia entre a
escrita e o amor, a própria língua sendo vista como um corpo
erotizado**:

* Cf. “SO-NETO Jorge, Luiza” (P 209) , poema estudado por Marcia Arruda Franco
(FRANCO, 2001).
** A hipótese de uma homologia entre corpo e escrita, ou entre erotismo e escrita é inves-
tigada por José Ricardo Nunes, em Um corpo escrevente: a poesia de Luiza Neto Jorge
144 POESIA 61 HOJE

Brauner pinta com a língua


ou outro órgão de amor
o que o braço não podia (P 82)

A língua erotizada promoveria uma reabilitação dos sentidos.


Reside na palavra e no corpo a potência de transformação. É pelo
amor e pela língua que se muda. Por isso são ambos “insurrectos”.
Não se deixam dominar pela perda, pela morte, pela apatia. Desejam
apesar de tudo: “Eu posso estar aqui perfeitamente pobre um círio me
acendi espora aguda” (P 23).
Por mais que a palavra de Quarta dimensão pareça menos afir-
mativa que a das musas que ainda nos cantam do bom tempo antigo,
por mais sombrio que seja o ambiente do “café onde a morte já entra-
ra” (CRUZ, 2011, p. 75), a escrita do livro e a montagem do espetá-
culo são uma profissão de fé na palavra e no corpo. É de se notar que
estas duas obras em particular –– o livro de 1961 e o espetáculo de
1978 –– não parecem oferecer saídas para a situação de aprisiona-
mento que constroem. As vias da linguagem e do erotismo estão ali
impedidas, não se consegue alcançá-las. Mas tanto o livro de Luiza
Neto Jorge quanto a peça de Pina Bausch são em si formas de nomear
uma atmosfera asfixiante, de dar-lhe um contorno. Apesar de sem
olhos e sem ouvidos, há uma fala, que resiste, e se faz pela palavra em
Luiza e pelo teatro-dança em Pina. É o gesto da sua criação o que
aponta para uma possível alternativa. Pois “claro que já nada disto
tinha a ver com a porta, ou com a velha, mas connosco, com a nossa
vida” (P 293).

(NUNES, 2000), e ainda por Rosa Maria Martelo no já referido ensaio “Luiza Neto
Jorge e a máquina de oscilar”, de seu livro Em parte incerta (MARTELO, 2004).
NO CAFÉ MÜLLER, COM LUIZA NETO JORGE 145

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nota
1
Transcrevo aqui na íntegra o poema “Baixo-relevo” (P 37-38), com
que se abre o livro Quarta dimensão:

Dentro de um secular sossego


nós somos
a escultura de amanhã
146 POESIA 61 HOJE

(trilhos de formigas
descem no cabelo
patinado de pó o coração)

Tu e eu
só estátuas de amanhã
Não temos na mão a flor
um livro uma espingarda
uma cadeira gasta onde morrer
E sem o monstro gótico apunhalado aos pés

(Todos os sonhos são de pedra ou bronze


não os meus de palha ou de papel)

Tu e eu
baixo-relevo
vendidos tocados expostos em vida
perseguidos pelos milionários
e pelos mortos talvez que invadiram já
o pedestal das estátuas

Tu e eu
elípticos de sexo
ontem gritada no teu peito
hoje secreto no meu ventre

deserdados da sombra
já sem gesto
escultura de amanhã
Este livro foi impresso
em papel Polen bold 90g,
com a fonte Sabon LT Std em dezembro de 2011.

“Que este livro dure até antes do fim do mundo”

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