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Kafka À Beira Mar (Haruki Murakami)
Kafka À Beira Mar (Haruki Murakami)
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Prólogo - Um Menino Chamado Corvo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
O Menino Chamado Corvo
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Prólogo – Um Menino Chamado Corvo
*** Instrumento musical japonês de três cordas, em que a caixa de ressonância é coberta por pele de
gato. (N. do E.)
Capítulo 11
Quando termino de contar minha história, já é noite alta. Sakura ouve tudo
atentamente, rosto apoiado nas mãos e cotovelos fincados sobre a mesa da
cozinha. Eu lhe disse que só tenho 15 anos, sou estudante do nível ginasial,
roubei dinheiro de meu pai e fugi de minha casa em Nakano. Que estou
hospedado num hotel no centro de Takamatsu e que, durante o dia, estive
lendo livros numa biblioteca. E que de repente me vi caído sujo de sangue
nos fundos de um santuário xintoísta. Contei essas coisas. Mas não tudo,
claro. Não consigo falar com facilidade de fatos realmente importantes da
minha vida.
— Ou seja, sua mãe saiu de casa levando consigo apenas a sua irmã.
Abandonou seu pai e você, que mal completara 4 anos — resume Sakura.
Extraio da minha carteira a foto tirada na praia e mostro a ela:
— Esta é a minha irmã.
Sakura a observa por instantes. Em seguida, me devolve a foto em
silêncio.
— Depois disso, nunca mais vi minha irmã — explico. — Nem minha
mãe. Ela não entrou em contato comigo e não sei por onde anda. Não
consigo sequer me lembrar de seu rosto. Não tenho também nenhuma foto
dela em casa. Sou capaz de evocar apenas um certo perfume que havia em
torno dela. E também algo semelhante a uma sensação. Mas do seu rosto não
me recordo, por mais que tente.
— Seei… — diz ela. Ainda com o rosto apoiado nas mãos, ela aperta
de leve os olhos e me observa. — Situação penosa a sua, não?
— Acho que sim.
Ela continua a me observar em silêncio.
— Você não se dava bem com seu pai? — pergunta instantes depois.
Não me dava bem? E agora, como respondo? Não digo nada, só sacudo
a cabeça negativamente.
— Claro, claro que não se dava! Do contrário não teria fugido de casa,
certo? — diz Sakura. — E então você saiu de lá e, hoje, de repente, perdeu a
consciência ou a memória, ou o que quer que seja.
— Isso.
— Já lhe aconteceu algo parecido antes?
— Algumas vezes… — respondo com honestidade. — Quando fico
com raiva, o sangue me sobe à cabeça e sinto como se um fusível dentro de
mim estourasse. Parece até que alguém aperta um botão que existe dentro da
minha cabeça e muito antes de eu me dar conta, meu corpo já entrou em
ação. Quem está ali sou e ao mesmo tempo não sou eu.
— Está me dizendo que não consegue se conter e parte para a
violência?
— Isso já me aconteceu algumas vezes — reconheço.
— Feriu alguém?
Concordo com um aceno:
— Duas vezes. Mas não foi nada sério.
Ela pensa um momento a respeito do que acabo de lhe contar.
— Acha possível que algo semelhante tenha ocorrido desta vez?
Sacudo a cabeça negando.
— Nunca me aconteceu nada tão grave. Desta vez… não consigo me
lembrar das circunstâncias em que perdi os sentidos, nem tenho a menor
idéia do que andei fazendo nesse período de inconsciência. Há um rombo na
minha memória. É a primeira vez que passo por experiência tão drástica.
Ela examina a camiseta que tirei da mochila. Inspeciona
cuidadosamente a mancha que restou depois que lavei o sangue.
— De modo que a última coisa de que se lembra é de ter jantado. Você
comeu no começo da noite, num restaurante perto da estação, certo?
Concordo com um aceno.
— E depois disso não sabe de mais nada. Quando voltou a si, estava
caído no meio de uns arbustos nos fundos de um santuário. E tinham se
passado cerca de quatro horas. A camiseta estava suja de sangue e sentia
uma dor aguda no ombro esquerdo.
Aceno outra vez. De algum lugar ela trouxe o mapa da cidade e o abre
sobre a mesa para se inteirar da distância entre a estação e o santuário.
— A distância não é muito grande, mas, por outro lado, não é fácil
cobri-la a pé. E por que motivo você iria até lá? Se tomarmos a estação como
ponto de partida, você andou em direção oposta à do hotel em que se
hospeda. Já foi antes para esse lado da cidade?
— Nunca.
— Tire a camisa — diz ela.
Ao me ver nu da cintura para cima ela se posiciona às minhas costas e
pressiona com força meu ombro esquerdo. As pontas dos seus dedos
afundam na carne, e eu gemo sem querer. Mãos poderosas.
— Dói?
— Bastante — respondo.
— Você bateu este ombro com toda a força nalgum lugar. Ou então
bateram em você com alguma coisa.
— Não me lembro de nada disso.
— Mas não percebo nenhum osso quebrado — diz ela. Em seguida,
examina a área dolorida com diversos toques que diferem entre si de maneira
sutil. São dolorosos às vezes, mas proporcionam uma sensação estranha e
agradável. Eu lhe digo isso, e ela sorri.
— Tenho o dom da massagem. É graças a isso que ganho a vida. Onde
quer que vá, uma cabeleireira que seja ao mesmo tempo boa massagista é
sempre bem-vinda.
Ela continua a massagear meu ombro por um bom tempo. Depois, diz:
— Acho que a contusão não é das mais feias. Uma boa noite de sono
vai aliviar a dor.
Apanha a camiseta, põe de volta no saco plástico e joga tudo no lixo.
Examina por instantes a camisa de brim que despi e a mete na máquina de
lavar roupa no banheiro. Abre em seguida uma gaveta da cômoda, remexe
por instantes nas coisas existentes ali dentro, retira uma camiseta branca e
me entrega. É nova. Maui Whale Watching Cruise, anuncia a estampa. Uma
cauda de baleia emerge do mar.
— Parece que esta é a maior de todas. Não é minha, mas não se
preocupe com isso. Minha amiga deve ter ganhado de alguém. Talvez não
seja do seu gosto, mas veja se cabe em você.
Eu a visto pela cabeça. É do meu tamanho.
— Se quiser, fique com ela — diz ela.
Agradeço.
— Mas deixe-me saber: nunca lhe aconteceu de perder a memória por
tanto tempo? — pergunta ela.
Confirmo com um aceno. Fecho os olhos, sinto o cheiro e a textura da
camiseta nova.
— Estou com muito medo, Sakura — confesso com toda a honestidade.
— A ponto de não saber o que fazer. Eu talvez tenha ido a algum lugar e
ferido alguém no decorrer dessas quatro horas de que não tenho consciência.
Não faço a menor idéia do que andei praticando. Mas estou sujo de sangue.
E, se cometi qualquer tipo de crime, posso ser responsabilizado mesmo que
não me lembre de nada. Não é assim que funciona a justiça?
— Mas esse sangue talvez seja de uma hemorragia nasal. Alguém
muito distraído pode ter andado por uma rua qualquer, batido de frente num
poste, ficado com o nariz sangrando, e você talvez o tenha socorrido. Pode
ter sido assim, não pode? Entendo sua preocupação, mas vamos fazer força
para não pensar em coisas desagradáveis até amanhecer. Quando o dia
clarear, vão entregar o jornal na minha porta e vai começar o noticiário na
tevê, de modo que se alguma coisa ruim aconteceu nestas redondezas a gente
vai ficar sabendo mesmo que não queira. Podemos pensar com calma depois
disso, não podemos? Pessoas sangram por diversos motivos e, muitas vezes,
a situação não é tão séria quanto parece. Esse tanto de sangue não me assusta
nem um pouco porque sou mulher, vejo isso todos os meses. Você sabe do
que estou falando, não sabe?
Aceno confirmando. Sinto meu rosto se afoguear de leve. Ela põe um
pouco de Nescafé numa xícara grande e leva ao fogo uma panelinha com
água. Enquanto espera ferver, fuma. Depois de tirar apenas algumas
baforadas, molha o cigarro na água e o apaga. A fumaça tem um leve cheiro
de hortelã.
— Escute, quero lhe fazer uma pergunta um tanto pessoal. Você se
importa?
Digo que não.
— Sua irmã deve ser adotiva. Ou seja, foi adotada quando você nem era
nascido ainda.
Isso mesmo, eu digo. Embora não saiba a razão que os levou a isso,
meus pais adotaram uma menina. E, depois, eu nasci. De modo inoportuno,
segundo imagino.
— Então você realmente é filho do seu pai e de sua mãe?
— Tanto quanto sei… — respondo.
— Apesar disso sua mãe não o levou consigo quando saiu de casa, e
sim a sua irmã, com a qual não tinha consangüinidade — diz Sakura. — Mas
uma mulher não costuma agir dessa maneira em circunstâncias normais,
entende?
Não digo nada.
— E por que teria ela feito isso?
Sacudo a cabeça. Digo que não sei. Eu me fizera milhares de vezes essa
mesma pergunta.
— Você está magoado com a atitude dela, naturalmente.
Estou mesmo?
— Não sei ao certo. Mas não pretendo ter filhos se um dia me casar.
Tenho certeza de que não vou saber me relacionar com eles.
Ela diz:
— Minha história não é tão complexa quanto a sua, mas, para dizer a
verdade, eu também não me dava muito bem com meus pais e, por causa
disso, aprontei um bocado quando era mais nova. De modo que sei muito
bem como você se sente. Mas uma coisa eu digo, Kafka: é melhor não tomar
decisões definitivas desde cedo. Nada é absoluto neste mundo, entendeu?
De pé diante do fogão, Sakura toma seu Nescafé fumegante numa
xícara grande que tem o desenho de alguns personagens da família Moomin.
Ela não diz mais nada. Nem eu.
— Não tem nenhum parente a quem recorrer? — pergunta instantes
depois.
Digo que não. Segundo me informaram, meus avós paternos tinham
morrido muito tempo atrás, e meu pai não tinha irmãos nem tios. Eu porém
não tinha meios de confirmar a veracidade dessa informação. Contudo, ao
menos de uma coisa eu sabia com certeza: nenhuma das pessoas com quem
meu pai mantinha relações era da família dele. E eu e ele jamais
conversamos sobre os parentes do lado materno. Eu nem sabia como a
minha mãe se chamava. Sendo assim, como poderia eu conhecer possíveis
familiares dela?
— Quanto mais ouço sua história, mais tenho impressão de que seu pai
é um ser extraterrestre — diz Sakura. — Veio à Terra sozinho de uma estrela
distante, assumiu a forma de um ser humano, seduziu uma terráquea e teve
você. Só para poder perpetuar a espécie dele. Sua mãe descobriu a verdade,
ficou com medo e fugiu. Está certo que parece enredo de filme de ficção
científica sinistro, mas dá realmente essa impressão.
Não sei o que dizer. Fico em silêncio.
— Deixando de lado toda essa brincadeira — diz ela curvando para
cima os cantos da boca num largo sorriso para me assegurar de que estivera
realmente gracejando —, isto significa que você não tem mesmo ninguém a
quem recorrer neste nosso vasto mundo.
— Foi a conclusão a que cheguei.
Ela toma o café em silêncio por algum tempo.
— Tenho de dormir um pouco — diz Sakura, lembrando-se de repente
de suas necessidades. Os ponteiros do relógio indicam que já passa das três.
— Preciso me levantar às sete e meia e só me restam poucas horas de sono.
Ainda assim, é melhor dormir um pouco do que nada. Meu trabalho é
cansativo, principalmente depois de uma noite em claro. E você, que
pretende fazer?
Digo que tenho um saco de dormir e que, se ela não se opõe, estendo-o
num canto qualquer longe do caminho dela e durmo. Tiro então o pequeno
rolo da mochila, estendo-o no chão e o encho de ar. Ela observa, admirada.
— Coisa de escoteiro! — conclui.
Ela apaga a luz e mergulha debaixo das cobertas enquanto eu me meto no
saco de dormir e fecho os olhos tentando pegar no sono. Mas não consigo.
Por trás das pálpebras continuo a ver a mancha de sangue na minha
camiseta. A sensação de ardor continua na palma das mãos. Abro os olhos e
fixo o teto ferozmente. Uma tábua range em algum lugar. Tem água correndo
num cano qualquer. Sirene de ambulância, outra vez. Vem de longe, mas
ecoa com estranha pressa e veemência no silêncio noturno.
— Não consegue dormir, Kafka? — pergunta ela baixinho do outro
lado da escuridão.
Respondo que não.
— Nem eu. Para que fui tomar tanto café? Que bobagem fui fazer!
Ela acende a luz da cabeceira, confirma as horas e apaga a luz outra
vez.
— Não me interprete mal, Kafka — diz ela —, mas, se quiser, pode vir
para cá e dormir comigo. Não consigo pegar no sono.
Saio do saco de dormir e vou para a cama dela. Estou de cueca e
camiseta. Ela, de pijama rosa claro.
— Sabe, estou de namoro firme com um rapaz de Tóquio. Ele não é
nenhum príncipe encantado, mas estamos juntos. De modo que só faço sexo
com ele. Posso não parecer, mas sou muito rígida nessas questões, entende?
Antiquada. Já aprontei muita loucura quando era mais nova, mas parei. Virei
mulher honesta. Portanto, não meta idéias estranhas na sua cabeça, ouviu?
Faça de conta que somos irmãos. Entendeu?
— Entendi — eu digo.
Ela passa os braços em torno dos meus ombros e me aconchega.
Depois, encosta a face na minha.
— Coitadinho — diz ela.
Tenho uma ereção, é lógico. Verdadeiramente rígida. E, pela posição
em que estamos, não posso impedir que minha rigidez lhe toque as coxas.
— Caramba! — diz ela.
— Não leve a mal — me desculpo —, mas não está em mim conter
isso.
— Eu sei — diz ela. — Isso é bem inconveniente, sei muito bem. Você
não pode impedir, não é?
Aceno no escuro.
Ela hesita um instante, mas logo abaixa minha cueca, expõe meu pênis
petrificado e o aperta de leve na mão. Como se procurasse se certificar de
alguma coisa. Como um médico buscando o pulso do paciente. Sinto a suave
maciez da palma da sua mão como um vago pensamento em torno do meu
pênis.
— Quantos anos teria hoje a sua irmã?
— Vinte e um — respondo. — Ela é cinco anos mais velha que eu.
Sakura pensa um pouco a respeito.
— Você gostaria de encontrá-la?
— Acho que sim — digo.
— Acha que sim? — A mão que segura meu pênis o aperta um pouco
mais. — Que quer dizer com isso? Que não faz questão de conhecê-la?
— Eu não saberia o que dizer caso a visse e, além do mais, pode ser que
ela não esteja querendo me conhecer. O mesmo pode estar acontecendo com
a minha mãe. Talvez nenhuma delas queira me ver. Ninguém precisa de
mim. Pois elas foram embora, não foram? — E não me levaram…, concluo
em pensamento.
Ela não diz nada. A mão em torno do meu pênis ora aperta, ora relaxa.
Em resposta, meu pênis ora se acalma, ora se aquece e endurece ainda mais.
— Quer se livrar disso? — pergunta Sakura.
— Acho que sim — respondo.
— Acha que sim?
— Quero, quero muito — corrijo.
Ela suspira de leve e começa a mover a mão lentamente. Sensação
maravilhosa. Os movimentos não são apenas para cima e para baixo. São
mais abrangentes. Seus dedos tocam e acariciam com gentileza o pênis e
toda a superfície dos sacos escrotais.
Fecho os olhos e inspiro profundamente.
— Não me toque, ouviu? E quando sentir que vai ejacular, me avise
imediatamente. Não quero sujar os lençóis e aumentar o meu trabalho.
— Entendi — respondo.
— E então? Tenho boa técnica, não tenho?
— Excelente.
— Como já disse antes, tenho mãos jeitosas. Mas isto nada tem a ver
com sexo. Só o estou ajudando a... como direi… se aliviar. Hoje, seu dia foi
longo e o deixou muito excitado. Se continuar assim, não conseguirá dormir.
É por isso, entendeu?
— Sim — respondo. — Mas tenho um único pedido a lhe fazer.
— Hum?
— Posso imaginá-la nua?
Ela pára de mover a mão e me encara.
— Está me perguntando se pode me imaginar nua enquanto estamos
nisto?
— Exato. Já faz algum tempo que estou tentando me impedir de
imaginar, mas não consigo.
— Não consegue?
— Tenho uma televisão na minha cabeça que não consigo desligar.
Ela ri como se achasse muita graça.
— Sabe que não o compreendo direito? Se você ficasse quieto, podia
imaginar quanto quisesse! Para que pedir permissão? Afinal, de que jeito eu
saberia o que lhe vai na cabeça?
— Mas isso me incomoda. Tenho a impressão de que imaginação é
coisa séria e de que eu devia falar com você a respeito. Independente dessa
história de você ficar sabendo ou não…
— Você é correto demais, garoto! — diz ela admirada. — Pensando
bem, concordo com você: foi melhor perguntar, realmente. E pode me
imaginar nua à vontade. Dou minha permissão.
— Obrigado — digo.
— E como é o meu corpo nu em sua imaginação? Bonito de se ver?
— Maravilhoso — respondo.
Logo, uma vaga sensação de languidez se espalha pelos quadris. Como
se eu flutuasse em líquido denso. Digo isso, e ela apanha um lenço de papel
que tem à cabeceira e me leva a ejacular. E eu ejaculo com força, muitas e
muitas vezes. Pouco depois, ela vai para a cozinha, joga o lenço de papel no
lixo e lava as mãos.
— Desculpe — digo.
— Ora, que é isso! — replica a caminho da cama. — Não se desculpe
de maneira tão formal que me deixa constrangida. É apenas uma função
física, não se preocupe com bobagens. Mas aposto que está se sentindo
aliviado, não está?
— Bastante.
— Ótimo — diz ela. Depois de pensar alguns instantes, diz: — A idéia
me ocorreu de repente, mas que bom seria se eu fosse sua irmã de verdade,
não?
— Seria mesmo — respondo.
Ela toca de leve os meus cabelos.
— Volte para o seu lugar porque já estou ficando com sono. Não
consigo dormir direito com gente ao meu lado. E Deus me livre de acordar
amanhã sentindo essa rigidez contra o meu corpo.
Retorno para o meu saco de dormir e fecho os olhos. Desta vez, caio no
sono com facilidade. Um sono profundo. O mais profundo de todos que eu
tive desde que saí de casa. Tenho a sensação de estar descendo muito
lentamente terra adentro num elevador grande e silencioso. Logo, todas as
luzes se apagam, todos os sons cessam.
Quando acordo, Sakura já não está no quarto. Tinha ido trabalhar. O relógio
indica que já passa das nove. A dor no ombro desapareceu quase por
completo. Conforme Sakura previu. Sobre a mesa da cozinha, encontro
jornais dobrados e um bilhete. E a chave do apartamento.
Assisti ao noticiário das sete do princípio ao fim, li o jornal de ponta a
ponta. Não houve menção alguma a incidentes sangrentos. Acho que o
sangue na camiseta não representou nada sério. Ótimo, não é mesmo? Não
tem muita coisa na geladeira, mas coma o que quiser. E também pode usar
qualquer coisa existente na casa. Se não tem lugar para ir, fique morando
comigo por uns tempos. E, se quiser sair, deixe a chave debaixo do capacho.
Tiro uma garrafinha de leite da geladeira, verifico a validade, despejo
sobre corn flakes e como. Fervo um tanto de água e tomo chá preto
Darjeeling. Asso duas fatias de pão na torradeira, passo margarina light e os
como também. Abro em seguida o jornal e leio o noticiário local. Realmente,
não houve nenhum incidente violento na vizinhança. Suspiro, dobro o jornal
e o ponho de volta no lugar em que estava. Pelo jeito, não preciso me
preocupar em fugir da polícia. Seja como for, não volto mais para o hotel.
Preciso agir com prudência. Afinal, não sei o que aconteceu durante as
quatro horas cuja lembrança perdi.
Ligo para o hotel. Atende uma voz masculina e desconhecida. Digo
que, em virtude de certas circunstâncias, vejo-me obrigado a desocupar o
apartamento. Imito o jeito seguro de um adulto falando. Não devia haver
nenhum problema porque eu vinha pagando adiantado. Digo também que
restaram no quarto alguns objetos pessoais sem valor que podiam ser
descartados. O atendente checa a situação da minha conta no computador e
confirma que não há nada a acertar. “Tudo bem, Sr. Tamura. Nesse caso,
considere os procedimentos de check out concluídos”, diz ele. E também que
a chave do tipo cartão magnético não precisa ser devolvida. Agradeço e
desligo.
Depois, tomo um bom banho de chuveiro. Lingerie e meias secam
sobre a pia. Contenho-me para não olhar as peças e, como sempre, me ocupo
em lavar cuidadosamente o corpo inteiro, gasto um bom tempo nisso. Faço o
possível para não lembrar os acontecimentos da noite passada. Escovo os
dentes e troco a roupa íntima. Enrolo outra vez o saco de dormir num bloco
compacto, meto-o na mochila. Lavo toda a roupa suja acumulada na
máquina. Sakura não tem secadora, de modo que dobro e acondiciono as
roupas torcidas num saco plástico e guardo na mochila. Vou pô-las a secar
numa lavanderia qualquer.
Lavo toda a louça empilhada na pia da cozinha, dou um tempo para que
a água excedente escorra, enxugo tudo e guardo nas prateleiras. Arrumo o
interior da geladeira, descarto os alimentos podres. Alguns cheiram muito
mal. Os brócolis estão mofados. O pepino lembra um bastão de borracha. O
tofu está vencido. Acondiciono a comida boa em vasilhas novas e limpas,
removo restos de molho derramados na geladeira. Jogo fora os tocos de
cigarro dos cinzeiros, junto todos os jornais velhos espalhados pelo
apartamento. Passo o aspirador de pó no assoalho. Ela possui realmente o
dom da massagem, mas é quase uma nulidade em prendas domésticas. Pego
todas as camisetas que ela mantém empilhadas de qualquer jeito sobre a
cômoda e passo-as a ferro uma a uma; em seguida, fico com vontade de
fazer algumas compras e preparar o jantar. Esse tipo de serviço não me é
penoso: em casa, me esforcei por fazer o trabalho doméstico sempre que
possível preparando-me para o dia em que teria de viver sozinho. Mas achei
que cozinhar para ela era demais.
Depois de terminar, sento-me à mesa da cozinha e olho em torno. Não
posso ficar aqui para sempre. Isso está muito claro para mim. Enquanto viver
neste apartamento vou continuar imaginando e tendo ereções
interminavelmente. Não posso continuar desviando o olhar das pequenas
peças pretas que secam no banheiro. Não posso continuar pedindo à Sakura
permissão para dar asas à imaginação. E, acima de tudo, não poderei jamais
esquecer o favor que ela me fez ontem à noite.
Resolvo deixar uma carta para ela. Uso o lápis de ponta rombuda e a
caderneta de anotações que encontrei ao lado do telefone e escrevo.
Muito obrigado. Você me ajudou muito. E desculpe o telefonema no
meio da noite que perturbou o seu sono. Mas eu realmente não tinha
ninguém a quem recorrer nesta região a não ser você, Sakura.
Depois de chegar a este ponto, paro um instante para pensar. Passeio o
olhar em torno do quarto.
Você não faz idéia do quanto lhe sou grato por me ter deixado dormir
em seu apartamento e também por me ter convidado a morar uns tempos
com você. Seria realmente bom se eu pudesse aceitar. Mas acredito que não
é justo incomodá-la ainda mais. Não consigo explicar direito, mas tenho
diversas razões para pensar assim. Vou me virar sozinho. Deixe guardado
um pouco de sua simpatia para a próxima vez em que me vir em apuros e
precisar de sua ajuda de novo.
Neste ponto, paro outra vez para pensar. Nalgum lugar próximo,
alguém ligou a tevê bem alto. Um programa matinal de entrevistas para
donas de casa. Os participantes berram uns com os outros, e os comerciais
que entram nos intervalos também são gritados. Sentado à mesa, giro o lápis
rombudo entre os dedos e ponho em ordem os pensamentos.
Contudo, e para ser franco, acho que não mereço sua simpatia. Eu
gostaria de me tornar uma pessoa mais digna de respeito, mas não estou
conseguindo. Espero porém que da próxima vez que nos encontrarmos eu
esteja transformado num sujeito um pouco mais decente. Quem sabe? E
ontem à noite você foi realmente maravilhosa. Mais uma vez, obrigado.
Ponho o bilhete debaixo de uma xícara. Depois, apanho a mochila e
saio do apartamento. Sigo as instruções de Sakura e deixo a chave debaixo
do capacho. Um gato malhado preto e branco dormita no meio da escada.
Pelo jeito, está habituado a ter gente por perto, pois não mostra intenção
alguma de se erguer quando me aproximo. Sento-me ao lado dele e aliso o
pêlo do seu corpo volumoso, o que desperta em mim uma vaga sensação de
nostalgia. O gato aperta os olhos e ronrona. Fico um bom tempo sentado ao
lado do gato, ambos desfrutando o prazer do contato. Depois, eu me levanto,
despeço-me dele e saio à rua. Uma chuva fina tinha começado a cair.
Agora que saí do hotel barato e do apartamento de Sakura, não tenho
mais onde passar a noite. Antes que o dia acabe, preciso procurar um teto
debaixo do qual possa me abrigar e dormir tranqüilo. Não sei nem por onde
começar a busca. Seja como for, vou tomar o trem e ir à Biblioteca Komura.
Uma vez lá, meus problemas se resolverão. Nada garante, mas tenho a
impressão de que é isso que vai acontecer.
O destino está agora prestes a me revelar alguns desdobramentos ainda
mais estranhos.
Capítulo 12
19 de outubro de 1972
Prezado Senhor:
Peço-lhe antecipadamente que me perdoe caso esta súbita e impertinente
carta venha a perturbar a tranqüila rotina de seus dias. O senhor na certa já se
esqueceu de mim, de modo que torno a me apresentar: sou a professora que
dava aulas para crianças do curso primário numa escolinha da cidade de **,
na província de Yamanashi. Esta informação talvez lhe desperte a memória.
Eu era a pessoa responsável pela atividade ao ar livre do grupo de crianças
que entrou em coma simultâneo durante o incidente ocorrido pouco antes do
fim da guerra. Algum tempo depois do referido incidente o senhor esteve
aqui na companhia de alguns militares e de colegas seus da universidade de
Tóquio para realizar as necessárias averiguações, no decorrer das quais tive a
oportunidade de me avistar e conversar consigo diversas vezes.
Desde então, e a cada vez que vejo seu ilustre nome em jornais e
revistas, venho evocando seu rosto e seu estilo lúcido de falar daqueles dias
e, ao mesmo tempo, sentindo crescer em mim o respeito por seu importante
trabalho. Tive também nos últimos tempos a honra e o prazer de conhecer
algumas obras de sua autoria, cuja leitura tem provocado em mim crescente
admiração por seu brilhante intelecto e por seu extenso conhecimento. Sua
consistente visão do mundo, segundo a qual o ser humano é solitário
enquanto existência, mas se interliga com seus semelhantes num único
arquétipo no âmbito da memória, é para mim perfeitamente convincente.
Digo isso porque já passei por diversas experiências nas quais senti o acerto
de sua visão. Faço votos para que o sucesso o acompanhe sempre em sua
carreira.
Quanto a mim, continuei a lecionar na pequena escola da cidade de **,
mas, há alguns anos, adoeci inesperadamente e, em decorrência disso, fiquei
muitos dias internada num hospital da cidade de Kofu. Nesse período, refleti
cuidadosamente e decidi me aposentar. Durante um ano, tratei minha doença
ora internada, ora freqüentando ambulatórios, mas posteriormente recuperei-
me e tive alta. No momento, exerço na mesma cidade o cargo de diretora
num curso que oferece complementação educacional para alunos do nível
primário. Filhos dos alunos a quem dei aula antigamente são agora meus
alunos. O tempo voa é um velho chavão, e verdadeiro.
Perdi meu marido e meu pai durante a guerra e também minha mãe no
caos do pós-guerra, e, como não fui abençoada com filhos no curto espaço
de tempo em que estive casada, vivo desde então sozinha no mundo. Não
posso de maneira alguma afirmar que minha vida tenha sido repleta de
felicidade, mas, no decorrer de minha longa carreira como professora, tive a
oportunidade de educar um grande número de crianças, o que modestamente
me faz sentir realizada. Por essa bênção, agradeço sempre aos céus. Não
fosse pelo magistério, eu teria talvez sucumbido às intempéries da minha
vida.
Embora saiba que estou sendo impertinente, ousei escrever-lhe porque
não encontro meios de apagar da memória o incidente do coma coletivo
ocorrido no meio de uma montanha naquele outono de 1944. Desde então,
28 anos já se passaram. A mim, contudo, me parece que o fato se deu ainda
ontem, tão estranhamente vívido e próximo o sinto de mim. Não consigo
afastar da mente a lembrança daquele dia. Ela está sempre a meu lado como
uma sombra. Me faz passar noites de insônia ou, ainda, de sono inquieto,
perturbado por sonhos.
Chego até a sentir que o incidente continua a afetar minha vida até hoje.
Um dos motivos que me levam a sentir dessa maneira é o fato de me
encontrar freqüentemente com as pessoas envolvidas (metade ainda mora
nesta cidade e tem hoje cerca de 35 anos de idade); nesses momentos, vejo-
me compelida a perguntar: quais foram suas conseqüências tanto na vida
deles quanto na minha? Grave como foi, o caso tem de ter deixado seqüelas
físicas ou emocionais. É impossível que não tenha. Contudo, no momento
em que me pergunto que forma tomou tais seqüelas na realidade ou, ainda,
qual foi a sua verdadeira extensão, sinto-me totalmente perdida.
Como o senhor mesmo sabe, sensei, na época o exército não permitiu
que o incidente se tornasse público. E uma vez terminada a guerra, as forças
norte-americanas de ocupação também preferiram conduzir as pesquisas em
caráter sigiloso. Com franqueza, penso que não existe grande diferença no
modo de agir dos militares, sejam eles americanos ou japoneses. E mesmo
depois do fim da ocupação americana e de restaurada a liberdade de opinião,
o incidente não chegou às páginas de jornais e revistas. Afinal, o
acontecimento era antigo e não acarretara perda de vidas.
Em vista disso, quase ninguém tomou conhecimento da ocorrência
deste episódio. E não é para menos: afinal, coisas desagradáveis a ponto de
nos fazer sentir vontade de tapar os ouvidos tinham ocorrido durante a
guerra, e milhares de vidas preciosas se perderam. Nessas circunstâncias,
não seria de se esperar que a notícia sobre um punhado de crianças do curso
primário que haviam perdido os sentidos simultaneamente no meio de uma
montanha chegasse a espantar alguém. Mesmo nesta cidade, o número de
pessoas que se lembra do episódio não é grande. E os poucos que ainda se
lembram não parecem dispostos a comentá-lo. Na verdade, até entendo essa
atitude, já que esta é uma cidade pequena, e o incidente foi desagradável
para os envolvidos.
A grande maioria dos acontecimentos é esquecida com o passar do
tempo. Pouco a pouco, tanto a monstruosa guerra como a perda irreparável
de preciosas vidas vão se tornando ocorrências de um passado distante.
Nossas emoções são dominadas pelo cotidiano e muitos fatos de vital
importância se distanciam do nosso consciente como estrelas velhas e
geladas. Temos coisas demais para pensar em nossa vida diária, coisas
demais para aprender. Novos sistemas, novos conhecimentos, novas
técnicas, novo jargão… Por outro lado, existem lembranças que, por mais
tempo que se passe e aconteça o que acontecer, não conseguimos de maneira
alguma apagar de nossa memória. Lembranças que não se desgastam. Que
restam em nosso íntimo, irremovíveis como pedras angulares. Para mim, o
incidente ocorrido naquele bosque é uma delas.
Pode até ser que seja tarde demais. E pode também ser que o senhor,
sensei, esteja se perguntando: que quer essa mulher a esta altura dos
acontecimentos? Apesar disso, há um fato relativo àquele incidente que
desejo desesperadamente lhe contar antes de morrer.
Naqueles tempos de guerra havia coisas que não podiam ser facilmente
mencionadas porque vivíamos sob rígida censura. Especialmente na
oportunidade em que me encontrei com o senhor, sensei, os militares
presentes tornavam o ambiente pouco propício ao uso da franqueza. Além de
tudo, eu mesma não conhecia nem ao senhor, nem ao seu maravilhoso
trabalho. Eu era muito nova e não me senti nem um pouco inclinada a
revelar assuntos da minha intimidade a estranhos do sexo oposto. E assim,
ocultei alguns fatos. Em outras palavras: ao expor publicamente as
circunstâncias em que ocorreu o incidente, alterei de maneira intencional
parte delas por razões particulares. E quando, finda a guerra, os militares
americanos conduziram investigações próprias, contei a eles a mesma
história. Ou seja, tornei a mentir por medo e para manter as aparências. Em
conseqüência, eu talvez tenha tornado ainda mais difícil o esclarecimento do
estranho incidente e, em certa medida, distorcido o resultado final das
pesquisas. Aliás, tenho certeza de que isso realmente ocorreu. Não encontro
palavras para descrever a tristeza e o peso que venho carregando em minha
consciência durante todos estes longos anos.
Eis a razão por que lhe escrevo esta longuíssima carta, sensei. Seus dias
devem ser de constante atividade e em meio a ela pode ser que eu represente
apenas uma contrariedade. Se assim for, considere esta missiva simples
ladainha de mulher em começo de velhice e a descarte. Na verdade, o que eu
quero é apenas deixar registrada, enquanto ainda sou capaz disso, a verdade
existente por trás dos fatos, ou seja, entregar minha confissão a alguém
competente. No momento, estou livre da doença que me deixou tanto tempo
acamada, mas não sei quando o mal tornará a se manifestar. Ficarei muito
grata se o senhor puder levar este detalhe em consideração.
Na véspera do dia em que levei meus alunos à montanha, sonhei com meu
marido. Convocado pelo exército, ele estava na linha de frente mas surgiu
em meu sonho pouco antes do amanhecer. O sonho teve realística conotação
sexual. Por vezes, sonhos podem ser vívidos a ponto de tornar difícil
delinear claramente os limites que os separam da realidade, e este foi um
deles.
Sonhei, pois, que nós dois copulávamos diversas vezes sobre uma rocha
plana como tábua de preparar alimentos. A rocha se situava em local
próximo ao pico de uma montanha, era acinzentada e tinha o tamanho de
dois tatames. Sua superfície era lisa e úmida. O céu, nublado, ameaçava uma
chuva torrencial. Não havia vento. O dia parecia estar findando e pássaros se
apressavam rumo a seus ninhos. E debaixo desse céu de tormenta, nós dois
copulávamos em silêncio. Meu marido e eu tínhamos sido separados pela
guerra pouco depois de nos casarmos, e meu corpo ansiava por ele de
maneira violenta.
O prazer físico que senti em meu sonho foi tão intenso que não
encontro palavras para descrevê-lo. Copulamos em diversas posições e de
diversas maneiras, e atingi o clímax muitas vezes. Pensando bem, foi uma
coisa muito estranha, já que meu marido e eu éramos tímidos por natureza:
nunca antes tínhamos sido levados pela luxúria e experimentado tantas
posições diferentes, e eu mesma nunca alcançara orgasmos tão intensos. Seja
como for, no sonho, tínhamos lançado longe as restrições do cotidiano e
copulávamos como animais.
Quando acordei, já começava a clarear e eu me sentia muito estranha. O
corpo me pesava como chumbo e, além do mais, continuava a sentir meu
marido bem fundo em mim. O coração batia acelerado e a respiração estava
oprimida. Minha genitália estava úmida, como se eu realmente houvesse
copulado. A sensação que restava em mim era também tão intensa e aguda
que me deixou confusa, como se tudo fosse verdade e não um sonho, como
se os diversos intercursos tivessem realmente acontecido. Embora
envergonhada, confesso que me masturbei em seguida. Tive de recorrer a
isso para acalmar o intenso desejo sexual que sentia naquele momento.
Depois, peguei a bicicleta e fui para a escola, onde reuni as crianças e,
em seguida, as conduzi ao morro da Tigela. Enquanto andava pela trilha da
montanha, eu ainda gozava os efeitos da cópula. Fechando os olhos, era
capaz de sentir a ejaculação do meu marido atingindo o colo uterino. O
líquido seminal batendo na parede do útero. Eu sentia tudo isso e me
agarrava às costas de meu marido. Coxas apartadas em ângulo quase
inimaginável, eu prendia os tornozelos nas coxas dele. Tudo indica que andei
em estado de semi-abstração enquanto escalava a montanha em companhia
das crianças. Pode ser que eu ainda estivesse no mundo daquele vívido
sonho.
Depois de escalar a montanha e chegar ao bosque visado, estávamos
nos preparando para sair à procura dos cogumelos quando senti de repente
que começava a menstruar. Aliás, fora de época. Meu período terminara
havia pouco mais de dez dias e sempre fora regular. Podia ser que o sonho
erótico tivesse excitado uma função qualquer e provocado a menstruação de
maneira extemporânea. Seja como for, era inesperado e eu não tinha comigo
o material apropriado para aquela emergência. Pior ainda, estávamos no
meio de uma montanha, distantes da civilização.
Mandei as crianças descansarem um pouco e, embrenhando-me no
bosque, adotei medidas emergenciais com a ajuda de algumas toalhas de
mão que trouxera comigo. A hemorragia era considerável, e eu me apavorei
momentaneamente, mas imaginei que as toalhas dariam conta do recado até
o momento de retornarmos à escola. Minha mente estava anuviada e eu não
conseguia raciocinar direito. Acredito também que experimentava uma leve
sensação de culpa. Pelo sonho de teor escandaloso, por me ter masturbado e
por me ter perdido em devaneios eróticos na presença das crianças. Eu era
do tipo reprimido.
Decidida portanto a encerrar a atividade ao ar livre e a descer a
montanha o mais breve possível, disse às crianças que saíssem em busca dos
cogumelos nos arredores. Eu sabia que, retornando à escola, teria meios para
solucionar o problema. Assim, sentei-me por instantes e fiquei vigiando as
crianças. Cuidei o tempo todo de contar as crianças e de impedi-las de
saírem do meu campo visual.
Passados instantes, porém, notei que um dos meninos vinha em minha
direção trazendo alguma coisa na mão. O garoto se chamava Nakata.
Exatamente: aquele que, depois do incidente, permaneceu internado longo
tempo em coma. O que ele trazia era a minha toalha de mão ensangüentada.
Perdi o fôlego. Não consegui acreditar no que via. Pois eu havia me
descartado do pano num ponto distante onde, segundo calculei, as crianças
jamais chegariam ou, caso chegassem, não o achariam, já que eu o ocultara
muito bem. Claro! Qualquer mulher consideraria extremamente embaraçoso
deixar à vista aquela toalha suja. E eu não conseguia entender de que jeito o
menino conseguira encontrá-la.
Quando dei por mim, eu já tinha esbofeteado o menino Nakata. Eu o
tinha agarrado por um dos ombros e batido em seu rosto diversas vezes.
Acho que lhe disse qualquer coisa aos berros. Eu estava totalmente
transtornada. Perdera por completo o controle. Analisando agora, acredito
que sentia vergonha e profundo abalo emocional. Até então, eu jamais
levantara a mão para qualquer criança. Mas quem estava ali não era eu.
E então, dei-me conta de que as crianças me olhavam fixamente. Todas
sem exceção voltavam o rosto para mim, algumas em pé, outras acocoradas.
Diante dos seus olhos, ali estava eu, pálida como cera, e, no chão, onde caíra
depois de esbofeteado, jazia o menino Nakata, assim como a toalha
manchada de sangue. Por momentos, todos nós nos imobilizamos,
congelados. Ninguém se moveu, ninguém disse nada. Desprovidos de
qualquer expressão, os rostos das crianças me pareciam máscaras de bronze.
Um silêncio pesado descera sobre a floresta. Apenas se ouvia o chilrear dos
pássaros. Ainda hoje me lembro daquela cena com muita nitidez.
Não sei quanto tempo se passou. Não muito, segundo creio. Mas a mim me
pareceu uma eternidade. Eu me senti encurralada, banida para o extremo do
universo. Mas aos poucos me recobrei. Ao meu redor, a paisagem recuperou
o colorido normal. Ocultei a toalha suja de sangue às minhas costas e ergui
em meus braços o menino Nakata, que jazia no chão. Abracei-o com força e
pedi-lhe sinceras desculpas. Errei, me perdoe, eu lhe disse. Ele também
estava em estado de choque. Seus olhos haviam perdido o foco e achei que
ele não ouvia o que eu lhe dizia. Com ele ainda nos braços, mandei que as
demais crianças voltassem a procurar cogumelos. E então, elas voltaram à
tarefa interrompida como se nada houvesse acontecido. Creio que não
conseguiram avaliar direito os acontecimentos que acabavam de presenciar.
Na certa tudo lhes pareceu muito estranho e inesperado.
Por instantes permaneci imóvel, sempre com o menino Nakata nos
braços. Como seria bom se eu pudesse morrer neste exato momento!, pensei.
Queria desaparecer, ir para algum lugar desconhecido. Mas havia uma
monstruosa guerra em curso num mundo bem próximo a mim, e um número
excessivo de pessoas estava morrendo. Eu já não sabia mais discernir o falso
do real. Não sabia se a paisagem que eu via era real, se suas cores eram
reais, se o canto dos pássaros que me chegava aos ouvidos era real… Sentia
raiva, medo, e submergi em intensa vergonha. No interior daquele bosque
me senti sozinha e me perturbei por completo enquanto o sangue fluía do
meu útero aos borbotões. Chorei e chorei, em silêncio, serenamente.
E foi depois disso que as crianças entraram em coma coletivo.
Creio que o senhor compreendeu agora a razão de eu não ter conseguido
contar esta história repleta de pormenores embaraçosos diante dos militares.
Eram tempos de guerra, tempos em que tínhamos de viver de aparências. De
modo que, ao contar minha história, deixei de lado detalhes referentes ao
início da menstruação, à toalha ensangüentada que o menino Nakata me
trouxe e ao fato de eu havê-lo esbofeteado. Temo que, em vista disso, o
inquérito e as pesquisas desenvolvidas pelo senhor e sua equipe tenham sido
obstruídos. Contudo, sinto neste momento indescritível alívio por ter
conseguido contar minha história sem nada omitir.
Por estranho que possa parecer, nenhuma das crianças se lembra desse
incidente. Isto é, ninguém se recorda da toalha manchada de sangue,
tampouco de mim esbofeteando Nakata. O fato desapareceu da memória de
todas elas. Depois do incidente, tratei por iniciativa própria de questionar
indiretamente as crianças uma a uma e me certifiquei disso. Esta
particularidade talvez esteja indicando que o coma coletivo já tinha se
iniciado àquela altura.
Na qualidade de professora, permita-me tecer em seguida algumas
considerações a respeito do menino Nakata. Não sei o que foi feito dele após
o incidente. De acordo com o oficial do exército americano que me
entrevistou depois da guerra, o menino foi levado para um hospital militar
em Tóquio, onde ainda permaneceu em coma por longo tempo, mas
posteriormente recuperou a consciência e foi liberado. Nada mais sei além
disso. Deduzo que o senhor, sensei, deve saber muito mais que eu.
Nakata era um dos cinco alunos evacuados de Tóquio e matriculados
em minha classe. Aliás, o mais aplicado e inteligente dentre eles. Era bonito
e vestia-se bem. Isso porém não o impedia de ser gentil e modesto. Nunca
erguia a mão durante as aulas oferecendo informações. Contudo, respondia
corretamente as perguntas feitas diretamente a ele e opinava de maneira clara
e lógica quando solicitado. Apreendia de imediato o sentido de qualquer
matéria que lhe fosse ensinada. Em toda classe temos sempre um aluno com
estas características. Não precisam ser supervisionados porque estudam
sozinhos, são aprovados em universidades de excelente nível e, uma vez
inseridos na sociedade, obtêm convenientes postos de trabalho. Em suma,
são crianças bem-dotadas.
Contudo, alguns aspectos da personalidade do menino Nakata me
incomodaram. Vez ou outra, eu entrevia em suas atitudes algo semelhante à
resignação. Por exemplo, ele não demonstrava alegria depois de resolver
problemas particularmente difíceis. O esforço prolongado não o deixava
ofegante, e descobrir-se errado depois de buscar arduamente soluções para
um problema qualquer também não parecia lhe causar dor. Não suspirava,
não ria. Faço porque tem de ser feito, parecia me dizer o tempo todo.
Procurava apenas se livrar com destreza dos problemas que surgiam diante
dele. Como o operário que, com uma chave de fenda na mão, aperta o
parafuso da peça que lhe chega pela esteira na linha de produção.
Talvez a origem do problema estivesse no ambiente familiar. Como não
conheci os pais dele, que moravam em Tóquio, nada posso afirmar com
certeza. Posso apenas dizer que me deparei algumas vezes com tipos
parecidos no decorrer de minha longa carreira de professora. Em virtude da
própria condição, uma criança bem-dotada se vê incessantemente requisitada
— por pais ou por professores, ou seja, pelos adultos em torno dele — a
vencer um número cada vez maior de desafios rumo a determinados
objetivos. Solicitada dia após dia a resolver incontáveis problemas de
natureza variada, esta criança deixa de sentir ao longo dos anos a emoção
normal e a pura alegria da realização. Com o passar do tempo ela cerrará
com firmeza as portas do coração e passará a ocultar suas emoções. E, para
descerrar tais portas, muito tempo e esforço terão de ser despendidos. O
espírito infantil é maleável, suscetível a todo tipo de distorção. E uma vez
distorcido e enrijecido, não será fácil revertê-lo à condição original. Aliás, é
impossível na maioria das vezes. Nesta altura, acho conveniente encerrar
minhas considerações puramente amadorísticas, pois o senhor, sensei, é o
especialista no assunto.
Outra coisa que eu não podia ignorar nas atitudes do menino era a
sombra da violência. Percebi repetidas vezes manifestações fugazes de medo
em seu rosto e em seus gestos. Imagino que eram o reflexo da violência a ele
imposta durante longo tempo, violência essa cujo grau eu não tinha meios de
avaliar. Mantendo rígido autocontrole, o menino Nakata ocultava esse medo
com muita habilidade. Claro, porém, que lhe seria impossível dissimular até
as leves contrações musculares diante de determinados acontecimentos.
Deduzi portanto que havia algum tipo de violência em seu lar. A convivência
diária com crianças me tornou perceptiva quanto a esse tipo de situação.
A violência doméstica impera na zona rural. Os pais são agricultores
em sua maioria. Vivem nos limites da pobreza. No fim do dia, estão sempre
exaustos do pesado trabalho braçal que se inicia nas primeiras horas da
manhã e, em decorrência, buscam alívio no saquê. Nestas circunstâncias,
tendem a bater em vez de repreender verbalmente. Este fato é sobejamente
conhecido, não se constitui em segredo. Por seu lado, as crianças se
habituam aos bofetões e é raro ficarem com problemas emocionais por causa
disso. Mas outro era o caso do menino Nakata, cujo pai era professor
universitário. A mãe também tinha excelente formação, segundo depreendi
das cartas que me escreveu. Em outras palavras, a família pertencia à elite
urbana. Nestas condições, a violência doméstica teria componentes mais
complexos e interiorizados, algo diferente daquela rotineiramente
experimentada por crianças da zona rural. Em suma, violência do tipo que
uma criança se vê obrigada a enterrar em seu íntimo e a carregar sozinha.
Foi portanto lamentável em todos os aspectos a violência que eu,
embora de modo involuntário, perpetrei contra o menino Nakata e disso me
arrependo amargamente até hoje. Não deveria nunca ter agido daquela
maneira. Obrigado a integrar um programa de evacuação em massa que o
afastou dos pais, o menino acabara introduzido num meio diferente e,
tirando proveito desta nova situação, ele se preparava para confiar em mim
naqueles dias.
Com minha atitude intempestiva, creio ter dado um golpe fatal na sua
disposição de se abrir comigo. Desejei do fundo do coração empenhar todo o
meu tempo para, se possível, corrigir o erro. Mas o desenrolar dos
acontecimentos tornou tal correção impossível. Nakata foi mandado
inconsciente para um hospital em Tóquio, e nunca mais o vi. Isto será para
mim causa de eterno arrependimento. Ainda hoje me lembro claramente da
expressão que surgiu em seu rosto no momento em que o esbofeteei. Vejo
com nitidez a resignação e o profundo medo que se estamparam naquele
pequeno rosto.
Peço desculpas pelo tamanho desta carta que eu não pretendia tão longa, mas
quero ainda fazer uma última observação. Meu marido faleceu nas Filipinas
pouco antes do fim da guerra, mas a notícia de sua morte não me abalou
muito. O que experimentei foi apenas uma profunda sensação de impotência.
Não foi nem de desespero, nem de ira. Não derramei uma única lágrima.
Pois eu já sabia que isso — isto é, que meu marido perderia sua jovem vida
num campo de batalha — aconteceria. De um modo vago, sua morte tinha
sido estabelecida e aceita como fato inequívoco um ano antes da sua
ocorrência real, ou seja, naquele mesmo dia em que sonhei que copulava
sofregamente com ele, em que menstruei de modo extemporâneo, em que
escalei a montanha e em que, descontrolada, esbofeteei o menino Nakata e vi
meus alunos caírem em inexplicável coma coletivo. Quando a morte do meu
marido me foi comunicada, eu apenas comprovei esse fato. Uma parte da
minha alma ainda permanece presa àquela floresta. Pois a experiência
daquele dia extrapolou qualquer outra de toda a minha vida.
Encerro esta canhestra missiva desejando-lhe sinceramente muita saúde
e contínuo sucesso em suas pesquisas.
Atenciosamente,
Capítulo 13
Nakata esteve muitos dias seguidos no terreno baldio fechado com tapume.
No decorrer desse período, ficou apenas um dia em seu próprio apartamento
fazendo pequenos trabalhos de marcenaria porque chovera forte desde cedo;
nos demais dias, sentou-se no meio do mato que tomara conta do terreno à
espera da gatinha malhada perdida ou do homem que usava o chapéu
estranho. Sem êxito.
No fim do dia, Nakata ia até a casa dos seus contratantes e apresentava
um relatório verbal dos acontecimentos — onde fora e o que fizera para
obter mais informações sobre a gatinha desaparecida. A dona da casa lhe
pagava cerca de 3 mil ienes todos os dias. Era, em média, o preço do
trabalho de Nakata. Ninguém sabia direito quando ou quem o estipulara, mas
o fato é que o pagamento de 3 mil ienes diários se tornara praxe na mesma
época em que a fama de Nakata como eficiente localizador de gatos
perdidos se espalhara de boca em boca pelo bairro. E, além do dinheiro, o
contratante devia também oferecer algo mais a Nakata. Comida ou roupa,
tanto fazia. E se ao fim e ao cabo Nakata conseguisse realmente descobrir o
paradeiro do gato, ele faria jus a uma gratificação extra de 10 mil ienes.
A renda mensal que Nakata obtinha dessa maneira era irrisória, pois
nem sempre lhe pediam para procurar gatos perdidos; por outro lado, suas
despesas também não eram grandes porque o irmão logo abaixo dele — o
qual também administrava as parcas finanças de Nakata — pagava do legado
(insignificante) dos falecidos pais as taxas de serviço público (água, luz etc.)
e também porque recebia do governo o subsídio referente à manutenção de
idosos portadores de deficiência, ajuda essa por si só capaz de lhe
proporcionar uma vida despreocupada. Assim, o homem poderia gastar à
vontade o dinheiro — considerável na opinião dele — que ganhava para
localizar gatos perdidos, mas, para dizer a verdade, Nakata só sabia usá-lo
para comprar, vez ou outra, o prato de enguia que tanto apreciava. O restante
do dinheiro ele escondia debaixo do tatame do próprio quarto, pois, sem
saber ler nem escrever, era incapaz de preencher os formulários necessários
para depositar o referido dinheiro em agências bancárias ou do correio.
Nakata não revelava a ninguém sua capacidade de conversar com gatos.
Além dele próprio, os únicos que sabiam disso eram os felinos. Temia que o
imaginassem louco caso revelasse o segredo. Sua burrice era fato público e
notório, mas, no entender de Nakata, havia uma diferença entre ser burro e
ser louco.
Vez ou outra, alguém podia passar ao lado dele enquanto se dedicava a
um absorvente diálogo com um gato à beira de uma calçada qualquer, mas
ninguém estranhava. Idosos conversando de igual para igual com animais de
estimação são cenas corriqueiras. Assim, quando alguém lhe perguntava:
“Como consegue saber tanto a respeito do caráter ou do modo de pensar dos
gatos? Até parece que você troca idéias com eles!”, Nakata apenas sorria em
silêncio. As donas de casa da vizinhança gostavam dele porque era sério,
educado e sorridente. Outra característica que angariava a boa vontade das
matronas era seu asseio. Nakata era pobre, mas gostava de tomar banho e de
lavar roupa; ademais, vestia-se bem porque, além do dinheiro, ganhava das
mulheres que lhe pediam para procurar gatos perdidos muitas peças boas e
novas refugadas pelos maridos. Não se podia afirmar que a camisa pólo
rosa-salmão com o emblema de Jack Nicklaus lhe caísse bem, mas Nakata
pouco se importava com tais detalhes.
Em pé na entrada da casa, Nakata relatou de maneira hesitante para a
senhora Koizumi, a empregadora do momento, a situação da busca.
— Com relação à gatinha Goma, Nakata conseguiu finalmente uma
informação. Quem a deu foi um certo Kawamura, que disse ter visto há
alguns dias uma gatinha malhada muito parecida com Goma no terreno
baldio fechado com tapume da rua Dois, que fica duas avenidas além desta.
A idade, as cores e até a coleira descritas por Kawamura correspondem às da
gatinha Goma. Nakata pretende ficar de tocaia nesse terreno. Nakata leva um
lanche de casa e se senta ali desde a manhã até a noite. Não, não se
preocupe. Tempo é o que não falta, e Nakata só não vai estar lá no terreno se
o dia for de chuva muito forte. Mas, se a senhora um dia achar que Nakata
não precisa mais continuar vigiando o terreno, basta falar. Porque então
Nakata pára imediatamente.
Ele não revelou que Kawamura não era uma pessoa e sim um gato
listrado. Trazer o assunto à baila só iria complicar a conversa.
A senhora Koizumi agradeceu a Nakata. As duas filhas pequenas
estavam quase doentes de tristeza porque a gata malhada que tanto amavam
tinha desaparecido. Nem comiam direito. Tudo indicava que a preocupação
delas era genuína, elas não se consolavam com observações do tipo: “Ora,
gatos costumam desaparecer de uma hora para outra, faz parte da sua
natureza.” A família considerou portanto sorte muito grande ter encontrado
alguém como Nakata, disposto a se dedicar com afinco à busca em troca de
míseros 3 mil ienes diários. Realmente, o velhinho era um tanto exótico,
falava de modo estranho, mas sua fama como localizador de gatos perdidos
era grande, e parecia ser gente boa. Era honesto, ou melhor, não parecia,
com o perdão da palavra, esperto o bastante para enganar os outros. A
senhora Koizumi pôs num envelope o pagamento do dia e o entregou a
Nakata juntamente com um tupperware contendo porções de risoto recém-
preparado e de inhame cozido.
Com uma reverência, Nakata aceitou o tupperware, aspirou de leve o
aroma que vinha dele e agradeceu:
— Muito obrigado. Nakata adora inhame cozido.
— Espero que esteja do seu gosto — replicou a senhora Koizumi.
Uma semana se passou desde o dia em que Nakata começara a vigiar o
terreno baldio. Nesse ínterim, viu diversos gatos no local. O marrom listrado
Kawamura vinha várias vezes por dia ao terreno, aproximava-se de Nakata e
o cumprimentava cordialmente. Nakata retribuía o cumprimento. Falava
então do tempo, do subsídio que recebia do governo. Contudo, Nakata
continuava não entendendo a maioria do que Kawamura lhe dizia.
— Kawara aflito, encolhido no caminho — disse Kawamura. Tudo
indicava que o gato se esforçava por transmitir alguma coisa a Nakata. Este
porém não entendeu coisa alguma. “Nakata não compreende”, disse o
homem honestamente.
Por instantes, Kawamura pareceu perturbar-se, mas logo repetiu a
mesma coisa (provavelmente) de maneira diferente:
— Kawara amarrado no grito, sabe?
Mas o sentido desta frase era ainda mais obscuro.
Ah, como seria bom se Mimi estivesse aqui, pensou Nakata. Ela
aplicaria um tapa na cara de Kawamura e o faria expressar-se direito. Em
seguida, transmitiria a Nakata o que apurara. Mimi era sem dúvida uma gata
muito inteligente. Mas não estava ali. Pois ela nunca visitava campos
abertos. O medo que tinha de pegar pulgas devia ser muito grande.
Kawamura despejou uma torrente de frases sem nexo e se foi, sorrindo
amavelmente.
Havia também outros gatos indo e vindo constantemente. A princípio,
estes trataram Nakata com desconfiança e o observaram de longe com
ostensiva contrariedade, mas quando enfim se deram conta de que ele
permanecia o dia todo sentado num mesmo lugar sem lhes fazer mal algum
resolveram não se importar mais com ele. Nakata porém sempre tentava
estabelecer contato com eles. Cumprimentava-os e se apresentava. Mas
quase todos os felinos o ignoravam, não se dignavam a lhe responder.
Fingiam não vê-lo nem ouvi-lo. E nisso eram mestres. Na certa tinham
sofrido muito nas mãos de seres humanos. Seja como for, Nakata não podia
censurar-lhes a falta de sociabilidade. Afinal, ele era um estranho na
sociedade felina. Não estava em posição de exigir nada deles.
Mas nesse meio surgiu um único gato bastante curioso que respondeu
ao breve cumprimento de Nakata.
— Quer dizer que o velhinho aí sabe falar — disse após breve hesitação
o gato malhado preto e branco de orelhas rasgadas, passeando o olhar em
torno. Seu modo de se expressar era grosseiro, mas parecia ter gênio bom.
— Muito pouco, mas sei, sim senhor — respondeu Nakata.
— Pode ser pouco, mas é espantoso! — disse o gato.
— Meu nome é Nakata — apresentou-se o homem. — E o seu?
— E eu cá tenho essas coisas? — replicou o gato asperamente.
— Que acha do nome Okawa? Nakata pode chamá-lo assim?
— Que me importa? Me chame do que quiser.
— Nesse caso — disse Nakata —, Okawa gostaria de comer uns
peixinhos secos para comemorar a nossa aproximação?
— Peixe seco? Maravilha! Esse é um dos meus pratos preferidos.
Nakata tirou de dentro da sacola alguns peixes secos embrulhados em
filme plástico e os deu a Okawa. Nakata sempre tinha alguns consigo.
Okawa os devorou ruidosamente e se regalou. Comeu-os inteiros, cabeça e
rabo inclusive. Depois, lavou a cara.
— Fico lhe devendo essa — disse Okawa. — Quer que eu retribua de
alguma forma? Posso lamber algum pedaço seu.
— Não, obrigado, Nakata fica contente de saber que você gostou, mas
não está precisando de ser lambido no momento. Muito obrigado mais uma
vez. Hum… Mas para falar a verdade, Nakata está procurando esta gatinha a
pedido dos donos dela. É uma fêmea malhada, de nome Goma.
Tirou da sacola a foto de Goma e a mostrou a Okawa.
— Alguém disse que ela foi vista neste terreno. E, por isso, Nakata
passa os dias sentado aqui à espera da gatinha. Okawa por acaso não viu
Goma nestas redondezas?
Okawa lançou um rápido olhar à foto e depois suas feições se tornaram
sombrias. Uma ruga surgiu entre as sobrancelhas e ele piscou diversas vezes.
— Escute, não pense que não gostei de ganhar os peixinhos secos
porque gostei, é verdade. Mas desse assunto não posso falar. Não quero me
meter em encrenca.
Nakata ficou atônito ao ouvir isso.
— Se você falar vai se meter em encrenca?
— E das grossas. Esse assunto é perigoso. Esqueça essa gatinha, deixe
isso para lá. Quem avisa amigo é. E acho melhor você mesmo se afastar
daqui. Preste atenção, estou lhe dando um conselho de amigo. Sinto muito
não poder ajudá-lo mais, mas considere o aviso como pagamento pelo peixe
seco.
Assim dizendo, Okawa se ergueu, olhou ao redor e desapareceu no
meio do mato.
Nakata suspirou fundo, tirou da sacola a garrafa térmica e bebeu seu
chá verde lentamente, com toda a calma. É perigoso, dissera Okawa. Mas
Nakata não conseguia imaginar nada perigoso com relação àquele local. Ele
estava apenas procurando uma gata malhada perdida. Que perigo haveria
nisso? Ou seria perigoso o homem do chapéu estranho mencionado por
Kawamura, o tal homem que pegava gatos? Mas Nakata era um ser humano.
Não era gato. E por que um homem haveria de temer caçadores de gato?
Mas no mundo havia muitas coisas e razões incompreensíveis para
Nakata. De modo que parou de pensar. Com seu cérebro deficiente, pensar
só lhe trazia dor de cabeça. Acabou de beber o precioso chá, tampou a
garrafa térmica e a guardou na sacola.
Depois que Okawa desapareceu no mato alto, nenhum outro gato
surgiu. Só algumas borboletas voejavam calmamente sobre a relva. Um
bando de pássaros desceu em pontos esparsos sobre o mato e logo partiu
outra vez. Nakata caiu diversas vezes em leve modorra e a cada vez acordou
sobressaltado. Pela posição do sol, soube a hora aproximada.
A tarde já caía quando o cão surgiu diante de Nakata.
O cão surgiu de repente do meio do mato. Silencioso, aproximou-se a
passos lentos. Era enorme e preto. Do lugar em que se sentava, Nakata
ergueu a vista e o achou mais parecido com um bezerro. Tinha patas longas,
pêlo curto e músculos nodosos, rijos como aço. Suas orelhas terminavam em
ponta aguçada como punhal, e estava sem coleira. Nakata não entendia
muito bem de raças caninas. Bastou-lhe porém um olhar para perceber que
este cão era feroz — ou assim se tornaria caso precisasse. Lembrava aqueles,
do exército.
O olhar era agudo, inexpressivo, e os músculos em torno da boca caíam
pesadamente deixando à mostra caninos pontiagudos. Havia traços de
sangue nos dentes. Observando melhor, Nakata notou também algo pegajoso
semelhante a um naco de carne aderido ao canto da boca. A língua rubra que
se mostrava vez ou outra por entre os dentes lembrava labaredas. O olhar do
cão se voltou diretamente para o rosto de Nakata e se fixou nele. Por um
longo tempo o cão nada disse, nem se moveu. Nakata também permaneceu
em silêncio. Ele nunca fora capaz de falar com cães. Os únicos animais com
quem conseguia conversar eram os gatos. Os olhos do cão lembravam
esferas de vidro cheias de água de pântano, gelada e turva.
Nakata inspirou de leve, com calma. Dificilmente se apavorava.
Compreendeu de maneira natural que estava em situação de perigo naquele
momento. Soube também com razoável clareza que o animal diante de si
tinha (não entendeu por quê) intenções hostis. Contudo, ele próprio não se
sentiu ameaçado pelo perigo iminente. A morte, por exemplo, sempre
estivera presente nalgum canto da sua imaginação. A dor, porém, se situava
além da sua consciência: ele a conheceria somente no momento em que a
sentisse. A dor conceitual lhe era incompreensível. Eis por que a visão do
cão feroz não apavorou Nakata. Ele apenas sentiu leve constrangimento.
“Levante-se!”, ordenou o cão.
Nakata engoliu em seco. O cão falava! Mas na verdade ele não estava
falando. A boca não se mexera. Ele estava apenas transmitindo a mensagem
por um processo diferente da fala.
“Levante-se e siga-me!”, ordenou o cão.
Obediente, Nakata se ergueu. Pensou em dizer alguma coisa à guisa de
cumprimento, mas considerou melhor a idéia e desistiu. Mesmo que
conseguisse se comunicar com o animal, achou que isso não lhe traria
nenhum proveito. Além de tudo, Nakata não se sentia nada disposto a
conversar com o cão. Nem a lhe dar um nome. Tinha a impressão de que
jamais viria a ser amigo dele, por mais que tentasse.
Ocorreu-lhe de chofre que o cão talvez tivesse vindo a mando do senhor
governador. “Ele soube que Nakata ganha uns trocados localizando gatos
perdidos e mandou o cão para cancelar a pen-são. Não seria de se estranhar
que governadores possuíssem cães adestrados do exército. E, nesse caso,
Nakata está em apuros”, pensou.
Ao ver que Nakata se erguia, o cão começou a andar lentamente.
Nakata pôs a sacola ao ombro e o seguiu. O cão tinha um rabo curto e, na
área próxima à sua base, volumosos testículos.
O cão cruzou em linha reta o terreno baldio e saiu por uma fenda no
tapume. Não se voltou nenhuma vez. Na certa não precisava porque ouvia
passos que o acompanhavam logo atrás. Liderado pelo animal, Nakata andou
por diversas ruas. Notou que se aproximava da área comercial e que o
número de transeuntes crescia. Em sua maioria eram donas de casa da
vizinhança que tinham saído para fazer compras. O cão mantinha a cabeça
erguida e avançava de maneira imperiosa, sempre fixando o olhar à frente.
Ao ver o vulto preto de ostensiva ferocidade, as pessoas que vinham em
sentido contrário abriam caminho às pressas. Alguns ciclistas chegaram até a
se apear e a cruzar a rua em direção à calçada oposta.
Nakata teve a impressão de que as pessoas o evitavam. Talvez o
censurassem intimamente por andar com um cão tão grande sem coleira nem
guia. Realmente, alguns transeuntes lhe dirigiram franco olhar reprovador.
Isso o entristeceu. Tinha vontade de explicar às pessoas que não agia desse
modo por querer. Ao contrário, Nakata está sendo levado por este cão.
Nakata não é forte. Nakata é na verdade muito fraco.
Sempre na liderança, o cão percorreu uma grande distância. Transpôs o
distrito comercial, atravessou diversos cruzamentos ignorando todos os
semáforos. Isso não representou grande perigo porque as ruas não eram
muito largas e os carros não vinham em alta velocidade. Ao verem o animal,
todos os motoristas se apressavam a frear. O cão arreganhava os dentes,
fixava o olhar feroz nos motoristas e cruzava a faixa para pedestres no sinal
vermelho a passos lentos, desafiadores. Nakata não tinha outro recurso senão
segui-lo. O cão sabia perfeitamente como funcionavam os sinaleiros. Ele
apenas os ignorou. Nakata deu-se conta disso. O cão parecia habituado a agir
de acordo com a própria vontade.
Nakata já não sabia por onde andavam. Continuara na área residencial
do bairro de Nakano até determinada altura do percurso, mas, depois de
dobrar certa esquina, viu-se de repente em zona totalmente desconhecida.
Nakata se sentiu inquieto. E se ele se perdesse e não conseguisse mais achar
o caminho de volta? Aquela área talvez nem fizesse parte do bairro de
Nakano. Olhou em torno em busca de algum marco conhecido. Não viu
nenhum. Ele nunca estivera por ali.
Alheio a tudo, o cão continuava a andar no mesmo ritmo e com a
mesma postura impositiva. Cabeça erguida, orelhas em pé, testículos
movendo-se de leve como pêndulos e passos de velocidade calculada a fim
de possibilitar a Nakata segui-lo sem esforço.
— Por favor, importa-se de me informar se ainda estamos no bairro de
Nakano? — indagou Nakata.
O cão não lhe respondeu. Nem se voltou.
— O senhor tem relações com o governador?
O cão não respondeu outra vez.
— Nakata está apenas procurando o paradeiro de uma gatinha. Uma
gatinha malhada. Ela se chama Goma.
Silêncio.
Nakata desistiu. Não adiantava falar com o cão.
Estavam agora num canto silencioso de uma área residencial. Naquele
trecho, mansões grandes se sucediam e não havia ninguém andando na rua.
O cão entrou numa das mansões. O muro em estilo antigo era de pedras
sobrepostas, e nele havia um imponente portão de folha dupla, raro nos dias
atuais. Uma das folhas estava aberta. Na entrada de carros havia um veículo
grande estacionado. Preto como o cão e impecavelmente lustrado. A porta da
entrada também se achava escancarada. O cão se meteu mansão adentro sem
hesitar. Nakata descalçou os tênis velhos, juntou-os de modo ordeiro no
vestíbulo de terra batida, tirou o chapéu de alpinista, guardou-o na sacola,
espanou muito bem as folhas secas e a grama aderidas à roupa e só depois
disso pisou a área assoalhada da mansão. O cão parara à espera de que
Nakata acabasse de se arrumar e, em seguida, o conduziu por um corredor de
brilhantes tábuas polidas, em cujo extremo havia um aposento que lembrava
um gabinete ou uma sala de visitas.
Estava escuro dentro do aposento. O dia findava, e a janela que dava
para o jardim achava-se vedada por grossa cortina. Não havia nenhuma luz
acesa. No fundo do aposento existia uma escrivaninha grande, a cujo lado
parecia haver alguém sentado. Mas com os olhos ainda desajustados ao
ambiente escuro Nakata não conseguia discernir direito. Viu flutuando na
escuridão apenas uma silhueta humana negra semelhante a uma figura
recortada. Quando Nakata entrou, a silhueta moveu-se lentamente.
Aparentemente, o vulto se sentava numa cadeira giratória e se voltara. O cão
parou, sentou-se no chão e fechou os olhos. Parecia declarar que cumprira
sua missão.
— Boa-tarde — disse Nakata na direção do contorno escuro.
Não recebeu resposta.
— Nakata veio visitá-lo. Não é ladrão nem bandido.
Silêncio.
— Nakata seguiu o senhor cachorro porque ele disse: “Siga-me.” Por
isso acabou entrando em sua casa sem ser convidado. Desculpe. Se o senhor
não se importa, Nakata prefere ir embora agora mesmo…
— Sente-se nessa poltrona — disse o homem. A voz era calma, mas
vibrante.
— Sim senhor, Nakata vai se sentar — disse o velho. Acomodou-se em
seguida na poltrona indicada. O cão preto se sentou rente a seu lado, imóvel
como uma estátua.
— O senhor é o governador?
— Algo parecido — respondeu o outro no escuro. — Se lhe facilita a
compreensão, pode pensar que sou. Não faz diferença alguma.
O homem voltou-se para trás, estendeu a mão, puxou uma corrente e
acendeu um abajur. A luz era mortiça e amarelada, como a de lâmpadas
antigas, mas foi suficiente para revelar todos os cantos da sala.
Ali estava um homem alto que usava um chapéu de seda preto de copa
alta. Sentava-se numa cadeira giratória revestida de couro preto, e tinha os
pés cruzados diante do corpo. Vestia paletó vermelho longo e justo sobre
colete preto e calçava botas pretas. Suas calças eram brancas como neve e
muito justas. Lembravam perneiras. Ergueu uma mão e a levou à aba do
chapéu. Como num cumprimento a uma dama. Na mão esquerda,
empunhava uma bengala, cuja cabeça, dourada, se assemelhava a uma bola.
Pelo jeito do chapéu, Nakata imaginou que se tratava do caçador de gatos
referido por Kawamura.
O rosto não era tão marcante quanto as roupas. O homem não era novo,
nem muito velho. Nem bonito, nem feio. As sobrancelhas eram negras e
grossas e as faces exibiam um vermelho sadio. Cara imberbe, estranhamente
lisa e brilhante. O homem mantinha os olhos levemente apertados e um
meio-sorriso frio nos lábios. O rosto seria difícil de ser relembrado, pois o
que chamava a atenção eram suas roupas extravagantes. Ninguém talvez o
reconhecesse caso surgisse vestido de maneira diferente.
— Você já sabe o meu nome, não sabe?
— Não, senhor — respondeu Nakata.
O estranho pareceu um tanto desapontado.
— Tem certeza?
— Tenho. Desculpe não ter dito desde o começo, mas Nakata não é
bom da cabeça.
— Não se lembra de ter visto minha imagem nalgum lugar? —
perguntou o homem erguendo-se da cadeira, mostrando o perfil e dobrando
uma perna, como se caminhasse. — Deste jeito?
— Não, senhor. Desculpe. Nakata não se lembra de tê-lo visto.
— Ah, entendi. Acho que você não tem o costume de tomar uísque —
disse o homem.
— Não, senhor. Nakata não bebe nada alcoólico. E também não fuma.
Não pode fazer nada dessas coisas porque é pobre e precisa de uma pen-são
do governo para poder sobreviver.
O homem tornou a se sentar na cadeira e a cruzar as pernas. Pegou um
copo de cima da mesa e bebeu um gole do uísque ali contido. O gelo retiniu.
— Pois eu lhe peço licença para beber o meu. Posso?
— Claro. Nakata não se importa. Beba à vontade.
— Obrigado — disse o homem. Em seguida, voltou a observar o velho.
— De modo que você desconhece meu nome.
— Sim, senhor. É uma pena, mas Nakata não conhece.
O homem curvou de leve os lábios. Um breve frêmito, que lembrou o
ondular de uma superfície aquática, fez o sorriso gelado que lhe brincava nos
lábios se distorcer, desaparecer momentaneamente e retornar logo em
seguida.
— Qualquer indivíduo que tem o hábito de beber uísque logo me
reconheceria… Mas não tem importância. Meu nome é Johnnie Walker.
Johnnie Walker. Quase todo o mundo me conhece. Longe de mim a intenção
de me gabar, mas sou mundialmente famoso. Quase um ícone. Contudo, não
sou o verdadeiro Johnnie Walker. Não tenho nada a ver com destilarias
britânicas. No momento, estou apenas usando a forma e o nome no rótulo
sem a devida autorização. Afinal, todo mundo necessita de uma forma e de
um nome.
Um silêncio pesado reinou na sala. Nakata não conseguia compreender
nada do que seu interlocutor lhe dizia. Ele apenas entendeu que o nome do
estranho era Johnnie Walker.
— O senhor Johnnie Walker é estrangeiro?
Johnnie Walker pendeu a cabeça para um dos lados, pensativo.
— Bem, se isso lhe facilita a compreensão, sou. Tanto faz se sou
estrangeiro ou cá da terra. Aliás, sou ambas as coisas.
Nakata continuava sem entender o que o outro lhe dizia. Essa conversa
se assemelhava com aquelas que tivera com o gato listrado Kawamura, não
havia diferença alguma.
— Quer dizer que o senhor é estrangeiro, mas também não é?
— Exato.
Nakata resolveu não se aprofundar no assunto.
— E o senhor Johnnie Walker mandou este senhor cachorro trazer
Nakata até aqui?
— Mandei — respondeu Johnnie Walker com simplicidade.
— Isto significa que o senhor Johnnie Walker quer alguma coisa de
Nakata?
— A mim me parece que você quer alguma coisa de mim — disse
Johnnie Walker. Sorveu outro gole de seu uísque com gelo. — Segundo
entendi, você esteve durante muitos dias no terreno baldio à espera de que eu
aparecesse.
— É verdade, foi assim mesmo. Nakata tinha se esquecido. Nakata tem
a cabeça fraca e logo se esquece das coisas. Mas foi exatamente como o
senhor disse. Nakata estava à espera do senhor Johnnie Walker porque
queria lhe fazer perguntas a respeito de uma gatinha.
Johnnie Walker bateu na bota de couro com a bengala preta. Golpeou
de leve, mas a pancada seca ecoou pela sala. O cão mexeu de leve as orelhas.
— O tempo e a maré não esperam por ninguém. Vamos adiantar a nossa
conversa, está bem? — disse Johnnie Walker. — Você quer me perguntar a
respeito da gatinha Goma, não é?
— Sim, senhor, exatamente. Nos últimos dez dias andei tentando, a
pedido da senhora Koizumi, descobrir o paradeiro da gatinha malhada
Goma. Será que o senhor Johnnie Walker sabe onde ela está?
— Sei, sei sim.
— Sabe onde ela está agora?
— Sei onde ela está agora.
Com a boca entreaberta, Nakata observou o rosto de Johnnie Walker.
Por uma fração de segundo transferiu o olhar para o chapéu de seda preto e
depois tornou a fixar o rosto. Os lábios finos de Johnnie Walker se achavam
cerrados de maneira decidida.
— É perto daqui?
Johnnie Walker acenou a cabeça diversas vezes.
— Bem pertinho.
Nakata passeou o olhar pelo aposento. Não viu nenhum gato. Viu
apenas a escrivaninha, a cadeira giratória onde se sentava o homem, a
poltrona onde o próprio Nakata se sentava, mais duas cadeiras, o abajur e a
mesinha de café.
— Nesse caso — disse Nakata —, será que Nakata pode levar Goma
embora?
— Isso depende de você.
— Depende de Nakata?
— Exato. Depende de Nakata — disse Johnnie Walker arqueando de
leve apenas uma das sobrancelhas. — Levar embora ou não a gatinha
depende apenas de uma resolução sua. Se a levar, a senhora Koizumi e suas
duas filhas vão ficar felicíssimas. Mas pode ser que você não consiga levá-
la. E então, todas ficarão desesperadas. Você não quer deixá-las
desesperadas, quer?
— Não, senhor. Nakata não quer deixá-las desesperadas.
— Nem eu. Também não quero deixá-las desesperadas. Naturalmente.
— Mas então, o que Nakata tem de fazer?
Johnnie Walker girou a bengala na mão diversas vezes. — Vou lhe
pedir para fazer certa coisa.
— E Nakata seria capaz de fazer essa coisa?
— Nunca peço aos outros nada que não sejam capazes de fazer. Porque
isso representaria perda de tempo, certo?
Nakata pensou algum tempo.
— Nakata acha que sim.
— Donde se conclui que o que vou pedir a Nakata é algo que ele é
capaz de fazer, certo?
Nakata tornou a pensar.
— Sim, acho que a conclusão está correta.
— Genericamente falando, toda hipótese pressupõe a existência de uma
evidência contrária.
— Hum? — fez Nakata.
— Onde não há evidência contrária, não há progresso científico —
disse Johnnie Walker batendo no cano da bota com a bengala. O modo de
bater era provocante. O cão tornou a mover as orelhas. — De jeito nenhum.
Nakata tinha fechado a boca.
— Para falar a verdade, andei muito tempo à procura de alguém como
você — disse Johnnie Walker. — E não foi fácil encontrar. Ontem, porém,
eu o vi por acaso conversando com um gato. No mesmo instante cheguei à
conclusão de que ali estava a pessoa que eu procurara durante todos estes
longos anos. E por isso o trouxe até aqui. E me desculpe se o fiz passar tanto
incômodo.
— Não foi nenhum incômodo. Nakata tem tempo de sobra — disse o
velho.
— E então, formulei uma série de hipóteses a seu respeito — continuou
Johnnie Walker. — E, claro, preparei também as respectivas evidências
contrárias. Uma espécie de jogo, entende? Um jogo mental solitário. Mas em
qualquer tipo de jogo, há vencedores e vencidos. No presente caso, será
essencial averiguar qual hipótese é verdadeira e qual é falsa a fim de poder
determinar o vencedor e o vencido. Mas você na certa não está entendendo
nada do que eu digo.
Nakata sacudiu a cabeça em silêncio.
Johnnie Walker bateu duas vezes com a bengala no cano da bota.
Atendendo ao sinal, o cão se ergueu.
Capítulo 15
O cão preto se ergueu e levou Nakata para a cozinha, que se situava a poucos
passos do gabinete, seguindo por um corredor escuro. Poucas janelas,
sombrio. Em perfeita ordem mas sem vida, como um laboratório escolar. O
cão parou diante da porta de uma geladeira espaçosa e voltou o olhar gelado
para Nakata.
Abra a porta da esquerda, ordenou em voz baixa. Mas Nakata
percebeu que o cão não dissera nada. Quem falava era Johnnie Walker. Era
ele que se comunicava com Nakata por intermédio do cão. Via Nakata pelos
olhos do animal.
Nakata abriu a porta esquerda da geladeira verde-abacate, conforme lhe
ordenavam. O aparelho era mais alto que o próprio Nakata. O termostato
emitiu um estalido e, no mesmo instante, o motor gemeu e entrou em ação.
Uma fumaça branca que lembrava neblina brotou de seu interior. O lado
esquerdo da geladeira era um congelador ajustado em temperatura
extremamente baixa.
Dentro dele, objetos arredondados semelhantes a frutas tinham sido
armazenados em fileira. Devia haver cerca de vinte desses objetos. E mais
nada. Nakata se curvou um pouco, apertou os olhos e procurou discerni-los.
Quando a fumaça branca enfim se dissipou pela porta aberta, Nakata
percebeu que os tais objetos não eram frutas. Eram cabeças de gato. Cabeças
decepadas, de várias cores e tamanhos, arrumadas em três prateleiras como
laranjas em quitanda. Congeladas, encaravam Nakata. O bom homem
engoliu em seco.
Olhe bem, ordenou o cão. Verifique com seus próprios olhos se
alguma dessas cabeças é a da gata Goma.
Obediente, Nakata examinou-as uma a uma. Não se sentiu
especialmente apavorado. Tinha apenas um objetivo em mente: descobrir o
paradeiro da gatinha Goma. Examinou criteriosamente todas as cabeças e se
certificou de que a de Goma não estava ali. Teve certeza. Nenhuma era
malhada. Os gatos transformados em simples cabeças tinham uma curiosa
expressão vazia. Nenhum deles parecia ter sofrido. Esse detalhe foi o único
consolo para Nakata. Embora alguns tivessem os olhos fechados, a maioria
os tinha abertos e fixos vagamente num ponto no espaço.
— A gatinha Goma não está aqui — disse Nakata com voz apática.
Pigarreou de leve e fechou a porta da geladeira.
Tem certeza?
— Sim, Nakata tem certeza.
O cão se ergueu e reconduziu Nakata ao gabinete. Johnnie Walker ainda
o esperava, sentado na cadeira giratória de couro. Ao ver que Nakata entrava
na sala, levou a mão à pala do chapéu de seda num arremedo de continência
e sorriu cordialmente. Em seguida, bateu palmas duas vezes. O cão se
retirou.
— Eu mesmo decepei aquelas cabeças — disse Johnnie Walker.
Depois, pegou o copo e bebeu um gole de uísque. — Eu as coleciono.
— Quer dizer que o senhor é realmente o homem que pega e mata os
gatos do terreno baldio?
— Exatamente. Eu mesmo, sem tirar nem pôr. Sou o famoso matador
de gatos Johnnie Walker.
— Nakata não consegue entender direito e quer fazer uma pergunta.
Pode?
— Claro, claro — disse Johnnie Walker. Ergueu o copo de uísque. —
Pergunte à vontade tudo que quiser. Responderei com muito prazer. Mas,
para economizar nosso tempo, vou adiantar um pouco a história: antes de
mais nada, o que você quer saber é a razão por que eu mato os gatos. Ou
seja, o que me leva a colecionar suas cabeças. Acertei?
— Acertou. É isso que Nakata quer saber.
Johnnie Walker depôs o copo sobre a mesa e encarou Nakata.
— Este é um segredo valioso que não costumo revelar a qualquer um,
mas vou contá-lo só para você, Nakata, como um favor especial. Portanto,
não o divulgue para o mundo inteiro, entendeu? Aliás, acho que ninguém
acreditaria mesmo que você o fizesse…
Assim dizendo, o estranho homem riu baixinho.
— Veja bem: não mato gatos por diletantismo. Não sou doente a ponto
de matá-los por prazer. Além do mais, dá muito trabalho reunir tantos
animais… Eu os mato para juntar suas almas. Com elas, pretendo produzir
uma flauta especial. Depois, toco a flauta e reúno almas maiores. E com
essas almas maiores, vou produzir uma flauta ainda maior. No final, creio
que terei uma flauta de proporções cósmicas. Mas tenho de começar com
gatos. Tenho de reunir almas de gato. Elas são o ponto de partida. Pois para
tudo no mundo existe uma ordem que precisa ser seguida. Obedeço
fielmente a ordem e assim manifesto respeito. Afinal, estou lidando com
almas. Não com abacaxis ou melões. Concorda?
— Sim — respondeu Nakata, na verdade sem entender coisa alguma.
Flauta? Flauta doce ou transversal? E como soaria? Para começo de
conversa, que jeito tinha a alma de um gato? Tais questões iam muito além
da sua capacidade de compreensão. A única coisa que sabia com certeza era
que tinha de achar a gatinha Goma de qualquer modo, e de devolvê-la sã e
salva aos Koizumi.
— E você quer, mais que qualquer coisa, levar a gatinha Goma de volta
para a casa dela — disse Johnnie Walker como se tivesse lido seus
pensamentos.
— Sim senhor. Nakata quer levar a gatinha Goma de volta para a casa
dela.
— Essa é a sua missão — disse Johnnie Walker. — Todos nós temos
missões a cumprir na vida. É natural. Mudando de assunto, deixe-me
perguntar: você já ouviu o som de uma flauta feita com alma de gatos?
— Não, senhor. Nunca.
— Claro que não. Porque seu som é inaudível ao ouvido humano.
— Uma flauta inaudível?
— Exato. Mas eu consigo ouvi-la, naturalmente. Se nem eu
conseguisse, esta história não faria sentido. Mas um ser humano comum não
consegue. Pode até estar ouvindo, mas não percebe. E mesmo que já a tenha
ouvido antes, é incapaz de se lembrar disso. A flauta é misteriosa. Mas você,
Nakata, talvez seja capaz de ouvi-la. Eu até faria um teste se tivesse uma
delas comigo, mas por infelicidade não disponho de nenhuma neste
momento — disse Johnnie Walker. Em seguida, ergueu um dedo no ar como
se algo muito importante acabasse de lhe ocorrer. — Na verdade, Nakata, eu
estava para cortar, dentro de instantes, a cabeça de todos os gatos que
apanhei nos últimos dias. Acho que é época de colheita, entende? Já capturei
todos os gatos do terreno baldio e está na hora de me mudar para outras
bandas. A gatinha Goma que você procura também está no meio desta
última leva. Mas se eu lhe cortar a cabeça, você não poderá levá-la de volta
aos Koizumi. Concorda?
— Concorda, sim senhor — disse Nakata. Não podia voltar para os
Koizumi levando a cabeça da gatinha. Se as duas meninas a vissem,
perderiam para sempre a vontade de comer.
— Eu quero decepar a cabeça de Goma. Você não quer. Nossas missões
e nossos interesses se conflitam. Isto acontece com muita freqüência. Agora,
precisamos negociar. Ou seja: eu poderia lhe entregar Goma sã e salva se
você, Nakata, fizesse certa coisa para mim.
Nakata levou a mão ao topo da cabeça de cabelos curtos e grisalhos e a
massageou com força diversas vezes. Era o gesto costumeiro dos momentos
em que procurava pensar seriamente.
— E Nakata seria capaz de fazer essa coisa?
— Tenho certeza de que já falamos a respeito disso há pouco — disse
Johnnie Walker com um sorriso.
— É verdade, sim senhor — disse Nakata, lembrando-se. — É verdade.
Já conversamos a respeito disso ainda há pouco. Desculpe.
— Não disponho de muito tempo. Portanto, vou direto ao assunto.
Quero que me mate. Ou seja, que me tire a vida.
Com a mão pousada no topo da própria cabeça, Nakata encarou Johnnie
Walker longamente.
— Nakata tem de matar o senhor Johnnie Walker?
— Exato — disse Johnnie Walker. — Vou ser franco com você: cansei
de viver, Nakata. Vivi muito. Tanto, que já nem sei quantos anos tenho. Não
quero viver mais. Também me cansei dessa história de matar gatos. Mas
enquanto viver, não posso deixar de matá-los. E de juntar suas almas. Tenho
de fazer as coisas em ordem, obedecendo cuidadosamente as etapas de um a
dez, e toda vez que alcançar a etapa dez, voltar à um outra vez. E repetir o
ciclo eternamente. Isso acaba se tornando aborrecido e cansativo. E as coisas
que eu faço não trazem felicidade para ninguém. Nem me tornam merecedor
do respeito alheio. Mas como existe uma regra preestabelecida, não posso
dizer: “Chega, parei!”, e largar tudo a esta altura. Além do mais, não posso
dar cabo da minha própria vida. Isto também foi previsto na regra. Não
posso me suicidar. Existem muitas regras. Se eu quiser morrer, só tenho uma
saída: pedir a alguém que me mate. Aí está a razão por que eu quero que
você me mate. De maneira decisiva, com muito medo e ódio. Primeiro, você
sente medo de mim. Depois, me odeia. E, no devido tempo, me mata.
— Por quê? — disse Nakata. — Por que Nakata, que até hoje nunca
matou ninguém? Nakata não presta para esse tipo de serviço.
— Sei disso muito bem. Você nunca matou nem pensou em matar
ninguém. Você não presta para esse tipo de serviço. Mas veja bem, Nakata:
neste mundo, existem circunstâncias em que esse tipo de justificativa não
funciona. Circunstâncias em que alguém tem de fazer o serviço,
independentemente de prestar ou não para isso. Compreenda. Por exemplo,
numa guerra. Você sabe o que é guerra, não sabe?
— Sim, Nakata sabe o que é guerra. Quando ele nasceu, havia uma
grande em curso. Pelo menos foi o que contaram a Nakata.
— Quando uma guerra eclode, os homens são recrutados para o
exército. Depois, se transformam em soldados, carregam fuzis ao ombro, vão
para as linhas de frente e matam soldados do exército inimigo. Quanto mais
matarem, melhor. Ninguém tem a consideração de perguntar a você se gosta
ou não de matar. Porque é isso que você tem de fazer. Do contrário, você é
que será morto.
Johnnie Walker voltou a ponta do dedo indicador na direção do peito de
Nakata:
— Buum! — disse ele. — Eis um resumo da história da humanidade.
Nakata perguntou:
— O senhor governador vai alistar Nakata e mandá-lo matar outras
pessoas?
— Isso mesmo. O senhor governador vai mandar. Mate, dirá ele.
Nakata pensou alguns instantes a respeito do que acabara de ouvir, mas
não conseguiu concatenar as idéias. Por que haveria o governador de mandá-
lo matar outras pessoas?
— De modo que você tem de pensar da seguinte maneira: Isto aqui é
uma guerra. E você é um soldado. Você precisa tomar uma decisão. Ou você
me mata, ou eu, Johnnie Walker, mato os gatos. Só existem estas duas
opções. Aqui e agora, você está sendo pressionado a fazer a escolha. Do seu
ponto de vista, esta escolha deve parecer realmente irracional. Mas pense um
pouco: a maioria das escolhas que você tem de fazer na sua vida é irracional!
Johnnie Walker levou a mão ao chapéu de seda e o tocou de leve. Como
se buscasse confirmar que ainda o tinha na cabeça.
— Para você, o único conforto — se precisa disso — será saber que eu
mesmo desejo sinceramente morrer. Eu estou lhe pedindo: mate-me!
Portanto, o ato de matar não deverá lhe pesar na consciência. Pois você
estará apenas satisfazendo meu desejo. Concorda? Você não estará matando
alguém que implora para não morrer. Ao contrário, você estará praticando
um ato que pode ser considerado benemérito.
Nakata levou a mão à testa e enxugou as gotas de suor que começavam
a porejar na raiz do cabelo.
— Mesmo assim, Nakata não consegue. Mesmo que digam para matar,
Nakata não sabe como fazer uma coisa dessas.
— Tem razão! — disse Johnnie Walker com um toque de espanto na
voz. — Tem toda razão. Vejo certa lógica no que diz. Você não sabe como se
faz uma coisa dessas. Claro que não, pois esta será a primeira vez que
mata… Concordo plenamente com você. Muito bem. Vou lhe ensinar o jeito.
Na hora de matar, um dos truques é não hesitar. Embora não sejam humanas,
tenho aqui algumas boas amostras. Vão servir para elucidá-lo.
Johnnie Walker se ergueu da cadeira e apanhou uma valise até então
oculta sob a escrivaninha. Depois, depositou-a sobre a cadeira em que
estivera sentado, abriu a tampa assobiando alegremente e, como num
número de mágica, retirou um gato do seu interior. Um gato desconhecido.
Macho, cinzento e listrado. Mal chegado à idade adulta. O gato tinha os
olhos abertos, mas estava inerte. Parecia consciente. Sempre assobiando,
Johnnie Walker apanhou o gato com as duas mãos e o mostrou a Nakata,
como se exibisse um peixe recém-pescado. A melodia que assobiava era a
“Eu vou”, cantada pelos sete anões no filme Branca de Neve e os sete anões,
de Walt Disney.
— Tenho cinco gatos dentro desta valise. Foram todos pegos no terreno
baldio. Recém-caçados, fresquinhos. Direto do campo para a mesa. Injetei
neles uma droga que lhes paralisou o corpo. A droga não é anestésica.
Portanto, os gatos não estão adormecidos, seus sentidos funcionam. Sentem
perfeitamente a dor. Mas como têm os músculos paralisados, não conseguem
mover as patas. Nem virar a cabeça. Faço isso para evitar que se debatam e
me arranhem. Dentro de instantes, vou abrir a barriga deles com uma faca,
retirar o coração ainda pulsante e depois decepar-lhes a cabeça. Vou fazer
tudo isso diante de seus olhos. Vai correr muito sangue. A dor será
indescritível. Você também sentiria muita dor se lhe abrissem a barriga e lhe
arrancassem o coração a sangue frio, não sentiria? Pois é isso que vai
acontecer com estes gatos. Não podem deixar de sentir dor. Tenho pena
deles, não nego. Não sou nenhum sádico desalmado. Faço isto porque não
posso evitar. Tem de haver dor. Essa é a regra. Cá estamos de novo falando
de regras. Esta zona é regida por muitas regras, percebeu?
Assim dizendo, Johnnie Walker piscou um olho para Nakata.
— Mas trabalho é trabalho. Missão é missão. Vou executar todos eles
em ordem, um por um, e por último a gatinha Goma. Temos ainda um pouco
de tempo, de modo que você pode se decidir até lá. Das duas, uma: ou eu
mato os gatos, ou você me mata.
Johnnie Walker depôs o gato inerte sobre a escrivaninha. Em seguida,
abriu uma gaveta, retirou um pacote preto e grande e o ergueu nos braços.
Depositou-o com muito cuidado sobre a mesa, abriu o embrulho de pano
preto e expôs os objetos que continha. Um pequeno serrote circular, bisturis
cirúrgicos de diversos tamanhos, uma faca grande. Todos os instrumentos
emitiam um brilho esbranquiçado, como se acabassem de ser polidos.
Johnnie Walker examinou-os um a um com muito carinho antes de dispô-los
sobre a escrivaninha. De uma outra gaveta tirou pratos de aço e também os
enfileirou sobre a escrivaninha. Parecia estar preparando um cenário. Retirou
também da gaveta um saco plástico de lixo, preto e grande. Sempre
assobiando “Eu vou”.
— Todas as coisas do mundo têm de ser feitas de maneira ordenada,
Nakata — disse Johnnie Walker. — Não adianta olhar muito adiante.
Porque, nesse caso, você perde de vista a área em torno dos pés e cai. Isto
não significa porém que você deva fixar o olhar no chão e nas miudezas em
torno dos pés. Não senhor, você precisa olhar para frente a fim de não ir de
encontro a obstáculos. Observe portanto apenas uma pequena área diante de
si e faça as coisas seguindo fielmente a ordem. Isso é essencial. Em todas as
circunstâncias.
Johnnie Walker apertou de leve os olhos e, por instantes, acariciou
carinhosamente a cabeça do gato. Depois, com a ponta do indicador
percorreu de cima a baixo diversas vezes a macia barriga do felino. Apanhou
então o bisturi na mão direita e, sem nenhum aviso ou hesitação, rasgou o
ventre do macho. Foi um ato instantâneo. A barriga se abriu e os
avermelhados órgãos internos transbordaram. O gato abriu a boca e tentou
gritar, mas não se ouviu quase nada. Ele devia estar com a língua
entorpecida. Nem conseguia abrir a boca direito. Mas os olhos se contraíam
em indubitável expressão de violento sofrimento. Nakata conseguia imaginar
a intensidade da dor. E então, como se tivesse sido subitamente despertado, o
sangue esguichou. Molhou as mãos de Johnnie Walker e manchou-lhe o
colete. Mas Johnnie Walker não tomou conhecimento do sangue. Sempre
assobiando “Eu vou”, meteu a mão no corpo do gato e com a ajuda de um
bisturi pequeno retirou o coração com destreza. O coração era pequeno. E
parecia bater ainda. Johnnie Walker pôs o pequeno órgão sangrento sobre a
palma da mão e o mostrou a Nakata.
— Isto é o coração. Ainda pulsa. Veja.
Depois de exibi-lo por instantes, lançou-o para dentro da boca com a
maior naturalidade do mundo. Em seguida, mastigou algumas vezes.
Apreciou o gosto longamente e deglutiu sem dizer nada. Seus olhos
brilhavam com a graça pura dos de uma criança que come um pedaço de
doce recém-saído do forno. Depois, enxugou com as costas da mão o sangue
que lhe restara em torno da boca. Passou a língua nos lábios e os lambeu
cuidadosamente.
— Morno e fresco. Continuava a pulsar dentro da boca.
Como não encontrou nada para dizer, Nakata contemplou a cena em
silêncio. Não conseguiu desviar o olhar. Mas algo começava a se mover em
sua mente. O aposento recendia a sangue fresco.
Johnnie Walker cortou a cabeça do gato com o serrote, sempre
assobiando “Eu vou”. Os dentes do serrote rangiam em contato com o osso
do pescoço. Seus gestos, precisos, indicavam longo hábito. Não demorou
muito porque os ossos eram frágeis. O rangido, porém, tinha um peso
inesperado. Com muito dó e carinho, o homem depôs a cabeça num prato de
aço. Afastou-se um pouco, apertou os olhos e contemplou a cabeça decepada
como se ela fosse uma obra de arte. Parou de assobiar por instantes, removeu
com a ponta da unha um naco preso entre os dentes, meteu-o na boca outra
vez e o saboreou. Em seguida, deglutiu ruidosamente com expressão
satisfeita. Por último, abriu o saco de lixo e jogou com indiferença o corpo
do gato despojado de cabeça e coração. A carcaça era inútil.
— Um liquidado! — disse Johnnie Walker, estendendo ambas as mãos
sangrentas na direção de Nakata. — Trabalho duro, não acha? A vantagem é
que posso comer corações frescos, claro, mas é bem desagradável ter de me
sujar de sangue toda vez que faço isto. “Não, esta minha mão é que
faria/Vermelho o verde mar de pólo a pólo!”**** O trecho é de Macbeth.
Embora a presente situação não seja tão grave quanto em Macbeth, custa
caro mandar lavar as roupas toda vez que me sujo de sangue. Pois como
pode ver, estas roupas são especiais. Se eu pudesse, faria tudo isso vestindo
roupas e luvas cirúrgicas, mas não posso. Isto também foi estabelecido pelas
ditas regras.
Nakata nada disse. Algo continuava a se mover em seu cérebro. O
cheiro de sangue era forte. E a melodia “Eu vou” continuava a ecoar em seus
ouvidos.
Johnnie Walker tirou o gato seguinte de dentro da mala. Era uma fêmea
branca. Meio idosa. Tinha a ponta do rabo quebrada. Johnnie Walker
acariciou-lhe a cabeça por alguns instantes em silêncio, conforme fizera com
o anterior. Em seguida, traçou com o dedo uma linha de corte no ventre do
animal. Uma linha imaginária que partia da garganta e seguia lentamente até
a base do rabo. Pegou em seguida o bisturi e, como da vez anterior, cortou-a
de chofre. O resto foi uma repetição da vez anterior. Um grito silencioso. O
tremor percorrendo o corpo inteiro. As entranhas se derramando. O coração
retirado ainda pulsante, mostrado para Nakata e lançado para dentro da boca
de Johnnie Walker. A deglutição lenta. O sorriso satisfeito. A limpeza da
boca com as costas das mãos. “Eu vou” assobiado.
Nakata afundou o corpo na cadeira. Fechou os olhos. Agarrou a cabeça
com as duas mãos. Enterrou as pontas dos dedos nas têmporas. Algo
começava a acontecer dentro dele, não havia dúvida. Caos transformando a
estrutura do seu ser. Sentiu a respiração se acelerar e uma dor aguda na
região do pescoço. Sua visão parecia estar se recompondo de maneira
abrangente.
— Ei, Nakata! — chamou Johnnie Walker alegremente. — Não vale
fechar os olhos. A função principal vai começar agora. O que lhe mostrei até
agora foi apenas uma abertura. Reles aquecimento. Agora é que vão surgir
os gatos que você conhece, Nakata. Abra bem os olhos e olhe. Pois o
verdadeiro entretenimento começa a partir deste instante. Espero que aprecie
devidamente, pois me empenhei em produzir este crescendo para você.
Sempre assobiando “Eu vou”, o homem tirou outro gato. Afundado na
cadeira, Nakata abriu os olhos e olhou. Era Kawamura. O gato fixou um
olhar intenso em Nakata. Que por sua vez suportou esse olhar. Mas Nakata
não conseguia pensar. Não conseguia nem se erguer.
— Acho que este gato dispensa apresentações, mas, por educação, vou
introduzi-lo formalmente a você — disse Johnnie Walker. — Atenção, este é
o gato Kawamura. E, Kawamura, este é Nakata. Tenham o prazer de se
conhecer mutuamente.
Johnnie Walker ergueu o chapéu de seda num gesto teatral,
cumprimentou Nakata e, depois, Kawamura.
— As apresentações foram feitas. E terminadas estas, logo começam as
despedidas. Hello, good bye. A vida é um breve adeus, ou então, uma flor na
tempestade — disse Johnnie Walker acariciando com a ponta de um dedo a
barriga macia de Kawamura. Uma carícia realmente terna e gentil. — Se
quer impedir, é agora, Nakata. É agora. As horas passam, e Johnnie Walker
não hesita. No dicionário do famoso matador de gatos Johnnie Walker a
palavra hesitação não existe.
E realmente sem hesitar, Johnnie Walker rasgou o ventre de Kawamura.
Seu grito foi perfeitamente audível. Sua língua não devia estar totalmente
paralisada. Ou então o grito deste gato tinha uma qualidade especial que o
tornava audível apenas a Nakata. Um grito agudo e violento, de enregelar os
nervos. Nakata fechou os olhos, segurou a cabeça com as duas mãos. Sentiu
as próprias mãos tremendo violentamente.
— Você não pode fechar os olhos — disse Johnnie Walker em tom
decidido. — É outra regra. Você não pode fechar os olhos. Nada vai
melhorar, mesmo que os feche. Não é porque você fecha os olhos que certas
coisas desaparecerão. Ao contrário, muitas coisas tendem a piorar. Vivemos
num mundo assim, Nakata. Abra os olhos. Fechá-los é sinal de fraqueza.
Desviar o olhar é sinal de covardia. Enquanto você fecha os olhos ou tampa
os ouvidos, o tempo passa do mesmo modo. Tique-taque, tique-taque.
Nakata abriu os olhos conforme mandavam. Johnnie Walker certificou-
se disso e comeu o coração de Kawamura em exibição acintosa. De maneira
mais lenta que antes, saboreando com mais prazer.
— É macio, morno, lembra tripas de enguias recém-pescadas — disse
Johnnie Walker. Meteu o indicador cheio de sangue na boca, chupou-o,
tirou-o para fora e o ergueu no ar. — Basta provar uma única vez este gosto
para você se viciar. Você não consegue mais esquecê-lo. A viscosidade do
sangue, então, é uma delícia indescritível.
Limpou o sangue do bisturi num pedaço de pano e, sempre assobiando
alegremente, cortou a cabeça de Kawamura com o serrote circular. Os dentes
miúdos da serra rangeram ao atingir o osso. O sangue espirrou para todos os
lados.
— Por favor, senhor Johnnie Walker. Nakata não agüenta mais.
Johnnie Walker parou de assobiar. Interrompeu o que fazia, levou a mão
a um dos lados do rosto e coçou o lóbulo da orelha.
— Ah, isso é muito ruim, Nakata. Você não pode passar mal. Me
desculpe, mas não posso dizer: “Está bem, entendi”, e parar neste ponto. Já
disse antes e torno a repetir: Isto é uma guerra. Uma vez iniciada, é difícil
interrompê-la. Agora que a espada foi extraída da bainha, tem de haver
derramamento de sangue. Não estou apenas argumentando. Tampouco
teorizando. E também não estou sendo egoísta. Estou simplesmente
seguindo uma regra. De modo que, se você não quer ver mais gatos
morrendo, só lhe resta um recurso: matar-me. Levante-se, concentre o
pensamento e me mate definitivamente. Agora. Assim, tudo estará acabado.
Ponto final.
Johnnie Walker recomeçou a assobiar, cortou a cabeça de Kawamura e
jogou com um gesto rápido o cadáver decapitado no saco de lixo. Três
cabeças repousavam agora sobre o prato de aço. Apesar do imenso
sofrimento que deviam ter experimentado, as três cabeças apresentavam uma
estranha expressão vazia. Do mesmo modo que as outras, estocadas no
congelador.
— O gato seguinte é siamês.
Assim dizendo, Johnnie Walker extraiu de dentro da mala outro felino
inerte. Claro, era Mimi.
— Mi chiamano Mimi, não é isso? Ária de Puccini. Realmente, esta
gata tem um ar coquete, mas no bom sentido. Também gosto de Puccini.
Sinto na música deste compositor algo que talvez possa ser definido como
atemporalidade eterna. O estilo é realmente popular, mas curiosamente
nunca se torna ultrapassado. Uma façanha e tanto em termos de arte.
Johnnie Walker assobiou um trecho de Mimi.
— Mas, veja bem, Nakata: penei um bocado para pegar esta gatinha.
Ela é arisca, previdente e, acima de tudo, esperta. Não se apanha este tipo de
gato com qualquer isca. Sua captura foi realmente a mais complicada de
todas que empreendi até hoje. Mas por mais vasto que seja o nosso mundo,
ainda está por nascer o felino capaz de eludir o famoso matador Johnnie
Walker. E não estou me gabando, não. Estou apenas lhe dizendo que foi
realmente difícil apanhá-la. E agora… Voilà!, aqui está a gatinha siamesa
Mimi. Mais que de qualquer outra raça, eu gosto da siamesa. Na certa você
não sabe, Nakata, mas o coração de um siamês é uma preciosidade. Seu
gosto tem um traço requintado. Como o de uma trufa, entende? Mas não se
preocupe, querida Mimi. Seu lindo coraçãozinho será devidamente
saboreado por mim. Ora essa, seu coração disparou, Mimi!
— Senhor Johnnie Walker — disse Nakata com uma voz que pareceu
sair a custo das entranhas. — Por favor. Pare com isso. Se continuar, Nakata
vai ficar estranho. Nakata já está sentindo que não é mais Nakata.
Johnnie Walker deitou Mimi sobre a escrivaninha e, como de hábito,
passou a ponta de um dedo descrevendo uma linha reta sobre o ventre de
Mimi.
— Você já não é mais você — repetiu Johnnie Walker com calma.
Como se rolasse as palavras uma a uma sobre a língua e as saboreasse. —
Uma pessoa deixar de ser ela mesma: este ponto é muito importante, Nakata.
Johnnie Walker apanhou de cima da mesa um bisturi novo e limpo, e
testou o fio com o dedo. Em seguida, passou a lâmina de leve no dorso da
própria mão. Uma breve pausa e, depois, o sangue fluiu do corte. Escorreu
pelo dorso da mão e caiu sobre a escrivaninha. Umedeceu também o corpo
de Mimi. Johnnie Walker riu mansamente. “Uma pessoa deixar de ser ela
mesma”, repetiu. Você deixando de ser você mesmo. É isso, Nakata! Que
maravilha! Este é o ponto mais importante. “Ah, repleta de escorpiões está
minha mente!” — Isto também é uma passagem de Macbeth.
Mudo, Nakata ergueu-se da cadeira. Ninguém, nem mesmo o próprio
Nakata, seria capaz de deter esse movimento. Adiantou-se em largas
passadas e apanhou, sem hesitar, uma das facas sobre a escrivaninha. Era de
tamanho grande, semelhante àquelas usadas para fatiar carne. Nakata
segurou com firmeza o cabo de madeira e, sem hesitar, enterrou a lâmina
quase até a empunhadura no peito de Johnnie Walker. Golpeou uma vez por
cima do colete preto, extraiu a faca e tornou a cravá-la com toda a força em
outro local. Nakata ouviu um ruído muito grande perto da orelha. A
princípio, não conseguiu identificá-lo. Logo porém descobriu que se tratava
de uma estrondosa risada de Johnnie Walker. Com a faca cravada fundo em
seu peito e o sangue a jorrar, o homem continuava a gargalhar
estrepitosamente.
— Isso mesmo! — gritou Johnnie Walker. — Você me esfaqueou sem
hesitar. Muito bem!
Johnnie Walker continuava a rir enquanto caía. A gargalhada
retumbava. Como se não agüentasse tanta graça. Logo, porém, o riso se
transformou em soluço e em gorgorejo de sangue no fundo da garganta. O
ruído lembrava o de um encanamento que acaba de ser desobstruído. Depois,
o corpo inteiro entrou em convulsão e o sangue saiu da boca em golfadas.
Com o sangue, foram também expelidos nacos escuros de algo pegajoso.
Eram os corações recém-deglutidos. O sangue bateu na escrivaninha e
espirrou nas roupas de golfista que Nakata usava. Johnnie Walker e Nakata
ficaram ambos banhados em sangue. Assim como Mimi, que continuava
deitada sobre a escrivaninha.
Quando Nakata tornou a si, Johnnie Walker jazia ao lado dele, morto.
Deitado de lado com as pernas e os braços encolhidos como uma criancinha
em noite de frio, ele estava realmente morto. Tinha a mão esquerda em torno
do próprio pescoço e a direita estendida adiante num gesto de súplica. Sem
mais convulsões ou gargalhadas. Mas um sorriso frio ainda brincava em seus
lábios. Ali congelado para sempre. O sangue se empoçara numa larga
extensão do assoalho, e o chapéu de seda, que lhe rolara da cabeça, se
achava caído num canto da sala. Uma calva incipiente espiava por entre o
cabelo ralo na área posterior do crânio. Sem o chapéu, o homem parecia
muito mais velho e frágil.
Nakata soltou a faca. A lâmina bateu no chão com um tinido alto.
Como se o dente de uma longínqua engrenagem tivesse avançado. Nakata
permaneceu longo tempo ao lado do cadáver sem se mover. O aposento
parecia estagnado, em calmo silêncio. Apenas o sangue continuava a
escorrer silenciosamente, aos poucos ampliando a poça. Nakata recobrou o
ânimo e pegou nos braços a gatinha Mimi, que ainda jazia sobre a
escrivaninha. Sentiu nas mãos seu corpo morno, macio e inerte. Ela estava
toda ensangüentada, mas não se ferira. Com o olhar fixo em Nakata, Mimi
parecia querer lhe dizer alguma coisa. Mas a droga a impedia de falar.
Depois, Nakata vasculhou a grande valise de couro, encontrou Goma e
a apanhou com a mão direita. Ele só a conhecia de fotos, mas sentiu um
onda de afeto engolfá-lo como se estivesse revendo um velho e querido
animal de estimação.
— Goma, linda gatinha… — disse Nakata.
Com as duas gatas nos braços, Nakata sentou-se na poltrona.
— Vamos para casa — disse ele para as gatas. Mas não encontrou
forças para se erguer. Repentinamente, o cão preto se materializou e se
sentou ao lado do cadáver de Johnnie Walker. Talvez lambesse o sangue, que
se empoçara formando um pequeno lago. Mas posteriormente Nakata não
conseguiu se lembrar direito da cena. A cabeça pesava, enevoada. Nakata
inspirou fundo e fechou os olhos. A consciência se esvaiu e ele sentiu que
submergia lentamente num profundo universo desprovido de luz.
**** No, this my hand will rather/ The multitudinous seas incarnadine / Making the green one red!
(Trad. de Manuel Bandeira.) (N. da T.)
Capítulo 17
Esta vai ser minha terceira noite na cabana. Conforme os dias passam, vou
me acostumando com a quietude e com a densa escuridão. Já não sinto muito
medo da noite. Alimento o fogareiro, ponho uma cadeira diante dele e leio
um livro. Quando me canso, esvazio a mente por completo e contemplo o
fogo. Nunca me aborreço disso. Há labaredas de diversos formatos e cores.
Elas se movem livremente, como seres vivos. Nascem, prendem-se a outras,
se separam, perdem alento e morrem.
Quando a noite é de céu limpo, vou para fora e ergo o olhar. As estrelas
já não me dão aquela assustadora sensação de impotência. Começo a senti-
las próximas a mim. Cada estrela tem um brilho diferente. Marco algumas e
examino sua luz. Noto então que emitem um repentino brilho agudo, como
se algo muito importante lhes ocorresse de súbito. A lua é branca e brilhante
e se a olho fixamente parece-me até que consigo discernir uma a uma todas
as formações rochosas da sua superfície. Nesses momentos, não consigo
pensar em nada. Eu apenas me deixo ficar em muda contemplação,
respirando com muito cuidado.
A bateria do meu walkman descarregou, mas a música não me faz tanta
falta como a princípio imaginei que faria. Encontro substitutos para ela em
toda parte: no canto dos pássaros, no cricrilar de inúmeros insetos, no
burburinho do regato, no farfalhar do vento nas árvores, nos passos ligeiros
sobre o telhado, no gotejar da chuva… E também em sons misteriosos que
por vezes me chegam ao ouvido, inexplicáveis, inexprimíveis em palavras.
Até agora, não me dera conta da infinidade de sons puros e maravilhosos que
povoam a natureza. Eu vivera minha vida inteira sem me dar conta desse
tesouro maravilhoso. Para compensar o tempo perdido, sento-me na varanda,
fecho os olhos e me anulo para melhor captar todos os sons existentes ao
meu redor.
A floresta também deixou de exercer sobre mim o pavor irracional dos
primeiros momentos. Aos poucos, passo a sentir por ela algo semelhante a
respeito, alguma cordialidade, até. Apesar disso, a área que me arrisco a
palmilhar se restringe àquela existente em torno da senda, nas proximidades
da cabana. Não devo sair do caminho. Enquanto eu respeitar esta norma não
haverá perigo para mim. A floresta me aceita em silêncio. Ou finge que não
me vê. E partilha comigo sua tranqüilidade e beleza. Mas se me desviar
minimamente da norma, as feras silenciosas de agudas garras que nela se
escondem talvez me peguem.
Passeio pela senda diversas vezes e me deito na pequena clareira
arredondada, aquecendo-me aos raios de sol que nela se empoçam. Fecho as
pálpebras com firmeza, deixo a luz me banhar e apuro os ouvidos para o som
do vento que percorre a copa das árvores. Ouço o ruflar de asas dos pássaros,
o farfalhar do feto. Sinto o pungente odor da vegetação envolvendo-me o
corpo. Nesses momentos, sinto-me livre da gravidade e flutuo a uma
pequena altura do solo. Levito. A condição não persiste por muito tempo, é
claro. Basta-me abrir os olhos e sair da floresta para que tudo se desfaça, a
sensação é momentânea. Ainda assim, a experiência me deixa atônito. Sou
capaz de flutuar!
Chove forte diversas vezes, mas logo estia. O tempo é instável nesta
região. Toda vez que chove, saio nu ao ar livre, me ensabôo e me lavo. E,
depois de cumprir uma série inteira de exercícios físicos, fico com as roupas
úmidas de suor. Então, tiro-as todas e tomo um banho de sol na varanda.
Bebo muito chá, sento numa cadeira na varanda e me dedico à leitura.
Quando o sol se põe, leio diante do fogareiro. Livros de história, ciências,
folclore, mitologia, sociologia e psicologia, assim como Shakespeare. Em
vez de lê-los superficialmente do começo ao fim, procuro repassar diversas
vezes os trechos que considero importantes até compreendê-los inteiramente.
Desta forma, sinto nitidamente que meu cérebro vai absorvendo com
segurança os mais variados conhecimentos. Seria maravilhoso se eu pudesse
ficar para sempre nesta cabana. Nas prateleiras, há ainda uma quantidade
muito grande de livros que quero ler, e o estoque de suprimentos é também
considerável. Mas sei que este é apenas um abrigo passageiro para mim. Em
breve, terei de abandoná-lo. O local é demasiadamente tranqüilo e natural,
completo demais para mim. Não o mereço ainda. É cedo demais — acho.
Oshima aparece pouco antes do almoço do quarto dia. Não ouço seu carro
chegar. Com uma mochila pequena às costas, ele se aproxima a pé. Não ouço
seus passos porque tinha caído em leve modorra enquanto tomava banho de
sol na varanda, totalmente nu. Ele deve ter chegado pé ante pé de propósito,
só para me surpreender. Sobe silenciosamente os degraus da varanda,
estende a mão e me toca de leve a cabeça. Salto em pé assustado. Procuro
uma toalha para me cobrir. Não encontro nenhuma ao alcance da mão.
— Não se acanhe — diz Oshima. — Na época em que fiquei aqui,
também tomei banho de sol completamente nu. É muito gostoso deixar o sol
queimar áreas do corpo que não vêem a luz do dia em situações normais.
Estar nu diante de Oshima me deixa sem ar. Pêlos púbicos, pênis e
escrotos estão ao sol. Parecem indefesos, vulneráveis. Não sei o que fazer.
Escondê-los àquela altura também não faz sentido.
— Bom-dia — eu digo. — Veio a pé?
— O dia está maravilhoso, ideal para isso. Seria uma pena não usar as
pernas. Larguei o carro na porteira e vim andando — responde ele. Apanha a
toalha estendida no corrimão e a passa para mim. Enrolo-a em torno dos
quadris e só então recupero o domínio.
Cantarolando baixinho, Oshima põe a água a ferver, tira farinha, ovos e
leite da pequena mochila, esquenta uma frigideira e faz panquecas. Cobre-as
com manteiga e xarope. Tira também alface, tomates e cebola. Para fazer a
salada, usa a faca com movimentos lentos e cuidadosos. Esse é o nosso
almoço.
— Como passou os três dias? — pergunta Oshima enquanto corta a
panqueca.
Conto-lhe então meu agradável cotidiano. Mas não digo nada a respeito
da incursão na floresta. É melhor.
— Fico muito contente em saber disso — diz Oshima. — Realmente,
achei que você ia gostar daqui.
— Mas agora, estamos voltando para a cidade, certo?
— Certo. Estamos voltando para a cidade.
Começamos a nos aprontar para o retorno. Arrumamos o interior da
cabana de maneira eficiente e rápida. Lavamos os utensílios de cozinha e os
guardamos no armário, limpamos o fogareiro. Esvaziamos o pequeno tanque
de água, fechamos a válvula do gás. Guardamos os mantimentos no armário
de comida, descartamos os perecíveis. Varremos o chão, limpamos com um
pano úmido a superfície da mesa e o assento das cadeiras. Cavamos um
buraco lá fora e enterramos o lixo. Juntamos sacos e recipientes plásticos e
os levamos embora.
Oshima tranca a porta. No último instante, volto-me para contemplar a
cabana. Tão real até há pouco, ela agora me parece parte de um mundo
imaginário. Basta-me afastar alguns passos e imediatamente todas as coisas
ali existentes começam a se tornar irreais. Acho até que eu mesmo, que ali
vivi até há pouco, sou um ser fictício. Levamos cerca de trinta minutos para
chegar a pé ao local onde Oshima largou o carro. Descemos o caminho até a
porteira sem quase nos falarmos. Oshima cantarola uma música qualquer.
Meus pensamentos vagueiam.
Imóvel, o pequeno carro esporte verde espera a chegada do dono, quase
camuflado na vegetação. Para evitar incursões involuntárias (ou até
voluntárias) de estranhos, Oshima tranca a porteira com duas voltas de
corrente e cadeado. Minha mochila é novamente atada com cordas no rack
traseiro. A capota é arriada: viajaremos com o carro aberto. “De volta à
civilização”, diz ele.
Aceno a cabeça em concordância.
— Ficar sozinho em meio à natureza é uma experiência realmente
maravilhosa, mas viver aí para sempre não é coisa simples — diz Oshima.
Encaixa os óculos escuros sobre o nariz e ajusta o cinto de segurança.
Sento-me a seu lado e também afivelo o cinto.
— Teoricamente é possível, tanto assim que algumas pessoas optam por
viver assim. Mas, num certo sentido, a natureza não é natural. E a calma
pode também se transformar em ameaça. Para lidar com esses dois fatores
contraditórios, são necessários preparo e experiência. De modo que vamos
voltar à cidade. À sociedade e ao local onde as pessoas trabalham.
Oshima pisa no acelerador e começamos a descer a montanha.
Diferentemente da ida, ele guia o carro em ritmo tranqüilo. Não está com
pressa. Aprecia a paisagem que se desenrola diante de nossos olhos assim
como a sensação do vento no rosto. O vento agita as mechas longas dos seus
cabelos e as empurra para trás. Logo, a estrada de terra termina e se
transforma numa via pavimentada e estreita. Aos poucos, surgem pequenas
aldeias e plantações.
— E por falar em contradições — diz Oshima como se a idéia de
repente lhe ocorresse —, sabe o que penso de você desde o primeiro
momento em que o vi? Que, por um lado, você busca alguma coisa
intensamente e, por outro, faz de tudo para fugir dessa coisa. Algo em você
me faz pensar dessa maneira.
— Busco alguma coisa intensamente? O quê, por exemplo?
Oshima sacode a cabeça. Franze o cenho olhando o retrovisor:
— O que você estaria buscando? Eu não sei. Estou apenas dizendo que
tenho essa impressão.
Continuo em silêncio.
— Sei por experiência própria que quando se busca alguma coisa
intensamente, antes de mais nada essa coisa se torna elusiva. E quando se
busca esquivar de alguma coisa, essa coisa vem ao nosso encontro
naturalmente. Mas estou generalizando, claro.
— E particularizando essa generalização, como fica o meu caso?
Supondo, é claro, que eu esteja realmente em busca de algo e ao mesmo
tempo me esquivando dele, conforme você diz…
— Esta é difícil — replica Oshima, rindo. Depois de uma breve pausa,
volta a dizer: — Mas se quer mesmo saber, acho que é o seguinte: a coisa
que você busca não deve vir a você na forma que você imagina.
— Está me soando como uma profecia sinistra.
— Cassandra.
— Cassandra? — pergunto.
— Uma tragédia grega. Cassandra é uma profetisa. Filha de rainha
Hécuba, de Tróia. Ela se torna sacerdotisa e recebe de Apolo o poder de
prever destinos. Em troca, Apolo exige que ela se submeta a ele
sexualmente, mas Cassandra se recusa, o que irrita Apolo e o faz jogar sobre
ela uma maldição. Deuses gregos são seres mais míticos que religiosos. Ou
seja, possuem os mesmos defeitos emocionais dos humanos. São
temperamentais, lascivos, ciumentos e esquecidos.
Oshima tira do porta-luvas uma caixinha de dropes de limão e põe um
na boca. Me oferece outro. Aceito.
— E que maldição foi essa?
— A que foi lançada contra Cassandra?
Aceno a cabeça para dizer que é isso mesmo.
— As profecias de Cassandra serão sempre exatas. Mas ninguém
acreditará nelas. Essa foi a maldição que Apolo lhe lançou. Além disso,
serão, por algum motivo, sempre sinistras — falarão de traições, mentiras,
mortes, queda de impérios. Por esse motivo, as pessoas não só não
acreditarão nela como vão desprezá-la e odiá-la. Leia as tragédias de
Eurípides e Ésquilo, se é que ainda não as leu. Nelas você encontrará
descrita com espantosa lucidez a essência das questões que até hoje
atormentam os seres humanos. Com khorós.
— Khorós?
— Grupos de atores que surgem em peças gregas. De pé no fundo do
palco, o grupo declama em coro para explicar a situação ou o íntimo dos
personagens em cena e, por vezes, até se empenham em influenciá-los. Um
recurso muito conveniente, aliás. Bem que eu gostaria de ter khorós próprio
às minhas costas em algumas situações.
— Você tem capacidade premonitória, Oshima?
— Não — diz ele. — Esse tipo de poder não possuo, não sei se feliz ou
infelizmente. Se às vezes dou a impressão de estar fazendo previsões
agourentas, é porque sou um realista dotado de alto grau de sensatez. Faço
deduções e generalizações. E então, minhas palavras assumem uma sinistra
conotação profética. Por quê? Porque a realidade nada mais é que um
amontoado de profecias sinistras que se tornaram realidade. Abra os jornais
de qualquer dia, ponha as notícias numa balança, as boas de um lado e as
más do outro. Logo verá que falo a verdade.
Quando uma curva se aproxima, Oshima reduz conscienciosamente a
marcha. Redução suave, nenhum solavanco. O único indicativo é uma leve
alteração no ruído do motor.
— Mas tenho uma boa notícia — diz Oshima. — Resolvemos acolher
você no quadro de funcionários da Biblioteca Memorial Komura. Tenho
certeza de que você tem qualificações suficientes.
Atônito, volto o olhar para o rosto dele.
— Isso significa que vou trabalhar na biblioteca?
— Vou especificar melhor: você será parte da biblioteca. Vai passar os
dias e as noites nela, vai morar ali. Ficará encarregado de abrir e fechar a
biblioteca nos horários estabelecidos. Você vive de maneira regrada e tem
vigor físico. Assim sendo, esse tipo de trabalho não representará uma carga
pesada demais para você. Mas tanto eu como a senhora Saeki não temos
vigor físico e sua ajuda virá a calhar. Além disso, você realizará algumas
tarefas esporádicas no dia-a-dia. Nenhuma delas de difícil execução. Por
exemplo, vai preparar um café gostoso para mim, ou fará algumas compras,
às vezes… Já arrumei um quarto para você. É anexo à biblioteca, e tem até
um chuveiro instalado no banheiro. Originariamente, o quarto se destinava a
hóspedes, mas está vago porque já não os temos nos últimos tempos. Você
passará a morar nesse quarto. O melhor de tudo é que, como você vai morar
numa biblioteca, poderá ler quantos livros quiser.
— Mas como… — começo a dizer e perco a palavra.
— Como isso se tornou possível? É isso o que você queria perguntar,
não é? — diz Oshima, concluindo a pergunta por mim. — A razão é muito
simples. Eu compreendo você, e a senhora Saeki me compreende. Eu o
aceito. A senhora Saeki me aceita. E assim, o fato de você ser um garoto
desconhecido de 15 anos de idade fugido de casa deixa de ser importante.
Mas afinal, o que você pensa de tudo isso? Isto é, da questão de se tornar
parte da biblioteca?
Penso alguns instantes. Depois, digo:
— Eu queria viver debaixo de um teto. Só isso. Não consigo pensar em
mais nada neste momento. Ainda não entendi o que significa ser parte da
biblioteca. Mas se me permitirem morar nela, ficarei muito grato. Sem falar
que não precisarei mais tomar o trem todos os dias para ir até lá.
— Nesse caso, estamos combinados — diz Oshima. — Vou levá-lo
agora para a biblioteca. E então você se tornará parte da biblioteca.
Entramos na rodovia federal e passamos por algumas cidades. Diante de
meus olhos desfilam, primeiro, um gigantesco painel publicitário de uma
financeira e, depois, um posto de gasolina com decoração chamativa,
paredes envidraçadas de lanchonetes, um motel com fachada imitando um
castelo europeu, uma videolocadora falida com o anúncio ainda inalterado,
uma casa de jogos eletrônicos com área de estacionamento enorme.
McDonald’s, Family Mart, Lawson, Yoshinoya… a barulhenta realidade aos
poucos me engolfa. Freio hidráulico de potentes caminhões, buzinas,
monóxido de carbono. Místicas labaredas no fogareiro, miríades de estrelas
cintilantes, floresta silenciosa — tudo que até ontem estivera tão próximo a
mim se afasta e desaparece. Nem consigo me lembrar direito dessas
imagens.
— Existem algumas passagens da vida da Sra. Saeki que eu gostaria
que você conhecesse — diz Oshima. — Minha mãe foi colega de classe da
Sra. Saeki na infância, as duas eram muito amigas. De acordo com minha
mãe, a Sra. Saeki era uma criança muito inteligente. Seu aproveitamento
escolar sempre foi excelente, com destaque em redação, atividades físicas e
também como pianista. Obtinha sempre a melhor nota em tudo. Além do
mais, era linda. Aliás, ainda é.
Aceno para mostrar que estou ouvindo.
— Desde os tempos do curso primário ela namorou sempre o mesmo
garoto. O filho mais velho dos Komura. Os dois eram da mesma idade e
muito bonitos. Tinham uma relação distante de parentesco, do mesmo jeito
que Romeu e Julieta. Moravam em casas próximas, iam juntos a todos os
lugares e juntos faziam todas as atividades. Uma atração natural os uniu na
infância e, quando cresceram, passaram a se amar como homem e mulher.
Minha mãe me disse que pareciam formar uma só carne e espírito.
Enquanto aguarda num sinaleiro, Oshima ergue o olhar para o céu. Na
luz verde, ele acelera e ultrapassa um caminhão-tanque.
— Você ainda se lembra do que eu lhe falei certa vez na biblioteca?
Aquela história de que as pessoas andam por aí em busca de suas metades
perdidas?
— Homem-homem, mulher-mulher e mulher-homem?
— Exato. A história de Aristófanes. Mais da metade da população
humana passa a vida inteira em desajeitada busca por sua outra metade. Mas
isso não foi necessário nem para a Sra. Saeki, nem para o namorado dela. Os
dois tinham descoberto as respectivas metades desde o momento em que
nasceram.
— Tiveram sorte.
Oshima acena, concordando.
— Tiveram muita sorte, sem dúvida alguma. Até certa altura de suas
vidas.
Oshima passa a mão pela face, como se procurasse certificar-se de que
se escanhoara direito. Mas não há vestígios de barba em seu rosto. A pele é
lisa como porcelana.
— O rapaz foi para uma faculdade em Tóquio quando completou 18
anos. Ele tinha ótimas notas e queria se especializar. Queria também
conhecer a cidade grande. Ela resolveu continuar na cidade natal e estudar
piano numa faculdade local. Assim como o povo desta parte do nosso país, a
família dela era do tipo conservador. Além de tudo, ela era filha única, e os
pais não queriam mandar seu precioso tesouro para Tóquio. E assim, os dois
jovens se viram separados pela primeira vez. Como se alguma divindade
mitológica houvesse seccionado suas vidas com um golpe de espada. Mas os
dois se correspondiam, escreviam cartas quase diárias um para o outro.
“Talvez seja importante para nós vivermos separados por algum tempo, ao
menos desta vez”, escreveu ele para ela. “Desse modo, seremos capazes de
avaliar com certeza quanto valemos um para o outro, quanto necessitamos
um do outro.” Mas ela não pensava assim. Pois sabia perfeitamente que a
relação entre eles era verdadeira e dispensava qualquer tipo de teste. A união
deles, predestinada, era de uma em um milhão, nada poderia separá-los. Ela
sabia disso. Mas ele, não. Ou talvez até soubesse, mas não fosse capaz de
aceitar essa verdade sem restrições. E, por isso, ele foi para Tóquio. Na certa
imaginou fortalecer ainda mais a união submetendo-a a provações. Homens
tendem a se comportar dessa maneira, às vezes.
“Aos 19 anos, ela escreveu um poema. Compôs uma música para os
versos e cantou, acompanhando-se ao piano. A melodia era melancólica,
bela em sua ingênua simplicidade. Em contrapartida, a letra era do tipo
reflexivo e repleta de simbolismos, de difícil compreensão em certo sentido.
E essa incongruência conferiu frescor ao conjunto. Tanto a letra quanto a
melodia clamavam, nem é preciso dizer, pelo amado distante. Ela cantou a
composição diversas vezes em público. Normalmente, ela era do tipo
recatado, mas gostava de cantar e chegou até a liderar uma banda de música
folclórica nos tempos em que freqüentava o colegial. E, numa dessas
apresentações, um entusiástico ouvinte fez uma gravação rústica da
composição e a remeteu para o diretor de uma conhecida gravadora. O
diretor, que também se encantou com a canção, chamou sua autora para o
estúdio em Tóquio e, então, decidiram gravar a canção comercialmente.
“Foi a primeira viagem dela a Tóquio. Lá, ela se encontrou com o
namorado e entre uma e outra sessão de gravação, os dois se amaram. Minha
mãe acha que os dois mantinham relações sexuais desde a época em que
tinham cerca de 14 anos de idade. Eles eram precoces. E, como muitas vezes
acontece com pessoas precoces, não conseguiram amadurecer de maneira
satisfatória. Permaneceram para sempre na faixa dos 14 ou 15 anos. Os dois
se abraçavam com firmeza e comprovavam a necessidade que um tinha do
outro. Nenhum dos dois sentia a mínima atração por outras pessoas. Mesmo
separados, não deixavam espaço para ninguém se interpor entre eles. São
aborrecidas estas histórias de amor parecidas com conto de fadas, não acha?”
Sacudo a cabeça, discordando.
— Pressinto uma grande virada mais adiante.
— Pois pressentiu certo — replica Oshima. — É assim que se
constroem as grandes histórias — com viradas estonteantes. E
acontecimentos inesperados. A felicidade é invariável. Mas a infelicidade
apresenta inúmeras facetas, se modifica de pessoa para pessoa. Exatamente
como disse Tolstoi. A felicidade é uma alegoria, a infelicidade é uma
história. Quanto à canção, foi gravada, transformou-se em disco e em
sucesso de vendas. E não em sucesso simples. Em sucesso retumbante. As
pessoas não paravam de comprar o disco. Um milhão, dois milhões de
cópias vendidas, não sei o número certo. Seja como for, constituiu-se em
recorde de vendas. Há uma foto dela na capa do disco. Ela está sentada ao
piano de cauda do estúdio de gravação e sorri voltada para a câmera.
“Como não houve tempo para preparar novas composições, gravaram
uma versão instrumental da mesma música na face B do disco. Para piano e
orquestra. Com ela ao piano. Essa execução também é maravilhosa. Tudo
isso aconteceu pela altura de 1970. Dizem que naquela época se ouvia essa
canção em qualquer estação que você sintonizasse. Foi o que minha mãe me
contou. Eu mesmo não sei, porque nem era nascido. Mas no fim das contas,
essa foi a única música que ela compôs e cantou. Nem LPs nem discos
simples se seguiram a essa gravação.”
— Acha possível que eu tenha ouvido essa canção?
— Você costuma ouvir o rádio com freqüência?
Sacudo a cabeça e nego.
— Nesse caso, não deve ter ouvido. Hoje em dia você só a ouviria em
programas radiofônicos do tipo “Melodias inesquecíveis”. Mas é
maravilhosa. Eu a tenho num CD e a ouço de vez em quando. Nunca na
presença dela, naturalmente. Ela detesta que toquem no assunto.
— E como se chama essa composição?
— “Kafka à beira-mar” — responde Oshima.
— “Kafka à beira-mar”?
— Isso mesmo, senhor Kafka Tamura. A canção tem seu nome.
Estranha coincidência, eu diria.
— Mas Kafka não é o meu nome verdadeiro, embora Tamura seja.
— Mas foi o nome que você escolheu para si, não foi?
Concordo com um aceno. Quem o escolhera fora eu: assim se chamará
meu novo eu, tinha eu decidido havia muito.
— Pois é isso que importa — completa Oshima.
Aos 20 anos, o namorado da Sra. Saeki tinha morrido. Em plena temporada
de sucesso da melodia “Kafka à beira-mar”. A faculdade que ele freqüentava
estava fechada por causa de uma greve estudantil. Ele quebrou o piquete e
entrou no campus para entregar uma refeição a um colega, que dormia lá.
Era pouco antes das dez da noite. Os grevistas que guardavam o prédio o
tomaram por um dos líderes da facção oposta (os dois se pareciam muito), o
amarraram a uma cadeira e o submeteram a uma “inquisição” por suspeita de
espionagem. Ele tentou explicar que houvera confusão de identidade, mas
foi espancado com barras e canos de ferro. Quando foi ao chão, os
estudantes o chutaram com pesadas botas. Antes do amanhecer, ele já estava
morto. Tinha o crânio partido, costelas quebradas, pulmões rompidos. Seu
corpo foi jogado no meio da rua, como um cão vadio. Dois dias depois, a
Guarda Nacional invadiu o campus por solicitação da universidade: a greve
se encerrou em poucas horas, e alguns estudantes foram presos sob a
acusação de assassinato. Os estudantes reconheceram o crime, foram
julgados, mas o júri concluiu que não houvera intenção de matar; só dois
foram presos por homicídio culposo e cumpriram pena curta. Foi uma morte
sem sentido, sob todos os aspectos.
Ela nunca mais cantou. Trancou-se no quarto e não quis falar com
ninguém. Não atendia o telefone. Não compareceu ao enterro do rapaz. Em
seguida, pediu afastamento da faculdade que freqüentava. Alguns meses se
passaram e, quando as pessoas se deram conta, ela tinha sumido da cidade.
Ninguém sabia para onde ela fora, nem o que fazia. Os pais também nada
revelavam. Acho que nem eles sabiam de seu paradeiro. Ela tinha
desaparecido, como fumaça no ar. Até mesmo a mãe de Oshima, única
amiga dela, não soube o que ela fez depois disso. Houve boatos de que
tentou o suicídio no meio da floresta em torno do monte Fuji, mas que
falhara e que estava internada num hospício. Um conhecido de um
conhecido dizia ter topado com ela na cidade de Tóquio. De acordo com essa
pessoa, ela estava em Tóquio e trabalhava como redatora, ou algo parecido.
Alguém disse também que ela se casara e tivera um filho. Mas eram apenas
boatos, não havia nada consistente por trás das notícias.
A única coisa quase certa era que, onde quer que ela tivesse estado ou
qualquer que tenha sido a forma como viveu, não passara por nenhum
problema financeiro. Royalties da venda do disco Kafka à beira-mar sempre
abasteciam sua conta bancária. A quantia era considerável, mesmo depois de
deduzidos os impostos. Ela os recebia toda vez que a canção era tocada em
rádios ou incluída em CDs de sucessos do passado. De modo que não lhe
deve ter sido difícil viver de maneira independente longe de sua terra. Além
de tudo, ela era a única filha de uma família rica.
Contudo, 25 anos depois, a Sra. Saeki retornou a Takamatsu. A razão
direta de seu retorno foi o enterro da mãe. (Cinco anos antes, o pai também
havia falecido, mas a esse enterro ela não compareceu.) Ela organizou uma
cerimônia fúnebre discreta para a mãe e, passado um tempo, vendeu a
mansão onde nascera e crescera. Em seguida, comprou um apartamento de
luxo numa área residencial tranqüila da cidade de Takamatsu, e ali se
estabeleceu. Tudo indicava que não pretendia mais se mudar. Passado algum
tempo, a família Komura entrou em contato com ela. (A chefia do clã tinha
passado para um irmão três anos mais novo que o falecido herdeiro. A Sra.
Saeki e ele conversaram a sós. Ninguém soube do que trataram nesse
encontro.) Logo depois, a Sra. Saeki passou a exercer a função de
supervisora geral da Biblioteca Memorial Komura.
Ainda hoje, ela é bonita e conserva a silhueta esguia, assim como o ar
puro e intelectual que exibe na foto estampada na capa do antigo disco. Mas
o sorriso translúcido e incondicional não existe mais. Ainda hoje, ela sorri
vez ou outra. Percebe-se porém que o sorriso, embora cativante, sofreu
limitação de tempo e espaço. Atualmente, há uma cerca alta invisível em
torno do seu sorriso. Ele não leva ninguém a lugar algum. Todas as manhãs,
a Sra. Saeki vem da cidade para a biblioteca dirigindo um Golf cinza da
Volkswagen, e nele retorna à casa no fim do expediente.
De volta à própria terra, ela não reatou relações nem com amigos nem
com parentes. E se lhe acontece de encontrar um conhecido nalgum lugar,
cumprimenta-o com educação e conversa sobre generalidades. O tema da
conversa é quase sempre o mesmo. E se acaso comentam acontecimentos
passados (principalmente aqueles que ela própria protagonizou), a Sra. Saeki
imediatamente conduz a conversa em outra direção com toda a naturalidade.
Fala sempre de maneira respeitosa e gentil, mas sem curiosidade ou
entusiasmo. Quanto aos seus sentimentos — se é que existem —, ela sempre
os guarda a sete chaves. Quase nunca expressa sua opinião pessoal,
excetuando nas ocasiões em que precisa tomar decisões de cunho prático.
Entregue a si mesma, fala muito pouco: prefere ouvir e aquiescer com gentis
monossílabos. Em conseqüência, seus interlocutores quase sempre sentem
um vago desassossego a certa altura do diálogo. Têm a impressão de estar
perturbando a tranqüilidade dela com conversas vãs, de estar invadindo seu
universo metodicamente organizado. E quase sempre a percepção é correta.
Embora estivesse morando de novo em sua própria cidade, ela era ainda
um enigma para o povo local. Seu modo de viver, refinado, continuava
envolto em mistério. Algo nela dificultava uma abordagem leviana. Até
mesmo os membros da família Komura, que afinal eram seus empregadores,
demonstravam certo respeito por ela e evitavam imiscuir-se em sua vida.
Com o tempo, Oshima passou a trabalhar na biblioteca na qualidade de
assistente. Nessa época, Oshima não ia à escola e nem tinha um trabalho
fixo: ele se trancava em casa, lia uma quantidade enorme de livros e ouvia
música. Exceto pelos correspondentes do correio eletrônico, parecia não ter
nenhum amigo. Em parte por sua condição de hemofílico, só saía da cidade
para ir a hospitais especializados, para andar sem destino em seu Mazda
Roadstar, para visitar um hospital universitário de Hiroshima ou para ir à
cabana na montanha de Kochi e ali se trancar. Mas ele não era infeliz por
levar esse tipo de vida. Até que, certa ocasião, a mãe dele o apresentou à Sra.
Saeki, que imediatamente se encantou com ele. Oshima também gostou da
Sra. Saeki e tinha muito interesse em trabalhar na biblioteca. E tudo indica
que o único com quem a Sra. Saeki tem contato e conversa todos os dias é
Oshima.
— Pelo que você me contou, tive a impressão de que a Sra. Saeki
retornou a esta cidade com o intuito de se tornar supervisora da Biblioteca
Komura — comentei.
— Pois é isso que eu também sinto. Imagino até que o enterro da mãe
não passou de uma desculpa para o seu retorno. Contudo, acredito também
que ela precisou de certa dose de coragem para voltar a esta cidade repleta
de recordações.
— Por que motivo a biblioteca seria tão importante para ela?
— Em parte, porque ele morou ali. Ele, ou seja, o namorado da Sra.
Saeki, morava na Biblioteca Komura, que, na época, era um simples
depósito de livros da família. Ele era o herdeiro da casa e, talvez por uma
questão genética, gostava de ler livros mais do que de qualquer outra coisa.
E amava a solidão, outra característica da família Komura. E por isso,
quando começou a freqüentar o nível ginasial, preferiu sair da construção
principal onde morava a família e pedir um quarto só dele no anexo
transformado em depósito de livros, e foi atendido. Afinal, o clã inteiro
gostava de ler e compreendeu muito bem a necessidade do garoto. “Ah, quer
viver sozinho rodeado de livros? Ótimo!”, disseram eles. E nesse anexo ele
viveu sem ser incomodado por ninguém, apenas retornando à ala principal
da casa para as refeições. A Sra. Saeki vinha diariamente visitá-lo. Os dois
estudavam juntos, ouviam música juntos, e se engajavam em conversas
infindáveis. E provavelmente dormiam um nos braços do outro. O local se
transformou no paraíso terrestre de ambos.
Com a mão sobre o volante, Oshima olha para mim.
— E você vai morar nesse local, Kafka. No quarto em que ele mesmo
viveu. Conforme já lhe disse antes, a construção passou por reformas quando
foi transformada em biblioteca. Mas ainda assim o quarto é o mesmo.
Mantenho-me em silêncio.
— Basicamente, a vida da Sra. Saeki parou na faixa dos 20 anos, no
momento em que o namorado morreu. Ou melhor, talvez a estagnação se
tenha dado ainda antes dos 20 anos. Esse é um ponto que não sei. Mas você
tem de compreender isso. Os ponteiros do relógio embutido em sua alma
estão imobilizados nalgum ponto em torno dessa idade. Externamente,
porém, o tempo continuou a correr e exerceu sobre ela sua influência. Mas
para ela, esse tipo de tempo quase não tem sentido.
— Não tem sentido?
Oshima acena.
— Estou dizendo que é como se nada representasse.
— Quer dizer que a Sra. Saeki continua a viver nesse tempo paralisado?
— Exato. Mas ela não é um morto vivo, de modo algum. Você vai
compreender isso quando a conhecer melhor.
Oshima estende o braço e pousa a mão sobre o meu joelho.
— Meu caro Kafka Tamura, existe um ponto em nossas vidas em que
voltar atrás já não nos é permitido. E também um ponto, este mais raro, em
que não podemos mais avançar. Alcançados tais pontos, só nos resta aceitá-
los, para o bem ou para o mal. É dessa maneira que todos nós vivemos.
Entramos numa via expressa. Pouco antes disso, Oshima estacionara o
carro e erguera a capota. E ligara a sonata de Schubert outra vez.
— E tem mais uma coisa que gostaria que você soubesse — diz ele. —
Em certo sentido, a Sra. Saeki é uma pessoa que carrega uma grande dor no
coração. Eu e você também carregamos as nossas, claro. Mas a da Sra. Saeki
ultrapassa o conceito geral de dor, é algo peculiar. Talvez se possa dizer que
sua alma possui uma faculdade diferente da das demais pessoas. Mas isso
não significa que ela seja perigosa, nada disso. No dia-a-dia, ela é uma
pessoa perfeitamente normal. Em certo aspecto, posso até dizer que é mais
normal do que qualquer um que eu conheço. Ela é profunda, inteligente e
encantadora. Quero apenas que você não se impressione caso venha a
perceber algo estranho nela.
— Estranho? Como assim? — pergunto impensadamente.
Oshima sacode a cabeça.
— Eu adoro a Sra. Saeki. Tenho muito respeito por ela. E tenho certeza
de que você também passará a se sentir do mesmo jeito com relação a ela.
Não era uma resposta direta à minha pergunta. Mas Oshima não quis
falar mais nada. Calculou o tempo certo para reduzir a marcha, pisou no
acelerador e ultrapassou uma caminhonete pouco antes de entrarmos num
túnel.
Capítulo 18
Quando tornou a si, Nakata estava caído de costas sobre a relva. Aos poucos
se recobrou e abriu os olhos lentamente. Era noite. Não viu estrelas. Ainda
assim, havia uma leve claridade no céu. Sentiu no ar o odor acre de grama,
típico de verão. Ouviu grilos cricrilando. Tudo indicava que se encontrava
no terreno baldio que andara vigiando nos últimos dias. Alguma coisa lhe
roçava o rosto. Alguma coisa áspera e morna. Mexeu de leve a cabeça e viu
dois gatos, um de cada lado do rosto, lambendo-lhe as faces. Eram Mimi e
Goma. Nakata se ergueu vagarosamente, estendeu as mãos e acariciou as
duas.
— Será que Nakata estava dormindo? — perguntou ele às gatas.
As duas miaram, parecendo ávidas por lhe contar algo. Mas Nakata não
conseguiu captar nada do que lhe diziam. A linguagem delas tinha-se
tornado ininteligível para ele. Simples miado.
— Desculpe, mas parece que Nakata não consegue entender direito o
que vocês falam.
Nakata se pôs em pé, examinou-se superficialmente e teve certeza de
que não havia nada estranho consigo. Não sentia dores. Era capaz de mover
pés e mãos a contento. Levou algum tempo até que seus olhos se
acostumassem com a escuridão reinante e lhe assegurassem: não havia
sangue nem nas roupas nem nas mãos. A roupa, aliás, era a mesma que
usava quando saíra de casa. E estava impecável. A sacola de lona contendo a
garrafa térmica e o lanche continuava a seu lado. O chapéu continuava no
bolso. Nakata não entendia mais nada.
Ainda há pouco, ele empunhara uma faca enorme e eliminara Johnnie
Walker, o matador de gatos. Só para salvar a vida de Mimi e de Goma. Disso
Nakata se lembrava muito bem. Em suas mãos ainda restava a sensação
daquele momento. Tinha certeza de que não sonhara. No momento do golpe,
ele se encharcara com o sangue do estranho homem. Johnnie Walker fora ao
chão e ali ficara, enrodilhado, morto. Até esse ponto ele se lembrava bem.
Depois disso, Nakata desabara sobre o sofá e perdera a consciência. E,
quando dera por si, estava caído no meio do mato do terreno baldio. De que
jeito chegara até ali se nem sabia onde estivera? Além de tudo, não havia
nenhuma gota de sangue em suas roupas. Mas como prova de que não
sonhara, Mimi e Goma continuavam a seu lado. Só que, agora, ele já não
conseguia entender o que as gatas lhe diziam.
Nakata suspirou. Não era capaz de pensar direito. Paciência. Mais tarde,
tornaria a refletir no assunto. Pôs a sacola ao ombro, carregou uma gata em
cada braço e saiu do terreno baldio. Quando emergiu do cercado, Mimi se
agitou dando a entender que queria ser posta no chão. Nakata a soltou.
— Você está querendo me dizer que sabe voltar sozinha, não é, Mimi?
Porque agora estamos pertinho de sua casa — disse Nakata.
Mimi sacudiu o rabo vigorosamente, como a dizer: “Isso mesmo!”
— Não consigo compreender nada do que ocorreu e, além de tudo,
perdi a capacidade de conversar com você. Seja como for, encontrei Goma.
Daqui, vou até a casa dos Koizumi entregá-la. Pois a família está à espera do
retorno desta gatinha querida. Agradeço a sua ajuda do fundo do coração,
Mimi.
A gatinha miou alto, tornou a agitar o rabo, dobrou a esquina a passos
rápidos e desapareceu. Não havia sinal de sangue nela. Nakata guardou o
detalhe na memória.
A família Koizumi recebeu Goma com alegria esfuziante. Já passava das dez
e as meninas, prontas para dormir, estavam escovando os dentes. O casal
Koizumi, que tomava chá e assistia ao noticiário noturno, recebeu Nakata
entusiasticamente. As meninas surgiram em pijamas e disputaram o direito
de pegar no colo a gatinha malhada. Elas lhe ofereceram leite e ração, e
Goma se alimentou com avidez.
— Desculpe visitá-los nesta hora tardia. Teria sido melhor se fosse mais
cedo, mas Nakata não teve escolha.
— Que é isso? Não se desculpe, por favor — disse a senhora Koizumi.
— Ninguém aqui está se importando com o horário. Esta gata faz parte
da nossa família. Estamos realmente muito felizes de tê-la de volta. Entre,
entre um instante. Venha tomar chá conosco — convidou o senhor Koizumi.
— Não, não senhor. Nakata vai embora em seguida. Nakata queria
apenas devolver a gatinha para a sua família o mais cedo possível.
A senhora Koizumi desapareceu por momentos para preparar o
envelope com o pagamento. O dono da casa o entregou em seguida para
Nakata.
— Isto é apenas um agradecimento simbólico por todo o trabalho que o
senhor teve procurando Goma. Aceite, por favor.
— Muito obrigado, Nakata aceita — disse o homem recebendo o
envelope e fazendo uma leve mesura.
— Mas como é que conseguiu encontrá-la agora à noite, no escuro? —
perguntou o senhor Koizumi.
— Se for explicar, a conversa vai ficar muito comprida. E Nakata não
consegue. Nakata não tem a cabeça boa, não sabe contar histórias longas e
complicadas.
— Isso não tem importância. Eu apenas não sei como lhe agradecer —
disse a senhora Koizumi. — Ah, é verdade, sobrou berinjela assada e um
pouco de pepino agridoce do jantar. Não quer levá-los?
— Quero sim. Nakata gosta muito de berinjela e pepino, muito
obrigado.
Nakata guardou na sacola o envelope com o pagamento, o recipiente
contendo a berinjela assada e o pepino agridoce, e saiu da casa dos Koizumi.
Apressou os passos na direção da estação e se aproximou do posto policial
próximo à rua comercial. Um jovem policial se sentava à escrivaninha e
preenchia formulários. O chapéu do uniforme repousava sobre o tampo da
mesa.
Nakata puxou a porta de vidro do posto e entrou.
— Boa-noite. Com licença — disse.
— Boa-noite — respondeu o guarda. Ergueu o olhar do formulário e
examinou Nakata. Um velhinho inofensivo e tranqüilo, pensou. Na certa vai
perguntar a localização de alguma rua.
De pé na soleira da porta, Nakata removeu o chapéu e o guardou no
bolso da calça. Em seguida, tirou um lenço do bolso oposto e assoou o nariz.
Dobrou o lenço e guardou-o outra vez.
— E então? Que deseja? — perguntou o policial.
— Pois é. Nakata acaba de matar uma pessoa.
O policial deixou a caneta escapar por entre os dedos e cair sobre a
escrivaninha. Boquiaberto e mudo, contemplou Nakata durante alguns
momentos.
— C-como… Venha cá, sente-se aí, antes de mais nada — disse o
guarda meio cético, apontando a cadeira diante da escrivaninha. Em seguida,
levou a mão à cintura e se certificou de que portava revólver, cassetete e
algemas.
— Sim, senhor — disse Nakata sentando-se no lugar indicado.
Endireitou as costas, pousou as mãos sobre os joelhos e encarou o policial.
— Quer dizer então que o senhor… matou uma pessoa.
— Sim senhor. Nakata esfaqueou uma pessoa e a matou. Foi há poucos
momentos — declarou Nakata resolutamente.
O policial apanhou um formulário, lançou o olhar ao relógio de parede,
inscreveu o horário e registrou com esferográfica: assassinato com arma
branca.
— Antes de mais nada, dê-me seu nome e endereço.
— Pois não. O nome é Satoru Nakata. O endereço…
— Espere um pouco. Com que ideogramas se escreve Satoru Nakata?
— Nakata não entende nada de ideogramas. Desculpe. Não sabe
escrever. Nem ler.
O policial armou uma carranca.
— Não sabe escrever nem ler coisa alguma? Nem o próprio nome?
— Isso mesmo, senhor. Segundo me disseram, Nakata sabia ler e
escrever perfeitamente até os 9 anos de idade, mas sofreu um acidente nessa
época e desde então não consegue mais. A cabeça não é boa.
O policial suspirou e depositou a esferográfica sobre a mesa.
— E como vou preencher este formulário se você não sabe me dizer
como se escreve seu nome!
— Nakata sente muito, é verdade.
— Você não tem ninguém que eu possa contatar? Família?
— Nakata é sozinho. Não tem família. Não tem emprego. Vive da pen-
são que recebe do senhor governador.
— Já é tarde e é melhor você ir para casa. Depois, tenha uma boa noite
de sono. E se você se lembrar de mais alguma coisa quando acordar amanhã
de manhã, me procure de novo. Aí então poderemos conversar direito.
A hora de troca de turnos estava se aproximando, e o policial queria
terminar seu relatório. Depois, ele e um colega tinham ficado de se encontrar
num barzinho perto dali para beber. Não tinha tempo a perder com velhinhos
malucos. Mas Nakata o contemplava com olhar severo e sacudiu a cabeça:
— Não senhor, Nakata prefere contar enquanto se lembra direito de
tudo que aconteceu. Amanhã de manhã, ele pode ter-se esquecido de algum
detalhe importante. Nakata estava no terreno baldio da rua Dois. A pedido
dos Koizumi, estava à procura da gatinha Goma. E então, um grande cão
preto apareceu de repente e conduziu Nakata para uma certa mansão. Era
uma casa grande, com portão grande e um carro preto parado na entrada.
Nakata não sabe o endereço. Não se lembra de ter estado naquelas bandas
nenhuma vez. Mas a rua deve pertencer ao bairro de Nakano. Nessa mansão,
morava um homem estranho que se chamava Johnnie Walker e usava um
chapéu preto. O chapéu era do tipo alto. Na cozinha da casa tinha uma
geladeira com uma porção de cabeças de gato enfileiradas nas prateleiras.
Devia ter umas vinte cabeças. Esse homem pegava os gatos, serrava seus
pescoços e comia seus corações. Ele estava fabricando uma flauta especial
com a alma dos gatos. Depois, pretendia usar essa flauta para pegar almas de
seres humanos. Johnnie Walker pegou uma faca e matou Kawamura diante
dos olhos de Nakata. Matou também mais alguns gatos. Ele abria a barriga
deles com a faca. Quase matou Mimi e a pequena Goma. E então Nakata
pegou a faca e matou Johnnie Walker. Porque Johnnie Walker pediu a
Nakata que o matasse. Mas Nakata não pretendia matar Johnnie Walker. É
verdade, Nakata nunca matou ninguém até hoje. Nakata apenas queria
impedir que Johnnie Walker matasse mais gatos. Mas o corpo não obedecia
mais as ordens de Nakata. O corpo começou a se mexer por conta própria.
Apanhou a faca que tinha por perto e esfaqueou Johnnie Walker uma, duas,
três vezes. Johnnie Walker foi ao chão coberto de sangue e morreu. Nessa
hora, Nakata também se sujou todo de sangue. Depois disso, Nakata
cambaleou, caiu sentado numa poltrona e acho que acabou adormecendo.
Quando recobrou a consciência, já era noite alta e estava caído no terreno
baldio. E tinha Mimi e Goma ao lado. Tudo isso aconteceu há poucos
instantes. Então, Nakata foi antes de mais nada devolver Goma aos Koizumi,
ganhou berinjela assada e pepino agridoce da senhora Koizumi e, depois,
veio direto para cá. Nakata achou que tinha de relatar o acontecido ao senhor
governador.
Sentado com as costas eretas, Nakata contou tudo isso de um só fôlego
e respirou fundo. Era a primeira vez que contava uma história tão longa
numa única tirada. Sentiu a cabeça oca.
— Portanto, comunique tudo isso ao senhor governador, por favor.
O jovem policial ouviu a história de Nakata com expressão aturdida.
Não conseguira compreender quase nada do que acabara de ouvir. Johnnie
Walker? Goma?
— Está bem. Vou contar tudo isso ao senhor governador — disse por
fim o policial.
— Nakata espera que ele não corte a pen-são.
O guarda armou uma carranca compenetrada e fingiu anotar tudo num
pedaço de papel.
— Entendi. Vou anotar da seguinte maneira: O depoente espera não ter
a pensão cortada. Está bem assim?
— Está muito bem. Muito obrigado. Nakata pede desculpas por ter
tomado o seu tempo. Dê lembranças ao senhor governador.
— Darei sim. Agora, vá para casa e descanse bem — disse o policial,
mas antes de terminar, não resistiu e fez uma única observação:
— Para alguém que, conforme você mesmo disse, acabou de matar uma
pessoa e se sujou todo de sangue, suas roupas estão em perfeito estado…
— Exatamente. Para falar a verdade, Nakata também está intrigado com
isso. Não consegue entender. Nakata estava realmente sujo de sangue, mas
quando voltou a si, não encontrou nenhuma mancha. É muito estranho.
— Muito estranho, realmente — disse o guarda deixando transparecer
na voz o cansaço de um dia inteiro de trabalho.
Nakata abriu a porta e ia saindo, mas parou e se voltou para dizer:
— Mudando um pouco de assunto, o senhor vai estar nestas redondezas
amanhã à tarde?
— Vou sim — disse o guarda com um toque de cautela na voz. —
Estarei neste posto amanhã à tarde. Por quê?
— Pois Nakata acha melhor o senhor trazer seu guarda-chuva, mesmo
que faça muito sol.
O guarda acenou para dizer que compreendera e transferiu o olhar para
o relógio da parede. Seu colega estava para ligar a qualquer instante.
— Entendi, vou trazer meu guarda-chuva.
— Porque vai cair peixe do céu, do mesmo jeito que água em dia de
chuva. Muito peixe. Acho que serão sardinhas. Talvez haja algumas
cavalinhas no meio delas.
— Sardinhas e cavalinhas? — disse o policial sorrindo. — Nesse caso,
talvez seja melhor virar o guarda-chuva e apanhar os peixes com ele.
Curtidos no vinagre, ficam deliciosos.
— Nakata também gosta muito de cavalinha curtida em vinagre —
disse Nakata com expressão séria. — Mas talvez já não esteja aqui quando
isso acontecer.
No dia seguinte, o jovem policial empalideceu a olhos vistos no momento
em que realmente viu chover sardinhas e cavalinhas naquela área do bairro
de Nakano. Cerca de 2 mil peixes desabaram das nuvens. A maioria se
espatifou ao atingir o solo, mas alguns continuavam vivos e saltitavam sobre
o asfalto da zona comercial. Visivelmente frescos, os peixes ainda cheiravam
a mar. Bateram com estrépito em pedestres, carros e telhados, mas por sorte
não feriram ninguém com gravidade porque aparentemente caíram de uma
altura não muito grande. O choque psicológico das pessoas atingidas pareceu
mais intenso que o físico. Afinal, peixes em grande quantidade tinham caído
do céu como granizo. O acontecimento tinha um caráter verdadeiramente
apocalíptico.
Mais tarde, a polícia desenvolveu diversas investigações mas não foi
capaz de saber de onde ou de que maneira esses peixes tinham sido levados
para o alto. Não houvera nenhum relato de desaparecimento de expressiva
quantidade de sardinhas e cavalinhas tanto do mercado de peixes como de
navios pesqueiros. Nenhum avião ou helicóptero sobrevoara o bairro naquele
horário. Não houvera relato de tornado. E também não tinha jeito de ser
brincadeira de mau gosto. Prepará-la demandaria muito trabalho. Atendendo
à solicitação da polícia, a Secretaria de Saúde de Nakano recolheu alguns
espécimes caídos do céu e realizou pesquisas, mas não descobriu nenhum
tipo de anomalia neles. Aparentavam ser peixes comuns. Frescos e
apetitosos. Mas, por via das dúvidas, radiopatrulhas equipadas com alto-
falantes percorreram o bairro aconselhando os moradores a não consumirem
os peixes caídos do céu porque sua procedência era desconhecida e podiam
conter substâncias nocivas à saúde. Canais de televisão enviaram unidades
móveis para reportagens in loco. O acontecimento merecia realmente ser
transformado em matéria televisiva. Repórteres se aglomeraram na zona
comercial, e divulgaram em rede nacional o incidente absolutamente
estranho. Diante das câmeras, apanharam com pás os peixes caídos nas ruas.
Transmitiram o comentário de uma dona de casa que fora atingida na cabeça
por um peixe. A nadadeira da cavalinha lhe provocara um corte no rosto.
“Ainda bem que eram sardinhas e cavalinhas. Já pensou se fossem peixes
grandes como atuns?”, dissera a mulher, apertando um lenço contra a face. O
comentário tinha sido feito com seriedade, mas os telespectadores desataram
a rir. Alguns repórteres mais corajosos assaram sardinhas e cavalinhas diante
das câmeras e as comeram. “Saborosas”, comentaram triunfantes. “Estão
frescas, e têm bastante gordura. Pena que não possamos comê-las com nabo
ralado e arroz quente!”
O jovem policial estava desnorteado. O estranho idoso — não
conseguia se lembrar como raios se chamava ele — tinha profetizado que
naquela tarde cairia do céu uma grande quantidade de peixes. Sardinhas e
cavalinhas. E acontecera exatamente o que ele dissera. Mas o policial rira do
velhinho e não anotara nem seu nome, nem seu endereço. Será que devia
comunicar tudo isso ao superior hierárquico? Esse talvez fosse o
procedimento correto. Mas que mérito haveria em contar àquela altura dos
acontecimentos? Ninguém se ferira com gravidade, nem existia prova
alguma de que houvera participação criminosa no fenômeno. Peixes haviam
caído do céu, só isso.
E, pensando bem, quem garantia que seu superior o levaria a sério caso
contasse essa história maluca de que um velhinho estranho aparecera no
posto na noite anterior e profetizara que choveria sardinha e cavalinha no dia
seguinte? O chefe na certa pensaria que tinha um subalterno louco. Ou, pior
ainda, inventaria detalhes para transformá-lo em motivo de riso do distrito.
E havia mais uma coisa: o dito velhinho aparecera no posto
confessando também ter matado uma pessoa. Em outras palavras, viera se
entregar. Mas o policial não lhe prestara a devida atenção. Nem ao menos se
dera o trabalho de registrar o acontecimento no livro de ocorrências.
Infringira claramente o regulamento interno, o que sem dúvida acarretaria
punição. Mas a história do velhinho era maluca demais. Nenhum policial
com alguma experiência em serviço de ronda teria levado a sério tamanho
disparate. Afinal, os dias num posto policial são movimentados, com mil
detalhes para resolver, e o serviço burocrático vai se acumulando. O mundo
está cheio de gente com parafusos a menos na cabeça, e toda essa gente
costuma bater à porta dos postos como se tivesse convencionado falar coisas
sem nexo. Não era possível atender a cada um desses malucos com
seriedade.
Mas uma vez que a profecia de que ia chover peixe (céus, que história
absurda!) tinha se concretizado, talvez aquela outra história, qual seja, a de
que o velhinho tinha esfaqueado e matado alguém — um certo Johnnie
Walker, segundo ele próprio confessara —, não pudesse ser descartada como
pura invencionice. E se isso realmente acontecera, o policial tinha agora uma
verdadeira batata quente nas mãos. Pois ele mandara embora um homem que
se entregara voluntariamente confessando que acabara de matar alguém, e
nem ao menos reportara o acontecimento.
Logo, um caminhão do Departamento Sanitário surgiu para levar os
peixes espalhados na rua. O jovem policial se encarregou de controlar o
tráfego. Posicionou uma barreira na entrada da via e impediu a passagem de
veículos. Escamas de peixes tinham aderido ao asfalto e às calçadas da área
comercial, e embora a prefeitura tivesse mandado caminhões-pipa, foi difícil
removê-las. Por algum tempo as ruas continuaram escorregadias e diversas
donas de casa caíram quando as rodas de suas bicicletas derraparam. O
cheiro de peixe permaneceu muito tempo no ar e alvoroçou todos os gatos da
redondeza. A solução desses pequenos problemas tomou integralmente o
tempo do jovem policial, e ele não pensou mais na história do estranho
velhinho.
Mas no dia seguinte ao da chuva de peixes, o mesmo policial engoliu
em seco quando descobriram o cadáver de um homem morto a facadas numa
mansão da vizinhança. O morto, um escultor famoso, fora descoberto pela
faxineira que comparecia à casa dele, dia sim, dia não. A vítima estava nua
por alguma razão desconhecida, e o piso em que jazia assemelhava-se a um
mar de sangue. A hora aproximada da morte era a tarde de dois dias antes e a
arma, uma faca encontrada na cozinha. Tudo o que o velhinho havia dito era
verdade!, pensou o policial. Caramba, em que enrascada fui me meter! Eu
devia ter contatado a central naquela hora e pedido para levar o velhinho
numa radiopatrulha. Devia tê-lo entregue ao comando, pois ele havia
confessado um assassinato. E o comando que se encarregasse de avaliar se o
velhinho era ou não maluco. Dessa forma, minha responsabilidade como
autuante estaria encerrada. Mas eu não fiz nada disso. Agora, só me resta
fingir ignorância.
Assim resolveu o jovem policial.
Àquela altura, Nakata já tinha abandonado a cidade.
Capítulo 19
Passava das cinco da manhã quando o caminhão que levava Nakata entrou
na cidade de Kobe. A manhã já clareava as ruas, mas o expediente no
armazém da loja ainda não começara e não havia como descarregar a
encomenda. O motorista estacionou o caminhão numa rua larga próxima ao
porto e resolveu dormir um pouco. Deitou-se no espaço costumeiro na parte
traseira da boléia e logo roncava gostosamente. Nakata teve o próprio sono
interrompido diversas vezes pelo ronco do companheiro, mas não demorava
a recair em agradável estupor. Insônia era fenômeno desconhecido para
Nakata.
Faltava pouco para as oito da manhã quando o jovem motorista se
ergueu com um estrondoso bocejo.
— Ei, tio, está com fome? — perguntou com os olhos fixos no espelho
retrovisor ao mesmo tempo em que usava o barbeador elétrico.
— Sim, Nakata acha que está com um pouco de fome.
— Então vamos comer alguma coisa.
De Fujigawa a Kobe, Nakata dormira a maior parte do percurso. O
motorista sintonizara o rádio num desses programas que varam a noite e
dirigira o tempo todo quase sem falar. De vez em quando, cantava
acompanhando músicas que vinham pelo transmissor. Todas desconhecidas
para Nakata. Deviam ser composições japonesas, mas as letras lhe eram
incompreensíveis. Captava apenas uma ou outra palavra de tempo em tempo.
Nakata tirou da sacola a barra de chocolate e os bolinhos de arroz embalados
um a um que ganhara das duas moças no dia anterior em Shinjuku e os
repartiu com o motorista.
Dizendo que o cigarro ajudava a espantar o sono, o motorista fumou
sem parar, de modo que as roupas de Nakata tresandavam quando o
caminhão chegou a Kobe.
Nakata saltou da boléia carregando sacola e guarda-chuva.
— Ei, tio, deixe esse trambolho no caminhão. A gente vai logo aí e
volta num instante, é só o tempo de comer — disse o motorista.
— Sim, tem razão. Mas Nakata não se sente bem sem estas coisas.
— É mesmo? — disse o rapaz com um leve sorriso. — Tá, então leve.
Afinal, não sou eu que vai carregar… Fique à vontade.
— Muito obrigado.
— Eu me chamo Hoshino. Meu nome é escrito com os mesmos
ideogramas daquele Hoshino, que é o técnico do time de beisebol Dragões
do Chunichi, entendeu? Mas não sou parente dele nem nada.
— Ah, entendi. Senhor Hoshino. Muito prazer. Meu nome é Nakata.
— E eu já não sei?
O rapaz, que parecia conhecer muito bem a vizinhança, foi andando na
frente em passadas largas e decididas. Nakata o seguiu quase correndo. Os
dois entraram num restaurante modesto de uma ruela transversal. Motoristas
e estivadores lotavam o estabelecimento. Não se via ninguém de terno e
gravata. Expressão compenetrada, os homens devoravam o desjejum como
se estivessem se abastecendo de combustível. No interior do
estabelecimento, pratos tilintavam, garçonetes gritavam pedidos e o locutor
da rede NHK de tevê falava.
O jovem motorista apontou o menu colado na parede.
— Tio, peça o que quiser. O rango aqui é bom e barato.
— Certo — disse Nakata contemplando por instantes o menu conforme
lhe fora recomendado, mas logo se lembrou que não sabia ler.
— Desculpe, senhor Hoshino, mas Nakata não é bom da cabeça, ele
não sabe ler.
— Ora essa… — disse Hoshino com uma ponta de admiração na voz.
— O tio não sabe ler? Coisa rara hoje em dia… Mas isso não importa. Eu
mesmo vou pedir comercial de peixe grelhado e omelete. Por que não pede o
mesmo?
— Claro! Nakata gosta muito de peixe grelhado e omelete.
— Beleza.
— Gosta também de um bom prato de enguia defumada.
— Eu também, eu também. Mas é meio estranho pedir enguia na
primeira refeição do dia, certo?
— Certo. E depois, ele acabou de comer enguia defumada com um
senhor chamado Hagita, que pagou o jantar de Nakata ontem à noite.
— Beleza! — disse o rapaz. — Dois comerciais de peixe grelhado e
duas omeletes! Arroz extra num deles! — gritou Hoshino para a atendente.
— Dois comerciais de peixe grelhado, duas omeletes e um arroz extra!
— repetiu a garçonete também aos berros.
— Mas vem cá: essa história de não saber ler deve complicar sua vida
— disse o rapaz para Nakata.
— Complica sim. Nakata se vê em apuros de vez em quando por causa
disso. Se ele fica só no bairro de Nakano, em Tóquio, nem tanto. Mas se vai
para longe, como agora, as coisas ficam meio difíceis.
— Ah, com certeza. Ainda mais que Kobe fica bem longe de Nakano…
— E Nakata também não entende direito de norte e sul, sabe? Só
entende de direita e esquerda. Por isso ele se perde quando anda por ruas
desconhecidas e também não consegue comprar passagens.
— Mal consigo acreditar que você chegou até aqui!
— Chegou porque teve a ajuda de muitas pessoas bondosas. O senhor
Hoshino é uma delas. Nakata nem sabe como agradecer.
— Dureza ser analfabeto. Meu avô, por exemplo, estava caduco mas ao
menos sabia ler.
— Nakata é especialmente fraco da cabeça.
— São todos assim na sua família?
— Não, não. O mais velho é diretor num lugar chamado I-to-chu, e o
mais novo trabalha no Mi-nis-té-ri-o da In-dús-tri-a e do Co-mér-cio.
— Ora, quem diria! — disse admirado o motorista. — Um bando de
intelectuais! Quer dizer que só você saiu assim, meio diferente.
— Sim senhor. Só Nakata. Ele sofreu um acidente e não é bom da
cabeça. Por isso, vivem dizendo para ele: muito cuidado com o que faz, não
se esqueça que pode prejudicar irmãos, sobrinhos ou sobrinhas com atos
impensados, viva o mais discretamente possível.
— Realmente, a maioria das pessoas acharia complicado ter alguém
como você aparecendo volta e meia na vida delas.
— Nakata não entende coisas complicadas, mas enquanto viveu só no
bairro de Nakano, nunca perdeu o rumo. Ele recebia ajuda do senhor
governador e se dava muito bem com os gatos. Cortava o cabelo uma vez
por mês, e até podia comer enguia de vez em quando. Mas então, o senhor
Johnnie Walker apareceu e Nakata não conseguiu mais viver em Nakano.
— Johnnie Walker?
— Sim. Um homem que calçava botas e usava um chapéu alto e preto
na cabeça. Vestia colete e levava uma bengala na mão. Caçava gatos e tirava
a alma deles.
— Tá, tá… Mas vamos deixar isso para lá — disse Hoshino. — Não
tenho muita paciência para ouvir histórias compridas. Resumindo,
aconteceram algumas coisas e você saiu de Nakano.
— Exato, Nakata saiu de Nakano.
— E agora? Para onde vai?
— Nakata não sabe ainda. Mas depois que chegou aqui, descobriu que
precisa cruzar uma ponte e seguir mais para frente. Uma ponte comprida que
existe perto deste lugar.
— Ou seja, vai para a ilha de Shikoku?
— Desculpe, mas geografia é um mistério para Nakata. Se cruzar a
ponte ele chega em Shikoku?
— Isso mesmo. A única ponte comprida que existe nestas bandas é a
que leva para Shikoku. Ou melhor, são três as pontes: uma sai de Kobe,
passa pela ilha de Awaji e leva à de Tokushima. A outra sai das
proximidades de Kurashiki e cruza para Sakaide. E a terceira liga Onomichi
a Imabari. Bastava uma, mas os políticos meteram a colher torta no meio e
acabamos ficando com três.
Hoshino derramou um pouco de água sobre o tampo impermeabilizado
da mesa e riscou um mapa rústico do Japão com o dedo. Em seguida,
desenhou três pontes ligando a ilha de Honshu à de Shikoku.
— E essa ponte é grande, realmente grande? — perguntou Nakata.
— Enorme, sem exagero algum!
— Entendi. Pois Nakata está pensando em cruzar uma dessas três
pontes. Acho que vai ser a que está mais próxima. Depois disso, ele pensa de
novo.
— Mas então… você não tem conhecidos nem parentes no lugar para
onde está indo?
— Exato. Nakata não tem nenhum conhecido.
— Você só quer cruzar a ponte, chegar em Shikoku e, uma vez lá, ir a
algum lugar.
— Isso mesmo.
— Mas não sabe onde é esse algum lugar.
— Não senhor. Nakata não tem a mínima idéia. Mas acha que,
chegando lá, saberá.
— Caramba! — exclamou Hoshino.
Ajeitou o cabelo, certificou-se de que o rabo-de-cavalo continuava
arrumado e tornou a pôr o boné dos Dragões Chunichi na cabeça.
Logo, os pratos pedidos foram servidos e os dois os devoraram em silêncio.
— Me diga agora: essa omelete é boa ou não? — perguntou Hoshino.
— Muito gostosa, realmente. Bem diferente da que Nakata comia em
Nakano.
— É porque estamos na região de Kansai. A omelete desta área é muito
diferente daquela coisa seca e dura que servem em Tóquio.
Depois, calaram-se os dois, entretidos em apreciar a omelete, a
cavalinha salgada e grelhada, o caldo de missô com vôngole, a conserva de
nabo, o espinafre cozido, a alga em folha e até o último grão de arroz.
Nakata levou muito tempo para terminar sua parte porque tinha o hábito de
mastigar criteriosamente 32 vezes cada bocado.
— E então, Nakata? Está satisfeito?
— Sim, Nakata está. E o senhor Hoshino?
— Também estou. É bom encher a barriga com uma comida gostosa
logo de manhã, não é?
— Sim senhor. Deixa Nakata muito feliz.
— E agora? Não lhe deu vontade de fazer cocô?
— Tem razão. Agora que o senhor falou, Nakata ficou com vontade.
— Então vá. O banheiro fica logo ali.
— E o senhor Hoshino? Não vai?
— Vou mais tarde, com calma. Vá primeiro, vá!
— Sim senhor. Nesse caso, Nakata vai agora fazer cocô.
— E não precisa falar tão alto, tio. Tem gente comendo ainda.
— Desculpe. É que Nakata tem a cabeça fraca.
— Tá, tá! Mas vá de uma vez.
— Posso escovar os dentes também?
— Pode, pode escovar os dentes. Temos muito tempo ainda, faça tudo
que quiser. Mas você bem podia deixar o guarda-chuva comigo. Afinal, está
indo só até o banheiro.
— Está bem, vou deixar o guarda-chuva.
Quando retornou, Hoshino já tinha pago a conta.
— Nakata tem dinheiro, senhor Hoshino, ele pode pagar sua própria
refeição.
O motorista porém sacudiu a cabeça.
— Não se preocupe. Eu devo muito ao meu avô. Aprontei poucas e
boas nos velhos tempos.
— Sim. Mas Nakata não é o vovô do senhor Hoshino.
— Problema meu, tio. Não se preocupe com isso, já disse. Pare de
encher o saco e aceite.
Depois de pensar alguns instantes, o velho homem resolveu concordar.
— Então Nakata aceita e agradece do fundo do coração. Muito
obrigado.
— Por uma mixaria de peixe grelhado e omelete? Esquece!
— Mas sabe de uma coisa, senhor Hoshino? Desde o dia que saiu de
Nakano, Nakata vem recebendo tantos favores de tanta gente que chegou até
aqui quase sem gastar nenhum centavo.
— Isto sim é impressionante! — admirou-se Hoshino. — Não é proeza
para qualquer um.
Nakata pediu a uma garçonete que abastecesse de chá fresco e quente
sua pequena garrafa térmica. Em seguida, guardou cuidadosamente a garrafa
na sacola.
Os dois retornaram a pé até o local onde tinham deixado o caminhão.
— Mas voltando a essa história de ir a Shikoku… — disse Hoshino.
— Pois não?
— Antes de mais nada, o que é que o tio vai fazer lá?
— Isso nem ele sabe.
— Não sabe para quê, nem para onde vai. Mas quer chegar a Shikoku
de qualquer jeito.
— Isso mesmo. Nakata tem de cruzar uma ponte comprida…
— … porque depois, as coisas vão ficar mais claras. É isso?
— Nakata acha que sim. Mas não tem idéia de nada enquanto não
atravessar a ponte.
— Seei… — disse o motorista. — O importante é cruzar a ponte.
— Exato. A coisa mais importante.
— Caramba!
O motorista entrou no caminhão e foi descarregar os móveis no armazém da
loja de departamentos. Enquanto isso, Nakata matou o tempo sentado num
banco do pequeno parque próximo ao porto.
— Não saia daqui, ouviu? — recomendara o rapaz. — O banheiro fica
ali, está vendo? E tem um bebedouro ao lado. O essencial está ao seu redor,
não é preciso se afastar daqui. Porque se fizer isso, vai se perder. E uma vez
perdido, não conseguirá voltar a este lugar, entendeu?
— Sim, senhor. Nakata sabe que não está mais em Nakano.
— Exatamente. Isto aqui não é Nakano. Portanto, fique bem quietinho,
não arrede o pé deste lugar, entendeu?
— Sim senhor. Entendeu. Não arreda o pé daqui.
— Beleza. Volto assim que entregar a mercadoria.
Conforme recomendado, Nakata não se afastou nem um passo do
banco. Não foi ao banheiro. Esperar sem sair do lugar não representava
sofrimento para o idoso homem. Ou melhor, era uma das suas
especialidades.
Do banco, ele podia ver o mar, algo que ele não via há muito. Em sua
infância, havia ido algumas vezes à praia com a família. Usara calção de
banho e brincara no raso. Apanhara conchas na maré baixa. Mas a lembrança
daqueles momentos era muito vaga. Parecia-lhe que tudo isso acontecera
num outro mundo. Do mar, essa era a última recordação que guardara, nunca
mais o vira.
Depois do estranho incidente ocorrido nas montanhas da província de
Yamanashi, Nakata retornara para a escola em Tóquio. Ele recobrara a
consciência e as funções físicas, mas tinha perdido completamente a
memória; quanto à capacidade de ler e escrever, nunca mais a recobraria.
Não conseguia ler livros escolares nem fazer provas. Perdeu todo o
conhecimento acumulado ao longo dos anos, assim como grande parte da
capacidade de pensar de maneira subjetiva. Mesmo assim, a escola lhe
concedeu o diploma. Nakata não compreendia quase nada do que lhe
ensinavam, mas era capaz de permanecer sentado num canto da sala de aula
em sereno silêncio. Obedecia corretamente as instruções dos professores.
Não incomodava ninguém, o que possibilitou aos professores esquecerem-se
dele. Em suma, foi considerado aluno “ouvinte”, mas não “problemático”.
Logo, ninguém mais se lembrava de que, antes do acidente, o menino
tinha sido um aluno brilhante. Atividades, eventos escolares, nada mais
contou com a participação de Nakata. Mas ele não se importou. Ao
contrário, o fato de ninguém se incomodar com ele lhe permitia absorver-se
num mundo só dele. Ele só demonstrava intenso interesse pelas seguintes
atividades: cuidar de pequenos animais (coelhos e cabras) criados na escola,
cuidar do jardim e limpar a sala de aula. Sempre sorrindo, ele se
desincumbia com entusiasmo dessas tarefas sem nunca se aborrecer.
Sua existência tinha sido quase esquecida não só na escola como
também em casa. Ao se darem conta de que o primogênito era agora incapaz
de ler e de escrever e, em decorrência, de acompanhar o currículo escolar, os
pais, fanáticos educadores, perderam interesse por ele e concentraram a
atenção nos filhos menores, que continuavam se destacando nos estudos. E
quando, terminado o curso primário, tornou-se evidente que Nakata
dificilmente seria admitido no curso ginasial da rede municipal, foi deixado
aos cuidados dos avós maternos que moravam em Nagano. Ali chegando,
passou a freqüentar o curso prático de agricultura. Como não sabia ler,
acompanhou a programação escolar a custo, mas as aulas práticas de
agricultura eram do seu gosto. E teria seguido a carreira de agricultor caso os
colegas de classe não o maltratassem tanto. Os demais alunos não perdiam a
oportunidade de bater no estranho garoto vindo da capital. E quando as
marcas da perseguição que sofria começaram a mostrar progressiva
violência (Nakata perdeu nessa época o lóbulo de uma orelha), os avós
resolveram tirá-lo da escola e o criaram em casa dando-lhe pequenas tarefas
caseiras para cumprir. Os avós amaram muito esta criança calma e
obediente.
Foi também nessa época que aprendeu a falar com os gatos. Os avós
tinham alguns gatos de estimação, que logo se tornaram bons amigos de
Nakata. No começo, eles se comunicavam por meio de palavras simples,
mas aos poucos Nakata ampliou sua habilidade com a perseverança de
alguém que estuda uma língua estrangeira e, logo, viu-se capaz de manter
conversas razoavelmente longas com os felinos. Foram os gatos que
ensinaram a Nakata inúmeros fatos da natureza e do mundo em geral. Na
verdade, foram eles que lhe ensinaram quase tudo que Nakata precisava
saber com relação ao funcionamento do mundo.
Quando fez 15 anos, Nakata começou a trabalhar numa fábrica de
móveis das proximidades. O empreendimento, modesto, antes marcenaria
que fábrica, especializava-se em produzir rústicos móveis artesanais, e as
mesas, cadeiras e cômodas ali fabricadas eram vendidas em Tóquio. Nakata
logo se apaixonou pelo trabalho de marcenaria. Muito hábil com as mãos,
realizava criteriosamente os detalhes miúdos e complexos dos móveis, não
perdia tempo com conversa inútil, nunca se queixava do trabalho, e se tornou
querido do patrão. Excetuando cálculos e leitura de plantas, tudo o mais ele
executava com perfeição. Uma vez aprendido um padrão, repetia a mesma
coisa infindavelmente sem nunca se cansar. Depois de passar por dois anos
de treinamento, foi em seguida efetivado.
E assim ele viveu até os 50 anos. Nunca se acidentou nem adoeceu.
Não bebia, não fumava, dormia cedo e comia com moderação. Não assistia à
televisão, e ouvia o rádio apenas para fazer a ginástica matinal. Dia após dia,
dedicou-se apenas à confecção de móveis. No ínterim, os avós faleceram e,
depois, os pais. Nakata era visto com simpatia pelos conhecidos, mas não
tinha nenhum amigo. Coisa inevitável, talvez. Bastavam dez minutos de
prosa para deixar sem assunto qualquer pessoa disposta a conversar com ele.
Nakata nunca se considerou infeliz ou solitário por causa do tipo de
vida que levava. Totalmente desprovido de desejo sexual, não tinha também
vontade de se apegar a alguém em especial. Nakata sabia que era diferente
de outras pessoas. Sabia que a sombra que ele próprio projetava sobre o solo
era clara e rarefeita em comparação com a de outros seres humanos, mas só
ele notava isso. Os únicos seres com quem se comunicava plenamente eram
os gatos. Nos dias de folga, ia para um parque próximo, sentava-se num
banco até o fim do dia e conversava com eles. Curiosamente, nunca se via
sem assunto nessas ocasiões.
Quando Nakata fez 52 anos, o dono da fábrica de móveis faleceu e, em
seguida, a fábrica fechou as portas. Móveis artesanais rústicos, pesados e de
cor escura já não vendiam tão bem. Os antigos marceneiros tinham
envelhecido, e os mais novos não demonstravam nenhum interesse em
aprender esse tipo de artesanato tradicional. E por fim, o descampado, em
meio ao qual a fábrica tinha sido construída, transformou-se em área
residencial e seus moradores reclamavam continuamente do barulho e da
fumaça resultante da queima de serralho. Sem nenhuma intenção de assumir
essa fábrica transformada em foco de problemas, o filho, administrador de
empresas com escritório de contabilidade montado no centro da cidade,
resolveu fechar o empreendimento mal o pai faleceu e vender a propriedade
para uma imobiliária. A imobiliária destruiu a fábrica, limpou o terreno e o
vendeu a uma construtora. A construtora ergueu um prédio de apartamentos
de seis andares no local. As unidades foram todas vendidas no dia do
lançamento.
E assim, Nakata se viu desempregado. O valor do prêmio que recebeu
pelos longos anos de trabalho foi mínimo porque a fábrica, alegavam, tinha
dívidas. Desde então, nunca mais conseguiu emprego. Realmente, um
homem analfabeto na casa dos cinqüenta, cuja única habilidade era fabricar
rústicos móveis artesanais, dificilmente haveria de encontrar um novo posto
de trabalho.
Mas em sua conta na agência de correios local Nakata conseguira juntar
razoável poupança, fruto dos seus 37 anos de árduo trabalho sem tirar férias.
Não gastara quase nada no seu cotidiano simples, e suas economias teriam
sido suficientes para uma velhice despreocupada, mesmo sem trabalhar. Um
primo prestimoso que trabalhava na prefeitura local se encarregara de
administrar a poupança em nome do analfabeto Nakata. Muito embora
bondoso, o primo era também um tanto ingênuo e, levado por um corretor
inescrupuloso, associou-se a um empreendimento imobiliário que promovia
a construção de um condomínio de lazer junto a uma pista de esqui, e acabou
soterrado em pesadas dívidas. O primo fugiu com a família para local
desconhecido na mesma época em que Nakata perdeu o emprego. Segundo
boatos, um agiota pusera em seu encalço um bando de cobradores violentos.
Ninguém sabia do paradeiro do primo. Nem ao menos se estava vivo ou
morto.
Nakata foi então com um conhecido à agência do correio para averiguar
o saldo de sua poupança e descobriu que lhe sobravam apenas alguns
trocados. Até o prêmio depositado dias antes fora roubado pelo primo. O que
lhe acontecera só podia ser definido como azar excessivo. Nakata ficara
simultaneamente sem dinheiro e sem emprego. Seus parentes sentiram muita
pena dele, mas todos tinham sido lesados pelo primo, alguns mais, outros
menos. Nenhum estava em condição de ajudar Nakata.
Finalmente, o irmão logo abaixo de Nakata se encarregou dele. Este
irmão possuía e administrava um modesto prédio de apartamentos do tipo
quitinete no bairro de Nakano (herdado dos pais) e cedeu uma das unidades
para o usufruto de Nakata. O irmão também passou a administrar a herança
(modesta) em dinheiro deixada pelos pais para o primogênito, e tomou as
providências necessárias para que o governo de Tóquio lhe pagasse o
benefício para deficientes, ao qual Nakata tinha direito. Nisso se resumiram
os cuidados do irmão. Apesar de não saber ler nem escrever, Nakata era
capaz de realizar as tarefas cotidianas e viver sem a ajuda de ninguém, uma
vez que tivesse casa onde morar e dinheiro para o dia-a-dia.
Os irmãos quase não tinham contato com Nakata. Eles se viram
algumas vezes apenas para acertar o novo arranjo. Os mais de trinta anos que
viveram separados estabeleceram uma diferença intransponível em seus
modos de viver. Os irmãos não sentiam amor fraternal pelo primogênito
deficiente, ou melhor, não tinham tempo para se preocupar com ele,
ocupados como andavam em cuidar de suas próprias vidas.
Mas o tratamento frio dos parentes nunca deixou Nakata infeliz. Ao
contrário: acostumado a viver sozinho, ficava tenso quando se via alvo dos
cuidados ou da bondade alheia. Não se sentiu também particularmente
irritado com o primo que lhe roubara as economias, penosamente
amealhadas ao longo da vida. Sabia que estava em situação difícil,
naturalmente, mas não se sentiu deprimido. Não entendia direito o que era
um condomínio de lazer e, por falar nisso, nem o sentido da palavra
“falência”. Aliás, nem o que era “dívida”. Nakata vivia limitado por um
vocabulário restrito.
Dinheiro era outra coisa cujo valor percebia somente até a quantia de 5
mil ienes. Qualquer coisa acima disso, fossem dez, cem, mil ou até um
milhão de ienes, era apenas “muito dinheiro”. Sabia que tinha certa quantia
guardada, mas nunca a vira. Apenas ouvira periodicamente dizer: “Agora,
você tem tanto na sua conta.” Ou seja, um conceito abstrato. Assim, quando
lhe disseram de repente que esse tanto não existia mais, não lhe pareceu que
perdera algo real.
Continuou portanto a viver tranqüilamente no apartamento que o irmão
lhe cedera, recebendo pensão do governo, andando de ônibus com passe
especial para deficientes e conversando com gatos num parque próximo. O
bairro inteiro de Nakano era agora seu novo mundo. Como qualquer cão ou
gato, estabeleceu uma área em que podia se locomover livremente, e dali se
afastava apenas em circunstâncias excepcionais. Enquanto se mantivesse
dentro dessa área, seus dias seriam seguros. Nunca se revoltava, nem se
irritava. Não sentia solidão, não se preocupava com o futuro, nem se sentia
particularmente prejudicado por ser o que era. Ele apenas desfrutava os dias,
um após outro, de maneira conscienciosa e serena. Assim foi sua vida por
mais de dez anos.
Até o dia em que Johnnie Walker surgiu.
Fazia muito tempo que Nakata não via o mar. O litoral era distante tanto da
província de Nagano como do bairro de Nakano. Naquele momento, e só
então, Nakata se deu conta de que perdera o mar por muito, muito tempo.
Aliás, nem pensara nele. Acenou movendo a cabeça diversas vezes,
confirmando para si mesmo: o mar existia. Tirou o chapéu, passou de leve a
palma da mão sobre os cabelos curtos. Em seguida repôs o chapéu e
contemplou o mar. Seu conhecimento do mar se restringia à noção de que
era amplo, que nele viviam os peixes e que a água era salgada. Ainda
sentado no banco, Nakata cheirou a brisa recendendo a maresia que vinha do
oceano, observou as gaivotas voando e os barcos ancorados a distância. Não
se cansava da vista. Vez ou outra, uma gaivota vinha até o parque e descia
sobre a relva intensamente verde desse verão. O contraste das cores era
excepcionalmente belo. Nakata experimentou entabular conversa com a
gaivota, mas a ave apenas lhe lançou um olhar rápido e frio, não lhe
respondeu. Não havia nenhum gato à vista. Os únicos animais visíveis eram
gaivotas e pardais. Tirou a garrafa térmica da sacola mas começou a chover
enquanto tomava o chá, de modo que Nakata abriu o guarda-chuva que
sempre trazia consigo.
A chuva já havia parado quando Hoshino retornou, pouco antes do meio-dia.
Com o guarda-chuva agora fechado, Nakata ainda contemplava o mar
sentado no banco na mesma posição em que fora deixado. O motorista
estacionara o caminhão nalgum lugar e viera de táxi.
— Demorei muito? Desculpe — disse o rapaz. Trazia uma sacola de
plástico ao ombro. — Achei que fosse liquidar o trabalho num instante, mas
houve uma série de imprevistos, entende? Em toda loja de departamento tem
sempre alguém para complicar a vida da gente.
— Nakata não se importou nem um pouco. Ficou sentado aqui mesmo,
contemplando o mar.
— É mesmo? — disse o rapaz. Em seguida, voltou o olhar na mesma
direção, mas viu apenas uma doca em mau estado e água oleosa.
— Fazia muito tempo que Nakata não via o mar.
— Ah, sei…
— Na última vez, ele ainda freqüentava o curso primário e esteve num
lugar chamado E-no-shi-ma.
— Puxa, isso é coisa muito, muito antiga, não é?
— Nessa época, os Estados Unidos ainda ocupavam o Japão e a praia
de E-no-shi-ma estava cheia de soldados americanos.
— Mentira!
— Não senhor. Não é mentira.
— Que é isso, tio! — disse o rapaz. — Por que os Estados Unidos
haveriam de ocupar o Japão?
— Nakata não entende coisas complicadas. Mas os Estados Unidos
tinham aviões grandes. Eles lançaram um monte de bombas grandes sobre
Tóquio e, por causa disso, Nakata foi mandado para a província de
Yamanashi. E lá, ele adoeceu.
— É mesmo? Tá, mas deixe isso para lá. Histórias compridas não são o
meu forte. Seja como for, vamos embora de uma vez. Levei mais tempo do
que tinha calculado e se a gente bobeia, acaba anoitecendo.
— Mas aonde vamos?
— Shikoku, ora. Vamos cruzar a ponte. Você não queria ir a Shikoku?
— Sim. Mas o senhor Hoshino tem de trabalhar e…
— Não se preocupe com isso. Trabalho é o tipo da coisa que sempre se
arruma. Eu andei dando duro nos últimos tempos e pensava exatamente em
descansar um pouco. Para falar a verdade, eu mesmo nunca fui a Shikoku e
quero conhecer a região. E depois, você não sabe ler e eu posso ajudá-lo a
comprar as passagens, certo? A não ser que você não queira me levar junto.
— Não, Nakata ficará muito contente em ir com o senhor Hoshino.
— Então está resolvido. Já me informei quanto ao horário do ônibus.
Vamos a Shikoku!
Capítulo 23
Kafka à beira-mar
Você se situa na beira do mundo
E eu, na cratera de um vulcão extinto;
E em pé à sombra da porta,
Perfilam palavras cujas letras se perderam.
Lagarta adormecida que a lua ilumina,
Peixinhos que chovem do firmamento,
E do lado de fora da janela
Soldados de espírito decidido.
(Refrão)
Numa cadeira à beira-mar, Kafka
Pensa no pêndulo que move o mundo.
O ciclo espiritual se completa,
E da esfinge que não vai a lugar algum
A sombra em faca se transforma
E trespassa seus sonhos.
Os dedos da menina que se afogou
Tateiam e buscam a pedra da entrada.
Ela arrepanha a barra do vestido azul
E contempla Kafka à beira-mar.
Ouço o disco três vezes. Antes de mais nada, surge uma dúvida. Por que
uma canção com este tipo de letra teria vendido mais de um milhão de
cópias? As palavras usadas não chegam a ser difíceis, mas ainda assim são
simbólicas e apresentam até certo viés surrealista. No mínimo não é o tipo de
letra que o povo decora rapidamente e sai cantarolando por aí. Mas depois de
ouvir a canção repetidas vezes, a letra adquire aos poucos um eco familiar.
Cada palavra parece encontrar espaço próprio no meu íntimo e nele se fixar.
A sensação é estranha. Imagens que vão além do seu sentido se erguem no ar
como gravuras recortadas e começam a andar sozinhas. Como se eu
estivesse em sono profundo e sonhasse.
Para começar, a música é maravilhosa. Melódica, sem distorções. Não
há vestígios de vulgaridade nela. E a voz da Sra. Saeki se dissolve na
melodia com perfeita naturalidade. Falta-lhe potência e técnica para ser
considerada profissional, mas banha suavemente o consciente como chuva
caindo sobre lajes de um jardim na primavera. Ela deve ter cantado
acompanhando-se ao piano e, posteriormente, a gravadora sobrepôs a essa
gravação o som de cordas e oboé. Na certa por problemas financeiros. A
edição é bastante modesta, mesmo considerando a época, mas a própria
simplicidade dá viço à obra.
E no refrão surgem dois acordes misteriosos. Os demais são comuns,
mas esses dois são inesperados, inovadores. Num primeiro momento, não
consigo perceber sua composição e me sinto confuso. Posso até estar
exagerando, mas a impressão que tive foi de ter sido traído. A reverberação
estranha que me chega aos ouvidos de maneira repentina agita minha alma e
me desestabiliza. É uma corrente gelada que, entrando de supetão no
aposento, me pega desprevenido. Mas quando o refrão termina, a
maravilhosa melodia inicial ressurge e me leva outra vez ao íntimo mundo
da harmonia. A corrente gelada já não incomoda. A canção chega ao fim, o
piano lança no ar a última nota, as cordas mantêm a suave harmonia, e o
oboé ecoa encerrando a melodia.
Ouço a melodia repetidas vezes e começo a compreender de maneira
vaga por que a canção “Kafka à beira-mar” cativou tanta gente. Ela é a
justaposição de um dom natural a um espírito gentil e puro, desprovido de
ambição. Uma justaposição perfeita, quase merecedora da qualificação
miraculosa. Numa pequena cidade interiorana, certa garota tímida de 19
anos escreve um poema pensando no namorado distante; em seguida, senta-
se ao piano, compõe uma melodia para o poema e depois a canta sem
afetação. Ela não a compôs para ser ouvida, ela a compôs para si mesma.
Para aquecer um pouco o próprio coração. E é essa inocência que comove as
pessoas de maneira suave mas efetiva.
Faço um jantar rápido com as coisas que achei na geladeira. Depois,
reponho o disco no prato giratório. Sento-me na cadeira, fecho os olhos e
evoco a imagem da Sra. Saeki de 19 anos, tocando a melodia e cantando-a
no estúdio. Penso na cálida emoção que abrigava em si. E penso também na
violência sem sentido que extinguiu de maneira inesperada esse belo
sentimento.
O disco termina, a agulha retorna à posição original.
A Sra. Saeki escreveu a letra da canção aqui mesmo, neste quarto. A certeza
me vem depois de ouvi-la muitas vezes. Além de tudo, Kafka é o garoto
retratado na pintura a óleo que pende da parede. Sento-me na cadeira da
mesma maneira que a garota da noite anterior, apóio os cotovelos sobre a
mesa e o rosto nas mãos, e dirijo o olhar para a parede. Na direção do meu
olhar está o quadro a óleo. Não tem erro. A Sra. Saeki contemplou o quadro
nesta sala e escreveu “Kafka à beira-mar” pensando no garoto. As sombras
da noite na certa se adensavam naquele momento.
Fico em pé diante do quadro e o observo de perto mais uma vez. O
garoto contempla a distância. O olhar é expressivo e misterioso. A um canto
do firmamento flutuam nuvens de contorno definido. A maior delas lembra,
com um pouco de boa vontade, uma esfinge. Esfinge — penso eu
vasculhando a memória — era o adversário que o jovem Édipo derrotou.
Édipo resolveu o enigma que a Esfinge lhe propusera. Ao se ver derrotado, o
monstro se jogou num abismo e se matou. Como recompensa pelo feito,
Édipo é guindado à posição de rei de Tebas e se casa com a mãe dele, a
rainha.
E quanto ao nome Kafka, deduzo que a Sra. Saeki captou o misterioso
ar de solidão que paira em torno do garoto do quadro e o relacionou ao
universo kafkiano. E por isso a jovem o chamou de “Kafka à beira-mar” —
alma solitária a vagar na fímbria das ondas à beira de um mar absurdo. Esse
deve ser o sentido do nome Kafka.
Descubro a relação comigo não só no nome Kafka e na parte da
Esfinge, como também em diversos outros versos. Peixinhos que chovem do
firmamento — este é a descrição exata das sardinhas e cavalinhas que
choveram na rua comercial do bairro de Nakano. A sombra em faca se
transforma/ E trespassa seus sonhos — estes parecem se relacionar com o
meu pai, que morreu trespassado por uma faca. Copio a letra verso por verso
num caderno e a releio diversas vezes. Sublinho a lápis as partes que me
incomodam. Mas, no fim, tudo me parece tão sugestivo que não entendo
mais nada.
“E em pé à sombra da porta,/ Perfilam palavras cujas letras se
perderam”
“Os dedos da menina que se afogou/ Tateiam e buscam a pedra da
entrada”
“E do lado de fora da janela/ Soldados de espírito decidido”
Que sentido tem isso? Ou as aparentes coincidências nada mais são que
obras do acaso? Vou até a janela e contemplo o jardim. Penumbra que vem
do alto. Eu me sento numa poltrona da sala de leitura e abro o livro A
história de Genji em versão de Junichiro Tanizaki para a língua moderna. Às
dez, vou para a cama, apago a luz da cabeceira e fecho os olhos. E aguardo o
retorno da Sra. Saeki de 15 anos.
Capítulo 24
Já passava das oito da noite quando o ônibus que partira de Kobe levando os
dois homens parou diante da estação de Tokushima.
— Cá estamos nós, Nakata, em Shikoku.
— Sim, senhor. A ponte era realmente impressionante. Nakata nunca
tinha visto uma ponte tão comprida — disse o velho homem.
Descendo do ônibus, os dois se sentaram num banco da estação e
contemplaram durante alguns momentos o movimento ao redor.
— E agora? Já recebeu uma mensagem divina ou algo semelhante
comunicando aonde devemos ir? — perguntou o jovem motorista.
— Ainda não. Nakata continua sem a menor idéia.
— Problemas à vista…
Nakata massageou o topo da cabeça com a palma da mão e pensou
longamente.
— Sr. Hoshino — disse ele.
— Hum?
— Sinto muito, mas Nakata está com vontade de dormir. Ele tem muito
sono. É capaz de dormir aqui mesmo.
— Ei, espere um pouco — disse o rapaz às pressas. — Não caia no
sono neste lugar porque vai me deixar em apuros. Agüente um pouco, vou
procurar imediatamente um lugar para ficarmos.
— Está bem. Nakata agüenta um pouco, faz força para não dormir.
— E o jantar, hein?
— Não precisa. Nakata só quer dormir.
Hoshino examinou às pressas o folheto turístico, escolheu uma
estalagem não muito cara com refeição matinal inclusa e ligou para se
certificar de que havia vagas. Como o estabelecimento se situava longe da
estação, os dois tiveram de pegar um táxi até lá. Mal entraram no quarto,
pediram que a camareira lhes estendesse o leito. Nakata despiu as roupas e
mergulhou nas cobertas sem ao menos tomar banho e, no instante seguinte,
já respirava de maneira profunda e regular, totalmente adormecido.
— Nakata acha que vai dormir muito tempo. Não se preocupe, senhor
Hoshino, ele estará apenas dormindo — avisara o homem antes de cair no
sono.
— Está bem, não vou perturbá-lo. Durma à vontade — disse o rapaz
vendo o companheiro cair em sono profundo num piscar de olhos.
Hoshino tomou um banho demorado e, em seguida, saiu a passear pela
cidade. Andou algum tempo sem destino pelas redondezas para obter uma
impressão geral da vida urbana. Em seguida, entrou na primeira casa de
sushi que lhe chamou a atenção, pediu também uma cerveja e jantou. Não
sendo do tipo resistente ao álcool, ficou com as faces vermelhas e sentiu-se
em estado de bem-aventurança logo depois de esvaziar uma garrafa mediana
de cerveja. Foi então para uma casa de jogos eletrônicos e perdeu cerca de 3
mil ienes em uma hora. Diversos freqüentadores o examinaram com
curiosidade porque usava o boné de beisebol dos Dragões Chunichi.
Hoshino achou que era o único em toda a Tokushima a andar com o boné
desse time.
Quando retornou à estalagem, Nakata continuava profundamente
adormecido e na mesma posição em que o deixara. A luz do quarto estava
acesa, mas isso não parecia incomodá-lo. Eis aqui um homem justo, pensou.
Tirou então o boné, despiu a camisa havaiana de padrão espalhafatoso e as
calças jeans, e mergulhou nas cobertas vestindo apenas a roupa de baixo.
Apagou a luz mas não conseguiu dormir: estranhava o local e estava
excitado. Raios, pensou, eu devia ter procurado uma prostituta e me aliviado.
Mas enquanto ouvia a respiração serena e compassada de Nakata, começou a
achar-se muito inconveniente. Ele não sabia explicar por quê, mas sentiu
vergonha de ter pensado em dormir com uma meretriz.
Insone, contemplou o teto no escuro e começou a sentir-se inseguro
consigo mesmo e com o fato de estar deitado numa hospedagem barata de
Tokushima ao lado de um velho cujos antecedentes desconhecia. Em
circunstâncias normais, Hoshino estaria retornando a Tóquio levando uma
nova carga em seu caminhão. Àquela altura, estaria passando por Nagoya.
Ele gostava do que fazia e, em Tóquio, tinha até uma pequena que sempre
corria ao encontro dele a um simples telefonema. Mas o que fizera ele depois
de descarregar a encomenda no depósito da loja de departamentos? Ligara
impulsivamente para um colega de Kobe e lhe pedira para substituí-lo na
viagem de retorno a Tóquio daquela noite. Telefonara em seguida para a
empresa de transportes, arrancara quase à força uma permissão para três dias
de folga e viera com Nakata para Shikoku. Na pequena sacola, tinha só
algumas mudas de roupa e artigos de toalete.
O interesse de Hoshino por Nakata despertara por causa da semelhança
do idoso homem com o falecido avô, tanto física como no jeito de falar. Mas
passados alguns instantes, a sensação de semelhança foi se dissipando e seu
interesse pela pessoa do velho Nakata, crescendo cada vez mais. Seu modo
de falar era realmente estranho e o conteúdo da conversa, mais ainda. Mas
havia algo nessa estranheza capaz de cativar as pessoas. Sentira então que
precisava saber aonde esse velhinho iria em seguida e também o que faria.
O jovem Hoshino era o terceiro de cinco filhos — todos homens — de uma
família de lavradores. Bom aluno até o nível ginasial, começou a andar em
más companhias e a se meter em confusões a partir do ano em que se
matriculara num curso técnico profissionalizante. Criou diversos casos com
a polícia. Obteve o diploma com muito custo mas não conseguiu arrumar um
bom emprego, envolveu-se com uma mulher e, ao fim e ao cabo, alistou-se
nas Forças de Autodefesa. Seu sonho era guiar tanques de guerra, mas, como
não passou nos testes, teve de se contentar com dirigir jamantas enquanto
permaneceu no exército. Pediu baixa três anos depois e acabou encontrando
emprego numa transportadora. Desde então, fazia já seis anos que trabalhava
levando cargas para locais distantes.
Hoshino gostava de guiar jamantas. Sempre apreciara mexer com
motores e, além disso, sentia-se senhor absoluto de um domínio quando se
via trancado numa boléia, segurando com firmeza o enorme aro de direção.
Era um serviço duro, naturalmente. Mas ele sabia que não suportaria
empregos burocráticos que o obrigassem a entrar todas as manhãs no mesmo
horário num escritório qualquer e a cumprir tarefas sob o olhar vigilante de
superiores hierárquicos.
Sempre fora do tipo briguento. Magro e esbelto, não parecia grande
coisa como adversário, mas tinha muita força. E quando se descontrolava,
seu olhar adquiria um brilho enlouquecido, capaz de acovardar a maioria dos
seus contendores. Metera-se em muitas brigas no tempo em que servira às
Forças de Autodefesa e também como motorista de caminhão. Algumas ele
ganhou; outras, perdeu. E ganhando ou perdendo, as brigas não trouxeram
nenhuma conseqüência importante à sua vida. Mas isso ele só veio a
perceber nos últimos tempos. Como é que escapara ileso de tantos
pandemônios?, perguntava-se agora com certo espanto.
Nos tempos de colegial rebelde, fora o avô que viera buscá-lo na
delegacia toda vez que se envolvia com a polícia. O velhinho se desculpava
com os policiais, chamava para si a responsabilidade do neto. No caminho
de volta para a casa, o avô sempre parava numa lanchonete e lhe pagava uma
refeição gostosa sem fazer longos sermões moralizantes. Os próprios pais
jamais tinham se dado o trabalho de sair de casa para socorrer Hoshino.
Eram pobres, mal ganhavam o suficiente para alimentar a família e não lhes
sobrava ânimo para se importar com o terceiro filho rebelde. Às vezes,
Hoshino se perguntava o que teria sido dele sem o avô. “O vô nunca se
esqueceu que eu existia, ele realmente se preocupava comigo…”
Naqueles tempos, porém, Hoshino nunca se preocupara em agradecer
ao idoso homem. Primeiro porque, mesmo que quisesse, não saberia como
fazê-lo e, segundo, porque tinha toda a atenção concentrada em sobreviver.
Pouco depois de se alistar nas FAD, o avô falecera de câncer. Com a mente
perturbada pela senilidade, o velhinho não conseguia nem reconhecer o neto
nos últimos tempos. E depois do seu falecimento, Hoshino nunca mais
voltara à própria casa.
Ao acordar às oito da manhã do dia seguinte, Hoshino viu que Nakata
continuava profundamente adormecido na mesma posição da noite anterior.
Como antes, sua respiração era regular e serena. O rapaz desceu para o
térreo e fez o desjejum com os demais hóspedes. A refeição era simples, mas
caldo de missô e arroz podiam ser repetidos à vontade.
— Seu companheiro de quarto não vai comer? — perguntou a
empregada.
— Acho que não. Ele continua dormindo a sono solto. Sei que vai
atrapalhar a sua rotina, mas deixe-o dormir mais um pouco, faça-me o favor.
A hora do almoço chegou e Nakata continuava a dormir, de modo que
Hoshino prorrogou por mais um dia a estada na hospedaria. Saiu em seguida
à rua, foi a uma lanchonete e pediu arroz com frango e ovos. Depois,
passeou pelos arredores, entrou numa casa de chá, tomou café, fumou um
cigarro e leu revistas em quadrinho que o estabelecimento punha à
disposição dos freqüentadores.
Quando retornou à estalagem, encontrou Nakata ainda adormecido. Já
eram quase duas da tarde. Ligeiramente preocupado, o rapaz pousou a palma
da mão na testa do companheiro. Tudo normal. A pele não estava nem mais
quente nem mais fria. A respiração continuava serena e regular, as faces
apresentavam um rubor saudável. Nada indicava que Nakata passava mal.
Ele apenas dormia tranqüilamente. Nem se mexia.
— Tudo bem com ele? Não faz mal dormir tanto? — perguntou
apreensiva a empregada que veio saber do hóspede.
— Meu amigo estava muito cansado — disse Hoshino. — Deixe-o
dormir à vontade.
— Hum… Nunca vi ninguém dormir tanto em toda a minha vida.
Na hora do jantar, Nakata continuava dormindo. O rapaz saiu e comeu
um volumoso prato de arroz com carne em molho de caril, e salada. Depois,
foi à mesma casa de jogos eletrônicos do dia anterior e apostou em uma das
máquinas. Desta vez, não precisou gastar mil ienes para conseguir dois
pacotes de cigarro Marlboro. Quando retornou ao quarto da hospedaria
sobraçando os dois pacotes, eram nove e meia da noite. Nakata continuava a
dormir.
Hoshino fez as contas. Havia mais de 24 horas que Nakata dormia.
Embora tivesse sido prevenido que o sono seria longo e que não precisava se
preocupar com isso, Hoshino achou que era um exagero dormir tanto.
Sentiu-se também um pouco inseguro, coisa que raramente lhe acontecia. E
se Nakata não acordasse mais?
— Em que enrascada fui me meter! — murmurou.
Mas ao despertar às sete da manhã do dia seguinte, Hoshino viu que Nakata
estava acordado e olhava para fora pela janela.
— Oi, tio! Você acordou, finalmente! — exclamou o rapaz com voz que
demonstrava alívio.
— Sim senhor, Nakata acordou há pouco. Dormiu um bocado, mas não
sabe quantas horas. Sente como se tivesse renascido.
— Põe “bocado” nisso! Homem, você caiu no sono às nove da noite de
anteontem! Foram quase 32 horas de sono sem interrupção. Nem que fosse a
Branca de Neve!
— E Nakata está com fome.
— Aposto que está. Você não come nada há dois dias!
Os dois desceram ao refeitório no andar térreo para o desjejum. Nakata
repetiu tantas vezes o arroz que espantou a empregada.
— Seu amigo dorme bastante e, quando acorda, come feito um boi!
Devorou o suficiente para se manter em jejum por dois dias! — exclamou a
empregada.
— Sim senhora. Nakata precisa comer direito.
— Sinal de saúde — disse a mulher, admirada.
— É verdade. Nakata é analfabeto, mas não tem cárie, nem precisa usar
óculos. E nunca teve de ir ao médico. Não tem dores nas costas, e faz cocô
todas as manhãs.
— Beleza! — disse a empregada. — E o que vão fazer agora?
— Nakata vai para o oeste — respondeu Nakata, convicto.
— Ah, para o oeste… Bom… — disse a empregada —, a oeste daqui
fica a cidade de Takamatsu, eu acho.
— Nakata não é bom da cabeça, não entende nada de geografia.
— Não faz mal, tio, vamos para Takamatsu — disse Hoshino. — A
gente chega lá e, depois, pensa no resto. Certo?
— Isso mesmo, antes de mais nada, a gente vai para Takamatsu. E
depois pensa no resto.
— Que jeito diferente de viajar! — interveio a empregada.
— Realmente diferente — disse Hoshino.
Ao voltar para o quarto, Nakata entrou no banheiro. Enquanto isso, Hoshino
assistiu à televisão ainda vestindo o quimono cedido pela hospedaria e
deitado de bruços sobre as cobertas. Não havia nenhuma notícia interessante.
O incidente em que certo escultor famoso do bairro de Nakano tinha sido
esfaqueado e morto continuava sem solução. Não havia testemunhas nem
restaram pistas no local do crime. No momento, a polícia procurava o
paradeiro do filho de 15 anos, desaparecido pouco antes do incidente.
— Raios, outro de 15 anos! — pensou Hoshino.
Por que rapazotes de 15 anos se metem em incidentes violentos nos
últimos tempos? Aos 15 anos, ele próprio costumava roubar motocicletas
estacionadas e andar nelas sem habilitação. Portanto, não tinha moral para
criticar os outros. Mas vamos e venhamos, entre roubar motos e matar o
próprio pai havia uma grande diferença. Pensando bem, ele tivera é muita
sorte: depois de tanto apanhar do pai, algum desígnio misterioso o impedira
de matá-lo a facadas, pensou Hoshino.
O noticiário tinha terminado quando Nakata saiu do banheiro.
— Posso lhe fazer uma pergunta, senhor Hoshino?
— Faça.
— O senhor acaso não tem dores na coluna?
— Claro que tenho. Afinal, são muitos anos guiando jamantas. Entre
nós, caminhoneiros que cobrem longas distâncias, é difícil encontrar um que
não sofra da coluna. Tão difícil quanto achar um arremessador de beisebol
que nunca tenha avariado o ombro — disse o rapaz. — Mas por que essa
pergunta repentina?
— Porque foi o que eu senti enquanto observava suas costas.
— Ora essa…
— Posso apalpar sua coluna?
— Poder, pode…
Nakata se pôs a cavalo sobre as costas do rapaz, que continuava deitado
e de bruços. Por instantes, apoiou as duas mãos num área pouco acima dos
quadris e assim se deixou ficar, imóvel. Enquanto isso, Hoshino assistia a
um programa de mexericos sobre celebridades do mundo artístico. Uma atriz
famosa tinha se casado com um escritor não tão famoso. Hoshino não se
interessava por esse tipo de notícia, mas continuava sintonizado no canal por
falta de uma opção melhor. A atriz, diziam, ganhava dez vezes mais que o
escritor. O escritor não era especialmente bonito nem parecia muito
inteligente. Hoshino torceu o pescoço e se voltou para Nakata.
— Esse tipo de arranjo não dá certo na maioria das vezes, sabe? Acho
que esses dois não se entenderão direito.
— Senhor Hoshino, seus ossos estão um tanto desalinhados.
— Vivi fora da linha por muito tempo. É natural — disse o rapaz
bocejando.
— Se continuar assim, poderão surgir complicações muito sérias.
— É mesmo?
— Vai ter enxaquecas e encontrar dificuldade para fazer cocô.
— Ah, essa não!
— Vai doer um pouco, mas… Posso?
— Pode.
— Para falar a verdade, vai doer um bocado.
— Escute, tio, levei surras atrás de surras tanto em casa, como na escola
e no exército. Não é que eu esteja querendo me gabar mas, na verdade, sou
capaz de contar nos dedos os dias em que não apanhei de alguém. Não há de
ser portanto a esta altura que vou me queixar de dor, calor, coceira ou
cócegas, nem do salgado e nem do doce. Esteja à vontade.
Nakata se concentrou apertando de leve os olhos e verificou com
cuidado a posição dos próprios polegares pousados sobre os ossos dos
quadris. Quando teve certeza de que estavam corretamente posicionados,
começou a pressionar, a princípio devagar, experimentando, e depois com
força cada vez maior. Em seguida, inspirou uma vez abruptamente, soltou
um leve grito que ecoou como o pio de um pássaro no inverno e introduziu
os dedos com toda a força entre ossos e músculos. Hoshino sentiu
instantaneamente uma dor aguda que ultrapassou os limites da racionalidade.
Um raio cegante fustigou seu cérebro, branqueando-lhe a consciência.
Perdeu a respiração. Teve a impressão de estar em queda vertiginosa do topo
de uma torre para o fundo de um abismo. Não conseguia sequer gritar. A dor
era tamanha que não conseguiu pensar em nada. Todos os pensamentos
tinham se queimado e voavam em estilhaços, todas as sensações se
concentravam naquela dor. Sentiu que sua estrutura física se desfazia. Nem a
morte deveria ser tão devastadora. Não conseguia abrir os olhos. De bruços e
paralisado, babou sobre o tatame. Lágrimas rolaram dos seus olhos. A
situação, excruciante, durou cerca de trinta segundos.
Passado esse tempo, o rapaz finalmente conseguiu inspirar, apoiar-se
nos cotovelos e se erguer cambaleante. Diante dele, o piso ondulava, sinistro
como mar em dia de tempestade.
— Doeu?
Cuidadosamente, o rapaz sacudiu a cabeça algumas vezes querendo se
certificar de que continuava vivo.
— Se doeu? Caramba! O que senti não foi simples dor! Fui esfolado
vivo, passado num espeto, ralado e moído e ainda por cima atropelado por
uma manada de bois enfurecidos! Que foi que você fez, homem?
— Nakata repôs os ossos da sua articulação no devido lugar. Agora, o
senhor ficará bem por muito tempo. Sua coluna não doerá mais. E vai fazer
cocô normalmente.
E, verdade seja dita, quando a terrível dor refluiu como maré vazante, o
rapaz deu-se conta da sensação de leveza em suas costas. A opressão e o
cansaço que sempre sentia tinham desaparecido. Havia muito não tinha a
nuca tão livre e a respiração tão fácil. E estava com vontade de ir ao
banheiro.
— Realmente, diversas partes do meu corpo estão em melhor situação
agora.
— Sim, todo o mal-estar vinha da coluna — disse Nakata.
— Mas que dor, homem! Raios! — reclamou Hoshino com um suspiro.
Da estação de Tokushima, os dois tomaram o expresso da JR rumo a
Takamatsu. Hoshino pagou tanto a hospedagem quanto as passagens. Nakata
insistira em saldar sua parte, mas o rapaz não permitiu.
— Eu vou pagando as contas por enquanto e mais tarde rateamos.
Homem que é homem não discute trocados, é o que penso.
— Sim senhor. Nakata não entende muito de dinheiro, de modo que vai
deixar tudo por conta do senhor Hoshino — disse o velho.
— Mas uma coisa é certa: seu shiatsu aliviou muito a dor da coluna.
Portanto, deixe-me pagar ao menos uma parte das suas despesas. Não me
sinto tão bem há muito, muito tempo. Estou novo em folha.
— Nakata fica contente em saber disso. Ele não sabe o que é shiatsu,
mas ossos são realmente parte importante do corpo.
— Eu também não sei se aquilo que você fez se chama shiatsu, seitai
ou quiroprática, mas tudo indica que você tem um dom muito grande para
esse tipo de coisa. Profissionalize-se e vai ganhar rios de dinheiro, isso eu
garanto. Imagine a pequena fortuna que fará só com os colegas de profissão
que eu lhe apresentar.
— Nakata olhou para as suas costas e logo percebeu que os ossos
estavam desalinhados. Quando Nakata vê alguma coisa desalinhada, logo
tem vontade de consertar. Nakata trabalhou muitos anos como marceneiro e
acha que por isso tem vontade de endireitar todas as coisas tortas. Faz tempo
que ele é assim. Mas esta é a primeira vez que endireitou ossos.
— Você realmente tem o dom — disse o rapaz admirado.
— Antes disso, Nakata era capaz de conversar com gatos.
— Não diga!
— Mas dias atrás, Nakata de repente descobriu que não consegue mais
falar com eles. Acha que a culpa é do senhor Johnnie Walker.
— Seei…
— Nakata não é bom da cabeça, não é capaz de entender coisas
complicadas. Mas nos últimos tempos só lhe acontecem coisas complicadas.
Por exemplo, essa história de peixes e sanguessugas que chovem do céu.
— Hum…
— Ainda assim, Nakata fica muito contente em saber que o senhor
Hoshino está melhor da coluna. Se o senhor Hoshino se sente bem, Nakata
também se sente bem.
— E eu fico mais feliz ainda.
— Ótimo.
— E quanto àquela história das sanguessugas que choveram na área de
estacionamento de Fujigawa…
— Sim, senhor. Nakata se lembra muito bem dessa história.
— Aquilo lá teve alguma relação com você, Nakata?
Coisa rara, Nakata permaneceu alguns instantes em silêncio, pensando.
— Nakata não sabe direito, mas quando ele fez assim e abriu o guarda-
chuva, um monte de sanguessugas despencaram do céu.
— Seei…!
— Seja como for, matar é errado — declarou Nakata. Em seguida, fez
movimentos afirmativos com a cabeça para si mesmo com convicção.
— Isso agora é verdade. Não está certo matar — concordou o jovem.
— Sim senhor — disse Nakata, balançando a cabeça outra vez
vigorosamente.
Os dois saltaram do trem em Takamatsu. Entraram em seguida numa casa
especializada em massas e almoçaram uma sopa de macarrão escaldante
servida em tigela bojuda. Da janela do refeitório se viam as gigantescas
gruas do porto. Diversas gaivotas pousavam nelas. Nakata saboreou um a
um os grossos fios da massa.
— Que macarrão delicioso! — disse Nakata.
— Você gostou? Ótimo! — disse Hoshino. — E então, acha que é este
o local?
— Sim, senhor Hoshino. Nakata acha que é aqui. Assim lhe parece.
— Quer dizer que o problema do local está resolvido. Que fazemos
agora?
— Nakata vai procurar a pedra da entrada.
— Pedra da entrada?
— Isso mesmo.
— Ora essa… — disse o rapaz. — Mas na certa tem uma história muito
comprida atrás disso.
Nakata inclinou a bojuda tigela e tomou o caldo restante até a última
gota.
— Sim senhor, tem mesmo uma história muito comprida. Tão comprida
que Nakata não consegue entender nada. Mas tem a impressão de que,
quando chegar lá, vai saber.
— Quando chegar lá, vai saber. Como sempre.
— Exatamente.
— E enquanto não chegar lá, não sabe…
— Isso. Enquanto não chega lá, Nakata não tem a menor idéia.
— Ah, não tem importância. Se quer saber, eu também não gosto de
histórias compridas. O problema todo se resume em encontrar essa tal pedra
de entrada, certo?
— Isso mesmo. Exato.
— E onde mais ou menos ela estaria?
— Nakata não tem a mínima idéia.
— Até parece que adiantava perguntar… — murmurou Hoshino
sacudindo de leve a cabeça.
Capítulo 25
Durmo um pouco, acordo, durmo outro pouco e torno a acordar. Faço isso
diversas vezes. Quero ver o exato instante em que ela aparece. Mas quando
dei por mim, ela já estava sentada na mesma cadeira da noite anterior. O
ponteiro fosforescente do relógio de cabeceira indica que são pouco mais de
três da manhã. A cortina, que com certeza cerrei antes de mergulhar na
cama, está aberta. Do mesmo jeito que ontem. Mas não há luar. Esse é o
único detalhe diferente. Há nuvens espessas no céu, talvez esteja até
chovendo. Dentro do quarto, a escuridão é muito mais intensa que ontem e,
filtrada pela vegetação, a luz das luminárias do jardim mal chega até mim.
Meus olhos demoram a se habituar à escuridão.
Cotovelos sobre a mesa e rosto apoiado nas mãos, a garota observa o
quadro a óleo que pende da parede. Está usando o mesmo vestido de ontem.
Por mais que aguce o olhar, a escuridão intensa me impede de divisar seu
rosto. Em compensação, os contornos do seu corpo e do seu rosto se
destacam com estranha clareza e flutuam no escuro compondo uma figura
tridimensional. Não há dúvida de que quem ali está é a Sra. Saeki
adolescente.
Parece-me que algum tipo de pensamento absorve totalmente a atenção
da garota. Ou pode ser que ela esteja vivendo um sonho longo e profundo.
Melhor ainda, talvez a própria garota seja o sonho longo e profundo da Sra.
Saeki. De todo modo, procuro respirar com suavidade para não perturbar o
equilíbrio do momento. Eu me paraliso inteiramente. Só movo o olhar para o
relógio vez ou outra a fim de confirmar as horas, as quais passam de maneira
lenta, mas uniforme e segura.
De repente, meu coração começa a pulsar alto. O som seco ecoa no
quarto semelhante a insistentes batidas à porta, firme e resoluto na
madrugada silenciosa. Quem mais se espanta com isso sou eu. Tanto que
quase caio da cama.
A silhueta escura da garota ondula ligeiramente. Ela ergue o rosto e
apura os ouvidos na escuridão. O pulsar do meu coração tinha chegado aos
seus ouvidos. Ela tomba a cabeça de leve para um dos lados e concentra a
atenção, como um pequeno animal selvagem que ouviu um ruído estranho.
Em seguida, volta o rosto na direção da minha cama. Mas meus olhos não
estão refletidos nos dela. Eu percebo isso. Não faço parte do seu sonho. Eu e
ela estamos em mundos diferentes, separados por uma linha demarcatória
invisível.
Logo, o violento pulsar do meu coração se acalma, tão abrupto como
começou. Minha respiração também se normaliza. Volto a anular minha
presença. E a garota desiste de apurar os ouvidos. Torna a olhar o quadro
Kafka à beira-mar. Como antes, apóia os cotovelos na mesa e o rosto nas
mãos, e seu espírito se volta inteiro para o rapaz e para a paisagem de verão
dentro do quadro.
Cerca de vinte minutos depois, a bela garota se vai. Como no dia
anterior, ergue-se da cadeira, caminha descalça na direção da porta e, sem
abri-la, desaparece silenciosamente. Permaneço ainda algum tempo na
mesma posição e em seguida me ergo e saio da cama. Com as luzes
apagadas, sento-me na cadeira em que ela se sentara. Apóio os cotovelos na
escrivaninha e mergulho no eco da sua passagem.
Entre ela e mim existe ao menos um ponto em comum. Esta verdade me
vem de maneira súbita à mente. Isso mesmo: nós dois estamos apaixonados
por pessoas que já não pertencem a este mundo.
Pouco depois, caio em sono agitado. O corpo busca um sono profundo,
mas a consciência se empenha em permanecer alerta. E eu oscilo entre os
dois extremos. Pássaros iniciam seu alegre chilrear no jardim e me
despertam de vez.
Visto jeans, camisa de manga comprida sobre camiseta e saio. São pouco
mais de cinco da manhã e não há sinais de presença humana nos arredores.
Cruzo as ruas da antiga cidade, atravesso o pinheiral que serve de anteparo
contra o vento, ultrapasso o quebra-mar e saio na areia da praia. O ar está
parado. Nuvens cinzentas encobrem completamente o céu, mas não há sinal
de chuva iminente. Amanhecer sereno. As nuvens abafam e absorvem todos
os sons sobre a face da terra.
Ando durante algum tempo pelo caminho à beira-mar imaginando que o
rapaz do quadro deve ter instalado sua cadeira de lona e se sentado nalgum
ponto desta praia. Mas não consigo estabelecer onde com exatidão. No
quadro, a paisagem de fundo é apenas areia, horizonte, nuvens e céu. E ilhas.
Mas há muitas ilhas por aqui, e eu não consigo me lembrar direito do
formato daquelas desenhadas no quadro. Sento-me na areia e, com os dedos,
enquadro a paisagem marítima a esmo. E nela posiciono o garoto na cadeira.
Uma gaivota branca corta indecisa o céu sem vento. Ondas miúdas quebram
na areia a intervalos regulares compondo uma linha suave, mas logo se
retraem deixando atrás um rastro de espuma rala.
Dou-me conta de que estou com ciúmes do garoto do quadro.
— Você está com ciúme do garoto do quadro — diz o menino
chamado Corvo.
Veja bem, você está com ciúme de um pobre rapaz que morreu
bestamente com 20 anos de idade só porque foi tomado por outra
pessoa. Num episódio que, aliás, aconteceu há quase trinta anos! Ciúme
tão intenso que chega a lhe apertar o coração. Tudo isso é novidade para
você. Agora sabe o que é ciúme, esse sentimento que devasta o coração
como uma queimada.
Desde o dia em que nasceu até hoje, você nunca invejou ninguém,
nunca quis ser outra pessoa. Mas, agora, nutre uma inveja profunda por
esse garoto. Não lhe importa saber que será torturado e morto com
golpes de cano de ferro antes de completar os 20 anos: você deseja ser
esse rapaz e amar incondicionalmente a Sra. Saeki da época em que ela
tinha entre 15 e 20 anos de idade, e deseja também ser amado
incondicionalmente por ela. Quer abraçá-la sem restrições, quer copular
com ela muitas, muitas vezes. Quer acariciar todas as partes do corpo
dela. Quer também que ela acaricie todos os cantos e recantos do seu
corpo. E, mesmo depois de morto, gostaria de permanecer gravado no
íntimo dela como uma lenda ou uma imagem. Quer ser amado por ela
todas as noites, ser parte de suas recordações.
Sua situação é estranha, realmente. Está apaixonado por uma
imagem feminina que já não existe e tem ciúme de um rapaz que já
morreu. Apesar de tudo, sua paixão é mais verdadeira e dolorosa que
qualquer sentimento jamais experimentado por você. E não há saída
possível. Não existe nem mesmo a possibilidade de achar uma saída.
Você está perdido no labirinto do tempo. E o que é mais importante, não
tem a mínima vontade de sair dele. Certo?
Oshima chega um pouco mais tarde que ontem. Antes disso, eu já tinha
passado o aspirador de pó no primeiro e no segundo andar, tirado o pó de
mesas e cadeiras com pano úmido, aberto e limpado as janelas, lavado o
banheiro, esvaziado as latas de lixo e trocado a água dos vasos de flor. Tinha
também acendido a luz das salas, ligado o computador de pesquisas, e agora
só faltava abrir os portões. Oshima checa um a um todos os preparativos e
afinal acena demonstrando certo prazer.
— Você aprende depressa — diz ele.
Fervo a água e preparo o café para Oshima. Eu mesmo tomo minha
xícara de chá preto Earl Grey, como ontem. Lá fora, a chuva havia começado
a cair. Chuva forte. Trovões ecoam a distância. Ainda nem é meio-dia, mas
está escuro, como se o dia já estivesse findando.
— Oshima, tenho um pedido a lhe fazer.
— Que pedido?
— Você me conseguiria a partitura de “Kafka à beira-mar”?
Oshima pensa um pouco.
— Se ela consta no catálogo do site das editoras de partituras, talvez
seja possível baixá-la pagando um pouco. Mais tarde pesquiso para você.
— Muito obrigado.
Oshima se senta a um canto do balcão, mergulha um minúsculo cubo de
açúcar no café e o mexe cuidadosamente com uma colher.
— E então, gostou da canção?
— Muito.
— Eu também gosto. É ao mesmo tempo bonita e original. Cândida e
profunda. A personalidade da compositora nos chega diretamente através
dela.
— Mas a letra é repleta de simbolismos.
— Poesia e simbolismo sempre andam de mãos dadas desde tempos
imemoriais. Do mesmo jeito que pirata e rum.
— Você acha que a Sra. Saeki compreendia o sentido das palavras que
usou?
Oshima ergue a cabeça e apura os ouvidos para o ribombar longínquo
do trovão como se calculasse sua distância e, depois, se volta para mim.
— Não necessariamente. Simbologia e sentido são duas coisas
diferentes. Acho que ela obteve as palavras certas porque ignorou as tediosas
formalidades do sentido ou da lógica. Colheu as palavras de um sonho como
alguém que gentilmente apanha uma borboleta em pleno vôo pelas asas.
Artistas são pessoas capazes de contornar coisas tediosas.
— Você está querendo dizer que a Sra. Saeki talvez tenha encontrado as
palavras do seu verso em outro espaço — como, por exemplo, num sonho?
— A maioria dos grandes poemas é composta dessa maneira. Mas se as
palavras neles existentes não conseguirem encontrar um túnel de
comunicação profético com o leitor, não estarão cumprindo sua função
poética.
— Mas existem muitos poemas que só fingem fazer isso.
— Exatamente. Fingir é fácil, basta aprender o macete. Se você usar
palavras que parecem simbólicas, obterá um arremedo de poesia.
— Mas acho que existe algo premente em “Kafka à beira-mar”.
— Também acho. As palavras não são superficiais. Se bem que, no meu
caso, letra e música já se incorporaram de tal maneira um no outro que perdi
a capacidade de considerar apenas a poesia e de julgar corretamente o poder
persuasivo das palavras… — diz Oshima. Depois, sacode a cabeça de leve.
— Seja como for, a Sra. Saeki era dotada de poderoso talento natural, além
de musicalidade. Tinha também real senso de oportunidade, sabia vislumbrar
uma chance e agarrá-la. Na certa teria desenvolvido essas aptidões
livremente caso não tivesse aberto mão da própria vida em decorrência
daquele incidente doloroso. Foi uma pena muito grande em diversos
sentidos.
— E onde foi parar todo o imenso talento dela? — pergunto.
Oshima me encara.
— Você quer saber o que aconteceu com o talento da Sra. Saeki depois
que o namorado morreu?
Confirmo e acrescento:
— Se talento é uma espécie de energia natural, ele deveria estar
procurando um meio de se expressar, certo?
— Não sei — responde Oshima. — Sua destinação é imprevisível.
Talentos podem simplesmente desaparecer. Ou mergulhar nas profundezas
como uma corrente subterrânea e fluir para lugares desconhecidos.
— Ou a Sra. Saeki pode ter direcionado seu talento para algo diferente,
não musical — eu digo.
— Para algo diferente? — diz Oshima interessado, franzindo o cenho.
— Por exemplo?
Não consigo me expressar.
— Não sei. Eu apenas tive essa impressão. Algo, por exemplo, sem
forma definida.
— Sem forma definida?
— Quero dizer, algo que ela busca para si mesma, invisível aos demais.
Para uma atividade íntima, talvez.
Oshima leva a mão à testa e afasta o cabelo. Mechas finas escapam por
entre os dedos delgados.
— Você tem opiniões interessantes. Realmente, depois de sair desta
cidade, a Sra. Saeki pode ter ido para um lugar que desconhecemos e
direcionado seu talento para esse algo sem forma definida que você
menciona. Mas lembre-se de que ela andou desaparecida durante 25 anos, de
modo que só poderemos saber o que ela andou fazendo ou onde esteve nesse
período perguntando a ela.
Depois de hesitar alguns instantes, tomo coragem e digo.
— Posso perguntar uma coisa realmente boba?
— Realmente boba?
Sinto as faces em fogo.
— Desmesuradamente boba.
— Pode. Eu gosto de coisas realmente, desmesuradamente bobas.
— Nem eu consigo acreditar no que vou perguntar.
Oshima pende a cabeça de leve para um lado e espera.
— Você acha possível que a Sra. Saeki seja minha mãe?
Oshima não diz nada. Recostado no balcão, ele procura as palavras com
cuidado, gasta tempo nisso. Enquanto isso, concentro a atenção no tique-
taque do relógio.
Finalmente ele diz:
— Resumindo em poucas palavras o sentido da sua pergunta, você está
querendo saber se seria possível que, aos 20 anos de idade, a Sra. Saeki
tenha saído desesperada de Takamatsu e se ocultado nalgum canto, quando
então teria conhecido o seu pai, Koichi Tamura, casado com ele, sido
abençoada com o nascimento de uma criança — você —, e quatro anos
depois fugido de casa por algum motivo, abandonando a referida criança
para retornar à terra natal dela, Shikoku, após um misterioso período sobre o
qual nada sabemos?
— Isso.
— A possibilidade existe, não nego. Ou melhor, no momento não
disponho de provas que refutem essa hipótese. Boa parte da vida dela está
envolta em mistério. Existe realmente um boato de que viveu uns tempos em
Tóquio. E ela tem mais ou menos a mesma idade do seu pai. Mas quando
retornou a Takamatsu, ela estava sozinha. Ela pode até ter tido uma filha que
leva agora uma vida independente nalgum lugar, claro. Por falar nisso,
quantos anos deve ter sua irmã?
— Vinte e um.
— Como eu — diz Oshima. — Mas tudo indica que não sou sua irmã.
Tenho pai e mãe, e um irmão mais velho. Gente boa, muito melhor que eu, e
se quer saber, todos sangue do mesmo sangue.
Oshima cruza os braços e observa meu rosto por alguns instantes.
— Mas agora, quem tem uma pergunta a fazer sou eu — diz ele. —
Você já examinou sua certidão de nascimento? Nela você encontraria com
facilidade tanto o nome como a idade da sua mãe.
— Claro que examinei.
— E qual era o nome da sua mãe?
— Não consta — digo.
Oshima se espanta ao ouvir isso.
— Não consta? Como assim? Que eu saiba, isso é impossível.
— Não consta. De verdade. Como isso se tornou possível nem eu
mesmo sei. Mas de acordo com a certidão, não tenho mãe. Nem irmã. No
documento, só aparecem o nome do meu pai e o meu. Em outras palavras,
sou filho natural do ponto de vista legal. Filho nascido fora do casamento.
Ou seja, ilegítimo.
— Mas na realidade, você teve mãe e irmã.
Aceno a cabeça.
— Até os 4 anos, eu realmente tinha mãe e irmã. Nós quatro vivíamos
numa casa e constituíamos uma família. Disso me lembro perfeitamente.
Não é imaginação nem nada. E logo depois do meu quarto aniversário, as
duas foram embora.
Retiro da carteira a foto em que eu e minha irmã brincamos à beira-mar.
Oshima a observa por momentos, sorri e me devolve.
— Kafka à beira-mar — diz Oshima.
Aceno concordando e guardo a velha foto na minha carteira. Lá fora, o
vento dança e a chuva fustiga a vidraça com estrépito. A luz do teto projeta
nossas sombras no piso. Elas parecem confabular algo sinistro no mundo do
avesso.
— Você não se lembra do rosto da sua mãe? — pergunta Oshima. — Se
você conviveu com ela até os 4 anos de idade, deveria ter ao menos uma
vaga lembrança das feições dela.
Sacudo a cabeça e nego.
— Não consigo me lembrar de jeito nenhum. Não sei por quê, a área da
minha memória correspondente ao rosto da minha mãe está escura, como se
alguém a tivesse pintado de preto.
Oshima pensa algum tempo e depois diz:
— Que acha de me falar um pouco mais a respeito das razões pelas
quais você supõe que a Sra. Saeki seja sua mãe?
— Ah, vamos mudar de assunto, Oshima — eu digo. — Acho que estou
ficando obcecado por essa história.
— Não faz mal. Conte-me tudo que lhe vai na cabeça — diz Oshima.
— Se isso é ou não obsessão, decidiremos mais tarde, depois de pensar a
respeito.
Sobre o piso, a sombra de Oshima se desloca acompanhando um ligeiro
movimento da parte dele. Mas a sombra parece ter se movido mais que o
próprio Oshima.
Digo:
— Existem inúmeras coincidências entre a minha história e a da Sra.
Saeki. Elas se encaixam perfeitamente, como peças de quebra-cabeças. Dei-
me conta disso enquanto ouvia “Kafka à beira-mar”. Para começar, cheguei
a esta biblioteca como que arrastado por mãos invisíveis. Do meu bairro,
Nakano, até Takamatsu, praticamente em linha reta. E isso é realmente
estranho, se você pensar bem.
— É verdade, lembra o enredo de uma tragédia grega — concorda
Oshima.
Digo:
— E eu estou apaixonado por ela.
— Pela Sra. Saeki?
— Isso. Acho que sim.
— Acha que sim? — diz Oshima, franzindo o cenho. — Está querendo
dizer que talvez esteja apaixonado pela Sra. Saeki? Ou que está apaixonado
talvez pela Sra. Saeki?
Sinto o rosto avermelhar.
— Não consigo explicar direito — respondo. — A questão é complexa
demais e há muitos pontos nela que nem eu consigo entender direito.
— Mas você acha que está apaixonado e acha que é pela Sra. Saeki?
— Isso — respondo. — E muito.
— Acha, e muito.
Concordo com um aceno de cabeça.
— Mas, ao mesmo tempo, a probabilidade de ela ser sua mãe existe.
Concordo com um novo aceno.
— A carga que você leva aos ombros é excessivamente pesada para um
rapazinho imberbe de 15 anos — diz Oshima, tomando cuidadosamente um
gole do café e devolvendo em seguida a xícara ao pires. — Não estou
dizendo que isso seja errado. Mas em todo acontecimento existe um ponto
crítico.
Permaneço em silêncio.
Oshima leva um dedo à têmpora e pensa alguns instantes. Depois, cruza
os dedos delgados sobre o peito.
— Vou ver se consigo a partitura de “Kafka à beira-mar” o mais rápido
possível. É melhor você voltar para o seu quarto e deixar por minha conta o
resto do serviço.
Na hora do almoço, substituo Oshima no balcão de atendimento. Hoje,
temos menos visitantes que de costume por causa da chuva. Ao retornar do
almoço, Oshima me entrega uma cópia da partitura de “Kafka à beira-mar”
num envelope grande.
— Tudo é muito fácil hoje em dia — comenta.
— Muito obrigado.
— Se não se incomoda, gostaria que levasse uma xícara de café para o
andar superior. Você faz um café muito bom, sabia?
Preparo café fresco, ponho-o numa bandeja e o levo para a Sra. Saeki
no andar superior. Sem açúcar nem creme. A porta está escancarada, como
de hábito. Ela está à escrivaninha escrevendo alguma coisa. Deposito a
bandeja sobre a mesa, e ela ergue o rosto e me sorri. Depois, tampa a caneta
e a depõe sobre o papel.
— E então? Já se adaptou?
— Aos poucos — respondo.
— Você está livre agora?
— Estou.
— Sente-se aí, então — diz a Sra. Saeki apontando uma cadeira de
madeira perto da mesa. — Vamos conversar um pouco.
Começa a trovejar de novo. O ribombo é distante por enquanto, mas
vem se aproximando.
Eu me sento no local indicado.
— Quantos anos você tem mesmo? Dezesseis?
— Quinze, para falar a verdade. Meu aniversário foi há pouco —
respondo.
— Você fugiu de casa, não é?
— Sim senhora.
— Teve razões especiais para fugir?
Sacudo a cabeça negando. Que devo dizer, afinal?
Enquanto aguarda a minha resposta, a Sra. Saeki apanha a xícara e toma
um gole de café.
— Senti que acabaria desvirtuado de maneira irreparável caso
continuasse por lá — digo afinal.
— Desvirtuado? — repete a Sra. Saeki apertando de leve os olhos.
— Isso.
Depois de breve pausa, a Sra. Saeki observa:
— Acho surpreendente uma pessoa da sua idade usar termos como
desvirtuar. Desperta meu interesse, sabe? O que você quis dizer com acabar
desvirtuado, em termos práticos?
Busco as palavras. Antes de mais nada, vou atrás do menino chamado
Corvo. Mas não o acho em lugar algum. Procuro então eu mesmo as
palavras. Mas isso toma tempo. A Sra. Saeki, porém, espera imóvel e em
silêncio. Um relâmpago cintila e, depois de breve pausa, ouço outro ribombo
distante.
— Senti que minha imagem acabaria alterada para algo que não sou.
A Sra. Saeki me observa com muito interesse.
— Mas já que o tempo existe, todas as pessoas acabam afinal
desvirtuadas, ou seja, têm suas imagens alteradas, concorda? Cedo ou tarde?
— Mesmo que um dia acabem desvirtuadas, as pessoas precisam de um
lugar para onde possam retornar.
— Um lugar para onde possam retornar?
— Ou seja, um lugar para onde valha a pena retornar.
A Sra. Saeki me encara, imóvel.
Enrubesço. Mas tomo coragem e ergo a cabeça. Ela usa um vestido
azul-marinho de mangas curtas. Pelo jeito, possui uma grande quantidade de
vestidos em diversos tons de azul. Um colar fino de prata e um relógio com
pulseira de couro preta é tudo que ela usa como adorno. Procuro dentro dela
a jovem de 15 anos. Logo a encontro. Ela dorme na floresta da alma, furtiva
como uma figura em quadro trompe l’oeil. Mas basta aguçar meus olhos
para vê-la. Meu coração começa a produzir ruídos secos outra vez. Alguém
martela um longo prego na parede do meu coração.
— Você fala coisas muito sensatas para um garoto de 15 anos.
Não sei o que responder, de modo que me mantenho em silêncio.
— Nos meus 15 anos, eu também vivia pensando em ir embora para um
outro mundo — diz a Sra. Saeki com um sorriso. — Para um lugar onde
ninguém fosse capaz de me alcançar. Onde o tempo não passasse.
— Mas tal lugar não existe no mundo.
— Exato. E por isso vivo deste jeito num mundo onde coisas são
desvirtuadas, espíritos sucumbem e o tempo não pára nunca de passar — diz
ela calando-se por instantes em silenciosa referência à passagem do tempo.
Em seguida, prossegue:
— Mas, aos 15 anos, eu tinha a certeza de que esse lugar existia. E
também de que nalguma parte do mundo eu acharia a entrada para ele.
— A senhora era muito solitária aos 15 anos?
— Sim, num certo sentido… fui solitária. Não sozinha, mas ainda assim
extremamente solitária. Pois sabia que jamais seria mais feliz do que eu era
então. Disso eu tinha certeza. De modo que eu queria entrar nesse lugar em
que o tempo não passa e ali ficar para sempre do jeito como eu era.
— Pois eu quero é envelhecer o mais rápido possível.
A Sra. Saeki se afasta um pouco e procura ler a minha fisionomia.
— Você deve ser mais forte que eu, mais independente. Nos meus 15
anos, eu apenas alimentava a ilusão de fugir da realidade. Mas você não foge
dela: ao contrário, você a enfrenta, luta contra ela. Há aí uma grande
diferença.
Não sou forte, nem muito independente. A realidade está apenas me
tangendo, me obrigando a seguir adiante. Mas não digo nada.
— Você me lembra certo rapaz de 15 anos que conheci há muito, muito
tempo.
— Esse rapaz se parece comigo? — pergunto.
— Você é mais alto e mais robusto. Mas acho que se parecem. Ele não
tinha assunto para conversar com rapazes da idade dele, de modo que vivia
trancado em seu próprio quarto, lendo livros e ouvindo músicas. E, como
você, costumava franzir o cenho quando falava de temas difíceis. Me
disseram que você também gosta muito de ler…
Concordo com um aceno de cabeça.
A Sra. Saeki olha o relógio.
— Gostei do café. Obrigada.
Eu me levanto e faço menção de sair do quarto. A Sra. Saeki apanha a
caneta preta, desatarraxa a tampa lentamente e se prepara para escrever de
novo. Outro raio corta o céu e, por instantes, o aposento se tinge de um
estranho colorido. Depois de curta pausa, troveja. As pausas estão se
tornando cada vez mais curtas.
— Kafka — chama a Sra. Saeki.
Paro na soleira da porta e me volto.
— Acaba de me ocorrer que, nos velhos tempos, escrevi um livro sobre
trovoadas.
Espero em silêncio. Um livro sobre trovoadas?
— Percorri o país inteiro entrevistando pessoas que foram atingidas por
raios e não morreram. Levei anos. Juntei muitos depoimentos. Cada um mais
interessante que o outro. O livro foi publicado por uma editora pequena, mas
quase não vendeu. Ele não era concludente. E ninguém se interessa por
livros inconcludentes. Mas a mim isso me pareceu perfeitamente natural.
Um pequeno martelo bate numa das gavetas da minha mente. As
batidas soam persistentes. Estou tentando me lembrar de algo realmente
importante mas não consigo. A Sra. Saeki retornou à sua escrita, e eu desisto
e saio do quarto.
A violenta tempestade de raios e trovoadas continuou por quase uma hora.
Os trovões foram tão fortes que temi ver todos os vidros da biblioteca
transformados em cacos. A cada clarão, o vitral existente no patamar da
escada lançava luzes que lembravam fantasmas de eras passadas contra a
parede branca oposta. Mas, há duas horas, a chuva parou e raios de sol
dourados começam a se filtrar por entre nuvens dando a entender que a paz
enfim se restabeleceu. Em meio à suave luminosidade, persiste apenas o som
das gotas que caem do beiral. Logo a tarde chega ao fim e eu começo os
preparativos para o fechamento da biblioteca. A Sra. Saeki se despede de
mim e de Oshima e se retira. O ruído do motor do seu Golf me chega aos
ouvidos. Eu a imagino ao volante, girando a chave na ignição. Digo a
Oshima que consigo dar conta da arrumação noturna sozinho. Oshima
cantarola a ária de uma ópera enquanto lava rosto e mãos, e depois também
se vai. O ruído do motor do seu Miata vai aos poucos diminuindo e se apaga
por completo. Agora, a biblioteca é só minha. O silêncio é mais intenso que
o costumeiro.
Volto para o quarto e passo os olhos pela partitura de “Kafka à beira-
mar” que Oshima imprimiu para mim. A maioria dos acordes é simples. Mas
existem dois extremamente complexos na passagem de um tema para o
outro. Vou à sala de leitura, sento-me ao pequeno piano vertical e toco o
acorde. O dedilhado é bem difícil. Treino diversas vezes para acostumar os
músculos e a duras penas obtenho uma boa imitação. A princípio, o acorde
me soa simplesmente descabido e errado. Chego a pensar que alguém se
enganou no momento de imprimir a partitura. Ou que o piano está
desafinado. Mas depois de ouvir com atenção e repetidas vezes os dois
acordes intercalados, aos poucos dou-me conta de que, na verdade, são esses
dois acordes que sustentam a canção. Por causa dessas duas harmonias,
“Kafka à beira-mar” deixou de ser uma canção vulgar e se transformou
numa peça de profundidade incomum. Mas de que maneira a Sra. Saeki
conseguiu idealizar essa rara harmonia?
Retorno ao meu quarto, fervo água no aquecedor elétrico e tomo chá.
Em seguida, ponho um a um sobre o prato giratório os discos que trouxe do
depósito e os ouço. Blond on Blond, de Bob Dylan, White Album, dos
Beatles, Dock of the Bay, de Otis Redding, Getz/Gilberto, de Stan Getz.
Peças que andaram em voga na metade final da década de 60. Como eu neste
exato momento, o rapaz que ocupava este quarto — e ao lado dele estava a
Sra. Saeki, com certeza — posicionava os discos um a um no prato giratório,
descia sobre eles a agulha e ouvia as melodias que vinham pelo alto-falante.
Sinto que o som leva o quarto inteiro — e a mim com ele — para um tempo
distante do atual. Para um mundo anterior ao meu nascimento. E enquanto
ouço as canções, tento reviver mentalmente, com a maior precisão possível,
o diálogo que mantive esta tarde com a Sra. Saeki no escritório do andar
superior.
— Mas, aos 15 anos, eu tinha a certeza de que esse lugar existia. E
também que nalguma parte do mundo eu acharia a entrada para ele.
Sou capaz de ouvir sua voz junto ao meu ouvido. Sinto outra vez que
batem na porta da minha mente. De maneira forte e persistente.
“Entrada”?
Levanto a agulha do disco Getz/Gilberto. Depois, tiro o compacto
Kafka à beira-mar do envelope e o ponho no disco giratório. Deixo a agulha
cair. Ela canta:
Os dedos da menina que se afogou
Tateiam e buscam a pedra da entrada.
Ela arrepanha a barra do vestido azul
E contempla Kafka à beira-mar.
Acho que a garota que visita este quarto à noite conseguiu encontrar a
pedra da entrada. Ela ainda tem 15 anos, continua num mundo à parte, e de
lá vem até este quarto à noite. Usa o vestido azul-claro e contempla Kafka à
beira-mar.
E então, de maneira súbita e sem propósito algum, lembro-me. Meu pai
disse certa vez que tinha sido atingido por um raio. Essa história não me foi
contada diretamente por ele. Eu a li numa entrevista que ele deu a um
semanário. Na época do acidente, meu pai ainda estudava na Faculdade de
Belas-artes e ganhava alguns trocados trabalhando como caddie num campo
de golfe. Certa tarde de julho em que ele andava pelo campo na companhia
de alguns golfistas, o céu escureceu e uma tempestade repentina desabou
sobre eles. Um raio atingiu então uma árvore debaixo da qual eles tinham
procurado abrigo. A gigantesca árvore se partiu ao meio e um dos golfistas
perdeu a vida, mas segundos antes, alertado por algo semelhante a uma
premonição, meu pai havia saltado de debaixo da árvore e se salvara. Teve
apenas queimaduras leves, cabelo chamuscado, assim como concussão e
desmaio ao ser lançado longe pelo raio e bater a cabeça numa pedra. Essa
era a história. Do incidente, restara uma pequena cicatriz em sua testa. E era
disso que, em pé na soleira da porta do escritório da Sra. Saeki, eu tentara
me lembrar enquanto ouvia os trovões. A carreira de meu pai como escultor
começara verdadeiramente depois que ele se recuperou desse acidente.
A Sra. Saeki talvez tenha se avistado com meu pai na época em que
andou entrevistando pessoas atingidas por raios para compilar seu livro. A
possibilidade existe. Afinal, não há no mundo tanta gente atingida por raios e
que tenha sobrevivido.
Respiro com cuidado à espera da madrugada. Uma nuvem tinha se
partido e o luar ilumina agora as árvores do jardim. As coincidências são
excessivas. Há muita coisa convergindo com inacreditável rapidez para um
único lugar.
Capítulo 26
O Coronel Sanders era ágil e andava com muita rapidez para alguém da
idade dele. Lembrava um veterano praticante da modalidade marcha atlética.
Além de tudo, parecia conhecer como a palma da mão cada canto e recanto
da cidade. Galgava escadarias escuras e estreitas para cortar caminho,
punha-se de lado para passar por apertados becos entre casas. Saltava valas,
repreendia o cão que latia por trás da sebe. Como um espírito inquieto em
busca de seu destino, o pequeno vulto em terno branco se movia por vielas e
aléias com incrível velocidade. Hoshino mal conseguia acompanhá-lo e se
esforçava para não perdê-lo de vista. Logo, o ar começou a lhe faltar e o
suor, a lhe umedecer as axilas. Mas em nenhum momento o Coronel Sanders
se voltou para saber se o jovem continuava a segui-lo.
— Ei, tio! Estamos longe ainda? — perguntou Hoshino, a custo
suportando o cansaço.
— Que é isso, rapaz? Mal demos três passos e já está com a língua de
fora? — replicou o Coronel sem olhar para trás.
— Escute aqui: sou seu cliente, não se esqueça! Aonde acha que vou
encontrar energia para a transa se você me obriga a andar tudo isso e me
esgota antes do tempo?
— Que vergonha, que vergonha! E ele ainda acha que é homem!
Esqueça a transa se sua energia é tão pouca, rapaz!
— Cruzes! — resmungou Hoshino.
O Coronel Sanders transpôs outra viela e uma avenida larga ignorando
o sinaleiro, e andou mais outro tanto. Depois, atravessou uma ponte e entrou
num santuário razoavelmente grande mas deserto em virtude da hora tardia.
O homem apontou um banco diante da administração do santuário e disse a
Hoshino que se sentasse ali. Ao lado, erguia-se um poste alto e, no topo dele,
havia uma lâmpada a mercúrio que deixava a área em torno clara como dia.
O rapaz sentou-se conforme lhe fora indicado e o Coronel, por sua vez, se
sentou ao lado.
— Ei, tio, você não está pensando em oferecer seus serviços no meio
deste mato, está? — perguntou Hoshino, apreensivo.
— Não diga asneiras, homem! Afora cervos, quem mais faria isso nos
jardins de um santuário? As coisas que este sujeito imagina… Que raios
você pensa que eu sou, afinal? — vociferou o Coronel Sanders, tirando do
bolso um celular prateado e teclando um curto número de apenas três
dígitos.
— Sou eu — disse o Coronel. — No lugar de sempre. É, o santuário.
Estou com um rapaz de nome Hoshino a meu lado. Isso… Isso mesmo. O de
sempre. Sei disso. Não faz mal, venha para cá imediatamente.
Desligou o celular e o guardou no bolso do paletó.
— Você sempre convoca suas meninas para este santuário? —
perguntou Hoshino.
— Que mal há nisso?
— Nenhum, nenhum. Mas que existem lugares mais convenientes, isso
lá existem. Lugares mais… adequados, eu diria. Você podia, por exemplo,
marcar o encontro num salão de chá ou num quarto de hotel, não podia?
— Santuários são mais tranqüilos. E o ar aqui é mais puro.
— Quanto a isso, tem razão. Mas você há de convir que não é nada
agradável esperar uma garota no meio da noite sentado num banco diante do
escritório administrativo de um santuário deserto, isso me deixa um bocado
tenso. Não tem perigo de a raposa da lenda aparecer para me enfeitiçar, tem?
— Quanta bobagem, haja paciência! Está pensando que Shikoku é uma
ilha selvagem? Takamatsu é capital provincial, homem, uma metrópole!
Como pode haver raposas por aqui?
— Está certo, falei de raposas brincando. Mas já que você trabalha no
ramo do entretenimento, podia pensar um pouco nessa questão de atmosfera,
não podia? No seu ramo de negócios, é importante criar um ambiente
favorável, capaz de inspirar o cliente, entendeu? Você pode até achar que
não é da minha conta, mas…
— E não é mesmo! — disse o Coronel em tom peremptório. —
Voltando à questão da pedra.
— Isso mesmo, quero saber mais coisas a respeito da pedra.
— Pensando bem, será melhor você fazer o principal primeiro. Só
depois falamos nisso.
— Ah, fazer o principal é importante! Entendi.
O Coronel Sanders acenou diversas vezes a cabeça, gravemente. Em
seguida, cofiou a barba significativamente.
— Exato. Fazer o principal é importante. É uma espécie de ritual.
Primeiro, você faz. E depois falamos da pedra. Acho que vai gostar muito
desta garota, Hoshino. Ela é a flor das minhas pequenas. Seios fartos, pele de
seda, cintura de vespa e, mais importante, úmida e quente lá onde tem de ser,
uma bem ajustada máquina de fazer sexo, tinindo. Se fosse carro, eu diria
que é tração nas quatro rodas: pise fundo, o motor do desejo é turbinado, o
câmbio preso entre os dedos ruge à mais leve pressão, aí vem uma curva, as
marchas azeitadas deslizam como manteiga, lá vai Hoshino direto pela faixa
de ultrapassagem, está quase lá, quase lá, e… atinge Hoshino a cobiçada
linha de chegada!
— Você é um tipo e tanto, sabia? — disse Hoshino maravilhado.
— Como já disse antes, não estou neste ramo de negócios à toa.
Quinze minutos depois, a garota apareceu. Era linda, exatamente como o
Coronel Sanders a descrevera. Usava um minivestido preto bem justo, sapato
de salto alto preto e carregava bolsinha de verniz preta com alça. Ela não
faria feio desfilando em passarelas. Seios fartos que se mostravam pela
generosa abertura do decote.
— Está do seu gosto, Hoshino, meu chapa? — perguntou o Coronel.
Hoshino apenas acenou, boquiaberto e estupefato. Tinha perdido a fala.
— É uma máquina de fazer sexo da melhor qualidade. Oba, oba! Que
beleza! — provocou o Coronel. E então, pela primeira vez desde o momento
em que se encontraram, sorriu e beliscou a nádega do rapaz.
A rapariga guiou Hoshino para fora dos limites do santuário e entrou
num motel das proximidades. Encheu a banheira, despiu-se primeiro num
único movimento sinuoso e depois tirou as roupas do rapaz. Já na banheira, a
rapariga lavou-o meticulosamente, passou a língua por todo o seu corpo e
depois se dedicou à felação com apuro e arte. Muito antes de pensar em
qualquer coisa, Hoshino já tinha ejaculado.
— Caramba! Nunca experimentei nada tão fantástico! — comentou o
rapaz afundando lentamente na água quente.
— E isso é apenas o aperitivo — disse a rapariga. — O próximo passo é
muito, mas muito mais fantástico.
— Mas gostei do aperitivo, realmente.
— A que ponto?
— A ponto de não conseguir pensar nem no passado, nem no futuro.
— “O presente puro é o inapreensível avanço do passado a roer o
futuro. Para falar a verdade, toda percepção já é memória.”
Hoshino ergueu a cabeça e, boquiaberto, fixou o olhar no rosto da
rapariga.
— Que é isso? — perguntou.
— Henri Bergson — respondeu ela lambendo um resto de sêmen da
ponta do pênis. — Maéraememóra.
— Não entendi.
— Matéria e memória. Nunca leu?
— Acho que não — disse o rapaz depois de pensar alguns instantes.
Excetuando o Manual do Motorista de Caminhão das Forças de Autodefesa
que fora obrigado a ler de cabo a rabo nos tempos em que servira o exército
(e os livros de história e tradição de Shikoku que tivera de pesquisar nos
últimos dois dias), ele só se lembrava de ter lido histórias em quadrinho e
revistas.
— E você? Leu?
A rapariga assentiu com um aceno de cabeça.
— Fui obrigada. Estou me especializando em Filosofia na minha
faculdade e os exames estão próximos.
— Entendi — disse o rapaz, admirado. — Isto aqui é apenas um bico
para você!
— Isso. Tenho de pagar a faculdade, entendeu?
Depois, a rapariga levou Hoshino para a cama e com a ponta dos dedos
e a língua acariciou-lhe carinhosamente o corpo, logo conseguindo nova
ereção. Firme e rígida, levemente inclinada para a frente como Torre de Pisa
em desfile carnavalesco.
— Viu? Você está pronto para outra sessão — disse ela. Em seguida,
dedicou-se a mais uma série de movimentos. — Tem algum pedido especial
a fazer? Um pedido do tipo “gostaria que você fizesse assim, ou assado”? O
Coronel Sanders me disse para lhe dar tratamento especial.
— Bem, assim de repente não me ocorre nenhum pedido especial, mas
que acha de citar mais alguma coisa do tipo filosófico? Não entendo nada,
mas talvez sirva para retardar a ejaculação. Do jeito que vai, não vou
conseguir segurar por muito tempo…
— Vejamos então… É um tanto antigo, mas que acha de Hegel?
— Serve, serve. O que você quiser.
— Pois recomendo Hegel. Antiquado, mas... Tá-rá!, aqui vai um dos
oldies but goodies!
— Ótimo.
— “O eu é o conteúdo da relação e a relação mesma.”
— Ahn…!
— Hegel estabeleceu a chamada “consciência-de-si” e diz que o sujeito
humano não só tem conhecimento de si mesmo e do objeto separadamente,
como também melhor se compreende pela projeção de si sobre o objeto
como mediador. Isto é consciência-de-si.
— Não entendi nada.
— Em outras palavras, é o que estou fazendo com você neste momento.
Para mim, eu sou o “si” e você é o objeto. Para você, é naturalmente o
contrário: você é o “si” e eu sou o objeto. Neste momento, estamos
realizando uma permuta de “si” e do “objeto” e assim estabelecendo a
“consciência-de-si”. Ativamente.
— Continuo não compreendendo, mas me sinto consolado.
— É o que interessa — disse ela.
Ao fim e ao cabo, Hoshino se despediu e retornou sozinho ao santuário.
Coronel Sanders o esperava sentado no mesmo banco.
— Puxa, tio! Você ficou aqui me esperando todo esse tempo? —
perguntou Hoshino.
O coronel sacudiu a cabeça, irritado.
— Acorda, homem! Por que haveria eu de esperá-lo tanto tempo
sentado num banco? Acaso tenho cara de inútil, de alguém que não encontra
o que fazer? Enquanto você atingia as alturas na cama, eu, por algum
desígnio cármico, trabalhava seriamente numa ruela da periferia. Há pouco,
recebi um comunicado avisando que a missão tinha sido cumprida, de modo
que retornei às carreiras até aqui. E então? A máquina de fazer sexo da
minha empresa é ou não maravilhosa?
— É, realmente. Não tenho do que me queixar. Ela é espetacular.
Compareci três vezes! Ativamente!
— Muito bom. E quanto à pedra de que falávamos há pouco…
— É verdade, isso é mais importante.
— Pois ela se encontra no bosque deste santuário.
— A “pedra da entrada”?
— Exato. A “pedra da entrada”.
— Vem cá, tio: você não está falando por falar, está?
Ao ouvir isso, o coronel ergueu a cabeça num movimento abrupto:
— Repita o que disse, cretino! Quando foi que menti para você, diga?
Quando foi que falei alguma coisa por falar, diga? Eu lhe prometi uma
máquina de fazer sexo maravilhosa e máquina de fazer sexo maravilhosa
você obteve, não foi? E pelo preço de 15 mil ienes, de liquidação bota-fora,
da qual você, aliás malandramente, usou e abusou comparecendo três vezes,
não foi? E tem coragem de duvidar de mim depois de tudo isso?
— Não, não estou duvidando. Vamos, não se enfureça. É que a história
me pareceu boa demais para ser verdade. Veja bem: eu andava pela rua a
esmo quando um homem de aspecto estranho me chamou, disse que ia me
dar umas informações a respeito da pedra da entrada e, ao acompanhá-lo, me
vi nos braços de uma garota maravilhosa que me fez chegar às alturas e…
— Três vezes, não se esqueça.
— … três vezes, certo, e depois me vem falando que a tal pedra se
encontra logo aí. Me diga agora: essa história parece ou não boa demais para
ser verdade?
— Você é meio lento, não? Isso que você chama de história é uma
revelação, não entendeu ainda? — disse o Coronel Sanders, estalando a
língua de impaciência. — As revelações extrapolam os limites do cotidiano.
A vida não tem sentido sem uma revelação. O mais importante é sair da
razão que observa e ir para a razão que age. Entende o que estou dizendo,
cabeça-de-bagre imprestável?
— Projeção, permuta de si-mesmo e objeto… — experimentou dizer
Hoshino vagarosamente, com muito receio.
— Exato! Ainda bem que sabe esse tanto! É esse o xis da questão.
Acompanhe-me e logo estará prestando os devidos respeitos a essa
importante pedra. Cortesia da casa, Hoshino, meu chapa!
Capítulo 29
Nakata despertou pouco antes das cinco da manhã e se deu conta de que
havia uma grande pedra depositada à sua cabeceira. No leito ao lado,
Hoshino dormia a sono solto. Boca entreaberta, cabelos desfeitos. O boné
dos Dragões Chunichi caído ao lado do travesseiro. Seu rosto estampava
uma certa expressão decidida que parecia declarar: “Não acordo nem que o
mundo desabe.” Nakata não pareceu espantado nem intrigado pelo fato de
haver uma pedra dentro do quarto. Sua consciência se ajustou de imediato a
essa realidade e jamais questionou “por que uma coisa tão estranha haveria
de estar à minha cabeceira?” Desvendar o mistério de uma relação de causa
e efeito quase sempre extrapolava a sua capacidade de compreensão.
Sentado formalmente à cabeceira do próprio leito, Nakata contemplou
intensamente a pedra por algum tempo. Depois, estendeu a mão e alisou-a
com gentileza, do mesmo modo como acariciaria um grande gato
adormecido. A princípio, apenas tateou temerosamente com a ponta dos
dedos, mas, ao se dar conta de que nada de mau lhe aconteceria, pôs-se a
esfregar a palma da mão por toda a superfície da pedra de maneira ousada e
meticulosa. E, enquanto esfregava a pedra, pensava incansavelmente. Ou
talvez seja melhor dizer que uma expressão pensativa se estampava em suas
feições. Como alguém que se dedica à leitura de um mapa, sua mão
percorria a superfície da pedra memorizando a sensação áspera de todos os
cantos e recantos e registrando uma a uma qualquer saliência ou reentrância.
E então, como se uma idéia lhe ocorresse de maneira repentina, levou num
gesto brusco a palma da mão à cabeça e passou a esfregar vigorosamente os
cabelos curtos. Como se buscasse uma possível correlação entre a pedra e a
própria cabeça.
Passados alguns instantes, Nakata soltou um curto suspiro, ergueu-se,
foi para a janela, abriu-a e pôs a cabeça para fora. Dali só avistou a parede
do fundo do prédio vizinho. Aliás, um prédio bastante decadente. Um prédio
decadente, em cujo interior pessoas decadentes faziam trabalhos decadentes
e assim passavam seus dias decadentes. Toda cidade tem em suas ruas
prédios semelhantes, apartados de toda a graça. Charles Dickens seria capaz
de se estender por dez páginas na descrição de imóveis com essas
características. A nuvem que pairava sobre o edifício tinha o aspecto de um
bolo de pó endurecido, removido do saco de um aspirador que há muito não
esvaziavam. Parecia-se também com o conjunto das contradições geradas
pela Terceira Revolução Industrial, condensadas em formas e postas a
flutuar no céu. Qualquer que fosse a semelhança, a chuva ameaçava cair sem
demora. Quando Nakata olhou para baixo, viu um gato, preto, magro e de
rabo em riste, desfilando sobre um estreito muro entre os prédios.
— Hoje, vamos ter trovoada — disse Nakata para o gato. Mas tudo
indicava que as palavras não alcançavam os ouvidos do felino. Sem se voltar
nem parar, o gato desapareceu atrás do prédio em elegantes passadas.
Nakata apanhou o saco de plástico onde guardara seus produtos de
toalete e se dirigiu para o banheiro comunitário existente no fundo do
corredor. Lá chegando, lavou o rosto, escovou os dentes e fez a barba com
um aparelho gilete de barbear. Cada processo lhe tomou considerável tempo.
Gastou bom tempo lavando o rosto com capricho, gastou bom tempo
escovando os dentes com capricho e gastou bom tempo barbeando-se com
capricho. Aparou os pêlos das narinas com uma tesourinha, acertou as
sobrancelhas e limpou as orelhas. Nakata era do tipo que fazia tudo com
calma, mas naquela manhã gastou mais tempo que de costume no
cumprimento das tarefas matinais. Ele podia se dar a esse luxo porque
nenhum outro hóspede se aventuraria no banheiro tão cedo e porque ainda
faltava muito para a refeição matinal. Além do mais, Hoshino não parecia
disposto a acordar tão já. Com o banheiro inteiramente para si, Nakata se
arrumou com calma diante do espelho enquanto evocava a imagem dos
diversos felinos que vira no livro da biblioteca há dois dias. Não sabia de
que raças eram porque, sendo analfabeto, não conseguiu ler as legendas. Mas
lembrou-se das feições de cada gato estampadas naquelas páginas.
— São realmente muitas as espécies de gato existentes no mundo —
pensava Nakata enquanto tirava o cerume com uma haste delgada. Ele tinha
ido à biblioteca pela primeira vez na vida e isso lhe havia dado uma dolorosa
noção da própria ignorância. Eram praticamente infinitas as coisas que ele
não conhecia. Mas quando pensava no infinito, a cabeça começava a doer.
Porque, era óbvio, o infinito não tinha fim. De modo que parou de pensar
nisso e pôs-se a evocar uma vez mais as imagens dos felinos que ilustravam
o livro Gatos do mundo inteiro. Como seria bom se pudesse conversar com
cada um deles, pensou Nakata. As muitas espécies de gato espalhadas pelo
mundo todo deviam pensar e falar de diversas maneiras. Momentos depois,
perguntou-se: será que gatos de países estrangeiros falam línguas diferentes?
Esta também era uma questão complexa que logo lhe deu dor de cabeça.
Quando terminou de se arrumar, Nakata fez, como sempre, suas
necessidades matinais. Estas não lhe tomaram muito tempo. Depois,
recolheu os artigos de toalete no saco plástico e retornou ao quarto. Hoshino
dormia ainda a sono solto na mesmíssima posição em que havia sido
deixado. Nakata recolheu a camisa de padrão havaiano e a calça jeans
abandonadas no chão, dobrou-as cuidadosamente, empilhou-as à cabeceira
do rapaz e sobre elas depositou o boné dos Dragões Chunichi como se este
fosse o título de alguns conceitos acumulados no decorrer de uma vida.
Depois, despiu o yukata e vestiu as costumeiras camisa e calças. Esfregou
com força uma mão na outra e respirou profundamente.
Sentou-se então outra vez formalmente diante da pedra, contemplou-a
por instantes e depois tocou-a cautelosamente.
— Hoje, vamos ter trovoada — anunciou ele para ninguém em
particular. Podia ser que tivesse falado com a pedra. Depois, moveu algumas
vezes a cabeça concordando gravemente consigo mesmo.
Nakata dedicava-se a uma seção de ginástica matinal à beira da janela
quando Hoshino finalmente acordou. O bom homem cantarolava baixinho o
acompanhamento musical dos exercícios e se movia de acordo com o ritmo.
Hoshino entreabriu os olhos e espiou o relógio de pulso. Passava um pouco
das oito da manhã. O rapaz torceu em seguida o pescoço e se certificou de
que a pedra continuava à cabeceira do leito vizinho. Ela agora lhe parecia
muito maior e mais áspera do que quando a vira no escuro.
— Quer dizer que não sonhei — murmurou o rapaz.
— Como disse? — perguntou Nakata.
— Estou falando da pedra — disse Hoshino. — Vi que ela está aí
realmente, que não foi um sonho.
— A pedra está aí — declarou Nakata sinteticamente sem parar de fazer
os exercícios. Suas palavras soaram como uma importante proposição
filosófica alemã do século XIX.
— E se quer saber, tio, tem uma história muito comprida relacionada
com a questão do por-que-essa-pedra-está-aí.
— Sim. Nakata achou que tinha.
— Mas deixe isso para lá — disse o rapaz sentando-se e suspirando alto
—, não tem muita importância. O que vale é que a pedra está aí. Isto é, estou
encurtando uma história muito longa.
— A pedra está aí — tornou a dizer Nakata. — Isso é muito importante.
Hoshino pensou em acrescentar um comentário, mas de súbito deu-se
conta de que estava com uma fome leonina.
— Mas antes de qualquer coisa, tio, vamos comer, está bem?
— Vamos. Nakata está com fome também.
Terminada a refeição, o rapaz perguntou a Nakata enquanto sorvia seu chá:
— E agora, que pretende fazer com a pedra?
— Que acha que devemos fazer? — indagou Nakata por sua vez.
— Ei, não me venha com brincadeira, tio — disse o rapaz sacudindo a
cabeça. — Durante a noite passada eu fiz de tudo para achar essa pedra
porque você me disse que precisava dela, esqueceu-se disso? Não me venha
portanto com essa história de “que-acha-que-devemos-fazer” a esta altura do
campeonato!
— Sim senhor. Nakata está de pleno acordo com o que o senhor diz.
Mas, francamente, Nakata também não conseguiu descobrir o que precisa ser
feito.
— Isto agora é um problema.
— Realmente — disse Nakata, sem no entanto parecer tão preocupado
quanto devia.
— Mas vem cá: esse é o tipo de dúvida que vai se esclarecendo aos
poucos, conforme a gente vai pensando com calma?
— Sim senhor. Nakata acha que é isso que vai acontecer. Só que Nakata
é mais lerdo que os outros para fazer as coisas.
— Veja bem, Nakata.
— Sim, senhor Hoshino.
— Uma vez que é chamada de “pedra da entrada”, tenho a impressão de
que muito tempo atrás ela era usada como entrada para algum lugar. Nesse
caso, pode ser que exista uma lenda ou uma espécie de manual explicativo
das virtudes da pedra, não acha?
— Sim, Nakata também acha.
— Acontece, porém, que você não sabe de que tipo de entrada se trata.
— Não, não sabe. Nakata costumava conversar muito com gatos, mas
nunca tentou com pedras.
— Está me parecendo que é difícil falar com elas.
— Sim senhor. Elas são muito diferentes dos gatos.
— E será que quem tira uma pedra tão importante de um santuário não
corre realmente o risco de ser amaldiçoado? Isso está começando a me
preocupar de verdade. E mesmo que nada aconteça a quem a tira, que fim
daremos a ela mais tarde? Já pensou? O Coronel Sanders me assegurou que
não há maldição nenhuma, mas, se quer saber, algo naquele homenzinho não
inspira confiança…
— Coronel Sanders?
— Tem um sujeito que se chama assim. Ele costuma estar em cartazes
diante das lojas franqueadas da rede Kentucky Fried Chicken. De terno
branco, barba e óculos discretos… Conhece?
— Nakata sente muito, mas acha que não conhece esse senhor.
— Ah, já entendi. Nunca comeu Kentucky Fried Chicken. Acho que
você é uma raridade nos dias atuais. Mas deixe isso para lá. Porque se eu
entendi direito, o próprio sujeito é um conceito abstrato. Não é gente, nem
Deus, nem Buda. Como é um conceito, não tem forma também. Mas ele
precisava ser visto, de modo que no presente caso assumiu o aspecto desse
Coronel, entendeu?
Perplexo, Nakata esfregou a palma da mão no cabelo grisalho e curto.
— Nakata não entende bem o que o senhor está dizendo.
— Para falar a verdade, nem eu, que estou lhe contando tudo isso,
entendi direito — admitiu o rapaz. — Seja como for, esse sujeitinho
excêntrico me apareceu do nada e começou a falar um monte de coisas para
mim. E para encurtar uma história comprida, vou lhe contar no que deu
afinal: depois de uma série de acontecimentos e com a ajuda desse
sujeitinho, descobri essa pedra em certo lugar e a carreguei até aqui. Deixe-
me esclarecer que não estou dizendo isso porque quero comprar a sua
simpatia, mas a verdade é que penei um bocado durante a noite passada,
entendeu? De modo que, por mim, esperava poder apresentá-lo a esta pedra,
e deixar o resto por sua conta. Estou lhe falando com toda a franqueza.
— Sim, senhor. O resto ficou por conta de Nakata.
— Certo — disse Hoshino. — Adoro quando as coisas se resolvem com
rapidez.
— Senhor Hoshino — disse Nakata.
— Hum?
— Vai começar a trovejar muito forte daqui a pouco. Vamos esperar a
trovoada.
— Como assim? Quer dizer que a trovoada vai ajudar a resolver essa
questão da pedra?
— Nakata não conseguiu entender direito todos os pormenores, mas
está começando a achar que vai.
— Ora vejam, uma trovoada… Está certo, parece interessante. Vamos
esperar para ver o que acontece.
Retornando ao quarto, Hoshino se deitou de bruços sobre o tatame e
ligou a televisão. Todos os canais exibiam apenas espetáculos de variedades
destinados a um público composto essencialmente por donas de casa.
Hoshino não tinha interesse algum por esse tipo de programação, mas à falta
do que fazer e para matar o tempo, continuou assistindo, resmungando de
vez em quando algumas críticas quanto ao teor dos espetáculos.
Enquanto isso, Nakata permaneceu sentado diante da pedra, ora
observando-a, ora manuseando-a. Vez ou outra, murmurava alguma coisa
para si mesmo, mas Hoshino não conseguiu distinguir o que ele dizia. Na
certa conversava com a pedra.
Por volta do meio-dia, finalmente a trovoada começou.
Pouco antes de começar a chover, Hoshino foi até uma loja de conveniência
e trouxe um saco cheio de pão doce e leite e os dois almoçaram. Enquanto
comiam, a empregada da hospedaria apareceu para limpar o quarto, mas
Hoshino a mandou embora dizendo que deixasse ficar como estava.
— Vocês não vão a lugar algum? — perguntou a mulher.
— Não, não vamos. Temos coisas a fazer aqui mesmo — respondeu o
rapaz.
— Porque vai trovejar— acrescentou Nakata.
— Ah, vai trovejar… — disse a mulher em tom de dúvida, e se retirou.
Aparentemente, considerava mais sábio não se envolver com os hóspedes
daquele quarto.
Passados alguns instantes, o primeiro ribombo se fez ouvir a distância
e, no mesmo instante, gotas de chuva começaram a cair como se tivessem
estado apenas no aguardo desse comando. Uma trovoada desanimada que
lembrava anões preguiçosos arrastando os pés sobre tambores. Mas as gotas
logo aumentaram de tamanho, e a chuva se tornou torrencial. O cheiro acre
da chuva envolveu toda a terra.
Quando os trovões começaram a se suceder, os dois se sentaram frente
a frente com a pedra no meio em pose de índio fumando o cachimbo da paz.
Sempre murmurando coisas ininteligíveis, Nakata ora acariciava a pedra, ora
esfregava a mão na cabeça. Hoshino o observava enquanto tirava baforadas
do seu Marlboro.
— Senhor Hoshino — disse Nakata.
— Hum?
— O senhor poderia ficar comigo algum tempo?
— Fico, claro que fico. E depois, com essa chuva eu não poderia ir a
lugar algum, mesmo que você me pedisse.
— Talvez aconteça uma coisa estranha.
— Se quer saber minha opinião — disse o rapaz — muita coisa
estranha já está acontecendo nos últimos tempos.
— Senhor Hoshino.
— Hum?
— Nakata de repente sentiu vontade de saber: o que é este homem
chamado Nakata?
Hoshino ficou pensativo.
— Sabe que mais, tio? Essa pergunta é difícil de ser respondida. Assim
de repente não consigo. Antes de mais nada, não sei muito bem quem é esse
homem chamado Hoshino. Como é que um sujeito tão ignorante teria
capacidade de saber alguma coisa a respeito de outras pessoas?
Principalmente porque, sem querer me gabar disso nem nada, pensar não é o
meu forte. Mas se quer saber o que eu sinto com toda a honestidade, acho
que você, Nakata, é um bom homem. Talvez seja um tanto excêntrico, mas é
perfeitamente confiável. Afinal, foi por isso que eu o acompanhei até os
confins de Shikoku, não foi? Posso não ser muito inteligente, mas tenho olho
para avaliar as pessoas, entendeu?
— Senhor Hoshino.
— Hum?
— Nakata não é só ruim da cabeça. Nakata é vazio por dentro. Foi o
que ele percebeu neste momento. Ele é como uma biblioteca sem nenhum
livro. Antigamente não era assim. Nakata tinha livros dentro dele. Ele não
conseguia se lembrar do passado, mas agora se lembrou. Sim senhor. No
passado, Nakata era uma pessoa normal, como qualquer outra. Mas então,
aconteceu alguma coisa que deixou Nakata vazio por dentro.
— Mas se você começar a raciocinar desse jeito, Nakata, vai acabar
concluindo que todos nós somos assim, um tanto vazios por dentro,
compreende? A gente come, faz cocô, trabalha num servicinho chato em
troca de um salário miserável, transa de vez em quando e é só, não é
mesmo? Que tem para fazer além disso? E reclamando e lamentando, ainda
assim vivemos e nos divertimos de algum modo, não é verdade? Não sei
bem por quê… Meu avô costumava dizer sempre que a vida tem sua graça
porque as coisas não saem do jeito que a gente quer. E ele tem certa razão.
Se os Dragões Chunichi vencessem todas as partidas, quem é que se daria o
trabalho de assistir aos jogos de beisebol?
— O senhor ama o seu avô, não é mesmo, senhor Hoshino?
— Amo sim senhor. Se não fosse por ele, sabe-se lá o que teria sido
feito de mim. Eu só resolvi viver direito porque ele estava sempre ao meu
lado. Não sei explicar direito, mas ele me fazia sentir seguro, preso a alguma
coisa. E por isso abandonei o grupo de motoqueiros selvagens e me alistei
nas Forças. Parei de fazer coisas erradas sem me dar conta disso.
— Mas Nakata não tem ninguém. Não possui nada. Não se sente seguro
nem preso a coisa alguma. Não sabe ler. Até a sombra dele é a metade da dos
outros.
— Mas ninguém é perfeito, Nakata.
— Senhor Hoshino.
— Hum?
— Se Nakata fosse um Nakata comum, estaria vivendo uma vida
totalmente diferente. Teria se formado numa faculdade como os outros dois
irmãos e estaria trabalhando numa firma qualquer, seria pai, andaria num
carro grande e nos finais de semana jogaria golfe, não é mesmo? Mas como
Nakata não foi um Nakata comum, ele viveu do jeito deste Nakata. Já é tarde
para começar de novo. Ele sabe disso muito bem. Mas ele queria muito ser
um Nakata comum, nem que fosse por um breve instante. Para ser franco,
Nakata não sentia vontade de fazer coisa alguma até hoje. Ele apenas veio
fazendo com muita dedicação tudo que os outros lhe diziam para fazer. Ou
ainda, veio fazendo as coisas que precisavam ser feitas de acordo com o que
os acontecimentos determinavam. Mas agora, não. Agora, Nakata quer
claramente ser um Nakata comum. Quer ser um Nakata com vontade e
significado próprios.
Hoshino suspirou.
— Se é isso que quer, volte a ser um homem comum. Mas, para ser
franco, não tenho idéia de como seria um Nakata que voltou a ser um Nakata
comum.
— Nem Nakata.
— Mas tomara que dê certo. Não sei quanto isso pode ajudar, mas vou
rezar para que você volte a ser um Nakata normal.
— Mas antes de voltar ao normal, Nakata tem de acabar de fazer uma
série de coisas.
— Que tipo de coisa?
— Por exemplo, a questão do Johnnie Walker.
— Johnnie Walker? — repetiu o rapaz. — Pensando bem, acho que
você já falou dele tempos atrás, não falou? Acaso é o homem do uísque?
— Sim senhor. Nakata foi direto para o posto policial e contou tudo a
respeito do senhor Johnnie Walker. Achou que tinha de relatar o que
aconteceu ao senhor governador, entende? Mas o policial não deu a menor
atenção. O jeito agora é o próprio Nakata dar uma solução para o caso. E,
depois de resolver essas questões, Nakata quer voltar a ser o Nakata normal.
— Não entendi nada, mas você precisa da pedra para fazer tudo isso.
— Exato. Isso mesmo. E precisa recuperar a metade da sombra perdida.
Os trovões reboavam agora de maneira ensurdecedora. Relâmpagos
riscavam o céu em ziguezagues seguidos e, quase sem pausa, ribombos
ecoavam. A atmosfera vibrava e vidraças mal ajustadas retiniam
nervosamente nas janelas. Nuvens negras tapavam o céu e o interior do
quarto escurecera a ponto de impedir a visualização mútua dos rostos. Mas
os dois homens não acenderam as luzes: como antes, continuaram sentados
um diante do outro com a pedra entre eles. Lá fora, a chuva caía com
tamanha violência que a simples visão dela parecia sufocante. Vez ou outra,
relâmpagos iluminavam rapidamente o interior do quarto. Por instantes, os
dois homens não conseguiram continuar conversando.
— Me explique uma coisa: por que motivo essa pedra tem de ser
manobrada por você, Nakata? Por que é que tem de ser você? — perguntou
Hoshino quando a trovoada abrandou.
— Porque Nakata é o homem que passou de um lado para o outro.
— Passou de um lado para o outro?
— Sim senhor. Nakata saiu uma vez daqui e depois voltou. Foi na
época em que o Japão estava envolvido numa grande guerra. Naquela
ocasião, a tampa se abriu não sei por que motivo e Nakata saiu daqui. E
depois, voltou para cá por algum outro motivo desconhecido. E por causa
disso, Nakata deixou de ser o Nakata normal. Perdeu a metade da sombra.
Em troca, conseguia falar com os gatos, mas agora não consegue mais. E
acho que também conseguia fazer coisas choverem do céu.
— Como por exemplo as sanguessugas do outro dia?
— Isso mesmo.
— Coisa que nem todo mundo consegue, pode crer.
— Sim senhor, nem todo mundo consegue.
— E você consegue porque muito tempo atrás passou de um lado para
o outro. Nesse sentido, você não é uma pessoa normal.
— Exatamente. Nakata deixou de ser normal. Em troca, não consegue
mais ler. E nunca foi capaz de tocar numa única mulher.
— Que absurdo.
— Senhor Hoshino.
— Hum?
— Nakata está com medo. Como já lhe disse há pouco, Nakata é
completamente vazio por dentro. O senhor sabe o que significa ser
completamente vazio?
O rapaz sacudiu a cabeça:
— Não, acho que não.
— É o mesmo que uma casa vazia. Uma casa vazia de portas
destrancadas. Qualquer um consegue entrar nela livremente, basta querer. E
Nakata tem muito medo disso. Por exemplo, Nakata é capaz de fazer coisas
choverem do céu. Mas na maioria das vezes, Nakata não é capaz de imaginar
o que é que vai chover em seguida. Se a próxima coisa a cair do céu for uma
chuva de facas, uma bomba enorme ou um gás letal, que é que Nakata
poderá fazer? Pedir desculpas não vai resolver o problema.
— Realmente, pedir desculpas não vai resolver nada — concordou
Hoshino. — Se as sanguessugas já provocaram aquela confusão toda,
imagina se coisas perigosas como essas que você acaba de mencionar
começarem a cair do céu! Haja confusão!
— O senhor Johnnie Walker entrou em Nakata. Obrigou Nakata a fazer
coisas que ele não queria. O senhor Johnnie Walker se aproveitou de Nakata.
Mas Nakata não conseguiu se opor a isso. Não tinha forças para enfrentar
esse homem. Porque Nakata não tem nada dentro dele.
— E por isso quer voltar a ser o Nakata normal, uma pessoa que possui
coisas dentro dela.
— Exatamente. Nakata não é bom da cabeça, mas como era capaz de
fabricar móveis, passou dias após dias fabricando-os sem descanso. Nakata
gostava de fazer mesas, cadeiras e armários. É muito gostoso produzir coisas
que têm forma. Mas durante as muitas dezenas de anos que fabricou os
móveis, nunca ocorreu a Nakata que queria voltar a ser normal. Pois
nenhuma das pessoas com quem Nakata conviveu jamais mostrou vontade
de entrar dentro dele. Ele nunca teve medo de nada. Mas desde que o senhor
Johnnie Walker apareceu, Nakata morre de medo.
— Mas o que foi que esse tal de Johnnie Walker o obrigou a fazer
depois que entrou em você?
Um ribombo violento cortou o ar nesse momento. O raio parecia ter
caído nas proximidades e fez Hoshino sentir uma dorzinha aguda nos
tímpanos. Nakata tombou de leve a cabeça, apurou os ouvidos para o som do
trovão e continuou a alisar a superfície da pedra com as duas mãos.
— Fez Nakata derramar um bocado de sangue que não podia ter sido
derramado.
— Derramar sangue?
— Sim senhor. Mas esse sangue não chegou a sujar as mãos de Nakata.
Hoshino pensou alguns instantes no que acabara de ouvir. Ainda assim,
não conseguiu entender o sentido do que Nakata lhe dissera.
— Posso saber se, uma vez aberta essa tal pedra da entrada, as coisas se
acomodarão por si mesmo nos seus respectivos lugares? Elas iriam de
maneira natural para suas posições da mesma forma que a água cai do alto
para baixo?
Nakata se calou por momentos, pensativo. Ou melhor, dava a impressão
de estar pensando.
— Talvez não seja tão simples assim. Nakata tinha apenas de encontrar
esta pedra e abrir a entrada. Mas, falando com franqueza, ele não sabe o que
vai acontecer depois.
— Então me explique uma coisa: por que é que essa pedra estava em
Shikoku?
— A pedra está em todo lugar. Não só em Shikoku. Além do mais, não
tem de ser obrigatoriamente uma pedra.
— Não entendi. Se está em qualquer lugar, podíamos ter feito tudo isto
no bairro de Nakano. Teria sido muito mais simples.
Nakata esfregou por instantes a cabeça com a palma da mão.
— Essa questão é difícil. Faz já algum tempo que Nakata vem ouvindo
o que a pedra tem a dizer mas ainda não conseguiu entendê-la com clareza.
Mas acha que tanto Nakata como o senhor Hoshino precisavam ter chegado
até aqui. Tinham de atravessar uma ponte comprida. Acho que isto não teria
funcionado muito bem em Nakano.
— Posso perguntar mais uma coisa?
— Sim senhor.
— Se você conseguir abrir essa pedra da entrada, acha possível que
haja um estrondo e de repente algo se levante na nossa frente? Que surja
alguma coisa parecida com o gênio não sei das quantas de Aladim e a
lâmpada mágica, ou que um príncipe-sapo de repente pule diante da gente
para nos dar um escandaloso beijo de língua, ou que a gente vire comida de
marciano?
— Pode ser que algumas coisas aconteçam, pode ser que não. Nakata
não sabe porque nunca fez nada parecido com isso que está fazendo agora.
Precisa abrir para saber.
— Mas pode ser perigoso?
— Pode. Pode mesmo.
— Caramba! — exclamou Hoshino. Tirou o maço de Marlboro do
bolso e acendeu um cigarro com o isqueiro. — Meu avô sempre me dizia:
“Você tem o péssimo hábito de ir atrás de gente que nunca viu na vida sem
pensar duas vezes.” Acho que sempre fui assim, desde criança. “A criança é
o pai do homem”, não é isso o que dizem? Mas deixa para lá, o que não tem
remédio, remediado está. E depois de chegar a esta lonjura, não posso ir
embora sem assistir ao espetáculo, posso? Vamos lá, estou ciente do perigo
mas quero escancarar essa pedra de uma vez por todas. E quero ver o que vai
acontecer em seguida com esses olhos que a terra há de comer. Pode ser que
tudo isso se transforme numa bela aventura que um dia contarei aos meus
netos.
— Certo. E, nesse caso, Nakata quer lhe pedir um favor.
— Que favor?
— O de erguer esta pedra.
— Deixe comigo.
— Agora, ela está muito mais pesada do que quando a trouxe até aqui.
— Ora, posso não ser nenhum Arnold Schwarzenegger, mas tenho
braços fortes. E fui vice-campeão numa disputa de queda-de-braço nos
tempos em que servi às Forças de Autodefesa. Além de tudo, estou com a
coluna em ordem graças a você, Nakata.
Hoshino se ergueu, agarrou a pedra com as duas mãos e tentou levantá-
la. Mas não conseguiu deslocá-la um milímetro sequer.
— Tem razão, ela está bem mais pesada — disse o rapaz, suspirando.
— E pensar que eu conseguia movê-la facilmente até poucos minutos
atrás… É como se alguém a tivesse fixado no chão com prego e martelo.
— Sim senhor. A pedra fecha uma entrada muito importante, de modo
que está programada para não ser movida com facilidade. Se isso
acontecesse, seria um problema.
— Quanto a isso, você tem razão.
Naquele instante, uma série de coriscos brancos e brilhantes riscaram o
céu de maneira desordenada. Uma cadeia de ribombos fez a Terra estremecer
em seu eixo. Parece até que alguém abriu a tampa do inferno, pensou
Hoshino. Por fim, um último raio caiu nas proximidades e, em seguida, o
silêncio reinou de maneira súbita. De tão intenso, o silêncio chegava a ser
asfixiante. O ar pesava, carregado de umidade, e trazia em si vaga sugestão
de suspeita e conluio. Parecia até que milhares de orelhas de tamanhos e
formas mais variados possíveis flutuavam no ar ao redor dos dois na
tentativa de captar os sinais de suas presenças. Imersos na profunda
escuridão reinante em pleno dia, os dois tinham-se imobilizado em silêncio,
congelados. Instantes depois, uma rajada de vento percorreu os arredores
atirando uma vez mais enormes gotas de chuva contra a vidraça e, logo
depois, a trovoada recomeçou. Agora porém sem a violência de há pouco. A
borrasca deixara a cidade para trás.
Hoshino ergueu a cabeça e passeou o olhar pelo aposento. De repente,
percebeu que o quarto se tornava mais impessoal e as quatro paredes lhe
pareceram ainda mais inexpressivas que antes. Dentro do cinzeiro, o cigarro
meio fumado tinha se consumido e se transformado em cinzas, conservando
sua forma original. O rapaz engoliu em seco e sacudiu das orelhas o pesado
silêncio.
— Ei, Nakata.
— Que é, senhor Hoshino?
— Tenho a impressão de que estou tendo um pesadelo.
— Realmente. Mas, se isso for verdade, estamos ao menos tendo o
mesmo pesadelo.
— Certo — disse Hoshino. — Depois, coçou o lóbulo da orelha e
pareceu se resignar. — Certo, certo, não deixes o certo pelo duvidoso, a
dúvida tudo envenena e nada mata. Você me consola, Nakata.
O rapaz se ergueu de novo para mover a pedra. Inspirou uma vez
profundamente, reteve o ar e concentrou a força nos dois braços. Depois,
soltou um leve grito e levantou a pedra. Desta vez, ela se moveu alguns
centímetros.
— Ela se mexeu um pouco — disse Nakata.
— Agora sei que ela não está pregada no chão. Mas acho que não
adianta nada mover só um pouquinho, adianta?
— Não senhor. Tem de virá-la completamente, de modo que a parte de
baixo fique para cima.
— Do mesmo jeito que se vira uma panqueca?
— Exatamente — concordou Nakata. — Panquecas são um dos pratos
preferidos de Nakata.
— Ótimo. Mulher e panqueca em qualquer lugar se acha, não é isso que
dizem? Vou tentar mais uma vez. Vou tentar virá-la no ar como uma moeda,
está bem?
Hoshino fechou os olhos e concentrou toda a sua atenção. Unificou toda
a energia do corpo e a fez convergir para um único ponto. É agora!, pensou.
Tenho de resolver a parada neste exato momento ou não conseguirei nunca
mais.
Apoiou as mãos em pontos estratégicos da pedra, agarrou-a com
firmeza e acertou a respiração. Por fim, inspirou uma vez profundamente e,
com um grunhido que pareceu subir das entranhas, ergueu a pedra num
único impulso. Ela subiu com uma inclinação de 45 graus. Hoshino estava
no limite de suas forças, mas conseguiu manter a pedra nessa posição.
Sempre amparando a pedra, soltou numa golfada o ar preso nos pulmões,
sentindo o corpo inteiro estalar e doer. Parecia-lhe que todos os ossos,
músculos e nervos gritavam desesperados. Mas ele não podia desistir agora.
Inspirou fundo mais uma vez e soltou novo grito. Mas este grito já não lhe
chegou aos ouvidos. Na verdade, Hoshino nem sabia o que estava berrando.
Com os olhos fechados, invocou forças de além dos seus limites. Forças que
não existiam nele originalmente. O oxigênio lhe faltou no cérebro e tudo
branqueou diante dele. Alguns de seus nervos estouraram como fusíveis com
carga excessiva. Não conseguia ver mais nada. Nem ouvir. Nem pensar. O ar
lhe faltava. Mas ainda assim ergueu a pedra no ar pouco a pouco e, com um
novo berro, virou-a completamente. Mas a partir de um certo ponto, a pedra
perdeu o peso de maneira repentina e tombou para o lado contrário. Um
baque surdo ecoou pelo quarto e o fez estremecer. Aliás, o prédio inteiro
pareceu estremecer.
O rebote jogou Hoshino para trás e o derrubou no chão. Caído de costas
sobre o tatame, o rapaz arfava violentamente. Algo escuro e viscoso como
lama remoinhava em sua cabeça. Nunca mais vou erguer nada mais pesado
que isso, pensou. (Ele não tinha meios de saber, naquele momento, mas,
posteriormente, se tornará evidente que essa era uma previsão otimista
demais.)
— Senhor Hoshino.
— Hum?
— Graças ao senhor, a entrada está aberta.
— Ei, tio! Nakata!
— Que é?
Sempre deitado de costas e com os olhos ainda fechados, Hoshino
inspirou fundo mais uma vez e depois soltou o ar.
— Se depois de todo esse esforço ela não abrisse, eu teria me acabado a
troco de nada.
Capítulo 33
Meu segundo dia nas montanhas transcorre de maneira habitual, lenta e sem
emendas. As alterações do tempo se constituem em únicos detalhes
distintivos. Perco a noção dos dias com admirável presteza. Não consigo
diferenciar o ontem do hoje, o hoje do amanhã. As horas rolam a esmo,
como navio que perdeu a âncora em vasto oceano.
Calculo que hoje é terça-feira. A Sra. Saeki deverá conduzir o
costumeiro tour pela biblioteca, caso haja interessados. Como no dia em que
visitei pela primeira vez a Biblioteca Memorial Komura… Ela vai subindo a
escada com sapatos de salto fino. O som dos saltos ecoa na biblioteca
silenciosa. Meias lustrosas, blusa imaculadamente branca, discretos brincos
de pérola, caneta Mont Blanc sobre a mesa. O sorriso sereno que projeta
uma vasta sombra de resignação. Tudo isso me parece tão distante… Ou
melhor, me parece quase irreal.
Acomodado no sofá da cabana em meio ao cheiro do tecido de cores
esmaecidas, penso uma vez mais na relação sexual que mantive com a Sra.
Saeki. Persigo mentalmente as lembranças e as invoco em ordem. Ela despe
as roupas lentamente. E vem para a minha cama. Estou tendo nova ereção.
Muito rija. Mas a dor que eu sentia até ontem no pênis não me incomoda
mais. A vermelhidão da glande também desapareceu.
Quando me canso de me absorver em fantasias sexuais, vou para fora e
me dedico ao costumeiro menu de exercícios. Uso o gradil da varanda para
exercitar os músculos abdominais. Faço uma série de agachamentos em
rápida sucessão, e outra de alongamentos. Depois de suar bastante, vou ao
córrego da floresta, mergulho em suas águas uma toalha e com ela
massageio o corpo. A água gelada acalma um pouco meus sentidos
excitados. Depois, sento-me na varanda e ouço Radiohead em meu
walkman. Desde que saí de casa, vivo ouvindo repetidas vezes as mesmas
músicas. “Kid A”, de Radiohead, e “Very Best of”, de Prince. E, vez ou
outra, “My Favorite Things”, de Coltrane.
Às duas da tarde — é a hora do tour na biblioteca — vou outra vez para
a floresta. Aprofundo-me um pouco pela mesma vereda percorrida
anteriormente e chego, também como da outra vez, à clareira. Sento-me na
relva. Recosto-me no tronco de uma árvore e ergo o olhar para o céu, visível
por um espaço arredondado na copa do arvoredo. Vejo a beira de uma nuvem
branca, típica de verão. Até aqui, estou dentro de uma área segura. Desde
este ponto, sei que sou capaz de retornar facilmente à cabana. É um labirinto
para principiantes, comparável à dificuldade “nível 1” de videogames e por
ele passo com facilidade. Seguir adiante, porém, significará me aprofundar
num labirinto mais desafiador. As sendas vão se tornar cada vez mais
estreitas, e o mar de fetos engolirá meus passos hesitantes.
E eu decido ir adiante.
Quero testar até onde consigo chegar floresta adentro. Sei dos perigos que
nela existem. Pretendo porém verificar com meus próprios olhos e sentir na
própria pele quais e como são esses perigos. Não posso deixar de fazer isso.
Algo me empurra para a frente.
Vou seguindo com muito cuidado aquilo que me parece ser a
continuação da vereda. As árvores se tornam cada vez mais imponentes, e o
ar de mistério ao meu redor se torna mais intenso e pesado.
Ramos de árvores se entrelaçam sobre a minha cabeça e quase não vejo
mais o céu. O vago vestígio de verão que até há pouco eu pressentia no ar já
se esvaiu. As estações parecem inexistir por aqui. Logo, não tenho certeza se
isto que eu percorro é ainda a senda ou não. Ora me parece um caminho, ora
algo semelhante, mas que na verdade não é um caminho. Em meio ao
sufocante aroma do verde, todas as definições vão se tornando imprecisas.
Evidência e dúvida se mesclam. Acima da minha cabeça, um corvo grasna
alto. Seu grito é muito estridente. Talvez seja um aviso. Paro e examino ao
redor com cuidado. É perigoso seguir adiante sem estar devidamente
preparado. Preciso retornar.
Mas isso não é fácil. Acho ainda mais difícil que seguir adiante. Estou
na mesma situação das tropas derrotadas de Napoleão. O caminho é
enganador e, além disso, as árvores se entrelaçam e compõem uma parede
escura que barra o meu avanço. Minha respiração soa estranhamente alta aos
meus ouvidos. Lembra uma corrente de ar que veio sibilando desde os
confins do mundo. Uma borboleta grande, do tamanho de minha mão, cruza
meu campo visual em vôo incerto. Sua forma me faz lembrar a mancha de
sangue que sujava minha camisa. A borboleta surge das sombras das
árvores, se locomove pelo espaço de maneira lenta e desaparece outra vez
por trás das árvores. Depois que ela se vai, a atmosfera se torna ainda mais
pesada e o ar esfria sensivelmente. E então, o medo de ter perdido de vista o
caminho me assalta. O corvo torna a grasnar de maneira aguda sobre a
minha cabeça. Parece ser o mesmo corvo com a mesma mensagem de antes.
Paro de novo e torno a olhar para o alto. Mas não consigo vislumbrar o vulto
do pássaro nem desta vez. Vez ou outra, um pé de vento real parece despertar
de súbito e agita as escuras folhas secas, fazendo-as farfalhar sinistramente a
meus pés. Pressinto algumas sombras escuras movendo-se com agilidade às
minhas costas. Volto-me rapidamente, apenas para descobrir que elas já se
esconderam.
Com grande dificuldade consigo finalmente retornar à clareira
arredondada e à área de segurança que ela representa. Sento-me sobre a relva
e respiro fundo algumas vezes. Lanço um olhar para o recorte circular de céu
e me asseguro repetidas vezes de que retornei ao meu mundo de origem.
Aqui encontro o saudoso vestígio de verão. Raios solares me envolvem
como um filme e me aquecem. Mas o pavor que senti no caminho de volta
permanece ainda por muito tempo em meu corpo. É como neve que deixou
de derreter no canto de um jardim. O coração palpita às vezes de maneira
desordenada, e a pele continua levemente arrepiada.
Nessa noite, deito-me no escuro e contenho a respiração. Olhos arregalados,
fico à espera de que alguém me apareça nas trevas do quarto. Desejo que um
vulto se materialize. Não sei porém se meu desejo terá algum efeito. Por via
das dúvidas, concentro o pensamento e desejo intensamente que certa coisa
aconteça. E aguardo.
Mas meu desejo não se realiza. Ele é indeferido. Do mesmo jeito que
ontem, a Sra. Saeki não aparece. Nem a Sra. Saeki verdadeira, nem a sua
versão fantasmagórica, ou, ainda, a de 15 anos. O negrume continua
inalterado. Pouco antes de cair no sono, uma ereção poderosa me atormenta.
Meu pênis se torna ainda mais rijo que de costume. Mas não me masturbo.
Intimamente, decido conservar impoluta a recordação do sexo com a Sra.
Saeki. Com as mãos firmemente entrelaçadas, adormeço pouco a pouco.
Desejando sonhar com a Sra. Saeki.
Mas sonho com Sakura.
Pode ser que não seja um sonho. Tudo me parece claro demais, definido
demais. Não há traços de inconsistência. Se não é sonho, não sei como
defini-lo. Contudo, este tipo de fenômeno só pode ser um sonho. Estou no
quarto do apartamento dela. Ela está na cama, dormindo. Eu estou deitado
no meu saco de dormir. As circunstâncias são idênticas às daquela noite que
passei com ela. As horas voltaram atrás e estou numa situação que me parece
decisiva.
No meio da noite, acordo com uma sede violenta, saio do meu saco e
vou beber água. Tomo diversos copos. Cinco ou seis. Uma fina camada de
suor cobre a minha pele e, também agora, estou com uma forte ereção. A
frente da minha cueca samba-canção se ergue, volumosa. Meu pênis parece
um ser vivo distinto, que funciona de acordo com um sistema diferente do
meu, provido de consciência diferente da minha. Quando bebo a água, parte
dela vai automaticamente para o meu pênis. Eu o ouço deglutindo
debilmente.
Ponho o copo sobre a pia e me recosto contra a parede por alguns
momentos. Pretendo confirmar as horas, mas não vejo relógio em lugar
algum. Talvez seja a hora mais densa da noite. Hora em que até os relógios
desaparecem, todos perdidos. Vou para a beira da cama de Sakura. Filtrada
pela cortina, a luz de um poste entra pela janela. Ela está com as costas
voltadas para mim e dorme profundamente. Da borda do cobertor fino,
espiam duas plantas de pé bem conformadas. Parece que alguém acaba de
ligar alguma coisa às minhas costas de maneira furtiva. Ouço um estalido
seco. Árvores entrelaçadas atrapalham a minha visão. Aqui, as estações do
ano não existem. Eu me decido e vou para baixo das cobertas ao lado de
Sakura. A estreita cama de solteiro range ao peso dos dois corpos. Aspiro o
cheiro da sua nuca. Percebo leve aroma de suor. Passo as mãos por sua
cintura e a envolvo furtivamente. Ela geme baixinho, mas continua
adormecida. Um corvo grasna de maneira particularmente aguda. Olho para
cima. Não vejo o pássaro. Nem o céu.
Ergo a camiseta que Sakura veste e toco seus seios macios. Prendo-lhe
o bico dos seios entre os dedos. Como se manipulasse o botão de controle de
um rádio. Meu rígido pênis toca com força a parte posterior de suas coxas.
Mas Sakura não diz nada. Sua respiração continua regular. Profundamente
adormecida, ela parece sonhar. O corvo torna a grasnar. O pássaro está outra
vez enviando uma mensagem para mim. Mas não consigo entender seu
sentido.
O corpo morno de Sakura está úmido de suor, como o meu. Decido
então mudar a posição dela. Puxo-a para mim e a deito de costas. Ela solta o
ar de maneira audível. Ainda assim, não dá mostra de que vai despertar.
Encosto o meu ouvido em seu ventre liso como folha de papel e tento
discernir ecos de sonho no labirinto logo abaixo.
Minha ereção continua. Parece que meu pênis permanecerá rijo para
sempre. Tiro a calcinha de algodão que ela está usando. Com cuidado, e
tomando muito tempo, removo-a pelos pés. Depois, repouso a palma da mão
sobre os pêlos púbicos expostos e introduzo os dedos em suas profundezas
mornas e convidativamente úmidas. Movo os dedos bem devagar. Sakura
continua adormecida. Ela apenas inspira uma vez com força no meio do
sono.
Simultaneamente, de um espaço côncavo dentro de mim, algo tenta sair
da sua casca. Não sei como, tenho agora um par de olhos voltado para dentro
de mim. De modo que posso observar o fenômeno. Não sei ainda se esse
algo é nocivo ou benévolo. Mas de uma coisa sei: não sou capaz de
incentivar nem de inibir o movimento dessa coisa que, aliás, é escorregadia e
ainda não possui um rosto. Em breve, ela sairá da casca, assumirá seu rosto e
se livrará da cobertura gelatinosa que lhe envolve o corpo. E então saberei
sua identidade. No momento, porém, ela não passa de uma espécie de sinal
disforme. Estende a mão malformada e tenta romper a área mais macia da
casca. E eu sou capaz de ver os movimentos fetais da coisa.
Decido.
Não, não é verdade. Na realidade, não decidi coisa alguma. Porque não
tenho escolha. Tiro minha cueca samba-canção e exponho meu pênis. Tomo
Sakura em meus braços, abro-lhe as pernas e a penetro. Não foi difícil. Ela é
muito macia e eu, muito rijo. Meu pênis parou de arder. A glande endureceu
bastante nos últimos dias. Sakura continua perdida no mundo dos seus
sonhos. E nele eu mergulho.
Repentinamente, Sakura desperta. E descobre que estou dentro dela.
— Que está fazendo, Kafka?
— Parece-me que estou dentro de você — respondo.
— Por quê? — diz ela de um jeito extremamente seco. — Eu já tinha
lhe dito muito claramente que você não pode fazer isso, não tinha?
— Não consegui evitar.
— Pois então pare já! Tire isso de mim.
— Não consigo — respondo, sacudindo a cabeça.
— Preste atenção, Kafka. Primeiro, tenho uma relação firme com meu
namorado. Segundo, você entrou sem permissão no meu sonho. E isso não é
correto.
— Sei disso.
— Há tempo, ainda. Você está realmente dentro de mim, mas não se
moveu nem ejaculou. Seu pênis está aí, tranqüilo. Como que perdido em
pensamentos. Não é verdade?
Aceno a cabeça concordando.
— Saia já — diz ela em tom persuasivo. — E vamos esquecer tudo
isso. Eu, pelo menos, vou esquecer, e você, deve. Sou sua irmã, Kafka, e
você, meu irmão menor. Temos uma relação que, embora não seja de sangue,
é sem dúvida alguma fraternal. Isso você sabe, não é mesmo? Nós dois
estamos ligados por vínculos familiares. Portanto, você não deve fazer isso.
— Agora já é tarde.
— Por quê?
— Porque decidi que é — respondo.
— Porque você decidiu que é — diz o menino chamado Corvo.
Você não quer mais ser um joguete na mão dos outros. Não quer mais se
sentir confuso. Você já matou seu pai. Já violentou sua mãe. E aqui está
você, dentro da sua irmã. Se isso é conseqüência de uma maldição, você
decidiu que vai assumi-la agora voluntariamente. Quer ver o programa
embutido nele terminando de vez. Quer se livrar o mais rápido possível
dessa carga e, em seguida, viver pura e simplesmente como você mesmo
e não como um ser enredado em pensamentos alheios. É isso que você
deseja.
Ela leva as mãos ao rosto e chora um pouco. Você tem pena dela.
Mas, agora, você já não é capaz de sair dela. Seu pênis cresceu e enrijece
cada vez mais dentro dela. Parece até que se enraizou ali.
— Entendi. Não vou dizer mais nada — replica ela. — Mas lembre-
se apenas de uma coisa. Você está me violentando. Gosto de você, mas
esta não é a forma de gostar que eu escolhi. Nós dois talvez nunca mais
nos encontremos. Por mais que assim desejemos no futuro. É isso o que
você realmente quer?
Você não lhe dá resposta. Você desliga os pensamentos. Atrai o
corpo dela para si e começa a mover os quadris. A princípio com
atenção e cuidado e, logo, com violência. Você pensa em reter na
memória a forma das árvores pelas quais passa para não se perder na
volta, mas todas elas têm o mesmo formato e num instante o mergulham
num mar de anonimato. Com os olhos cerrados, Sakura se abandona ao
movimento. Não diz nada. Não resiste. Mantém o rosto inexpressivo
voltado para o lado. Mas você é capaz de sentir o prazer físico que ela
experimenta, pois ela parece ser uma extensão do seu próprio corpo.
Agora, você sabe disso. Árvores entrelaçadas se erguem à sua frente,
compondo uma parede negra que veda seu campo visual. O pássaro já
não lhe manda mensagens. E você ejacula.
Eu ejaculo.
E acordo. Estou em minha cama e não há ninguém perto de mim. É
noite alta. O negrume é intenso, e os relógios se perderam, todos eles. Saio
da cama, tiro minha cueca, vou à cozinha e lavo o sêmen com água. O
sêmen, branco, denso e pegajoso, é o bastardo que a escuridão pôs no
mundo. Tomo muitos copos seguidos de água. Mas por mais que beba, a
sede em mim jamais será mitigada. A solidão é insuportável. No meio da
mais negra escuridão noturna e cercado por uma imensa floresta, acho
impossível que exista solidão mais intensa que esta. Aqui as estações não
existem, tampouco a luz. Volto para a cama, sento-me nela e respiro fundo.
O negrume me envolve.
Dentro de você, algo se mostra agora com clareza. No momento,
descansa como uma sombra escura. Já não há vestígios da casca. Ela foi
totalmente rompida e eliminada. Alguma coisa pegajosa adere às suas
mãos. Parece sangue humano. Você leva as mãos à altura dos olhos. Mas
a falta de claridade não o deixa distinguir coisa alguma. A escuridão é
excessiva, tanto interna quanto externamente.
Capítulo 40
Quando se viram a sós, a Sra. Saeki indicou uma cadeira para Nakata.
Depois de hesitar um pouco, ele se sentou. Separados pela mesa, os dois se
observaram em silêncio por instantes. Nakata tinha posto o chapéu de
alpinista sobre os joelhos e esfregava com a palma da mão o topo da cabeça
de cabelos curtos, no gesto que lhe era habitual. A Sra. Saeki tinha as mãos
pousadas sobre o tampo da escrivaninha e contemplava serenamente seu
interlocutor.
— Pode ser que eu esteja enganada, mas acho que estive à sua espera
— disse ela.
— Nakata também acha — respondeu o homem. — Ele perdeu muito
tempo. A espera foi longa demais, não foi? Nakata fez o possível para se
apressar, e o melhor que conseguiu foi chegar hoje.
A Sra. Saeki sacudiu a cabeça.
— Não, você veio na hora certa. Acho que me perturbaria muito mais
se você chegasse mais cedo ou mais tarde. Este momento é perfeito para
mim.
— Nakata contou com muita ajuda do senhor Hoshino. Não fosse por
ele, Nakata teria levado muito mais tempo para chegar aqui. Porque Nakata
não sabe ler.
— Hoshino é seu amigo?
— Sim — respondeu Nakata com um aceno. — Talvez ele seja meu
amigo. Mas, para ser franco, Nakata não entende muito bem este tipo de
relação. Excetuando os gatos, Nakata nunca teve nenhum amigo.
— Eu também não tive amigos durante muito tempo — disse a Sra.
Saeki. — Excetuando, é claro, as lembranças.
— Sra. Saeki.
— Pois não?
— Para dizer a verdade, Nakata não tem nenhuma lembrança. Porque
Nakata é fraco da cabeça. O que seria exatamente uma lembrança?
A Sra. Saeki voltou o olhar para as próprias mãos e, em seguida, para
Nakata.
— Lembranças o aquecem por dentro. Mas, ao mesmo tempo,
lembranças são capazes de estraçalhá-lo internamente.
Nakata sacudiu a cabeça.
— Que problema difícil. Nakata ainda não entendeu o que é uma
lembrança. A única coisa que Nakata sabe é sobre o presente.
— Pois, pelo jeito, sou o seu oposto — disse a Sra. Saeki.
O silêncio reinou momentaneamente na sala. Quem o rompeu foi
Nakata. Pigarreando de leve, ele disse:
— Sra. Saeki.
— Pois não?
— A senhora sabe a respeito da pedra da entrada, não sabe?
— Sei — respondeu ela. Suas mãos tocaram a caneta Mont Blanc sobre
a escrivaninha. — Muito tempo atrás, eu a encontrei em certo lugar. Talvez
tivesse sido melhor não tê-la encontrado. Mas não coube a mim escolher.
— Pois Nakata a abriu outra vez há alguns dias. Foi na tarde da
trovoada, quando muitos raios caíram sobre a cidade. O senhor Hoshino me
ajudou. Nakata não teria sido capaz de fazer isso sozinho. A senhora se
lembra do dia da trovoada?
A Sra. Saeki aquiesceu com um aceno de cabeça.
— Lembro-me bem.
— Nakata abriu porque tinha de abrir.
— Sei disso. Para que muitas coisas voltem à forma original, não é?
Nakata aquiesceu.
— Exatamente.
— Pois você está apto a fazer isso.
— Nakata não entende de aptidão. Seja como for, uma coisa é certa: ele
não teve escolha. Para falar a verdade, Nakata matou também uma pessoa no
bairro de Nakano. Ele não queria matar ninguém. Mas, induzido pelo senhor
Johnnie Walker, Nakata matou um homem em lugar de um rapaz de 15 anos
que devia ter estado ali. Nakata não teve como recusar.
A Sra. Saeki cerrou os olhos, abriu-os de novo e encarou Nakata.
— E tudo isso teria acontecido porque abri a pedra de entrada em certo
distante dia do passado? As conseqüências do meu ato estariam perdurando
até hoje e provocando essa série de distorções?
Nakata sacudiu a cabeça.
— Sra. Saeki.
— Pois não?
— A compreensão de Nakata não chega a esse ponto. A missão dele é
apenas uma: fazer com que as coisas que existem agora, neste exato
momento, retomem a sua devida forma. Para tanto, Nakata saiu de Nakano,
cruzou uma ponte comprida e veio até Shikoku. E talvez já saiba disso, mas
a senhora não pode mais permanecer por aqui.
A Sra. Saeki sorriu.
— Está certo — respondeu. — Eis aí algo que vim desejando
longamente. Eu o desejei no passado, eu o desejo agora, mas nunca o
consegui, por mais que tentasse. A única alternativa que me restou foi
esperar estoicamente a chegada do momento certo, isto é, a chegada deste
momento. A espera foi insuportável em muitos sentidos. Mas o sofrimento
deve ter sido imposto a mim como uma espécie de responsabilidade.
— Sra. Saeki — disse o velho homem. — Nakata só tem a metade da
sombra. E a senhora também.
— Sei disso.
— Nakata perdeu a outra metade por ocasião da última guerra. Ele não
entende direito por que isso teve de acontecer, e por que teve de ser com
Nakata. De qualquer maneira, muito tempo se passou desde então. É
chegada a hora de nossa partida.
— Sei disso.
— Nakata viveu muito. Mas, como já disse antes, Nakata não tem
nenhuma lembrança. De modo que se torna difícil para ele entender o
sofrimento que a senhora mencionou há pouco. Mas, Nakata pensa: por mais
sofrido que tenha sido, a senhora não tinha vontade de abrir mão dessa
lembrança, não é mesmo?
— Não tinha — respondeu a Sra. Saeki. — Exatamente. Por mais
sofrida que seja a lembrança, a idéia de abandoná-la jamais me passará pela
cabeça enquanto eu viver. Só ela dá sentido à minha vida, só ela é a prova de
que um dia existi.
Nakata apenas acena, em silêncio.
— Ao viver mais que o necessário, vim arruinando muitas pessoas e
coisas — continuou ela. — Mantive relações sexuais com o menino de 15
anos que você mencionou. Foi há poucos dias. Voltei a ser a garota de 15
anos e fiz sexo com ele naquele quarto. O ato pode ter sido apropriado ou
não, mas não consegui evitar. Mas, ao agir dessa maneira, talvez eu tenha
arruinado mais algumas coisas. E isso me atormenta.
— Nakata não entende de desejos sexuais — disse ele. — Do mesmo
jeito que não tem lembranças, também não sente desejo sexual. Portanto, não
entende a diferença entre desejo sexual apropriado e inapropriado. Mas se já
aconteceu, são águas passadas. Certo ou errado, Nakata aceita tudo que
acontece, pois o Nakata atual é uma decorrência desses acontecimentos. Essa
é a posição de Nakata.
— Nakata.
— Sim?
— Tenho um pedido a lhe fazer.
A Sra. Saeki apanhou a bolsa que estava a seus pés, tirou de dentro uma
pequena chave e com ela abriu uma gaveta da escrivaninha. De lá, retirou
algumas pastas grossas e as pôs sobre a mesa.
— Desde que retornei a esta cidade, vim dedicando inteiramente o meu
tempo a escrever isto. Aqui registrei a minha vida. Nasci nestas
proximidades e amei profundamente um rapaz que morava nesta casa. Acho
que amar mais do que o amei seria impossível. Ele retribuiu o meu amor na
mesma medida e vivemos no interior de um círculo perfeito. Dentro dele,
tudo era completo. Obviamente, essa situação não se perpetuaria.
Crescemos, tornamo-nos adultos, e tempos de mudança se aproximaram. O
círculo se rompeu em diversos pontos, coisas de fora invadiram nosso jardim
encantado, coisas de dentro procuraram sair. Era natural. Mas, na época, não
consegui achar natural. De modo que abri a pedra da entrada para evitar
tanto a invasão como a deserção. A esta altura, porém, já não consigo me
recordar como foi que consegui essa façanha. Eu apenas decidi intimamente
que tinha de abri-la de qualquer modo, pois eu não queria nem perder a
pessoa amada, nem permitir que invasores arruinassem o nosso mundo.
Naqueles dias, eu ainda não tinha compreendido o que isso haveria de
significar. Evidentemente, recebi meu castigo.
Nesse ponto, ela se calou, pegou a caneta e cerrou os olhos.
— Para mim, a vida acabou aos 20 anos. O resto dela nada mais foi que
um longo epílogo. Uma espécie de corredor sombrio e tortuoso, que não
levava a lugar algum. Ainda assim, tive de continuar vivendo. Aceitar cada
um dos dias vazios e vê-los se esvaindo, sempre vazios. Naqueles dias,
cometi muitos erros. Na verdade, tenho a impressão de que tudo que fiz foi
uma sucessão interminável de erros. Em certos momentos, recolhi-me em
mim mesma. Senti-me vivendo sozinha, no fundo de um poço. Amaldiçoei e
odiei toda existência externa. Em outros, saí da reclusão auto-imposta e vivi
um arremedo de vida. Eu aceitava qualquer coisa, seguia vida afora em total
insensibilidade. Dormi com muitos homens. Até passei pela experiência de
um casamento por uns tempos. Mas nada fazia sentido. Tudo se acabava
num piscar de olhos, nada restava em mim, exceto as cicatrizes das coisas
que desprezava e arruinava.
Ela depositou as mãos sobre os três arquivos empilhados sobre a
escrivaninha.
— Nestas pastas, registrei minuciosamente cada um desses
acontecimentos com o intuito de me organizar, de verificar pela última vez o
que sou e que tipo de vida levei até este momento. Embora não possa culpar
ninguém por isso, executar esta tarefa me pareceu mais doloroso que ser
estraçalhada viva. Mas finalmente terminei. Não preciso mais disto. Não
quero também que ninguém o leia, pois caso isso aconteça, mais danos
poderão ocorrer. Desejo portanto que tudo isto seja queimado e destruído de
maneira a não deixar vestígios. E quero também, caso possível, que seja
você, Nakata, a pessoa a cumprir este meu desejo. Não tenho mais ninguém
a quem recorrer. Estou me impondo, sei disso, mas você me atenderia?
— Nakata compreendeu — disse o velho. Moveu a cabeça diversas
vezes, enfaticamente. — Se esse é o seu desejo, Sra. Saeki, Nakata queimará
tudo. Esteja tranqüila.
— Muito obrigada — disse a Sra. Saeki.
— Foi importante escrever, não foi? — perguntou Nakata.
— Certamente. Escrever foi importante. Mas o produto da escrita, ou
seja, sua forma final, não tem significância.
— Nakata é analfabeto, não consegue escrever nada — disse o velho
homem. — Nakata é como um gato.
— Nakata…
— Pois não?
— Tenho a impressão de que o conheço há muito, muito tempo — disse
a Sra. Saeki. — Você não estaria nesse quadro? Essa pessoa que está com a
barra da calça branca arregaçada e pés na água no fundo da pintura não seria
você?
Nakata se ergueu calmamente da cadeira e se aproximou da
escrivaninha a que se sentava a Sra. Saeki. Em seguida, pôs as próprias mãos
rijas e queimadas de sol sobre as dela, que descansavam sobre as pastas. E
então, imobilizou-se num gesto que lembrava o de alguém que apura os
ouvidos e permitiu que a calidez das mãos dela se transmitisse para as dele.
— Sra. Saeki.
— Sim?
— Nakata também entendeu um pouco.
— Entendeu o quê?
— As tais lembranças. Ele as percebe através das suas mãos.
A mulher sorriu e disse:
— Que bom!
Nakata deixou as mãos repousarem longamente sobre as dela. Então, a
Sra. Saeki fechou os olhos e serenamente foi se deixando submergir em suas
próprias lembranças. Nelas não há mais dor. Alguém a absorvera totalmente,
para sempre. Uma vez mais, o círculo se completa. Ela abre a porta de um
quarto distante e vê numa parede dois maravilhosos acordes em forma de
lagartos adormecidos. Ela os toca gentilmente. Sente na ponta dos dedos o
calmo sono a que se entregam. Sopra uma brisa muito leve. Ela sabe disso
porque a velha cortina se agita mansamente. O movimento carrega um
sentido profundo, como o de uma metáfora. Ela veste um vestido azul que
usou nalgum lugar, muito, muito tempo atrás. Ela anda e o roçar do vestido
lhe chega aos ouvidos. Além da janela, está o mar. Ela ouve o seu marulhar.
Ouve uma voz. Sente o cheiro de maresia. É verão. É sempre verão. Umas
poucas nuvens, pequenas, brancas e de contornos bem definidos flutuam no
céu.
Com as três pastas debaixo do braço, Nakata desceu a escada. Oshima estava
ao balcão e conversava com um consulente. Ao ver Nakata, sorriu
gentilmente. Nakata respondeu com uma respeitosa reverência. Oshima
retomou a conversa interrompida. Totalmente absorto, Hoshino se dedicava
à leitura de um livro.
— Senhor Hoshino — chamou Nakata.
O rapaz depositou o livro sobre a mesa e se voltou para Nakata.
— Ei, que demora! E então, terminou o que tinha de fazer?
— Sim, o trabalho de Nakata neste lugar já terminou e ele está
pensando em ir embora se o senhor Hoshino não se importar.
— Não me importo, não. Eu praticamente acabei de ler o livro.
Beethoven morreu, sabe? Estou no ponto em que ele é enterrado. Um funeral
muito bonito. Para você ter idéia, 2.500 vienenses acompanharam o féretro
até o cemitério, e o governo decretou feriado escolar.
— Senhor Hoshino.
— Hum?
— Nakata tem só mais um pedido a lhe fazer.
— Fale.
— Preciso queimar tudo isto
Hoshino transferiu o olhar para as pastas que Nakata carregava.
— O volume é grande e não vai ser possível queimar em qualquer
lugar. Precisamos procurar um lugar aberto, um descampado.
— Senhor Hoshino.
— Hum?
— Vamos para a várzea, então.
— Desculpe a pergunta boba, mas esse material é realmente
importante? Não podemos jogá-lo numa lixeira?
— Não, senhor Hoshino, não podemos. Este material é muito
importante. Tem de ser queimado. Tem de virar fumaça e ir para o céu. E
Nakata precisa ter certeza de que tudo isso acontecerá.
Hoshino se ergueu e se espreguiçou longamente.
— Entendi. Vamos para a várzea, então. Não sei onde poderemos
encontrar um espaço aberto, mas não é possível que não exista nada
semelhante em Shikoku.
A tarde foi excepcionalmente movimentada. Muitos consulentes surgiram, e
alguns fizeram perguntas de teor especializado. Ocupado como esteve em
respondê-las e em buscar os documentos solicitados, Oshima quase não teve
um instante de folga. Precisou também fazer buscas no computador.
Normalmente, ele pediria ajuda à Sra. Saeki, mas, justo naquele dia, ela
também parecia estar ocupada. Em meio à azáfama em que se transformara o
seu dia, Oshima tivera de se ausentar diversas vezes do seu posto atrás do
balcão e não viu que Nakata se retirava. Quando enfim o movimento
diminuiu e Oshima olhou ao redor, percebeu que os dois amigos tinham
desaparecido. Subiu então a escada e foi ao escritório da Sra. Saeki.
Encontrou a porta fechada, coisa que raramente acontecia. Bateu duas vezes
de leve e aguardou alguns instantes. Não obteve resposta. Bateu uma vez
mais. “Sra. Saeki”, chamou. “Tudo bem com a senhora?”
Nem assim obteve resposta.
Oshima torceu de leve a maçaneta. A porta não estava trancada.
Oshima abriu uma fresta e espiou por ela. E então, descobriu a Sra. Saeki
debruçada sobre a escrivaninha. O cabelo lhe escondia o rosto. Oshima
hesitou. Talvez estivesse cansada e cochilasse. Mas ele nunca a vira
cochilando. Ela não era do tipo que cabeceava de sono durante o expediente.
Entrou no aposento e caminhou até a frente da escrivaninha. Curvou-se e a
chamou pelo nome junto ao ouvido. Não houve reação. Oshima pôs a mão
sobre um dos ombros e buscou o pulso. Não encontrou. Seu corpo guardava
ainda um débil vestígio de calor, algo pouco comunicativo.
Oshima removeu uma mecha de cabelo do rosto da Sra. Saeki e espiou.
Os olhos se achavam entreabertos: ela não dormia. Estava morta. Mas a
fisionomia era serena, como a de alguém em tranqüilo sonho. Nos lábios,
restava ainda a sombra de um sorriso. Nem no instante da morte esta mulher
perde a compostura, pensou Oshima. Deixou a mecha de cabelo recair na
posição original e apanhou o telefone sobre a escrivaninha.
Ele sabia que esse dia chegaria e estava preparado. Mas, quando se viu
sozinho com o cadáver da Sra. Saeki naquele aposento tranqüilo, Oshima
percebeu que não sabia o que fazer. Sentia o próprio espírito ressequido. Eu
precisava dela, pensou. Eu precisava de sua presença para preencher a
lacuna que existe em meu íntimo. Mas a lacuna que havia dentro dela, essa,
ele não conseguira preencher. A lacuna da Sra. Saeki tinha sido dela, e só
dela, até o último instante.
Alguém o chamava lá embaixo. Ao menos, foi essa a impressão que
teve. Pela porta escancarada, lhe chegava aos ouvidos os passos apressados
de pessoas indo e vindo no andar inferior. O telefone também começou a
tocar. Oshima ignorou tudo. Sentado numa cadeira, continuou a observar o
corpo da Sra. Saeki. Que me chamem ou telefonem quanto quiserem. O
gemido de uma sirene que se fazia ouvir a distância logo pareceu se
aproximar. Mais um pouco, e pessoas surgiriam para levá-la. Para sempre.
Oshima ergueu o braço e olhou o relógio. 4h35. Terça-feira. Ele tinha de
guardar na memória este horário. Ele tinha de se lembrar para sempre deste
dia, desta tarde.
— Kafka Tamura — sussurrou ele voltando-se para a parede. — Tenho
de avisá-lo. Mas só se ele ainda não souber…
Capítulo 43
Ao se dar conta de que Nakata tinha morrido, Hoshino não conseguiu mais
se afastar do apartamento que ocupavam. A pedra da entrada estava ali e ele
próprio tinha de estar perto da pedra para agir prontamente caso alguma
coisa acontecesse inesperadamente. Era uma espécie de responsabilidade
que lhe tinha sido atribuída. Ou seja, assumira integralmente as atribuições
de Nakata. Hoshino ajustou o ar-condicionado do quarto em que jazia o
corpo do amigo à temperatura mais baixa possível, elevou ao máximo a
ventilação e se certificou de que as janelas estavam hermeticamente
fechadas.
— Espero que não esteja frio demais para você, tio — disse ele,
voltando-se para o amigo morto. Nakata não opinou, naturalmente. O
estranho peso do ar acumulado no aposento vinha sem dúvida alguma
emanando lentamente do cadáver.
Acomodado no sofá da sala, Hoshino deixou-se ficar à toa, vendo o
tempo passar. Não tinha vontade de ouvir música, nem de ler livros. A tarde
caiu e a escuridão aos poucos invadiu os cantos da sala, mas nem assim se
ergueu para acender as luzes. Sentiu-se exaurido, incapaz de se erguer do
lugar em que se sentava. As horas chegavam e se iam muito lentamente. Às
vezes, tinha até a impressão de que voltavam atrás sorrateiramente.
Nunca me senti tão mal, nem mesmo quando meu próprio avô morreu,
pensou Hoshino. Depois de um longo período de sofrimento, todos sabiam
que o avô estava por morrer. Sua morte encontrou a todos psicologicamente
preparados. Estar ou não preparado para a morte de alguém fazia muita
diferença. Mas esse não era o único ponto, pensou Hoshino. Algo na morte
de Nakata o fazia pensar fundo e em linha reta.
Sentiu um pouco de fome e foi para a cozinha. Da geladeira, tirou um
risoto congelado, aqueceu-o no microondas e comeu a metade. Depois,
bebeu uma lata de cerveja. Quando acabou, foi de novo ao quarto anexo para
ver Nakata. Ele podia ter revivido, quem sabe? Mas Nakata continuava
morto. O quarto parecia uma geladeira. Àquela temperatura, nem sorvete
derretia.
Era a primeira vez que Hoshino passava a noite com um cadáver. Essa
talvez fosse a causa de se sentir espiritualmente desintegrado. Não estou com
medo, pensou. Nem me sinto mal. Só não sei como lidar com uma pessoa
morta. Até o passar das horas é diferente quando se está em companhia de
um morto. O som ecoa de maneira diferente. Aí está o motivo do
desassossego. Paciência. Afinal, agora Nakata está no mundo dos mortos, e
eu, no dos vivos. Tem de haver discrepâncias. Hoshino saiu do sofá, sentou-
se ao lado da pedra arredondada e passou a mão por ela como se acarinhasse
um gato.
— Que raios eu devo fazer? — disse à pedra. — Eu quero entregar
Nakata para quem de direito, mas isso não será possível enquanto eu não der
um jeito em você. Estou numa enrascada, percebeu? Que devo fazer? Se
sabe, me dê uma dica.
Mas a pedra não lhe deu resposta. Por enquanto, ela era uma simples
pedra. Esse tanto Hoshino entendeu. Podia perguntar o que quisesse mas
jamais obteria resposta. Sempre sentado ao lado dela, o rapaz continuou a
acariciá-la. Fez-lhe mais algumas perguntas, enumerou argumentos e tentou
convencê-la. Apelou para a generosidade dela. Mas sabia que era tudo inútil.
Apenas não lhe ocorria nada mais adequado a fazer. E depois, Nakata
também costumava falar continuamente com ela, não costumava?
— Mas apelar para os sentimentos de uma pedra já é demais — pensou
o rapaz. — Afinal, existe até a expressão insensível como uma pedra.
Ergueu-se pensando em assistir ao noticiário da tevê, mas mudou de
idéia e tornou a se sentar ao lado da pedra. Sentiu que um pouco de silêncio
era importante naquele momento. Tenho de apurar os ouvidos e ficar à
espera de alguma coisa. Mas, veja bem, esperar não é meu forte, tornou ele a
dizer mentalmente para a pedra. Sou estabanado e, por falar nisso, vim me
prejudicando a vida inteira por causa disso. Não penso direito, ajo por
impulso e sempre me dou mal. Você é irrequieto como gato na primavera,
costumava dizer meu avô. Neste momento, porém, não tenho outro recurso
senão respirar fundo e esperar. Agüente, Hoshino, disse o rapaz para si
mesmo.
Tudo que lhe chegava aos ouvidos era o rugido do ar-condicionado no
quarto anexo. O relógio marcou nove horas, marcou dez. Nada acontecia. Só
as horas passavam e a noite se aprofundava. Hoshino foi buscar um cobertor
em seu quarto, enrolou-se nele e deitou no sofá. Sentia que era melhor
continuar perto da pedra, mesmo na hora de dormir. Apagou a luz e fechou
os olhos.
— Ei, vou dormir! Você ouviu, pedra? — disse o rapaz, voltando-se
para ela. — Amanhã continuaremos a conversar. Hoshino teve um dia muito
longo e quer dormir.
Foi longo mesmo, pensou com seus botões. E tanta coisa aconteceu no
decorrer dele…
— Ei, tio! — disse Hoshino, voltando-se agora na direção da porta do
quarto contíguo. — Está me ouvindo, Nakata?
Não obteve resposta. O rapaz suspirou, fechou os olhos, ajeitou o
travesseiro e dormiu. Foi um sono ininterrupto e sem sonhos até a manhã
seguinte. No quarto ao lado, e duro como pedra, Nakata também dormia um
sono sem sonhos.
Quando acordou pouco depois das sete, Hoshino foi imediatamente verificar
o estado de Nakata no quarto anexo. O aparelho continuava a rugir e a
inundar o quarto de ar gelado. E, nesse meio, Nakata também continuava
morto. Em comparação à noite anterior, a presença da morte tinha se
adensado e fortalecido. Nakata parecia ainda mais pálido, e os olhos
cerrados tinham aspecto impessoal. Agora, ficava claro que ele nunca mais
recuperaria a respiração e se ergueria de súbito para lhe dizer: “Nakata
dormiu demais! Ele sente muito, senhor Hoshino, mas pode ficar tranqüilo
que de agora em diante ele se encarregará de tudo. Pode deixar tudo por
conta de Nakata, senhor Hoshino!” A verdade nua e crua era que o bom
homem estava irremediavelmente morto.
Tremendo de frio, Hoshino saiu do quarto e fechou a porta. Depois, foi
para a cozinha e tomou duas xícaras de café feito na cafeteira elétrica. Assou
fatias de pão de forma, passou manteiga e geléia e os comeu. Terminada a
refeição matinal, sentou-se numa cadeira da cozinha e ficou olhando pela
janela enquanto fumava alguns cigarros. As nuvens tinham desaparecido
durante a noite e, além da janela, o céu de verão se estendia, azul e plano. A
pedra continuava aos pés do sofá. Aparentemente, ela ali permanecera
enrodilhada e imóvel desde a noite anterior, sem dormir nem acordar.
Hoshino experimentou erguê-la e viu que conseguia fazê-lo com facilidade.
— Ei! — disse ele para a pedra alegremente — Sou eu, Hoshino, o
sujeito que você já conhece. Lembra-se de mim, não se lembra? Acho que
nós dois passaremos mais um dia juntos, um ao lado do outro.
A pedra continuava muda.
— Se você não se lembra, não tem importância. Vamos com calma que
há tempo de sobra.
Sentou-se no chão e, enquanto passava lentamente a mão direita pela
pedra, ficou pensando: que tipo de conversa se mantém com pedras?
Nenhum assunto lhe vinha à mente porque nunca falara com elas. Puxar um
assunto sério logo de manhã lhe pareceu inconveniente. Melhor falar de
amenidades. Afinal, tinha um longo dia pela frente.
Depois de pensar algum tempo, resolveu falar das mulheres com quem
transara até aquele dia. Não eram muitas, caso se ativesse apenas àquelas
cujos nomes ainda se lembrava. Contou-as nos dedos. Seis. Seriam muito
mais se incluísse aquelas cujos nomes não sabia, mas dessas trataria numa
outra ocasião.
— Tenho a impressão de que não vale a pena falar de mulheres com
uma pedra — disse o rapaz. — E talvez nem você, pedra, esteja interessada
em ouvir falar delas nesta hora matinal. Mas é que não me ocorre nenhum
outro assunto, você tem de entender. Além do mais, acho que não lhe fará
mal algum ouvir alguma coisa menos rígida. Pode vir a ser útil mais tarde,
quem sabe?
Hoshino vasculhou a memória e falou de maneira mais minuciosa e
objetiva possível dos seus diversos casos envolvendo mulheres. O primeiro,
ainda no período em que cursava o colegial. Na época, ele andava de moto e
vivia se metendo em confusões. A garota era três anos mais velha que ele e
trabalhava numa lanchonete na cidade de Gifu. O caso durou pouco, mas os
dois chegaram a morar juntos. O problema foi que ela quis um compromisso
sério, ameaçou se matar e ligou para os pais dele, os quais, por sua vez,
passaram a maior descompostura no filho. Hoshino se encheu, mandou tudo
às favas e se alistou nas Forças de Autodefesa, aproveitando-se do fato de
que estava terminando o colegial. Logo em seguida, foi designado para a
base de Yamanashi. Assim terminara seu primeiro caso. Ele nunca mais vira
a garota.
— Meu problema é que as coisas logo me enchem e fico com vontade
de mandar tudo às favas, entende? — explicou ele para a pedra. — Basta a
situação se complicar um pouco que logo fico com vontade de desaparecer.
E nisso sou rápido, modéstia à parte. Até hoje, nunca me aconteceu de
perseguir um objetivo até o fim e com afinco. Esse é o meu problema.
O segundo caso envolveu uma menina que conhecera nas proximidades
da base de Yamanashi. Era seu dia de folga e ele ajudara uma garota a trocar
o pneu do carro dela, um Suzuki Alto parado à beira da estrada. Ela era um
ano mais velha que ele, e era aluna de um curso de enfermagem.
— Garota legal, aquela — contou Hoshino para a pedra. — Tinha
coração e seios grandes. Era boa de cama, também. Na época eu tinha 19
anos e imagine se não passávamos o dia inteiro em atividade debaixo das
cobertas quando nos encontrávamos. Mas o diabo é que ela era ciumenta
como quê. Se eu deixava de vê-la num único dia de folga, ela aporrinhava
minha paciência: aonde eu fora, o que andara fazendo, com quem me
encontrara etc. etc. Me bombardeava de perguntas. O pior de tudo é que ela
não acreditava em mim, mesmo quando eu lhe dizia a mais pura verdade.
Acabamos terminando por causa disso. Acho que fiquei com ela quase um
ano… Não sei de você, pedra, mas eu mesmo não suporto ser questionado
desse jeito. Não consigo respirar e fico deprimido. De modo que me enchi e
dei no pé. O bom de pertencer às Forças de Autodefesa é que você pode se
refugiar dentro do quartel. É só não sair até que as coisas se arrefeçam. Nada
que vem de fora é capaz de alcançá-lo lá dentro. Se você quer se livrar de
uma mulher, aliste-se. Lembre-se disso. Mas, por outro lado, não foi nada
divertido passar os dias cavando buracos e empilhando sacos de areia.
Enquanto falava o que lhe vinha à telha, o rapaz teve uma clara visão da
vida inútil que levara até então. Das seis meninas com quem mantivera
relações, quatro, no mínimo, tinham sido boazinhas. (As duas restantes,
objetivamente falando, se revelaram problemáticas.) De um modo geral,
tinha sido muito bem tratado por elas. Nenhuma fazia o tipo beldade
estonteante, mas todas tinham sido bonitinhas, cada qual a seu modo. Nunca
se recusaram a fazer sexo com ele e nunca reclamaram, mesmo quando ele
passava por cima das preliminares, de pura preguiça. Cozinharam para ele
nos feriados, compraram presente no dia do aniversário dele, emprestaram
dinheiro (não se lembrava de ter devolvido) quando ele se vira em apuros
nos dias que antecediam o pagamento do soldo e nunca pediram nada em
troca. Mas ele jamais lhes agradecera. Esse estilo de vida sempre lhe
parecera muito natural.
Uma vez iniciada a relação com uma mulher, ele só dormia com ela.
Nunca traíra. Nesse ponto, ele se portara com certa decência. Mas bastava
que elas começassem a reclamar um pouco, a querer discutir pontos de vista,
a demonstrar ciúmes, a aconselhá-lo a abrir uma poupança, a ter crises
histéricas de vez em quando, ou a demonstrar inquietação pelo futuro, para
que ele se mandasse imediatamente. O mais importante, achava Hoshino, era
terminar de maneira definitiva, não deixar nenhuma ponta a que elas
pudessem se agarrar para atormentá-lo. Se começavam a enchê-lo, ele se
mandava. Depois, procurava outra mulher e com ela começava tudo de novo.
Era assim que viviam os homens, achava Hoshino.
— Se eu fosse uma garota — disse ele para a pedra — e andasse com
um rapaz que só pensa em si mesmo, como eu, na certa perderia a paciência
num instante. Hoje, sou capaz de ver isso. Só não entendo por que elas me
aturaram tanto tempo. Um ponto a se esclarecer, sem dúvida alguma.
Hoshino acendeu um Marlboro e expeliu a fumaça lentamente enquanto
alisava a pedra com uma das mãos.
— Isso é estranho, não é? Afinal, não sou bonito, nem sou muito bom
de cama. Não sou rico, ou especialmente bonzinho, ou de gênio agradável.
Não sou muito inteligente. Pior que tudo, sou um tipo bastante problemático.
Filho de lavradores pobres da região de Gifu, motorista de jamanta sem
futuro algum, saído dos quadros das FAD. Apesar de tudo, percebo que fui
abençoado na minha relação com mulheres. Não fui super-requisitado, nada
disso. Mas, no quesito mulheres, não me lembro de ter ficado à míngua. Elas
me davam o que eu queria, cozinhavam para mim, até me emprestavam
dinheiro. Mas pode ser que a bonança não perdure. É o que começo a achar
nos últimos tempos. Uma voz parece me dizer: “Ei, Hoshino, o dia do acerto
de contas virá.”
Acariciando ininterruptamente a pedra, o rapaz continuou a falar das
mulheres do seu passado. E, conforme se familiarizava com o gesto, não
conseguia mais parar. Ao meio-dia, ouviu o sino de uma escola próxima
repicar. Hoshino foi à cozinha e preparou um prato de macarrão. Cortou
cebolinha verde, acrescentou um ovo e se serviu.
Quando acabou, foi ouvir o “Trio Arquiduque” outra vez.
— Ei! — disse ele para a pedra assim que terminou o primeiro
movimento. — Música maravilhosa, não acha? Você não sente sua alma se
expandir enquanto a ouve?
A pedra não respondeu. Hoshino ficou sem saber se ela ouvira ou não a
música. Sem se deixar abater, o rapaz continuou:
— Conforme já lhe contei, vim fazendo coisas abomináveis. Fui
egoísta. A esta altura, porém, não posso passar uma borracha sobre essas
coisas e fingir que não as fiz. Não é? Mas, quando ouço esta música, sinto
que Beethoven está me dizendo: “Que se há de fazer, Hoshino, meu chapa?
O que passou, passou. A vida é assim. Eu mesmo andei aprontando poucas e
boas durante a minha. Paciência! Você não pode nadar contra a correnteza,
entendeu? Aprenda a lição e toque para a frente!” Mas Beethoven, tendo
sido o que foi, jamais me diria isso. Estou apenas comentando que sinto esse
tipo de coisa se irradiar dessa música e me alcançar. Você também sente?
A pedra nada disse.
— Ah, tudo bem — disse o rapaz. — É a minha opinião, só isso. Vamos
calar a boca e ouvir.
Pouco depois das duas, Hoshino olhou pela janela e viu um gordo gato preto
sentado no parapeito da varanda e espiando dentro do quarto. O rapaz abriu a
janela e, de puro tédio, disse:
— Ei, gatinho, que dia lindo, não?
— Hoshino, meu chapa, concordo com você — respondeu o gato.
— Ah, essa não! — disse o rapaz. E sacudiu a cabeça.
O Menino Chamado Corvo