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~N.Chama, 909 1765u. PF 1995 Titulo: O homem barroco. HEWN Ac. 361610 J. S. AMELANG, J. ANDRES-GALLEGO, G. CARERI D. DESSERT, H. KAMEN, B. P. LEVACK, M. MORAN S. S. NIGRO, G. PARKER, A. PROSPERI, M. ROSA P. ROSSI, R. VILLARI 1995 O HOMEM BARROCO Direceo de Rosario Villari Tradugdio de: Maria Jorce VILAR DE FIGUEIREDO. S640 U.AIM.G, - BIBLIOTECA UNIVERSITARIA WAMU a 191150411 NAO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA EDITORIAL FP lenecencx whe we FICHA TECNICA ‘Titulo original: L'Uomo Baroeco Autores: J. 5. Amelang, J. Andrés-Gallego, G. Careri, D, Dessert, H. Kamen, B. P, Levack, M. Morin, S.S. Nigro, G. Parker, A. Prosperi, M. Rosa, P. Rossi, R. Villari Direegao de: Rosario Villari Copyright © 1991, Gius. Laterza & Figli Spa, Roma ~ Bari ‘Tradugao © Editorial Presenga, Lisboa, 1994 ‘Tradugio: Maria Jorge Vilar de Figueiredo Capa: Retrato de Vittorio Amadeo I duque de Sabéia c. 1632-1637, Florenca, Galleria degli uffzi Composigio: Mirasete— Artes Gréficas, Lda, Impressfo ¢ acabamento: Guide-Artes Grificas 1. edigo, Lisboa, 1995 Depésito legal n.° 74035/94 Reservados todos os direitos para a lingua portaguesa EDITORIAL PRESENCA. Rua Augusto Gil, 35-A 1000 LISBOA INTRODUCAO ‘A expressiio «homem barroco» € uma expressdo invulgar, sendio mesmo inédita totalmente nova, Noutros tempos, néo muito remotos, 0 uso do termo «barroco» s6 teria sido admitido para as manifestagdes artisticas e as tendéncias literdrias, mas no para designar experiéncias e condigdes gerais (culturais, religiosas, politieas) do pe- rfodo da histéria europeia que vai de finais do século xvi a até A segunda metade do século seguinte, como se pretende fazer justamente nesta obra. No primeiro ntimero (Janeiro de 1950) da revista de Roberto Longhi, «Paragone», Giuliano Briganti nao hesitava em relegé-lo para a histéria da arte, como definigao abstracta e genérica de estilo, aplicdvel a fases e a circunstincias diferentes e historicamente indeterminadas: barroco — escrevia ele —, «estranha palavra, tio agraddvel de pronunciar, tao miste- riosamente alusiva, tio aparentemente definidora... Quando, num texto de historia da arte, se 18 0 termo ““barroco”’, fica-se sem saber a que coisa se quer aludir; e a confu- so gera equivocos sem fim». Renedetto Croce, porém, jé tinha falado de «época bar- roca», mas restituindo ao termo o seu significado negativo tradicional e alargando Ambito da sua utilizaciio, para esbogar, quanto a uma drea e a uma época bem deter- minadas, os tracos fundamentais de uma cultura que era expressiio de decadéncia ¢ de crise moral. Nao pretendemos refazer a hist6ria de uma terminologia que abrangeu quase um século e que no € interessante e significativa apenas sob o ponto de vista da hist6ria da arte e da literatura. E também nfo 6 possivel tentar perceber ys motivos que leva- ram um ou outro historiador a dar a esse termo 0 seu significado mais geral (um excm- plo convincente parece-me ser a introdugao de José Antonio Marayall a La Cultura del Barroco), ou os problemas ¢ os eventuais equfvocos que dai derivam. Creio que serd suficiente anotar que, apesar das condig6es proibitivas ¢ equivocas iniciais, a par- tir dos anos 60, o termo difundiu-se e afirmou-se, destacando-se em parte do seu sig- nificado original e do seu laco sectorial com a arte ¢ a literatura ¢ estendendo-se mesmo para 14 da arte mediterranica e contra-reformista. ‘Actualmente, j4 ninguém se admira que sob 0 titulo O Estado Barroco se reti- nam ensaios que se referem especificamente & Franga de Lufs XIII e que, por ana- logia, remetem para problemas comuns, embora com diferengas importantes entre 08 varios paises, a toda a Europa Ocidental e Central numa fase do antigo regime. Neste caso, para o conceito de barroco, 0 organizador da obra, Henry Méchou- 7 lan, adopta a definigdo que figura no dicionério da Academia de Franga de 1740: cirregular, bizarro, desigual». Que outro conceito, pergunta Méchoulan, «podria designar a estranhoza politica da Franga no infcio do século xv, que v8 surgir uma nova forma de poder que nenhum vocabulério pode ainda definir? O rei taumaturgo reina com um cardesl (Richelieu) guiado pela razdo de um Estado que cle forja por entre contradi- oes, convulsdes, revolias... Destes intiltiplos antagonismos surge um Estado que surpreende & impressiona pela sua grandeza tio imponente ¢ dominadora como uma obra de Berninin. Estranheza e novidade, contradigao, revolta, prodigio, extravagancia, grandeza: so designagdes que remetem, simultaneamente, para um conceito um tanto aproximado de estilo e para a tentativa de dar uma visio geral de uma época histérica, do Estado, da politica, de toda a realidade colectiva € individual de um perfodo especial da his- t6ria enropeia. Por conseguinte, ¢ embora com as necessétias cautelas ¢ sem a pretensiio de des- cobrir em todo 0 mundo seiscentista uma unidade espiritual ¢ intelectual s6lida, a ten- déncia para atribuir caracterfsticas préprias, um modo especifico de pensar, sentir € agir ao perfodo em questao est4 bem presente na cultura hist6rica contempornea. E tal- vez devido & sua ambiguidade e multiplicidade de signifieados que foi adquirindo, a designago de «barroco» parece particularmente adequada a esse periodo. Com efcito, é normal considerar-se que o século xvii foi «um né enredado de ten- déncias diferentes» (Alberto Tenenti), um século de crise (Roland Mousnier), uma época de desosdens (Pierre Chaunu) em que a sociedade € dominada por uma sensa~ gio de ameaga e de instabilidade que gera, por reacgao, uma cultura conservadora © repressiva (José Antonio Maravall). Américo Castro, como muitos outros. extiafa dessa, visio uma conchusio drastica: «Nao me parece — escreveu uma vez, discutindo a ques- tio com Maravall — que 0 barroco seja um agente ou ui promotor de historia.» Ao fenémeno do Barroco assim concebido, que emerge e se divulga tumultuosamente ao jongo de quase um século, contrapdem-se, como tendéncias constrastantes ¢ que, em certo momento, acabam por triunfar, o absolutismo no plano politico e 0 classicismo no plano do pensamento, da arte ¢ da vida espiritual. Os europens do século xvui tiveram também uma ideia particularmente dramética do perfodo em que viveram e conseguiram transmiti-la aos seus sucessores: século de ferro, mundus furiosus, época de tumultos e agitagGes, opressGes e intrigas, em que «os homens transformados em lobos se comem uns aos outros», tempo de desordem, de destruigdo, de subversio da hierarquia, de fantasias; época de grandes tensdes, em suma, muitas vezes consideradas mais como simplesmente negativas do que como eta- pas necessarias para se atingir um maior equilfbrio social e politico € wna mais pro- funda e abrangente capacidade criativa. ‘A conflitualidade «barroca» surpreendeu 0s historiadores pela sua intensidade, pela sua difusdo e pela influéncia que teve no modo de pensar ¢ de agir. O confronto ideal, politico e religioso, a continuidade e a amplitude da guerra, 0 agravamento do anta- gonismo social, a revolucdo, as caprichosas questées de precedéncia no dia-a-dia do ritual administrativo e eclesidstico, a frequéncia do duelo, parecem ser caracteristicas proprias desse perfodo. E uma ideia largamente aceite, apesar de nunea se ter proce- 8 dido a. um rigoroso e sistemdtico confronto com outras épocas turbulentas ¢ inquictas da hist6ria europeia, Hé alguns anos, John Elliott sugeriv a hipétesc de que também se podle falar de crise revolucionéria geral quanto aos anos das guerras de religio, sus citando diividas que nao destrufram porém a ideia jd tradicional da singularidade, sob este aspecto, da primeira metade do século xvut. Todavia, o discurso deve também desenvolver-se num outro plano. De facto, 0 aspecto peculiar da conflitualidade barroca reside menos no contraste entre individuos diferentes do que na existéncia de comportamentos aparentemente incompativeis ou nitidamente contradit6rios no seio do mesmo individuo, A convivéncia entre tadicio- nalismo e busca da novidade, de conservadorismo e rebelido, de amor a verdade e culto da dissimulacio, de prudéncia ¢ loucura, de sensualidade ¢ misticismo, de superstigao e racionalidade, de austeridade e «consumismo», de afirmagao do dircito natural ¢ de exaltagao do poder absoluto, é um fenémeno de que se podem encontrar intimeros exemplos na cultura ¢ na realidade do mundo barroco. Durante muito tempo, ¢ perante a dificuldade de decifrar o mistério dessa contra, digo estrutural ¢ intima, ¢ sugestionada pelo poder da imagem hegaliva que a época ‘Farroca transmitju de si mesma, das suas tensdes e dos seus males, a cultura historica Tcabou por admitir, em relagdo a esse perfodo, uma especie de oft capaci Tade de contribuir para 0 propresso da civilizagag co los movimentos de ideias com um empenho colectiva, Contradigao e confiitualidade foram durante muito tempo “onsideradas como sinal da obstrucdo ¢ da estagnacio das forcas propulsoras. E tipica, por exemplo, e foi dominante, a ideia de um Estado que progride apenas pela vontade do soberano perante uma sociedade que protesta ¢ morde o freio sem conseguir adap- tar-se ao dinamismo centralizador da monarquia nem sacudir dos ombros o jugo da opressio, Como pano de fundo, algumas personalidades de excepgiio foram conside- radas mais como precursoras do que como auténticas expressées da sua época: Bruno, Galileu, Bodin, Bacon, Descartes, Harvey, Sarpi, Espinosa... O século xv foi particularmente activo na criagia e na tentativa de impor na cul- tura e na mentalidade modelos rigidos de tipos sociais, f6rmulas ¢ critérios de inter- pretacdo, juizos «exemplares» acerca de acontecimentos e de pessoas, a par de uma visao particularmente dramatica e conflituosa da realidade social. Esse empenho gran- dioso — concretizado através de um auténtico boom da crénica ¢ das obras dedicadas aos acontecimentos da época, através da grande difusdo da pregagiio religiosa popu- ar do inicio da propaganda politica de massa, 0 jornalismo, os panfletos, as folhas volantes, os manifestos — provinha da necessidade de conferir uma legitimacao polf- tica, moral ¢ ideal ao exercicio de um poder que comegava a ramificar-se na socie- dade ¢ que tendia a subverter, dentro de certos limtes, alguns particularismos e esteu- turas tradicionais; ou, pelo contrério, provinha da necessidade de justificar a resisténcia @ a oposigao, Isso exerceu sem davida uma grande influéncia sobre 0s contempora- neos mas, 20 mesmo tempo, também condicionon fortemente a cultura € a histori gratia das épocas seguintes, transmitindo imagens ¢ esteredtipos que em muitos casos 86 em parte correspondem & realidade. certo que ¢ dificil negar validade a visdo global de um mundo dilacerado pelos conflitos sociais ¢ politicos atormendado pela guerra com todas as suas consequén- cias. B, acima de tudo, impossivel nao dar um relevo especial ao facto de, em deter- a das fases do século XVII, as revohug6es € a guerra adquirirem dimensdes que no onhecido nos séculos imediatamente anteriores, Todavia, isso ndo significa que o aspecto endémico do protesto, a conflitualidade elementar ow mesmo a desor- dom, a rebelido € a anarguia a custo dominadas controladas pela acgio do Estado fossem um dado exclusivo, dominante ¢ universal do século xvi "A sociedade barroca é um corpo, um organismo social onde ndo 36 cada elemento tem um Jugar ¢ uma fungao, mas que também est4 intemamente estruturado e organi- rado de acordo com hierarquias reconhecidas e aceites. A faixa da desordem e da con- fusio aumenta indubitavelmente na época barroca: basta pensar na expansio das cida- des, que muitas vezes atinge tais dimensoes que nao se consegue incorporar.as vagas dos recém-chegados nas estruturas da organizagao tradicional. Os marginalizados aumen- tam, preocupam, provocam reaccbes e medidas de varios tipos (nao s6 restrtivas e repres- sivas), mas, de uma forma geral, esses fendémenos parecem bastante controlados, e, por- tanto, incapazes de dominar totalmente o clima geral ¢ inverter o principio de organizagao que governa a sociedade barroca urbana ¢, em certa medida, também a rural. Em princfpio, nos seus actos, 0 novo poder monérquico nao contrasta com essa estruturagao particularista e particular: em geral, mais do que subverté-la no seu avango, serve-se dela no plano fiscal, da organizacio militar e da ordem ptiblica. A forga do Estado darroco afirma-se pela alianga entre poder central, comunidade, instituigoes corporaiivas, poderes aut6nomos locais, etc.; reprime os poderes particulares quando se opdem ao «servico do rei» ou o dificultam, mas tenta sobretudo servir-se deles, inseri-los no desfgnio geral, coordend-los em fungao da acgao da monarquia ¢, por- tanto, em certos aspectos, consolida-os. (Os «alojamentos» militares foram um dos grandes motives de oposigao ¢ de fric- do entre © poder central, por um lado, ¢ as comunidades locais que frequentemente tinham de os suportar, por outro. Mas, antes de se criarem as casernas e a moderna organizagdo dos exércitos, e portanto também na época barroca, como poderia o sobe- rano gerir as suas milfcias sem 0 acordo ¢ 0 consenso das comunidades? E certo que a imposig&o violenta, os abusos, e por conseguinte os protestos @ as rebelides, existi- ram em determinados momentos, como testemunham, a par das obras literdrias (0 exemplo mais facil certamente E! Alcalde de Zalamea, de Calder6n), inimeros do- cumentos histéricos e episddios de grande relevo, mas também houve colaboragéo baseada em normas, estalutos ¢ tradig6es ou a intervengao regular do soberano quando: as normas no eram respeitadas. O mesmo se pode dizer do sistema fiscal, O antifiscalismo & a doenga endémica do século Vii, as revoltas antifiscais pululam em toda a Europa: sob este aspecto, a fractura entre as populagdes e o soberano parece profunda e irremediavel, embora des- provida de perspectivas politicas para aqueles que se opéem e protestam. No entanto, mesmo nos piores momentos de violéncia antifiscal, ecoa 0 grito de «viva o rei». Tra- tar-se-d de uma simples e ingénua tentativa de alibi, de cobertura, de dissimulacao pri- mitiva? K-o certamente em muitos casos e, por vezes, a niveis sociais mais elevados, a tentativa tora-se mais sofisticada e assume um cariz politico ¢ cultural, Mas tam- bém € yerdade que, precisamente na época barroca, o apego ao soberano, & ideia ou a0 mito do rei € comum e muito forte nas camadas populares; mesmo numa regio maltratada ¢ oprimida como o reino de Napoles, pretendeu-se que as pessoas das aldeias, com a sua profunda aspiragao dominialistica (ou seja, o desejo de fazer parte minat tinham © 10 do dominio real e de nao ser feudo de um barao) desistissem dessas posicées e trans. formassem em Gdio 0 seu antigo afecto pelo rei. «Entre o Estado mondrquico e as comu- nidades estabeleceu-se uma relagao de amor-ddio» — escreveu legitimamente Le Roy Laduric a esse respeito. E evidente que a relagao nao tem apenas um sentido, no con- siste s6 em tirar sem obter contrapartidas. No fundo, existe um equilfbrio, embora mui- tas yezes, e sobretudo em tempo de guerra, soja dificil conseguir manté-lo, Hi portanto, repito, uma certa diferenga, por vezes bastante relevante, entre a rea- lidade histérica e as imagens que o século deu, impés e transmitiu de si mesino e dos seus aspectos e momentos particulares e essa diferenga talvez seja maior e mais acen- tuada do que em outras fases da hist6ria europeia. Procurar compreender as razOes das dimensées particulares dessa diferenca seria sem duivida interessante. De facto, a ques- Wo tem a ver com os mecanismos, que entéo foram utilizados, de procura do consenso ¢ da coesio social ¢ da marginalizagao dos factores de perturbagdo, com a mentali- dade ¢ a relagao entre interesses de grupos sociais ¢ ideologias. J4 ha algum tempo que a cultura histérica comegou a pé-la em destaque, analisando também a conflitua- lidade e a contradigao (no sentido a que me referi mais atr4s) consideradas como pe- culiares do Barroco. E os textos reunidos neste volume constituem também um teste- munhe dessa andlise e um contributo para a correcco de alguns tragos tipolégicos jé atribuidos ao homem barroco e a algumas figuras desse perfodo. F claro que, neste volume, se privilegia mais as instituigdes, as ideologias, as mentalidades ¢ as estrutusas sociais do que a literatura e a arte, Por outras palavras, os «tipos» aqui delineados servem mais para tecer um quadro desses elementos do que da sensibilidade particular ¢ geral do homem barroco. No entanto, mesmo den- tro desses limites 0 quadro no é completo. O nosso propésito nio era reconstituir um panorama histérico do século, mas descrever alguns aspectos e tipos particula- res, Nao se deve esquecer, alids, que, embora sendo um século fortemente criativo e cheio de novidades nao apenas negativas, o século xvit herda muitas coisas do século anterior e dos finais da Idade Média. H4 algumas figuras que repetem os modelos anteriores, com variantes indubitavelmente significatiyas e importantes mas no suscepttveis de justificar um tratamento auténomo: refiro-me, por exemplo, 2 condicao da mulher, as figuras do camponés e do artesio enquanto operadores eco- némicos, a mentalidade do grande senhor. O volume deveria ser lido, para colmatar algumas lacunas ¢ também para se perceber melhor os elementos de novidade, jun- tamente com os dois que o precedem na colecgio «O Homem ¢ a Historia» ¢ que sfio dedicados ao Homem Medieval e Homem Renascentista, No que diz estritamente respeito a este livro, propusemo-nos nao dar uma visio do Estado, da Igreja e da cultura separada da visio da sociedade no seu conjunto e das tendéncias e correntes que a atravessaram, Por outro lado, considera-se 0 periodo barroco nao como um conjunto de caracteres estaticos, mas como uma fase hist6rica em que os problemas, as situagdes € também os tipos humanos se modificam, A mudanga de cendrio na segunda metade do século, em relagio 4 fase de fundagdo da época barroca, pode mesmo parecer surpreendente, ¢ a época no seu conjunto pode parecer uma época de aceleragio das transformagdes. Também sob este aspecto, o século xvit 6, em certa medida, embora com grandes e dbvias diferengas de contetidos e de intensi- dade, semelhante 4 nossa época. ie © que torna 0 volume mais homogéneo € o facto de as contribuigdes individuais reflectirem uma fase de profunda mudanga da opinido histdrica acerca do século xvi. O leitor encontraré uma imagem do estadista, ou pelo menos de alguns dos estadistas mais tipicos da época barroca, como Mazatino, quase oposta & imagem convencional ¢ largamente divulgada: um homem politico, profundamente atento ao interesse geral, dedicado de uma forma que chega a ser obsessiva ao bem do Estado ¢ da monarquia. O proprio sistema clientelar, que, no século xvii, floresceu de uma forma particular- mente rica, surge aqui sob uma luz nova, isto , como um sistema que, numa fase espe- cial, serve para reunir foreas, que de outra forma estariam dispersas e desorganizadas, em torno da obra de construgao e de reforco do Estado. A relacdo entre guerra e Barroco é muito estreita, sobretudo no sentido dé devas- taco e de desastre, de aumento da destrutividade e da cega violéncia do soldado, de impacte de todos os males da guerra sobre a sociedade, os camponeses, as mulheres & os desarmados habitantes das cidades. No entanto, se o ensaio de Geoffrey Parker reevoca tudo isso, também demonstra que a continuidade ¢ o desenvolvimento da revo- lugo militar iniciada no Renascimento, ou seja, de um processo que consiste, é certo, no aumento da capacidade ofensiva e defensiva dos exéreitos, no aumento da destru- idade, proveca igualmente uma racionalizacao da relagiio entre exéreitos ¢ socie- dade civil. O peso do aparelho militar mantém-se extremamente gravoso ou aumenta, mas ja em finais da época barroca essa relagio torna-se menos selvagem e casual no que se refere aos aprovisionamentos, ao destino das tropas, 4 remuneracio dos solda- dos, a ligagaio entre exército e nagao, etc. No caso do financeiro, a mudanga é ainda mais nitida e explicita. Dessert demons- trou que o «modelo» construfdo e imposto universalmente na cultura ¢ na mentalidade do século xvu (¢ em grande medida aceite pela historiografia dos séculos seguintes) 86 corresponde de um modo bastante parcial a realidade histérica. Dessert refere-se quase exclusivamente & Franga, mas os problemas que ele enfrenta, incluindo o da forma distorcida de reproduzir a figura e a actividade do financeiro, so comuns ao resto da Europa. Por sua vez, a figura do burgués tracada por James Amelang difere sensivelmente daquela que uma longa tradigao e Fernand Braudel tinha imposto: de «traidor» de uma missAo hist6rica, 0 burgués da época barroca converteu-se em campedo da racionali- dade e da prudéncia, em precursor de uma capacidade de gozar a vida que nao esta decerto em sintonia com a austeridade forgada da sociedade pré-industrial. O mesmo se pode dizer de muitos outros aspectos da época barroca referentes 4 organizacdio do poder, a relacdo entre governo c stibditos, a religiosidade ¢ a Igreja, a concepgao dos valores sociais, & cultura politica, aos lacos existentes entre artistas ¢ clientes, 2 tela~ do entre o desenvolvimento da ciéncia ¢ as instituigdes pablicas. Por conseguinte, a enumeracdo das novidades do volume e das tendéncias interpretatiyas que ele aponta poderia alargar-se muito para além dos exemplos ja dacos. Mas, chegado a este ponto, depois de ter indicado aquilo que me parece ser uma linha de leitura a nfo descurar. €a altura de confiar no leitor, na sua curiosidade e na sua opiniao. Rosario Villari 12 CAPITULO I O ESTADISTA por Henry Kamen «Sc assim so os tempos, assim deve ser 0 homem», escrevia o poeta Andrew Mar- cell, celebrando primeiro aniversétio do protectorado de Oliver Cromwell em Ingla- terra; e passou a ser natural apresentar os grandes homens de Estado como produtos da sua época e mesmo como aqueles que Ihe deram uma nova forma, como se 0 seu papel superasse o do comum dos mortais. Esta opinitio, porém, dé uma visio distor- cida do passado porque nao permite destacar as varias modalidades de exercicio do poder politico, e exagera as possibilidades de escolha que se ofereciam aos homens politicos. Um homem de Estado era acima de tudo um produto do seu sistema social, ¢ 86 podia agir dentro dos limites desse sistema. E isso revelou-se particularmente ver- dadeiro quando, como aconteceu no século xvi, 0s centros de poder tradicionais — comunidades locais, grupos sociais — se empenharam duramente para se afirma- rem contra a crescente autoridade da monarquia central. A ideia de governo como arte, embora seja caracterfstica do Renascimento e tenha ido entio uma enorme influéncia, continuou @ ocupar um lugar central até meados do século xvi. A gesto do Estado era considerada uma ciéncia em que os principes deviam ser educados € os ministros instruidos. Os manuais — um dos primeiros e mais conhe- cidos foi O Principe, de Maquiavel, e um dos tiltimos foi provavelmente as Memorie, redigidas por Luis XIV para seu filho — baseavam-se no pressuposto, provavelmente valido no primeiro caso mas j4 nao valido nem possivel no segundo, de que os homens de Estado possufam os meios para decidir 0 destino de quem vivia nos territ6rios por eles governados. Isso pressupunha que as decisGes de um homem de Estado podiam ser impostas no interior de uma drea politica e geogréfica relativamente pequena, que ele era o responsdvel por qualquer eventual fracasso. Mas a monarquia de Filipe If, com as suas dimensdes mundiais, j4 demonstrara que havia barreiras espaciais ¢ temporais que podiam anular qualquer decisiio do goveno, Por isso, os ideais de conduta propostos pelos homens de Estado devem ser colocados no seu contexto exacto: ja nao represen- tavam a prética, mas o ideal do exerefcio do poder; e, como Maquiavel sublinha com clareza, exprimiam ideais em que provavelmente acreditavarn mas que, regra geral, nio teflectiam 0 mundo real. Dai deriva que os princfpios em que diziam basear a sua actividade eram muitas yezes mais um exercfcio académico do que 0 reflex do que realmente faziam. Os his- toriadores garantem solenemente que a era obrigatoriamente citada por Riche- licu ¢ Olivares como principio basilar da acco, e que Richelieu insistia em «fazer tudo de acordo com a raziion, Como acontece com a maior parte das outras grandes verda- des enunciadas pelos politicos, 0 que surpreende 6 0 nosso empenho em registé-las, porque é evidente que os homens de Estado nao podiam afirmar que agiam contra a 15 avo, Na pratica, os homens de Estado do periodo barroco continuaram a agir dentro de parametios substancialmente medievais. A érea da sua competéncia politica estava tio rigidamente delimitada que no admira que se considerassem artesaos, protissio- ais que trabalhavam com poucos e grosseitos materiais de base ¢ fabricavam um pro- duto aceitavel. Sob este ponto de vista, a referencia ao «oficio» de governar é legf- tima. O imaginario da época confirmava esta concepeao ao utilizar, por exemplo, termos médicos para designar 0 objecio material da governacao (era como um «corpo» que devia ser preservado da doenca), ou termos néuticos (um «nayio» que devia ser guiado longe dos perigos). Em ambos os casos, 0 homem de Estado era um profissio- nal que tinha de aprender e por em pratica alguns preceitos de base que, se fossem cor- rectamente aplicados, se convertiam numa arte. Os escritores da época barroca propdem constantemente conceitos deste tipo. Os manuais sobre a gestio do Estado no século xv foram escritos para os principes; no século xvi, com o alargamento das perspectivas sobre © poder, as instrugdes pas- saram a destinar-se no $6 aos detentores nominais do poder mas também aos detento- res efectivos. Comegou-se portanto a escrever acerca dos homens de Estado e, o que € ainda mais importante, eles proprios comegaram a eserever acerca da sua profissdo. Daf resultaram obras fundamentais como as Memorie ¢ o Testamento Politico de Richelieu, ou o programa de De Witt, como é apresentado na prosa de The Interest of Holland, de Pieter de Ja Court, que nos dao indicios importantes acerca do modo como os estadis- tas concebiam a obra de governo. Entremeados de perspicazes comentérios, nunca fal- tam apelos rituais: no dominio da teoria, eram afirmagées da necessidade de «justiga>, ¢, no domfnio dos negécios estrangeiros, eram dentincias dos inimigos da coroa. Como qualquer outro artesio, o homem de Estado necessitava de uma orientagaio de fundo a por em prética num perfodo em que nao existiam programas politicos partidarios, e € significativo que se sentissem mais felizes para proteger escritores dispostos a elabo- rar ideias em seu lugar do que por exprimir directamente as suas préprias ideias. Mesmo Olivares, a quem decerto nao faltavam ideias acerca da gestio do Estado, costumava servir-se de maximas extraidas de autores antigos, utilizando-as em todos os momen- tos de crise, e por vezes de uma forma nao totalmente adequada. Nao se sabe até que ponto acreditava nelas, na medida em que, depois, observava a tealidade concreta e considerava que «a arte de governar nao consiste em ser-se particularmente engenhoso mas na rectidéo ¢ no concretismo». A Castela de Olivares constitufa uma excepgiio ja que era o tinico Estado europeu que encorajava um grande ntimero de escritores, os famosos arbitrisias, a dar sugesiGes 20 governo que se encontrava em fungdes. Infelizmente, como acontece com qualquer «meméria» escrita por politicos, o his- toriador no pode satisfazer-se com as aparéncias e tem de penetrar mais fundo, & quanto mais cavamos no submundo da politica europeia do século XVII, mais se torna evidente que a efectiva importincia do «grande homem» é mfnima e que, como Brau- del notava a propésito de Filipe II, «ele parece-nos prisioncio de wm destino contra 0 qual pode muito pouco, fixo numa paisagem em que as infinitas perspectivas da lon- gue durée esto muito atras ¢ muito a frente dele». © papel do estadista prossupde um Estado nagiio, mas, na Europa barroca, o Estado moderno quase nio existia. O context que provocou a reflexio de Maquiavel era a cidade-Estado, ¢ 0 que ele imaginow foi o exercicio da politica numa Itélia recheada 16 de prineipados onde a vontade do principe se impunha facilmente. O «governo do Estado» consistia, essencialmente, no exerefcio da politica no seio da cidade-Estado. Por conseguinte, ndo havia uma ciéncia conhecida acerca de como governer entida~ des maiores que ainda no existiam, Se a Inglaterra possufa uma unidade reconheci- vel que derivava do facto de ser parte de uma ilha, nenhuma outra nagao conseguira ainda a identidade que o nome sugeria: a Franga, a Espanha, a Tidlia ea Alemanha néo eraim realidades, mas conceitos, definidos por vagos limites geograficos ou pouco mais. Os trés tiltimos paises nfo passavam de um aglomerado de Estados auténomos, mas mesmo em Franga havia uma evidente falta de unidade nas leis, no governo, nas juris dicdes, nos impostos ¢ na lingua; os parisienses que se dirigiam ao Sul tinham de se servir de um intérprete até para as necessidades mais simples. O objective de uma grande parte dos textos te6ricos dos infcios do século xvi foi tentar definir os tragos de uma identidade. Mas como era possivel atingir esse objectivo? Como se podia mani- festar interesse pelo Estado nacao, se ele nao existia? Existia 0 termo «nagio», mas 0 que significava? Ronsard tinha escrito: Lespagnol I'Espagne chantera L?italien les Italies fertiles, Mais moy, francoys, la France aux belles villes: Nestas palavras, a nacdo surge-nos como pouco mais do que objecto de um senti- mento patridtico, 0 que, na auséncia de estruturas politicas concretas, talvez soja maximo que, na época, se podia conseguir. Todavia, esse sentimento nem sempre signi- ficava fidelidade. Richelieu, no seu Testamento, lamenta-se: «J4 nao ba guerra contra a Franca sem um francés do lado do inimigo.r Na verdade, para o estadista da época barroca, © sentimento patriético valia menos do que uma firme fidelidade 4 monar- quia, Olivares afirmava: «Eu no sou nacional; isso é coisa de criangas>, considerando que a unidade dependia da coroa ¢ no de um mero sentimento, No entanto, o senti- mento também teve o seu papel: em 1635, quando o patriotismo se tornou necessario para a mobilizagio contra a Franga, que tinha acabado de declarar guerra, Olivares confessou que «repunha a sua confianga na nacdo». ‘A enacdo» simbolizava naturalmente um sentimento pelo proprio pafs acima e con- tra os outros parses, ¢ no se inseria facilmente na ieoria polftica comum. Embora nunca tivessem permitido que esse conccito lhes escapasse das mios, os estadistas, ao utiliza- rem a ideia de Estado, costumavam referir-se mais a uma entidade chamada «povo», Oli- vares afirma que «é sempre importante ouvir a voz do povo», afirmagiio que néio passou da teoria, j4 que o conde-duque se mostrou sempre abertamente hostil as assembleias representativas. O ponto de vista de Richelieu é ainda mais incisivo: «Todos os estudio- sos da politica concordam com 0 facto de que, quando a gente comum usufrui de dema- siado bem-estar, se torna impossivel manté-la em paz.» O mais conservador de todos tal- ver tenha sido Cromwell, 0 revoluciondrio, que era um irredutivel opositor de qualquer apelo a favor do povo, ¢ sobretudo daqueles que nao dispunham de bens, desses chomens cujo tnico interesse € respirar». Os politicos admitiam que a sua isso era servir 0 povo, mas também concordavam que 0 pov nao devia ter qualquer voz em politica. A caracteristica fundamental dos maiores estadistas da época barroca era a total coincidéncia dos seus interesses com os do principe, que, para eles, era o Estado. 17 O principe era considerado como a base do Estado, visto que era nele que se concen- irava todo 0 poder; dai que o estadista fosse, acima de tudo, um servidor do principe Segundo a concepgdo que comegou por se afirmar no Renascimento, o estadista nao era um demiurgo mas apenas um servo do corpo politico: para Maquiavel (O Prin- cipe, XXII), «aquele que tem nas mos 0 Estado de alguém nunca deve pensar em si mas no principe, ¢ nunca the deve recordar coisas que nao Ihe digam respeito». Na Spoca barroca, o fermo «Hstado» ainda ndo tinha para muitos qualquer significado sendo como referéncia ao principe: no vocabuldrio de Olivares, nunca aparece com © significado de governo, e 0 proprio Richelieu utiliza-o no sentido de «dominio, ordem estabelecida para mandar ¢ obedecer». No inicio da época moderna, todas as fungdes de Estado cabiam ao principe; as suas finangas pessoais (que na Inglaterra, em finais da Idade Média, cram designadas por household, administragio doméstica) eram as do Estado, ¢ todas as suas declaragdes de guerra envolviam 0 Estado. Todo o poder estava investido nele, que era o homem de Estado por exceléncia, e os que 0 ajuda- vam a governar (os «ministros») eram seus servidores e dependiam apenas da sua von- tade, Esta concepeao totalmente pessoal do poder predominou durante todo 0 século xvii ¢ teve a sua expresso mais elevada na doutrina do absolutismo. Na reali- dade, 0 conceito de poder pessoal do principe comportava implicitamente algumas res- tricdes, mas, em tltima andlise, também concorriam para reforgar a sua autoridade absoluta. A fidelidade ao principe cra o valor supremo para qualquer primeiro-ministro de uma monarquia. Mazarino foi o seu exemplo mais notério, Embora tivesse comple- tado a obra de Richelieu ¢ tivesse sempre zelado pela sua sobrevivéncia e pelo seu bem-estar, 0 finico objective que pretendeu atingir durante toda a sua carreira foi o reforgo da monarquia; paradoxalmente, 0 conselho mais significativo que deu ao seu pupilo Lufs XIV foi que o principe deve ser o estadista de si proprio e prescindir dos servicos de um primeiro-ministro. Declarar que os estadistas eram supérfluos se 0 Estado atingisse os seus objectivos era a meta mais insigne de um homem de Estado. Se existia uma arte do Estado, uma ciéncia da governagdo, o principe devia aprendé- la, e, por conseguinte, o homem de Estado tornava-se seu tutor. Richelieu ¢ Olivares tinham consciéncia de que fazia parte dos seus deveres aconselhar ¢ instruir 0 rei, e 0 castelhano acabou por ser especialmente recompensado, dado ter sido sob a sua direc- fio que Filipe IV se tornou um excelente cavaleiro e um habil linguista (em francés). Mazarino desempenhou ainda mais eficazmente a sua missio, entre 1653 e 1661, quando teve ao seu cuidado a educacio politica do jovem Luis XIV. Foi mais além: chegou mesmo a arranjar para 0 futuro Rei-Sol todos os elementos do governo cen- tral, ou seja, Le Tellier, Fouquet, Lion ¢ Colbert, que criaram as bases do desenvolvi- mento do seu Estado. A relacdo entre o primeiro-ministro € o rei era de tipo pessoal, uma relagao de ser- vidor e patrao: como nao era reconhecida pela tradicao, em Franga, foi objecto da intensa hostilidade expressa pelos libelos da Fronda. Em Espanha, durante o século xvi, © cargo de primeiro-ministro regeu-se pelo sistema dos validos: Olivares e Lerma foram validos e por isso a sua autoridade dependia directamente da vontade real. Os ministros eram totalmente devotados a pessoa do rei, e antepunham essa fideli- dade a qualquer outro interesse politico, embora, naturalmente, afirmassem que toda a politica racional e aceitavel nao podia deixar de coincidir com 0 interesse do rei. Oli- 18 vares afirmava que «quando o principe toma uma decisao, o ministro deve esquecer-se totalmente do seu ponto de vista e admitir que estava errado». Segundo Richelieu, «o interesse piblico deve ser 0 tinico objectivo do principe ¢ dos seus conselheiros», mas, na pritica, arranjava-se sempre maneira de fazer coincidir os interesses das trés partes, apoio de Olivares & construgio do luxuoso paldcio e dos jardins do Buen Retiro des- tinados ao rei Filipe, projecto considerado pelos contemporaneos como «fantasia do conde-daque», é uma demonstragio dos esforcos levados a cabo pelos ministros para promoverem o papel pessoal do soberano. O notivel contributo de Richelieu para a beleza de Paris foi o sumptuoso Palais-Cardinal, acerca do qual Corneille escreveu: L’univers entier ne peut rien avoir d’égal Aux superbes dehors du Palais-Cardinal As afirmagoes de dedicagao ao servigo do Estado nao equivaliam A declaragio de uma politica porque, por definicAo, os estadistas no podiam ter outra politica senao a do Estado. A célebre asserciio de Richelieu no seu Testamento a propésito da tripla tarefa que tinha diante de si — exaltar o rei, submeter os nobres e reprimir os protes- tantes — era mais uma reflexdo pdstuma do que uma afirmagao de intengdes, Hoje reconhece-se que, na prética, nenhum aspecto da politica praticada pelos homens de Estado era, ou pretendia ser, original. As medidas de politica interna ¢ externa de Richelieu eram, sob todos os aspectos, herdadas dos seus antecessores; a politica de alianga com os luteranos no exterior, por exemplo, jé tinha sido iniciada por Francisco I. E Olivares também no foi mais do que o herdeiro dos arbitristas e de uma longa tradigao de reformismo em Castela. ‘Como os cargos politicos assentavam em bases pessoais, teoricamente os minis- tros nao assumiam o poder pensando em programas de reformas; todavia, de facto, tinham sempre em mente uma escala precisa de prioridades, embora as intengoes for- mais apontassem para a preservacdo do sistema politico existemte. Conhecidos em geral como «primeiros» ministros, os servidores do Estado nao tinham um titulo corres- pondente as suas fungSes. A partir de 1629, Richelicu foi denominado «ministro prin- cipal», mas 0 titulo jd existia anteriormente; Olivares costumava definir-se como «o fiel ministro do rei». Jan de Witt era considerado apenas como pensionétio da Holanda, uma espécie de secretério dos «Estados» da Holanda, mas, na prdtica, controlava os assuntos politicos da Holanda e das Provincias Unidas e, além disso, desempenhava um papel predominante na politica externa. A funcao exercida por qualquer um des- tes homens de Estado nao era formalmente reconhecida pela constituigao dos respec- tivos paises, pelo que nao admira que estivessem convencidos de que se tratava de wma fungao extraordindria, na medida em que implicava deveres e obrigagdes para com todo o Estado, e na medida em que toda a hostilidade que provocavam se ficava a dever a esse facto. Em 1630, Richelieu afirmava: «Nao tenho inimigos pessoais, e nunca ofendi ninguém senfio para servir o Estado.» Mazarino constitui um exemplo excepcional de devogiio 4 coroa — a sua fideli- dade ao rei nao tinha limites —, mas, nos seus primeiros anos como ministro (ainda leigo, apesar de ter sido nomeado cardeal por servigos prestados a Roma), revelou-se demasiado dedicado a rainha-mae, que, por altura da morte de Lufs XIII, tinha 43 anos era ainda uma atraente ¢ fascinante dama espanhola. Hm 1644, quando Mazarino 19 adoeceu, houve quem criticasse 0 facto de «a rainha ter ido visitar o cardeal todos os dias e varias vezes por dia, com tanta solicitude que todos aproveitavam a ocasifio para dizer mal». E esta relag&o, que parece nunca ter sido intima, provocou algumas das mais ferozes Mazarinades. ‘Estariam os estadistas preparados para ter ideias? Todos tiveram uma boa instru- gio, incluindo um burgués como Cromwell, que frequentou a escola da sua aldeia e passou depois um ano em Cambridge, onde, enfadado com as ciéncias humanas, pre~ feriu a matemética. Olivares € um caso especial porque frequentou durante dois anos a universidade, em Salamanca, onde porém nio hé provas de ter feito alguma coisa; abandonouw a universidade quando pai o chamou para ocupar 0 lugar deixado vago pela morte do seu irmao mais velho. Outros, para além da educago escolar elemen- tar, tiveram também a possibilidade de viajar. O primeiro de todos foi provavelmente De Witt, que, em 1645, acompanhou o pai A Escandingvia e que, nesse ano de 1648 tio cheio de acontecimentos, efectuou na companhia de seu irmAo Cornelis 0 Grand Tour pela Franca e Inglaterra, onde teve o curioso privilégio de se encontrar com Carlos I, quando 0 rei estava sob a custédia do Parlamento. Richelieu nunca deu muita importancia a instrucao, e descurava o uso de maximas (a que Olivares recorreu com: muita frequéncia), que, na sua opinido, se adequavam apenas a «mentes pedantes>; para ele, os requisitos de um estadista cram: «espirito firme, opinides firmes, um conhe- cimento razoavel da literatura, ¢ conhecimentos gerais accrea da hist6ria e da organi- zagao dos Estados de todo o mundo ¢ sobretudo da sua patria». O modelo tedrico dos homens de Estado da época barroca era 0 absolutismo, dou- trina que, sob varias formas, triunfava em toda a Furopa, condicionando opinides instituigdes, Fundamentalmente, 0 absolutismo exigia que 0 soberano nao reconhe- cesse a existéncia de nenhum superior a face da terra, preceito esse que nascera como resposta a instabilidade politica e as crises sociais de finais do século xvi. O problema era gue a doutrina se alicava a varios tipos de soberania e que a discussao acerca do proprio conceito de soberania se mantinha em aberto, Por exemplo, alguns pensado- res cat6licos defendiam que, embora fosse absoluto, o poder dos principes dependia do consenso popular, criando assim um conflito entre 0s direitos dos governados ¢ os deveres dos governantes; e mesmo em Franga, onde a doutrina do absolutismo teve maior sucesso, os tedricos afirmavam que o principe absolutista estava limitado nao 86 pelas leis fundamentais mas também pelos direitos da seligidio e da propriedade © absolutismo comecou por ser uma teoria do poder do principe e por isso, apa- rentemente, nfo abrangia os ministros do Estado, mas, na pratica, eram eles que 0 apoiavam. Apesar das crises do Estado nos cinquenta anos anteriores, no inicio do século XVII restabeleceu-se a confianga na monarquia e o poder do rei aumentou: 0 €xito total de Richelieu como ministro conferiu & coroa uma autoridade ¢ um poder de iniciativa que nunca tinha possufdo. A ascensao constante do absolutismo em Franga suscitou violentas reacgdes por parte de muitos, quer na Inglaterra quer nas Provin- cias Unidas, mas sem que houvesse diferengas substanciais quanto & natureza do governo. Quando o Parlamento inglés derrubou aquilo que considerava o sistema abso- lutista dos Stuarts, substituiu-o por uma forma de governo ainda mais absoluto, recla- mando (declarago do Rump Parliament de 1649) poderes ilimitados e 0 direito de promulgar leis sem 0 consentimento do povo. 20 Os homens de Estado republicanos nao eram imunes a simpatias mondrquicas. Por volta de 1650, Cromwell achava que uma solucdo que tivesse «em si algo do poder mondrquico» seria a melhor para a Inglaterra; e, em 1652, quando o debate sobre a direcgao do Estado atingiu um ponto morto, o mesmo Cromwell, revelando a Buls- trade Whitelocke as suas reflexdes, afirmou: «O que aconteceria se um homem acei- tasse tornar-se rei?» Mesmo nas Provincias Unidas, que sfio para nés a imagem de uma tipica repiblica da era moderna, 0 conceito de realeza mantinha-se vivo e favorecia a causa dos principes de Orange. O proprio Jan de Witt, o grande inimigo da casa de Orange, também nio era alheio A ideia da monarquia. $6 era «republican» no sen- tido da sua fidelidade ao Estado e opunha-se firmemente ao partido dos orangistas, mas, de facto, se tivesse nascido numa monarquia, té-la-ia servido com a mesma fide- lidade, e censurou um dos seus amigos ingleses que denegria a monarquia do seu pats. Para além disso, De Witt era um firme defensor da oligarquia e — na medida em que partilhou as ideias de Pieter de la Court ¢ foi defensor do seu célebre tratado The Inte- rest of Holland (1662) — abertamente antidemocrético. Na sua obra, De la Court exclufa da participagao na politica mulheres ¢ servos, invélidos e pobres, — aalsar 9 modo como as provincias podiam colaborar com o centro, devemos ter presente que, de facto, todos os nossos estadistas foram derrotados pelas pot cias, Embora 0s europeus possam ter sentido algo pela sua propria nagao, eram ainda mais leais & sua provincia, e as elites locais sentiam uma certa relutincia em obede- cer a politica da capital. O facto de De Witt nao ter conseguido que as élites possui s~ sem Um interesse comum apressou a sua queda. Talvez ainda mais digna de nota foi a incapacidade de Cromwell em cheger a um acordo; desde o infcio que nunca pode contar com o apoio das zonas periféricas da Inglaterra, a Escécia ¢ a Irlanda, ne a pior derrota que sofreu proveio das elites das provincias inglesas, ¢ 0 unico meio - persuasio que pode oferecer acabou por ser a forga bruta. Olivares hostilizava as cli- tes ndo castelhanas, ¢ néo admira que, por fim, mesmo essas 0 tivessem. abandonado, com a traigdo de Medina Sidénia na sua prépria patria, a Andaluzia, momento amargo para um homem cujas aspiragdes nunca se limitaram a uma simples provincia, Richelieu — apesar da sua clientela — e Mazarino também cafram pelo mesmo motivo. A Fronda é um comentétio adequado a incapacidade revelada pelos estadis- tas em colocar os interesses do Estado acima dos interesses da provincia. Em meados do século xvit, a provineia auténoma — Holanda, Provenga, Catalunha — continuava a ser a unidade politica de base da Europa modema; a nagao comeava a formar-se mas, nessa altura, ainda nao estava no horizonte. E, em 1660, Lufs XIV ainda teve de cercar a cidade rebelde de Marselha, que em vao pediu ajuda a Espanha. A politica externa era 0 campo de acgao que tanto 0s reis como os ministros con- siderayam como a sua especialidade suprema. Todos os estadistas eram imperialistas sonscientes. A politica implicava 0 exereicio do poder, mas a politica externa era 0 supremo exerefeio do poder. Maquiavel nao declarou (O Principe, XIV) que a arte da guerra «6 a tinica arte que se espera de quem comanda»? No perfodo barroco, mais de trés quartos das receitas do Estado eram, em gerai, gastas na guerra ou na sua prepa- ragio, e a politica externa era inevitavelmente a maior preocupacao do estadista. As intengées agressivas dos politicos exprimiam-se em termos de apoio da digni- dade do soberano. Em 1625, Olivares afirmava: «Sempre desejei ver Vossa Majestade 27 usufrnir no mundo de uma fama id€ntica 2 Vossa grandeza e qualidade»; Richelieu amunciaya ao sew rei que um dos seus principais interesses era «colocar a Vossa repu- tacdo entre as nagdes estrangeiras no nivel que the € devido». Em 1629, Richelieu tam- bém afirmava que «é dificil, para um principe, ter grande reputacdo e viver em paz, dado que muitas yezes a defer$ncia do mundo 86 se obtém com grandes feitos». Neste perfodo da Histéria, a reputagio de um rei ja ndo tinha de ser conquistada com acgdes pessoais, embora Luis XIII tenha participado activamente nas campanhas de 1620 con- tra sua mae e depois contra os huguenotes. A presenga de Filipe IV entre as suas tro- pas foi uma mera formalidade. A mais célebre excepeao ao cada vex menor papel dos soberanos nas operacdes militares foi o grande protestante Gustavo Adolfo da Suécia, 0 «Ledo do Norte», . Tal como os seus senhores, os estadistas consideravam que a honra devia ser con- quistada no campo de batalha. De Witt fora educado nas artes da paz. e tem de ser considerado como uma excepgao, mas surpreende que um fidalgo espanhol como Oli- vares néio possufsse qualquer experiéncia pritica da guerra, O chanceler sueco Axel Oxenstierna era mais um administrador do que um soldado, mas acompanhou o seu reie tomou muitas decisdes referentes 20 exército; portanto, na pratica, teve uma expe- riGncia vasta e directa do campo de batalha, Na sua qualidade de homem da Igreja, no se esperava que Richelieu fosse um soldado, mas pela forma brilhante como che- fiou pessoalmente 0 cerco de Marselha, em 1628, merece sem divida ser reconhecido como tal. Cromwell foi, sob todos os pontos de vista, o maior soldado da sua época. No século xvu, a politica interna limitava-se essencialmente A manutencio da lei ¢ da ordem ¢ por isso a maior parte das energias dos estadistas centrava-se nos neg6- cios estrangeiros: nao é por acaso que as biografias classicas de De Witt, Olivares ou Richelieu incidem mais no seu papel no dominio internacional. Por definicAo, esse papel era agressivo. O que foi desempenhado por De Witt pode nao o parecer, ja que sob 0 seu governo a repiiblica tentou evitar a guerra para poder sobreviver, mas a sua diplomacia foi decididamente agressiva, seguindo assim 0 modelo corrente. Apesar do seu temperamento pactfico e da sua politica prudente, foi durante o seu ministério que a reptiblica se viu mais ameacada, e a sua queda ficou provavelmente a dever-se a politica externa: a ameaca da Franca. Como 05 estadistas punham em jogo a sua reputacZo com a politica externa, foi por essa politica que os historiadores os julgaram e poucos emergem com uma repu- tago sem macula, O mais desastroso de todos foi Olivares, cuja tentativa de salvar a roputagéio de Espanha naufragou juntamente com o seu préprio prestfgio na guerra de Mantua, em 1628. O fracasso de Olivares era também o fracasso de toda a experién- cia imperial espanhola: dilacerada por compromissos esmagadores e recursos inade- quados, a monarquia nao «caiu» mas também nao foi capaz de responder ao desafio. Além disso, a redescoberta crescente de uma identidade prépria nas vérias partes do reino, como por exemplo na Catalunha, em 1640, ou em Népoles, em 1647, ameagava destruir a premissa sobre a qual Olivares operara, ou seja, que todos os reinos coope- rassem mais estreitamente com Castela. O fracasso da politica externa provocou o fra- casso interno, Talvez se possa estabelecer um confronto com a situacio na Suécia, que os mesmos anos tentava concretizar no exterior um sonho imperial que nao podia ser justificado pelos limitados recursos de que 0 governo dispunha. Quando, em 1632, Oxensticrna afirmava que a tinica instalagZo imaginavel na Alemanha era «com os 28 nossos pés sobre o pescogo deles e uma faca nas suas gargantas», utilizava uma lin- guagem que os estadistas posteriores continuaram a adoptar, mas que desapareceu com a queda do império em finais do século. Pelo contrario, 0 fracasso de Cromwell na cena mundial foi mais aparente do que real, € 0 tinico aspecto do seu governo que é recordado positivamente € a politica externa. Em 1667, Samuel Pepys anotava que os seus contempordneos «o elogiavam por ini- meros actos de coragem ¢ por se ter feito temer por todos os principes vizinhos». Em 1672, 0 embaixador holandés disse a Carlos II: «Cromwell era um grande homem, cra temido em terra ¢ no mar». Permitia que os ingleses se sentissem orgulhosos com 0 renovado poder dos seus exércitos (contra os escoceses, em Dunbar, e os espanhéis, em Dunquerque) e da sua forga naval (a derrota dos holandeses, a tomada da Jamaica na, aids, desastrosa expedicao as Indias Ocidentais, a captura da frota espanhola da prata por parte de Blake, em 1657). Cromwell deu aos ingleses uma estratégia mundial que desafiava nao $6 os seus concorrentes no comércio, os holandeses, mas também o seu inimigo ideoldgico, a Espana: uma perspectiva que criava as bases do futuro impé- rio britanico. A sua aceao imperialista parece muito mais excepcional por ter sido tao curta e por ter sido seguida pela inepta politica externa dos seus sucessores De todos os estadistas da época, Richelieu é 0 tnico que beneficia da opiniao favo- rével tanto dos seus contemporineos como dos historiadores, ¢ quase exclusivamente pela sua agressdo, ou seja, pelo seu contributo para a grandeza da Franga, e acerca desse facto no ha quaisquer ctividas. ‘Tapié termina assim a sua obra acerca do perio- do de Luis XII 2 de Richelieu: «A Franca de 1643 € bastante maior de que a Franga de 1610, estende-se muito para lé do vale do Somme até a0 planalto de Artois. Domina a Lorena e a Alsdcia, Metz, Nancy, Colmar ©-as pontes do alto Reno, Tem um pé na Italia, ocupa o Rossithao e protege a Catalunha. Gra- as A sua alianga com Portugal, introduziu-se na Peninsula [bérica, O restabelecimento do seu poder marftimo permite-Ihe fazer comércio do Mediterraneo, no Atlantico c nos mares do Norte. Possui colénias no Canadé e nas Indias Ocidentais. Existem agéncias comerciais francesas na costa do Senegal e em Madagascar. Em menos de vinte anos, a Franca conyerteu-se num pais da maior importancia no plano mundial.» A histéria dos triunfos estava apenas no inicio, ¢ o lucro era pequeno em compa- rag&o com 0 que a Franga conquistaria nos cinquenta anos seguintes. Para aqueles que, hoje como entio, consideram tudo isso como 2 acgao consciente de um tinico homem, a posig&o de Richelieu acima de qualquer outro estadista da sua época mantém-se indis- cutivel ‘A aventura imperial tinha um preco, e os estadistas eram indubitavelmente res- ponséveis pelo crescente agravamento de impostos e encargos. Na época de Riche- lieu, os impostos quase quadruplicaram; em Castela, no tempo de Olivares, duplica~ ram; ¢ as despesas de guerra da Suécia levaram o Tesouro a bancarrota. O resultado efectivo das vitérias na politica externa era a pobreza crescente, que so manifestava sobretudo nas periédicas revoltas populares que grassavam nos campos franceses durante os anos de guerra dos dois cardeais, Todavia, a miséria do povo no era um conceito capaz de perturbar o vocabuldrio dos estadistas, e a guerra era venerada como contributo para a honra do Estado, sem se ter em conta as suas repercussées sobre aqueles que pagavam com os seus impostos ou com a sua vida. Algum tempo depois, 29 ) Lufs XIV afirmou: «Nada entristeceu mais a minba alma do que ter sobrecarregado fio pesademente os meus povos com o enorme fardo dos impostos.» Os éxitos de Richelieu jé o tinham feito, mas ele pr6prio teve de sobrecarregar ainda mais 0 con- tribuinte francés. Dado nao fazerem parte, como os politicos modernos, de uma estrutura que reflec- tia opinides ou consultava os seus apoiantes, os estadistas do perfodo barroco estavam completamente afastados das actividades didrias do corpo politico, e 86 confiavam num cfrculo restrito de conselheiros, Nao tinham de se justificar perante um eleito- rado, thas apenas perante a Histéria, ¢ por conseguinte nao recorriam a uma das mais poderosas armas do Estado moderno, a propaganda, que ndio desempenhava qualquer funcao oficial na politica. Instrumentos de controlo social, como o piilpito, eram reco- nhecidos como tal e desempenhavam © seu papel, mas a imprensa ainda nfo era um instrumento de Estado. Todavia, estranhamente, a propaganda comegava a ser usada para justificar o estado de guerra, ¢ atingiu o seu apogeu na volumosa literatura de panfletos, optisculos e folhas volantes que apareceram durante a Guerra dos Trinta Anos. Muitos Estados ‘europeus tentaram criar uma imprensa propagandistica precisamente devido & guerra, A célebre «Gazette de France» de Richelieu (1631) nao se ditigia & opiniao interna mas 2 opinido europeia; o seu campo de referéncia era a politica externa, ¢ o facto de © seu director, Renaudot, ser protestante influenciava os inéimeros aliados luteranos do cardeal. Na Inglaterra de Cromwell, a imprensa era em larga medida controlada pelo secretario de Estado, Thurloe, cuja esfera de autoridade incluia os negécios estran- geiros: por volta de 1650, sobreviviam apenas dois jornais, ambos porta-vozes do governo. O reduzido papel da propaganda teve uma excepgao mais notoria: pela pri- meira vez na hist6ria europeia, durante as subleyag6es revolucionérias de meados do século em Londres, Paris Barcelona, houve grupos da oposigao que se serviram da imprensa para atacar a politica do Estado, dando-nos assim uma das mais ricas colec- t€neas de opinides de que os historiadores podem dispor. Em finais do século xvu, comeca @ reconhecer-se a importancia da propaganda, Na Holanda, De Witt € obri- gado a utilizar materiais impressos contra 2 poderosa oposigao, ¢ 0 Interest of Holland de De la Court é «concebido para realgar a exceléncia do governo dos Estados Gerais contra a reprovavel natureza do governo dos stahouders», ou seja, a casa de Orange. Portanto, 0 povo comegava a penetrar nos sagrados mistérios do poder, mas esta- va-se numa época pré-democratica e, em épocas de crises ou de insucessos, os esta- distas ndo se voltavam para o povo, mas para Deus, e s6 perante Ele achavam que deviam justificar as suas acgées. A estreita relagdo que os estadistas catélicos manti- nham com Deus era genuina, mas parece um tanto distante se comparada com a inti- midade professada pela parte contréria, protestante. E provavel que nenhum tivesse uma relagio tdo estreita com Deus como Oliver Cromwell, Em 1649, um dos sous opo- sitores leveller afirmou: «Mal se alude a qualquer coisa diante de Cromwell, ele pée a mao no peito, levanta os olhos e invoca Deus por testemunha; chora, berra e arre- pende-se a0 mesmo tempo que te apunhala no coracHo.» Deus e a providéncia apare- cem em todos os discursos € textos, traco caracteristico da tradigao puritana inglesa mas de particular evidéncia no Lord Protector, que remetia toda a sua politica para Deus, considerava todas as suas vitérias como «benevoléncias» de Deus e que, em 30 1654, dava inicio a uma reunigo do Conselho de Estado com estas palavras: «Deus trouxe-nos aqui apenas para reflectirmos sobre 0 trabalho gue podemos fazer no mundo.» Quais foram entao os éxitos dos grandes homens desta época? Todos enfrentaram terriveis oposic&es, e pode dizer-se que s6 Richelieu ¢ Oxenstierna € que conseguiram cumprir os seus programas. A oposigao ndo era apenas dura e constante, mas também. pessoal (De Witt foi vitima de uma tentativa de assassinato enquanto exercia fungées e acabou por ser assassinado, Richelieu fez malograr pelo menos oito conspiragées contra a sua vida), apesar de Richelieu afirmar que os scus tinicos inimigos eram os inimigos do Estado. Seria ingénuo imaginar que as suas fraquezas de carécter n&o influfam na criagZo de oposigdes. Muitos dos que partilhavam as opinides de Crom- well acusaram-no depois de ser desleal; um escocés definiu-o como «dissimulador grosseiro e grande mentiroso». Lima grande parte da campanha contra Mazarino pro- vinha de uma antipatia pessoal por ele, e as Mazarinades eram frequente e violenta- mente pessoais. Un vent de fronde a soufflé ce matin; Je crois qu'il gronde contre le Mazarin, A grande quantidade de Mazarinades (sobrevivem mais de cinco mil) séo uma pre- ciosa fonte de opiniées acerca dos males que cram atribuidos aos homens de Estado, sobretudo porque, atacando Mazarino, muitos pretendiam atecar expressamente Riche- lieu. De que o acusavam? De ser estrangeiro, italiano; de falar francés com um sotaque terrivel; de introduzir gostos italianos (a 6pera) e vicios italianos (os libelos obscenos acusavam-no unanimemente de sodomia); de ser um tirano, como Richelieu; de ter abu- sado das finangas piiblicas em seu proveito; de ter enriquecido, como Richelieu Os politicos tinham de ter costas largas para suportar a critica, ¢ tinham de ser tole- rantes pelo mesmo motivo. Em Franca, 0 préprio Estado era obrigado a tolerar os hugnenotes, € a reflexdo de Richelieu no seu Testamento —~ «a prudéncia no permite nada de to ousado que faca correr 0 risco de se colher 0 griio ao mesmo tempo que a erva daninha» — era apenas uma elegante réplica daquilo que muitos franceses céle- bres tinham dito antes dele, A alianga com Estados protestantes fez aumentar, natu- ralmente, 0s motivos para se ser tolerante, mas o cardeal nao se limitou a tolerdncia passiva, associando-se intimamente a intelectuais huguenotes como Conrart, a quem confiou a criagdo da Academia de Franga. Embora parega estranho, também Olivares se deve incluir entre os que revelaram tendéncia para ser tolerantes: para ele, 0 pro- blema néo era tolerar os protestantes, porque nZo os havia, mas era sensivel As injus- tigas sofridas pelos individuos de origem judia, e em muitas ocasides manifestou a sua oposicao as discriminagoes culturais de qualquer espécie. Na Inglaterra e na Holanda, as tradicdes beatas rivalizavam com as libertitias, ¢ tanto Cromwell como De Witt defendiam a liberdade. O Lord Protector, apesar da feroz repressao dos catélicos irlan- deses, declarou repetidamente a sua hostilidade a qualquer espécie de coacgiio reli- giosa. «Nao me intrometo — disse — na consciéncia de nenhum homem, se, para vés, 3 liberdade de consciéncia é a liberdade de celebrar missa»; a afirmagiio fixava o prin- cfpio ¢ 08 seus limites. Nao compreendis a rigidez dos protestantes, e em 1650, num célebre apelo aos escoceses calvinistas, inciton-os a «considerar a possibilidade de estarem errados». Em 1654, lamentava a dificuldade de se conseguir a liberdade reli- giosa: «Todos desejam ter liberdade, mas ninguém quer concedé-la.» Segundo um dos seus bidgrafos, De Witt «no queria fanatismo, e nfo conseguia perceber porque é que as teorias agitavam tnato os homens». Embora nao fosse favo- ravel & diversidade de opinides, era tolerante com os catélicos, os menonitas ¢ os judeus, minorias que mais problemas Ihe causaram ao longo da'sua vida politica. ‘A reptiblica holandesa tinha imposto o credo calvinista de uma minoria a uma popu- Jago maioritariamente catélica, mas De Witt, embora os apoiasse teoricamente, nunca fez nada para reforgar as intolerantes leis anticatélicas, o que Ihe valeu ser conside- rado urn hipécrita pelos calvinistas fandticos. Foi justamente no perfodo em que De Witt era pensionaria, que o diplomata inglés Sir William Temple fez a sua famosa obser- vacéio —

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