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Coleção FILOSOFIA
./
PAULUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reale, Giovanni
Corpo, alma e saúde: o conceito de homem de Homero a Platão/ Giovanni Reale ;
tradução Marcelo Perine. - São Paulo : Paulus, 2002. - (Filosofia)
Titulo original: Corpo, anima e salute : il conceito di uomo da Omero a Platone
ISBN 85-349-2012-5
Título original
Corpo, anima e salute: li conceito di uomo da Omero a Platone
© 1999 Raffaello Cortina Editore, Milão, Itália
ISBN 88-7078-550-5
Tradução
Marcelo Perine
Editoração
PAULUS
Impressão e acabamento
PAULUS
© PAULUS - 2002
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 85-349-2012-5
Se Febo não tivesse dado a vida a Platão na Hélade, como poderia ter
curado com as letras as almas dos homens?
Seu filho Asclépio é o médico do corpo, da mesma forma que o da alma
imortal é Platão .
Febo criou para os mortais Asclépio e Platão, um para salvar o corpo,
o outro para salvar a alma.
DIÓGENES LAÉRCIO, III 45
INTRODUÇÃO
CONTE ÚDOS, M É TODO E FINALIDADE
DA OBRA PRESENTE
1A. Gehlen, Der Mensch. Seine Natur und seine Stellung in der Welt, Wiesbaden 1978.
8 Introdução
4Nietzsche, X, 276 VII 2, 11. Aqui e doravante indicaremos em primeiro lugar a edição N aumann
=
Krõner, Leipzig 1894 ss. e . e m segundo lugar a correspondência na edição Adelphi, Milão 1964 ss.
5K. Jaspers, Nietzsche. Einführung in das Verstêindnis seines Philosophierens, Berlim 1974. As
referências às passagens de Nietzsche citadas por Jaspers são as seguintes: I 435-436 I 1, 404; VI
=
307 VI 1, 257; VII 391 VI 2, 296 s . ; VI 3 1 8 = VI 1, 267; VI 230 =VII 190 s . ; XIV 2 1 =VIII 1, 170.
= =
6K. Jaspers, Nietzsche, cit., p. 127. As referências às passagens de Nietzsche citadas são: XIII 276
=VII 2, 11; XIV 204 VII 2 , 271; VI 192 VI 1 , 159.
= =
10 Introdução
Sob certos aspectos poder-se-ia muito bem concluir, com uma metáfo
ra irônica de sabor platônico, que o homem de miraculum é visto como um
monstrum (e assim é o homem como super-homem em dimensão niilista).
Todavia, a afirmação nietzscheana que o homem é "animal não ainda
determinado" e, portanto, "carente" (ser ontologicamente intermediário),
12Gehlen, L'uomo ... , cit. , p. 46 s. A obra de Freyer citada é Weltgeschichte Europas, volume I, 1949,
p. 169.
12 Introdução
13E. Kant, Critica delta Ragion pratica, trad. italiana de V. Mathieu, Rusconi, na coleção "Testi a
fronte" (trad. bras . Ediouro, 4ª ed., 1998).
14Nietzsche, op. cit., 11, [72]; VIII 2 , p. 246 s.
15G. W. F. Hegel, Enciclopedia delle scienze filosofiche in compendio, § 379 , p. 637 da edição de V.
Introdução 13
Cícero publicada na coleção "Testi a fronte", Milão: Rusconi, 1996 (trad. bras. de Paulo Meneses, com
a colaboração de José Machado, 3 vols . , São Paulo: Loyola, 1995 ss.)
16U. Galimberti, Il corpo, Feltrinelli, Milão 19977•
17Galimberti, Il corpo, cit., p. 14.
18Galimberti, Il corpo, cit., p. 3 1 .
14 Introdução
2ºA nossa posição diante d e Platão poderá ser vista particularmente nas seguintes obras: Para
uma nova interpretação de Platão, São Paulo: Loyola, 1997; Platone. Alla ricerca della sapienza segreta.
Milão: Rizzoli, 1998.
16 Introdução
21F. W. J. Schelling, Filosofia delta rivelazione, saggio introduttivo, traduzione, note e apparati di
A. Bausola, texto alemão ao lado, Milão: Rusconi, 1997, p. 1.221.
Introdução 17
parte do corpo humano senão mantendo sob controle o corpo no seu con
junto, assim não se pode curar o "homem" na sua inteireza sem curar tam
bém a alma . Platão diz com grande firmeza que muitos dos males do corpo
só podem ser curados se curarmos os males da alma.
Por isso, como já ensinava Sócrates, para Platão o homem deve cui
dar, além da saúde do corpo e mais ainda do que desta, da saúde da alma,
e deve "concordar a harmonia do corpo com a da alma" para obter uma
única consonância e tornar-se, nesse sentido, ''verdadeiro músico".24
Trata-se daquela "consonância" que o homem de hoje sente ter perdi
do e que se esforça por recuperar a qualquer preço, mesmo dando-se conta
de que essa é, talvez, a empresa mais difícil.
Esperamos que deste livro o leitor possa tirar alguma luz que o ajude,
se não a tornar-se "verdadeiro músico", pelo menos para pôr em ato, em
certa medida, aquela "consonância".
1A nosso ver, as duas obras que evidenciam este problema melhor do que outras e que freqüen
temente evocaremos, são: B. Snell, Die Entdeckung des Geistes. Studien zur Entstehung des
europiiischen Denkens bei den Griechen , Hamburgo 1946. Tradução portuguesa: A descoberta do espí·
rito, Lisboa-Rio de Janeiro, 1992; H. Frãnkel, Dichtung und Philosophie des frühen Griechentums,
20 O corpo humano nos poemas homéricos
Por teus j oelhos, tua vida Í}Jsyche], por teus genitores, suplico
não consentires que, junto das naves, aos cães atirado
sej a o meu corpo. Ouro e bronze abundante, em resgate, recebe,
quantos presentes meu pai te ofertar, minha mãe veneranda,
e restitui o cadáver [soma], que possam, em casa, os Troianos
e suas jovens esposas, à pira funérea entregá-lo.3
Munique 1962. De destaque também é a obra de R. B. Onians, The Origins of European Thought.
About the body, the mind, the soul, the world, time and {ate, Cambridge at the University Press, 1954;
tradução italiana: Le origini del pensiero europeo. Intorno al corpo, la mente, ['anima, il mondo, il
tempo e il destino, org. L. Perille, trad. di P. Zaninoni, Adelphi , Milão 1998.
21Uada, VII , vv 76-80. Cf. Omero, lliade, introduzione e traduzione di G. Cerri, commento di A.
.
Gostoli, con un saggio di W. Schadewaldt, testo greco a fronte, Rizzoli, Milão 1996. (Reale cita sempre
desta edição italiana, às vezes retocando a tradução de G. Cerri em alguns termos técnicos por ele
discutidos. Na presente tradução todas as citações da Ilíada são extraídas da 2ª edição da tradução de
Carlos Alberto Nunes, Rio de Janeiro: Ediouro, 200 1 . N.d.T.).
31líada, XXII, vv 338-343.
.
O corpo humano nos poemas homéricos 21
Como é sabido, a arte dos gregos, que se difundiu a partir dos séculos
VIN a.C . e que se impôs como modelo na arte ocidental, representa a
figura humana como uma "unidade" perfeita: as várias partes do corpo
são representadas não só em relação adequada umas com as outras, mas
também em função de um nexo preciso com o "todo", que constitui uma
espécie de regra que governa e harmoniza as próprias ''partes".
Entretanto, isso não se verifica na arte arcaica , como se pode consta
tar pelas representações que nos chegaram, sobretudo nas decorações dos
vasos e das taças . O corpo humano não é representado no seu conjunto
unitário harmônico, mas sobretudo nas ''partes" em que se articula : cabe
ça, busto, braços , pernas . Ademais, cada uma das partes é bem evidencia
da em cada uma das suas características específicas, e assim é diferen
ciada das outras . Portanto, mais do que em função do nexo estrutural
com o organismo na sua unidade , cada parte representa-se-a no que lhe é
peculiar.
Gerhard Krahmer foi o primeiro estudioso a examinar a fundo a ques
tão e explicou-a satisfatoriamente.5 Tentou caracterizar a diferença essen
cial entre a representação "clássica" da figura humana (que qualifica como
"organicista", enquanto o conjunto do organismo serve como regra das
partes) e a "arcaica" (que ele qualifica como "geométrica" ou "cubista")
mediante as metáforas lingüísticas da "hipotaxe" e da "parataxe".
No procedimento sintático da hipotaxe, o discurso procede ligando a
uma proposição principal outras proposições dela dependentes e subordi
nadas ; ao contrário, no procedimento sintático da parataxe, o discurso
procede com uma série de proposições coordenadas e, portanto, sem aque
le nexo estrutural e funcional de subordinação e dependência.
5G. Krahmer, Figur und Raum in der iigyptischen und griechischarchaischen Kunst, Hallisches
Winckelmannsprogramm, 28, Halle 193 1 .
O corpo humano nos poemas homéricos 23
7A correspondência entre essas figuras pictóricas com as representadas por Homero é verdadeira
mente muito notável.
O corpo humano nos poemas homéricos 25
Fragmentos de um vaso grego (conservado nos museus de Paris) nos quais representa-se
um combate com estilo geométrico de modo muito figurativo, como se pode ver nos particu
lares reproduzidos em seguida.
26 O corpo humano nos poemas homéricos
O corpo humano nos poemas homéricos 27
••
Eis como o termo é usado também para indicar o aspecto e o corpo dos
porcos em que a maga Circe transforma alguns companheiros de Ulisses:
Ela os levou para dentro e of'receu-lhes cadeiras e tronos,
e misturou-lhes , depois, louro mel, queijo e branca farinha
em vinho Pirâmnio; à bebida, assim feita, em seguida mistura
droga funesta, que logo da pátria os fizesse esquecidos.
Tendo-lhes dado a mistura, e depois que eles todos beberam,
com uma vara os tocou e, sem mais, os meteu na pocilga.
Tinham de porcos, realmente, a cabeça [kephalas],
o grunhido, a figura [demas]
e as cerdas grossas ; mas ainda a consciência [nous] anterior conservavam.
Dessa maneira os prendeu, apesar dos lamentos, lançando-lhes
Circe bolotas, azinhas e frutos que dá o pilriteiro,
para comerem, quais porcos que soem no chão rebolcar-se.11
90disséia, XXIV, vv 502 s . Cf. Omero, Odissea , trad. G. A. Privitera (com o texto grego e comentá
.
rio org. por vários autores) publicada em seis volumes na coleção da Fondazione Lorenzo Valla, edita
dos pela Mondadori, Milão 198 1-1986 (muitas vezes reeditado). (Reale, que normalmente cita desta
tradução, distancia-se dela em alguns termos técnicos. Na presente tradução todas as citações da
Odisséia são extraídas da 3ª edição da tradução de Carlos Alberto Nunes , Rio de Janeiro: Ediouro,
200 1 . N.d.T. ).
100disséia, III, vv 464-469.
.
110disséia, X, vv 233-243 .
.
Nos versos que seguem chros é usado para indicar a "pele" de Zeus ,
justamente no sentido do seu "corpo":
Disse, e no carro atrelou os cavalos de rápido curso,
de crina de ouro ondulante e de casc9� de bronze infrangível .
Veste [a sua pele - chros - com] a armadura, também, de ouro puro,
empunhando depressa áureo chicote de fino lavor, e subiu para o carro.
Com chicotada os cavalos esperta, que partem velozes,
pelo caminho que fica entre a terra e o céu vasto estrelado .22
No que concerne às poções, para ter uma idéia das suas característi
cas bastará meditar sobre os versos em que se narra como Hecamede pre
parava o "a doce bebida", a ser dada a um ferido:
Doce bebida lhe trouxe Hecamede, de belos cabelos ,
filha de Arsínoo magnânimo, a qual os Aquivos ao velho
ofereceram, por ser nos conselhos o mais distinguido,
quando a cidade de Ténedo foi por Aquiles saqueada.
Primeiramente, na frente lhes pôs uma mesa bela,
toda lavrada, com pés de aço azul; uma cesta de bronze
em cima desta coloca, e cebolas, que ao vinho convidam;
mel, também, pálido, e flor ali pôs de sagrada farinha,
e uma belíssima copa que o velho de casa trouxera,
com cravos de ouro adornada, munida, outrossim, de quatro alças,
com duas pombas ao lado de cada uma delas, perfeitas,
de ouro, a bicar; dois suportes por baixo da copa se viam.
Cheia, ninguém, sem trabalho, podia da mesa movê-la;
mas levantava-a, sem custo, Nestor, o ancião de Gerena.
Nela mistura a mulher, semelhante na forma a uma deusa,
vinho de Prâmnio, no qual raspou queijo de leite de cabra
num ralo aêneo, ajuntando farinha, por fim, muito branca.
Pronta a mistura agradável, convida-os a dela provarem.34
Platão, na Rep úb lica ,35 referindo - se a esta cena, cita a beberagem aqui
descrita como uma medicina de potente efeito inflamatório, e a justifica
embora sob a forma de uma saborosa tirada irônica contra certa sofistica
da medicina do seu tempo - como uma forma de terapia de choque para
curar um ferido .
Como veremos (p. 226), Platão considera que as medicinas devem ser
usadas com parcimônia e só nos casos de cura das feridas e dos males de
estação . Mas nós , homens de hoje, não hesitaremos em dizer, junto com
Jaeger, que, em todo caso, trata-se de uma beberagem que, longe de curar
um ferido, "hoj e seria capaz de matar um são".36 Devemos, contudo, recor
dar que a dieta dos heróis homéricos era severíssima: só carne assada na
brasa e sem condimentos . Platão era grande admirador dessa dieta, pois a
considerava extremamente salutar:
37Platão, República , III 404 B-C (trad . port. de Maria Helena da Rocha Pereira, 7ª edição, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. Todas as citações da República serão extraídas desta tradução.
N.d.T.).
380disséia , IV, vv 2 19-226.
.
39Cf. o comentário à tradução de Privitera, organizado nesse canto por S . West, Odisséia , vol. I,
p. 354 s.
4º0disséia, IV, vv 227-232.
.
O corpo humano nos poemas homéricos 41
410disséia, X, v. 236.
42Cf. o texto em correspondência na nota 11, p. 28.
2
UNIDADE E MULTIPLICIDADE
PRESSUPOSTOS METODOL Ó GICOS E TE Ó RICOS
PARA A COMPREENSÃO DA REPRESENTAÇ ÃO DO HOMEM
NOS POEMAS HOM É RICOS
2M. Heidegger, Unterwegs zur Sprache, Pfullingen 1959; ed. ital. ln cammino verso il linguaggio,
a cura di A. Caracciolo, Milão: Mursia, 1973, p. 1 3 1 .
3Galimberti, ll corpo, cit., p. 9 3 .
4Galimberti, ll corpo, cit. , p. 94.
Unidade e m ultiplicidade 45
Galimberti, a nosso ver, vai longe demais na afirmação de que "a pa
lavra não é o instrumento de outra realidade como o pensamento ou a
alma", mas do corpo. Parece-nos que se deveria, antes, dizer que a palavra
não é só instrumento do pensamento ou da alma, mas também do corpo.
Ademais, o próprio Galimberti com os conceitos de "polissemia" e de
"ambivalência da realidade corpórea", que são pontos-chave da sua tese
de fundo, admite isso pelo menos implicitamente. Se, como ele diz , a
ambivalência é "a proximidade do maximamente distante",6 então na
amb ivalência da palavra exprime-se aquela proximidade do maximamen
te distante do corpóreo-e-espiritual, do fisico-e-psíquico .
Mas, fora isso, alguns conceitos que ele exprime na passagem citada
muito nos podem ajudar a compreender algumas características essen
ciais da linguagem homérica e a resolver o problema que tratamos no pre
sente capítulo .
Evoquemos sinteticamente esses conceitos , indicando-os n a ordem
segundo a qual no próximo parágrafo mostraremos as confirmações e cor
respondências extraordinárias encontradas na linguagem homérica.
Em primeiro lugar, na linguagem, além do nosso pensamento, expri
me-se o próprio corpo, que manifesta não só a própria existência, mas o
modo pelo qual recebe as coisas e o mundo no qual uive.
Em segundo lugar, as palavras pronunciadas na própria língua são
ricas de significados emocionais , que espelham a vida no mundo com o
qual aquela língua está ligada.
Em terceiro lugar, uma língua não é nunca passível de tradução per
feita em outra , porque, para alcançar a compreensão e a expressão perfei
ta das mensagens comunicadas com aquela linguagem, seria preciso ser
diretamente participante do mundo que se exprime naquela linguagem.
7E. A. Havelock, Preface to Plato, Cambridge Massachusetts 1963 ; ed. ital. com o título Cultura
orale e civiltà delta scrittura da Omero a Platone, introd. di B. Bentili, trad. M. Carpitelle, Roma-Bari:
Laterza, 1973 , reeditado na Universale Laterza 1983, p. 116. (Reale cita sempre da edição italiana.
Seguimos , em geral, a tradução brasileira: Prefácio a Platão, trad. Enid A. Dobránzsky, Campinas:
Papirus Editora, 1996. N.d.T.).
8lbidem.
9Havelock, Prefácio a Platão, cit., p. 166.
48 Unidade e multiplicidade
podem ser ditas de forma rítmica e, por conseguinte, não podem também
ser pensadas."1º
Naturalmente, a atenção particular suscitada pelas "variações" e pe
las "diferenciações" dos conteúdos poderiam atenuar o controle do esque
ma métrico, ou seja, daquele "idêntico" necessário para a memorização.
Entra, então, em ação outra série de reflexos produzidos pelos dedos que
agem sobre um instrumento de cordas , a lira. Escreve Havelock: "Para o
recitador, essa execução na lira envolvendo um movimento das mãos pro
duz um ritmo correspondente em outra parte do seu corpo, que age em
consonância com o movimento dos órgãos vocais. Isso lhe proporcionará
ajuda mnemônica na conservação do ritmo. Ele não precisaria de tal su
porte se sua atenção não estivesse ocupada em dizer algo. Esse suporte
lhe é realmente necessário. Portanto, quando dedilha o instrumento, to
cando certa melodia, produz-se um ritmo acústico que, por sua vez , atinge
os tímpanos . A medida que o recitador, quando combina os sons da fala
com seu acompanhamento, simultaneamente ouve também seu efeito acús
tico, ou ouve a si mesmo, a melodia produzida pelas cordas reforçará ain
da mais o padrão dos seus reflexos físicos e, assim, confirmará continua
mente sua memória do padrão a que obedece". 11 Recorde-se que a música
grega era fortemente repetitiva "para fazer com que as palavras viessem
mais facilmente à memória, ou melhor, fazer com que as ondulações e as
repercussões do ritmo venham automaticamente à memória a fim de li
bertar a energia psíquica para a recordação das palavras em si."1 2
Além dos pulmões, da laringe, da língua, dos dentes, dos tímpanos e
das mãos, na técnica da comunicação e da memorização atuam, mediante
a dança , também as pernas e os pés . "Uma vez mais deparamos aqui, como
no uso da lira, um padrão de ações organizadas, cuj a função é mnemônica.
Ele se movimenta num ritmo semelhante ao das palavras pronunciadas e
as espaça e pontua de modo que a recitação coral se torne também uma
execução física que auxilia na 'representação' da recitação. Todavia, um
terceiro conjunto de refiexos ocorre para reforçar a seqüência memorizada.
Ou o próprio público faz isso na recitação, ou o presencia, caso em que a
ajuda mnemônica é mediada pelos olhos, quando observam o ritmo da
dança; além disso, talvez enquanto assistem à representação seu sistema
nervoso reaja empaticamente com seus próprios movimentos imperceptí
veis, sem que necessariamente agitem as pernas".13
mana com toda uma família de Formas [i.e., com a teoria das Idéias] que
havia surgido Deus sabe de onde, isso constituía, sob certo aspecto, uma
necessidade para ele. Isso porque via o cerne de mudança profunda na ex
periência cultural do homem. Não se tratava de capricho pessoal; elas não
eram sequer sua doutrina pessoal. Elas anunciavam a chegada de nível
inteiramente novo de discurso que, quando se aperfeiçoasse, deveria criar
por sua vez novo tipo de experiência do mundo - a reflexiva, a científica, a
tecnológica, a teológica, a analítica. Podemos lhe dar uma dúzia de nomes.
A nova era mental requeria nova bandeira sob a qual marchassem seus
arautos , e a encontrou nas Formas platônicas . Vista por essa perspectiva, a
teoria das Formas foi uma necessidade histórica. "34
Podemos então nos darmos conta das razões pelas quais em Homero
prevalece de modo quase total a multiplicidade na dimensão do devir, em
todas as suas formas: trata-se da mais extraordinária e genial representa
ção da realidade e do homem em dimensão poética pré-filosófica , com to
das as conseqüências que ela comporta.
Mas , como confirmação do que dizemos, é oportuno evocar algumas
observações feitas por filólogos que estudaram a fundo o léxico ligado à
representação do homem em Homero. Desse modo teremos confirmações
ulteriores da tese que sustentamos .
35J. Bohme, Die Seele und das Ich im homerischen Epos, Leipzig und Berlin 1929.
36Bohme, Die Seele und das Ich . , p. 88; grifos nossos.
. .
56 Unidade e multiplicidade
mulheres de casa que flertavam com eles; por outro lado, parece tender a
uma atitude de prudência, que lhe sugere adiar o propósito a um momen
to mais oportuno. Ele fala assim ao seu coração:
O coração [thymos] no imo peito Odisseu acalmar não podia,
a revolver vários planos, em dúvida, dentro do espírito
[kata phrena kai kata thymon]
se se lançasse sobre elas, e a todas a Morte aprestasse,
ou se deixasse que os moços soberbos nesta última noite
se misturassem. No peito ladrava-lhe em saltos contínuos
o coração [kradie] , como faz a cachorra que à roda dos filhos
salta furiosa, ladrando, ao sentir gente estranha que chega:
o coração [kradie] , deste modo, bramia, ante aquela vileza.
Bate, indignado, no peito [kradie] e a si próprio, desta arte, se exprime:
"Sê, coração [kradie] , paciente, pois vida mais baixa e mesquinha
já suportaste, ao comer o Ciclope, de força invencível,
os companheiros queridos. Mas tudo agüentaste, até seres
por meus ardis libertado da furna, ao pensarmos na Morte".
Ao coração [etor], desse modo, advertia, no peito [kradie] querido.
Obedecido foi logo com grande e paciente constância.
Mas Odisseu se atirava de um lado para o outro do leito.
Do mesmo que alguém sobre as chamas um bucho revira,
cheio de sangue e gordura, sem pausa, de um lado para o outro,
só desejando que assado e contento, depressa, ele fique;
por esse modo Odisseu se virava, a seus planos entregue,
de como fosse possível vencer a esses moços soberbos,
conquanto um só contra muitos.3
5M. Pohlenz, Der hellenische Mensch , Gêittingen 1947; trad. ital. de B . Proto com o título L'uomo
greco, La Nuova Italia, Florença 1962, p. 14 s. Os versos do Fausto citados são 3 .374 s.
6Frãnkel, Dichtung und Philosophie . . . , cit., p. 87.
7Cf. Bêihme, Die Seele und das !eh . . , p. 19 ss e 69 ss.
.
62 O espírito humano nos poemas homéricos
10Cf. Biihme, Die Seele und das Ich . . , cit . , p. 19 ss, especialmente 69 ss.
.
16Como veremos, Platão absorverá em boa medida thymos de Homero na forma de alma "irascí
vel", thymoeides.
17Snell, A descoberta do espírito, cit., p. 35, grifos nossos.
64 O espírito humano nos poemas homéricos
Os deuses podem tirar ou dar phrenes , ou seja, tirar ou dar são enten
dimento. Eis alguns exemplos. Começamos pela troca de armas entre
Glauco e Diomedes:
Ambos, dos carros desceram, depois de assim terem falado,
e, logo, apertos de mão, como prova de afeto, trocaram.
Foi quando o Crônida Zeus o juízo [phrenes] de Glauco conturba,
por ter querido trocar com Diomedes as armas que tinha,
ouro por bronze, o valor de cem bois pelo preço de nove.26
e a ação que daí derivam são muito próximos. "Uma tensão entre uma e
outra, como mais tarde se encontra em Eurípedes, era desconhecida a
Homero. Por este motivo ele só precisa falar de saber; é para ele evidente
que o saber, de fato, dá por si bons resultados."2 9
Mas o pensar em sentido ainda mais puro Homero liga-o com outro
órgão, o noos , do qual devemos falar.
Mas a vontade [noos] de Zeus é mais forte que o arbítrio dos homens,
pois fácil lhe é pôr em fuga o mais bravo e negar-lhe a vitória,
ainda que fosse ele próprio que houvesse a lutar instigado.34
32Btihme, Die Seele und das lch . . . , cit., p. 53, grifos nossos.
33Ilíada, VIII, vv 143-144.
.
20disséia, XI, vv
. 90-99.
30disséia, XI, vv
. 139- 1 54.
74 A ''psyche" em Homero
somente com a morte. Isto e não outra coisa é a sua psique. Naturalmente,
parece-nos muito singular que se possa conceber um homem vivo, plena
mente animado, no qual habite um hóspede estrangeiro, um duplo seu
mais fraco, um outro e u , como sua psique. Mas esta é justamente a fé dos
assim chamados 'povos primitivos' de toda a terra, como demonstrou
acuradamente Herbert Spencer."6
E ainda: "Não surpreende o fato de ver que também os gregos parti
cipam daquela concepção , que é tão natural ao espírito da humanidade
primitiva. As observações que por meio de uma lógica fantástica leva
ram a admitir dupla vida do homem, não podem ter sido estranhas ao
tempo que transmitiu a sua fé aos gregos de Homero , como não foram
aos outros povos. Não dos fenômenos do sentir, do querer, do perceber e do
entender no homem desperto e consciente, mas dos fenômenos do sonho,
do delírio e do êxtase, que, na aparência, revelam em nós dupla vida, de
duziu-se a existência de dois seres vivos no homem, a existência de 'segun
do eu', no interior do e u visível de todos os dias, do qual pode separar-se e
viver por si ."7
Mas a partir dos anos vinte do século vinte os estudiosos progressiva
mente evidenciaram, de maneira sempre mais clara, que a psyche homérica
começa a sua existência autônoma a partir do momento da morte .
Apsyche , na verdade, não representa "outro eu", como pensava Rohde,8
mas , como vimos , o "não ser mais do eu", a sua negação: a sua permanên
cia emblemática na dimensão do "não-mais", do "não-mais-vivo".
Walter Otto indica justamente na psyche homérica uma representa
ção do "ser do ter sido". Com razão escreve: "Os mortos são apenas som
bras , mas não por isso não são. Eles têm o seu modo próprio de ser e po
dem até - pensemos nas visões impressionantes da Nekyia na Odisséia
- despertar por algum tempo, retomando consciência e palavra, mas não
possibilidade de ação . Não se trata de continuação da vida, porque o ser
próprio dos mortos é o ser do ter sido . Os gregos compreenderam que ter
sido é ser no sentido verdadeiro e próprio da palavra, e ter compreendido
isto é uma das suas grandes intuições ."9
6E. Rohde, Psyche. Seelencult und Unsterblichkeitsglaube der Griechen , Friburgo na Brisgóvia, 2
vols. , 1890-1894; ed. ital. : Psiche. Culto delle anime e fede nell'immortalità presso i Greci, 2 vols.,
prefazione di G. Pugliese Caratelli, trad. E . Codignola e A. Oberdorfer, 1ª ed. 1914-1916; nova ed. ,
Laterza, Bari 1970, vol. I, p. 6 .
7Rohde, Psiche , cit . , pp. 6-7; grifos nossos.
8Rohde foi vítima, malgrado a sua extraordinária preparação filológica, dos preconceitos de cará
ter positivista.
9W. Otto, Theophania. Der Geist der altgriechischen Religion , Frankfurt a.M. 1975; ed. ital. :
Theophania. L o spirito della religione greca antica, org. A . Caracciolo, 1 1 melangolo, Gênova 1983, p .
70; citaremos dessa tradução.
76 A ''psyche" em Homero
A minha vida fpsyche] , sem dúvida, vale bem mais do que quanto
dizem que Tróia possuía, a cidade de belo traçado,
antes, em tempo de paz, sem que houvessem chegado os Aquivos,
e dos tesouros que dentro se encontram da pétrea soleira
de Febo Apolo, o frecheiro esplendente, na rocha de Pito.
Arrebanhar bois tardonhos e ovelhas vistosas é fácil,
trípodes belas comprar ou cabeças de louros ginetes;
mas a alma fpsyche] humana, uma vez escapada do encerro dos dentes,
não mais se deixa prender, sem podermos, de novo, ganhá-la. 12
Muitos traduzem psyche nessas passagens por "vida". Todavia, se, por
um lado, a tradução parece sustentar-se, por outro pode desviar, enquanto
poderia levar a crer que se trata de um significado de psyche diferente do
que ela assume quando abandona o homem com a morte e vai para o Hades.
Snell explicou oportunamente: "Não precisamos aqui supor dois sig
nificados diversos de psyche , como se no segundo grupo de expressões [que
se encontra em passagens como as que lemos acima] psyche significasse
'vida', embora aqui traslademos psyche por 'vida'. Quando alguém luta
pela sua psyche , arrisca a sua psyche ou anela salvá-la, pensa-se assim na
alma que abandona o homem, na morte ."14
Noutros termos , para dizer com Bõhme, psyche nas passagens como as
que lemos, significa 'vida', mas vida que se vai com a morte . 15 E, com efeito
(e não só nas passagens lidas, mas também em outras nas quais psyche é
usada neste sentido), ela é sempre apresentada em conexão com a morte .
Reflita-se particularmente sobre o verso da última passagem citada;
depois de ter afirmado que também na pele de Aquiles pode penetrar o
bronze afiado, Agenor diz :
uma alma fpsyche] , apenas , possui; que também é mortal dizem todos. 16
·
12/líada , IX, vv 398-409 .
.
E dizer que nele existe uma só psyche pode muito bem ser entendido,
com Snell, "nele existe só uma psyche", ou seja, tomar esta expressão como
o exato equivalente à expressão que segue, ou seja, que ele é mortal, que
ele tem só uma vida-que-se-vai. Noutros termos, dizer que em Aquiles não
há mais que uma psyche , significa dizer que nele não há senão uma psyche
que se vai com a morte, que aquela psyche o abandona no momento em
que é traspassado pelo bronze afiado, ou sej a, que não há senão a vida
que-se-vai de um mortal .
O fato que foi muito bem destacado por muitos, ou seja, que Homero
não diz de algum modo que a psyche desenvolve um papel particular du
rante a vida do homem, significa justamente que Homero não lho atrib ui.
Todas as hipóteses que foram levantadas em sentido oposto, como alguns
estudiosos observaram, são meras suposições que não têm fundamento
nos textos .
Concluindo, a psyche não é a idéia da vida enquanto tal, mas é a idéia
da vida-que-se-vai e particularmente a idéia do morto; como dizia Otto, não
representa senão uma imagem emblemática que exprime o ser do ter sido .
E eis como Heitor desafia aquele dentre os Aqueus que ousar en
frentá-lo:
Sej a Zeus grande o fiador do que a todos, agora, proponho:
caso, com bronze afiado, me venha a matar, que me tire
esse guerreiro a armadura e a deponha em seu barco ligeiro;
mas restitua meu corpo [soma] , que possam, depois, os Troianos
e as venerandas consortes à pira sagrada entregá-lo.
Se Febo Apolo, porém, me fizer vencedor do adversário,
despojá-lo-ei da armadura e, levando-a para Í lio sagrada,
no templo irei pendurá-la de Apolo, frecheiro infalível,
Um exemplo emblemático
Assim diziam, conclui Homero, alegres pelo ardor que o deus havia
infundido "no seu ânimo".8 E as premissas do discurso, o seu desenvolvi
mento e a sua conclusão mostram perfeitamente o seguinte: "Todo órgão
individual homérico pode exalar uma energia própria, mas cada um deles
representa ao mesmo tempo o conjunto da pessoa . Os órgãos físicos e psí
quicos são postos um ao lado do outro no mesmo plano e, sob o mesmo
título, referidos ao Eu."9
Compreende-se bem, conseqüentemente, a razão pela qual em Homero
o adjetivo philos, "caro" ou "amigo", recobre uma área semântica muito
mais vasta do que na linguagem moderna, e com uma dinâmica toda par
ticular, ou seja, não só com referência à pessoa, mas também aos órgãos
individuais : as "caras mãos", os "caros braços", os "caros j oelhos", o "caro
coração". E isso porque cada um dos órgãos representa a pessoa no signi
ficado acima explicado: cada órgão remete, sob certos aspectos, ao todo
naquele complexo j ogo dinâmico que chamamos "caleidoscópico", atuado
na dimensão da multiplicidade. 10
que a palavra não tem uma valência predominantemente fisica (como al
guns acreditaram) . Bohme observa: "Não teria nenhum sentido querer
estabelecer se menos tem puro significado fisico ou não; podemos afirmar
com certeza que menos tem significado próximo à vida psíquica." 12
Naturalmente, "menos" vale para todo o homem e, portanto, para to
das as suas partes , fisicas ou psíquicas . Por isso deve-se corretamente
concluir que "menos indica atividade, vontade, impulso para agir. Por isso
é muito freqüentemente ligado com a força física, e às vezes para indicar
apenas esta. Mas disso não se pode deduzir um significado corpóreo pri
mário do termo menos ."13 Portanto, menos tem significado sej a físico seja
psíquico, mas com predomínio do segundo sobre o primeiro. 1 4
Como se explica, então, o fato de Homero atribuir o menos , não só aos
homens, mas também à lança, ao vento, ao fogo, ao rio? A resposta é sim
ples: uma lança não é um puro obj eto da madeira sem vida nas mãos do
guerreiro, mas uma realidade que tem vida e desejo, tanto que Homero
diz expressamente que as lanças "aspiram a saborear a carne"; 1 5 e o vento
é personificado, por exemplo em Borea, o fogo em Efesto, o rio no deus do
rio . 16 Concluindo, menos indica aquela particular energia com a qual es
tão em estreita conexão "forte impulso para agir", "coragem", "desejo de
combater", e que , conseqüentemente, torna o homem capaz de reagir com
firmeza a tudo o que se lhe contrapõe. 1 7 Compreende-se bem, portanto,
que menos às vezes exprima até mesmo o caráter essencial da pessoa e
revele a natureza do homem sob certa ótica.
Particularmente significativo é o que diz Diomedes:
"Homem de grande valor, de que estirpe mortal te originas?
Ainda não tive ocasião de te ver nas batalhas, que aos homens
glória concedem; no entanto, os demais, em coragem, superas,
pois vens, agora, enfrentar a minha lança de sombra comprida.
Os que se medem comigo [com o meu menos]
são filhos de pais sem ventura.18
Mas, logo que esta secou, quando o sangue não mais escorria,
dores pungentes, então, sobrevieram ao [menos do] filho de Atreu.
Tal como sofre a mulher em trabalho de parto, ao lhe enviarem
as filhas de Hera, as cruéis Ilitiias, seus dardos acerbos,
estas deidades que têm provisão de trabalhos pungentes:
dores, assim, pungentíssimas, cortam o peito [menos] do Atrida ... 19
O homem como o ser mais miserá vel que existe sobre a terra
Deve-se notar que essas afirmações são postas até mesmo na boca de
Zeus , para consolar os "cavalos divinos" dados pelos deuses a Peleu, pai de
Aquiles, os quais choravam pela morte do seu cocheiro morto por Heitor.
Tenha-se presente que Zeus consola aqueles cavalos enquanto imortais
como os deuses , e portanto o seu discurso baseia-se na antítese que subsis
te entre os "mortais " e os "imortais":
Vendo-os chorar, apiedado sentiu-se o alto filho de Crono,
e, sacudindo a cabeça, consigo [ao seu thymos] desta arte conversa:
"Pobres criaturas! Por que, sendo isentas do Tempo e da Morte,
ao soberano Peleu, que é mortal, tive a idéia de dar-vos?
Para que viésseis , também, a sofrer da miséria dos homens?
Tão infeliz quanto os homens não há de ser algum, por sem
dúvida, entre os que vivem na face da terra e sobre ela se movem.
Não deixarei, entretanto, que seja no carro magnífico
por vós Heitor triunfalmente levado, o alto filho de Príamo.
Pois não lhe basta a armadura, que tanta vanglória lhe causa?
Na alma e nos joelhos tamanho vigor [menos] vou fazer que vos nasça . . . 5
Já citamos (p. 68) da Odisséia versos que contêm uma retomada des
se conceito:
Entre as criaturas, que vivem da terra e no solo rastejam,
nada se pode encontrar de mais mísero que os próprios homens . . . 6
60disséia, XVIII, vv 1 3 0 s .
.
Concepção pessimista do homem 93
E na Odisséia :
Vário é o feitio da mente dos homens que vivem na terra,
tal como os dias, que o pai dos morais e dos deuses lhes manda. [ . . . ]
Ante esse exemplo ninguém deve injusto ou impiedoso mostrar-se;
goze calado os favores que os deuses beatos lhe deram.22
pudor), É rix (a discórdia) etc. Os movimentos da alma não são mais que a
apreensão por parte dessas forças eternas, que, sob figura humana, ope
ram em toda parte. "2 3
E depois de ter narrado o modo como Hera tinha cegado Zeus median
te Ate e a punição infligida por Zeus a Ate, que foi precipitada dos céus ,
conclui:
Do mesmo modo comigo se deu, quando Heitor arnesado
desbaratava os Aquivos ao lado das naves recurvas,
sem que pudeste da Culpa esquecer-me que em mim se exercia.
Por ter ficado, porém, conturbado, que Zeus me cegara,
quero sanar o mal feito, depondo a teus pés muitas dádivas .
Para os combates levanta-te, pois, e os Aquivos anima . . . 2 6
Morre , que me acho disposto a acolher o destino funesto logo que Zeus
o quiser e as demais divindades eternas.
Ilíada, XXII, vv. 365-366
4Jlíada , VIII, vv
. 470-483.
5/líada, XIII, vv. 631 -635 .
6/líada, XIX , vv. 95-97.
106 As duas regras fundamentais da vida ética nos poemas homéricos
Apolo está ligado também com a morte de grandes heróis como, por
exemplo, Pátroclo, ao qual impede, justamente no momento em que conse
guia uma grande vitória sobre os Troianos, de conquistar a cidade :
8Indicamos apenas algumas das numerosas passagens, na ordem dos temas aos quais acenamos:
XVI, v. 165; XIII, vv 63 1 s . ; XIX , vv 95 ss.; I, vv 238 ss.; VII, v. 411; X, v. 329; IV, v. 325; XVII, vv 19 ss.
. . . .
1ºIlíada, I , vv 8-12.
.
As duas regras fundamentais da v ida ética nos poemas homéricos 107
15Ilíada, V, vv 432-442.
.
17W. Schadewaldt traduziu a Ilíada para o alemão (Homer, Ilias, última edição publicada por
Insel Verlag, Frankfurt a.M. 1975) e a Odisséia (Homer, Die Odyssee , Hamburgo 1958; reeditada
por Artemis Verlag, Zurique-Stuttgart 1 966) . Ver particularmente a sua obra Von Homers Welt und
Werk. Aufsiitze und Auslegungen zur homerischen Fragen, vierte verbesserte Auflage, Stuttgart
1965.
18Texto que se encontra na p. 60 do ensaio traduzido e publicado na recente edição da Ilíada,
editada por Rizzoli, citada acima na nota 2 do capítulo 1 .
As duas regras fundamentais da vida ética nos poemas homéricos 109
Mas a escuta da palavra dos deuses por parte dos heróis homéricos é
totalmente particular, enquanto prevê preliminares resistências e fortes
contrastes : portanto, também a relação dos homens com os deuses é, ao
seu modo, "ambivalente". De fato, heróis e deuses confrontam-se com ofen
sas verbais até mesmo fortíssimas . O exemplo do colóquio de Helena com
Afrodite, que já conhecemos, é muito significativo. Eis a dramática troca
de tiradas entre Aquiles e Apolo, depois de o herói ter seguido o deus, acre
ditando que fosse Agenor:
Para o terrível Pelida, virando-se, diz Febo Apolo:
"Por que motivo, Pelida, te cansas, desta arte, em seguir-me,
2ºIlíada , I, vv 2 16-218.
.
1 10 As duas regras fundamentais da vida ética nos poemas homéricos
"Minha tolinha, por que, desse modo, afliges tua alma [thymos] ?
Homem nenhum poderá, contra o Fado, mandar-me para o Hades,
Pois quero crer que a ninguém é possível fugir ao destino,
Desde que nasça, seja ele um guerreiro de prol ou sem préstimo.23
1Cf. G . Reale, História d a filosofia antiga, vol. 1, 2 ª ed. revista e corrigida, trad. M. Perine, São
Paulo: Loyola, 1993, pp. 369-386.
O orfismo e o novo sentido da vida e da morte 1 13
2E. Dodds, The Greeks and the Irrational , Berkely-Los Angeles 195 1 . (Citamos da edição portu
guesa: Os gregos e o irracional, trad. Leonor S. B. de Carvalho; revisão de José T. dos Santos, Lisboa:
Gradiva, 1988. N.d.T.).
3Dodds, Os gregos . . , cit., p. 154; grifos nossos.
.
E em Píndaro se lê:
Mas ilustremos também as outras idéias, conexas com estas, que evo
camos acima.
7Dodds, Os gregos ... , cit., p. 166 s. (tradução portuguesa ligeiramente modificada. N.d.T.)
O orfismo e o novo sentido da v ida e da morte 117
junto à cidade está a sua sede, nos prados das rosas vermelhas,
de sombrias plantas de incenso [ . . . ] e é carregada
[de árvores] de frutos de ouro; e uns se alegram
com os cavalos e os exercícios do corpo, outros com os jogos de xadrez,
outros com o som da lira, e entre eles prospera em plenitude
a abundância: um perfume amável se difunde sobre aquela terra,
enquanto levam sempre ao fogo, que de longe se distingue,
ofertas de todas as espécies sobre os altares dos deuses. 8
Pitágoras e o orfismo
10Diógenes Laércio, Vidas dos filósofos, VIII 36 (Seguimos a tradução brasileira de Mário da Gama
Kury, Brasília: Editora UnB, 2ª edição, 1987).
11Empédocles , Poema lustral, fr. 108 Gallavotti 3 1 B 129 Diels-Kranz (A tradução dos fragmen
=
tos dos Pré-Socráticos é a de G. Bomheim, Os filósofos pré-socráticos, São Paulo: Editora Cultrix,
1967. N.d.T.).
12Platão, República, X 600 B .
O orfismo e o novo sentido da vida e da morte 1 19
Empédocles e o orfismo
15Empédocles, Poema lustral, frs. 115 e 116 Gallavotti 31 B 124 e 119 Diels-Kranz.
=
120 O orfismo e o novo sentido da vida e da morte
A purificação da alma
coragem; e o próprio pensamento outra coisa não seja do que meio de purifi
cação.
É possível que aqueles mesmos a quem devemos a instituição das inicia
ções não deixem de ter o seu mérito, e que a verdade já de há muito tempo se
encontre oculta sob aquela linguagem misteriosa. Todo aquele que atinja o
Hades como profano e sem ter sido iniciado terá como lugar de destinação o
Lodaçal, enquanto aquele que houver sido purificado e iniciado morará, uma
vez lá chegado, com os deuses. É que, como vês, segundo a expressão dos
iniciados nos mistérios: "numerosos são os portadores de tirso, mas poucos
os bacantes". Ora, a meu ver, estes últimos não são outros senão os de que a
filosofia, no sentido correto do termo, constitui a ocupação. 1 7
Mas para chegar ao nível ao qual Platão leva o discurso sobre a "puri
ficação", era preciso percorrer um longo caminho, como veremos. 18
17Platão, Fédon, 69 B-D (Seguimos a tradução brasileira de Jorge Paleikat e João Cruz Costa, no
vol. III da Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1972. N.d.T.).
18Cf. o capítulo 15, passim.
9
A "PSYCHE" NOS PRIMEIROS FILÓSOFOS
CONCEPÇ Õ ES DA ALMA NOS NATURALISTAS
COM AS REVOLUCIONÁRIAS INTUIÇ Õ ES DE HERÁCLITO
E A POSIÇ ÃO EMERGENTE DE DEM Ó CRITO
Alguns sustentam que Tales foi o primeiro a afirmar que a alma é imor
tal; dentre esse também o poeta Quérilo.5
4Aécio, IV 2 1 11 A 22 a Diels-Kranz.
=
nexão com esse significado mais vasto de soma , o termo assomatos veio a
significar o que não está ligado às características do corpo e , portanto, o
que não é palpável, não visível, privado de densidade, de espessura e de
rígidos confins . E nesse ponto assomatos associa-se bem com o termo "in
finito" (apeiron): in-corpóreo, privado de corpo, vem a significar o que é
privado de confins e de limites determinados , como se vê pelo fragmento
de Anaxímenes citado e é amplamente confirmado pelos paralelos frag
mentos de Melisso, que define o ser como "incorpóreo" justamente enquanto
"infinito". 8
Eis o fragmento de Anaxímenes que se refere especificamente àpsyche :
Como nossa alma (psyche), que é ar, nos governa e sustém, assim também
o sopro e o ar abraçam todo o cosmos.9
8Cf. G. Reale, Melisso, Testimonianze e (rammenti, Florença: La Nuova Italia, 1970, pp. 193-225 .
O fragmento de Melisso de importância fundamental a este respeito é o número 9 Diels-Kranz, extraí
do de Simplício, ln Arist. Phys. , 87, 6 e 109, 34 Diels.
9Aécio, 1 3 , 4 = 13 B 2 Diels-Kranz.
10W. Jaeger, Die Theologie der frühen griechischen Denker, Stuttgart 1953; ed. ital.: La teologia dei
primi pensatori greci, trad. E. Pocar, Florença: La Nuova Italia, 196 1 , p. 132.
126 A "Psyche" nos primeiros filósofos
Foi Heráclito que deu o passo decisivo. Mas antes de falar dele, deve
mos examinar o que os pitagóricos disseram sobre a alma, não em referên
cia às crenças dos órficos , mas só com base nas suas doutrinas científicas .
11Alexandre de Afrodísia, InArist. Metaph., 39, 16 ss. Hayduck, texto reproduzido por M. Timpanaro
Cardini, Pitagorici. Testimonianze e frammenti, vol. III, Florença: La Nuova Italia, 1964, p. 65 ss.
12F. Sarri , Socrate e l a nascita del concetto occidentale d i anima, introduzione di G. Reale, seconda
edizione completamente rifatta, Milão: Vita e Pensiero, 1997, p. 123 s.
13Filolau, 44 B 13 Diels-Kranz. A tradução italiana utilizada é: Pitagorici. Testimonianze e
frammenti , a cura di M. Timpanaro Cardini, vols. II e III, Florença: La Nuova Italia, 1962 e 1964.
A "Psyche" nos primeiros filósofos 127
1922 B 45 Diels-Kranz.
2º22 B 115 Diels-Kranz.
21H. Friinkel, Wege und Formen frühgriechischen Denkens. Literarische und philosophieges
chichtliche Studien, Munique 19602, p. 271 s .
A "Psyche" nos primeiros filósofos 129
O que aguarda os homens após a morte, não é nem o que esperam nem o
que imaginam.25
3º68 B 36 Diels-Kranz.
3168 B 37 Diels-Kranz.
3268 B 170 Diels-Kranz.
132 A "Psyche" nos primeiros filósofos
Não se deve temer mais aos outros do que a si próprio, como não se deve
praticar o mal sob pretexto de que ninguém ou a humanidade inteira o sabe
rá. Muito mais, é a nós próprios que devemos temer, e nada fazer de mal
deve ser a lei da alma. 35
Agora deve despertar. Agora fala-se da alma que tudo desperta e da sua
força. Para ser capaz de efetuar esse trabalho de pensamento totalmente
novo e, em certo sentido, inexorável, impõe-se uma disciplina da alma, é
preciso cuidar da alma para que ela sej a capaz de algo semelhante. Ape
sar das aparências, o que está no centro do ensinamento de Demócrito, no
centro dessa filosofia que é qualificada como protótipo de todo materialis
mo, e que de fato o é, é o cuidado da alma . A expressão 'cuidar da alma' só
se encontra a partir de Platão, mas a realidade já está presente em
Demócrito. "37
Essas reflexões são elegantes e profundas; mas não levam adequada
mente em conta o fato de Demócrito ser um contemporâneo de Sócrates,
porém mais jovem, e justamente de Sócrates, como veremos, depende a
sistemática elaboração do novo conceito de alma e a grande tese do "cuida
do da alma."38 Recordamos que Demócrito nasceu em 460 a . e . e Sócrates
cerca de dez anos antes dele, em 470/469 a.e. Sócrates morreu em 399
a.e. e Demócrito morreu muito velho, alguns lustros depois dele.
A questão da descoberta do novo significado de alma e do "cuidado da
alma" centra-se, portanto, sobre Sócrates, de quem devemos falar agora.
tação criada pela nova poesia e , sobretudo, pela filosofia, que, como vere
mos , enfoca e desenvolve expressamente o problema em nível teórico. Em
suma, a reviravolta cultural de extraordinário alcance, cuja matriz está
na evolução do pensamento conceptual, e particularmente naquela revolu
ção que explodiu e foi levada a cabo por Sócrates e por Platão, refiete-se de
modo extraordinário também na arte .
Eis a primeira prova da nossa afirmação. Dizíamos que a reprodução
pictórica ou escultórica da figura humana com os vários membros repre
sentados de modo a oferecer a idéia unitária do organismo, na sua fase
mais madura funda-se não só sobre um ponto central na dimensão do físi
co, mas até mesmo em algo de caráter espiritual que se exprime também
na dimensão do físico . Pois bem, justamente Sócrates indicou que esse
"centro", que dá sentido à representação do homem feita pelo pintor e pelo
escultor, deve consistir de modo particular na "alma" (na psyche ) .
Nesse ínterim, fora conquistada uma consciência da psyche que in
vertia radicalmente a concepção homérica: de vã sombra, privada de sen
sibilidade e de conhecimento, passou-se a fazer coincidir com ela a nature
za do homem. Conseqüentemente, a expressão da ''psyche" vinha a impor-se
como expressão da própria essência do homem. Portanto, devia ser uma
tarefa precisa dos pintores e dos escultores representar o homem de modo
novo, exprimindo a sua alma.
2Xenofonte, Memoráveis, III 10, 1-5; trad. ital. de R. Laurenti, primeiro publicada na obra: Senofonte,
Le opere socratiche , Pádua: Cedam, 1 9 6 1 , em seguida incluída na obra geral : I Presocratici.
Testimonianze e frammenti, a cura di vari autori, Roma-Bari: Laterza, 1969 (muitas vezes reeditada).
A identificação da ''psyche" com a personalidade do homem 137
·
3Xenofonte, Memoráveis, III 10, 6-8; grifos nossos.
4Ver J. Burnet, Interpretazione di Socrate, introduzione, traduzione e apparati di F. Sarri, Milão:
Vita e Pensiero, 1994, que contém a tradução dos principais trabalhos de Burnet sobre Sócrates.
5Ver em particular A. E. Taylor, Socrates, Londres 1933; trad. ital. de M . Tioli-Gabrieli com prefá
cio de P. Rossi, Florença: Nuova Italia, 1952, 19692•
138 A identificação da ''psyche" com a personalidade do homem
Já dissemos que um dos motivos pelos quais a tese exposta por muito
tempo não foi acolhida pela communis opinio consiste em que ela tem um
alcance verdadeiramente revolucionário, enquanto implica mudança de
categorias hermenêuticas na reconstrução geral do pensamento antigo . Com
efeito, o problema pode ser resolvido não pelo seu exame em si e por si,
setorialmente, mas situando-o num quadro bem mais amplo, ou seja, con
siderando não só a história do pensamento filosófico, mas a história da
cultura grega, inclusive em conexão com as tecnologias da comunicação e
difusão das idéias .
Particularmente significativas e iluminadoras são as posições assu
midas por dois famosos autores: Werner Jaeger na sua reconstrução da
história da educação e da formação espiritual do homem grego;8 e Eric
Havelock na sua história da técnica da comunicação no mundo antigo .9
Jaeger escrevia: "No pensamento de Sócrates aparece, como algo de
novo, o mundo interior. A arete de que ele nos fala é um valor espiritual.
Mas que é a 'alma', ou a psyche (para exprimi-la com a palavra grega
usada por Sócrates)? Antes de tudo, ponhamos esta questão num sentido
meramente filológico. Procedendo assim, damo-nos conta de que Sócrates,
tanto em Platão como nos outros socráticos , sempre põe na palavra 'alma'
uma ênfase surpreendente, uma paixão insinuante e como que um jura
mento. Antes dele, nenhum lábio grego pronunciou assim esta palavra.
Temos a sensação de que , pela primeira vez no mundo ocidental, surge
aqui algo que ainda hoj e designamos com certa ligação à mesma palavra,
ainda que os psicólogos modernos não lhe associem a idéia de uma 'subs
tância real'. A palavra 'alma', pelas suas origens na história do espírito,
tem sempre para nós uma conotação de valor ético ou religioso. Tem um
tom cristão, como as expressões 'serviço de Deus' e 'cuidado da alma'. Ora,
gregos, e nosso aluno Francesco Sarri confirmou a tese com uma imponen
te documentação. 1 6
Examinando todos os documentos que nos chegaram, pode-se estabe
lecer com segurança que justamente em torno a Sócrates centra-se o des
locamento radical - preparado pelos sofistas - da pergunta de fundo da
filosofia do cosmo em geral para o homem em particular. Enquanto os
filósofos naturalistas pretendiam explicar todas as coisas relativas ao
universo (inclusive o homem ) em função da unidade de um princípio (ou
de alguns princípios), Sócrates pretendia explicar todas as coisas relati
vas ao homem e à sua vida, reduzindo-as à unidade de um princípio, mas
de tipo novo. Queria individuar a natureza ou essência do homem, e em
função desta interpretar a vida do homem . E indicavajustamente napsyche,
entendida como consciência intelectual e moral, a natureza do homem,
com as conseqüências de que falaremos .
16Na nossa História da filosofia antiga, citada acima na nota 1 do capítulo 8. O livro de Sarri é
citado acima na nota 12 do capítulo 9 .
17Platão, Fedro, 2 2 9 D
- 2 3 0 A.
A identificação da ''psyche" com a personalidade do homem 143
18Estamos profundamente convencidos da autenticidade desse diálogo. Mas, mesmo que não fosse
autêntico, como documento do pensamento socrático, ele seria em todo caso respeitável e até mesmo,
para dizer por absurdo, ainda mais do ponto de vista histórico.
144 A identificação da ''psyche" com a personalidade do homem
Não dos corpos deveis cuidar, nem das riquezas nem de qualquer ou
tra coisa antes e com maior empenho do que da alma, de modo que se
torne o melhor possível .
Apologia de Sócrates, 30 B
Com base no que dissemos no capítulo precedente fica claro que com
Sócrates a revolução da concepção do homem na cultura dos gregos rea
lizara-se e que a visão homérica do homem invertera-se inteiramente.
Logo no início da Ilíada lê-se:
Canta-me a Cólera - ó deusa! - funesta de Aquiles Pelida,
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas fpsychai] de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios [autous] aos cães atirados
e como pasto das aves . . . 1
veneno não estarei mais junto de vós, mas m e encaminharei para a felicidade
que deve ser a dos bem-aventurados - tudo isso, creio, eram para ele vãs
palavras, meras consolações que eu procurava dar-vos, ao mesmo tempo que
a mim mesmo ! Sede, pois, meus fiadores junto a Críton, garantindo-lhe o
contrário daquilo que ele afiançou aos juízes. Ele jurou que eu ficaria no
meio de vós; vós, porém, afirmai-lhe que não ficarei entre vós quando morrer,
mas que partirei, que me irei embora ! Este é o único meio de fazer com que
esta provação seja mais suportável a Críton, o meio de evitar que, vendo
queimar ou enterrar meu corpo, se impressione e pense que estou sofrendo
dores inenarráveis, e que no decorrer dos funerais diga estar expondo Sócrates,
conduzindo-o à sepultura e enterrando-o! Nota bem, meu bravo Críton: a
incorreção da linguagem não é somente uma falta cometida contra a própria
linguagem. Ela faz mal às almas! Não! É preciso perder esse temor. Realiza
estes funerais como quiseres e como achares mais conforme aos usos.3
60. Gigon, Sokrates. Sein Bild in Dichtung und Geschichte, Berna 1947; Munique 19792, Tubinga
e Basiléia 19943.
7Cf. Sarri, Socrate . . . , cit., passim.
A descoberta socrática do "cuidado da alma" 153
8Preparamos uma edição com o texto grego ao lado desta obra de Platão para a Rusconi, Milão
19974•
154 A descoberta socrática do "cuidado da alma"
to, como podia corromper os jovens um homem desse tipo? A não ser que
cuidar da virtude signifique corromper. 15
E ainda:
- Dize-me, perguntou Sócrates , ó Eutidemo, já estiveste em Delfos?
- Pelo menos duas vezes, por Zeus !
- E notaste que no templo, em algum lugar, está escrito: "Conhece-te a ti
mesmo"?
- Certamente.
- E não deste atenção àquelas palavras ou, pelo contrário, te empenhas-
te verdadeiramente em examinar quem és?
- Não, por Zeus; eu pensava que já sabia isso, porque dificilmente co
nheceria qualquer outra coisa se não conhecesse a mim mesmo.
- E parece-te que conhece a si próprio quem apenas conhece o próprio
nome ou quem, tendo examinado a si próprio e as suas atitudes relativas às
funções a que o homem é destinado, sabe avaliar as suas capacidades , como
os compradores de cavalos, os quais não pensam conhecer o cavalo que dese
jam comprar antes de ter examinado se é dócil ou indócil, se é forte ou fraco,
se é veloz ou lento e, em suma, quais são as qualidades ou defeitos com
relação ao uso que quer fazer dele?
- Parece-me, respondeu, que quem não conhece as próprias capacidades
ignora a si próprio. 16
Para ele as muralhas mais sólidas e mais estáveis para a defesa con
tra os inimigos não eram os muros da cidade, mas as da alma. A tarefa do
homem consistia em exercitar-se em ser plenamente si mesmo.
De Aristipo chegou-nos um testemunho (com paralelos em Antístenes)
no qual diz-se que a psyche deve ser cuidada e fortificada de modo análogo
ao que se faz com os corpos :
Como o s nossos corpos crescem e são nutridos e se fortalecem s e são exer
citados na ginástica, assim também a psyche se desenvolve se cuidada e
torna-se melhor se fortalecida. 19
19Fr. IV A 124 Giannantoni; ver Sarri, Socrate, cit., p. 232, com os testemunhos paralelos aí apre
sentados em sinopse.
2°Fr. III A 2 Giannantoni; cf. Sarri, Socrate, cit., p . 238 s . e pp. 234-238 para É squines.
A descoberta socrática do "cuidado da alma" 159
26Lísias, II 79 ss.
27Isócrates, VIII 34.
28Platão, Banquete, 2 16 D-E (A tradução que seguimos é a de José Cavalcante de Souza no vol. III
da Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1972. N.d.T.).
162 A descoberta socrática do "cuidado da alma"
em não poucos males; muitos, debilitados pela riqueza, perecem nas insídias
a que se expõem; muitos, por causa da fama e do poder político, padecem
grandes desgraças.29
Jan Patocka, no seu livro de 1973 ,34 sustentou a tese, que tem muito
de verdade, segundo a qual a consciência da Europa teria começado a cons
truir-se justamente sobre a aquisição da concepção do "cuidado da alma".
Recordamos que Patocka opôs-se em Praga ao regime comunista, até a
trágica morte ocorrida depois de um áspero interrogatório. Pela sua vida e
pelo seu exemplo foi inclusive definido como o Sócrates de Praga.35
O cuidado da alma, diz ele, é a formação interior do homem, de cons
ciência sólida e inabalável. Mas isto não é forma de intelectualismo abs
trato; ao contrário, é "aspiração a encarnar o eterno no tempo e no próprio
ser; inspiração, ao mesmo tempo, a resistir a todos os perigos que isso
comporta, a resistir quando o cuidado da alma põe o homem em perigo ."36
Quando um homem, numa comunidade, para cuidar da alma põe-se
fora das regras é considerado perigo para a própria sociedade. A própria
existência de Sócrates foi para a sua comunidade uma "provocação".
Escreve Patocka: "Sócrates é o primeiro que opõe à tirania secreta, e
aos revestimentos hipócritas da antiga moral, a idéia que o homem orien
tado no sentido pleno do termo, à busca da verdade, o homem que exami
na o que é bom, sem saber ele mesmo o que é positivamente bom, mas
recusando simplesmente as falsas opiniões, parecerá necessariamente o
pior e o mais nocivo dos homens, ao passo que na realidade é o melhor, e,
ao contrário , o que adota a atitude da massa parecerá melhor, visto que
Dario Del Corno traduziu psychai por "espíritos", com razão, porque,
como veremos, o j ogo está no seguinte: aquelas psychai, aquelas "som
bras" vãs , privadas de inteligência e de consciência de que falava Homero,
6Sobre o desenvolvimento do conceito de psyche nos poetas entre Homero e Sócrates cf. Sarri,
Socrate, cit . , pp. 143-152.
7Aristófanes, As nuvens, vv. 90- 1 0 1 . (A tradução brasileira que seguimos é a de Mário da Gama
Kury, 2ª edição, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2000. N.d.T.).
Sócrates e Aristófanes 169
N.d.T.).
11Aristófanes, As nuvens, vv 4 12-422.
.
14Aristófanes, As aves, vv. 1553-1563. (A tradução brasileira é de Adriane da Silva Duarte, São
Paulo, Editora Hucitec, 2000. N.d.T.).
Sócrates e Aristófanes 173
Além disso, por todo o tempo que durar nossa vida, estaremos mais
próximos do saber, parece-me, quando nos afastarmos o mais possível
da sociedade e união com o corpo, salvo em situações de necessidade
premente, quando, sobretudo, não estivermos mais contaminados por
sua natureza, mas, pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato . . .
FÉDON 67 A
s e , pelo menos e m relação a estas coisas não s e passem como os poetas não se
cansam de no-lo repetir incessantemente, e que não vemos nem ouvimos
com clareza? E se dentre as sensações corporais estas não possuem exatidão
e são incertas, segue-se que não podemos esperar coisa melhor das outras
que, segundo penso, são inferiores àquelas . Não é também este o teu modo
de ver?
- É exatamente esse.
- Quando é, pois, que a alma atinge a verdade? Temos dum lado que,
quando ela deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questão que
seja, o corpo, é claro, a engana radicalmente.
- Dizes uma verdade.
- Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não de outro modo, que
a alma apreende, em parte, a realidade de um ser?
- Sim.
- E , sem dúvida alguma, ela raciocina melhor precisamente quando ne-
nhum empeço lhe advém de nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista,
nem dum sofrimento, nem sobretudo dum prazer - mas sim quando se isola
o mais que pode em si mesma, abandonando o corpo à sua sorte, quando,
rompendo tanto quanto lhe é possível qualquer união, qualquer contato com
ele, anseia pelo real?
- É bem isso!
- E não é, ademais, nessa ocasião que a alma do filósofo, alçando-se ao
mais alto ponto, desdenha o corpo e dele foge, enquanto por outro lado procu
ra isolar-se em si mesma?
- Evidentemente! 1
1Platão, Fédon , 64 C - 65 D.
2Platão, Fédon , 62 B .
178 O corpo humano segundo Platão
Além dessas metáforas Platão apresenta alguns conceitos que não são
menos provocadores .
e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E nisso,
provavelmente, é que há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito admitir
que não sej a permitido apossar-se do que é puro, quando não se é puro! 6
Mais uma vez Platão liga essas idéias com o orfismo: a "purificação",
diz expressamente, está em separar a alma do corpo, antes, está em desatá
la dele como de cadeias, "como é dito numa antiga doutrina."7
Por essas razões, portanto, a tarefa dos filósofos é a de ajudar o máxi
mo possível a alma a desatar os próprios laços com o corpo e, portanto,
nesse sentido, a exercitar-se na "morte do corpo". Portanto, a morte do cor
po é apresentada como o correlativo da vida da alma.
6Platão, Fédon , 6 6 B - 6 7 B .
7Platão, Fédon , 6 7 C .
8Porfírio, Vida de Platino, 1 .
9lbidem.
O corpo humano segundo Platão 181
1ºPlatão, Górgias, 493 A-B . O jogo terminológico ao qual Platão se refere nesta passagem é entre
pithos (vaso), a imagem a que é comparada a alma, e pithanos (seduzível), que pretende exprimir a
conotação moral da alma.
11Platão, Timeu, 42 E - 43 A.
182 O corpo humano segundo Platão
mortais e o que ainda faltava, ou seja, tudo que ainda era necessário acres
centar à alma humana, e, fornecendo isso e tudo o que daí se segue, domi
nassem e governassem o vivente mortal na medida do possível do melhor e
mais belo modo [ . . . ] .
Todas essas, portanto, fazem parte das causas auxiliares, das quais Deus
se serve como de ministros ao seu serviço, para levar a efeito o quanto possí
vel a Idéia do ótimo . 12
16C. de Vogel, Rethinking Plato and Platonism, Leiden 1986; ed. ital . : Ripensando Platone e il
Platonismo, introduzione di G. Reale, trad. di E. Peroli, Milão: Vita e Pensiero, 1990, p. 284.
17Ver a nossa introdução ao volume de de Vogel citado na nota precedente, pp. 7-30.
184 O corpo humano segundo Platão
Em outra:
A tarefa de produzir as realidades mortais foi confiada pelo Demiurgo aos
seres que tinha produzido. E estes, imitando-o, depois de ter recebido o prin
cípio imortal da alma, formaram em torno a ela o corpo mortal, e lhe deram
esse corpo como veículo . 1 9
18Platão, Time u , 44 d - 45 A.
19Platão, Timeu, 69 C.
2ºPlatão, Timeu, 90 A-B.
14
A SAÚDE DO CORPO SEGUNDO PLATÃO
NATUREZA DA SAÚDE
E M É TODOS PARA A SUA CONSERVAÇ ÃO
E PARA A SUA RECUPERAÇ ÃO
2Ver a nova edição da obra preparada por M. Vegetti com texto grego ao lado, Rusconi, Milão 1998.
3Hipócrates, Antiga medicina, 5.
4Jaeger, Paideia, cit. , p. 1 .035 s; grifos nossos.
A saúde do corpo segundo Platão 187
e do menos; não apenas relacionados entre si, mas também com a justa me
dida que é necessário estabelecer. Pois é impossível excluir de toda dúvida a
existência do político ou de qualquer outra competência em matéria de ação
se não chegarmos a um acordo sobre esse ponto.
Sócrates, o jovem - Neste caso, na medida do possível, façamos o mesmo
com relação à questão presente.
Estrangeiro - Esta tarefa, caro Sócrates, será maior do que a primeira, e
lembremo-nos quão grande foi então. Mas eis, a esse respeito, uma previsão
que podemos fazer com segurança.
Sócrates, o jovem - Qual?
Estrangeiro - A de que o princípio de que falamos ser-nos-á necessário
um dia para demonstrar em que consiste a exatidão em si. Entretanto, limi
tando-nos àquilo que, para nosso propósito atual, se acha bem e suficiente
mente provado, creio que encontramos magnífico auxílio neste raciocínio,
que declara igualmente certas as duas afirmativas: de um lado, a de que
todas as artes são realidades, e, de outro, a de que o grande e o pequeno são
avaliados não somente por sua relação recíproca mas também com relação
ao estabelecimento da justa medida. Pois, se esta última relação existe, as
artes existem também, e se as artes existem, esta relação existe; abolida
uma destas existências, a outra jamais será possível.
Sócrates, o jovem - Exatamente. E depois?
Estrangeiro - Evidentemente, para dividir a arte de medir da maneira
que falamos teríamos que distinguir apenas duas partes: de um lado poría
mos todas as artes para as quais o número, os comprimentos, as profundida
des, larguras e espessuras se medem por seus opostos, e de outro, todas
aquelas que se referem à justa medida, a tudo aquilo que é conveniente,
oportuno e devido, a tudo que conserva o meio entre dois extremos.5
um texto de vanguarda, que até mesmo conteria algo que parece faltar à
ciência contemporânea, com o seu "reducionismo" da medida ao nível pu
ramente matemático.
5Platão, Político, 284 A-E (A tradução brasileira é a de Jorge Paleikat e João Cruz Costa, no
volume III da Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1972. N.d.T. ).
6Ver também o que dizemos no capítulo 16.
7Cf. Reale, Para uma nova interpretação de Platão, cit., pp. 3 10-3 15.
A saúde do corpo segundo Platão 189
Mas vej amos em concreto como Platão põe em ato o conceito de "justa
medida" ao examinar as enfermidades e ao propor as suas terapias .
outra."1 2
Jaeger, que conhecia muito bem sej a a medicina grega sej a Platão,
deu uma interpretação, a nosso ver, muito fundada. A ela nos remetemos
agora.
Logo antes da passagem citada, Platão evoca Péricles, que foi grande
na oratória enquanto se inspirou em Anaxágoras, e nas suas "investiga
ções celestes", "sublimes tagarelices" (meteorologia, adolescheia). Pensou
se que esses termos irônicos referidos a Péricles e a Anaxágoras deviam
ser estendidos também a Hipócrates, e muitos acreditaram que Platão o
representasse como aquele tipo de médico-naturalista que filosofava
indevidamente e com "sublimes tagarelices".
Entretanto, a última parte da passagem citada mostra o contrário, ou
seja, que Platão descreve o método de Hipócrates como o da análise acurada
da natureza, o da decomposição dos vários tipos e das características de
cada um deles . Trata-se de método que corresponde perfeitamente ao que
o próprio Platão fundou e aplicou, com extraordinários aprofundamentos
no nível ontológico, mediante a sua dialética.
Jaeger explica: "Não é preciso conhecer a fundo os diálogos platônicos
para compreender que o método que Platão aqui define como próprio e
peculiar da medicina não é outro senão o que ele próprio seguiu sobretudo
nas obras da última fase. Com efeito, ao lermos a literatura médica, fica
mos assombrados por vermos até que ponto se reflete nela o critério metó
dico de 'Sócrates', tal qual Platão o expõe. Já vimos que a medicina empírica,
forçada pela prática, começa a focar um conjunto , agrupando em tipos ou
formas (eide ) - para usarmos as palavras de Platão - os casos concretos
de características idênticas , verificadas numa observação ampla. Quando
em medicina se distinguem vários destes tipos, fala-se de eide , mas quan
do se trata apenas da unidade na variedade emprega-se já o conceito de
uma idéia (mia idéa), quer dizer, um aspecto ou uma faceta. Idêntico re
sultado alcançara o estudo das expressões eidos e idéia e da maneira como
Platão os emprega. Estes conceitos metódicos, que os médicos começaram
por elaborar a respeito do corpo e das funções, são mais tarde transpostos
para a esfera de problemas em que se concentravam as suas investigações
- a esfera da ética - e, a partir daqui, para toda a ontologia."13
Gadamer, que aceita a interpretação de Jaeger, observa, com razão,
que essa passagem pode soar como uma extraordinária advertência con
tra a tendência de certa medicina contemporânea, que tende a eliminar a
dimensão do "natural" em função de uma construção racionalmente mo
delada e controlada, com a inevitável substituição do "natural" pelo "arti
ficial". A verdadeira medicina deveria permanecer fiel ao antigo pressu
posto da idéia de natureza como regra de base .
Escreve Gadamer em referência à passagem do Fedro que comenta
mos: "A natureza do todo, da qual se discute nesse diálogo, não indica
apenas a totalidade unitária do organismo . Possuímos vasta coletânea de
material, proveniente da medicina grega, que ilustra como o tempo at
mosférico, a estação, a temperatura, a água e a alimentação, em poucas
palavras, como todos os possíveis fatores ambientais e climáticos conver
gem na determinação da condição existencial concreta de quem precisa
ser curado. No contexto no qual figura, o trecho tratado permite também
conclusão ulterior. Na natureza do homem entra toda a situação da vida
do paciente e até mesmo a do médico." 1 4
Naturalmente, essas últimas observações só estão implícitas no tex
to, mas podem ser corretamente inferidas a partir dele. Gadamer reafir
ma: "A enfermidade, a perda do equilíbrio, não se refere só a fato médico
biológico, mas também a acontecimento biográfico e social. O enfermo não
é mais a mesma pessoa de antes . Está diminuído . Encontra-se fora das
suas condições normais de vida. Ao restabelecimento daquelas condições
ele permanece, todavia, ligado justamente na qualidade de enfermo, ou
seja, de indivíduo em quem falta alguma coisa. Se o equilíbrio natural é
restabelecido, então o prodigioso fenômeno da cura restitui ao indivíduo
curado também o equilíbrio vital, no qual ele era ativamente ele mesmo.
Não é de se admirar se ao contrário a perda de um equilíbrio compromete
sempre ao mesmo tempo o outro, porque se trata no fundo de único grande
equilíbrio, que mantém a vida humana ou a faz oscilar e que constitui a
sua saúde. " 1 5
Como fica claro, para Platão a "parte" do corpo não pode ser curada
senão em função do "todo" do corpo, e o corpo não pode ser curado sem a
"alma" (ou sej a, o "todo" do homem), na ótica da unidade do Todo .
16Platão, Tlme u , 82 B .
17Platão, Tlmeu, 84 C.
194 A saúde do corpo segundo Platão
Platão, sob certo aspecto, parece ter mais estima pela ginástica como
cura do corpo do que pela medicina, da qual também é grande admirador.
O motivo dessa sua convicção é o seguinte: a ginástica previne as enfermi
dades, enquanto a medicina só intervém depois que as enfermidades apa
receram; ao contrário, o homem deve preocupar-se muito mais com a pre
venção das enfermidades do que com a sua cura . Antes, segundo Platão, as
enfermidades nascem, predominantemente, quando se descuida da sua
prevenção (que se obtém mediante a ginástica e pela adoção de um correto
regime de vida).
Mas vej amos de que modo agem o mestre de ginástica e o médico,
começando pela leitura de uma passagem que fornece o conceito prelimi
nar fundamental:
Vejamos: o homem bom que diz tudo o que diz tendo em vista o que é me
lhor não falará ao acaso, mas sempre tendo em mira alguma coisa ! E assim
também todos os outros artesãos se entregam cada um à sua própria obra não
escolhendo ao acaso os materiais, mas de tal sorte que a obra produzida ad
quira determinada forma. Observa, por exemplo, os pintores, os arquitetos, os
engenheiros navais e todos os outros artesãos ou quem quer que desejes entre
eles: notarás que cada um deles põe cada coisa em certa ordem e obriga a que
uma coisa convenha à outra e a ela se adapte, até que o todo resulte perfeita
mente ordenado e ornado. E como os artesãos, assim aqueles dos quais há
pouco falávamos, isto é, os que se dedicam aos cuidados do corpo, os profes
sores de ginástica e os médicos, regulam e tornam harmônico o corpo. 2 0
Essas observações podem ter a sua verdade contra o abuso dos medi
camentos no homem de hoje, na convicção errada, hoj e dominante, de que
a saúde depende prioritariamente de medicamentos pretensamente capa
zes de eliminar quase todas as formas de males .
Para concluir sobre a cura do corpo, convém recordar que Platão ex
plicou de vários modos e reafirmou - e o veremos melhor nos capítulos
23Platão, Rep ública , III 410 B-E (a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira foi ligeiramente
modificada nesta passagem. N.d.T.).
A saúde do corpo segundo Platão 197
Mas, para sabermos o que ela [a alma] é em sua essência mesma, será
preciso contemplá-la não como o fazemos presentemente, deformada
pela união com o corpo e com tantas misérias; não: em sua essência
purificada, como ela é em si mesma é que devemos contemplá-la . . .
República , X 611 BC
5Platão, República , IV 435 C-D. Recordamos ao leitor interessado um ensaio de Th. A. Szlezák,
Unsterblichkeit und Trichotomie der Seele im zehnten Buch der Politeia , "Phronesis", 21 ( 1976), pp.
3 1-58, que, como poucos outros , toca o fundo do problema aqui em questão, e com quem em certa
medida concordamos; sobretudo consideramos exato o enfoque metodológico do problema, e o reco
nhecimento de um ponto essencial da questão, que escapa à maioria dos intérpretes, ou seja, o fato de
que a análise da alma "em toda a República , e particularmente a análise apresentada no quarto livro,
é bem distinta de outro tipo de análise mais aprofundada, que contudo não é realizada" (p. 41). E isso
Platão diz claramente.
202 A natureza da alma segundo Platão
Vej amos, então, quais são essas "formas" que a alma assume na vida
humana.
Ou ainda
Objeções desse tipo, continuei, não nos atrapalham nem bastam para con
vencer-nos de que a mesma coisa possa ao mesmo tempo e na mesma parte
de si mesma e com relação aos mesmos objetos sofrer ou produzir influências
contrárias . 1 1
15Platão, Fédon, 80 B.
16Cf. Platão, Fédon , 95 E - 102 A.
208 A natureza da alma segundo Platão
Sej a na Rep ública sej a no Fedro Platão disse com clareza que o seu
tratamento limitava-se ao que era necessário para compreender o argu
mento que discutia, e adiantou que o desenvolvimento do problema exi
giria um amplo e complexo tratamento. Em boa parte ele nos revelou o
seu pensamento sobre esse delicadíssimo problema no Time u , mesmo
mantendo-se nos limites que o escrito lhe impunha. Pelos testemunhos
indiretos sabemos que nas suas "doutrinas não-escritas" Platão avançava
muito mais . 2 3
Dada a amplidão da questão, aqui podemos fazer apenas alguns ace
nos à complexa doutrina platônica.
A alma do mundo, assim como a dos homens, é criada pelo Demiurgo
mediante duas formas de "mistura". Uma primeira em sentido "bipolar"
entre três grupos de Idéias, opostas entre si: entre a Idéia de Ser indivisível
e a de Ser divisível ; entre a Idéia da Identidade indivisível e a da Identida
de divisível; entre a Idéia de Diferença indivisível e a de Diferença divisí
vel. Desse modo o Demiurgo obteve três Idéias intermediárias : Ser inter
mediário, Identidade intermediária e Diferença intermediária. A oposição
bipolar das Idéias que são "mediadas" indica o s dois planos opostos da
realidade que entram em j ogo na composição da alma, e o seu papel, justa
mente "intermediário" entre o sensível e o supra-sensível. O segundo tipo
de mistura indica a composição horizontal das três Idéias intermediárias
obtidas com a primeira composição e sua harmonização . Portanto, a alma
reflete, de certo modo, toda a realidade: a sua função é, como dizíamos , a
de mediar as duas esferas, a inteligível e a física.
Tenha-se presente que Platão dá importância muito grande à "alma
do mundo", atribuindo-lhe aquela função mediadora de maneira determi
nante. Também não se deve esquecer o fato, em geral esquecido ou até
descartado pelos estudiosos, que a introdução de Idéias em conexão com o
"indivisível" e com o "divisível" na composição da alma implica uma estru
tura "geométrico-dimensional" da própria alma. Antes, Platão insiste tam
bém na sua estrutura "numérica", que coincide com a musical, que faz
com que os movimentos impressos pela alma ao cosmo físico , e portanto
também ao corpo, sej am harmônicos.
Eis como é apresentada a composição das almas dos homens:
[O Demiurgo] havendo assim falado, retomou a cratera em que antes
misturara e fundira a alma do mundo, e nela deitou o que sobrara dos pri
meiros ingredientes [i.é. na criação da alma do cosmo] , misturando-os quase
da mesma maneira, porém sem que estes tivessem a pureza originária; fica
ram dois ou três graus abaixo.24
24Platão, Ti.me u , 41 D.
25Platão, Fedro, 246 A.
212 A natureza da alma segundo Platão
A alma do mito do Fedro que voava com os deuses nos céus represen
ta, portanto, o modelo originário da alma, no qual os deuses criados se
insp iraram ao criar as almas mortais. Os dois cavalos que figuram na
primeira parte do mito representam a estrutura diádica de que é compos
ta a alma, como vimos ; ao contrário, na segunda parte do mito, onde se
fala da alma caída no corpo, os dois cavalos representam as formas de
alma mortal . E assim compreende-se também o que Platão diz na Repú-
blica acerca d a alma como "Glauco marinho": trata-se das "formas que lhe
são peculiares na vida humana",29 e portanto, da alma racional "imortal"
junto com a alma irascível e a concupiscível, ambas "mortais".
Mas a alma que interessa a Platão e sobre a qual ele centrou a sua
concepção do homem é , fundamentalmente, a "racional", como se com
preende esplendidamente numa passagem já citada, mas que convém re
ler aqui como conclusão do capítulo:
Quanto à espécie de alma de maior autoridade em nós, devemos aceitar a
idéia de que ela nos foi dada por Deus à guisa de gênio protetor: exatamente
o princípio que apresentamos como presidindo no vértice do corpo, e que nos
transporta da terra para nossa afinidade celestial, por não sermos planta de
raízes terrenas, porém celestes , o que afirmamos com a maior convicção, por
haver a divindade ligado nossa cabeça e nossa raiz à sede primitiva da alma,
deixando, assim, o corpo em posição ereta.30
É evidente, com base no que foi dito, que a vida do homem alcança o
seu fim último no cuidado, além e mais do que do seu corpo, da sua alma .
Mas como se cuida da alma?
1Releia-se, por exemplo o Príncipe de Maquiavel, do capítulo quinto em diante, onde a "virtu" é
entendida como a arete grega.
2Jaeger, Paideia , cit., p. 26 s .
3Ilíada , XIII, vv. 23 1-238.
216 Cuidado e saúde da alma segundo Platão
Platão coloca esse seu raciocínio num quadro de alcance cósmico, exa
tamente onde sustenta que o próprio "cosmo" é uma "ordem", porque sus
tentado pela amizade, temperança e justiça , ou seja, pela "harmonia", que
impõe regra a todo excesso, realizando uma "justa medida".9
Na Rep ública é retomado e ulteriormente desenvolvido o tema, e a
virtude é estendida a todas as coisas sem distinção . É , portanto, de grande
importância, para compreender o conceito platônico de arete na sua di
mensão ontológica, ler com atenção toda a passagem:
- E agora responde: Não dirás que o cavalo tem uma atividade especí
fica?
- Perfeitamente.
- E não definirás a atividade do cavalo ou a do que quer que seja como o
que não pode ser realizado a não ser por seu intermédio?
- Não compreendo, disse.
- É o seguinte: Consegues ver, a não ser por meio dos olhos?
- Não, evidentemente.
Se cada coisa tem uma arete que lhe é própria, qual é, então, a arete
própria do homem?
- Como? Perguntou.
- O que é saudável gera saúde, e o que é insalubre, doença.
- Certo.
- Do mesmo modo, o procedimento justo gera justiça, e o injusto, injustiça.
- Necessariamente.
- Promover saúde é deixar as diferentes partes do corpo em suas relações
naturais de comando e dependência, recíprocas, vindo a ser a doença o esta
do de coisas em que as partes dirigentes e as dirigidas se comportam contra
riamente à ordem natural.
- Isso mesmo.
- E a promoção da justiça, continuei, não consistirá também em estabe-
lecer entre as partes da alma essa reciprocidade de mando e dependência, do
mesmo modo que a injustiça virá a ser a produção de um estado de coisas em
que tal subordinação se processa contra a natureza?
- É evidente, disse.
-A virtude, por conseguinte, ao que parece, é uma espécie de saúde, bele-
za e bem-estar da alma, enquanto o vício é doença, feiúra e debilidade . 1 8
em outras obras), ou seja, aos seus discípulos que tinham seguido as suas
lições no interior da Academia. No primeiro tipo de linguagem falava de
modo muito claro; no segundo, ao contrário, limitava-se a acenar, de modo
breve e alusivo, às suas "doutrinas não-escritas". Conseqüentemente, as
mensagens comunicadas com esse segundo método eram compreendidas
somente por aqueles que tinham assistido às suas lições e que, portanto,
já tinham conhecimento daquelas doutrinas . Também nós podemos ter
aqueles "pré-conhecimentos" necessários para entender as mensagens ci
fradas de Platão, e entrar no círculo hermenêutico correto, recuperando
das informações deixadas pelos seus melhores discípulos aquilo que Platão
dizia nas suas lições acadêmicas .30
Na República Platão diz que só é filósofo quem sabe definir a coisa de
que trata e, portanto, em particular o Bem, e declara possuir essa defini
ção, mas não quer com unicá-la por escrito, para não incorrer no perigo de
ser mal entendido e escarnecido31 (como, de resto, ocorreu depois de uma
conferência pública na qual ele aceitou expor "à maioria" a sua definição
do Bem).3 2
Todavia, mesmo não apresentando uma definição precisa, oferece
naquela passagem uma série de indicações alusivas que nos permitem
chegar às conclusões.
Mediante o método dialético da abstração em sentido forte,33 o filóso
fo passa não só das coisas sensíveis às Idéias, mas sobe das Idéias particu
lares às gerais, até chegar a operar a abstração última, captando desse
modo a Idéia suprema do Bem .
Que é, então, o Bem? Sempre n a Rep ública , e m várias passagens e
com remitências cruzadas muito complexas, Platão oferece conotações da
definição do Bem de modo exaustivo. Mas só nos testemunhos que nos
chegaram sobre as "doutrinas não-escritas" extraímos a definição exata: o
Bem é o Um, Medida suprema de todas as coisas .34 Naturalmente, fala-se
de Um e de Medida em sentido metamatemático , ou sej a, ontológico e
axiológico. Nesse sentido, o Um é o que , uni-ficando em vários níveis o
múltiplo desordenado, produz o ser, a ordem e a harmonia das coisas . O
Bem como Um e Medida suprema, conseqüentemente, é o fundamento da
3ºCf. Reale, Para uma nova interpretação de Platão, cit., p. 54- 193.
31Cf. Platão, República , VI 506 D- 507 A e Reale, Para uma nova interpretação de Platão, cit., p.
242 ss.
32Ver o que Aristóxeno refere, sobre o testemunho de Aristóteles, in Elementos de harmonia , II 39
s. Da Rios, sobre o qual cf. Reale, Para uma nova interpretação de Platão, cit. , p. 159 s .
33Sobre o significado de "abstração" em sentido dialético cf. Reale, Platone, cit., pp. 187-204, par
ticularmente p. 189 ss.
34Sobre o problema o leitor interessado poderá ver: H. Kriimer, Dialettica e definizione dei Bene in
Platone , introduzione di G. Reale, traduzione di E . Peroli, Milão: Vita e Pensiero, 19964•
Cuidado e saúde da alma segundo Platão 227
35Cf. Reale, Para uma nova interpretação de Platão, cit. , p. 256 ss.; e Platone, cit. , p. 199 ss.
36Platão, Filebo, 66 A-C.
228 Cuidado e saúde da alma segundo Platão
texto a Medida era indicada por Platão como o Bem absoluto, e escreveu:
"Parece-nos estranha a importância atribuída à medida, posta no vértice
da escala dos valores: mas por Medida, Platão entende na realidade o
Absoluto, e escolhe essa denominação porque o absoluto inclui em si não
só o bem entendido em sentido finalístico, mas também o belo e, portanto,
um princípio de ordem e de proporção, e constitui a causa primeira da sua
existência concreta e norma da sua mistura exata."37
Recordamos, enfim, que Aristóteles, num fragmento de um diálogo
perdido (eu tinha o título Político , como o conhecido diálogo de Platão),
retomando um pensamento do mestre afirmava:
O Bem é a medida exatíssima de todas as coisas.3 8
5M. Nachmansohn, Freuds Libidotheorie vergliechen mit der Eroslehre Platos, na revista citada
na nota precedente, 3 ( 19 15), pp. 65-83, o texto transcrito está nas p. 82 s .
Platão e a psicanálise 233
- Pois assim também é com o amor. Em geral, todo esse desejo do que é
bom e de ser feliz, eis o que é "o supremo e insidioso amor, para todo homem",
no entanto, enquanto uns, porque se voltam para ele por vários outros cami
nhos, ou pela riqueza ou pelo amor à ginástica ou à sabedoria, nem se diz que
amam nem que são amantes, outros ao contrário, procedendo e empenhando
se numa só forma, detêm o nome do todo, de amor, de amar e de amantes.
- É bem provável que estejas dizendo a verdade - disse-lhe eu.
- E de fato corre um dito, continuou ela, segundo o qual são os que pro-
curam a sua própria metade os que amam; o que eu digo porém é que não é
nem da metade o amor, nem do todo; salvo que meu amigo, esses não sejam o
Bem. Pois até os seus próprios pés e mãos querem os homens cortar, se lhes
parece que o que é seu está ruim. Não é com efeito o que é seu, penso, que
cada um estima, a não ser que se chame o bem de próprio e de seu, e o mal de
alheio; pois nada mais há que amem os homens senão o bem; ou te parece
que amam?
- Não, por Zeus - respondi-lhe.
- Será então - continuou - que é tão simples assim, dizer que os ho-
mens amam o bem?
- Sim - disse-lhe.
- E então? Não se deve acrescentar que é ter consigo o bem que eles
amam?
- Deve-se.
- E sem dúvida - continuou - não apenas ter, mas sempre ter?
- Também isso se deve acrescentar.
- Em resumo então - disse ele - o amor é a tendência a estar de posse
do Bem para sempre.6
6Platão, Banquete, 205 A- 206 A (Tradução de José Cavalcante de Souza ligeiramente modifica
da. N.d.T.)
7Sobre ele ver a introdução que escrevemos para o seu recente livro: Aristotele e i fondamenti
assiomatici della geometria , prefazione e introduzione di G. Reale, traduzione di E. Cattanei, Milão:
Vita e Pensiero, 1997, 19982•
234 Platão e a psicanálise
8H. Kelsen, Die platonische Liebe, in "Imago. Zeitschrift für Psychoanalytische Psychologie, ihre
Grenzgebiete und Anwendungen", 19 ( 1 933): edição italiana: L'amor platonico , traduzione e cura di
C. Tommasi, Il Mulino, Bolonha 1985, p. 47 s .
Platão e a psicanálise 235
Nas Leis Platão reafirma que o prazer da união entre homem e mulher
para a procriação é um prazer segundo a natureza , enquanto a relação se
xual entre homens (assim como a relação entre mulheres) é contra a nature
za , e que os que introduziram esses costumes o fizeram movidos pela liber
tinagem. As conclusões que extrai acham-se nesta passagem-chave:
De um lado teremos, portanto, quem é amante do corpo e faminto da
exuberante juventude como de um fruto maduro; este se empenhará em sa-
ciar-se sem dar nenhum valor ao estado da alma do amado. De outro lado
teremos, ao contrário, quem não dá excessivo valor ao desejo do corpo e por
isso, mesmo admirando-o, mais do que amando-o, com a sua alma deseja
sinceramente outra alma, de modo a considerar mero ato de violência o gozo
que segue a relação entre dois corpos, e, ao contrário, de modo a honrar e
respeitar a temperança, a coragem, a magnanimidade e a sensatez, tanto
que seu ideal seria o de viver sempre em castidade com amigo casto. 11
O reducionismo científico-naturalista
da exegese psicanalítica do Eros platônico
E eis como Platão apresenta os "efeitos" que o amante que segue essa
via "filosófica" provoca no amado, e como inverte radicalmente a tese que
Lísias queria demonstrar. O amado se dá conta que do verdadeiro amado
recebe um tipo de relação de amizade que nenhum outro sabe lhe oferecer.
19Platão, Fedro, 2 5 1 C
- 252 B .
2ºKelsen, L'amor platonico , cit. , p. 6 6 .
2 1 C . Ritter, Platons Dialog Phaidros, übersetzt, erlãutert und mit ausfürhrlichem Registerversehen,
Leipzig 1914, 19222, p. 129.
Platão e a psicanálise 241
so, além de ser expressa nos versos . 22 Quando não se entra no j ogo da com
petição retórica e no espírito da comédia segundo o qual é conduzido o
discurso sobre Eros no Fedro , só podem se produzir equívocos de todo tipo;
tanto mais no que se refere à passagem em questão, na qual Platão inver
te, com seus típicos jogos irônicos , alguns dos argumentos do discurso eró
tico de Lísias , fazendo-os assumir significados opostos. Remetemos o lei
tor interessado ao nosso já citado comentário ao Fedro (publicado na coleção
"Escritores gregos e latinos" da Fondazione Lorenzo Valla), no qual expli
camos pormenorizadamente o complexo mecanismo do diálogo. 2 3
É claro, entretanto, com base no que mostramos aqui, que o texto
platônico só pode adquirir o sentido que lhe dá Kelsen se for lido segundo
um sistema de referência conceptual e verbal que lhe é estranho, que se
revela um sistema fortemente redutor, em sentido naturalista e científico,
relativamente ao significado e ao alcance do pensamento platônico.
22Tenha-se presente o fato de que o fulcro do discurso de Platão centra-se sobre a metáfora segun
do a qual Eros dá novamente "asas" à alma e, portanto, o reclamo das asas, por meio do nome cunhado
adrede, é emblemático.
23Ver a Introdução, passim, e o comentário, pp. 202-234.
24Kelsen, L'amor platonico, cit., p. 84.
242 Platão e a psicanálise
parecerá ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora
aturdido e disposto, tu como outros muitos, contando que vejam seus ama
dos e sempre estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo
fosse possível, mas a só contemplar e estar ao seu lado.
Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse
contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes hu
manas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino
belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse,
que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, com
aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive?
Ou não consideras , disse ela, que somente então, quando vir o belo com
aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de
virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes,
porque é no real que estará tocando? E não crês que, produzindo e cultivando
verdadeira virtude, será caro aos deuses, e será, se é que algum homem pode
ser, ele também imortal ?25
Mas é justamente aqui que a tese da "sublimação" da lib ido , por mais
que possa parecer sedutora, sobretudo se expressa de maneira eficaz e
com habilidade, corre o risco de cravar o amor platônico no leito de Procusto.
Kelsen escreve : "Esta é [ . . . ] a transfiguração mais sublime da qual o
amor pode participar. Muito mais do que o cristianismo, que mais tarde
santificaria o amor do homem pela mulher e pela mãe na figura da vir
gem, mãe do Redentor, Platão aqui soube elevar o amor do homem pelo
homem ao céu do conhecimento metafísico. Ele justificou para si mesmo e
para o mundo aquele eros pelo qual certamente sofreu muito mais do que
os diálogos revelam, e desse modo soube oferecer a esse mundo uma justi
ficação e um fundamento éticos." 26
Isso é certo, mas a "transfiguração" do Eros não ocorreu por uma "su
blimação" da lib ido na dimensão física , mas do Eros na dimensão me
tafísica : ela ocorreu em conseqüência da revolucionária descoberta platô
nica da dimensão do ser metassensível , da existência de uma realidade
inteligível, ou seja, com a demonstração - como dizíamos com expressão
shakespereana - de que existem muito mais coisas no céu e na terra do
que comumente se acredita.
Platão poderia obj etar aos seus intérpretes "psicanalistas" que eles
confundem as "com-causas" ou as "causas auxiliares" com as "verdadeiras
causas". Ao interpretar a "escala do amor" por ele criada (e tudo o que ele
alcançou com o seu pensamento e a sua vida), como "sublimação da libido
sexual", esses intérpretes fazem algo análogo ao que acontece aos que pen-
25Platão, Banquete , 211 D - 212 A (A frase grifada no final da citação não aparece na tradução de
José Cavalcante de Souza, que seguimos aqui. N.d.T.).
26Kelsen, L'amor platonico, cit., p. 113.
Platão e a psicanálise 243
EXTREMO
MAL
E SAÚDE PERFEITA DO HOMEM
SEGUNDO PLATÃO
A METÁF ORA DA ALMA COMO BESTA DE MUITAS CABEÇAS
A SEREM DOMADAS
A patologia da alma
freio, até reduzir a democracia à servidão, pois é um fato que o abuso seja do
que for provoca reação correspondente, o que se verifica tanto nas estações,
nas plantas e nos corpos, como no governo das cidades.
- É natural, observou.
- O excesso de liberdade só pode terminar em excesso de escravidão,
assim nos indivíduos como nas comunidades.
- É a ordem natural das coisas.
- É natural, por conseguinte, continuei, que a tirania não possa deixar
de provir de outra forma de governo que não a democrática, a saber: da ex
trema liberdade nasce a mais completa e selvagem servidão. 1
Lutar contra os desejos é dificil. Pois o que exige, compra [ao preço] da
alma.5
Quem nos seguiu até aqui terá certamente captado o alcance das con
clusões às quais chega Platão: a que se chama "felicidade" é uma forma de
perfeita "saúde", e não só do corpo . Ser vigoroso, sadio e belo fisicamente é
certamente grande coisa; mas não basta, como j á sabemos , se também não
existe a saúde da alma e a temperança .
O fim supremo do homem deveria ser, portanto, o de alcançar a saúde
do corpo e a da alma em perfeita harmonia. O homem que atinge essa meta
torna-se "verdadeiro músico", e alcança a paz e a felicidade autêntica.
Releiamos o texto , expressão de conceito que se impõe como verdadei
ra cifra emblemática do pensamento platônico, que sela tudo o que disse
mos até aqui :
- E como pretender que é vantajoso praticar alguém vilanias sem vir a
ser descoberto nem castigado? Porventura não se torna pior o criminoso ocul
to? E no criminoso descoberto e punido o elemento animal não fica dócil e
calmo, vindo a ser posto em liberdade o elemento manso? Desse modo, a
alma inteira, reposta na melhor ordem, adquire temperança, justiça e sabe
doria, estado tanto mais valioso do que o do corpo, que, aliás, também ganha
beleza, robustez e saúde, na proporção que a alma é superior ao corpo.
- É muito certo, respondeu.
- Assim, o homem sensato fará convergir para esse fim todas as suas
energias, a começar pelo alto apreço em que terá os conhecimentos capazes
de levar a alma a semelhante estado e pelo desprezo dos demais?
- É evidente, respondeu.
- De seguida, continuei, não confiará os cuidados e a alimentação do
corpo aos prazeres bestiais e irracionais, passando a viver com essa única
preocupação, como não concederá maior apreço nem porá empenho em ficar
mais forte, saudável e belo, se por esse meio não se tornar mais temperante.
Para ele a harmonia do corpo decorrerá sempre da sinfonia da alma.
- É o que fará, sem dúvida, observou, se quiser vir a ser músico de ver
dade. 6
5Heráclito, 22 B 85 Diels-Kranz.
6Platão, República , IX 591 B-D.
19
A DOR E O SOFRIMENTO
SEU SIGNIFICADO AXIOL Ó GICO E METAF Í SICO
NO PENSAMENTO ANTIGO EM GERAL
E EM PLATÃ O EM PARTICULAR
1 É squilo, Agamenon, vv. 174 ss e 250. (A tradução brasileira é a de Manuel de Oliveira Pulquério,
Brasília: Editora UnB, 1997. N.d.T. )
252 A dor e o sofrimento
assumem diante dos filhos os pais que procuram poupá-los de certas pro
vações da vida. De fato, sem elas não se pode aprender; as dores estão
ligadas à própria essência da experiência, e também as desilusões . São
justamente as instâncias negativas da experiência que levam a nova ex
periência e, portanto, ao conhecimento . São elas que nos libertam de fe
chamentos e de incompreensões das coisas , produzidas por uma espécie
de cegamento.
Justamente para ilustrar esse momento da experiência, Gadamer
refere-se a É squilo: 2 "Ele encontrou a fórmula, ou melhor, a reconheceu
em seu significado metafísico, fórmula que expressa a historicidade inter
na da experiência: aprender pelo sofrimento (pathei mathos). Esta fórmu
la não significa somente que nos tornamos inteligentes através do dano e
que somente no engano e na decepção chegamos a conhecer mais adequa
damente as coisas. Assim compreendida a fórmula deveria ser tão velha
como a própria experiência humana. Porém, É squilo pensa mais que isso.
Refere-se à razão pela qual isto é assim. O que o homem deve aprender
pelo sofrer não é isto ou aquilo, mas a percepção dos limites de ser homem,
a compreensão de que as barreiras que nos separam do divino não podem
ser superadas . No último extremo, é um conhecimento religioso - aquele
conhecimento a partir do qual se dá a origem da tragédia grega. - Ex
periência é, pois , experiência da finitude humana. É experimentado, no
autêntico sentido da palavra, aquele que é consciente desta limitação, aque
le que sabe que não é senhor do tempo nem do futuro . O homem experi
mentado, propriamente, conhece os limites de toda previsão e a insegu
rança de todo plano . Nele consuma-se o valor de verdade da experiência.
[ . . ] Conhecer o que é vem a ser, pois, o autêntico resultado de toda expe
.
Girgenti, La nuova interpreazione di Platone. Un dialogo di Hans Georg Gadamer con la Scuola di
Tubinga e di Milano (Tubinga, 3 settembre 1996), introduzione de H. G. Gadamer, Rusconi, Milão
1998, pp. 127- 140.
A dor e o sofrimento 253
5Reale, Per una nuova interpretazione . . . , 20ª ed. , Milão: Vita e Pensiero, 1997, p. 850; Girgenti, La
nuova interpretazione .. . , cit. , p. 135. (Citamos aqui a edição italiana porque a tradução brasileira,
feita a partir da 14ª edição italiana de 1991, não contém o apêndice a que se refere o autor. N.d.T. )
6Cf. supra, a nota 2.
254 A dor e o sofrimento
7Sófocles, Édipo e m Colono, vv. 574-576. (A tradução brasileira é Mário da Gama Kury, 9" ed., Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 200 1 . N.d.T.).
A dor e o sofrimento 255
Portanto, É dipo não é culpável, e é punido pela sorte por ações come
tidas sem saber o que fazia e que, portanto, eram ao mesmo tempo "culpas
e não culpas", e, enquanto tais, davam aos seus sofrimentos um peso mul
tiplicado ao extremo.
Justamente em referência a essa tragédia Dario Del Corno escreveu:
"A tragédia é um discurso sobre o absoluto - talvez o mais elevado dentre
os que renunciaram a resolvê-lo graças a uma hipótese metafísica: porque
o deus 'trágico' não é mais que uma metáfora da imperscrutabilidade com
que o real se subtrai aos parâmetros da razão humana. Nesse abismo está
a coincidência dos opostos: onde as definições humanas de culpa e inocên
cia, de justiça e inj ustiça, de bem e de mal se anulam num amálgama que
não admite distinções. A sorte de É dipo é culpável, e não o é: porque ele
não quis nem soube o seu delito, que lhe foi imposto pelo destino - e no
seu momento extremo ele aprende que foi maldito pela divindade, porque
ela quis fazer dele um eleito. É dipo acorrentado é a reposta mais 'trágica'
ao enigma da tragédia: no conflito incurável da existência, que salvação
podem esperar os homens , que desespero não admite remédio? Mas no
universo trágico elimina-se também esta alternativa, a verdade última de
É dipo significa que ao homem não se concede separar nem sequer a espe
rança do desespero - como anuncia o epigrama de Hõlderlin, que tem por
título Sófocles: 'Muitos tentaram em vão dizer com alegria a suma alegria;
/ aqui ela finalmente me fala, aq ui na dor se exprime. ' "9
Del Corno considera que É dipo, justamente ao chegar a esta revela
ção na dor, não percorre a via da redenção, mostrando que mediante a dor
não tinha aprendido nem resignação nem piedade . E considera que isso
teria tornado vão "o mistério da simultânea compreensão dos opostos". A
nós, ao contrário, parece que justamente por meio da dor É dipo aprendeu
a maior de todas as coisas, a verdadeira redenção . Mas antes de eviden-
ciar este ponto, queremos apresentar uma esplêndida anotação sobre É dipo
que Albert Camus fez na sua célebre obra O mito de Sísifo .
Camus , como é sabido, põe n o momento d o retorno d e Sísifo para reto
mar a pedra e levá-la ao cimo do monte, o fulcro do mito. Nesse momento
Sísifo adquire consciência do seu destino, e sabe que a nova subida será vã
e que isso deverá repetir-se para sempre . E nesta consciência de Sísifo está
o ponto mais significativo da tragédia: o sofrimento pode absurdamente
transformar-se em alegria .
Eis como Camus liga esse momento do mito de Sísifo com É dipo: "Se esta
descida se faz, certos dias, na dor, pode-se fazer também na alegria. Esta
palavra não é exagerada. Imagino ainda Sísifo que volta para a sua pedra e,
no início, a dor está nele. Quando as imagens da terra são muito apegadas à
recordação, quando o clamor da felicidade se faz muito premente, nasce no
coração do homem a tristeza: é a vitória da pedra, é a própria pedra. O imenso
pesar é demasiado pesado para se levar. São as nossas noites de Getsêmani.
Mas as verdades aniquiladoras sucumbem pelo fato de serem conhecidas.
Assim É dipo obedece ao destino sem conhecê-lo. A partir do momento que o
conhece, começa a sua tragédia, mas, no mesmo instante, cego e desesperado,
compreende que o único laço que o mantém ligado ao mundo é a fresca mão
de uma jovenzinha. Uma sentença de extraordinária grandeza ressoa então:
'Não obstante todas as provas, a minha tardia idade e a grandeza da minha
alma fazem-me julgar que tudo seja bem. ' O É dipo de Sófocles, como Kirilov
de Dostoievski, exprime assim a fórmula da vitória absurda. A sabedoria an
tiga liga-se ao heroísmo moderno." 10
Mas o verdadeiro grande momento conclusivo, a nosso ver, está no
que É dipo verdadeiramente aprendeu por meio da dor, ou seja, o amor
pelas filhas . Diz, com efeito, antes da morte:
Filhinhas, vosso pai de hoje em diante já não existe. Hoje todas as mi
nhas coisas desaparecem, e desaparece tudo o que fui. Não tereis mais,
doravante, a pena de sustentar-me: dura pena, bem sei, filhinhas . Mas uma
única palavra pode dissolver tantos afãs: eu vos amei. Ninguém vos amou
mais do que e u , que não vereis mais pelo tempo de vida que vos resta. 11
Aqui, o que Del Corno chama "o mistério da co-presença dos opos
tos"12 na realidade é resolvido, com a mediação sintética daqueles opostos
10A. Camus, Le mythe de Sisyphe, Paris 1942; ed. ital . : Il mito di Sisifo, trad. de A. Borrelli,
Bompiani, Milão 19664, p. 170.
11Sófocles, Édipo em Colono, vv. 1 . 6 1 1 ss. (A tradução destes versos é feita a partir da edição
italiana de E. Cetrangolo in: Il teatro greco. Tutte le tragedie , a cura di C. Diana, Florença: Sansoni ,
1970, p. 380, utilizada por G. Reale. N.d.T.).
12Cf. supra , nota 9 .
A dor e o sofrimento 257
Platão explica:
... os muitos dos provenientes da terra não escolhiam de ligeiro, pois não
somente haviam sofrido seus bons pedaços como visto sofrer os outros.21
19/bidem.
2ºPlatão, República, X 6 1 9 D.
21/bidem.
260 A dor e o sofrimento
muito tempo à procura de uma vida pacata, de algum cidadão de todo alheio
aos negócios públicos, acabando, finalmente, por encontrá-la num canto, ali
deixada pelo desprezo das demais. Vendo-a, declarou que essa mesma teria
escolhido se a sorte o houvesse designado em primeiro lugar, e muito satis
feito apoderou-se dela.22
22Platão, Rep ública , X 620 C-D. Recordamos ao leitor interessado o estimulante volume de J.
Hillman, Il codice dell'anima. Carattere, vocazione, destino, trad. de A. Bottini, Adelphi, Milão 1997
(título original: The Soul's Code. ln Search o{ Character and Calling, 1996), que relê em chave
moderníssima o mito platônico sobre a escolha do próprio destino, e demonstra a sua atual validade.
23Apolodoro, I miti greci (Biblioteca) , a cura di P. Scarpi, trad. de M. G. Ciani, Fondazione Lorenzo
Valla-Mondadori, Milão 1996. O texto é II 5, 4, 85 (p. 129 ss.).
A dor e o sofrimento 261
para a alma a melhor coisa seria não contrair o mal da injustiça desde o
início; mas, uma vez contraído esse mal, a melhor coisa seria submeter-se
ao juiz, e sofrer a pena a fim de curar-se.
Eis o texto que contém a mensagem ética de Platão, verdadeiramente
revolucionária no âmbito do pensamento dos helenos :
Sócrates - E então? Entre dois enfermos, um no corpo e outro na alma,
quem é mais infeliz: quem se deixa curar pelo médico e se liberta do mal, ou
quem não se deixa curar e continua padecendo o mal?
Polo - Parece-me que quem não se deixa curar.
Sócrates - Mas a libertação do mal maior, da maldade, não consistia em
pagar a pena?
Polo - Exatamente.
Sócrates - De fato, a justiça, em certo sentido, restitui a razão E:\
, , torna
mais justos, e constitui uma espécie de remédio para a maldade.
Polo - Sim.
Sócrates - Portanto, mais feliz de todos é aquele que não possui malda-
de na alma, posto que este é o maior dos males .
Polo - É claro.
Sócrates - Em segundo lugar, aquele que se liberta.
Polo - Parece que sim.
Sócrates - E este, como dissemos, é quem é castigado, quem paga a pena
por meio da punição.
Polo - É claro.
Sócrates - Por isso vive pior quem tem em si a injustiça e não se liberta
dela.
Polo - Certamente.
Sócrates - E este não é, talvez, aquele que, tendo cometido as ações mais
injustas e as maiores injustiças, foge ao castigo e à punição, e não paga a
pena [ . . . ] ?
Polo - Parece.
Sócrates - De fato, caríssimo, estes comportaram-se como quem, ao ser
atingido pelas maiores enfermidades, escondesse dos médicos a enfermida
de do seu corpo e não fosse curado, agindo como uma criança, com medo de
ser cortado e cauterizado, por causa da dor. Não te parece?
Polo - Sim.
Sócrates - Mas agindo assim ele mostraria ignorar o que é a saúde e a
virtude do corpo. Ora, com base no que admitimos, ó Polo, também os que
fogem à justiça correm o risco de fazer algo parecido: preocupam-se só com a
dor que ela comporta, não vêem a sua utilidade, e não sabem o quanto é pior
viver com uma alma insana, arruinada, injusta e ímpia, do que viver com
um corpo enfermo. 25
eia, ou seja, com os oradores, que correspondem aos nossos políticos e ad
vogados. Todavia, o seu raciocínio tem um alcance bem mais amplo, como
vimos no capítulo dedicado à filosofia como "cuidado da alma". Mas, mes
mo apresentado por este ângulo , o pensamento platônico revela-se de ex
traordinária importância.
Portanto, o sofrimento pode conduzir à sabedoria e pode curar.
Até este ponto chegaram os gregos. Mas com o pensamento cristão
foi-se ainda mais adiante: o sofrimento pode salvar, quem o sabe aceitar,
totalmente .
Vej amos como Agostinho expressou esse pensamento de modo em
blemático.
26Traduzimos e publicamos o livro II dessa obra no volume: Agostino, amore assoluto e "terza
navigazione" (que contém na primeira parte Commento alta Prima Lettera di Giovanni), na coleção
"Testi a fronte", Milão: Rusconi, 1994.
264 A dor e o sofrimento
Portanto, nemo potest mare transire huius saeculi, nisi cruce Christi
portatus . E o "lenho da cruz" é um meio seguro, mas de modo nenhum
cômodo. A cruz implica, em particular, a total inversão da soberba huma
na, particularmente da hybris da razão. A cruz é símbolo emblemático da
humildade absoluta , a aceitação do sofrimento e dos limites do humano .
Com um segundo texto concluamos o assunto tratado no capítulo:
Deves atravessar o mar e desprezas a cruz ! Ó sabedoria repleta de sober
ba! Zombas de Cristo crucificado; mas é justamente ele que viste de longe:
"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus." Mas por que foi cruci
ficado? Porque para ti era necessário o lenho da sua humildade. De fato, te
inchaste de soberba, e foste lançado para longe daquela Pátria; pelas ondas
deste século foi interrompida a via; e não há meio com o qual possas realizar
a travessia para chegar à Pátria, se não te deixas levar pelo lenho da cruz.
Ingrato, tu desprezas Aquele que veio a ti, justamente para fazer-te voltar a
Ele. Ele mesmo se transformou em caminho, um caminho através do mar:
por isso ele caminhou sobre o mar, para mostrar-te que existe um caminho
através do mar. Mas tu que não podes caminhar sobre o mar como ele fez,
deixa-te levar por essa nave, deixa-te levar pelo lenho da cruz: crê no cruci
ficado e poderás chegar. 28
Entra o homem que preparara o veneno. Diz a Sócrates que deve bebê
lo e depois caminhar até sentir um peso nas pernas, depois deitar-se, pois
logo em seguida o veneno faria o seu efeito. Estende-lhe a taça com o veneno.
Dizendo isso, estendeu a taça a Sócrates. Este a empunhou, Equécrates,
conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alte
ração, nem da cor no rosto, nem dos seus traços. Olhando em direção do
homem, um pouco por baixo e perscrutadoramente, como era seu costume,
assim falou:
- Dize-me, é ou não permitido fazer com esta beberagem uma libação às
divindades?
- Só sei, Sócrates, que trituramos a cicuta em quantidade suficiente para
produzir seu efeito, nada mais.
- Entendo. Mas pelo menos há de ser permitido, e é mesmo um dever,
dirigir aos deuses uma oração pelo bom êxito desta mudança de residência,
daqui para além. É esta minha prece; assim seja!
E em seguida, sem sobressaltos, sem relutar nem dar mostras de desa
grado, bebeu até o fundo.
Nesse momento nós, que então conseguíramos com muito esforço reter o
pranto, ao vermos que estava bebendo, que já havia bebido, não nos contive
mos mais . Foi mais forte do que eu. As lágrimas me jorraram em ondas,
embora, com a face velada, estivesse chorando apenas a minha infelicidade
- pois, está claro, não podia chorar a pena de Sócrates! Sim, a infelicidade
de ficar privado de tal companheiro! De resto, incapaz, muito antes de mim,
de conter seus soluços, Críton se havia levantado para sair. E Apolodoro, que
mesmo antes não cessara um instante de chorar, se pôs então, como lhe era
natural, a lançar tais rugidos de dor e de cólera, que todos os que ouviram
sentiram-se comovidos, salvo, é verdade, o próprio Sócrates:
- Que estais fazendo? - exclamou. - Que gente incompreensível! Se
mandei as mulheres embora, foi sobretudo para evitar semelhante cena, pois,
segundo me ensinaram, é com belas palavras que se deve morrer. Acalmai
vos, vamos ! Dominai-vos!
Ao ouvir esta linguagem, ficamos envergonhados e contivemos as lágri
mas.
Quanto a Sócrates, pôs-se a dar uma voltas no quarto, até que declarou
sentir pesadas as pernas. Deitou-se então de costas, assim como lhe havia
recomendado o homem. Ao mesmo tempo, este, aplicando as mãos aos pés e às
pernas, examinava-os por intervalos. Em seguida, tendo apertado fortemente
o pé, perguntou se o sentia. Sócrates lhe disse que não. Depois disso recome
çou no tornozelo, e, subindo aos poucos, nos fez ver que Sócrates começava a
ficar frio e a enrijecer-se. Continuando a apalpá-lo, declarou-nos que quando
aquilo chegasse ao coração, Sócrates ir-se-ia. Sócrates já se tinha tomado rijo
e frio em quase toda a região inferior do ventre, quando descobriu a face, que
havia velado, e disse estas palavras, as derradeiras que pronunciou:
- Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa
dívida.2
Uma leitura dos três sinóticos, que descrevem como Cristo se comporta
diante da morte que o espera, e um confronto com a página de Platão que
apresentamos acima, lançará muita luz sobre o problema que tratamos.
Em Mateus se lê:
Então Jesus chega com eles a uma propriedade chamada Getsêmani e diz
aos discípulos: "Ficai aqui enquanto eu vou ali rezar." Levando consigo Pedro
e os dois filhos de Zebedeu, ele começou a sentir tristeza e angústia. Disse
lhes então: "Minha alma está triste a ponto de morrer. Permanecei aqui e
vigiai comigo." E indo um pouco mais longe e caindo de rosto em terra, ele
orava, dizendo: "Meu Pai, se é possível, esta taça passe longe de mim! Toda
via, não como eu quero, mas como tu queres!" Ele vem para junto dos discí
pulos e os encontra a dormir; diz a Pedro: "Então, não tivestes força para
vigiar nem uma hora comigo! Vigiai e orai, a fim de não caírdes em poder da
tentação. O espírito está cheio de ardor, mas a carne é fraca." De novo, pela
segunda vez, ele se afastou e orou dizendo: "Meu Pai, se esta taça não pode
passar sem que eu a beba, faça-se a tua vontade! . "4
E em Marcos:
Eles chegaram a uma propriedade cujo nome é Getsêmani, e ele diz a
seus discípulos: "Ficai aqui, enquanto eu vou rezar." Ele leva consigo Pedro,
Tiago e João. E começou a experimentar pavor e angústia. Ele lhes disse:
"Minha alma está triste a ponto de morrer. Permanecei aqui e vigiai." E,
indo um pouco mais longe, caiu por terra e orou para que, se possível, esta
hora passasse longe dele. Dizia: ''Abbá, Pai, tudo te é possível, afasta de mim
esta taça! Entretanto, não o que eu quero, mas o que tu queres!" Ao voltar,
encontra-os dormindo; diz a Pedro: "Simão, estás dormindo? Não tiveste for
ça para vigiar uma hora? Vigiai e orai, a fim de não cairdes em poder da
tentação. O espírito está cheio de ardor, mas a carne é fraca". Novamente
afastou-se e orou repetindo as mesmas palavras.5
Enfim, em Lucas :
Ele saiu e foi, como de costume, para o monte das Oliveiras, e os discípu
los o seguiram. Chegando a este lugar, ele lhes disse: "Rezai para não cairdes
em poder da tentação." E afastou-se deles mais ou menos à distância do
arremesso de uma pedra e, tendo-se posto de joelhos , rezava, dizendo: "Pai,
se quiseres afastar de mim esta taça . . . No entanto, não se faça a minha
vontade, mas a tua." Então apareceu-lhe do céu um anjo que o fortificava.
Tomado de angústia, ele rezava mais intensamente, e o seu suor se tornou
como coágulos de sangue que caíam por terra. Quando, depois dessa oração,
ele se levantou e veio ter com os discípulos, achou-os adormecidos de triste-
za. Ele lhes disse: "Quê! Estais dormindo? Levantai-vos e rezai para não
cairdes em poder da tentação!"6
9Arquíloco, de I poeti lirici, trad. por E. Romagnoli, Bolonha: Zanichelli, 1969, n. 14, p. 37.
1°Teôgnis, de I poeti lirici, trad. por E . Romagnoli, cit., n. 152 (425-428), p. 885.
O sentido da vida e da morte 271
14Platão, Fédon, 61 B - 62 C.
274 O sentido da vida e da morte
Não se pode curar só uma parte do corpo sem curar todo o corpo
1Emblemática, a esse respeito, é, por exemplo, a metáfora do convite feito por Sócrates a Críton,
no final do Fédon , de oferecer um galo a Asclépio, de que falamos acima.
2Cf. Cármides, 154 C - 159 A.
278 Conclusões
Então, que deve fazer o verdadeiro bom médico? Deve tentar curar a
"parte", sempre com o olhar dirigido para o "todo", ou seja, para a totalida
de do organismo.
Mas , depois de ter explicado esse conceito (que, ademais, afirma cla
ramente como um cânone da boa medicina grega) , Platão realiza de sur
presa uma imprevista saída.
3Cármides, 155 E .
4Cármides, 156 B-C.
Conclusões 279
Escreve Platão:
Esses encantamentos são os belos discursos com os quais gera-se na alma
a "temperança"; com a qual, depois de nascida e enraizada, é fácil devolver a
saúde à cabeça e a todas as outras partes do corpo.7
E ainda:
Febo criou para os mortais Asclépio e Platão, um para salvar o corpo, o
outro para salvar a alma. 9
Introdução
7 Conteúdos, método e finalidade da obra presente
20 1. O corpo humano nos poemas homéricos
Os modos nos quais a imagem física do homem era representada nas
origens da cultura européia
42 2. Unidade e multiplicidade
Pressupostos metodológicos e teóricos para a compreensão da represen
tação do homem nos poemas homéricos
58 3. O espírito humano nos poemas homéricos
Os múltiplos e complexos modos nos quais na Ilíada e na Odisséia é re
presentado o que a partir do quinto século a.C. será chamado alma
70 4. A "psyche" em Homero
Na Ilíada e na Odisséia a "psyche" indica a "vida que se vai" e a imagem
do "não-estar-mais-vivo"
82 5. A natureza do homem homérico exprime-se no seu agir
Em que sentido para Homero a natureza do homem se reduz às
suas ações. O "menos" como energia vital do homem e a imagem
da "cabeça" como metáfora da pessoa
90 6 . Concepção pessimista do homem e nexos estruturais da natureza huma
na com as forças divinas
O homem homérico considera a vida miserável e ao mesmo tempo a ama
e a entende em total dependência dos deuses
103 7 . As duas regras fundamentais da vida ética nos poemas homéricos
O homem confrontado com divindades ambivalentes e com o destino de
morte
112 8 . O Orfismo e o novo sentido da vida e da morte
Um esquema de cultura oposto ao dos poemas homéricos
122 9 . A "psyche" nos primeiros filósofos
Concepções da alma nos naturalistas com as revolucionárias intuições
de Heráclito e a posição emergente de Demócrito
134 1 0 . A identificção da "psyche" com a personalidade do homem realizada
por Sócrates
A transformação do conceito de "psyche" em capacidade de entender e
de querer imposta na cultura grega pela pregação e pela dialética socrá
tica
149 1 1 . A descoberta socrática do "cuidado da alma"
O fulcro da filosofia de Sócrates como um dos conceitos dos quais
nasceu o espírito da Europa
165 1 2 . Sócrates e Aristófanes
A concepção socrática da alma vista com os olhos da Musa da comédia
de Aristófanes
175 1 3 . O corpo humano segundo Platão
A concepção platônica do corpo em antítese com a alma expressa
tanto de modo provocador como moderadamente
185 14. A saúde do corpo segundo Platão
Natureza da saúde e métodos para a sua conservação e para a sua
recuperação
198 15. A natureza da alma segundo Platão
A estrutura e as formas da alma considerada em união com o corpo e
na sua pureza
2 14 1 6 . Cuidado e saúde da alma segundo Platão
A filosofia como terapia da alma e como busca do Bem supremo
229 1 7 . Platão e a psicanálise
Germes de idéias de psicanálise nos diálogos e algumas observações
sobre a interpretação psicanalítica do pensamento platônico
244 1 8 . Mal extremo e saúde perfeita do homem segundo Platão
A metáfora da alma como besta de muitas cabeças a serem domadas
251 1 9 . A dor e o sofrimento
Seu significado axiológico e metafísico no pensamento antigo em geral
e em Platão em particular
265 20. O sentido da vida e da morte
Alguns juízos emblemáticos expressos pela cultura dos Gregos em
geral e por Platão em particular
277 Conclusões
A metáfora da medicina e do encantamento com a "fórmula mágica" para
curar os males do homem e conseguir a verdadeira saúde