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. a ANGEL |. PEREZ GOMEZ ) aoe NE A escola educativa Sobre o autor Espanhol nascido em Valladolid, Angel |. Pérez Gémez é Doutor em Pedagogia pela Universidade Complutense de Madrid Professor Titular da Faculdade de Ciéncias da Educacao da Universidade de Malaga Atua em colaboragao permanente com professores de diferentes nivels de ensino, articulando formacao inicial com educagéo continuada, pesquisa e inovagao. E coordenador da Comissa0 de Inovacdo da Docéncia das Universidades Andaluzas e da Comissao de Ensino Virtual de ‘Andaluzia, E membro do conselho de redacdo e assessor de revistas como Coperacion Educativa, Educational Action Research, Cuadernos de Pedagogia, Investigacion en la Escuela @ International Journal of Learning And Lessons Studies. Recebeu numerosos prémios € condecoragées, entre eles a Medallia de Ouro do Ateneu de Mélaga ao mérito docente, em 2005. P438e Pérez Gémez, Angel I. Educacfio na era digital : a escola educativa / Angel I. Pérez Gémez ; tradugio : Marisa Guedes ; revistio técnica: Bartira Costa Neves. - Porto Alegre : Penso, 2015. 192 p. ; 25 cm, ISBN 978-85-8429-023-9 1, Sociologia da educacao, I. Titulo. DU 316:37 Catalogacao na publicacdio: Poliana Sanchez de Araujo - CRB 10/2094 ANGEL |. PEREZ GOMEZ EDUCACAO NA ERA DIGITAL A escola educativa Tradugao Marisa Guedes Revisao técnica Bartira Costa Neves Especialista em Psicopedagogia pelo Centro Universitario do Norte Paulista Sumario PROLOGO - E possivel uma escola educativa? ‘Aprender e ensinar a se educar Parte | Aprender a se educar na era digital Aera digital: novos desafios educacionais. Insatisfagao escolar: a escola sobrecarregada... Rene Parte I Ajudar a se educar Uma nova cultura curricular: Novas formas de ensinar e aprender...... Avaliar para aprender....... earnaoun Novos cendrios e ambientes de aprendizagem... Epilogo ..... Referéncias.. ‘A construgao da personalidade: aprender a se educar Uma nova racionalidade para a escola: aprender a se educar.. elevancia e profundidade... Annatureza tutorial da funcae docente: ajudar a se educar ... 1 4 31 47 wi 100 a 131 141 155 179 Prologo E possivel uma escola educativa? Aprender e ensinar a se educar Este estudo € 0 fruto de uma necessi- dade pessoal, suponho que compartilhada, de parar para pensat, esclarecer e redesco- brir o sentido nas turbuléncias que cercam a minha vida profissional como docente & pesquisador de educagdo. Sem duivida, é um reflexo do preocupante panorama poli- tico, econdmico e social que devasta as vi- das dos cidados contemporfineos na com- plexa, surpreendente, rica, incerta, mutante e desigual era digital, especialmente evi- dente nestes imprevisiveis e inqualificd- veis primeiros anos do século XXI. O que significa formar uma personalidade edu- cada, capaz. de enfrentar com certa auto- nomia 0 vendaval de possibilidades, con- fusio, riscos e desafios deste mundo glo- balizado, acelerado e incerto? Tenho a impress de que estou me movendo sobre uma plataforma um tanto instdvel, sem forma, irregular e mutdvel, mas, de qualquer modo, bipolar; por isso nao é fécil manter 0 equilibrio. Um dos meus pés se encontra no territério das ideias e préticas inovadoras, nas pesqui- sas em e sobre educaciio, psicologia, so- ciologia neurociéncia cognitiva, assim como nas experiéncias pedagogicas cheias de esperanca e sentido, marcando uma orientagéo e uma tendéncia complexa, porém rastredvel, de otimismo com rela- io as surpreendentes possibilidades que se abrem para o desenvolvimento criativo e soliddrio de todos e cada um dos seres humanos. O outro pé se apoia em um ter- ritério mais rochoso, firme, embora com rachaduras, de uma realidade escolar ob- soleta, superada e criticada por todos, mas resistente a mudanca e aferrada na defesa das tradigdes e dos modelos peda- g6gicos que, se alguma vez tiveram senti- do, para mim pelo menos, questiondvel, certamente hoje j4 nao tém. Politicos, ad- ministradores, docentes, alunos e familias, majoritariamente, parecem defender a per- manéncia desse territdrio trincado mas re- sistente que as propostas mais inovadoras e excelentes recusaram hd muito tempo € que a pesquisa em educagio e em ciéacias sociais despojou, na atualidade, de seu man- to venerdvel. Como me manter em equilibrio quan- do percebo, a cada dia de forma mais in- tensa, essa bipolaridade, com tal clareza que as minhas pernas parecem se apoiar em dois continentes diferentes € distan- 12_Angel Pérez Gomez tes? A escola que vivenciei como aluno e como professor, a que agora vivem os meus filhos e a universidade onde traba- Iho pertencem a um territério tao distan- te do cenério desejavel vislumbrado pela pesquisa e pela inovagio pedagégicas, e que defendo nas minhas atividades pro- fissionajs, que dificilmente parecem mun- dos conciliveis, comunicdveis, compreen- siveis e mensurdveis, nao tanto no nivel do discurso e das teorias proclamadas, mas no das praticas e teorias em uso. Essa dicoto- mia entre o ser e 0 dever ser invade todos s territérios da vida social, contudo dificil- mente podem ser encontrados exemplos to extremos disso como na educagio. As descobertas e€ os resultados, obviamente provisdrios e parciais, das investigagdes em Giéncias da educagdo no parecem nem ao menos inspirar e iluminar as préticas peda- gdgicas convencionais. A inovacéo educa- cional sempre é minoritéria, marginal e efé- mera. Por conseguinte, a instituigao escolar permanece basicamente a mesma desde a ‘sua extensio 4 populagdo em geral, no fi- nal do século XIX, quando 0 resto da socie- dade e as suas instituicées se transforma- ram to radicalmente que so quase irreco- nheciveis desde entao. Cansado ¢ entediado com discursos grandiloquentes sem prdtica, as minhas preocupacies, jd hé algum tempo, concen- tram-se agora no que chamo de epistemo- logia da acdo. Do que se nutre a acaio hu- mana? Como se configura a racionalidade da ago? Por que sustentamos, frequente- mente e sem inquietudes, as contradices entre 0 que dizemos que pensamos ¢ 0 que fazemos? Quais sdo os sistemas cons- cientes ou técitos que condicionam o nos- so modo de perceber, tomar decisbes agir? Como superar o vazio de um conhe- cimento retérico que nao serve para orien- tar a acao? E possivel ter uma escola ver- dadeiramente educativa, que ajude cada individuo a se construir de maneira aut6- noma, sabia e solidaria? Chegar a essas interrogagées signifi- cou estabelecer um didlogo com varios au- tores, teorias, experiéncias e propostas que dividi em duas partes. Na primeira, capi- tulos 1 a 4, tentei esclarecer — ou pelo me- Nos apontar, tanto as perguntas quanto o compartilhamento do conhecimento -, para mim e para aqueles que quiserem me acompanhar, 0 que significa aprender a se educar no complexo contexto contempo- raneo. Como aprendemos a viver, pensar, decidir e agir na atmosfera densa e mu- tante da era digital global? Que papel esta ocupando a escola convencional nesse processo? Na segunda parte, dos capitu- los 5 a 9, ofereco a minha visio particu- lar sobre 0 que considero uma escola educativa, ou seja, um espaco piiblico pa- ra ajudar cada um dos cidadaos a se cons- truir como pessoa “educada”, escolher desenvolver seu préprio e singular pro- jeto de vida nos ambitos pessoal, social e profissional. Parte | Aprender a se educar na era digital Aera digital: (ELLIOT, 1939, traduco nossa) UMA NOVA EPOCA Quando os alunos contemporaneos abandonam a escola todos os dias, eles se introduzem em um cendrio de aprendiz gem organizado de maneira radicalmente diferente. Na era globalizada da informa do digitalizada, o acesso 20 conhecimento lativamente fcil, imediato, onipresen. te © acessivel. Uma pessoa_pode acessar na rede a informagao necessaria, 0 debate correspondente, seguir a linha de pesquisa que The pareca mais oportuna, sem o con trole de alguém denominado profess se quiser, pode criar ou participar de va rias redes de pessoas € grupos que com: partilham interesses, informacdes, projetos e atividades, sem restrigGes temporais, ins. titucionais ou geogréficas. Em que mundo vivemos? Qual seria o sentido_da escola que conhecembsnesse cena? Vivernos na aldeia global ena era da in- formacio, uma época de répidas mudangas, de aumento sem precedentes de interdepen déncia e complexidade, o que esta causando novos desafios educacionais Onde estd a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde estd 0 conhecimento que perdemos na informacéo? uma mudanga radical na nassa forma de co- municar, agi, pensar e expressar Ainda que tenha uma apa plista, parece-me esclarecedora, util ¢ in- tuitiva a classificagao que faz Riegle (2007) ao distinguir quatro periodos principais no desenvolvimento da humanidade do ponto de vista socioeconémico: incia sim- a idade da pedra, de aproximada mente 1.000.000 de anos até 6.000 s antes da nossa era, em que as atividades principais dos hominideos e dos humanos foram a caca, a pes cae a conservagao dos alimentos; ~a época agricola, desde 6.000 anos A.C. até 0 século XVIII, em que as atividades principais dos humanos eram a agricultura, a pecudria e 0 intercAmbio comercial; ant aera industrial, do século XVUIL até © tiltimo quarto do século XX, em que a atividade fundamental dos se- res humanos nos paises mais desen volvidos tinha a ver com o trabalho nas fabricas; nos p mos ape mento si sio nencial seres hu substi por sua gestao de satis mento, atualme: stell, F Go sok trabalhe exemple que s infe pre Pare dade di mica, pc gestao d ciamente —a era da informagao, de 1975 até os dias atuais, em que a atividade prin- cipal dos seres humanos tem a ver samento, com a aquisi¢ao, 0 proc a andlise, a recriagdo e a comunica: ao da informagao. E surpreendente observar a acelera- cdo exponencial da mudanga e da evolu- ao do ser humano: a hominizacaio durou varios milhées de anos; a pré-histéria n6. made, quase um milhao de anos; a época agricola e pecudria, jd sedentaria, cerca de sete mil anos; a era industrial nzo che- ga 20s 300 anos; e da era digital ainda te mos apenas quatro décadas. O desenvolvi mento simbélico e a gestdo da informacao feito sio os responsdveis por este xpo- evolugao dos seres humanos. A forca fisica humana foi substituida pela forca fisica animal; esta, nencial e acumulativo da por sua vez, pela energia; ¢ a tiltima pela gestio digital da informago como fonte de satisfacéo de necessidades, desenvolvi mento, sobrevivéncia e poder A era da informa Zo, em que vivemos atualmente, ¢ caratferizada, como defende Castell-pela primazia do valor da informa- ias-primas, do ico_E tlustrativa © (Ho Sobre valor das maté trabalho e do esforgo fi exemplo oferecido por Riegle (2007), [..] no automével, protétipo da era in. dustrial, 60% do cus to da matéria-prima e do trabalho fisicc 10 € devido ao cus que se dediea & sua produeo, No entan- to, no computador, protétipo da era da informacao, apenas 2% do custo se deve 4 matéria-prima e ao trabalho fisico em pregado na sua producéo. Parece evidente que, na nova socie- dade digital, o eixo da ateTigao econd. mica, politica © social € transferido da gestho de materlas-primas para o geren= Glamento da informa, EducacSo na era digital 15 Globalizacao Parece ébvio que vivemos imersos em contextos complexos, de supercomplexi: dade, como esclarecem Barnett (2000) ¢ Wagner (2010), caracterizados por integra. do e desintegracdo dos mercados, ameaca global ao meio ambiente, instabilidade dos estados, emergéncia de entidades politicas supranacionais, frageis e apagadas, migra. do em massa das populagées ¢ onipresen- a das novas tecnologias de comunicacao, uma nova era globalizada de interdepen. déncia principalmente urbana, em que vi ver, justapostos, grupos humanos diferen tes e frequentemente discrepantes, na qual se celebra a complexidade e se enfatiza a diversidade e 0 anonimato. Transformacées substanciais ocorre- ntais da vida ram em trés reas fundam social: 0 4mbito da produ (economia), o ambito do poder (politico) eo Ambito da experiéncia cotidiana (so. As mudang¢as que afe- do/consumo ciedade e cultura taram a estrutura substantiva dessas trés Areas séo tao importantes que Castells 994) nao t mos diante de uma mudanga de época nao apenas em um momento de trans. formacdes. As confluéncias de mudan adicais esto moldan- sita em sugerir que esta- tio significativas e do um novo metacontexto que modificz as instituigdes, os Estados e a vida coti- diana dos cidadaos dentro de uma era de globalizagdo e interdependéncia Por problemas de espago, nao vou me deter nas duas primeiras estruturas, ain- da que sejam fundamentais para a com- preensao da terceira (BURBULES et al 2005; CASTELL, 1994; PEREZ GOMEZ, 1998). $6 convém destacar que, no Ambi- to das estruturas de poder, mudaram subs- tancialmente némicas do estado-nacao que regeu, pelo menos, durante dois ou trés séculos a con- s relagoes politicas e eco é 16 Angel |. Pérez Gomez vivéncia da maioria dos povos colonialistas colonizados. A vida politica comeca a des- lizar na direcao de instituigdes multi e supraestatais (Unio Europeia [UE], Mer- cosul, Banco Interamericano de Desen- volvimento [BID], Fundo Monetério In- ternacional [FMI], Organizagao para a ‘Cooperacdo e Desenvolvimento Econémi- co [OCDE], G6, G8, G20, etc.), que séo as que, de alguma forma, condicionam, mo- dificam e determinam os graus de liber- dade que tem o poder politico de nivel estatal. Por outro lado, é necessdrio con- siderar_que a supremacla da economia sobre a politica, da economia financelra sobre_a. jia_produtiva, da renta- funciam nao 6 05 intelectuais como $a- Tamago, mas também as mobilizacbes po- pulares como_as da “15M” na Es 2 ov movimento de indignados na Europa, € Wall Street, em Nova York €sta provo- cando a deterioragaéo das democracias re- politica eo enfraquecimento das instan- ntativas, de carater intern: i: [ONU]). Como afirma Elzo (2011) LJ € intolerdvel que o sistema financeito esteja sob 0 comando do mundo, porque transformamos 0 dinheiro no nosso deus, as bolsas, particularmente de Wall Street, nas suas igrejas, ¢ as agéncias de ranking, na nova Inquisicao. Se isto continuar as- sim, e tudo indica que assim 0 serd, tal- vez. estejamos nos estertores de uma ci vilizagio. Este processo est4 causando um au- mento cada vez mais soromssceeatel e injustificdvel d Também nao vou me deter nas mu- dancas que ocorreram na estrutura de produgo, mas cabe afirmar que estamos na era do capitalismo pés-industrial, fi- nanceiro e globalizado, em que o inter- cAmbio digital, a globalizagéo financeira e comercial, a livre circulagao de produtos e de capitais, a primazia da rentabilidade sobre a produtividade, a busca do lucro a qualquer prego, a especulacao financeira descontrolada, a realocacao espacial do tra- balho e a producdo situam a informagio, a flexibilidade, a incerteza, a desregulamen- taco, a fluidez, e a inovacao como os eixos dos comportamentos humanos individuais grupais nos processos de producao, distri- buicdo e consumo. A globalizacao mudou a maneira co- mo trabalhamos, comunicamo-nos e, defi- nitivamente, como vivemos, 0 que impli- ca, sem dtivida, uma forca de mudanca, com potencial catalitico, tanto positivo co- mo negativo, de possibilidades e ameacas (DARLING-HAMMOND, 2010). Embora a conexio, a interdependéncia e o intercam- bio global nao precisem destruir a diversi- dade, a forma como se pratica a globaliza- do a servico do lucro a qualquer preco representa uma ameaca constante para os modos de vida de cada grupo humane, in- dependentemente das suas ratzes histéri- cas, Nao convém esquecer, portanto, co: mo afirma Tedesco (2000), a tendéncia da atual globalizagio comercial em busca do lucro maximo de destruir os compromissos Jocais € as formas habituais de solidarieda- de e coesio com os nossos semelhantes. ‘As mudancas nas relagdes de poder relagées de produgio provocam transfor- macoes substanciais no campo das rela- oes de experiéncia que singularizam a vida dos cidadios da era da informacao e que tem a ver com a transformacao dos cendrios de socializacdo préximos. A fa- milia, © grupo de iguais, a vila ou bairro, a escola ¢ a empresa sofreram modifica- c6es significativas tanto na sua configu- racao interna como, especialmente, na sua posicio relativa e na sua fungao de platafor- i a Pe ee o RF°OQvayreoas¢vvpanmanc a mas de socializagio das novas geragées. O século XXI é um século urbano, no qual as grandes cidades, no que diz respeito & justaposigo de diferengas, a celebragao da complexidade, ao anonimato, a diversidade a acumulacéo de possibilidades e riscos so atrativos relevantes para 0 cidadéo glo- bal. O cenario social, local e global se trans- formou to radicalmente que os seres hu- manos, como cidadios, enfrentam um clima de inseguranga, incerteza e medo, tanto como de possibilidades, aspiragées € oportunidades imprevistas, em um mundo de fluxos globais, cujos valores, interesses, cédigos e aspiraces ultrapassam ampla- mente os padrées culturais familiares e as possibilidades de que os adultos préximos se constituam em exemplos titeis A informacao digital A mudanga que, na minha o melhor se identifica com a transformacao substancial da vida cotidiana se refere a onipresenca da informagao como entorno simbélico da socializagao. Vivemos em um ambiente essencialmente simbélico. Como afirma Castells (1994), na econo- mia contempordnea, 0 trabalho ndo qua- lificado e as matérias-primas deixaram de ocupar um papel tio estratégico como no passado, A crescente importancia do setor de servicos exalta a extrema rele- vancia da informacio e do conhecimento de tal forma que se tora um elemento substancial da cultura atual. A distinta posigao dos individuos no que diz respei- to a informacao define o seu potencial produtivo, social e cultural, e até mesmo chega a determinar a exchisao social da- queles que nao so capazes de entendé-la e processé-la. A capacidade para usar a tecnologia da informacao é cada dia mais decisiva, pois muitos dos servicos, do tra- Educago na era digital 17 balho e dos intercAmbios esto e estaro cada vez mais acessiveis apenas por meio da rede. Por isso, aparece com maior cla- reza e urgéncia a necessidade de forma- do de novos cidados para viver em um novo ambiente digital de possibilidades e riscos desconhecidos, Por outro lado, néo podemos deixar de considerar que atualmente as informagoes siio produzidas, distribuidas, consumidas e abandonadas a um ritmo frenético. A veloci- dade, cada vez mais acelerada, que define o ciclo de informagio determina a imagem de fragilidade e precariedade da vida dos seres humanos (CHOMSKY; RAMONET, 1995). que isso significa para a vida coti- diana dos cidadios? Vejamos os fatos a seguir. ~ Em dois anos, é produzida mais in- formacao que em toda a histéria an- terior da humanidade. Fonteuberta (2010) assinala que “{..] em 2008 fo- ram realizadas mais de 31 bilhdes de buscas por més no Google; em 2006 esse mimero foi de apenas 2,7 bilhdes”. © volume de informagies que comesou ser calculado em Kb, em poucos anos, teve de ser conta- bilizado em dimensdes vertigino- sas: mega, giga, tera, peta, exabyte, zettabyte e yottabyte. A internet é a tecnologia que mais rapidamente se infiltrou na socie~ dade na hist6ria da humanidade O telefone necessitou de 75 anos; © radio precisou de 38 anos para che- gar a 50 milhées usuarios; a televi sio, 15 anos; o computador, sete;e a internet, quatro (RIEGLE, 2007). A informacao duplica a cada 18 me- ses e cada vez mais rapidamente, de acordo com estudos da American So- ciety of Training and Documentation (ASTD). Até 100 anos atrés, a infor- magio que o ser humano utilizava na 18 Angel l. Pérez Gomez vida cotidiana permanecia, basica mente, a mesma por varias geracoes. A informagao fornecida, por exem- imes a plo, pelo jornal New ¥ cada dia é maior do que toda aque- la que uma pessoa poderia encon- trar, no século XVII, durante toda a sua vida Citenta por cento dos novos postos de trabalho requerem habilidades sofisticadas de tratamento da infor magio. = Os trabalhos que requerem 0 uso da internet pagam cerca de 50% mais do que aqueles que nao utili zam a internet, — Nos préximos cinco anos, 80% dos trabalhadores estarao executando © seu trabalho de maneira diferen- te daquela como o vinham desenvol- vendo ao longo dos tiltimos 50 anos aro realizando outros traba 2007) ou e Ihos (RIEGL Robinson (2011), em uma alarmante previstio, chega a afirmar que, de algu ma forma, os computadores logo alca Garao a consciéncia; que até 2020 sera possivel comprar um computador pessoal com o mesmo poder de processamento do cérebro humano de um adulto; e que a in- teracdo da genética, da neurociéncia e da nanotecnologia permitiré 0 enriquecimen to da nossa inteligéncia misturando fisi camente os artificios da computagao com © nosso cérebro. Citando Ray Kurzweil, autor considera plausivel que em duas dé cadas os seres humanos recriem o design computacional do cérebro em avancados computadores neurais Por outro lado, como afirmam repeti damente Thomas e Brown (2011), a tec: nologia j4 ndo pode mais ser considerada apenas uma maneira de transportar a in- formagio de um lugar para outro. A tec nologia da informagio se converteu em um meio de participagdo, provocando a emergéncia de um ambiente que se mo. difica e se recofifigura constantemente em consequéncia da propria participacdo que nele ocorre. Uma vez que a infor- macao € produzida, consumida, atuali zada e alterada constantemente, novas praticas de leitura, escrita, aprendiza: gem e pensamento, por exemplo, evoluem com ela. Os seres humanos desenvolvem 0 software, as plataformas e as redes que eventualmente programam e configuram as suas proprias vidas. Outra consequéncia d lerado e exponencial de produgao e con sumo de informagao fragmentada e com plexa é 0 volume infinito dela, que produz nos individuos saturacdo, desconcerto e, paradoxalmente, desinformagao. Quando a menina ou 0 menino contempordneo tem acesso ilimitado a uma enorme quantidade de informagées fragmentadas que vao além da sua capacidade de organizacao em es quemas compreensivos, dispersam a su sse ritmo ace: a atengao e saturam a sua meméria, o mosai co de dados nao produz formagao, e, si perplexidade e desorientacao. A saturagio de informacdo gera dois efeitos aparen- temente paradoxais, mas na verdade con: vergentes: a superinformagao e a desinfor- macéo. Parece claro que 0 exagero de informacées fragmentérias causa indiges- tao e dificilmente provoca o conhecimento estruturado e itl Portanto, ¢ facil compreender a ten- déncia do cidado saturado e perplexo que se deixa seduzir pelo que, por ainda néo compreender, se lhe apresenta como atrativo, pelas proclamagées ¢ pelos mo- delos de interpretagao difundidos pela mf dia e que invadem o senso comum. A servi- 0 da economia de mercado, que domina os meios de comunicagao de massa, a in formacao frequentemente se transforma em publicidade comercial e em propa da politica. A légica do espetaculo, da pu. blicidade e do mercado invade todas dreas da vida dos cidadios: a produc’ trabalho, o consumo, a politica e até mes- mo 0 mundo das relagdes sentimentais. Por isso, é conveniente destacar, como afirma Gergen (2001), que, na era da in- formacdo, o mais importante nao ¢ 0 co trole dos meios de produgio, mas 0 con trole dos meios de comunicacao. O poder 6 exercido principalmente a partir da pro- dugao e da difuso de cédigos culturais, atitudes, valores € contetidos de informa Gio difundidos pelos onipresentes meios de comunicagao, na maioria das vezes, de forma latente, camuflados em vida bem-sucedidos Por outro lado tilos de a televisio, ou me lhor, as diferentes telas, os videogames as redes sociais virtuais foram se consti tuindo, nas sociedades contempordneas, como 0 mais influente contexto de socia- lizacao, 0 cendrio préximo que rodeia 0 desenvolvimento e o crescimento dos in- dividuos e que condiciona fortemente a perseveranca na formagao das suas opi- nides, crencas, interesses e tendéncias, especialmente na fase da adolescéncia Cada individuo, por meio da tela, das miltiplas telas pelas quais transita du- rante o dia, pode se comunicar, navegan- do na web, com os lugares mais inacessi veis, com as culturas mais exéticas distantes, com as mercadorias mais es- tranhas, com os objetos menos usuais no seu meio préximo, com ideias e criagdes intelectuais mais diferentes e inovadoras e também com as opinides mais triviais 0s preconceitos mais arcaicos, as modas, os mecanismos € os modos de interagio mais atrativos. Os meios de comunicacao e, em particular, a tela multipresente, constituem o esqueleto da nova socieda. de. Tudo 0 que tem alguma relevancia Educacao na era digital 19 estard na tela, 0 que provoca, frequente- mente, a contemplacao passiva da maio- ria dos cidadios, ou poderd ser encontra- do nas plataformas digitais ou em redes sociais que permitem e induzem a inte ragio, expresso pessoal e até mesmo a mobilizagao coletiva (BROWN; DUGUID, 2000; CHOMSKY; RAMONET, 1995). E evidente que a facilidade de deco- dificagiio da comunicagao audiovisual que nem sequer exige a técnica de leitu ra, a linguagem escrita e articulada, per mitiu que as pessoas, nao importando em qual canto isolado do planet jam, acessem as informac tos culturais oriundos este- es @ os produ- s culturas mais distantes e das mais diferentes experién cias. E necessdrio reconhecer, portanto, 0 extraordindrio potencial instrutor e in clusive formador oferecido pela revolu cdo eletrénica ao permitir a comunicagao intercultural e possibilitar que os indivi- duos € os grupos sociais nao fiquem cen trados apenas nos seus proprios e limita dos contextos. No entanto, a servico da economia de mercado, os intercdmbios de informacao sao regidos por interesses ¢ objetivos bem diferentes dos formativos e se transformam em transagdes comer ciais, com a finalidade principal de pro duzir lucro, saturando 0 consumidor com informacées sedutoras de questiondvel va lor formativo ¢ educativo. No que diz respeito a televisdo, pode -se dizer que ela mudou, também, a ni tureza da opiniao politica. Mais do que gerar uma opiniaio baseada na avaliacdo intelectual apoiada nas proposicées dos textos € contextos, induz respostas in tuitivas e emocionais a apresentacao de imagens, as afirmages espetaculares, 0s textos curtos, as manchetes chama- tivas, ao ruido do espetaculo e usén- cia de uma argumentacao fundamentada (TEDESCO, 1995). 20 Angel. Pérez Gomez Convém lembrar que as exigéncias do mercado, a tirania dos indices de au- di€ncia e os requisitos da publicidade transformam, cada vez mais, a televisio comercial em um meio trivial, vazio, do- minado pelo epetéculo, pelo sucesso de “programas-lixo”, pela primazia das for- mas sobre o contetido, da sintaxe sobre a semantica, do continente sobre o con tetido, das sensacdes sobre a reflexa (FERRES, 1994). Tudo esta subordinado ao efeito surpresa, espetacular, emotivo que envolve os espectadores independen- temente da forca dos argumentos ¢ da légica da razao. O mundo da comunica: cao global a servico do mercado induz a cultura do espetaculo, ao escdndalo, fofoca, a notoriedade, invadindo a priva- cidade e banalizando os acontecimentos e intercambios humanos. A cultura como cultive do pensamento, pelo contrario, tem um cardter eminentemente proble- matizador, pois interrogamos e explora mos 0 sentido do dbvio e do oculto, ex perimentamos e intercambiamos alter- nativas de forma tranguila e rigorosa. Tanto pela quantidade de tempo gas: to pelos cidadiios em interagéo com as telas quanto pela qualidade e intensida- de do poder de sugestéo ¢ fascinio que elas possuem, a maioria dos pesquisado- res conchti que a televisio e outras telas condicionam a organizacéo do espaco, do tempo e das relagdes intersubjetivas, a natureza do contetido da vida psiquica, bem como os instrumentos e cédigos de percep¢do, expressdo e o intercmbio dos individuos e da coletividade. Neil Post man (1999) adverte que, atualmente, a televisdo comercial, os videogames, as re des sociais e os intercambios digitais sio, significantemente, as mais constantes fon: tes de valores ao alcance de meninos, me- ninas e jovens. Desde os posicionamentos mais extremos entre os depreciadores da televistio e das telas, adverte-se sobre 0 perigo de que a imagem termine substi- tuindo completamente a palavra e trans- formando assim o homo sapiens, produtor e produto, dos tiltimos séculos da cultura escrita, em homo videns ou homo sentie (ETCHEVERRY, 1999; FERRAROTTI, 2002; SARTORI, 1999). Pode-se afirmar com Garr (2010) e ‘Thomas e Brown (2011) que, depois de 550 anos, a imprensa escrita e os seus produtos estdo sendo arrastados do cen tro da vida intelectual para as margens A internet inclui os textos, mas nao os trata de maneira muito diferente, © mun- do da tela é muito diferente do mundo da pagina escrita, requer uma vida inte- lectual, perceptiva, associativa e reativa muito distinta. Nasce uma nova ética in- telectual que define, de forma diferen ciada, 0 que consideramos conhecimen- to valido, assim como as suas formas de aquisicao, distribuicdo e consumo. Como diz Carr (2010), vivemos imersos em um ecossistema, a internet, de tecnologias de interupecdo em oposicao a tecnologia do livro impresso que favorecia a concent cao. Como esses processos estao afetan: do 0 desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos cidadaos? Jé se pode pensar em uma separagio tao radical entre os componentes emotivos e racionais? Redes e telas Por outro lado, deve-se lembrar, con- forme Alessandro Baricco (2008), que a internet € os provedores de busca estao produzindo 0 que ele chama de “mutagéo cultural” desta época. Na web, o valor de uma informacao se baseia no ntimero de paginas que direcionam a ela e, por con- seguinte, na velocidade com que aque- le que a procura consegue encontré-la, Educacao na era digital 21 A mutagao esta na perda de valor da pro- fundidade como fonte de conhecimento: [..J a ideia de que entender e saber signi- fica penetrar profundamente no que esta- ‘mos estudando, até alcancar a sua essén- cia, € uma bela ideia que esta morrendo: esté sendo substituida pela instintiva con- viegao de que a esséncia das coisas nio é um ponto, mas um caminho, de que ela nao esta escondida no fundo, e, sim, es- palhada na superficie, de que néo reside nas coisas, mas se dissolve fora delas, on- de realmente comecam, ou seja, em todos 0s lugares, (BARICCO, 2008, p. 111). A internet, as plataformas digitais e as redes sociais merecem uma consideraco especial como instdncias de comunicacao e intercdmbio que favorecem a interacio € a participacio dos interlocutores como receptores e transmissores de interc4m- bios virtuais humanos. Com mais de 2 bi- Ihées de internautas no ano de 2011, a rede se tornou 0 ambiente de comunica- cio mais importante da historia. E impor- tante, portanto, destacar claramente que a internet nos permite sair da comunida- de local que constitui 0 cenario vital de cada individuo, porém no apenas co- mo um mero espectador passivo de acon- tecimentos alheios que ocorrem distantes no espago € no tempo. Como adverte Bur- bules e Callister (2001), a internet permi- te explorar, conhecer € até mesmo partici- par de comunidades alheias, talvez proxi- mas e talvex distantes, das concepcdes culturais que compartilham e, assim, en- trar em um cendrio de socializagao mais plural, que pode servir para contrastar a nossa cultura vivencial e também, por ve- zes, incompativel"com as préprias pressu- posicées, valores e propésitos. ‘A internet, portanto, nao é sé um de- pésito inesgotavel de informagées e uma base mais ou menos ordenada ou caética base de dados, conceitos e teorias, uma biblioteca excelente e viva ao alcance de todos e todas, mas, sobretudo, é um es- paco para a interpretacao e a acao, um poderoso meio de comunicacao, uma pla- taforma de intercAmbio para 0 encontro, a colaboragéo em projetos conjuntos, a criagéo de novas comunidades virtuais, a interagdo entre iguais préximos ou dis- tantes, 0 projeto compartilhado e a or- ganizagio de mobilizagbes globais, bem como para a expresso individual e cole- tiva dos proprios talentos, sentimentos, desejos e projetos. Como advertem Castells, Putman, Carnoy, Echeverria, Brown, Negroponte e Zuckeverg - para citar apenas 0s criti- cos mais positivos - sobre a plataforma da rede das redes, pode estar se confi- gurando uma nova estrutura social, a sociedade em rede que permite a interli- gacio das comunidades virtuais conce- bidas como redes de lacos interpessoais que proporcionam sociabilidade, apoio, informacdo, um sentimento de pertenci- mento e de uma identidade social. Para participar desta nova estrutura social, é preciso passar por uma uma nova alfa- betizacdo. Aprender a “linguagem da tela’, das “tecnologias da interrupcao” chega a ser tdo necessdrio como a alfa- betizagio relacionada com a leitura e a escritura verbais. Consequentemente, pre- parar os cidados nao s6 para ler e es- crever nas plataformas multimidia, mas para que se envolvam com esse mun- do compreendendo a natureza intrincada, conectada, da vida contempordnea,’ tor- na-se um imperativo ético e também uma necessidade técnica. ‘A medida que se vai construindo este novo tecido de intercdmbios simbélicos, aparecem novas oportunidades, novos ris- cos e incertezas. A internet, a rede de re- des, como plataforma universal, aberta e flexivel, também pode ser considerada um A mutacdo esta na perda de valor da pro- fundidade como fonte de conhecimento: L..] a ideia de que entender e saber signi- fica penetrar profundamente no que esta- mos estudando, até aleancar a sua essén- cia, é uma bela ideia que esta morrendo: estd sendo substituida pela instintiva con- viegio de que a esséncia das coisas no € um ponto, mas um caminho, de que ela Jo estd escondida no fundo, e, sim, es palhada na superficie, de que nao reside nas coisas, mas se dissolve fora delas, on. de realmente comecam, ou seja, em todos 0s lugares. (BARICCO, 2008, p. 111). A internet, as plataformas digitais e as redes sociais merecem uma consideragio especial como instncias de comunicagao € intercambio que favorecem a interacao e a participacdo dos interlocutores como receptores e transmissores de intercam- bios virtuais humanos, Com mais de 2 bi- hdes de internautas no ano de 2011, a rede se tornou 0 ambiente de comunica- cdo mais importante da histéria. E impor- tante, portanto, destacar claramente que a internet nos permite sair da comunida- de local que constitui o cendrio vital de cada individuo, porém nfo apenas co- ‘mo um mero espectador passivo de acon- tecimentos alheios que ocorrem distantes no espaco e no tempo, Como adverte Bur- bules e Callister (2001), a internet permi- te explorar, conhecer ¢ até mesmo partici- par de comunidades alheias, talvez préxi mas e talvez distantes, das concepgies culturais que compartilham e, assim, en- trar em um cenario de socializagio mais ral, que pode servir para contrastar a ssa cultura vivencial e também, por ve- zes, incompativel com as préprias pressu- posicées, valores e propésitos. A internet, portanto, nao é sé um de- pésito inesgordvel de informagées e uma base mais ou menos ordenada ou cadtica base de dados, conceitos e teorias, uma Educaglo na era digital 21 biblioteca excelente e viva ao alcance de todos e todas, mas, sobretudo, é um es- paco para a interpretacdo e a aco, um poderoso meio de comunicagao, uma pla- taforma de intercambio para 0 encontro, a colaboragio em projetos conjuntos, a criago de novas comunidades virtuais, a interagao entre iguais préximos ou dis- tantes, 0 projeto compartilhado e a or- ganizacio de mobilizacées globais, bem como para a expresso individual e cole- tiva dos préprios talentos, sentimentos, desejos e projetos. Como advertem Castells, Putman, Carnoy, Echeverria, Brown, Negroponte e Zuckeverg - para citar apenas os criti- cos mais positivos - sobre a plataforma da rede das redes, pode estar se con! gurando uma nova estrutura social, a sociedade em rede que permite a interli- gaciio das comunidades virtuais conce- bidas como redes de lacos interpessoais que proporcionam sociabilidade, apoio, informacao, um sentimento de pertenci- mento e de uma identidade social. Para participar desta nova estrutura social, é preciso passar por uma uma nova alfa- betizacdo. Aprender a “linguagem da tela’, das “tecnologias da interrupcao” chega a ser tao necessario como a alfa betizacdo relacionada com a leitura e a escritura verbais. Consequentemente, pre- parar os cidados nao sé para ler e es. crever nas plataformas multimidia, mas para que se envolvam com esse mun- do compreendendo a natureza intrincada, conectada, da vida contempordnea, tor na-se um imperativo ético e também uma necessidade técnica. A medida que se vai construindo este novo tecido de intercdmbios simbélicos, aparecem novas oportunidades, novos 1 cos ¢ incertezas. A internet, a rede de re- des, como plataforma universal, aberta ¢ flexivel, também pode ser considerada um 22_Angel |. Pérez Gomez agente facilitador de intercdmbio democra. tico, porque torna a informagao acessivel a mais pessoas do que nunca em toda a his- toria da humanidade. Por outro lado, no podemos nos es quecer de que a internet é uma valiosa e expansiva rede de informagio, cujo conte tido nd es turam, sem ordem ou a meias verdades € ment macdes valiosas, também inclu dencioso e material ética e politicamente questiondvel e inclusive desprezivel que surge, muitas vezes, inesperadamente, sem Jamentado e que se mis- ordo, verdades, s. Além de infor- lixo ten: aviso prévio. Da mesma forma que ha com plexidade na sociedade cara a cara, tam bém a experiéncia de intercémbio das possibilidades virtuais oferecida pela in- ternet abre um mundo de possibilidades, ndi- bem como de riscos, para os quais 0 viduo deve se preparar ¢ se formar: Por outro lado, esses avancos tecno- légicos que produzem a extensao e a uni versalizacgao das redes telematicas, comunicacdes digitais, das plataformas virt is tém produzi radical na forma de quebrado as barrei- das ais e das redes soc do uma mudangé nos relacionarmos ras de espaco e de tempo e permitido que mantenhamos relagées, diretas ou indi retas, circulo cada vez mais vasto de ind os, atingindo o que Gergen (1992) jé presenciais ou virtuais, com com a deno satura adiantay nacéio ao social do eu”. O aumento acelerado € exponencial de e: a transformagao das nossas experiénci mulos sociais pr oca scente perplexidade diante da multiplicidade e da aceleracao de realidades e discursos, ma fragmentaciio do eu e das suas con- cepgdes (DEL RIO, ALVAREZ; DEL RIO, 2004; GERGEN, 1992, 1998) como con: sequéncia da multiplicidade de relacdes € concepgées, assim como uma cr também incoerentes e desconectadas, que nos empurram em mil direcées d tes, incentivando-nos a desempenha feren. uma variedade tio grande de funcdes que 0 proprio conceito de &u auténtico, dotado de caracteristicas reconheciveis, desapare Com o passar dos anos, o eu de cada absorve u cada vez mais o cardcter de todos 0s outros, coloniza-se. A medida qu a saturacdo social avanca, corremos 0 co de acabar nos convertendo em pasti ches, em imitagdes baratas dos demais. OS EFEITOS NA SOCIALIZACAO E OS DESAFIOS EDUCACIONAIS NA ERA DIGITA\ O primeiro resultado destas mu dan gas significativas em instituicdes sociai e nas relagGes de experiéncia dentro ¢ aldeia global digital é que também fo- ram modificados de maneira import te, nos contetidos, nas formas e nos e¢ sos de socializacao da Ses e, portanto, as demar e exigéncias educacionais na instituic os prc novas gerag escolar. Neste complexo, inovador e ac lerado contexto social e simbélico, aco: tece a socializacdo da maioria dos indi- viduos das sociedades contempordnea e, de acordo com as influéncias que cebem, desenvolvem-se as suas com onhecimentos, esquem téncias, samento, atitudes, afetos e formas de cor portamento Desenvolvimento € conhecimento na era digital A vida cotidiana de criangas, jover e adultos se encontra profundamente terada pela ininterrupta e poderosa pe netragio social das novas tecnologias d informe 0 e da comunicagio e ofere siais ere s seguintes e inovadoras peculiaridades ra o conhecimento e a experiéncia dos humanos: Cabe considerar, em primeiro lugar, a expansao das ferramentas digitais como extensio dos recursos e das possibilidades de conhecimento e agao. As ferramentas digitais evolui. ram executando miltiplas e suces: sivamente mais complexas fungdes sociais: calculadoras aritméticas; pro- cessadores de texto; gestores de in: formacao; canais de comunicacao; meios de expresso; experimentacao mulada ¢ interpretacao; platafor mas de relacdes e mobilizagbes gru pais ¢ coletivas. Como bem adv Inés Dussel (2011): As tecnologias digitais criaram um no cendrio para 0 pensamento, a aprendiza- gem e a comunicagao humana, transfor- maram a natureza das ferramentas dis- poniveis para pensar, agir e se expressar ] A cultura digital significa [...) uma reestruturagio do que entendemos por conhecimento, das fontes e dos critérios de verdade, bem como dos sujeitos auto: zados ¢ reconhecidos como produtores de conhecimento [...] (DUSSEL, 2011, tra dugio nossa) — Por exemplo, as amplas e inovadoras niciativas de cédigo aberto, de acesso livre, de publicagdo aberta e de livre aquisigao fazem parte de uma nova ecologia do conhecimento que deter- minaré o futuro dos recursos educati vos da escola, do ensino e da difu sio do conhecimento, mudando as regras do jogo do comércio e da pu- blicidade e levantando questées im portantes sobre a sustentabilidade ¢ 0 desenvolvimento do préprio conhe- cimento académico. Como indica re- petidamente Peters (2011), 0 objetivo fundamental de todas estas tecnolo- Educagio na era digital 23 gias (incluindo a geospacial, a web se- mantica 3D, a realidade aumentada) &melhorar um servico universal e en: riquecer as experiéncias dos cidadéos. Em segundo lugar, vale a pena men cionar 0 cardter distribuido do conhe- cimento (THOMAS; BROWN, 2011). Na era da informagio global-digital, a cognicao, tanto contetidos como 0s processos, encontra-se distribui- da ¢ dispersa entre mentes huma: nas, meios digitais, grupos de peso as, espacos e tempos. Os tipos de representacao acessiveis na intera cao mediada (mapas ndo lineares, realidade aumentada) séo cada vez mais ricos e variados (ITO, 2010; STIGLER; THOMPSON, 2009). Nao podemos esquecer que, a servigo do mercado, a nocao de verdade impo ta menos do que a popularidade ou a intensidade da experiéncia emocional que se propée. A ideia de uma cult ra moldada pelos “usué cula pelas redes que sio muito di ceis de controlar, censurar ou recortar certamente desafia o modo de definir © conhecimento valioso na escola & abre um debate sobre o seu cardter mais ou menos democriitico com te- lagdo & hierarquia e & centralizagéo do conhecimento escolar, que foi cr ticado por excluir e reproduzir as de sigualdades sociais e culturais desde a década de 1970 (BOURDIEU; PAS- SERON, 1977; DUSSEL, 2011; GEE, 2007; JENKINS, 2011). Em terceiro lugar, vale a pena sa- lientar a possibilidade de confiar al- gumas tarefas, funcées e atividades as méquinas. O tipo de tarefas e tra balhos desenvolvidos pelos seres hu- manos, ao contrario dos que realizam as maquinas, estd mudando constan. temente, 4 medida que as maquinas rios”, que cir 24 Angel |, Pérez Gomez se aperfeicoam para fazer tarefas tra dicionais humanas. © trabalho e as tarefas dos seres humanos nos dias atuais sao substituidos pelo afazeres que envolvem o pensamento especia lizado e a comunicagio complexa, tomada de decisdes, a resolucdo de problemas e a criagio de cenérios ¢ situagSes alternativas, deixando nas méos das méquinas as tarefas que consistem principalmente em roti- nas cognitivas e rotinas manuais de cardter reprodutor e algoritmi co, que os computadores executam facilmente, de maneira fiel e rigoro- sa (LEVY; MURNANE, 2004). O re- latério McKinsey & Co. (MANYIKA; ROXBURGH, 2011) estima que nos Estados Unidos apenas 30% dos no- vos trabalhos exigem procedimentos algoritmicos, enquanto 70% reque- rem procedimentos heuristicos. No mesmo sentido, é interessante des- tacar, conforme Pink (2009), a trans feréncia do foco educativo, do tra balho rotineiro que pode ser au- tomatizado e, portanto, externali- zado, para as tarefas cognitivas de ordem superior, criativas, artisticas e de atenco e de cuidado humano, nao rotineiro, que envolvem a cri cao e as relagées sociais que, nor: malmente, ndo podem ser automa- tizadas ou externalizadas. — Em quarto lugar, a era digital re- quer aprendizagens de ordem supe rior que ajudem a viver na incer- teza e na complexidade. A memo- rizagéo jé nao é apreciada tanto quanto a capacidade de organizar as ideias em favor de um pensa- mento independente, fundamenta- do e contextualizado. A era digital exige 0 desenvolvimento de habitos intelectuais que preparem para um futuro em que quase tudo é mais acessivel, complexo, global, flexivel e mutdvel. As tarefas rotineiras res pondem bem a motivagao extrinse: ca de recompénsas punicées, mas as tarefas heuristicas no. Fields, no seu interessante trabalho publi- cado em 2011, destaca, com rela gao A importéneia critica na socie- dade contemporanea, a capacidade de lidar com altos niveis de “ambi guidade criativa’, a capacidade de arriscar e amar os erros e de se de- senvolver na ambiguidade e na in- certeza como condigao para o de: senvolvimento criativo das pessoas e dos grupos humanos. Para criar algo realmente extraordind cessario viver a incerteza e 0 risco de se perder no proceso. Em quinto lugar, convém destacar a cooperagao como exigéncia do conhe- cimento e da agdo na era da infor mao. Nunca se destacard suficien- temente a importancia decisiva da interacdo e do trabalho em equipe, a complementaridade de papéis ¢ conhecimentos dispersos para lidar com a complexidade das funcdes na vide social, politica e profissio. nal contemporinea. Em qualquer lugar, seja em jogos on-line, na es- crita de ficgao, no desenvolvimento de programas de software abertos ou nas mobilizacdes sociais por meio da rede, os participantes, indepen- dentemente da idade, da experiéncia ou do conhecimento, iniciantes ou avancados, compartilham um mes- mo espago virtual e esta envolvi- dos em uma mesma tarefa virtual, contrastam opiniées, transferem in- formagao entre si, propdem alter- nativas e tentam resolver proble- mas. A comunicagao € horizontal e io, 6 ne- a lideranga porosa e inconstante. As posig6es podem ser intercambiaiveis, quem agora ¢ um especialista, ama- nh pode ser um novato (GEE, 2007). interedmbio e a cooperacao hori- zontal so muito mais amplos, égeis, flexiveis, onipresentes e presentes na era digital do que em toda a historia da humanidade. Em sexto lugar, deve-se destacar a mudanga na concepedo da naturesa e da funcionalidade da informacao e do conhecimento, Na contemporaneida- de, parece cada vez mais dbvio que 0 conhecimento niio é nem verdadeiro nem definitivo, mas verossimil, me- Ihor ou pior com base em argumen- tos e evidéncias, parcial e provisério. ‘Ao mesmo tempo, a comunidade di- gital costuma compartilhar a ideia controversa do carater gratuito e de- mocratico do conhecimento, rejeita a propriedade privada e questiona os direitos autorais individuais, apos- tando fortemente na autoria cole va que abre espaco para as licengas, como as creative commons, as produ- Ges musicais ou audiovisuais ou de software aberto, compartilhadas, mis- turadas ou reconstruidas continua- mente pelas partes interessadas, cujo expoente mais claro é a Wikipédia (DOUEIHI, 2010; DUSSEL, 2011). problema nao resolvido e a per- gunta ainda sem resposta é: como compensar os criadores pelo seu tra- balho na era digital? Como sobrevivi- ra criagio cultural sem a compen- sagdo correspondente? A Wikipédia inaugura uma nova forma de cons- truir 0 conhecimento compartilhado, chamada crowdsourcing, que significa uma forma aberta, flexivel e alterdvel de convidar um grupo para colabo- rar na busca de solugGes para proble- Educagdo na era digital 25 mas comuns, Essa disposigao para a abertura ¢ um dos requisitos bisicos do desenvolvimento do conhecimen- to, Neste mesmo sentido, Davidson (2011) propée seis principio para © desenvolvimento de uma ciéncia aberta: abertura a experiéncia, & critica, & interpretagéo, & coopera- c&io com os outros, a ambiguidade criativa e A comunicacao multimidia. Em tiltimo lugar, cabe ressaltar a ne- cessidade de abordagens holisticas. Para lidar com a complexidade e a incertidao, é preciso integracdo da compreenso ¢ atuago baseadas na integragio de conhecimentos, atitu- des e competéncias mais do que aprendizagem isolada ¢ fragmentada de conhecimentos, de um lado, e habilidades, de outro. Na internet, tudo estd relacionado ou pode se relacionar a tudo, e tudo esta dispo- nivel ao mesmo tempo. f, uma rede de redes interconectadas, sem cen- tros ou hierarquias que controlem e filtrem o intercdmbio. A internet pode estar antecipando uma nova forma de pensar baseada mais nos processos do que nos produtos, na necessidade imperativa de sintetizar a vasta e diversificada morfologia atual da informacao. O impacto da era digital nas novas geragoes F possivel afirmar que a vida coti- diana das novas geracées, sobretudo dos jovens, configura-se mediada pelas redes sociais virtuais, que induzem novos esti- los de vida, de processamento de infor- magio, de intercmbio, de expressao e de aco, Passou pouco tempo, e tudo avanca muito rapidamente, para poder oferecer 26 Angel |. Pérez Gomez sugestdes baseadas na pesquisa sobre os efeitos dessas mudangas no desenvolvi- mento das qualidades humanas das no- vas geracdes, mas todos os indfcios apon. tam para mudangas importantes. Ninguém divida mais que os jovens, por exemplo, permanentemente conecta- dos 2 rede, saturados de informacéo € exigidos por multiplas demandas de re- des sociais pluralistas — Facebook, Tuenty, ‘Twitter, Chat, Whatsapp -, estdo se acos- tumando a dispersar e ocupar a sua aten- do com diferentes tarefas simultdneas, as multitarefas. Eles raramente fazem uma s6 coisa por vez; assistem & televisdo, com o computador em cima dos joethos ou com 0 telefone, os bate-papos ou as redes ativa- das, dedicando uma atengio parcial a cada uma das tarefas e demandando comunica- do e gratificacao instantaneas, 0 que po- de minar a sua paciéncia e aumentar a sua ansiedade diante da caréncia do habito de esperar ou da demora (WAGNER, 201 CARR, 2010; THOMAS; BROWN, 2011). No entanto, a multitarefa no ajuda a construir 0 mesmo conhecimento que a atengdo concentrada em um tinico fo- co; a atengdo parcial continua pode ser um comportamento muito funcional em curto prazo, talvez a melhor estratégia para atender aos miiltiplos fatores ¢ va- ridveis que, em uma determinada situa- ao, afetam simultancamente o desenvolvi- mento da aco, mas em doses elevadas favorece um estilo de vida governado pelo estresse, que compromete a quali- dade do pensamento e a tomada de deci- ses tranquila (ROSEN, 2010). Devemos comegar a pensar que, quando individuos humanos se deparam com a acao das melhores ferramentas, os melhores re- cursos tém a ver com a capacidade para despertar a atengdo para os mais dife- rentes aspectos e indicadores, centrais e periféricos, que a condicionam. A multita- refa forma uma plataforma adequada a0 conhecimento na agao, enquanto a aten- ao concentrada, sequencial e a reflexao légica, calma e dedutiva sao, ao contré- rio, a ferramenta certa para a reflexdo sobre a aco, para preparar e planejar a aco ¢ para avaliar as consequéncias, os resultados e a qualidade dos processos que desencadeamos. A dispersao, a in- terrupcdo, a pluralidade e a multidimen- sionalidade de perspectivas podem abrir © conhecimento para a captacao da com- plexidade, induzindo a ruptura com a uni- direcionalidade das tapadeiras que im- poem os nossos habitos estabelecidos, mas nao pode substituir a necessidade de reflexAo tranquila, a concentracéo em um foco de andlise que serve como um fio condutor para o raciocinio prévio e posterior & aco, a necessidade de ir além das aparéncias, dos tragos epidér- micos que saturam a compreenséo si- multanea, imediata, em curto prazo. Por outro lado, o extraordinario po- tencial dos dispositivos digitais a servico dos individuos desde a infancia, para re- gistrar, coletar, reproduzir, intercambiar € recriar contetidos abre horizontes ini- maginados até o presente para o desen- volvimento das qualidades que compoem a sua identidade pessoal. Por exemplo, como expée Fontcuberta (2010, p. 31): [J a possibilidade de contar com cAme- ras digitais muito baratas democratizou ssibilidade de construir a propria As fotos que os adoles- centes intercambiam de modo compul- sivo retinem um amplo espectro de cé- digos de relacionamento, desde simples gestos de saudacdo [...] até expressdes mais sofisticadas que traduzem afeto, simpatia, cordialidade, encanto ou se- duco, Transmitir © compartilhar fotos funciona assim como um novo sistema de comunicacio social. (RONTCUBERTA, 2010, p. 31, traducao nossa). wruUeAagTHAnRaraArEes aoe “op aod su i be. Whee. ea tn Educacio na era digital 27 a aten- flexdo -ontra- flexao nejar a jas, os cessos a in- limen- a abrir a com- auni- 1e im- -cidos, sidade tragao como prévio atizou r6pria doles- ampul- de cé- imples esses afeto, 5 se- fotos stema ERTA, Esse estilo de vida saturado de rela- Ges sociais virtuais e de interagoes mais ou menos hidicas com a tela também po- de ajudar os jovens a aprenderem em contextos complexos, incertos, multidi- mensionais, a navegarem na incerteza, a aprenderem descobrindo, questionando, resolvendo problemas de forma auténo- ma, adquirindo rapidamente complexas habilidades técnicas e compartilhando com 0s outros riscos, tarefas e objetivos, como ocorre na maioria dos jogos em rede que tanto os entusiasmam. Como afirmam Thomas e Brown (2011), a navegagéo tam- bém pode se converter na principal forma de alfabetizacao cultural do cidadio das proximas décadas, a web 2.0 ¢ um amplo leque flexivel e abrangente de criatividade pessoal e autoexpressao. Além disso, convém advertir sobre outra caracteristica relevante deste pro- cesso de socializacio digital, Estamos diante da primeira geracao que domina as poderosas ferramentas digitais que sio utilizadas para acessar e processar a informacao que interfere na vida econé- mica, politica e social, ¢ ela faz isso me- Ihor do que os mais velhos: pais, maes e professores, Este fato, embora nao saiba- mos ainda em que sentido, obviamente, muda claramente a vida social familiar e escolar, ao converter os alunos em espe- cialistas digitais e os adultos em aprendi- zes em tempo parcial dos nossos jovens peritos digitais. Essa inverstio de posicées questiona em principio a forma tradicio- nal de compreender a influéncia sociali- zadora e formadora da familia e também da escola sobre o aprendiz, bem como o conceito clissico de autoridade geracio- nal (DEL RI@, 2005; DEDE, 2007). Essas formas de viver e de se relacio- nar na aldeia global por meio da parti- cipaco ativa em diferentes redes sociais digitais esto provocando nas novas ge- rages o desenvolvimento de atitudes expectativas diferenciadas com relagio a geracoes anteriores, entre as quais cabe destacar, de acordo com Dede (2007), as seguintes: ~ liberdade para escolher 0 que consi- deram adequado para eles e para ex- pressar as suas préprias opinide — personalizagio e adaptacaio do que 0s rodeia, para atender as suas pré- prias necessidades; ~controle e andlise detalhados das situagoes; ~ integridade ¢ abertura nas suas in- teracdes com outros individuos, gru- pos ¢ instituigdes; ~ integracdo de trabalho e diversdo; = multitarefa e velocidade de comu- nicago; — colaboracao e interacao; e ~ inovagao € criagio de produtos e ser- vigos. As novas geracées tém ao seu alean- ce a possibilidade de consumir, buscar, comparar, processar, avaliar, selecionar e criar informagées, por meio das suas miiltiplas relagdes e contatos nas redes sociais. Por esta razio, no podemos es- quecer que se converte, em certa me- dida, em produtoras de contetido, comu- nicadoras de sucessos e experiéncias, usando a palavra, a imagem, o movimen- to, 0 hipertexto, etc. Por tudo isso, é possivel afirmar que o déficit das novas geracdes, de modo geral, no se deve & caréncia de informacao e de dados, mas de organizacao significativa e relevante das informagées fragmientadas e tendenciosas que recebem nos seus conta- tos espontaneos com multiplas telas e di- versas redes. Frequentemente, o individuo no pode processar a quantidade de infor- macfo que recebe e consequentemente se enche de “ruidos”, de elementos isolados, de maior ou menor destaque, que nao po- dem integrar os esquemas de pensamento 1B Angel , Pérez Gomez para compreender melhor a realidade ¢ a sua atuagiio sobre ela. Em especial, 0 défi- cit dos processos atuais de socializacéo se situa fundamentalmente no territério dos sentimentos, valores e comportamentos. E muito dificil que as novas geracdes en- contrem, neste cendrio global, acelerado, cheio de estimulos e possibilidades, andni- mo, diversificado e cadtico, uma maneira racional e auténoma de governar os seus sentimentos e comportamentos. Trata-se, assim, de um déficit fundamentalmente de orientagao e organizagéo de sentimentos e comportamentos, de elaboragao dos mo- dos de interpretar e de fazer. Os desafios escolares na era digital Este novo cenario social também exi- ge mudangas substanciais na formacao de futuros cidadaos ¢, portanto, apresenta desafios inevitaveis para os sistemas edut- cacionais, as escolas, 0 curriculo, os pro- cessos de ensino e aprendizagem e, claro, para os professores. As transformagées na pratica educacional devem ser to signifi- cativas que é conveniente falar sobre uma mudanga na maneira de enxergar, sobre reinventar a escola. As reformas parciais sem um sentido global ja no so suficien- tes. A explosio exponencial e acelerada da informagao na era digital requer re- considerar de maneita substancial 0 con- ceito de aprendizagem e os processos de ensino. Muitos docentes parecem ignorar a extrema importancia desta nova exigén- cia na sua tarefa profissional. © desafio da escola contemporanea reside na dificuldade e na necessidade de transformar a enxurrada desorgani- zada e fragmentada de informagées em conhecimento, ou seja, em corpos orga- nizados de proposi¢ées, modelos, esque- mas e mapas mentais que ajudem a en- tender melhor a realidade, bem como na dificuldade para transformar esse conhe- cimento em pensamento e sabedoria.? Nesta sociedade global, baseada em informagao, principalmente digital, ¢ ne- cessrio considerar seriamente o papel das novas ferramentas e plataformas pe- las que trafegam a informacio, porque constituem, sem diivida, o fator central na mudanga. Isso quer dizer que a esco- la como uma organizacéo responsdvel, na hist6ria recente da humanidade, pelo desenvolvimento educacional das novas geragbes deixou de ter sentido e seré em breve substitufda pelas redes virtuais? Prever é sempre uma tarefa arrisc da e frequentemente estéril, mas ao me- nos parece evidente que j4 nfio se pode entender os processos de ensino e apren- dizagem, nos quais as pessoas se colo- cam em contato com a informagéo e 0 conhecimento disponivel, sem a presenca poderosa e amigavel das tecnologias da informacao e comunicagao (TICs) e, em especial, da rede de redes. A proliferacdo de computadores e de outros artefatos tecnoldgicos utilizados permanentemen- te fora e dentro das escolas mudou e vai mudar a definigao da sala de aula como um espaco pedagdgico, o conceito de curriculo e © sentido dos processos de in- teragdo do aprendiz com o conhecimen- to e com os docentes. O ensino frontal, simultaneo e homogéneo é incompativel com esta nova estrutura ¢ exigird dos professores o desenvolvimento de uma metodologia muito mais flexivel e plural, bem como uma atencSo mais personaliza- da aos estudantes. Modernizar a escola, no entanto, no significa simplesmente introduzir equipa- mentos e infraestruturas que permitem a comunicacéo em rede. £ algo mais do que simplesmente utilizar as novas ferramentas para desenvolver as tarefas antigas de ma- neira mais répida, econdmica e eficaz. Por outro lado, a fronteira entre 0 escolar ¢ 0 nao escolar j4 nao é definida pelos limites do espaco e do tempo da escola, existe mui to de “nao escola” no hordrio escolar e ha muito “de escola” no espaco e no tempo pos- terior ao hordrio escolar. Na interagao do alu. no com a informacao e com 0 conhecimento j4 nfo ha um tinico eixo de interag4o con- trolado pelo professor, mas uma comunica- cao milltipla, que exige muito mais aten- gio e capacidade de resposta imediata a diversos interlocutores (CUBAN, 2012; DUSSEL, 2011). Em qualquer caso, 0 que deveria, sim, estar claro ¢ nfo est para a grande maio- ria de nds como professores é que as no- vas exigéncias ¢ condigbes da sociedade baseada na informagao removem drasti- camente os fundamentos da escola clés- sica e das suas formas de entender o conhecimento, bem como a formacio pessoal, social ¢ profissional dos cida- dios contemporaneos. Obvio que o sistema educacional deve preparar os alunos para que geren- ciem e resolvam situacdes no futuro, bem diferentes, em geral, daquelas em que vi- vem no presente, ‘Tais situacdes séo, em grande parte, desconhecidas e ainda mais imprevisiveis quanto maior, mais répida, intensa e extensa é a mudanga econémi- ca, social e cultural do cenario. Para lidar com situagdes desconhecidas nos campos pessoais, sociais ou profissionais em con- textos abertos, cambiantes e incertos, os individuos precisam ter capacidades de aprendizagem de segunda ordem, apren- der a aprender e aprender como autorregu- lar a prépria aprendizagem. Se as escolas insistem nas préticas con- vencionais obsoletas, que definem a maio- ria das instituigdes de ensino atuais, dis- tantes e ignorantes do fluxo de vida que transborda a sua volta, correm o risco de se tornarem irrelevantes. E 0 momento de redefinir o fluxo de informagées na escola. Nés, docentes, devemos nos dar Educago na era digital 29 conta de que nao é aconselhavel apenas fornecer informagao aos alunos, temos que ensiné-los como utilizar de forma eficaz essa informagio que rodeia e en- che as suas vidas, como acessé-la e avi lidla criticamente, analis4-la, organizd- -la, recrié-la e compartilhé-la. As escolas devem se transformar em poderosos cena rios de aprendizagem, onde os alunos in- vestigam, compartilham, aplicam e refle- tem. Apesar do seu hébito multitarefa ser generalizado e itil, os aprendizes precisam compreender que a quantidade infinita e intermindvel de informacao exige uma in- tensa tarefa de selec, foco e concentra- gio, se néo quiserem naufragar em uma tempestade continua de rufdo informacio- nal e dispersio. Hé momentos, lugares € situagdes que agradecem a atendo disper- sa eo desenvolvimento da multitarefa e outros nos quais se requer a concentracao, a anilise e a reflexao focada e profunda. A escola, como sintetiza Dussel (2011), uma instituigdo de transmissao cultu- ral, organizada em determinado momen- to histérico - a modernidade do final do século XVIII e inicio do XIX - em torno de uma ideia de cultura piblica e na qual predominava 0 pensamento racio- nal, reflexivo e argumentativo, que res- pondia as exigéncias do mundo laboral, em grande parte, organizado ao redor de uma fabrica e de uma linha de mon- tagem. No entanto, as exigéncias de for- macao dos cidadaos contempordneos siio de tal natureza que é preciso reinventar a escola, para que ela seja capaz de esti- mular 0 desenvolvimento de conheci- mentos, habilidades, atitudes, valores € emogées que so necessdrios para convi- ver em contextos sociais, heterogéneos, varidveis, incertos e saturados de infor- magio e contextos caracterizados pela supercomplexidade. Como ajudar os in- dividuos a desenvolverem uma identida- de pessoal com autonomia suficiente pa- 30_Angel |. Pérez Gomez ra enfrentar as demandas da sociedade contempornea? Como contribuir para a compensagéio das enormes e crescentes desigualdades de origem que geram uma sociedade na qual as diferencas entre ri- cos e pobres so cada vez mais impor- tantes e onde quem perde o rapido trem da informagao ficard excluido das inte- races mais relevantes? Consequentemente, a educagio néo pode continuar se orientando por mais tempo para a trasmissdo e o aprendizado de pecas e fragmentos discretos e isolados de informago, memorizada e acumulada em armazéns estaveis de_informacdo, para ser utilizada quando for necesscrio (esse € 0 modelo de educagio bancéria criticada por Freire, ou pedagogia do ca- melo, como ironiza Meirieu), mas, sim, para o desenvolvimento em cada indivi- duo de conceitos bésicos e fundamentais para aprender a pensar e aprender de ma- neira disciplinada, prdtica, critica e cria- tiva, de modo que ele possa utilizar 0 conhecimento e 0 método de compreen- so em novas situagdes que aparecem no mundo da informacio inconstante (DARLINGHAM-MOND, 2010). No mesmo sentido se pronuncia El- more (2011) quando propée um cenério para o desenvolvimento satisfatorio da escola na era digital, denominado “apren- dizagem de eddigo aberto”, Este cendrio coloca a escola em um territério aberto, competindo com outros servicos e insti- tuigdes pelo interesse dos alunos e das familias, sem o papel determinante na defini¢do do que constitui a aprendiza- gem ¢ 0 conhecimento validos, tampouco na definic&o do ritmo, da sequéncia e da estrutura de programas de estudos fecha- dos. Neste cendrio aberto, saturado de possibilidades, o aprendiz, com a ajuda dos docentes que atuam como tutores, defen- de 0 seu préprio curriculo de acordo com Os seus interesses e propdsitos e, ao mes- ‘mo tempo, configura progressivamente a singularidade do seu prdprio projeto pes- soal, social e profissional. Por exemplo, um aluno pode escolher dedicar seis me. ses ao aprendizado intensivo de um idio- ma ou a uma expedicao de pesquisa bio- logiea. Os alunos acumulariam no seu Portfélio digital a sua histéria e os seus produtos de aprendizagem mais significa. tivos, como evidéncias e impressées vivas da histéria do seu préprio projeto de vida. De acordo com aqueles autores, as esco- las, como nés as conhecemos hoje, desa- parecerao gradualmente e sero substitui- das por redes sociais organizadas em torno de objetivos e propésitos dos alunos e das suas familias. ‘Talvez nfo convenha avan¢ar tao rapi- damente. Talvez, devamos nos deter no que significam estes novos desafios para a esco- a contemporanea, ter moderacao suficiente para separar 0 joio do trigo, questionar e debater quais sfio as novas finalidades e ropésitos que a escola deve satisfazer para preparar os cidadaos da era digital. NOTAS * Davidson (2011) considera que a Wikipédia, que ‘nasceu com o nome de Nupedia em 2000 e se tor- nou a Wikipédia em 2001, € o maior esforgo de colaboragdo intelectual da humanidade e que 0 atual desafio é torné-la cada dia mais forte, rigo- rosa, flexivel e aberta & descoberta e As criagbes cooperativas. Em menos de uma década, isso dei xou de ser um sonho impossivel para se tornar uma referéncia indispensavel, com meio bilhio de consultas mensais. Entendo a sabedoria como a capacidade de na- vegar na incerteza, a capacidade do sujeito para aplicar as melhores ferramentas e recursos cog- nitivos disponiveis para orientar e governar 0 seu Préprio projeto de vida, no incerto, complexo e ‘mutivel cendrio em que vive, Insatisfagao escolar: a escola sobrecarregada Aleitura, a escrita eo aritmética podem ser aprendidas em 100 horas ‘se os aprendizes estiverem motivados... O que é que se aprende de verdadeiramente util nos milhares de horas restantes da vida escolar? AS PECULIARIDADES DOS SISTEMAS EDUCACIONAIS NA SOCIEDADE NEOLIBERAL Diante da impressao generalizada de fracasso e obsolescéncia do sistema edu- cacional, a partir da década de 1990, qua- se todos os paises desenvolvidos e em vias de desenvolvimento promoveram refor- mas, de maior ou menor proporgao, dos seus sistemas educacionais. Nao é dificil reconhecer tendéncias, padrdes e carac- terfsticas semelhantes, apesar de eles pre- tenderem responder a situagées e circuns- tincias econémicas, sociais e culturais notavelmente diferentes. Assim convém destacar que as exigéncias da economia global atual, as demandas do sistema produtivo definido pelo capitalismo fi- nanceiro, digital e deslocalizado, as fér- mulas e interesses da sociedade de con- sumo em um mundo global, interdepen- dente e digitalizado, jé discutidos no Ca- pitulo 1, esto impondo modelos seme- (GATTO, 2005, traducao nossa) Ihantes em todos os paises, que nao sio jase nada compativeis, na minha opi io, com as exigéncias éticas e politicas das sociedades democraticas e com as suas concretizacées pedagégicas. Os conceitos centrais no discurso de politica educativa atual, comuns a todos esses processos de reforma, so: qualida- de, eficiéncia e igualdade, Também sao similares as politicas e as estratégias pri- vilegiadas no desenvolvimento dessas re formas: ampliacao da escolaridade obri gatéria, exigéncias de renovacao curri- cular, incorporacio das TICs, preocupagao com a profissionalizagio docente, mu- dangas na estrutura académica dos ‘siste- mas, novas formas de governo e de ges- to do sistema e dos centros escolares, instalagéo de mecanismos de avaliacéo, prestac&o de contas ¢ controle de quali- dade, tendéncia a descentralizagio do sis- tema e & concessao de algum grau de au- tonomia as escolas. E possivel detectar também uma agenda mais ou menos ocul- 32_Angel |. Pérez Gomez ta em alguns paises e centros de decisao nacionais e internacionais com orienta- g6es claramente neoliberais, decididamen- te voltadas para a privatizagao do servigo piiblico que por suposigao € oferecido pela escola e para a gestdo da educacéo como mais uma mercadoria que pode ser regu- fada por meio do livre intercAmbio da oferta e da demanda. E importante ressaltar, no entanto, que, a0 mesmo tempo em que surgem tendén- cias neoliberais, a maioria das escolas segue ancorada em rotinas, estruturas e progra- mas muito antigos. Com lamentével fre- quéncia, a vida na instituigéo escolar conti nua sendo guiada pela uniformidade, pela predominancia da disciplina formal, pela autoridade arbitraria, pela imposigéio de uma cultura homogenea, eurocéntrica e abstrata, pela proliferacao de rituais ja des- providos de sentido, pelo fortalecimento da aprendizagem académica e disciplinar de conhecimentos fragmentados, inclusive me- moristico e sem sentido, distanciados dos problemas reais que, logicamente, provoca- ram o tédio, a preguica e até mesmo fobia & escola ¢ & aprendizagem (WAGNER, 2010; WILLINGHAM, 2009). Além disso, é ne- cessdrio considera, conforme Wills (1990), que a escola provoca um importante fra- casso escolar pelo seu cardter refratério & cultura de origem das camadas mais mar- ginalizadas e desfavorecidas, e que este efeito, a principio nao desejado, pode ser um objetivo nao confessado que favorece a classificagao e a estratificacao social da populace. O fracasso escolar orienta “vo- luntariamente” uma parte importante dos jovens mais desfavorecidos para o traba- Iho manual que, “casualmente”, ocupa um status social mais baixo e corresponde as expectativas do seu meio social. Nas tltimas décadas do século XX, a maioria das propostas e iniciativas de re- forma do sistema escolar nao esté moti- vada, tanto pela consciéncia das deficién- cias qualitativas do sistema e por nao fa- cilitar o desenvolvimento educacional dos cidadaos independentes, quanto pelas exi- géncias imperiosas ¢’inevitaveis da econo- mia de mercado. As politicas neoliberais propdem o desmantelamento do estado de bem-estar social e a concepgéo de edu- cago ndo como um servigo ptiblico, mas como uma mercadoria de valor notdvel submetida, logicamente, & regulacdo das relacées entre a oferta e a demanda, Um dos exemplos mais evidentes desta interessada utilizagéio equivocada dos ter- mos, com clara ressonancia humanista para promover politicas que favorecem a econo- mia de mercado, é a utilizacio indiferen- ciada e confusa dos termos autonomia, descentralizacdo e desregulamentagao do sistema. £ evidente que a autonomia pro- fissional dos docentes e a autonomia das escolas so antigas reivindicacées pedagé- gicas apoiadas nas requisicoes das teorias de aprendizagem significativa e relevante e nas propostas construtivistas de um curri- culo aberto e contextualizado (Stenhouse, Freinet, Freire, Gardner, Taba, Bruner...) Além disso, a rotina, a preguica e, aci ma de tudo, a excessiva burocratizagio do dispositive escolar, em particular no con- texto espanhol constituido pelo cardter de funcionalismo publico vitalicio dos profes- sores, deram origem a uma cultura escolar estatica, reprodutiva e resistente as mudan- ¢@s, pouco preparada para responder com agilidade e eficdcia as exigéncias e desafios da era da informagao, & permanente trans- formagio, & inovaco e & incerteza Esses fatos inegaveis so utilizados pa- ra justificar teoricamente a politica educa- tiva neoliberal que fomenta a descentrali- zacéio e a concorréncia entre as instituiges educacionais como estratégia fundamen- tal para aumentar a produtividade das escolas, a melhoria dos resultados em ter- mos de desempenho académico e reduzir custos, ao mesmo tempo em que garante permissdo aos pais para exercerem 0 seu direito a liberdade de escolha do cen- tro educativo. Em sintese, a privatizagio das instituigdes ou pelo menos dos seus servigos ¢ a consideracao e o tratamento da educagao como mais uma mercadoria no cenério competitive do mercado livre podem constituir os primeiros pasos no caminho da desregulamentacao do siste- ma educativo. No entanto, deve-se destacar, desde jé, que as instituigdes encolares abandonadas ao livre jogo do mercado nao podem, na minha opiniao, cumprir a sua fungao edu- cativa por duas razGes fundamentais: — em primeiro lugar, no mercado, a lei da oferta e da procura, em situa- Ges de desigualdade, reproduz. aumenta, pretendendo ou nao, as desigualdades de origem, de modo que as criancas de classes privile- giadas terdo condicdes e recursos incomparavelmente melhores para 0 seu desenvolvimento intelectual, em instituigdes de primeira categoria e com uma segunda escola comple- mentar paga pela familia, e os alu nos de classes desfavorecidas serio condenados & discriminacdo, A mar- ginalizacao e até mesmo a exclusio do sistema em casos mais extremos, ou seja, as desigualdades de origem se tornarao as desigualdades pes- soais e profissionais definitivas; e — em segundo lugar, porque as exigén- cias do mercado nao reparam preci- samente em valores éticos e educati- vos, mas, Sim, na obtengao da ren- tabilidade como uma meta prioritd- ria. Assim, a conquista do beneficio palpavel e em curto prazo se conver- terd no objetivo central das institui- ces escolares, em aberta e impla- cével concorréncia, & custa dos va- Educagso na era digital 33 lores educativos dedesenvolvimento auténomo das capacidades de pen- sar, sentir e agir, que demandam coo- peracdio e cujos efeitos se manifes- tam em longo prazo e de forma, em parte, imprevisivel. As politicas de descentralizagao ou des- regulamentagéo, a menos que sejam acom- panhadas por medidas que fornecam os re- cursos humanos e materiais, bem como por programas de formagio e estratégias de co- ordenago necessirias para evitar a desi- gualdade e tomar vidvel a autonomia, nao significaram mais do que 0 abandono das instituigdes ao jogo dos interesses comer- ciais, alheios aos objetivos educativos. Incentivar a qualidade do servigo pibli- co que é oferecido no sistema educacional requer exatamente uma ateneio mais inten- sa aos centros correspondentes ais regides e grupos sociais mais desfavorecidos e, ap: rentemente, menos rentveis e 0 apoio centivo as experiéncias de inovagao e expe- rimentacao colaborativa. INSATISFACAO, FRACASSO E OBSOLESCENCIA A insatisfagao generalizada com rela- gdo & qualidade dos sistemas de ensino para enfrentar os complexos e incertos nérios atuais est gerando uma busca por alternativas e reformas que nao parecem produzir os efeitos desejados (PEREZ GO- MEZ, 2003, 2007). A escola contempor- nea parece uma instituigdo mais acomo- dada as exigéncias do século XIX do que aos desafios do século XXI. Como afir- mam Oakes e Saunders (2008), uma pe- dagogia obsoleta, escolas segregadas, clas- ses lotadas, alunos entediados e desin- teressados e professores esgotados so ca- racteristicas que definem a vida da maio- ria das escolas contempordneas. 34 Angel | Pérez Gémez Na minha opinio, sio trés os indica- dores mais preocupantes do deficiente de- sempenho do atual dispositivo escolar: Fracasso e abandono escolar 20s dados estatisticos dos tiltimos 20 anos denunciam, com pequenas variagoes, um indice elevado de fracasso e abandono precoce da escola em muitos paises. Na Espanha, por exemplo, 30% dos jovens ou nao concluem a etapa obrigatéria ou ndo continuam nenhum tipo de estudo nem de formaco a partir dela. © termo fracasso escolar esconce miltiplos significados, des- de a insuficiente formagio nos cidadaos das capacidades exigidas pela sociedade até o absentismo e abandono prematuro dos estudos sem qualificagSes e titulos ba- sicos ou as reincidentes suspensdes e re- provagdes de ano escolar. Na reunio de Lisboa do ano 2000, a Unido Europeia definiu o fracasso escolar como “o niimero de jovens entre 18 e 24 anos, com os niveis mais baixos de ensino médio, que nao permanece em programas de educagao ou formagio”. No mesmo sentido, convém comentar 0 fendmeno controverso € arraigado no con- texto espanhol da repetigéo de ano. Na Es: panha, 40% dos alunos repetiram pelo me- hos um ano escolar ao atingir a idade de 15 anos (ORGANIZACION PARA LA COOPE- RACION Y EL DESARROLLO ECONOMI- CO; PROGRAMME FOR INTERNATIO- NAL STUDENT ASSESSMENT, 2011). Como comenta Feito (2005), citando Aletta Grisay, 0 caso da Bélgica ¢ exem- plat, Neste pafs, coexistem trés sistemas educacionais: 0 holandés, 0 alemao ¢ 0 francés. Neste ititimo, ha uma maior pro- babilidade de suspensdes e reprovagées. Nos outros dois, a aprovacao é automati- ca: passa-se de ano por atingir a idade cor- respondente, Contudo, em todas as avalia- Ges - nacionais e internacionais — estes dois sistemas estéo em melhor situacio do que o francés (no qual quase um quar- to dos alunos que completam o ensino fundamental repetem pelo menos um ano escolar). Na verdade, hé varios paises, cujos desempenhos escolares so claramente superiores aos da Espanha, que optaram pela aprovaciio automética ou quase au- tomatica. F o caso da Finlandia, Norue- ga, Suécia, Dinamarca, Reino Unido, Ir- landa e Japao. Andreas Schleichter, coordenador do relatério do Programme for International Student Assessment (PISA, Programa In- ternacional de Avaliacdo de Estudantes), ea OCDE, em um relatério recente (OR- GANIZACION PARA LA COOPERACION Y EL DESARROLLO ECONOMICO, 2012), desaconselham a reprovacio por conside- réJa um caminho muito caro e ineficaz, que mais facilita que 0 professor apoie outros colegas do que a soluciona 0 pro- blema. £ dbvio que a mera reprovacio, ou seja, repetir 0 mesmo tratamento fra- cassado anteriormente, nao pode ser uma estratégia recomendavel. Isso néo propée um tratamento adequado aos problemas e dificuldades de cada um, nao oferece nem apoio nem atencdo especiais e, sem dtivida, gera na maioria dos alunos afeta- dos mais problemas relacionados com a sua autoestima, pelo fato de se conside- rarem fracassados e excluidos do grupo que lhes corresponde. De qualquer modo, é surpreendente admitir um fracasso ou abandono em tor- no de 30% de cada faixa etaria ao finali- zar a etapa obrigatéria e gratuita da edu- cagio formal, cuja finalidade nao é a for- magio de profissionais ou especialistas, mas a formagao das capacidades gerais de que 0 cidadao contempordneo neces- beg aaaanay gv »w Boo st IBFSME RA OFEDA BROS BAP AOeBOem AS 3

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