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Passos Navegarimpreciso
Passos Navegarimpreciso
NAVEGAR É IMPRECISO:
considerações sobre a formação de professores e as TIC
RESUMO
ABSTRACT
*
Professora da rede pública estadual, multiplicadora do NTE17- Salvador. Licenciada em História, especia-
lista em Potenciais da Imagem (UFBA) e em Telemática na Educação (UFRPE/Proinfo). Mestranda do programa
de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade, no Departamento de Educação I, Universidade do
Estado da Bahia – UNEB. Endereço para correspondência: Rua Teodomiro de Queiroz, 04, 1° andar, Macaúbas
– 40300-520 Salvador/BA. E-mail: sigmapassos@hotmail.com.
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Navegar é impreciso: considerações sobre a formação de professores e as TIC
Parafraseando Fernando Pessoa que resgata mação docente, telemática2, imagem e apren-
o pensamento de navegadores antigos em seu dizagem, analisando, em seguida, uma experi-
poema1, trago o sentido da imprecisão que mar- ência de formação de professores da rede
ca o hipertexto com suas ligações e nós cons- pública, realizada por um Núcleo de Tecnologia
tantemente refeitos na dinâmica das relações Educacional (NTE) em Salvador.
de troca de saberes, marcados por percursos
não-lineares e por conhecimentos não hierár-
quicos, em negociação constante com os sujei- A formação docente para o uso
tos. Neste sentido navegar é uma busca com- das TIC
plexa e imprecisa.
As contribuições deste estudo voltam-se Um dos maiores desafios na introdução das
para o campo da formação de professores para diversas Tecnologias da Informação e Comu-
o uso das tecnologias intelectuais (telemática e nicação (TIC) nos processos educacionais tem
imagem) no ambiente escolar, propondo refle- sido a formação de professores. O Programa
xões que embasem mudanças na perspectiva Nacional de Informática na Educação (ProInfo),
da formação docente no nível institucional e das criado em 1996 pelo Ministério da Educação e
políticas governamentais. Ao mesmo tempo, Cultura (MEC), propunha a universalização do
entende-se que a concretização dos projetos de uso das tecnologias digitais na rede pública bra-
tecnologia educacional depende do envolvimen- sileira, apontando a formação de professores
to e participação ativa dos professores, o que para utilização pedagógica dos computadores
acreditamos que as discussões deste estudo como uma das etapas essenciais da implanta-
subsidiariam ao menos uma reflexão crítica so-
bre a prática pedagógica dos professores em 1
Refiro-me ao trecho “Navegadores antigos tinham uma
questão. Desta forma, “toda pesquisa tem uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso; viver não é preciso’.
intencionalidade, que é a de elaborar conheci- Quero para mim o espírito [d]esta frase transformada a
mentos que possibilitem compreender e trans- forma para a casar com o que eu sou: viver não é necessá-
rio; o que é necessário é criar.” Disponível em http://
formar a realidade” (PÁDUA, 2000, p.32). Tal
www.insite.com.br/art/pessoa/intro.html. Acessado em
esforço perderia o sentido se fosse limitado à 20/11/2002.
sugestão de procedimentos, esvaziando de sig- 2
O termo Telemática é utilizado neste artigo enquanto
nificados a participação ativa de todos os sujei- associação dos recursos das telecomunicações e da
tos envolvidos no cotidiano escolar, contexto em Informática , conforme denominação utilizada no curso
que esse encontro entre tecnologia e educação de especialização em Telemática na Educação (ProInfo/
acontece. Parti da discussão das categorias for- UFRPE) e explicitada por Liguori (1997).
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ção do programa, a ser realizada através dos na melhoria das condições de trabalho, buscan-
Núcleos de Tecnologia Educacional (NTE) do dignificar a profissão. As preocupações es-
estaduais e municipais; a metodologia seria sencialmente práticas e a busca por índices pelas
formar multiplicadores que atuassem nestes secretarias estaduais, municipais e Ministério
núcleos e nas escolas. Vale salientar que a da Educação e Cultura (MEC) acabam trans-
formação dos professores foi alvo das oito prin- formando a atividade docente em aplicação de
cipais políticas educacionais do governo anterior, procedimentos, reduzindo o espaço para refle-
mas é consenso entre autores como Pretto xão. Portanto, os programas de formação para
(2001), Barreto (2001), Toschi (2001) que a prin- utilização dos recursos tecnológicos esvaziam-
cipal característica destas propostas é a se de significados para os docentes, quando
formação ou capacitação em serviço, sem a pre- perdem a dimensão política e centram-se ape-
visão em investimentos na formação inicial na nas na instrumentalização dos professores, ne-
graduação, o que coincide com o discurso de gligenciando as condições materiais de trabalho.
organismos financeiros internacionais como Analisar a formação docente para utiliza-
Banco Mundial e BIRD. A formação docente ção das TIC requer também o redimensiona-
em tecnologia na educação não diferiu, até mento do papel do professor numa sociedade
então, deste quadro. Embora o Programa Na- onde a comunicação está cada vez mais media-
cional de Informática na Educação (ProInfo) da por essas tecnologias, sendo a digitalização3
aponte a formação de recursos humanos e a e a interatividade4 algumas marcas desse pro-
valorização dos docentes como ponto fundamen- cesso. E que modelo educacional prevalece na
tal do programa, o que se verifica é um entrave escola? Para Silva (2001, p.76) tanto a sala de
à incorporação das Tecnologias da Informação aula, quanto a escola e todo sistema educacio-
e Comunicação (TIC) em educação ainda de- nal ainda se baseiam na distribuição em massa;
corrente da formação inadequada ou inexistente “trata-se, portanto de repensar o sistema em
em tecnologia educacional, durante e após a geral petrificado em uma concepção de ensino
graduação. que se assemelha à fábrica em sua lógica”.
Outro adversário a qualquer proposta de Dentro desta lógica, há uma profunda separa-
formação de professores da escola pública é a ção entre emissão e recepção, não havendo
política de recursos humanos dos órgãos cen- espaço para relações dialógicas. A introdução
trais, voltada ainda para o controle excessivo das TIC no ambiente escolar trouxe um novo
dos dados formais (pontualidade, assiduidade, desafio para o modelo de escola vigente, ainda
índices de aprovação, evasão) em detrimento marcado pela ênfase na instrução; neste mo-
de indicadores qualitativos como envolvimento delo todas as tecnologias intelectuais (oralidade,
nas atividades, satisfação com o trabalho, qua- leitura/escrita, audiovisual e informática) são
lidade de vida dos profissionais, produção inte- utilizadas na emissão/recepção de informações,
lectual, entre outros. Isto sinaliza uma relação num modelo comunicacional baseado no mo-
trabalhista arcaica, ainda marcada pela troca nólogo falar/ditar.
da força de trabalho (quantificada pela carga
horária) por um salário fixo, calculado apenas
pela formação acadêmica e tempo de serviço.
3
Aqui a imagem de Chaplin apertando engrena- Pierre Lèvy, no livro Tecnologias da Inteligência, define
a digitalização, codificação em bits de imagens, textos,
gens no filme Tempos Modernos é uma metá-
sons e outros elementos, como característica central das
fora significativa do que se resume a tarefa tecnologias digitais (p. 102)
docente numa escola que é “fábrica” também 4
Sobre o conceito de interatividade, ver Marcos Silva, em
nas suas relações de trabalho. Qualquer mu- Sala de Aula Interativa, onde o autor busca caracterizar e
dança passa por uma política de valorização do definir o conceito, criticando a utilização inadequada do
corpo docente, não apenas no item salarial, mas mesmo como recurso de venda (cap. 2)
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ante das novas formas de construção do saber salienta que “a maioria dos professores desco-
e das tecnologias atuais. nhecem as noções básicas das linguagens
Outro aspecto relevante diz respeito à utili- audiovisuais”, o que dificulta uma relação para
zação da imagem nos processos educacionais. além de espectador. Tal perspectiva contribui
Ainda há uma deficiência neste âmbito durante para descaracterizar a imagem enquanto tecno-
a formação docente, mesmo com predominân- logia do pensamento. Rocha-Trindade, por sua
cia dos discursos imagéticos nos meios de co- vez, aborda a utilização da imagem no ensino a
municação. A utilização excessiva da imagem, distância da Universidade Aberta de Portugal,
como síntese da mensagem e sua banalização ainda enfatizando seu papel como auxiliar dos
enquanto discurso, têm direcionado as discus- textos e da auto-aprendizagem:
sões para uma suposta substituição das lingua- Continuando o livro-texto a ser o suporte princi-
gens orais e escritas pelas imagéticas, colocan- pal da matéria a estudar, esta é igualmente obje-
do estas tecnologias como pólos opostos no pro- to de materiais em discursos na forma de áudio e
cesso comunicacional e na linguagem humana. vídeo, bem como em suporte informático, desem-
Ao passo que a digitalização, um dos processos penhando todos eles o papel de ilustração, re-
mais marcantes da informática, e a conseqüen- forço e motivação dos conteúdos escritos. (1998,
p.160)
te possibilidade de manipulação dos dados, tra-
zem uma carga de desconfiança crucial para Em meio a esta sociedade midiática, a es-
as imagens, cujo reconhecimento, enquanto do- cola não pode se ausentar desse debate, pondo
cumento ou discurso válido sobre a realidade, a imagem sob suspeita incondicionalmente ou
ainda é muito recente. E a escola, que relação colocando-a apenas como auxiliar do texto es-
tem com a imagem? Como estes discursos es- crito, descartando-a assim como adjuvante da
tão sendo incorporados aos processos educacio- construção de conhecimento. Avaliar a imagem
nais? O que caracteriza a imagem digital? Re- em sua verdadeira dimensão significa, também,
tomarei algumas questões significativas. descortinar qualquer suposta transparência de
O desenvolvimento das tecnologias digitais uma sociedade cada vez mais representada e
possibilitou a criação de imagens a partir de rememorada a partir dos discursos imagéticos,
conceitos matemáticos complexos, como as significa buscar entender a produção da mes-
equações não-lineares de Mandelbrot que de- ma e a sua intencionalidade. Algo que só será
ram origem à geometria fractal. As imagens vislumbrado, quando a imagem for utilizada
infográficas trazem uma nova forma de repre- como tecnologia do pensamento. Mas como
sentação do real, revelando aspectos além do imaginar essa dimensão da imagem numa es-
visível e influenciando a nossa percepção da cola onde nem mesmo as tecnologias mais con-
realidade, surgindo “novas paisagens e os no- solidadas, como a escrita e a oralidade, são es-
vos signos” (PLAZA e TAVARES, 1998, p. 35). timuladas como forma de expressão do edu-
Os programas computacionais de simulação, cando? Estamos de volta ao começo.
por exemplo, permitem explorar ambientes ina-
cessíveis ao ser humano (interior de um vulcão
em chamas) sem os riscos reais, apresentando Os professores e as TIC: análise dos
artificialmente uma situação real, com uso de relatos e produções
meios gráficos e interativos (LIGUORI, 1997).
Em meio a todas as discussões sobre o pa- A experiência analisada desenvolveu-se em
pel e significado da imagem no mundo atual, a um NTE da cidade do Salvador, onde a forma-
escola ainda tem sua comunicação pautada nas ção em Tecnologia Educacional acontece, ini-
linguagens oral e escrita, estas muitas vezes cialmente, num curso de 40 horas, seguido da
sub-dimensionadas nas práticas pedagógicas, formação continuada em encontros semanais
onde a imagem aparece timidamente como au- (3 horas) ao longo do ano letivo. A observação
xiliar das outras linguagens. Nova (2003, p. 191) (participante) e a coleta de dados foram reali-
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zadas durante a formação de 40 horas, ofereci- Internet, participação em chats, lista de discus-
da pelo NTE citado. Na análise dos dados, den- são, criação de apresentações no Power Point
tro de uma perspectiva etnográfica, o “pesqui- e Front Page, criações de textos no Word),
sador não fica fora da realidade que estuda, à muitos professores ainda apresentavam dificul-
margem dela, dos fenômenos aos quais procu- dade com os comandos básicos do ambiente
ra captar seus significados e compreender” Windows como copiar, colar, salvar, criar pas-
(TRIVIÑOS, 1987, p.121) e por isso este estu- tas. Nos questionários abertos, de 12 professo-
do constitui-se em uma interpretação, entre res, 07 declararam possuírem computador em
muitas possíveis, dos dados analisados, salien- casa utilizado essencialmente para digitação de
tando que os limites da subjetividade desse tipo textos, como uma máquina de escrever mais
de pesquisa não invalida a pertinência das in- sofisticada: “utilizo muito o Word para fazer tra-
terpretações. Optei por não identificar os pro- balhos, mas não tenho muita habilidade no uso
fessores, por isso utilizarei denominações ge- da Internet” (prof. B) ou “fiz alguns trabalhos
néricas como professor A, B, C... no computador, utilizando o Word e visitando
As atitudes de resistência dos professores alguns sites” (prof. L). Alguns professores in-
para o uso das TIC em educação têm origens dicaram a sub-utilização do computador, quan-
ambíguas. Algumas vezes não estão necessaria- do questionados sobre a relação/interação com
mente associadas à falta de conhecimento téc- ele: “(...) na profissão eu exerço, embora, sem
nico ou domínio dos aplicativos, mas à falta de noção geral do processo, tenha sub-utilizado o
interesse em repensar sua prática pedagógica recurso até hoje” (prof. C), ou ainda, “tenho
diante dos desafios contemporâneos. Hernández pouca relação com esse recurso tecnológico.
(2002) sinaliza alguns entraves para o aprendi- Mas tenho vontade de interagir mais, retirando
zado significativo de professores, entre os quais: alguns bloqueios” (prof. G) o que nos dá indícios
a concepção essencialmente prática do fazer de uma mudança de perspectiva dos professo-
pedagógico, busca pela funcionalidade estreita res, após o curso, sobre a utilização mais
do conhecimento, generalização das práticas abrangente do computador enquanto usuários.
pedagógicas, desinteresse por entender os me- Os outros professores, que não tinham acesso
canismos e processos de aprendizagem das a tal recurso em casa, apresentaram maiores
crianças e adolescentes, a conseqüente dicoto- dificuldades de interação com o computador
mia entre teoria e prática que gera uma falta de durante as atividades, dentro dos aplicativos
definição quanto à base epistemológica que os indicados e na navegação na Internet, reconhe-
orienta no campo da educação ou na sua área cendo a pouca intimidade com estes suportes
específica de conhecimento. Isto fica muito digitais.
evidente em relação à utilização (ou não) da Ao mesmo tempo, houve uma ressignifi-
imagem audiovisual ou estática. cação do conceito de tecnologia pelos profes-
Mas há também a falta de intimidade com sores, visto, anteriormente, como “tudo que fosse
as tecnologias digitais, essencialmente com os moderno” (prof. B), ou “via a tecnologia como
recursos da telemática que acabam contribuin- uso do computador somente” (prof. L) ou como
do para o receio dos professores quanto a seu apenas “os aparelhos eletrônicos” (prof. D).
uso em educação, ou ainda, restringindo-as ape- Mesmo sem estabelecer uma relação mais com-
nas ao uso pessoal. Mesmo quando há algum plexa entre as tecnologias inteligentes e os pro-
entendimento sobre a informática educativa, sua cessos de aprendizagem piagetianos ou
utilização ainda se centra nos procedimentos, e vygotskianos, as respostas dos professores já
não na incorporação da tecnologia, como ele- indicam alguma relação da aprendizagem com
mentos adjuvantes da produção de sentidos algo além do ensino de técnicas: “(...) para mim
pelos educandos (ALVES, 2001). são recursos que existem para facilitar a apren-
Durante o desenvolvimento das atividades dizagem, o conhecimento e a compreensão do
mediadas pelos computadores (navegação na mundo” (prof. B), “(...) todos os conteúdos tor-
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REFERÊNCIAS
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Recebido em 01.10.03
Aprovado em 19.11.03
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