Você está na página 1de 9

Maria Sigmar Coutinho Passos

NAVEGAR É IMPRECISO:
considerações sobre a formação de professores e as TIC

Maria Sigmar Coutinho Passos *

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir os conceitos de tecnologia (em especial


a telemática) e de imagem que perpassam a formação de professores
para o uso pedagógico das tecnologias intelectuais, e como estes con-
ceitos são entendidos pelos professores ao longo deste processo. Em
relação ao contexto da escola pública, as políticas governamentais de
formação de professores em tecnologia educacional são geridas pelo
Programa de Informática na Educação (ProInfo) em parceria com os
Núcleos de Tecnologia Educacional (NTE), sendo a experiência aqui
analisada desenvolvida nestes últimos espaços. Percebe-se, ao longo
deste processo, que o conceito de tecnologia ainda aparece atrelado a
uma concepção tecnicista (instrumental), seja nos projetos de tecnologia
educacional, seja na concepção docente. Ao mesmo tempo, não há
reflexão sobre os discursos imagéticos, sendo a imagem incorporada
apenas, enquanto ilustração dos textos escritos. Assim, as discussões
visam enfatizar a necessidade de investimento na formação inicial e
continuada, criando espaços para reflexão crítica sobre o potencial e as
especificidades da incorporação das diversas tecnologias intelectuais
nos processos educacionais.
Palavras-chave: Formação de professores – Tecnologia – Telemática
– Imagem

ABSTRACT

SAILING IS IMPRECISE: considerations on teacher education


and the TIC
The objective of this paper is to discuss the concepts of technology
(specially telematics) and of image that go along with teacher education
for the pedagogical use of intellectual technologies, and the manner
through which these concepts are understood by teachers throughout
this process. Regarding the public school context, the governmental

*
Professora da rede pública estadual, multiplicadora do NTE17- Salvador. Licenciada em História, especia-
lista em Potenciais da Imagem (UFBA) e em Telemática na Educação (UFRPE/Proinfo). Mestranda do programa
de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade, no Departamento de Educação I, Universidade do
Estado da Bahia – UNEB. Endereço para correspondência: Rua Teodomiro de Queiroz, 04, 1° andar, Macaúbas
– 40300-520 Salvador/BA. E-mail: sigmapassos@hotmail.com.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003 343
Navegar é impreciso: considerações sobre a formação de professores e as TIC

politics for teacher education in educational technology are managed by


the Program of Computing in Education (ProInfo) in partnership with
the Educational Technology Nuclei (NTE), being the experience analyzed
herein developed in these last spaces. It is perceived, throughout this
process, that the concept of technology still seems linked to a technicist
conception (instrumental), in the projects of educational technology and
in the teacher conception. At the same time there is no reflection on the
imagistic discourses, being the image incorporated only, as illustration of
the written texts. Therefore, discussions aim at emphasizing the need of
investment in the initial and continued education, creating room for critical
reflection on the potential and specificities of the incorporation of the
diverse intellectual technologies in educative processes.
Key words: Teacher education – Technology – Telematics – Image

Parafraseando Fernando Pessoa que resgata mação docente, telemática2, imagem e apren-
o pensamento de navegadores antigos em seu dizagem, analisando, em seguida, uma experi-
poema1, trago o sentido da imprecisão que mar- ência de formação de professores da rede
ca o hipertexto com suas ligações e nós cons- pública, realizada por um Núcleo de Tecnologia
tantemente refeitos na dinâmica das relações Educacional (NTE) em Salvador.
de troca de saberes, marcados por percursos
não-lineares e por conhecimentos não hierár-
quicos, em negociação constante com os sujei- A formação docente para o uso
tos. Neste sentido navegar é uma busca com- das TIC
plexa e imprecisa.
As contribuições deste estudo voltam-se Um dos maiores desafios na introdução das
para o campo da formação de professores para diversas Tecnologias da Informação e Comu-
o uso das tecnologias intelectuais (telemática e nicação (TIC) nos processos educacionais tem
imagem) no ambiente escolar, propondo refle- sido a formação de professores. O Programa
xões que embasem mudanças na perspectiva Nacional de Informática na Educação (ProInfo),
da formação docente no nível institucional e das criado em 1996 pelo Ministério da Educação e
políticas governamentais. Ao mesmo tempo, Cultura (MEC), propunha a universalização do
entende-se que a concretização dos projetos de uso das tecnologias digitais na rede pública bra-
tecnologia educacional depende do envolvimen- sileira, apontando a formação de professores
to e participação ativa dos professores, o que para utilização pedagógica dos computadores
acreditamos que as discussões deste estudo como uma das etapas essenciais da implanta-
subsidiariam ao menos uma reflexão crítica so-
bre a prática pedagógica dos professores em 1
Refiro-me ao trecho “Navegadores antigos tinham uma
questão. Desta forma, “toda pesquisa tem uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso; viver não é preciso’.
intencionalidade, que é a de elaborar conheci- Quero para mim o espírito [d]esta frase transformada a
mentos que possibilitem compreender e trans- forma para a casar com o que eu sou: viver não é necessá-
rio; o que é necessário é criar.” Disponível em http://
formar a realidade” (PÁDUA, 2000, p.32). Tal
www.insite.com.br/art/pessoa/intro.html. Acessado em
esforço perderia o sentido se fosse limitado à 20/11/2002.
sugestão de procedimentos, esvaziando de sig- 2
O termo Telemática é utilizado neste artigo enquanto
nificados a participação ativa de todos os sujei- associação dos recursos das telecomunicações e da
tos envolvidos no cotidiano escolar, contexto em Informática , conforme denominação utilizada no curso
que esse encontro entre tecnologia e educação de especialização em Telemática na Educação (ProInfo/
acontece. Parti da discussão das categorias for- UFRPE) e explicitada por Liguori (1997).

344 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003
Maria Sigmar Coutinho Passos

ção do programa, a ser realizada através dos na melhoria das condições de trabalho, buscan-
Núcleos de Tecnologia Educacional (NTE) do dignificar a profissão. As preocupações es-
estaduais e municipais; a metodologia seria sencialmente práticas e a busca por índices pelas
formar multiplicadores que atuassem nestes secretarias estaduais, municipais e Ministério
núcleos e nas escolas. Vale salientar que a da Educação e Cultura (MEC) acabam trans-
formação dos professores foi alvo das oito prin- formando a atividade docente em aplicação de
cipais políticas educacionais do governo anterior, procedimentos, reduzindo o espaço para refle-
mas é consenso entre autores como Pretto xão. Portanto, os programas de formação para
(2001), Barreto (2001), Toschi (2001) que a prin- utilização dos recursos tecnológicos esvaziam-
cipal característica destas propostas é a se de significados para os docentes, quando
formação ou capacitação em serviço, sem a pre- perdem a dimensão política e centram-se ape-
visão em investimentos na formação inicial na nas na instrumentalização dos professores, ne-
graduação, o que coincide com o discurso de gligenciando as condições materiais de trabalho.
organismos financeiros internacionais como Analisar a formação docente para utiliza-
Banco Mundial e BIRD. A formação docente ção das TIC requer também o redimensiona-
em tecnologia na educação não diferiu, até mento do papel do professor numa sociedade
então, deste quadro. Embora o Programa Na- onde a comunicação está cada vez mais media-
cional de Informática na Educação (ProInfo) da por essas tecnologias, sendo a digitalização3
aponte a formação de recursos humanos e a e a interatividade4 algumas marcas desse pro-
valorização dos docentes como ponto fundamen- cesso. E que modelo educacional prevalece na
tal do programa, o que se verifica é um entrave escola? Para Silva (2001, p.76) tanto a sala de
à incorporação das Tecnologias da Informação aula, quanto a escola e todo sistema educacio-
e Comunicação (TIC) em educação ainda de- nal ainda se baseiam na distribuição em massa;
corrente da formação inadequada ou inexistente “trata-se, portanto de repensar o sistema em
em tecnologia educacional, durante e após a geral petrificado em uma concepção de ensino
graduação. que se assemelha à fábrica em sua lógica”.
Outro adversário a qualquer proposta de Dentro desta lógica, há uma profunda separa-
formação de professores da escola pública é a ção entre emissão e recepção, não havendo
política de recursos humanos dos órgãos cen- espaço para relações dialógicas. A introdução
trais, voltada ainda para o controle excessivo das TIC no ambiente escolar trouxe um novo
dos dados formais (pontualidade, assiduidade, desafio para o modelo de escola vigente, ainda
índices de aprovação, evasão) em detrimento marcado pela ênfase na instrução; neste mo-
de indicadores qualitativos como envolvimento delo todas as tecnologias intelectuais (oralidade,
nas atividades, satisfação com o trabalho, qua- leitura/escrita, audiovisual e informática) são
lidade de vida dos profissionais, produção inte- utilizadas na emissão/recepção de informações,
lectual, entre outros. Isto sinaliza uma relação num modelo comunicacional baseado no mo-
trabalhista arcaica, ainda marcada pela troca nólogo falar/ditar.
da força de trabalho (quantificada pela carga
horária) por um salário fixo, calculado apenas
pela formação acadêmica e tempo de serviço.
3
Aqui a imagem de Chaplin apertando engrena- Pierre Lèvy, no livro Tecnologias da Inteligência, define
a digitalização, codificação em bits de imagens, textos,
gens no filme Tempos Modernos é uma metá-
sons e outros elementos, como característica central das
fora significativa do que se resume a tarefa tecnologias digitais (p. 102)
docente numa escola que é “fábrica” também 4
Sobre o conceito de interatividade, ver Marcos Silva, em
nas suas relações de trabalho. Qualquer mu- Sala de Aula Interativa, onde o autor busca caracterizar e
dança passa por uma política de valorização do definir o conceito, criticando a utilização inadequada do
corpo docente, não apenas no item salarial, mas mesmo como recurso de venda (cap. 2)

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003 345
Navegar é impreciso: considerações sobre a formação de professores e as TIC

Telemática, imagem e não possibilitam a construção de conceitos. Para


aprendizagem este autor as tecnologias devem aliciar o pen-
samento reflexivo, conversacional, contextual,
Faz-se necessário definir que utilizarei o complexo, intencional, colaborativo, construti-
conceito de tecnologias da inteligência de Lèvy vo e ativo, o que não é contemplado quando as
(1993) por conceber que a interação com as tecnologias são abordadas apenas na dimensão
diversas tecnologias podem promover modifica- instrumental.
ções cognitivas no sujeito e potencializar a Por não estar explícita a fundamentação te-
formação de novas ecologias que incorporam órica da proposta do ProInfo, parece ter sido
outras tecnologias já consolidadas como a deixada a cargo dos Estados e Municípios a
escrita e a oralidade. base pedagógica dos projetos de utilização das
Entendo que a telemática, enquanto tecno- TIC nas escolas, dando margem a que diferen-
logia da inteligência no ambiente educacional, tes concepções de ensino-aprendizagem este-
só é completamente entendida numa perspectiva jam incluídas, como o ensino de informática ou
sócio-construtivista, que coloque alunos e pro- a utilização de softwares fechados6, já critica-
fessores como sujeito de suas aprendizagens. dos por diversos autores7, por limitar o proces-
Entretanto, as bases pedagógicas da utilização so de trocas significativas e as possibilidades
destas TIC, em educação estão baseadas, de construção coletiva do conhecimento social.
essencialmente, em duas correntes pedagógicas Aponto para a necessidade de que a utilização
distintas: o behaviorismo e o sócio-constru- dos computadores, TV e vídeo esteja pautada
tivismo. em propostas que contemplem a dimensão
Numa perspectiva behaviorista, vemos a construtivista do processo de aprendizagem,
utilização dos computadores em rede como buscando nos teóricos psicogenéticos Piaget,
máquinas para transmissão de informações mais Vygotsky e Walon as bases para constituição
atraentes que o professor, cuja prática é centra- de uma relação dialógica com as tecnologias e
da na transmissão. A questão não é tão simples o redimensionamento da prática pedagógica,
quanto parece e, muitas vezes, esta posição teó- “práticas pedagógicas em que a informática, a
rica não é assumida nos projetos ou programas escrita e a oralidade sejam consideradas, em
de utilização de computadores em educação sua complexidade, como tecnologias do pensa-
que, geralmente, assumem uma roupagem mento, adjuvante das produções dos alunos”
construtivista. Muitos softwares educativos5, (ALVES, 2001, p.27). Há ainda muitas lacunas
por exemplo, têm um caráter instrucionista em no que se refere à influência das tecnologias
que um determinado conteúdo deve ser ensina- digitais na aprendizagem discente, essencial-
do ao aluno, que explora possibilidades previa- mente no tocante ao desenvolvimento cognitivo
mente definidas por quem elaborou o progra- mediado por estes suportes. Ramal (2000) su-
ma, estimulado pelos recursos audiovisuais. A gere a revisão dos referenciais teóricos sobre
interação torna-se mecânica e repetitiva, quan- aprendizagem e alfabetização (baseados em
do se esgotam as possibilidades previstas e o autores como Piaget, Vygotsky e Ferreiro) di-
conhecimento é concebido como algo acabado
após a exploração (ALVES, 1998). Na mesma
perspectiva, vemos o ensino de informática na 5
Refiro-me aos softwares na modalidade tutorial e na
escola como uma disciplina do currículo, onde modalidade de exercício ou prática, dentro da classifica-
o aluno será instrumentalizado para operar o ção proposta por Liguori (1997).
computador, muitas vezes, apenas memorizan- 6
Softwares fechados são aqueles softwares educativos
do procedimentos numa seqüência lógica (para que não possibilitam a autoria, colaboração e interativi-
o computador), sem constituir uma aprendiza- dade, baseados em sistemas de perguntas e respostas,
gem significativa, como propõe Jonassem (1996), onde as possibilidades de navegação são limitadas.
pois os procedimentos não adquirem sentido e 7
Alves (1998), Jonassen (1996) e Liguori (1997)

346 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003
Maria Sigmar Coutinho Passos

ante das novas formas de construção do saber salienta que “a maioria dos professores desco-
e das tecnologias atuais. nhecem as noções básicas das linguagens
Outro aspecto relevante diz respeito à utili- audiovisuais”, o que dificulta uma relação para
zação da imagem nos processos educacionais. além de espectador. Tal perspectiva contribui
Ainda há uma deficiência neste âmbito durante para descaracterizar a imagem enquanto tecno-
a formação docente, mesmo com predominân- logia do pensamento. Rocha-Trindade, por sua
cia dos discursos imagéticos nos meios de co- vez, aborda a utilização da imagem no ensino a
municação. A utilização excessiva da imagem, distância da Universidade Aberta de Portugal,
como síntese da mensagem e sua banalização ainda enfatizando seu papel como auxiliar dos
enquanto discurso, têm direcionado as discus- textos e da auto-aprendizagem:
sões para uma suposta substituição das lingua- Continuando o livro-texto a ser o suporte princi-
gens orais e escritas pelas imagéticas, colocan- pal da matéria a estudar, esta é igualmente obje-
do estas tecnologias como pólos opostos no pro- to de materiais em discursos na forma de áudio e
cesso comunicacional e na linguagem humana. vídeo, bem como em suporte informático, desem-
Ao passo que a digitalização, um dos processos penhando todos eles o papel de ilustração, re-
mais marcantes da informática, e a conseqüen- forço e motivação dos conteúdos escritos. (1998,
p.160)
te possibilidade de manipulação dos dados, tra-
zem uma carga de desconfiança crucial para Em meio a esta sociedade midiática, a es-
as imagens, cujo reconhecimento, enquanto do- cola não pode se ausentar desse debate, pondo
cumento ou discurso válido sobre a realidade, a imagem sob suspeita incondicionalmente ou
ainda é muito recente. E a escola, que relação colocando-a apenas como auxiliar do texto es-
tem com a imagem? Como estes discursos es- crito, descartando-a assim como adjuvante da
tão sendo incorporados aos processos educacio- construção de conhecimento. Avaliar a imagem
nais? O que caracteriza a imagem digital? Re- em sua verdadeira dimensão significa, também,
tomarei algumas questões significativas. descortinar qualquer suposta transparência de
O desenvolvimento das tecnologias digitais uma sociedade cada vez mais representada e
possibilitou a criação de imagens a partir de rememorada a partir dos discursos imagéticos,
conceitos matemáticos complexos, como as significa buscar entender a produção da mes-
equações não-lineares de Mandelbrot que de- ma e a sua intencionalidade. Algo que só será
ram origem à geometria fractal. As imagens vislumbrado, quando a imagem for utilizada
infográficas trazem uma nova forma de repre- como tecnologia do pensamento. Mas como
sentação do real, revelando aspectos além do imaginar essa dimensão da imagem numa es-
visível e influenciando a nossa percepção da cola onde nem mesmo as tecnologias mais con-
realidade, surgindo “novas paisagens e os no- solidadas, como a escrita e a oralidade, são es-
vos signos” (PLAZA e TAVARES, 1998, p. 35). timuladas como forma de expressão do edu-
Os programas computacionais de simulação, cando? Estamos de volta ao começo.
por exemplo, permitem explorar ambientes ina-
cessíveis ao ser humano (interior de um vulcão
em chamas) sem os riscos reais, apresentando Os professores e as TIC: análise dos
artificialmente uma situação real, com uso de relatos e produções
meios gráficos e interativos (LIGUORI, 1997).
Em meio a todas as discussões sobre o pa- A experiência analisada desenvolveu-se em
pel e significado da imagem no mundo atual, a um NTE da cidade do Salvador, onde a forma-
escola ainda tem sua comunicação pautada nas ção em Tecnologia Educacional acontece, ini-
linguagens oral e escrita, estas muitas vezes cialmente, num curso de 40 horas, seguido da
sub-dimensionadas nas práticas pedagógicas, formação continuada em encontros semanais
onde a imagem aparece timidamente como au- (3 horas) ao longo do ano letivo. A observação
xiliar das outras linguagens. Nova (2003, p. 191) (participante) e a coleta de dados foram reali-

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003 347
Navegar é impreciso: considerações sobre a formação de professores e as TIC

zadas durante a formação de 40 horas, ofereci- Internet, participação em chats, lista de discus-
da pelo NTE citado. Na análise dos dados, den- são, criação de apresentações no Power Point
tro de uma perspectiva etnográfica, o “pesqui- e Front Page, criações de textos no Word),
sador não fica fora da realidade que estuda, à muitos professores ainda apresentavam dificul-
margem dela, dos fenômenos aos quais procu- dade com os comandos básicos do ambiente
ra captar seus significados e compreender” Windows como copiar, colar, salvar, criar pas-
(TRIVIÑOS, 1987, p.121) e por isso este estu- tas. Nos questionários abertos, de 12 professo-
do constitui-se em uma interpretação, entre res, 07 declararam possuírem computador em
muitas possíveis, dos dados analisados, salien- casa utilizado essencialmente para digitação de
tando que os limites da subjetividade desse tipo textos, como uma máquina de escrever mais
de pesquisa não invalida a pertinência das in- sofisticada: “utilizo muito o Word para fazer tra-
terpretações. Optei por não identificar os pro- balhos, mas não tenho muita habilidade no uso
fessores, por isso utilizarei denominações ge- da Internet” (prof. B) ou “fiz alguns trabalhos
néricas como professor A, B, C... no computador, utilizando o Word e visitando
As atitudes de resistência dos professores alguns sites” (prof. L). Alguns professores in-
para o uso das TIC em educação têm origens dicaram a sub-utilização do computador, quan-
ambíguas. Algumas vezes não estão necessaria- do questionados sobre a relação/interação com
mente associadas à falta de conhecimento téc- ele: “(...) na profissão eu exerço, embora, sem
nico ou domínio dos aplicativos, mas à falta de noção geral do processo, tenha sub-utilizado o
interesse em repensar sua prática pedagógica recurso até hoje” (prof. C), ou ainda, “tenho
diante dos desafios contemporâneos. Hernández pouca relação com esse recurso tecnológico.
(2002) sinaliza alguns entraves para o aprendi- Mas tenho vontade de interagir mais, retirando
zado significativo de professores, entre os quais: alguns bloqueios” (prof. G) o que nos dá indícios
a concepção essencialmente prática do fazer de uma mudança de perspectiva dos professo-
pedagógico, busca pela funcionalidade estreita res, após o curso, sobre a utilização mais
do conhecimento, generalização das práticas abrangente do computador enquanto usuários.
pedagógicas, desinteresse por entender os me- Os outros professores, que não tinham acesso
canismos e processos de aprendizagem das a tal recurso em casa, apresentaram maiores
crianças e adolescentes, a conseqüente dicoto- dificuldades de interação com o computador
mia entre teoria e prática que gera uma falta de durante as atividades, dentro dos aplicativos
definição quanto à base epistemológica que os indicados e na navegação na Internet, reconhe-
orienta no campo da educação ou na sua área cendo a pouca intimidade com estes suportes
específica de conhecimento. Isto fica muito digitais.
evidente em relação à utilização (ou não) da Ao mesmo tempo, houve uma ressignifi-
imagem audiovisual ou estática. cação do conceito de tecnologia pelos profes-
Mas há também a falta de intimidade com sores, visto, anteriormente, como “tudo que fosse
as tecnologias digitais, essencialmente com os moderno” (prof. B), ou “via a tecnologia como
recursos da telemática que acabam contribuin- uso do computador somente” (prof. L) ou como
do para o receio dos professores quanto a seu apenas “os aparelhos eletrônicos” (prof. D).
uso em educação, ou ainda, restringindo-as ape- Mesmo sem estabelecer uma relação mais com-
nas ao uso pessoal. Mesmo quando há algum plexa entre as tecnologias inteligentes e os pro-
entendimento sobre a informática educativa, sua cessos de aprendizagem piagetianos ou
utilização ainda se centra nos procedimentos, e vygotskianos, as respostas dos professores já
não na incorporação da tecnologia, como ele- indicam alguma relação da aprendizagem com
mentos adjuvantes da produção de sentidos algo além do ensino de técnicas: “(...) para mim
pelos educandos (ALVES, 2001). são recursos que existem para facilitar a apren-
Durante o desenvolvimento das atividades dizagem, o conhecimento e a compreensão do
mediadas pelos computadores (navegação na mundo” (prof. B), “(...) todos os conteúdos tor-

348 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003
Maria Sigmar Coutinho Passos

nam-se mais dinâmicos quando utilizamos a atividades de formação de professores e outro


tecnologia” (prof. A), “(...) conheci uma nova através do Projeto Telecurso 2000, cuja meto-
maneira de aprender e ensinar” (prof. G), “(...) dologia é centrada na utilização de vídeos. Esses
como o aluno pode crescer tendo acesso à dados revelam que a utilização do áudio-visual
tecnologia, é o material que se pode utilizar para ainda acontece de forma pontual, por determi-
fazer crescer o entendimento e desenvolver o nação de algum programa específico (como o
intelecto” (prof. J). Tais respostas, ainda que um Telecurso 2000) ou por iniciativa pessoal de
pouco simplistas, sobre as concepções de apren- poucos professores, estando a escola alheia à
dizagem, revelam um avanço em relação à posi- consolidação de uma cultura cada vez mais
ção anterior que via a tecnologia apenas em seu imagética.
aspecto instrumental e o professor no laborató- A incorporação da imagem nas produções
rio como transmissor de procedimentos. digitais também revela a dimensão destas para
Analisar as produções imagéticas dos pro- os professores. Foi proposta a construção de
fessores requer habilidade para estabelecer as uma aula virtual, utilizando um editor de pági-
relações pertinentes entre esses dados e ou- nas html8, onde cada professor optou por te-
tros, resultantes da observação participante nas mas dentro de suas respectivas disciplinas ou
situações. Aqui denominamos como produções modalidades de ensino, visando a visitação com
imagéticas o conjunto das imagens utilizadas seus alunos. Nestas produções, as imagens apa-
pelos professores em suas produções digitais recem apenas como ilustração dos textos
mediadas pelos computadores. Vale também escritos, sendo muitas digitalizadas de livros
apontar que me refiro às imagens externas e didáticos, não se constituindo como expressão
artificiais, dentro da distinção proposta por Nova do pensamento ou discurso independente.
(2003), enquanto imagens produzidas pelos se- Paralelamente à submissão da imagem à pa-
res humanos e captadas pela visão. Também lavra escrita, as produções digitais reproduziam
pretendo resgatar as falas dos professores so- a lógica dos livros, numa seqüência linear página
bre a utilização do vídeo e a relação que eles após página, onde o educando segue a seqüên-
estabelecem entre educação e imagens. cia de exploração imposta pelo autor da aula. A
Ao mesmo tempo em que reconhecem que introdução de índices e links para sites externos
a imagem possibilita uma melhor aprendizagem abrem possibilidades de maior interatividade, sen-
do aluno, quando questionados sobre a utiliza- do o aluno já responsável pela escolha dos cami-
ção da TV e do vídeo em casa e nas aulas, a nhos a percorrer a partir de suas necessidades e
maioria dos professores admite o uso domésti- desejo dentro do tema da aula virtual.
co sem, no entanto, incorporá-lo sistematica- O aspecto visual não se restringe à utiliza-
mente à prática pedagógica: “em casa progra- ção de imagens, mas toda concepção gráfica
mas diversos. Na sala não os uso” (prof. A) , destas aulas é igualmente importante para es-
“só em casa” (prof. E), “(...) em aulas uso mais tabelecer uma comunicação virtual com o alu-
som, TV às vezes” (prof. N), “sim. Às vezes, no. Chamo de concepção gráfica elementos
sem uma freqüência regular, e nas atividades como tamanho e cor da fonte, localização do
com professores também” (prof. J). Não po- texto em relação às imagens, equilíbrio entre
dem ser descartados os problemas estruturais espaços vazios e preenchidos, coerência entre
e administrativos que impedem a sua utilização: as cores utilizadas. Percebem-se estes elemen-
“em casa sim. Mas na escola sempre há im- tos, pormenorizados nas produções aqui anali-
previstos por que esses aparelhos ficam guar- sadas, demonstrando que a preocupação dos
dados” (prof. F) ou “(...) na escola o vídeo che- professores está voltada, essencialmente, para
gou agora” (prof. O). Avaliando quantitati-
vamente, dentre os quinze professores, apenas 8
Foi utilizado o aplicativo Front Page da Microsoft e as
quatro declararam utilizar sistematicamente o páginas foram criadas dentro das limitações de usuários
vídeo em sala de aula, sendo que um o faz em que desconhecem qualquer linguagem de programação.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003 349
Navegar é impreciso: considerações sobre a formação de professores e as TIC

a informação a ser transmitida e menos para professor, enquanto intelectual e produtor de


uma mensagem visual a ser comunicada. conhecimento, entendendo-o como sujeito ati-
vo e reflexivo em relação a sua prática. Neste
sentido, ficou claro que esta formação não se
Algumas contribuições para a for- resumiu à instrução de procedimentos a serem
mação docente seguidos pelos professores e sim baseou-se na
reflexão sobre as TIC e as possibilidades de
A proposta de formação aqui analisada traz interação com o âmbito educacional.
alguns pontos significativos que poderão con- Percebi que, ao longo deste processo de for-
tribuir para a utilização mais construtivista das mação, o conceito de tecnologia que estava atre-
TIC em educação. Apostar na formação conti- lado a uma concepção tecnicista (ênfase no
nuada, com encontros semanais que envolvam caráter instrumental) condicionava a incorpo-
discussão teórica, interação com as tecnologias ração de algumas tecnologias, como a telemáti-
digitais e socialização de experiências, talvez ca, ao domínio técnico dos docentes. Ao mes-
seja um caminho possível, entre tantos fantasio- mo tempo, os discursos imagéticos são empo-
sos, que permite repensar a incorporação das brecidos nos processos educacionais, não ha-
TIC nas escolas. Da mesma forma, ainda é utó- vendo reflexões críticas sobre esta linguagem,
pico imaginar que os professores de diversas sendo a mesma incorporada apenas enquanto
disciplinas incorporarão o uso das tecnologias ilustração dos textos escritos. Assim, as discus-
em suas práticas, sem o acompanhamento diá- sões aqui visam enfatizar a necessidade de
rio que, nos projetos aqui analisados, é realiza- investimento na formação inicial e continuada
do pelos professores de tecnologia. do professor, criando espaços para reflexão crí-
A utilização das tecnologias, numa perspec- tica sobre o potencial e as especificidades da
tiva sócio-interacionista, dentro da escola pú- incorporação das diversas tecnologias intelec-
blica, pressupõe que os projetos/programas, im- tuais nos processos educacionais.
plantados pelas secretarias estejam ancorados Ainda é necessário reafirmar que as TIC
nestas concepções pedagógicas, entendendo as em si não trarão mudanças significativas para
diversas tecnologias como mediadoras do pro- a educação pública, caso a incorporação das
cesso de construção do conhecimento e não mesmas não esteja atrelada a políticas de valo-
apenas no aspecto instrumental. Esta aborda- rização dos professores e de melhoria das con-
gem epistemológica e pedagógica das TIC é dições materiais de desenvolvimento do traba-
essencial no processo de formação docente e lho pedagógico. As diversas utilizações das TIC
esteve presente na experiência aqui analisada. dependerão, portanto, da dinâmica social do
Igualmente importante é a valorização do contexto em que estão inseridas.

REFERÊNCIAS

ALVES, Evandro. Escrita digital e educação de jovens e adultos: produzindo sentidos num encontro
inusitado. Porto Alegre: PPGEDU/FACED/UFRGS, 2001. Mimeografado.
ALVES, Lynn. Novas tecnologias: instrumento, ferramenta ou elementos estruturantes de um novo pensar?
Revista da FAEEBA , Salvador, v. 7 n. 10, p. 141-152, jul./dez., 1998.
BARRETO, Raquel. As políticas de formação de professores: novas tecnologias e educação a distância. In:
_____ (Org.). Tecnologias educacionais e educação a distância: avaliando políticas e práticas. Rio de
Janeiro, RJ: Quartet. 2001.
BRASIL/MEC/SEED. Programa Nacional de Informática na Educação. Brasília, DF: SEED/MEC, 1996.
_____ . _____ . Brasília, DF, SEED/MEC, 2002. Disponível em <http://www.proinfo.gov.br>. Acessado em
18 out. 2002.

350 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003
Maria Sigmar Coutinho Passos

HERNÁNDEZ, Fernando. A importância de saber como os docentes aprendem. Disponível em <http://


www.revistapatio.com.br/patio/patio.htm>. Acessado em 21 set. 2002.
JONASSEN, David. O uso das novas tecnologias na educação a distância e a aprendizagem construtiva.
Em aberto, Brasília, DF, v. 16, n. 70, abr./jun. 1996.
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro,
RJ: Ed. 34. 1993.
LIGUORI, Laura. As novas tecnologias da informação e da comunicação no campo dos velhos problemas
e desafios educacionais. In: LITWIN, Edith (Org.). Tecnologia educacional: política, histórias e propostas.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
NOVA, Cristiane. Imagem e educação: rastreando possibilidades. In: NOVA, Cristiane; ALVES, Lynn (Orgs).
Educação e tecnologia: trilhando caminhos. Salvador: Editora da UNEB, 2003.
PÁDUA, Elisabete M. M. de. Metodologia da pesquisa: abordagem teórico-prática. Campinas: Papirus,
2000.
PLAZA, Julio; TAVARES, Mônica. Processos criativos com meios eletrônicos: poéticas digitais. São
Paulo, SP: Hucitec, 1998.
PRETTO, Nelson. Desafios para a educação na era da informação: o presencial, a distância, as mesmas
políticas e o de sempre. In: BARRETO, Raquel (Org.). Tecnologias educacionais e educação a distância:
avaliando políticas e práticas. Rio de Janeiro, RJ: Quartet. 2001.
RAMAL, Andrea C. Ler e escrever na cultura digital. Revista Pátio, Porto Alegre, v. 4, n. 14, p.21-24, ago./
out., 2000.
ROCHA-TRINDADE. Imagens e aprendizagem na sociologia e na antropologia. In: FELDMAN-BIANCO,
B., LEITE, M. (Orgs.). Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências humanas. Campi-
nas: Papirus, 1998.
SILVA, Marco. Sala de aula interativa. Rio de Janeiro, RJ: Quartet. 2001.
TOSCHI, Mirza Seabra. TV Escola: o lugar dos professores na política de formação docente. In: BARRETO,
Raquel (Org.). Tecnologias educacionais e educação a distância: avaliando políticas e práticas. Rio de
Janeiro, RJ: Quartet. 2001.
TRIVIÑOS, Augusto. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São
Paulo, SP: Atlas, 1987.

Recebido em 01.10.03
Aprovado em 19.11.03

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 20, p. 343-351, jul./dez., 2003 351

Você também pode gostar