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11/10/2021 08:20 A proibição de perguntar

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A proibição de perguntar
Mendo Castro Henriques

Euronotícias, 17 de agosto de 2001

O Ministério da Educação anda a ser acusado por alcançar o que nem a Inquisição conseguiu:
proibir Camões. Mas o que se passa é muito mais grave. Andam, sim, a proibir a capacidade de
perguntar, a liberdade que só nasce quando aprendemos a pôr questões em conjunto com as grandes
vozes e textos da humanidade, neste caso, em português.

O que está à vista é assustador. No Programa de Língua Portuguesa para os 10º, 11º e 12º anos dos
Cursos Gerais e Tecnológicos, com 77 páginas, e que formará a mente de uns 90.000 adolescentes
por ano, a partir de Outubro de 2002, o primeiro autor referido vem na p.36, e é Camões; os
seguintes vêm na p.41: Vieira, Garrett e Eça; o último vem na p. 46, Pessoa, por suposto Fernando.
Depois, Camões e Pessoa na p.61. E não há mais nomes, nem autores, nada. Em 77 páginas, é obra.

O que se passa é que a revisão curricular nivela por baixo os antigos Português A e B num único
programa para cada ano do Secundário. Se os antigos programas do 10º ano tinham as líricas
medievais e renascentistas, o actual propõe textos: “informativos”, “publicitários”, “dos media”,
“de carácter autobiográfico”, “expressivos e criativos do séc XX” e “contos/novelas de autores do
séc. XX”. Está-se a ver a “Lírica” de Camões a par das “Sandálias de Prata”, do Herman José, e da
prosa de anúncios, requerimentos, declarações, e contratos. No 11º resistem Garrett, Vieira, e Eça
reduzido a um romance. No 12º ano, vem Camões aliado a Pessoa. E mais “textos “, informativos,
e dos media.

Perante este espectáculo, elementos do PSD denunciaram “um deplorável complexo de esquerda
retrógrada que tem vergonha do passado de Portugal”. No PP, fala-se numa “tentativa de demolição
nas gerações mais novas de factores preciosos da identidade portuguesa”. O presidente da CNAP
refere “Os Lusíadas” como “documento histórico e cultural importantíssimo”. Elementos da
esquerda aproveitaram para denunciar “os burocratas do ministério”; outros fizeram o elogio da
literatura pura e “da festa da língua” violentadas por este programa inqualificável. Poucos
lembraram como Teófilo começou a abalar a monarquia com o jubileu nacional de Camões, em
1880, em que “Os Lusíadas” “tornou-se para os portugueses o depósito dos germens da sua
liberdade”.

Pormenor decisivo: os mais de 120 títulos da bibliografia do novo programa não incluem um
estudo sequer sobre Camões, Garrett, Vieira, Eça ou Pessoa. Podia-se estar a falar de livros de
cozinha, de manuais de Gulag, de literatura oriental ou de quaisquer outros textos. É o deserto dos
conteúdos, recoberto da areia cinzenta das ciências ocultas da educação.

E por aqui se começa a perceber que o problema não é só “acabar com “Os Lusíadas” mas sim
acabar com a capacidade de pôr questões. Há já muitos anos que “Os Lusíadas” não são dados na
íntegra. Os alunos do secundário liam pouco mais de uma centena de entre as suas 1102 estrofes.
Mas agora na ânsia de satisfazer os jovens sem paciência para ler, e dar-lhes textos à altura deles,
esqueceu-se que a melhor aprendizagem da língua é a que resulta dos momentos literários
culminantes e não dos usos banais. E isso requer interpretações.

A “História da Literatura Portuguesa”, de António José Saraiva e Óscar Lopes, formou uma
geração inteira de professores de Português numa síntese instável de humanismo e marxismo. Sem
obras de referência, Os Lusíadas e outros clássicos são ininteligíveis para o leitor comum. O que se
reclama de cada época é que traga explicações inovadoras, conforme os paradigmas culturais, as
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ec a a de cada época é que t aga e p cações ovado as, co o e os pa ad g as cu tu a s, as
perspectivas de comunicação e a sensibilidade estética. Por isso existem enormes bibliografias
secundárias sobre a literatura portuguesa, e espectaculares meios audio-visuais e informáticos para
auxiliar o estudo.
O cinzentismo do actual programa ignora tudo isso em nome das fatídicas Ciências da Educação.
Está por fazer um balanço objectivo dos males que estas infligiram em trinta anos de Ministérios de
Educação iniciados pelo Professor Químico Veiga Simão. Mas vê-se pelos resultados, e com
horror, que o neo-positivismo dominante nas Ciências da Educação é um cancro da inteligência
portuguesa. Opera com esplendor catedrático no que se refere às formas didácticas e como
despachante de alfândega no que toca aos conteúdos. Aqui a responsabilidade é da Universidade
Portuguesa, mais depressa liquidada pela relativização dos conteúdos que pela falta de
vencimentos.

Já quanto à “política cultural”, a responsabilidade é do Governo, que desfaz de noite a rede tecida
durante o dia. De dia manda o Ministério dos Negócios Estrangeiros celebrar a lusofonia, o
Instituto Camões difundir a língua portuguesa, a Comissão para a Comemoração dos
Descobrimentos divulgar o encontro dos povos, o Ministério da Ciência e Tecnologia financiar
projectos de literatura de viagens, o Ministério da Cultura apoiar espectáculos camonianos. E pela
noite, na cabecinha alegadamente rasca dos alunos portugueses, manda o Ministério da Educação
apagar os vestígios da língua, do humanismo, e do universalismo do vate. Homero diz que
Penélope esperava pelo marido. O Governo desespera (d)os portugueses.

Por fim, verifica-se que não basta desfazer-nos da Santa Inquisição e da PIDE fisicamente
violentas, que proibiam as respostas. A Nova Inquisição educativa, mentalmente brutal, proíbe as
perguntas: apenas permitirá comunicar no nível rebaixado do novo ensino.

Manda o bom senso que em Portugal se ensine e aprenda Camões, Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá
de Miranda, António Ferreira, Fernão Mendes Pinto, Bocage, Camilo, Antero, Cesário, Vergílio
Ferreira, Torga, com igual entusiasmo com que os ingleses lêem Shakespeare, os espanhóis
Cervantes, e os italianos Dante. Só mesmo os textos das famigeradas Ciências da Educação é que
são idênticos em todas as línguas europeias.

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