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INCÊNDIO DE SARWANE

31. O HOMEM QUE TOCA

Um jovem no cimo de um prédio.


Sozinho. Walkman (modelo 1980) nos ouvidos.
De espingarda com mira telescópica à laia de guitarra, interpreta entusiasticamente os
primeiros acordes de The Logical Song dos Supertramp.

NIHAD (sublinhando com a guitarra e em seguida cantando com toda a gana)

Kankinkankan boudou
Kankinkankan boudou
Kankinkankan boudou
Kankinkankan boudou

Quando a canção começa, a espingarda passa do estatuto de guitarra ao de microfone. O


seu inglês é imperfeito. Canta a primeira estrofe.
Subitamente a sua atenção é atraída por qualquer coisa ao longe.
Põe a espingarda ao ombro, rapidamente, e visa tudo, continuando a cantar.
Dá um tiro e carrega rapidamente a espingarda.
Volta a disparar, mudando de posição. Dispara de novo, carrega a arma, imobiliza-se e volta
a disparar.
Muito rapidamente, Nihad pega numa máquina fotográfica. Aponta-o na mesma direcção,
enquadra e tira uma fotografia.
Retoma a canção.
Pára subitamente. Deita-se no chão, de barriga para baixo.
Pega na espingarda e faz pontaria ali perto.
Levanta-se de um salto e dispara um tiro. Corre até ao sitio para onde disparou. Deixou
para trás o walkman, que continua a tocar.
NIHAD está de pé, sempre no mesmo sítio. Regressa, arrastando pelos cabelos um homem
ferido. Lança-o ao chão.

O HOMEM Não! Não! Não quero morrer!

NIHAD «Não quero morrer!» «Não quero morrer!» É a frase mais imbecil que já ouvi!

O HOMEM Por favor, deixe-me ir embora! Não sou daqui. Sou fotógrafo.

NIHAD Fotógrafo?
O HOMEM Sim... de guerra... fotógrafo de guerra.

NIHAD E tiraste-me uma fotografia?

O HOMEM ... Sim... Queria fotografar um franco-atirador... Vi-o disparar... aproximei-me...


mas posso dar-lhe o rolo…

NIHAD Eu também sou fotógrafo. Chamo-me Nihad. Fotógrafo de guerra. Olha. Fui eu que
fotografei tudo isto.
NIHAD mostra-lhe uma série de fotografias.

O HOMEM Muito belo…

NIHAD Não. Não é belo. Quase sempre julga-se que são pessoas a dormir. Mas não. Estão
mortas. Fui eu que as matei! Juro.

O HOMEM Acredito.

Remexendo no saco do fotógrafo, NiNAD tira de lá uma máquina fotográfica de


temporizador automático e com um disparador ágil. NIHAD olha para o visor e faz vários
disparos, fotografando o homem. Tira do seu saco uma grande fita adesiva e amarra a
máquina fotográfica à ponta do cano da espingarda.

O que é que está a fazer…

A máquina fotográfica está bem fixa.


NINAD liga o disparador ao gatilho da espingarda.
Olha através da mira telescópica e visa o homem.

O que é que está a fazer?! Não me mate! Eu podia ser seu pai, tenho a idade da sua mãe...

NIHAD dispara. A máquina fotográfica é acionada ao mesmo tempo. Surge a fotografia do


homem no momento em que é atingido pela bala da espingarda. Ele dirige-se ao homem
morto.

NIHAD Kirk, Iam very happy to be here at «Star TV Show»...


Thank to you, Nihad. So Nihad, what is your next song?
My next song will be a love song.
A love song!
Yes, a love song, Kirk.
It is new on your carriere, Nihad.
You know, well, I wrote this song when I was war. War
on my country. Yes, one day a woman that I love died.
Yes. Shouting by a sniper. I feel a big crash in my heart.
My heart colaps. Yes. I cry. And I wrote this song.
It will be a plazer to heare love song, Nihad.
No problema, Kurk.

NIHAD torna a levantar-se e faz pose, com a espingarda a servir de microfone. Ajusta os
auriculares e liga o walk-man. E imita uma bateria.
One, two, three, four!
Sonoriza as 32 batidas de bateria de Roxane, dos The
Police, fazendo nin, nin, nin, nin...
e depois canta a canção, deturpando a letra.
NIHAD de espingarda com a máquina fotográfica presa do cano, dispara.
Surge uma primeira fotografia de um homem a correr.
NIHAD desloca-se e volta a disparar.
Surge uma fotografia do mesmo homem mortalmente atingido.

NIHAD You know, Kirk, sniper job is fantastic job.


Justamente, Nihad, can you talk about this?
Yeah! It is an artistic job.
Because a good sniper don't shoot de qualquer maneira, no, no! I have a lot of principles,
Kirk!
First: When you shoot, you have to kill, imediatamente, for not fazer sofrer a person.
Sure!
Segundo: You shoot all the pessoas! Is equitable com toda a gente!
But for me, Kirk, my gun is like my life.
You know, Kirk,
Every bala que coloco na espingarda
Is like a poema.
And I shoot a poema to the people and it is the precisão of my poema que mata as pessoas
e é por isso que as minhas fotografias são fantásticas.
And tell me, Nihad, you shoot everybody.
No, Kirk, not everybody...
I imagine that you don't shoot children.
Yes, yes, I kill children. No problem. Is like pigeon, you.

So?
No, I don't shoot women like Elizabeth Taylor. Elizabeth Taylor is a strong actriz. I like her
very much and I don't want to kill Elizabeth Taylor. So, when I see a woman like her, I don't
shoot her...
You don't shoot Elizabeth Taylor.
No, Kirk, sure not!
Thank you, Nihad.
Welcome, Kirk.

NIHAD levanta-se, põe a espingarda ao ombro e volta a disparar.

(Salto temporal)

NIHAD Não contesto nada do que foi dito no meu julgamento sobre esses anos. As pessoas
que disseram que eu as torturei, é verdade, torturei. E aqueles que me acusam de ter
matado, matei. Aliás, quero agradecer-
-lhes, pois eles permitiram-me fazer fotografias de uma grande beleza. Aqueles que
esbofeteei e aquelas que violei tinham sempre um rosto mais comovente depois da
bofetada e depois da violação do que antes de eu ter feito isso. Mas o essencial, o que eu
quero dizer, é que o processo que me moveram foi chato, aborrecido, mor-tal. Não havia
música suficiente. Então vou cantar-vos uma canção. Digo isto porque é preciso
salvaguardar a dignidade. Não sou eu que o digo, é uma mulher, aquela a quem chamavam
a mulher que canta. Ontem, ela veio falar-me de dignidade, cara a cara. Salvaguardar o que
nos restava de dignidade. Eu reflecti, e achei que ela tinha razão. Que este julgamento era
uma chatice! Sem ritmo e sem nenhum sentido do espectáculo. Para mim, o espectáculo é
a minha dignidade. Desde sempre. Nasci com ele. Creio que o encontraram no balde onde
me colocaram quando nasci. As pessoas que me viram crescer sempre me disseram que
esse objecto era um vestígio das minhas origens, de certa forma da minha dignidade, visto
que, segundo a história, ele me foi dado pela minha mãe.
Um pequeno nariz vermelho. Um nariz de palhaço. O que significa isto? A minha dignidade
é uma careta deixada por aquela que me deu a vida. Essa careta nunca me largou. Então
deixem-me assumi-la e cantar-vos uma canção que eu compus, para salvaguardar a
dignidade do terrível contratempo.

Coloca o nariz de palhaço. Canta.


NAWAL (15 anos) dá à luz NIHAD.
NAWAL (45 anos) dá à luz JEANNE e SIMON.
NAWAL (60 anos) reconhece o FILHO.
JEANNE, SIMON e NIHAD estão todos juntos na mesma sala.

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