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REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. XII Nº 31 MAIO-AGOSTO/2021
ISSN 2177-2789
Aliás os dois contos que estão sendo Rosa, que me deu essa oportunidade, eu
lançados agora no Brasil foram escritos não tive a menor dúvida que era o
em 2008, eu vivia em Lisboa na época. momento de trazer histórias com os
Eles estavam engavetados há muito personagens pretos.
tempo. Quando a editora norte-
americana Underline Publishing me
contatou por meio da Nereide Santa
como ele consegue provar que ele é capaz irmão Zeka Cintra (ilustrador da obra) pela
de ser um Corvo Correio. Não havia possibilidade de continuar escrevendo
título melhor. O prêmio, que veio dois sobre o tema da diversidade.
anos depois, surpreendeu a mim e meu
o texto para ele, que faz a leitura, e, no transparente. É lindo ver a empatia delas.
momento de trazer a informação Um exemplo é o livro Corvo Correio,
ilustrada, alguns se incomodam com a com o qual chegamos a fazer muitas
grossura do lábio negro retratada na leituras no Brasil, incluindo em escolas, e
imagem e pedem para ele fazer apenas no momento da leitura as crianças já nos
um risco, ou ainda, não gostam do tom bombardeiam com perguntas, ressaltando
de pele escuro utilizado e pedem para ele que não podemos maltratar o coleguinha
clareá-lo. Por esses pequenos detalhes, por ser diferente. Eu fico emocionada
nós notamos como é difícil chegar no por saber que consigo plantar a
adulto, trazendo a visão da pluralidade. sementinha. Mas é um trabalho de
Esse tema é natural, mas ainda há uma resiliência. Eu e o Zeka estamos unidos
grande dificuldade de aceitação por parte nessa empreitada.
dos adultos. Já a criança é pura e
uma feira de livros e chegou uma imagens também mostram que existem
escritora que me disse que escreve sobre outras possibilidades de existência para
diversidade e produziu um livro que além daquelas que sempre foram
aborda um personagem negro. No mostradas. É nesse ponto que ajudamos
entanto, esse personagem era o único que as crianças a se perceberem, quando elas
fazia coisas más. Naquele momento eu se reconhecem nas imagens que são
não tive reação, pois fiquei surpresa. Mas poderosas. É importante que todas as
é importante falar isso, pois além de crianças tenham a possibilidade de se
abordarmos personagens pretos, verem. Foi uma possibilidade que eu não
devemos retratá-los como referências tive, mas fico feliz em ver que minhas
positivas, pois, na nossa vida real, o negro filhas têm, não apenas por meio dos
já é marginalizado. Todos os dias eu vejo meus livros, mas por outros, afinal a
notícias do Brasil sobre a quantidade de Suécia, onde moro, é um país que aposta
pretos presos por engano pela polícia. E de forma brilhante na diversidade. As
aí, nos deparamos com uma literatura livrarias infantis abordam todas as
infantil que aborda um grupo de culturas, não englobam apenas a
coleguinhas e o negro é o único ser mau. representatividade preta, mas várias
Trata-se de algo que não vem para somar outras questões.
e nos entristece saber que ainda há Um case muito interessante que me
histórias do tipo por aí. emocionou foi relacionado à minha obra
Assim nós percebemos o quanto ainda A Princesa e o Espelho. A mãe de uma
estamos distantes de um entendimento família branca, de uma cidade do interior
dos adultos sobre a importância de trazer dos EUA, fez a leitura de todo o livro em
a representatividade preta com referência seu canal no YouTube com músicas e
positiva. imagens dela lendo o livro com sua
filhinha. O fato de não ser uma família
LV: De que forma seus contos infantis preta me fez ver que a mensagem é para
têm auxiliado as crianças pretas a se todos. Eu achei lindo vê-la contando toda
sentirem mais representadas na a história em inglês, mostrando que,
sociedade? Poderia contar algum independente da cor, elas também
case? gostaram e querem passar a mensagem
Isabel: Esse trabalho tem sido uma do livro. Isso é muito importante quando
experiência muito gostosa. Agora os percebemos que a mensagem está
livros estão sendo lançados no Brasil. Eu chegando aos canais onde a gente quer
tenho recebido cada vez mais convites que chegue: as famílias e as crianças,
para falar sobre o assunto. Inclusive eu li independente da cor e da raça delas.
um texto em que se falava sobre como Eu tenho aquela noção como escritora
pensamos na Rapunzel com seus cabelos de que estou no caminho certo. Eu quero
longos e loiros, mas há agora os meus continuar passando essa mensagem. Há
personagens pretos, eu adorei. Essas uma necessidade de passá-la. Como
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aprendemos com esse incômodo é que aquele sapato de tecido, tudo mesmo
devemos continuar: eu, na parte da como os camponeses daquela época.
literatura, trazendo a representatividade Eu e o Zeka trabalhamos muito nesses
preta, e outros escritores que forem detalhes, até mesmo o layout do livro, o
chamados para fazer alguma publicidade, design gráfico, tudo está voltado para a
algum item de luxo, por que não? Por que questão do conto de fada, que busca
isso incomoda tanto as pessoas? Nós trazer a magia do contexto literário. E as
sabemos o porquê, mas sempre vamos pessoas, muitas vezes, ainda não
nos perguntar porque queremos ouvir da conseguem juntar o personagem a essa
outra pessoa o que ela tem a dizer, como atmosfera dos contos de fada, porque são
essa discordância continua sendo tão imagens novas, e nós temos que
profunda e pungente em algumas acostumar os olhos. E como diria Lázaro
pessoas. Não deveria ser. Quando nos Ramos: “O que é bonito tem que ser
deparamos com esse tipo de situação é visto”. É uma alegria esse trabalho. Tem
que fazemos um contraponto e personagens novos vindos aí. O Zeka
percebemos o quão distante ainda está ilustrando um livro novo. A própria
estamos. São nesses detalhes e notícias obra Huzinga vai para as escolas. As
que percebemos. O cenário já não é mais coisas estão se movimentando. Enfim, à
como antigamente, os negros podem medida que cada barulho tenta abafar
andar livremente pela rua, mas ainda há tudo isso de bonito que está acontecendo
os pequenos detalhes, muitas pessoas em relação à representatividade preta, nós
ainda são atingidas quando há um ganhamos ainda mais impulso e força
pequeno avanço da comunidade negra. para seguir em frente.
Por isso, eu digo muito ao Zeka
que esses livros fazem parte de um LV: Como usar das imagens para lidar
trabalho de fortalecimento negro, temos com adultos inseridos em bolhas
que reconhecer isso. Essas imagens conservadoras e preconceituosas?
simbolizam muito. Para mim, que escrevi Isabel: Essa é uma pergunta difícil. Eu
e passei por todo o período da falo muito com o Zeka. Nós somos
construção desses livros, vendo as irmãos, negros, e o assunto da
ilustrações o Zeka Cintra, é algo muito consciência racial brota de uma maneira
natural e bonito que queríamos mostrar, natural quando falamos das nossas
mas muita gente manda mensagem como vivências e experiências. Algumas vezes,
se nunca tivesse visto um livro com alguns amigos brancos dizem que temos
personagens negros. Essas obras já razão e perguntam como melhorar, pois
existem, mas talvez isso aconteça pelo dizem notar ainda algum racismo
fato de trabalharmos os pormenores. estrutural dentro deles. Essa mudança se
Como são contos de fadas, eu quis dá pela empatia, que, nas crianças, brota
mesmo trazer aquela roupa de feltro, como um foguete, é automático, forte e
rápido. As crianças, no meio de uma
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ISSN 2177-2789
Mariana Mascarenhasi
i
Mestra em Ciências Humanas, especialista em Metodologia do Ensino na Educação
Superior e em Comunicação Empresarial, graduada em Comunicação Social com ênfase em
Jornalismo. Assessora de comunicação e membro do Centro de Estudos Imagéticos
CONDES-FOTÓS Imago Lab da JackBran Consult.