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LUMEN ET VIRTUS

REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. XII Nº 31 MAIO-AGOSTO/2021
ISSN 2177-2789

A BELEZA DA DIVERSIDADE EM IMAGENS

Por meio da literatura, a escritora brasileira Isabel Cintra revela


sensibilidade e maestria ao inserir em suas obras protagonistas
pretos

Se a nossa percepção de mundo Atualmente, ela vive em Estocolmo, na


acontece por meio das imagens, nada Suécia.
melhor do que utilizá-las para ampliar
nossa visão a partir de um olhar para o LV: Como surgiu a ideia de produzir
todo. Por exemplo, quando o assunto é contos de fadas protagonizados por
conto de fadas, muitos pensam em pretos?
histórias como Rapunzel, Branca de Neve Isabel: A ideia vem da escassez dos
e João e Maria. Isso porque os contos personagens pretos nesse gênero de
como os conhecemos são criações história infantil. Afinal, nós conhecemos
europeias feitas pelos Irmãos Grimm no os contos de fada por meio dos clássicos
século XIX. Mas será que não paramos de grandes escritores europeus como os
para pensar que o mundo vai muito além Irmãos Grimm, o francês Charles
dos personagens mostrados nessas Perrault, conhecido por ser o pai dos
histórias? A entrevistada desta edição contos de fadas e o dinamarquês
vem, justamente, mostrar essa pluralidade Christian Andersen. Trata-se de contos
por meio das imagens. Trata-se da que foram imortalizados por esses
escritora Isabel Cintra, que criou e vem grandes autores. Depois veio a Disney
criando histórias infantis protagonizadas com seus filmes que encantam adultos e
por personagens pretos. crianças. Assim, a falta de personagens
Paulista de São Joaquim da Barra, pretos para um gênero de história é muito
Isabel acredita no poder dos livros em presente na vida das crianças. Pois, em
mudar pessoas, bem como na algum momento, essas histórias clássicas
importância de a representatividade estar aparecerão na vida delas, como apareceu
presente em sua escrita. É autora de na minha, durante a minha infância, por
Bem-vindo à cidade (Lisboa, 2016), meio de discos coloridos que minha mãe
participou da I Antologia Internacional ganhou da patroa dela.
do Mulherio das Letras – Contos e Então, tudo isso me tocou em um
Poesias, do IV Sarau da Paz (Ausburg, momento em que comecei a pensar em
2018) e, com o conto Corvo-Correio, uma nova publicação. Eu já havia
esteve entre os premiados do Prêmio Off publicado uma obra chamada Corvo
Flip de Literatura 2017, em Paraty (RJ). Correio e pensava em um próximo livro.
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Aliás os dois contos que estão sendo Rosa, que me deu essa oportunidade, eu
lançados agora no Brasil foram escritos não tive a menor dúvida que era o
em 2008, eu vivia em Lisboa na época. momento de trazer histórias com os
Eles estavam engavetados há muito personagens pretos.
tempo. Quando a editora norte-
americana Underline Publishing me
contatou por meio da Nereide Santa

conhecimento mesmo sobre um tema


LV: Poderia falar um pouco mais que é tão sensível para tanta gente. O
sobre a obra Corvo Correio e outras Corvo Correio é a história de um corvo
que se destacaram? que tinha o sonho, desde filhote, de fazer
Isabel: Foi uma grande alegria. Trata-se parte do grupo seleto dos pássaros
de um texto escrito em 2014. Eu ainda mensageiros, até então ocupado apenas
estava em Lisboa na época. A obra pelos pombos brancos.
nasceu da vontade de falar sobre A Coruja Mafalda, chefe dos correios,
diversidade e tolerância. São temas que disse que era impossível que ele fizesse
nasceram comigo e fazem parte do meu parte do grupo por ser diferente. A partir
dia a dia. Como escritora, seria impossível de então se desenvolve uma narrativa da
não passar uma mensagem positiva até de persistência do Corvo em querer ser e de
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como ele consegue provar que ele é capaz irmão Zeka Cintra (ilustrador da obra) pela
de ser um Corvo Correio. Não havia possibilidade de continuar escrevendo
título melhor. O prêmio, que veio dois sobre o tema da diversidade.
anos depois, surpreendeu a mim e meu

bastante. Trata-se de um cenário


LV: Como é o processo de trabalho diferente de períodos anteriores como
em junção com seu irmão, ilustrador 1950, por exemplo, época da minha mãe,
de suas obras? que já me contou várias experiências que
Isabel: É uma relação de irmandade e enfrentou, o que ela podia e não podia
profissionalismo. O fato de sermos fazer. E trabalhar com o Zeka me traz
irmãos e trabalharmos juntos é algo uma força muito grande, porque ele faz
fantástico. Geralmente os irmãos crescem as ilustrações e as imagens são poderosas
juntos e depois cada um vai para um lado. ao redor do mundo. Elas são capazes de
Mas o meu irmão também está na construir subjetividades. Eu e o Zeka
Europa, então conseguimos trabalhar e temos um excelente entendimento entre
passar férias juntos. texto e ilustração, temos tranquilidade
Quanto ao trabalho, tem sido mais para separar irmandade do
fácil trazer os temas abordados em profissionalismo.
minhas histórias, pois as pessoas estão Mas, o que acontece com ele, por ser
falando mais a respeito e tem surgido o ilustrador, é encontrar escritores que
mais pautas raciais. Eu tenho lido rejeitam personagens negros. Eles trazem
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o texto para ele, que faz a leitura, e, no transparente. É lindo ver a empatia delas.
momento de trazer a informação Um exemplo é o livro Corvo Correio,
ilustrada, alguns se incomodam com a com o qual chegamos a fazer muitas
grossura do lábio negro retratada na leituras no Brasil, incluindo em escolas, e
imagem e pedem para ele fazer apenas no momento da leitura as crianças já nos
um risco, ou ainda, não gostam do tom bombardeiam com perguntas, ressaltando
de pele escuro utilizado e pedem para ele que não podemos maltratar o coleguinha
clareá-lo. Por esses pequenos detalhes, por ser diferente. Eu fico emocionada
nós notamos como é difícil chegar no por saber que consigo plantar a
adulto, trazendo a visão da pluralidade. sementinha. Mas é um trabalho de
Esse tema é natural, mas ainda há uma resiliência. Eu e o Zeka estamos unidos
grande dificuldade de aceitação por parte nessa empreitada.
dos adultos. Já a criança é pura e

LV: Essa questão da rejeição da forma dizem estar abertos à pluralidade,


como personagens pretos são mas, na realidade, não estão.
retratados reforça como alguns se Isabel: Sim. Eu passei por uma situação
curiosa. Eu estava com o meu irmão em
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uma feira de livros e chegou uma imagens também mostram que existem
escritora que me disse que escreve sobre outras possibilidades de existência para
diversidade e produziu um livro que além daquelas que sempre foram
aborda um personagem negro. No mostradas. É nesse ponto que ajudamos
entanto, esse personagem era o único que as crianças a se perceberem, quando elas
fazia coisas más. Naquele momento eu se reconhecem nas imagens que são
não tive reação, pois fiquei surpresa. Mas poderosas. É importante que todas as
é importante falar isso, pois além de crianças tenham a possibilidade de se
abordarmos personagens pretos, verem. Foi uma possibilidade que eu não
devemos retratá-los como referências tive, mas fico feliz em ver que minhas
positivas, pois, na nossa vida real, o negro filhas têm, não apenas por meio dos
já é marginalizado. Todos os dias eu vejo meus livros, mas por outros, afinal a
notícias do Brasil sobre a quantidade de Suécia, onde moro, é um país que aposta
pretos presos por engano pela polícia. E de forma brilhante na diversidade. As
aí, nos deparamos com uma literatura livrarias infantis abordam todas as
infantil que aborda um grupo de culturas, não englobam apenas a
coleguinhas e o negro é o único ser mau. representatividade preta, mas várias
Trata-se de algo que não vem para somar outras questões.
e nos entristece saber que ainda há Um case muito interessante que me
histórias do tipo por aí. emocionou foi relacionado à minha obra
Assim nós percebemos o quanto ainda A Princesa e o Espelho. A mãe de uma
estamos distantes de um entendimento família branca, de uma cidade do interior
dos adultos sobre a importância de trazer dos EUA, fez a leitura de todo o livro em
a representatividade preta com referência seu canal no YouTube com músicas e
positiva. imagens dela lendo o livro com sua
filhinha. O fato de não ser uma família
LV: De que forma seus contos infantis preta me fez ver que a mensagem é para
têm auxiliado as crianças pretas a se todos. Eu achei lindo vê-la contando toda
sentirem mais representadas na a história em inglês, mostrando que,
sociedade? Poderia contar algum independente da cor, elas também
case? gostaram e querem passar a mensagem
Isabel: Esse trabalho tem sido uma do livro. Isso é muito importante quando
experiência muito gostosa. Agora os percebemos que a mensagem está
livros estão sendo lançados no Brasil. Eu chegando aos canais onde a gente quer
tenho recebido cada vez mais convites que chegue: as famílias e as crianças,
para falar sobre o assunto. Inclusive eu li independente da cor e da raça delas.
um texto em que se falava sobre como Eu tenho aquela noção como escritora
pensamos na Rapunzel com seus cabelos de que estou no caminho certo. Eu quero
longos e loiros, mas há agora os meus continuar passando essa mensagem. Há
personagens pretos, eu adorei. Essas uma necessidade de passá-la. Como
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mulher negra é uma cura para mim de essa falta de representatividade na


todas as memórias que tenho da infância, verdade presente na minha época.

LV: Qual a sua opinião a respeito do pessoas. Houve quem rebatesse


uso das imagens para dar voz e vez às negativamente. A Beyoncé significa
pessoas que são minimizadas pela representatividade, a mulher negra pode
sociedade? Há muito o que fazer ou sim, apesar da sociedade mostrar que não
estamos no caminho? e de todas as notícias que vemos todos os
Isabel: Eu acredito que estamos no dias sobre preconceito racial, frequentar
caminho, se observamos as redes sociais, espaços que até há pouco tempo só as
as mídias de um modo geral. A própria pessoas brancas frequentavam. Algo que
Beyoncé apareceu há alguns dias com um é uma idiotice. Só por que a história
diamante lindo, a primeira mulher negra a sempre mostrou que foi de um jeito não
usar um diamante tão especial cujo valor significa que devemos continuar dessa
nem sei avaliar. No entanto, foi uma maneira.
notícia que correu o mundo e que, Então, o poder da imagem é
infelizmente, trouxe, também aflorou fantástico, incomoda muita gente, não
sentimentos negativos em algumas deveria, mas incomoda. O que
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aprendemos com esse incômodo é que aquele sapato de tecido, tudo mesmo
devemos continuar: eu, na parte da como os camponeses daquela época.
literatura, trazendo a representatividade Eu e o Zeka trabalhamos muito nesses
preta, e outros escritores que forem detalhes, até mesmo o layout do livro, o
chamados para fazer alguma publicidade, design gráfico, tudo está voltado para a
algum item de luxo, por que não? Por que questão do conto de fada, que busca
isso incomoda tanto as pessoas? Nós trazer a magia do contexto literário. E as
sabemos o porquê, mas sempre vamos pessoas, muitas vezes, ainda não
nos perguntar porque queremos ouvir da conseguem juntar o personagem a essa
outra pessoa o que ela tem a dizer, como atmosfera dos contos de fada, porque são
essa discordância continua sendo tão imagens novas, e nós temos que
profunda e pungente em algumas acostumar os olhos. E como diria Lázaro
pessoas. Não deveria ser. Quando nos Ramos: “O que é bonito tem que ser
deparamos com esse tipo de situação é visto”. É uma alegria esse trabalho. Tem
que fazemos um contraponto e personagens novos vindos aí. O Zeka
percebemos o quão distante ainda está ilustrando um livro novo. A própria
estamos. São nesses detalhes e notícias obra Huzinga vai para as escolas. As
que percebemos. O cenário já não é mais coisas estão se movimentando. Enfim, à
como antigamente, os negros podem medida que cada barulho tenta abafar
andar livremente pela rua, mas ainda há tudo isso de bonito que está acontecendo
os pequenos detalhes, muitas pessoas em relação à representatividade preta, nós
ainda são atingidas quando há um ganhamos ainda mais impulso e força
pequeno avanço da comunidade negra. para seguir em frente.
Por isso, eu digo muito ao Zeka
que esses livros fazem parte de um LV: Como usar das imagens para lidar
trabalho de fortalecimento negro, temos com adultos inseridos em bolhas
que reconhecer isso. Essas imagens conservadoras e preconceituosas?
simbolizam muito. Para mim, que escrevi Isabel: Essa é uma pergunta difícil. Eu
e passei por todo o período da falo muito com o Zeka. Nós somos
construção desses livros, vendo as irmãos, negros, e o assunto da
ilustrações o Zeka Cintra, é algo muito consciência racial brota de uma maneira
natural e bonito que queríamos mostrar, natural quando falamos das nossas
mas muita gente manda mensagem como vivências e experiências. Algumas vezes,
se nunca tivesse visto um livro com alguns amigos brancos dizem que temos
personagens negros. Essas obras já razão e perguntam como melhorar, pois
existem, mas talvez isso aconteça pelo dizem notar ainda algum racismo
fato de trabalharmos os pormenores. estrutural dentro deles. Essa mudança se
Como são contos de fadas, eu quis dá pela empatia, que, nas crianças, brota
mesmo trazer aquela roupa de feltro, como um foguete, é automático, forte e
rápido. As crianças, no meio de uma
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leitura, já se manifestam e querem falar eu tenho fé. É questão de resiliência,


sobre o assunto, ficam curiosas. esperança e muito trabalho.
Em relação ao adulto, há o desafio de
despertar essa empatia, porque ele
entende. Muitos até reconhecem uma
falha que têm que corrigir. Então é um
trabalho diário de fazer chegar a empatia,
tem que ser eles com eles mesmo. Há
muitas leituras boa, nesse momento,
como o Manual Antirracista escrito
pela filósofa Djamila Ribeiro. É um livro
que eu preciso adquirir. Eu já li a
respeito. É para todo mundo, pois muitos
de nós negros também estamos
descolonizando o nosso conhecimento,
ainda estamos nos reconhecendo, criando
um olhar crítico sobre tudo o que Não tenho dúvida que chegaremos em
acontece. É difícil porque não basta ser um momento melhor do que o que
negro para ter consciência racial. A minha estamos passando agora. O Brasil está
consciência racial brotou tarde. A gente num momento muito particular com a
não se reconhece, somente depois política bagunçada, polaridade drástica,
quando o racismo começa a acontecer, a então cada um tem que fazer a sua parte e
ficha cai. eu tenho certeza que tenho conseguido
Há muitos outros livros bons para fazer a minha por meio da literatura, das
entendermos essas questões como o conversas que tenho com alguns amigos,
Memórias da Plantação, escrito por eu acho que é com cada um fazendo sua
Grada Kilomba. Livro fantástico, parte que chegamos em um lugar
didático, que traz, inclusive, contribuições positivo.
da Psicanálise para entendermos o que se Se perdermos a esperança, nada mais
passa no cérebro de uma pessoa racista e acontece. É interessante reconhecermos
até com o nosso também, quando os pontos negativos para sabermos onde
sofremos racismo, o que acontece e por estamos errando e precisamos melhorar,
que acontece. Então, trata-se de um mas também tentar trazer uma energia
processo lento, mas quando há a vontade todo dia de manhã para continuarmos
de mudar, tudo é possível. Estamos no lutando com esperança sempre.
caminho que vai nos levar a algo positivo,
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LV: Como podemos adquirir seus livros?


Isabel: Pela Amazon e também pela umlivro.com.br que é a distribuidora no Brasil para todo
o país. Por meio do meu site isabelcintra.com as pessoas conseguem ver alguns trabalhos
meus, capas novas e outras informações sobre meu trabalho. E eu ainda respondo as
pessoas pelo site.

Mariana Mascarenhasi

i
Mestra em Ciências Humanas, especialista em Metodologia do Ensino na Educação
Superior e em Comunicação Empresarial, graduada em Comunicação Social com ênfase em
Jornalismo. Assessora de comunicação e membro do Centro de Estudos Imagéticos
CONDES-FOTÓS Imago Lab da JackBran Consult.

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