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Ernest»Gellner NACOES E NACIONALISMO Traouicko of INES VAZ PINTO. gradiva ‘Tivulo original inglés: Nations and Nationalism © Benest Geliner, 1963 Traducio: Inés Vaz Pinto Capa: Armando Lopes Fotocomposicio: Gradiva Impressio e acabamento: Tipografia Lousanense, 1. Reservados os direitos para a lingua portuguesa por: Gradiva — Publicagdes, L.** Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. ~ Telefs. 397 40 67/8 1300 Lisboa 1? edligdo: Marco de 1993 Depésito legal n.° 56 562/93 Indice Agradeciment0s oon (lj Definigses.... Estado © nag80 seers A nagio 2. A cultura na sociedade agraria Poder ¢ cultura na sociedade agro-letrada Caitta © Estado na sociedade agritia wan 0s tipos de governantes agratios 3. A sociedade industrial .. A soci de ereseimento perp Genética social ‘Acta da cultura erudita universal. (() A tansigto para a era do nacionalismo .. Uma observagéo sobre a fraqueza do nacionalismo Culturas selvagens e jardins (5) Que é uma nagio? © percurso do verdadziro nacionalismo nunca foi simples ou ficil . 4 2 2 26 28 30 37 44 51 60 6s n 80 85 oo 6. Entropia social e igualdade na sociedade industrial 99 Obsticulos & entropia i 101 Fissutas ¢ barteiras .. sso 113 Uma diversidade de focagem 6 7. Uma tipologia dos nacionalismos .. 133 ‘Variedades da experi nacionalista 14s Nacionalismo de diaspora 1S} 8. O futuro do nacionalismo vee ne 163 A cultura industrial — uma ou Viti? osesnrcenencinn 169 Agradecimentos 9. Nacionalismo ¢ ideologia ....smeessrorn 181 A elaboragio deste livro beneficiou imenso com 0 apoio moral Quem 6 a favor de Nuremberga? PEE eHeee oa € material da minha mulher, Susan, ¢ do meu seeretirio Gay Uma nagio, um Estado 196 Woolven. A peniiltima versio recebeu a critica preciosa do meu filho David. A quantidade de pessoas de cujas ideias e informagdes 10. Conchusio.. 199 beneficiei ao longo dos anos, concordando ou discordando delas, é, simplesmente, grande de mais para ser aqui enumerada, embora a © que ni foi dito i 200 dimensao da minha divida, consciente ou nio, seja enorme, Nao Resume... 202 seta necessétio dizer, porém, que apenas eu podetei ser responsa~ oe bilizado pelas posigdes defendidas neste livro. Bibliografia seleccionada . 209 Ernest GELLNER ‘Tuzenpactt: Nos anos vindouros, dizes tu, a vida na Terra serd mara- vilhosa, linda, Isso é verdade, No entanto, para patticipar nela desde jé, mesmo de longe, temos de nos preparar, temos de trabath: Sim, temos de trabalhar. Talvez, penses que este alemio esté a ficar entusiasmado de mais, mas palavra de honra que sou russo. Nem sequer sei falar alemao, O meu pai é ottodoxo... Anton Cueknov, As Trés Irmas Politika u nds byla vak spise méné sinélej8iformou kultury. (A nossa politica constituiu, apesar de tudo, uma forma de cultura bastante menos ousada.) 1. StADpEEk, Osmasedesdny ('68), Index, Colénia, 1980, anteriormente em circulagio em Samizdat, em Praga ‘A nossa ‘nacionalidade & como 0 nosso selacionamento com as mulheres: demasiado envolvida com a nossa natureza moral para ser hontosamente alterada e demasiado acidental para que valha a pena set mudada Geonats SANTAYANA y ) ) 1, Definigdes © nacionalismo ¢, essencialmente, um principio politico que defende que a unidade nacional e a unidade politica devem corresponder uma a outra, © nacionalismo, enquanto sentimento ov enquanto movi- mento, deve ser entendido a partir deste principio. O sen- timento nacionalista & © estado de cdlera causado pela vio- ago desse principio ou o estado de satisfago causado pela sua realizagio. Um movimento nacionalista 6 aquele que é incitado por wm sentimento deste tipo. © principio nacionalista pode ser violado de diversas maneiras. A fronteira politica de um determinado Estado pode no incluir todos os membros da nago; ou pode abrangé-los a todos, mas englobar também alguns estrangeiros, ou pode falhar ambos os objectivos simultaneamente, nao incorpo- rando todos os nacionais ¢, nao obstante, incluindo também alguns estrangeiros, Ou ainda uma nagdo pode, apesar de nao integrar estrangeiros, distribuir-se por uma multiplicidade de Estados, de forma que nenhum deles se possa proclamar como 0 Estado nacional. Existe, no entanto, uma forma especial de violagao deste principio em relagao 4 qual o sentimento nacionalista é par i | [ | ticularmente sensivel: para os nacionalistas, 0 facto de os governantes da unidade politica pertencerem a uma nagio diferente da maioria dos governados representa ima forma de violago intolerével da correcgio politica. Isto tanto pode acontecer atrayés da incorporagio do territério nacional num império mais amplo como através do dominio local por um grupo estrangeiro, Em suma, © nacionalismo é uma teoria da legitimidade politica que exige que as fronteiras étnicas no atravessem as fronteiras politicas e, especialmente, que as fronteiras Stnicas dentro de um mesmo Estado — uma contingéncia J4 formalmente exclufda pelo principio da sua formulagao geral — no separem os detentores do poder do resto da populagao. Assim, 0 principio nacionalista pode ser defendido num espitito ético e «universalistan. Poderiam existir, e por vezes existiram, nacionalistas em abstracto, sem preferéncia por qualquer nacionalidade especifica prdpria, apregoando gene- Tosamente a mesma doutrina a todas as nagdes: que todas as nagées tenham os seus préprios telhados politicos e que todas evitem albergar ndo-nacionais debaixo desses telhados, Nao existe qualquer contradigao formal nessa declaragao de nacio- nalismo nao egoista. Enquanto doutrina, esta pode ser funda- mentada por alguns argumentos vilidos, como o desejo de preservar a diversidade cultural de um sistema politico internacional pluralista e de reduzir tensdes internas dentro de cada Estado. Contudo, o nacionalismo nem sempre tem sido, na pratica, {Go moderadamente razodvel nem tdo racionalmente simétrico. Pode ser que, como Immannel Kant pensava, a parcialidade, a tendéncia para abrir excepgdes a nosso favor ou no nosso préprio caso, constitua a principal fraqueza humana, da qual decorrem todas as outras, infectando o sentimento nacional, assim como tudo o resto, e dando origem Aquilo a que os Italianos, sob a égide de Mussolini, chamaram o sacro 12 egoismo* do nacionalismo. Também é possivel que, se os ‘iacionafistas tivessem uma sensibilidade téo apurada para os males praticados pela sua nago como a tém para os que sio cometidos contra ela, a eficdcia politica do sentimento nacio- nalista safsse bastante diminulda. Para além destas consideragées, existem, porém, outras, relacionadas com a natureza especifica do mundo em que vivemos e que se opdem a qualquer nacionalisino modetada- mente razoivel, geral.e imparcial. Simplificando o mais pos sivel: hana Terra um grande nimero de nagées potenciais. O nosso planeta tem ainda espago para um determinado mimero de unidades politicas independentes ou auténomas. Segundo um caleulo razoavel, esse nitmero (de fiagdbs potenciais) é, com toda a probabilidade, muitéssimo maior do que o nimeto de (Estados Potencialmente vidveis, Se este argumento, ou calculo, ‘estiver Correcto, nem todos os nacionalismos podem ser con cretizados, pelo menos ao mesmo tempo. A realizagio de uns implica a frustragio de outros. Este raciocinio é ainda refor- ‘gado pelo facto de muitas das nagSes potenciais deste mundo viverem, ou terem vivido até recentemente, no em unidades territoriais compactas, mas misturadas umas com as outras, segundo padroes complexos. Daqui resulta que u lac politica territorial sé pode tornar-se etnicamente homogénea_ quando mata, expu simile o-nacionai: ‘recusa a submeter-se a tais destinos pode tornar bastante dificil a implantago pacifica do principio nacionalista. Estas definigdes devem, obviamente, ser aplicadas como a maioria das definigdes, isto é, com bom senso. Tal como foi definido, o principio nacionalista nao é violado pela presenga de um pequeno nimero de residentes estrangeiros ou mesmo pela presenca ocasional de um estrangeiro, por exemplo, numa familia de dirigentes nacionais. Nao se pode determinar * Ban italiano no original. (W. do R) 13 com preciso a quantidade de estrangeiros residentes (ou per- tencentes & classe governante) necessiria para que o principio seja efectivamente violado. Nao existe qualquer percentagem institufda abaixo da qual o estrangeiro possa ser pacificamente tolerado e acima da qual se tome perigoso, pondo em perigo a sua vida e seguranga. O miimero oscilaré, sem dtivida, conforme as circunstincias. Todavia, a impossibilidade de fornecer um mimero preciso e aplicdvel 4 generalidade dos casos no invalida a utilidade da definigao, Estado e nagao A nossa definigao de nacionalismo dependia de dois ter- mos ainda no definidos: Estado e.nagao, A discussao sobre o Estado pode comegar com a célebre definigio de Max Weber. Segundo este autor, o E: tituigdo que detém 0 monopélio da violén dade, A ideia implicita é simples e sedutora: em sociedades bem organizadas, como a maioria daquelas em que vivemos (ow aspiramos a viver, a violéncia privada ou sectorial é ilegi- “tima. O conflito, enquanto tal, nao ¢ ilegitimo, mas nao é Iicito resolvé-lo através de tais tipos de violéncia, Esta s6 pode ser aplicada pela autoridade politica central e por aqueles em quem ela delega este direito. Entre-as varias sangdes implica- das pela manutengio da ordem, a mais radical de todas — a forga — sé pode ser aplicada por uma instituigao social espe- cffica claramente identificada, bem centralizada e discipli- nada. Essa instituigao, ou conjunto de instituigdes, é o Estado. A ideia contida nesta definigo corresponde bastante bem as intuigdes morais de muitos, ou provavelmente 4 maioria dos Estados modernos. De qualquer maneira, ela nao é to- lalmente satisfatéria. Existem «Estados» — ou, pelo menos, instituigdes as quais dariamos normalmente esse nome — que ‘no monopolizam a violéncia legitima dentro do territério que 14 controlam mais ou menos eficazmente. Um Estado feudal nao se ope necessariamente as guerras privadas entre os detento- res de feudos, desde que estes cumpram as suas obrigacdes para com os seus superiores. Mais, um Estado que conte populagées tribais entre os seus sibditos nao se opde, necessa- riamente, A institnigao do feudo, desde que os feudatitios se abstenham de pér em perigo os individuos neutrais na via ptiblica ou no mercado, O Estado Iraquiano, sob tutela inglesa depois da Primeira Guerra Mundial, consentia ataques tribais, desde que os atacantes se comprometessem a fazer, antes e depois da expedigao, uma declaragéo burocraticamente ade- quada das chacinas e pilhagens no posto de policia mais prsximo. Resumindo, existem Estados que carecem de von- ade e meios para efectivarem © monopolio da violéncia legi- } ima e que, apesar disso, continuam a ser, em muitos aspectos, «Estados» reconheciveis. No entanto, apesar de estranhamente etnocéntrico enquanto definigao geral, pressupondo o Estado ocidental centralizado, o principio fundamental de Weber surge presentemente como valido, © Estado constitui uma elaboragio importante e bas- tante especifica da divisio do trabalho. Onde nao existe divi-%\ sao do trabalho nao se pode sequer comegar a falar de Estado, Todavia, nem toda e qualquer especializagao constitui win Esta- do; este representa a especializagao e a concentragao préprias da manntengao da ordem, D Estado é aquela instituigao ou con- junto de institnigdes especialmente consagradas a manutengao da ordem (quaisquer. que sejam as suas oul tado existe onde existam instituigdes especializadas na manu- tengao da ordem, como as forgas policiais e os tribunais, sepa- radas do resto da vida social. Essas instituigdes sao o Estado, Nem todas as sociedades sfio dotadas de Estado, Dai re- sulta que 0 problema do nacionalismo nfo se coloca para as sociedades sem Estado. Se este nao existe, obviamente, nao se pode perguntar se as suas fronteiras so ot nfo concordantes com as das nagées. Se nao existem governantes, nao existindo 15 Estado, nao se pode perguntar se pertencem mesma nagao que os governados. Nao existindo nem Estado nem governan- tes, nao pode haver tessentimento por eles nao’ acatarem as exigéncias do prine{pio nacionalista, Pode talvez lamentar-se iséncia do Estado, mas isso é outro problema. Regra geral, os nacionalistas criticam acesamente a distribuigao do poder politico e a natureza das fronteiras politicas, mas raramente, on mesmo nunca, lamentaram a auséneia do poder e das fron- teiras, De um modo geral, as condigdes em que o naciona- lismo surge nao sio aquelas que se verificam em caso de auséncia do Estado enquanto tal ou de incerteza acerca da sua realidade. Pelo contrdrio, o Estado era demasiado conspicuo, Sao as suas fronteiras e/ou a distribuigao do poder, e possivel- mente outras prerrogativas, que constituem motivo de ressen- timento. Este facto é, por si s6, muito significativo. Nao s6 a nossa definigao de nacionalismo depende de uma prévia definigao de Estado, como parece dar-se tambérii 0 caso de 0 naciona-, Jismo apenas surgir em meios nos quais a existénela do Estadi & jd hd muito aceite. A existéncia de unidades politicament ,centralizadas, bem como de um clima politico-moral em que “tais unidades centralizadas sfo aceites e consideradas norma- tivas, constitui uma condigao necesséria do nacionalismo, embora certamente insuficiente. Antes de mais, & preciso fazer algumas observagées histé- ricas de ordem geral sobre o Estado, Na sua histéria, a huma- nidade passou por trés fases fundamentais: a pré-agréria, a agtétia e a industrial. Os grupos de cagadores-colectores eram, eso, demasiado pequenos para permitirem 0 tipo de divisio politica do trabalho que constitai o Bstado. Assim, para eles, © problema do Estado, como instituigao estivel e especiali- zada que mantém a ordem, nao se coloca. Ao invés, na maior parte das sociedades agrarias, mas nao em todas, jé existia um Estado. Alguns destes foram fortes, outros fracos, uns despé- ticos, outros cumpridores da lei, vatiando muito na respectiva 16 forma. A fase agrdria da histéria do homem é 0 periodo durante 0 qual, por assim dizer, a propria existéncia do Estado surge como uma opgao, A forina do Fstado é muito varidvel. Durante o estédio da caga «prong opgao nao existia. gratia, industrial, também nig Pelo contrario, na era po existe opgiio; agora é a presenga do Estado, e nio a sua au ‘cia, que é inevitavel. Parafraseando Hegel, outrora ninguém |tinha Estado; depois, alguns tiveram-no, ¢ finalmente todos 0 [t8m. Nao seré preciso dizet que as formas que este adquire continuam a ser varidveis. Existem algumas linhas do pensa- mento social, como 0 anarquismo e o marxismo, que defen- dem que mesmo — on especialinente — numa estrutura in- dustrial se pode prescindir do Estado, pelo menos em condigdes favordveis ou em condigdes a concretizar em tempo oportuno. Ha razdes fortes e Sbvias para duvidar disso: as sociedades industriais sio extraordinariamente vastas ¢ 0 nivel de vida a que se habituaram (ou ao qual desejam avida- mente habituar-se) depende de uma incrivelmente complexa divisao geral do trabalho e cooperagao. Em condigdes favo- raveis, parte desta cooperagao poderia ser espontinea e nio necessitar de sangdes centrais. Mas a ideia de que tudo pode- ria funcionar assim para sempre, que poderia existir sem qualquer imposigio e controle, exige de nés uma credulidade excessiva, Em suma, ma _do nacionalismo nao se coloca / avando nao_existe Estado, mas isto nao’ significa qué o | problema-do-nacionalismo surja em todo e qualquer Estado. Pelo contritio, surge apenas em alguns. Resta saber quais 08 | Estados que so, realmente, confrontados com este problema. A nacdo A definigio de nagao apresenta maiores dificuldades do que as relativas 4 definigao de Estado. Embora © homem 7 ) ) modemo tenha tendéncia para aceitar 0 Estado centralizado (mais especificamente 0 Estado nacional centralizado), é capaz, contudo, com um esforgo relativamente pequeno, de se aperceber da sua contingéncia e de imaginar uma situagao social em que o Estado esteja ausente. Ei perfeitamente capaz de imaginat o «estado de naturezan, Um antropdlogo pode explicar-Ihe que a tribo nao é necessariamente uma versio reduzida do Estado e que existem formas de organizagio tribal que podem ser caracterizadas como destituidas de Estado, Pelo contrario, a ideia de um home sem nagdo parece impor uma tensio muito maior 4 imaginaggo modema. um francés emigré* na Alemanha durante o periodo napoled- nico, escreven wm vigoroso romance proto-kafkiano acerca de uum homem que perdeu a sombra. Embora parte da eficéicia da obra dependa, sem diivida, da ambiguidade intencional da parabola, & dificil niio desconfiar de que, para o autor, o homem sem sombra representava o homem sem nagio. Quando os seus discipulos e conhecidos descobrem es: aberrante falta de sombra, passam a evitar Peter Schlemiehl, apesar de ser uma pessoa bastante dotada. Um homem sem nagio desafia as categorias reconhecidas e provoca repulsa. “A percepgao de Chamisso — se é realmente isto que ele tencionava transmitir — era bastante valida, mas apenas pata um determinado tipo de condigaio humana, e nao para a con- digo humana enquianto tal, em qualquer tempo e lugar. Um homem tem de ter uma nacionalidade, tal como tem de ter um nariz e duas orelhas. Uma deficiéncia em qualquer destas caracteristicas néo é inconcebivel e acontece de tempos a fempos, mas apenas como resultado de algum desastre, constitui por si s6 uma espécie de desastre. Tudo isto parece dbvio, mas infelizmente nao é verdacie, Contudo, o facto de _ter acabado por parecer to obviamente verdade constitui real- * Bm franeés no orginal, (M. do R) } mente um aspecto — talvez a esséncia— do problema do nacionalismo. ‘Ter uma nacionalidade néo & uma caracte- ristica inata do'ser framano, mas chega realmente a parecé-lo, De facto, as nagdes, tal como os Estados, séo uma contin= |géncia e.nao uma necessidade universal. Nem os Estados nem las nagdes existiram sempre ¢ em quaisquer circunsténcias. ‘Além disso, as nagdes e os Estados ndo constituem a mesma -contingéncia, O nacionalismo defende que foram destinados ‘um ao outro, que um sem 0 outro est4o incompletos, ¢ que isso constituiria uma tragédia. No entanto, antes que pudessem vit a set feitos um para o outro, cada um deles teve de surgir, tendo esse aparecimento sido independente e contingente. Nao ha qualquer diivida de que o Estado surgin sem a ajuda da _nagio, Algumas nagSes surgiram certamente sem a béngao do seti proprio Estado. Mais discutivel é saber se a ideia norma- [tiva de naga no seu significado modemo, nao pressupds a existéncia prévia do Estado. ‘Apesar de aparentemente universal e notmativa na nossa era, 0 que significa entao esta ideia contingente de nagio? A discussio de duas definigdes provisérias e bastante rudimen- tares ajudard a identificar este conceito ihusério: 1. Dois homens pertencem & mesma nagiio se ¢ s6 se ‘partilharem a mesina cultura, a qual representa, por seu turno, um sistema de ideias, signos e associagbes, bem como modos de comportamento e comunicacao; 2, ‘is homens pertencem 4 mesma nagao se e sé se.se ‘reconhecem como pettencentes a uma mesma nagio. Por outras palavras, as nagées fazem 0 homem. As nagdes sto os artefactos das convicgdes, lealdades e solidariedades do homem. Uma simples categoria de individuos (por exemplo, os habitantes de um dado territério ou os que falam uma determinada lingua) transforma-se_numa nagao_se_e quando os membros dessa categoria reconhecem firmemente uns aos outros” 19 determinados direitos e deveres miituos em virtude da qualidade comum de membros dela. E esse reconheci- mento miituo, enquanto membros do grupo, que os transforma numa nago, e nao os outros atributos comuns, quaisquer que cles sejam, que distinguem essa categoria dos que nao sio membros dela Qualquer destas definigdes provisérias — a cultural e a voluntarista — tem o seu valor. Cada uma delas poe em evidéncia um elemento de grande importéncia para a com- preensio do nacionalismo. No entanto, nenhuma delas é suficiente. As definigdes de cultura, pressupostas na primeira definigéo, mais no sentido antropolégico do que normativo, io notoriamente diffceis e pouco satisfatorias, Provavel- mente, é preferivel abordar o problema utilizando esse termo, sem adiantarmos demasiado no sentido de uma definigio formal, e observar o que a cultura faz. 20 2. A cultura na sociedade agraria Na época agraria da histéria da humanidade deu-se uma evolugao compardvel em importancia & emergéncia do préprio Estado: a alfabetizag’o* e o aparecimento de uma classe, ou ordem intelectual especializada, a elite letrada**. Nem todas as sociedades agrérias chegam a ser alfabetizadas. Mais uma vez, parafraseando Hegel, podemos dizer que, inicialmente, ninguém sabia ler, depois alguns sabiam ler e, finalmente, todos sabem ler. Pelo menos, parece ser esta a forma como a alfabetizagio se adapta as trés grandes eras do homem. Na Idade Média, ou agréria, sé alguns acedem a alfabetizagio. Algumas sociedades sitio alfabetizadas, mas dentro destas sé alguns, ¢,munca todos, sabem realmente ler. A palavra escrita parece entrar na historia através do contabilista e do cobrador de impostos: as primeiras utili- * © lor escrove literacy, que também pode ver tndusido por letrisino (cf. Diclondrio de Lingua Porniguesa de Céndido de Figueiredo, 102 ed., 1949), {sto é, um conjurte de competéncias eultusis associadas ao dominio da leitire € da eserin, como numeracy corresponde as competéncias bisieas 10 dominio dos tmimeros; em conjunto, estas competénetas carrespondem iquilo que popularmente se designs, entre ni, por «saber ler, eserever e conlam. (N. do R}) #0 autor esereve cleresy, mas em pontuguzs 0 tertno cleretla fem una conotasio especificamente religiosa, pelo que optimos pela expresso elite lerrada (ou of letrados). (N. do R) 2 ) ) ) > ‘i ) ) zagbes do signo escrito sio muitas vezes originadas pela conservagio de tegistos. No entanto, uma vez desenvolvida, a palavra escrita adquite outras utilizagées, sejam elas legais, contratuais ou administrativas. © préprio Deus acaba pot estabelecer, por esctito, a sua alianga com a humanidade e as egras para o comportamento da sua ctiagdo, A teologia, a legislacao, o contencioso, a administragao, a terapia, tudo isso produz uma classe de especialistas letrados, aliados on, mais frequentemente, em competi¢ao com os taumaturgos indepen dentes, iletrados. Nas sociedades agririas, a alfabetizagao introduz, um profundo abistno entre as pequenas ¢ as grandes tradigdes (ou cultos). As doutrinas e as formas de organizagio da elite intelectual nas culturas ernditas sio extremamente diversas e a profundidade do abismo entre as pequenas e as gtandes tradigées pode variar bastante. © mesino se passa com a relagio entre a elite letrada ¢ o Bstado, bem como com a propria organizacao deste ultimo. A elite pode ser centrali- zada ou auténoma, hereditéria on, pelo conttario, constituir uma corporagio aberta, e por af fora. A alfabetizagao, a ctiagio de uma linguagem escrita relati- yamente permanente e notmalizada, significa, de facto, a pos- sibilidade da armazenagem e centralizagio cultural e cogni- liva. A centralizagdo e codificagao cognitivas levadas a cabo pela elite Jetrada nao (ém, necessariamente, de andar de par coma centralizagao politica, que ¢ o Estado, Siomuitas vezes rivais. Por vezes, uma pode apoderar-se das outras, mas é mais frequente que os especialistas da violéncia e da fé, 0 vermelho © 0 negro, sejam, de facto, rivais que actuam independen- temente e cujos dominios muitas vezes no se sobrepdem. Poder e cultura na sociedade agro-letrada Estas duas formas peculiares e cruciais da divisio do traba- tho — as centralizagdes do poder e da cultura/cognigio — tém 22 implicagées especfficas e profundas na estrutura social tipica da sociedade agro-letrada. 1 conveniente considerar as suas consequéncias em conjunto, esquematizando-as da forma mostrada na figura 1. = camadas _estratificadas, horizontalmente _segre gadas, de classes gover- nantes militares, admi- nistrativas, clericais e por vexes comerciais comunidades de produ- L. tores agricolas separadas fateralmente oo Hl 1 1 i 1 1 1 1 i i 1 1 1 1 1 i 1 1 i 1 1 i 1 1 t 1 1 rr or Figura 1 Forma geral da estrutura social das sociedades agrdvias Na sociedade agrorletrada tipica, a classe govemante é constitufda por uma pequena minoria da populagao rigida- mente separada da grande maioria dos produtores agricolas directos, isto é, os camponeses. De uma forma geral, a sua ideologia, em vez de minimizar, acentua a desigualdade de classes ¢ 0 grau de distanciagio do esttato governante, Este, 23 Por sua vez, pode ser subdividido num mimero de camadas mais especializadas: guerreiros, membros do clero e da elite letrada, administradotes, burgueses. Alguinas destas camadas (por exemplo, 0 clero cristo) podem ser no hereditatias voltar a set seleccionadas de novo a cada gerago, embora 0 recrutamento possa ser fortemente predeterminado pelos outros estratos hereditirios. No entanto, o aspecto mais impor- lante consiste no facto de — tanto para o estrato governante, no seu todo, como para os varios estratos que o compéem — ser daca maior énfase a diferenga cultural do que 4 homo- geneidade. Quanto mais diferenciados forem os varios estra- ‘os, sob todos os aspectos, menor ser a fricgao e a ambigui- dade entre eles. Todo o sistema favorece as linhas horizontais da diviséo cultural, podendo inventé-tas e reforgd-las quando estas néo existam. A fim de reforgar a distingéo e dotd-la de autoridade e estabilidade, atribuem-se diferengas genéticas e culturais aquilo que, na tealidade, néo passa de um estrato distinguido pela fungao, Por exemplo, na Tunisia do prineipio do século XIX, 0 estrato governante considerava-se tutco, em- bora fosse incapaz de falar a respectiva lingua e, de facto, Possuisse uma ascendéncia mista, reforgada por elementos recrutados nas camadas mais baixas. Abaixo da minotia estratificada horizontalmente, que se encontra no topo, existe outro mundo, 0 das pequenas comunidades, separadas lateralmente, de membros leigos da sociedade, Mais uma vez, a distingo cultural é aqui bastante marcada, embora as razdes sejam muito diferentes, As Pequenas comunidades de camponeses vivem, geralmente, viradas para si prdprias, presas a localidade pela necessidade econémica, quando nao por prescrigao politica. Ainda que a populagéo de uma determinada area parta de uma mesma base linguistica, o que muitas vezes néo acontece, uma espécie de deriva cultural cedo dé origem a diferengas de dialecto ou Outras. Neste nivel social, ninguém, ou quase ninguém, est interessado na promogdo da homogeneidade cultural. © Fs- 24 tudo. preacnpa-se com a cobranga de imposios, com a manutengio da paz.e pouco mais, no demonstrando qual ker interesse em desenvolver a comunicagao lateral entre as varia jades subditas. oe ade que elie Jetada pode ter alg intersse na imposigao de certas normas culturais comuns. Algumas a letras demonstram desprezo ou indiferenga em rlagao ds priticas populares, enquanto outras, Interessades i monopolizar 0 acesso ao sagrade, 3 slvagio,@ terapi, et combatem e prociram energicamente deseeredita a cultura popular © os xamis independentes, de origem popula, qe nea proliferam. Contudo, de acordo om as condigoesgeais due prevalecem nas sociedades agroetradas, esas elites nunca podem, efectivamente, ser bem sucedidas pel as Hite razio de que tnis socledades nio possuem meies para formar a alfabetizagao quase universal e para incorporar as grandes massas popiacionais moma cultura eruit,concretizando dessa form os ideas da elite letra, O main que esa pode conseguir €assegurar que o seu ideal sje iteriorizado como ‘uma norma valida, embora impraticavel. Essa norma . a ser respeitads, ou mesmo venetada, ov talvez mesmo ambi- cionada em periddicas explosdes de entusiasmo, mas e tempos notmais é melhor reconhecida através da transgressh rvancia. 7 agto-lettada seja este: quase tudo vai contra a definigio das unidades politias em termes de fontera eltrais Por outras palavras, se 0 nacionalismo tivesse Sido inventado neste periodo, as perspectivas de aceitagio pera teriam sido realmente mais reduzidas. Poderiamos col nd o problema da seguinte forma: dos dois pareirs poencials que a teoria nacionalista destins in ao outro, @ cult ¢ poder, nenhum tem grande inclinagdo pelo outro nas condi gbes prevalecentes na era agriria. Analisemo-los separada mente. 25 Cultura Entre os estratos mais elevados da sociedade agro-letrada é cerlamente vantajoso realgar, acentuar ¢ sublinhar as carac- teristicas diacriticas, de diferenciagio e de monopélio dos grupos privilegiados. A tendéncia para se distinguir a lin- guagem litirgica da vernacular é muito forte, como se a al- fabetizagao nao criasse, por si propria, uma barreira suficiente entre 0 clero e os leigos; como se o abismo existent entre eles tivesse de ser aprofindado, fezendo com que a lingua fasse nao s6 registada numa esctita inacessivel, mas também incom- preensivel quando fatada Dado que promove os interesses dos privilegiados e dos detentores do poder, a ctiaglo de clivagens culturais horlzon- tais & nao s6 atractiva, como, na verdade, fécil, Gragas estabilidade relativa destas sociedades, podem ser criadas e mantidas divisdes profundas da populagio em estamentos castas ou ordens sem criar tenses insuportaveis. Pelo con- (ratio, a exteriorizagao, absolutizagio e acentua < gualdades fazem com que estas sejam reforgadas e aceites, dotando: as de uma auréola de previsibilidade, continuidade e ‘haturalidade, Aquilo que estd inscrito na natureza das coisas © & perene nio constitu, por consequéncia um insulto pessoal e individual, nem é fisicamente intolervel. Ao invés disso, a manutengao destas barreiras sociais, que separam niveis desiguais, & dificilmente suportével numa sociedade inerentemente mével e instavel. As poderosas cor- rentes da mobilidade estio sempre a enfraquecé-Ins. Contra- riamente ds expectativas criades pelo marxismo, éa sociedade pré-industtial que aprecia as diferengas horizontais, enquanto a sociedade industrial reforga mais as fronteiras entre as nagdes do que entre as classes. Embora de maneira diferente, o mesmo tem tendéncia a acontecer mais abaixo na escala social, Também af pode set grande a’preocupagio com as diferencas horizontais, muitas 26 vezes subtis, mas localmente importantes. Todavia, mesmo quando 0 grupo local 6, internamente, mais on menos ho- mogéneo, é pouco provavel que relacione a sua prépria cultura idiossineritica com qualquer tipo de principio politico e que pense em termos de uma legitimidade politica definida noma perspectiva referida 4 cultura local. Por uma série de raz6es Sbvias, um tipo de consideragdes deste género seria, nestas ircunsténcias, pouco natural e poderia, inclusivamente, pare- ‘er absurdo mesmo aos interessados a quem porventura fosse apresentado. A. cultura local & quase invisivel, pols a ‘comunidade, fechada sobre si, tem tendéncia para comunicar tem termos cujo significado s6 pode ser compreendido dentro do. seu contexto, contrariamente a0 escolasticismo dos esctibas, relativamente livre do contexto. Contudo, o dialecto de aldeia (estenografia ou «cddigo festrito») nao apresenta quaisquer pretensées politicas ow normativas, muito pelo Gontrario, No méxiano, apenas identifica o lugarejo de origem cou alguém que abra a boca no mercado local. Resumindo, no mundo a que estamos a referir-nos, as culturas multiplicam-se, mas as suas condigdes nfo incen- tivam, geralmente, aquilo que pode ser designado por «in perialismos culturaisy, ou seja, os esforgos de qualquer cultura para dominar ot expandir-se de forma a preencher uma inidade politica. A cultura tende a ser marcada, quer horizon- talmente (pela casta social), quet verticalmente, para definir comunidades locais muito pequenas. Os factores que determi- nam as fronteiras politicas sio totalmente diferentes dos que determinam os limites culturais, Por vezes, as clerezias esforgam-se por expandir a zona de uma cultura, ou melhor, a fé que para ela codificaram; por vezes, os Estados langam- “se em cruzadas e agressées legitimadas pela fé. No entanto, astas nao sfio as condigdes normais e generalizadas na socie- dade agraria, ff importante acrescentar que, neste mundo, as culturas proliferam de forma muito complexa. Em muitos easos, no 2 ssa oT é ba determinado individuo pode ser adstrito ao seu «pasado cultural». Por exemplo, és Himalaia pode relacionar-se com os sacerdotes, nonges oo aims de varias rligides, em situagdes distintas ¢ em dife- rentes épocas do ano; a sua casta, o seu cl e a sua lingua podem ligi-lo a varias unidades. As pessoas que falam deter mina lingua tribal podem, por exemplo, nao ser considera- das membros dessa tribo se, por acaso, pertencerem & cast ocupacional errada. O modo de vida, a ocupagao, a lingua, Fi prética de rituais, podem nao ser concordantes, A. sobre- vivéncia econdmica e politica de uma familia pode depender, precisamente, da manipulagio habil e da conservagao destas ambiguidades, mantendo abertas essas opgdes ¢ relagdes, Os seus elementos podem nao demonstrar o minimo interesse on qualquer gosto por uma autocaracterizagio clara e imperativa, como a que est actualmente associada a uma suposta nagio, aspirando & homogencidade interna e a autonomia externa, Num meio tradicional, o ideal de uma identidade cultural basica dominante faz pouco sentido. No Nepal, os campo- neses da montanha tém, frequentemente, lagos com diferentes tituais religiosos e pensam ein termos de casta, cli on aldeia mas nao de naga), de acordo com as circunstancias. Pouco importa que a homogeneidade seja ou néo exaltada, Isso nao encontrard grande ressonancia, oO Estado na sociedade agréria Nestas citcunstancias, hé poucos incentives ou opor- tunidades para que as culturas aspirem a uma homogeneidade monocromiética ¢ a difusao e dominagao politicas, pelas quais eventualmente Intardo mais tarde, com o advento da era do nacfonalismo, Enietant, como é qv este problema &enea- fade do ponte de vist do Eto 0, de forma etl, d ui 28 ‘Asunidades politicas da era agréria variam imenso em tipo em dimensio, No entanto, podemos dividi-las, grosso modo, fem dois tipos ou, talvez, em dois pdlos extremos: comunida- des locais auténomas e grandes impérios. Por um lado, temos cidades-Estados, segmentos tribais, comunidades de campo- neses, etc., cuidando dos seus préprios problemas, com um rau de parlicipago politica bastante elevado (adaptando @ itil frase de S, Andieski) e com uma desigualdade moderada; por outro lado, grandes territérios dominados através da concentragao de forgas num ponto espectfico, Obviamente, uma forma politica bastante tfpica é aquela que conjuga estes dois prinefpios: uma autoridade central dominante coexistindo com unidades locais semiauténomas ‘A questiio que nos preocupa ¢ saber se, io mundo a que estamos a referir-nos, englobando estes tipos de unidades, existem forgas promovendo essa fusio da cultura ¢ do Estado que constitui a esséncia do nacionalismo. A resposta deve ser ndo. O funcionamento das comunidades locais depende, em grande medida, do contaeto pessoal, ndo podendo aumentar radicalmente a sta dimensio sem se transformarem de forma itreconhectvel. Daf que estas conmnidades participativas rara mente esgotem a cultura de que fazem partes podem ter costi- mes e prontincia locais, mas estes tendem a set apenas varia gées de uma cultura intercomunicativa mais vasta, da qual fazem parte muitas outras comunidades semelhantes. Por exemplo, as cidades-Estados raramente possuem lingua pré- pria. Sem divida, os antigos gregos eram bastante tipicos neste aspecto. Enquanto tiveram uma forte consciéncia da propria cultura comum e do contraste entre esta e a dos bir- baros (alids, com um grau de distingao cultural horizontal bas~ tante baixo entre os Helenos), este sentido de unidade teve pouea expressio politica, nio s6 em termos de ambigao, como de resultados. No entanto, quando se estabeleceu um Estado pan-helenista sob a lideranga macedénica, este transformon-se rapidamente em império, ultrapassando em muito as fronteiras 29 Fa helentsme. Na Grécia antiga, embora os Gregos fossem stante «chanvinistas» & sua maneira, nao parece ter existido nenhum lema semelhante ao de Ein Rei Volk, Ei d n Reich, Ein Volk, E Os tipos de governantes agrdrios _ A sociedade agro-letrada corresponde um tipo existente hi, aproximadamente, cinco milénios e que, apesar da diver- sidade de formas, tem algumas caracteristicas bisicas eomuns. Na sua grande maioria, os cidadios sio produtores agricolas, vivendo em comunidades fechadas, dominados por uma minoria, cujos principais atributos sf0 a organizagiio da vio- Iencia, a mamutengao da ordem e o controle do saber oficial da sociedade, que a certa altura é objecto de esctitos sagrados, Podemos incluir esta classe ditigente de guerreiros e escribas numa tipologia tosca de acordo com o seguinte conjunto de ‘do com o ti 8 iju 1) Centralizada/descentralizada; 2) Castrados/reprodutores; <3) Fechada/aberta; 4) Mistafespecializada, b Tanto a elite letrada como a classe militar podem ser centralizadas ou descentralizadas. A igreja catélica medieval é um excelente exemplo de uina elite centralizada de forma eficaz que consegue dominar o ambiente moral de uma civi- oe Os ulemas do io conseguiram os mesmos resulta- los, mas com a auséncia quase foal de qualquer organizagao centalivada ou hiersquia inte, constitindo tericamette a classe aberta, Os bramanes representam ao mesmo tempo uma elite letrada e um grupo de parentesco fechado. A buro- cracia chinesa assumia, simullaneamente, as fungdes esctibas ¢ dos admit : ae 30 2) Do ponto de vista do Estado central, 0 maior perigo surge quando, como Plato advertin hé muito tempo, os deten- tores de cargos militares e religiosos adquirem ou conservam Tigagdes com grupos de parentesco especificos, cujos interes- ses tendem entio a desviar os funcionarios do estrito cumpri- mento do seu dever e eujo apoio é susceplivel, ao mesmo tempo, de thes dar um poder excessivo. [As estratégias adoptadas para contratiar este perigo, muito difundido, variam nos pormenores, mas, em geral, podem ser desctitas como castragdo. O que se pretende é quebrar o elo de parentesco, privando o jovem guerreiro, 0 burocrala on 0 letrado de ascendéncia ou descendéncia, on de ambas. As técnicas wtilizadas incluiam os eunuces, fisicamente impossi- bilitados de obterem descendéncia, os padres, cuja posigao privilegiada estava condicionada pelo celibato, impedindo-os, assim, de reconhecerem a descendéncia, os estrangeiros, cujos lagos de parentesco se podiam suport seguramente distantes, ‘ou ainda membros de diferentes grupos excluidos ou desti- tuidos de diteitos, cuja seguranga dependia do Bstado, que os empregava. Ontra técnica utilizada era o recurso a «esctavos», homens que, mesmo quando de facto poderosos e privilegia~ dos, teoticamente, néo tinham, no entanto, quaisquer outros lagos legitimos. Pertencendo ao Estado, a propriedade e fun- gio do escravo poderiam reverter para o Estado a qualquer momento, mesmo sem uma simulagio do direito a um pro~ cesso cortespondente e sem criarem, assim, quaisquer direitos por parte do grupo local ou de parentesco do funcionéio destituido. Os euittucos, em sentido esttito, foram frequentemente wil zados!. Os padtes celibatérios eram, obviamente, dominantes na ctistandade. As burocracias militares de escravos eram cotrentes nos Estados islamicos apés o declinio do califado. Os estrangeiros ocupavam muitas vezes postos de destaque © Keith Hopkins, Conquerors and Slaves, Cambridge, 1978, cap. 4 a nas guardas palacianas e nos departamentos financeitos dos impérios A castracao nao era, porém, universal. Os butocratas chi- "ram reeruitados na «pequena nobreza», e a classe feudal europeia cedo conseguiu sobrepor o principio hereditétio a atribui¢ao de terra por servigos prestados. Em contraste com 08 castrados, as elites cujos membros eram oficialmente auto- rizados a reproduzit-se e a conservar os cargos para os seus descendentes podem ser apelidadas de reprodutoras. 3) Ha vantagens em as elites letradas, as burocracias e as classes militares serem abertas, mas também as hd em serem Fechadas, O clero europen e a burocracia chinesa eram, teori- camente, abertos (assiin como os uilemas mugulmanos), em- bora fossem predominantemente recrutados entre uma camada social restrita, No hinduismo, os sacerdotes e os chefes milita- tes formam grupos fechados e separados, e essa impenetrabi dade miitua (tedrica) pode ser essencial para o fancionamento do sistema. Sao ambos fechados e niio se misturam. No islio (excluindo 0 perfodo dos mamelucos e dos jantzaros), nem os membros da elite letrada nem os militares sio casttados. 4) Por tiltimo, a classe governante pode unificar as fungdes militares e religiosas (e possivelmente outras) ou separi-las cuidadosamente em grupos especializados. O hinduismo dividiu-as oficialmente. O feudalismo europeu unia-as, por vezes, nas ordens militares. Seria curioso acompanhar no pormenor histérico concreto as varias combinagées possiveis que resultam da escolha entre estas altemnativas. Contudo, o que nos interessa agora & algo que todas as alternativas tendem a ter em comum. Os deten- tores do poder encontram-se presos numa espécie de campo de tenso entre conmnidades locais, que em escala sio subnacionais, e uma ordem horizontal ou casta, que é mais do que nacional. So leais a um estrato que estd muito mais 32 do em distinguir-se dos que lhe estao abaixo do que em transmitir-thes a sna propria cultura e que expande muitas vezes os seus proprios limites para além das fronteiras da sociedade local, apresentando-se como transpolitico ¢ em competigao com 0 Estado. So poucos os casos (camo no da burocracia chinesa) de coincidéncia espacial com um Estado (e, neste caso, deu origem a um certo tipo de nacionalismo). O tinico estrato do qual se pode dizer, de algum modo, que tem uma politica cultural é a elite letrada. Por vezes, como acontece com os brmanes, a sua politica é, de facto, a de ctiar ma complementaridade e uma interdependéncia mitua entre si e as ontras ordens. Procura reforgar a sta propria posicao, tornando-se indispensivel. Os papéis complementares que atribui a si propria e aos leigos, longe de exigirem a propria universalizagio, proibem-na formalmente. Apesar de pro- clamar a autoridade monopolista sobre os rituais, ndo deseja ver-se emulada. Ainda que a provoque, nao demonstra muito interesse pela mais sincera expressio de lisonja: a imitagio. Noutros locais, como no isliio, a elite letrada assume de vez em quando, com a devida seriedade, obrigagdes missiondrias para com os irmaos, que se mostram habitualmente mais fracos e relapsos em matéria de fé. Nao hd aqui qualquer regra que diga que uns devem rezar, outros lutar e outros trabalhar e que cada uma das ordens nao deve interferir nos dominios das outras, Conforme as prescrigdes concretas da f8, qualquer pessoa pode praticar estas trés actividades se para tanto tiver forcas © capacidades, (Este ignalitarismo latente & muito importante para a bem sucedida adaptagao do islio ao mundo moderno,) Assim, néo ha qualquer oposigao teoldgica ou formal a uma politica cultural eclesidstica, missionatia & outrance. Na pratica existe ainda um problema: de facto, se todos se dedicassem sistematicamente aos estudos teoldgico- -legais, quem tomaria conta das ovelhas, das cabras e dos camelos? Em certas regides do Sara, segundo acordo entre as tribos, existem tribos inteiras designadas por povo do livro. interes 33 ) ) y Contudo, na pratica, isso significa apenas que o pessoal reli gioso é normalmente escolhido de entre eles, o que nao sig- nifica que todos se dediquem exclusivamente 4 réligiio, pois amaioria continua a trabalhar e a guerrear. As tinicas comuni- dades em que um niimero verdadeiramente significative de adultos vardes se dedicou ao estudo da lei foram algumas comunidades judaicas na Europa oriental, No entanto, este era uum caso extremo e especial; de qualquer forma, eram sub- comunidades que faziam parte de uma sociedade mais vasta e complexa. Deste modo, na sociedade agro-letrada, por razdes muito profundas, poderosas e insuperaveis, as elites letradas conseguem dominar e absorver devidamente toda a sociedade. ‘Umas vezes sio as proprias regras que 0 proibem; outras sao os obsticulos externos que o tornam impossivel, mas estes Ailtimos constituitiam, de qualquer forma, um impedimento efectivo e suficiente, mesmo que as regras fossem favoraveis, a tal aspiragao. No sistema agrdrio, a tentativa de impor a todos os niveis da sociedade uma elite letrada universalizada e uma cultura homogeneizada, com normas decididas centralmente, refor- gada pela escrita, seria um sonho vaio. Mesmo que algumas doutrinas teolégicas tenham esse objectivo, este nao pode ser, e nao é, realizado. Nao pode ser concretizado muito simples- mente porque Ihe faltamn os recursos. Que acontece, porém, se um dia a elite letrada se univer- salizar e se tornar coextensiva a toda a sociedade, nao pelos seus préptios meios, nem por qualquer tipo de jihad interna, milagrosa © herdica, mas sim através de uma forga social muito mais eficaz e muito mais profundamente enraizada, ou seja, através de uma transformagio total da natureza da divisio do trabalho e dos processos produtivos e cognitivos? Acresposta a esta questio e a descrigio pormenorizada da natureza dessa transformagiio sao essenciais para a com- preensio-do nacionalismo. Repare-se também que no sistema agririo sé alguns es- tratos da elite de certas sociedades eram sistematicamente «casttados» por qualquer das técnicas especificas atris descri- tas, Mesmo nesse caso, é dificil, como Plato previu, impor a castragao indefinidamente. Os guardas, sejam mamelucos on janizaros, os burocratas ou os prebendados, tornam-se corruptos, adquirem interesses, vinculos e continuidade, ou so seduzidos pela busca da riqueza e da fama e pelo engodo da autoperpettiagao, O homem agtario parece ser feito de um metal corruptivel O homem industrial, seu sucessor, parece ser feito de um metal mais puro, embora nao totalmente, Que acontece quando, acidentalmente, surge um sistema social onde a elite letrada se torna finalmente universal, quando a instrucio nao constitui uma especializagio, mas sim uma pré-condigio de todas as outras especializagées, ¢ quando quase todas as profissdes deixam de ser hereditérias? Que acontece quando fa castrago se tora, simultaneamente, quase universal e muito eficaz, quando todo o homem comum é um mameluco de Robe, colocando as obtigagdes da profissio acima das exi- géncias do parentesco? Numa época de universalizagao da elite letrada e da condigio de mameluco, a relagio entre a cultura e a politica* altera-se radicalmente, © conjunto da sociedade é invadido por uma cultura erudita**, que a define e que necessita de ser apoiada pela organizagao politica. E este © segredo do nacionalismo. * Polity: forma de organizagio politica da sociedade. (N. do R) 4 High culure: «cultura enaditan, ov calla culturan, no original Na tradgho ‘optouse pelo conceito de cultura erudiia, em ver de cultura avangada ow alta cura, (N. do R) 35 3. A sociedade industrial ‘A origem da sociedade industrial continua a set unn tema de discussio académica e parece-tne bastante provivel que continue a sé-lo, Numa sociedacle de grandes dimensdes, diversificada e intrincada, deu-se uma transformagiio extre-y si mamente complexa. Trata-se de um acontecimento ikon * nenhuma industrializagio imitativa pode ser considerada) Car ‘como um acontecitnento do mesmo género da original, sim-s) ht plesmente pelo facto de todas as outras serem realmente imi." tativas. Todas foram levadas a cabo a luz do conhecimento j estabelecido de que poderiam ser realizadas ¢ de que tinham algumas vantagens evidentes e dbvias (emborao ideal copiado fosse, obviamente, interpretado de formas bastante diversas). |. ‘Assim, munca poderemos repetir 0 acontecimento original, pls que foi realizado por homens que nao sabiam o que estavamiy om a fazer, inconsciéncia essa que fazia parle da verdadeira oy esséncia do acontecimento. Nao podemos fazé-lo por uma b. série de boas razes:[o simples facto de ser repetido toma-of# diferente do acontecimiento original vio podemos, ce qual- quer forma, reproduzir todos os factos do despontar da Europa ocidetital moderna;ye as experiéncias desta dimensio, com o we 44 Como Adam Smith tanto insistiu, a produtividade elevada exige uma divisio do trabalho complexa ¢ sofisticada. A produtividade em crescimento continuo nao exige apenas que = 6 esta divisio seja complexa, mas também que mude continua.) mente e, muitas vezes, rapidamente. Esta mudanga rapida ev!" continta do prdprio sistema de papéis econémicos, bem como da ocupagio de lugares dentro desse sistema, tem algumas consequéncias imediatas e profundamente importantes. Geral- mente, os homens que os ocupam néo podem instalar-se neles para sempre e s6 ratamente podem permanecer neles, por assim dizer, ao longo de varias geragdes. Os cargos raramente sho transmitidos (por estas e por outras razées) de pai para filho. Embora tivesse atribuido, erradamente, estabilidade de classe social aos que se dedicam a pastoricia, confundindo os mitos genealdgicos com a realidade, Adam Smith chamou a, atengiio para a precariedade das fortunas burguesas. aay oe A consequéncia imediata deste novo.tipo.de-mobilidade é um certo tipo de igualitarismo. A sociedade moderna nao mével pelo facto de ser igualitdria, mas sim 0 contrétio. Mais ainda, tem de ser mével, quer queira, quer néo, pois tal ¢| exigido para satisfazer a sua tertivel e dominadora sede. de crescimento econdinico. vt Uma sociedade condenada a troca permanente de lugares|jj: nao pode erguer grandes barreiras de posigio, casta ou esta-%) if. tuto.entre os varios conjuntos de. cargos. Isto impediria a mobilidade e, perante a realidade desta, conduziria, com certeza, a tensdes insuportéveis, Os homens podem tolerar terriveis designaldades se estas forem estiveis e consagradas pelo costume, Todavia, numa. sociedade mével e_agitada, 0 costume no tem tempo para santificar nada, Algo que rola permanentemente como um seixo nfo conquista qualquer aura e uma populagio mével nfo permite que tal aura seja atribuida A sua estratificagio, A estratificagio e a desigualdade existem realmente e, por vezes, de uma forma radical. Contudo, pos- suem uma caracteristica muda e discreta, atenuada por uma 45 espécie de graduagao das diferencas de riqueza e de estatuto, uma auséneia da distancia social e uma convergéncia de esti- los de vida por uma espécie de qualidade estatistica ou proba- billstica das diferengas (contrariamente as diferengas rigida absolutas e abissais, caracterlsticas da sociedade agriria), ¢ Pela iluséo ou realidade da mobilidade social : “Esia ilusio é esseiicial“e iio. pode persistir sem,. pelo Menos, uma certa dose de realidade. Aquilo que varia e constitu objecto de discussio académica é a quantidade de> realidade que se encontra nesta aparéncia de mobilidade} %% ascendente e descendente, mas nio existe qualquer divida de (h) que possui uma boa dose de verdade: quando o préprio sis- tema de papéis se altera muito, aqueles que ocupam as posiges dentro dele nao podem, como alguns socidlogos esquerdistas pretendem, estar presos a um sistema de estrai ficagio rigido. Comparada com-a.sociedade-agréria, esta é mével e igualitéria, vanaf NTT ‘Mas podetiios actescentar algo mais acerca da igualdade e da_mobilidade engendradas pela economia industrializada e distintamente orientada pata o crescimento. Hé algumas cayacteristicas adicionais, mais subtis, da nova divisao do tra- , bailho que ganham em ser abordadas entrando em conta com, a diferenga entre a diviséo do trabalho numa sociedade indus-¢, 5” trial e numa sociedade agratia bastante desenvolvida e com- >." plexa..A diferenca dbvia entre as duas & que uma é maisA¥¥\) estivel ¢ a outta é mais mével. De facto, uma delas deseja, °” geralmente, ser mais estavel, enquanto a outra quer ser mével, uma delas pretende maior estabilidade do que a realidade social Ihe permite, enquanto a outra exige muitas vezes maior mobilidade, a fim de fingir satisfazer 0 seu ideal igualitario, do que the & realmente permitido pelos constrangimentos reais. Contudo, embora ambos os sistemas tenham tendéncia Para exagerar as caracter! i ortante ee rat | rigido, o outro é indyel. No entanto, se é esta a diferenga dbvia, quais sio as caracteristicas mais sublis que a acompanham? , ‘Comparemos pormenorizadamente a divisio do trabalho.’ numa sociedade agréria bastante desenvolvida com a de win sociedade industrial vulgar. Por exemplo, a todas as fungdes esti agora associado, pelo menos, um tipo de especialista. Os mecénicos de automéveis estio a especializar-se na marca dos carros que reparam. A sociedade industrial tera uma popu- lago maior e, provavelmente, pelos meios normais de con- tagem, um niimero maior de ocupagées diferentes. Neste sentido, a divisto do trabalho foi Jevada muito mais longe na, sociedade industrial. eee No entanto, segundo alguns critérios, pode muito bem. , acontecer que uma sociedade agréria (plenamente desen- volvida) tenha realmente uma divisao do trabalho mais com, plexa, As especializagdes estio mais afastadas umas das’? y+ outras do que as de uma sociedade industrial, as quais so," ” provavelmente, mais numerosas, mas tendem para aquilo que apenas pode ser deserito como uma miitua afinidade de estilo. Algumas especializagoes da sociedade agrétia madura serio extremas: sero 0 resultado da experiéncia de uma vida inteita de freino exchusivo e prolongado, que pode ter comegado no inicio da juventude e exigin uma rentincia quase total a outras preocupagoes. Nestas sociedades, Wlados da_produgio artesanal e artistica so extremamente intensivos, em lermos de trabalho ¢ especializagao, atingindo muitas vezes niveis de complexidade e perfeigao nunca igualados por nada posterior- mente alcangado pelas sociedades industriais, cujas artes ¢ decoragdes domésticas, gastronomia, utensilios e adornos so, notoriamente de ma qualidade ‘A complexidade escoldstica e ritual demonstrada pelos eruditos de uma sociedade agraria desenvolvida, apesar da sua aridez e esterilidade, poe muitas vezes & prova os verdadeiros limites da mente humana. Resumindo, embora os campo- neses, que constituem a grande maioria da sociedade agr sejam mais ou menos intercambidveis quando se trata do desempenho das tarefas sociais que Ihes sao normalmente destinadas, a importante minoria de especialistas que existem fhe gape de reproduedo. Aus! vate Be et Genética social ‘A reprodugao de individuos e grupos sociais pode set Ievada a cabo através do ensino um-a-um, ou pela experiéncia, ‘ou através do chamado método centralizado, Existem, com “Relé Dor, ie Diploma Disease Los 196. Pana atgem ds (oe ete tents min fear, nck Gol, cae ona Sec Cage, 1988 (0 dR) 51 certeza, muitas formas mistas e intermédias de desempenhar essa fungao; no entanto, é preferivel adiar esta preocupagio para depois da discussio destas duas possibilidades radicais, por assim dizer, polates. yar ans O método_um-a-um,ou_pela_experiéneia, é aplicado quando uma familia, uma unidade de parentesco, aldeia, segmento tribal ou outra unidade igualmente pequena acolhem as criangas no seu seio e as transformam em adultos relativa- mente semelhantes aos da geragao anterior. Este facto di-se, finalmente, depois de terem sido admitidas e obrigadas a par- tilhar a vida da comunidade e de terem sido submetidas a mais alguns métodos especificos, como a formagio, priticas, nor- mas, ritos de passagemn, etc. Desta forma, a sociedade ¢ a.suia cultura so perpetuadas. ai © método de reprodugio centralizado & aquele_em, que” uma agéncia educativa. ou_de formagio,. que difere da comunidade local, complementa significativamente (ou em casos extremos substitni por completo) 0 método dessa comunidade, responsabilizando-se pela preparacao dos jovens em causa e entregando-os, por fim, 4 sociedade mais vasta pata que desempenhem ai as suas fungdes uma vez terminado © proceso de treino. Uma versio fadical deste sistema atingin um grau elevado de perfeigao e eficacia no Império Otomano. Sob os regimes janizaro e devshirme eram obti- dos rapazes jovens sob a forma de impostos obrigatérios as populagdes conquistadas ou adquiridos como escravos. Estes eram sistematicamente preparados para a guerra e para cargos administrativos e, de preferéncia, totalmente desma- mados e afastados das familias e comunidades de origem. A classe alta britinica, com a sua confianga em. colégios internos desde as primeiras idades, praticava, e em parte continua a praticar, uma versdo menos completa deste sistema. Por vezes, podem mesmo ser encontradas variantes deste sistema em sociedades agrdrias pré-alfabetizadas e relativa- mente simples, 52 As sociedades constituidas por subcomunidades podem ser divididas entre aquelas em que estas tiltimas podem, se ne- cessitio, reproduzir-se a si proprias sem a ajuda do resto da sociedade e aquelas em que a complementaridade e a interde- pendéncia reefprocas sao tais que néo podem fazé-lo, De urna maneira geral, os segmentos ¢ as comunidades rurais da sociedade agratia podem auto-reproduzir-se_independente- mente, O conceito antropoldgico de uma Sociedade segmen- tada engloba precisamente esta ideia: 0 «segmenton representa apenas uma variante menor da sociedade mais vasta, da qual faz parte, podendo fazer em menor escala tudo o que € feito pela unidade maior. ‘Além disso, devemos_distinguir entre auto-suficiéncia econémica ¢ educativa, no. sentido. de capacidade de auto- -reprodugio. Sem di ida, os estratos governantes de uma sociedade agraria dependem do excedente extraido do resto da sociedade, mas podem, apesar disso, ser bastante auto-sufi- cientes do ponto de vista da edueagao. A ordem social pode dar origem a outros tipos de falta de auto-suficiéncia, como os que tornam as comunidades dependentes de especialistas em rituais extemnos ou da concessio de noivas vindas de outras comunidades. O que nos interessa aqui & a eapacidade educa cional, ¢ no econémica, da auto-reprodugao do grupo. Exis- tem numerosas formas complexas, mistas e intermédias de reprodugio de grupos. Quando os senhores feudais enviam os filhos para a corte local, meio-aprendizes e meio-teféns, quando os mestres aceitan aprendizes que nao sio seus filhos, etc., estamos, evidentemente, na presenga de (ais sistemas mistos. —<.), De um modo geral, a situagiio da sociedade agréria parece “seguinte: a grande maioria da populagao faz parte de unidades auto-reprodutoras, que,, na. yerdade, educam os jovens para fazerem o trabalho, sem dificuldades, como parte integranie da forma como lidam coma vida, sem dependerem muito, ou mesmo nada, de qualquer perito em educagao. 33 Apenas uma minoria da populagio recebe formagiio especiali- zada. Faro parte desta sociedade um ou mais estratos de edu- cadores a tempo inteiro, os quais se reproduzirao, admitindo aptendizes e prestando servigos a tempo parcial de tipo tera- péutico, ritual, admoestagao, secretariado, etc., para o testo da comunidade, Pode ser itil distinguir entre o treino imitativo e intracomunitétio, dando-Ihe 0 nome de aculturagio, e 0 exo- treino (por analogia com exogamia) especializado, que pro- cura especialistas fora da comunidade e designa essa educagi como adequada. fea MANN _ Um esitato muito importante na sociedade ‘iprocletrada sio os letrados*, aqueles que sabem let e podem difundir a inistrugio e que, desta forma, constituem uma das classes de especialistas nessa sociedade. Por vezes, podem formar uma associagao ou ser integrados numa organizagio. Como a escrita, regra geral, desde cedo ultrapassa a utilizagao mera- mente técnica na elaboragio de arquivos e adquire um signi- ficado moral e teolégico, os letrados sio, quase sempre, muito mais do que simples técnicos da escrita. Q que estd em causa nfo & apenas o facto de eserever, mas também que estd escrito, pois na sociedade agréria a proporgao do sagrado em telago ao profano, no reino da escrita, tem) tendénoia a pesar mais a favor do primeito. Nestas citcuns-"p tanclas, aqueles que sabem ler e escrever so especialistas, wf mas sio mais do que isso: fazem parte da sociedade e, ao\""” mesmo tempo, pretendem ser a voz da sua totalidade. A'sua especializagao diz algo, algo de especial, talvez mais do que os escultores de madeira e outros estilistas, e muito mais do que os latociros. * No original, aclerks»; em francés, dirse-ia ueleresy 30 por «clérigos», visto estes terem em portugh nota és uma conctagdo religiosa ime- data, Poder-se-ia seguir o exemplo do tradutor de La trahison des elercs de Julien Benda, que optou por A traigdo dos intelecinais, Preferimos, todavia, eletrados» 5 conolagées inederas do termno wintelectuals, (N. do R) nas niio pode trduzir- 54 Spy ORLY ~” Os especialistas sio muitas vezes.temidos.ou desprezados neste tipo de sociedades. Os letrados podem ser vislos de forma ambivalente, mas o seu estatuto, em geral, é bastante elevado. So especialistas e ao mesmo tempo fazem parte da sociedade, mas pretendem também, como dissemos, ser a voz da totalidade. Encontram-se numa situago intrinsecamente paradoxal. Os peritos em Iégica ocupam-se, no sen arsenal de quebra-cabegas, supostamente profundos e importantes, do patadoxo do barbeiro: numa aldeia podem dividir-se todos os homens entre os que se barbeiam a si proprios e aqueles que fazem a barba no barbeiro. E quanto ao proprio barbeiro? Fara parte do primeiro ou do segundo grupo? Deixemos esta uestio para os peritos em légica. A verdade, porém, & que of, Ietrados estdo, de cesta forma, na situagio do barbeiro. Repro- duzem o préprio grémio, formando os novos candidatos, mas também dao um pouco de formagao ou prestam servigos a0 resto da sociedade. Serd que se barbeiam a si préprios ou nao? |Bsta tensio € os respectivos problemas (que nfo sto apenas /16gicos) acompanham-nos € ndo sdo faceis de resolver. y,, . 08 Finalmente, a sociedade moderna resolve este quebra-Hie f -eabegas transformando fodos em «lettados», fazendo desta icialmente universal uma classe realmente univer- ns por ela. A educagio vinda do exterior (exo-educagdo) transyip4 y, my forma-se, assim, na norma universal, de modo, que, ningué do ponto de vista cultural, faz a barba a si proprio. A so- ciédade iidderna é aquela em que qualquer subcomunidade, abaixo da dimensio daquela que é capaz de manter um sis- tema educacional independente, j4 nfo pode auto-reproduzir, -se. A propria reprodugio de individuos totalmente sociali zados passa a fazer parle da divisio do trabalho, deixando a sub-comunidades de desempenhar essa tarefa. Sao assim as sociedades modernas desenvolvidas. Mas por' que é que tém de ser assim? Que destino as impele nesta di- recgio? Para repetir a questio anterior, por que é que o ideal, 35 hi da alfabetizagao e educagio universal é considerado com esta seriedade pouco habitual e fora do comum? Parte da resposta foi dada e est relacionada com a énfase attibuida a mobili- dade ocupacional, a uma divisio do trabalho instével e em amudanga répida, Uma sociedade em que todo o sistema polf- tico e, de facto, a cosmologia e a ordem moral estio baseados, em Ultima andlise, no crescimento econdmico, no Danegeldd progressivo e universal, na esperanga de um aumento cons- ‘ante das satisfagées, cuja legitimidade depende da capacidade de manter ¢ realizar esta expectativa, uma tal sociedade estd sujeita, portanto, & necessidade de inovagiio e, por isso, a uma estrutura ocupacional em mudanga, Consequentemente, os homens, de uma geragio para outra e, muitas vezes, no tempo de uma vida, devem estar preparados para serem redistribui- dos por novas tarefas. Dai, em parte, a importéncia da forma- so genética e 0 facto de a pequena parte extra de formagao, exigida por quase todas as ocupagdes, néo ser excessiva e, além disso, ser incluida em manuais compreensiveis para fodos os que detém a formagio genérica da sociedade, (Enquanto esse pequeno extra pouco representa, o miicleo genérico comum e verdadeiramente essencial é fornecido a un nivel bastante elevado, talvez nfo quando comparado com os «cumes» intelectuais da sociedade agraria, mas certamente quando comparado com a média habitual de outros tempos.) No entanto, a mobilidade e a reciclagem nao sio as tinicas que dao origem a este imperativo. B tambéin o conteido da maior parte das actividades profissionais. O trabalho na so- cledade industrial nao significa deslocar a matétia, O para- digma do trabalho ja nao é o arar, colher e debulhat. Princi- \Palmente, 0 trabalho j4 nao representa a manipulago dos | objectos, mas dos significados. Geralmente, implica a troca de mensagens com outras pessoas ou a manipulagao dos con- roles das maquinas. A quantidade de pessoas que se dedicam a0 trabalho sobre a Natureza, aplicando directamente a forga fisica humana aos objectos naturais, esté a diminuir constan- 56 temente, A maior parte das ocupagées, se nao implicam real- mente o trabalho «com pessoas», implicam 0 controle de botées, interruptores ou alavancas, que precisam de ser com- preendidos e que podem, uma vez mais, ser explicados segundo uma linguagem standardizada, it Pela primeira vez na histéria do homem, uma comunicagio explicita e relativamente precisa é utilizada de forma geral, difusa e significativa. Nas comunidades locais fechadas do mundo agrério ou tribal, o contexto, 0 tom, 0 gesto, a persona lidade e a situagio representavam tudo. Tal comunicagao ocotria sem a ajuda de uma formulagao exacte, para a qual os locais nao tinham gosto nem aptidio. A explicitagao e as sub- tilezas de uma formulagao precisa e orientada por regras eram deixadas para os advogados, tedlogos ou especialistas em rituais, fazendo parte dos respectivos mistérios, Entre familia- res de uma comunidade fechada, a explicitagéo teria sido pedante ¢ ofensiva, raramente sendo imagindvel ou inteligivel ‘A Tinguagem humana deve ter sido utilizada durante geragdes sem fim em tais comunidades intimas, fechadas e dependentes do seu contexto, ¢ s6 durante muito poucas ‘geragdes foi utilizada por professores e juristas, bem como por todos os tipos de puritanos conceptuais que evitavam o con- texto, Tendo em conta que evoluiu num meio que de maneira alguma exigia este desenvolvimento e que nfo o seleccionava favoravelmente quando se manifestava, é intrigante que una instituigao, como a linguagem humana, tivesse este potencial para ser utilizada como um «cédigo elaborado», segundo a frase de Basil Bernstein, como um instrumento formal e descontextualizado, Esta questao levanta problemas idénticos aos colocados pela existéncia de capacidades (por exemplo, matematicas) que, durante a maior parte do perfodo de exis- féncia da humanidade, no tinham qualquer valor de sobre- vivéncia e, portanto, nao poderiam ter sido directamente pro- duzidas pela seleogio natural. A existéncia de uma Tinguagem adequada para tal utilizagio formal e descontextualizada é um 37 problema semelhante, mas é também, sem diivida, um facto, Esta potencialidade, qualquer que seja a sua origem e expli- cago, aconteceu estar presente. Finalmente, surgiu um novo lipo de sociedade — que esta agora a tomnat-se global — na qual esta potencialidade realmente se desenvolyeu e na qual se toma dominante e indispensavel. ee | Para resumir esta discussio: surgiu uma sociedade baseada numa’ tecnologia muito poderosa e na expectativa do ctesci- mento prolongado, que exige uma divisio do trabalho méyel uma comunicagio continua, frequente ¢ exacta entre estra- ‘ nhos, envolvendo uma partitha de significado explicito, emi- tido através de um idioma standardizado e, se necessério, escrito. Por um conjunto de razées convergentes, esta socie- dade deve ser exaustivamente exoeducacional: cada individuo. 6 formado por especialistas, e no apenas pelo grupo local, se é que, de facto, possui algum. Os seus segmentos e unidades — esta sociedade é, contudo, grande e variivel e, em com- Paragio com as sociedades agrarias tradicionais, possui pou- cas estruturas internas — nao tém, simplesmente, capacidade ou recursos para reptoduzirem o seu préprio pessoal. O nivel de instrugo e de competéncia técnica num meio de comuni- éagio standardizado, numa moeda conceptual comum, tal como exigido aos membros desta sociedade se quiserem ser devidamente empregados e gozar de uma cidadania total ¢ real, é tao elevado que, simplesmente, ndo pode ser fornecido pelas unidades de parentesco ou locais. Apenas pode ser fornecido por algo que se assemelhe ao sistema educacional «nacional» modemo: uma piramide em cuja base encontramos as escolas primarias, ditigidas por professores formados nas escolas secundétias, dirigidas por professores formados nas universidades, orientados pelos produtos das escolas com graus mais elevados. Esta pirdmide fornece-nos o critério para a dimenséo minima de uma unidade politica possivel. Nenhuma unidade que seja demasiado pequena para conter esta piramide pode funcionar devidamente. As unidades nio 58 podem set mais pequenas do que esta. Em vérias circuns- tancias, funcionam também constrangimentos que impedem que estas sejam demasiado grandes, mas isso é outro assunto. facto de as subunidades da sociedade ja nao serem capazes de se auto-reproduzir, de a exoeducagio constituir a norma obrigatéria, de esta educagao servir de complemento (embora nao a substitua totalmente) a aculturagao localizada, é de grande importéncia para a sociologia politica do mundo modero, As consequéncias, por estranho que patega, rara mente (ém sido compreendidas ou tomadas em consideragao, on sequer analisadas. Na base do sistema social modero encontra-se, no 0 carrasco, mas 0 professor. Nao é a guilho- tina, mas 0 (devidamente intitulado) doctorat d'état que cons- titui a principal ferramenta e 0 simbolo do poder do Estado. O monopélio da educacao legitima é agora mais importante ¢ mais central do que o monopélio da violéncia legitima. Quando se compreende isto, entio pode também ser com- preendido o imperativo do nacionalismo, bem como as raizes gue tem, nao na natureza humana enquanto tal, mas num certo tipo de ordem social em vias de generalizacao. st Contrariamente @ crenga popular, ou. mesmo erudita, 0 nacionalismo nao possui quaisquer raizes profundas na mente humana; Supée-se que esta se tenha mantido inalterada du- rante muitos e muitos milénios da existéncia da raga humana eqne nao tenhia melhorado nem piorado durante a era relativa- mente breve muito recente do nacionalismo. Nao se pode inyocar um substrato geral para explicar um fenémeno espect- fico. © substrato dé origem, & superficie, a muitas possibili- dades. O nacionalismo, a organizagao de grupos humanos em grandes unidades de educagao centralizada e culturalmente homogénea, nao é sendo uma delas e, por sinal, muito rara, Aquilo que € essencial para a sua verdadeira explicagao é a identificagio das suas raizes especificas. Sé estas podem explicé-lo devidamente. Desta forma, os factores especificos sobrepéem-se a um substrato humano universal e comum, 59 SOCHHSHSHOTOHOHHOHHOHSSCHOHTOHOVOHEO alismo mergulham efectivamente, de \s requisitos estruturais distintivos da sociedade industrial. Esta tendéncia nfo é fruto, nem da aber- tag ideoldgica, nem do excesso emocional. Embora aqueles que, em geral, nele participam, quasé sem excepgio, nao compreendam que fazem, o movimento é, no entanto, a manifestagao exterior de uma adaptagio profunda e inevitavel na relagio entre organizagio politica e cultura A era da cultura erudita universal . ai _ Recapitulemos as caracteristicas gerais_e centrais da so- cledade industrial. Entre os seus pré-requisitos funcionais en- contram-se a alfabetizagio universal e_um-elevado. grande sefisteaga umérica, técnica e geral. Os,sens membros so e devem ser méveis e estar prontos para mudar de uma activi- dade para outra e possuir esse treino genérica que thes pos- sibilite seguir os manuais e as instugdes de uma nova activi- dade ou ocupagio. No decorrer do trabalho devem comunicar constantemente com uma grande quantidade de outras_pes- Soas, com as quais nao tém muitas vezes qualquer ligago prévia e com as quais a comunicagao deve, consequentemente, ser explicita, em vez de depender do contexto. Devem também, ser capazes de comunicar através. de mensagens esctitas, i pessoais, descontextualizadas, destinadas aqueles a quem sio ditigidas. Assim, estas mensagens devem ser transinitidas no mesmio meio de comunicagao linguistico e grafico comum e standardizads. O sistema educacional que assegura este feito social desenvolve-se ¢ fotna-se indispensével, mias deixa, a0 mesmo tempo, de deter 0 monopélio do acesso a palavra escrita: a clientela é coextensiva & sociedade em geral’e a pos- sibilidade de substituigio de individuos dentro do sistema por Outros diz respeito ao sistema educacional, tanto ou mais que a qualquer outro segmento da sociedade, Alguns professores 60 e investigadores muito importantes podem ser talvez.inicos e insubstituiveis, mas © professor médio ou 0 mestre-escola podem ser substituidos, com a maior das facilidades e muitas vyezes com pouco ou nenhum prejuizo, por individuos que nao estejam na carreira docente. GOR Quais siio as consequéncias de tudo isto para a sociedade e para os seus membros? Tipicamente, para a maioria dos homens, a sua capacidade de emprego, seguranga e auto- estima depende agora da «educago», e os limites da cultura ‘em que foram educados so tarnbém os limites do mundo em que podem respirar moral e profissionalmente. A educagiio do homem é, sem diivida, o investimento mais valioso e, de facto, it/ h confere-Ihe a sua identidade. O homem moderno nao é leal als um monarca, a uma terra ou a uma fé, 0 que quer que isto queira dizer, mas sim a wma cultura. B, de uma forma geral, castrado, A condigio de mameluco tornou-se universal. Nenhuns lagos importantes o unem a um grupo de parentesco, nem interferem entre ele e uma comunidade cultural mais vasta e anénima, din "vt, © reverso do facto de sé uma cultura transmitida pelo ensino conferir utilidade, dignidade e auto-estima ao homem industrial, em vez de uma cultura popular, é 0 facto de nada mais o poder fazer numa dimensfo comparivel. Seria imitil fingir que os antepassados, a riqueza e as relagdes sociais nfio sao importantes na sociedade modema e que, pot vezes, no siio até fonte de orgulho para aqueles que deles beneficiam. De qualquer modo, as vantagens asseguradas dessa forma sao muitas vezes desvalorizadas e, na melhor das hipoteses, vistas, de modo ambivalent. E interessante perguntar se a difusio da ética do trabalho ajudou a gerar este estado de coisas on se, pelo contririo, é um resultado dele. Continuam a existir pessoas indolentes e que vivem dos rendimentos, mas nio 0 ‘ostentam, 0 que é, por si s6, muito significativo. E importante que a sobrevivéncia desses privilégios e dessa ociosidade se tenha tornado hoje em dia discreta, preferindo a obscuridade 61 4 ostentagio, tendo estes de ser trazidos a luz por investiga. dotes persistentes, empenhados em desmascarar a desigual- dade escondida sob a superficie. O mesmo ni acontecia no passado, quando o privilégio da inactividade era digno de orgulho e ostentagao, como ainda continua a existir nas sociedades agrétias subsistentes ou em sociedades que continuam a manter o ethos da vida pré-indus- trial. Curiosamente, 0 conceito de consumo ostentatério foi inventado por um membro orientado para o tabalho de uma sociedade viciada no trabalho, Thorstein Veblen, escandal zado por aquilo que observou como sobrevivéncias de uma cra pié-industrial e predatéria. A superficie igualitaria, orien- tada para o trabalho e para a carreira, da sociedade industrial é tio significativa como as desigualdades nas suas profunde- zas, Afinal de contas, a vida é geralmente vivida a superficie, mesmo que algumas decisées importantes sejam, por vezes, tomadas nas profundezas. A classe docente é agora, em certo sentido, mais impor- fante — é indispensdvel — e, noutro, muito menos, tendo perdido o monopédlio do acesso & sabedoria cultural contida Mas escrituras. Numa sociedade em que todos sao castrados “pela identificagdo com o cargo profissional ea formagao, eem que quase ninguém tira grande partido ou seguranga dos seus lagos de parentesco, os letrados que se dedicam ao ensino ja nao tém qualquer privilégio no acesso aos cargos administta- fivos. Quando todos se transformaram em mamelucos, estes deixam de predominar na burocracia, Finalmente, a burocracia pode recrutar 0 seu pessoal na populagao em geral, sem precisar de recear a chegada de dezenas de primos inde- sejéveis sempre que um novo membro seja admitido. A exossocializagao, a educagao propriamente dita, é agora @ norma virtualmente universal. Os homens adquirem as capacidades e sensibilidades que os tornam aceitveis para os seus semelhantes, que 0s preparam para assumirem cargos na sociedade e os transformam naquilo «que eles so», ao serem 62 entregues pelos grupos de parentesco (hoje em dia nor- malmente, como se sabe, a familia nuclear) a uma mequina educacional que, sozinha, 6 capaz de fornecer a ampla gama de formagées exigidas pela base cultural genérica. Esta infra- -estrutura educacional é grande, indispensavel e cara, A sua manutengao parece ultrapassar a capacidade financeira mesmo das organizagoes maiores e mais ricas da sociedade, como as grandes corporagdes industriais. Estas concedem muitas vezes habitagdo, actividades desportivas, clubes de lazer, etc., aos empregados, mas nao Ihes dio educagao escolar senao em casos especiais. (Podem subsidiar as despesas escolares, mas isso é outro assunto.) O homem da organizagéo trabalha e brinea com-a organizagao, mas os filhos ainda frequentam escolas estatais ou privadas. Em suma, esta infra-estrutura educacional é, por um lado, demasiado grande e dispendiosa para qualquer organizacio, excepto para a maior de todas, que 0 Estado, Por outro lado, 0 Estado é também o tinico com forga suficiente para contro- Jar uma fungao tao essencial. A cultura deixou de ser apenas © -adomo, a confirmagio ¢ a legitimagao de um sistema social mantido também por constrangimentos mais dristicos e coer- civos. A cultura é agora 0 meio necessério de comunicagio ‘comum, o elemento mais importante ou talvez, melhor ainda, a almosfera comum minima, no seio da qual os membros da sociedade podem, sozinhos, respirar, sobreviver ¢ produzir. Para cada sociedade, tal sistema tem de ser aquele em que todos possam respirar, falar e produzir, tem de ser a mesma cultura, Além disso, agora tem de ser uma cultura erudita (letrada, mantida pela formago), jé nao pode ser uma cultura popular ou tradigio diversificada, local ¢ iletrada. Deve, porém, haver um organismo que assegure que esta cultura letrada e unificada esteja, de facto, a ser produzida de forma eficaz e que o produto educacional nfo seja de ma qualidade, Apenas o Estado pode assegurar isso. Mesmo nos paises em que alguns sectores da educagio esto a cargo de 63 organizagées privadas ou religiosas, o Estado é responsavel 4 pelo controle de qualidade na mais importante das industrias, a manufactura de seres humanos vidveis e utilizéveis. A Igreja centralizada — esse Estado-sombra do tempo em que os Estados europeus cram nao sé fragmentados, mas também socialmente fracos — lutou pelo controle da educacéo, mas essa luta revelou-se va, a nao set quando a Igreja agiu em nome de uma cultura erudita englobante e, desta forma, indi- Tectamente em nome de um novo Estado nacionalisia, Houve um tempo em que a educagio era uma inchistria doméstica, quando os homens podiam ser feitos por uma jaldeia ou por um ela. Esse tempo foi-se para sempre, (Na | educagao, a pequenez pode agora ser bonita se for, disfargada~ mente, parasitiria da grande dimensio.) A exossocializagiio, a Produgio ¢ reprodugao dos homens fora da unidade familiar local, constitui agora 2 norma e assim tem de ser. O impera- tivo da exossocializagio é a principal pista para pereeber por sue é que o Estado e a cultura tém agora de estar relaciona- los, enquanto no passado a ligagao era fraca, acidental, diver- sificada, remota e muitas vezes minima, Agora é inevitivel. E. isto que o nacionalismo representa. E essa a razio por que ¢-vivemos numa era de nacionalismo, 64 4. A transigao para a era do nacionalismo Os passos mais importantes da discussio ja foram dados. A humanidade esta ireversivelmente destinada & sociedade industrial e, portanto, a uma sociedade cujo sistema produtivo se baseia na ciéncia e na tecnologia cumulativas. $6 isto pode sustentar o mtimero actual e previsto de habitantes do planeta © oferecer-Ihes a perspectiva de um tipo de nivel de vida que © homem de hoje considera como adquirido ou a ele aspira A sociedade agriria ja nao constitui uma opcao, pois a sua restauragq condenaria simplesinente a grande maioria da populagao a morrer de fome, sem falar na pobreza, tertivel ¢ inaceitavel, que recairia sobre a minotia de sobreviventes. Desta forma, é imitil discutir, do ponto de vista pritico, os eneantos e os terrores que acompanham, cultural e po- liticamente, a era agrétia: muito simplesmente, nao estio disponiveis. Nao compreendemos devidamente o leque de ‘opsdes disponiveis para a sociedade industrial, e talvez nunca © compteendamos; mas compreendemos alguns dos aconteci- mentos_essenciais-quea-acompanham. O tipo de homo- geneidade cultural exigida pelo nacionalismo é um deles, pelo 65

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