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FLAVIO DESGRANGES A PEDAGOGIA DO ESPECTADOR EDITORA HUCITEG Sao Paulo, 2003, 1700 TEATRO PICO MODERNO E A CONTENPORANEIDADE Infindavels nds, solte as tantas amarras que nos prendem ao clo histérico de atitudes sempre-iguais, que nos fazem repetir ‘uma hist6ria esqueeida, e sufoca os sonhos do presente, liberan- do-os para que se allem aos dos nossos antepassados. 6 A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANALISE © espectador especialista As investigagbes acerca da formagio de espectadores para 0 teatro esto em pleno curso, Embora algumas respostas tenham sido encontradas, outras questdes surgiram, de modo que 0 de- bate continua, Nenhuma das priticas citadas, ou mesmo outras {que nao tenham sido referidas neste trabalho, pode ser julgada detentora do verdadeiro e definitive método de formagio, pois ‘essa é mais uma experincla e uma conquista pessoal do que um. ‘contesido adquirido. Nao se pode ainda esperar que a atuagio dos projetos de formagio v4 resolver a dita crise do teatro, seria pprotensio desmedida para questio tio complexa. Por outro lado, 6 reconheoivel a relevincia ¢ a pertinéncla dessas priticas na tentativa de pensar as relagdes entre teatro e sociedade. A trans- formagiio do teatro passa, necessariamente, por sua democrati- zagiio,¢ esta pelo convite aos espectadores a participar efetiva- mente do evento artistco, ‘Quando idealizou seu teatro épico—caleado na desconstrugio 4o paleo, no desnudamento da cena, assumindo a teatralidade do evento ~ Brecht pretendia, Justamente, que 0 espectador g1- snhasse intimidade com a linguagem teatral. Ao se apropriar dos 172 4 recursos e mecanismos utilizados no teatro, 0 espectador se tor- aria espeeialista, ampliando sua capacidade de compreender a ‘cena, ao pereeber as insimeras possibilidades de concepgio € Interpretagdo da obra, sentindo-se entao apto a elaborar signif ceados para os signos propostos, criar um ou mais sentidos para a encenagao. ‘A conquista da linguagem teatral pelo espectador implica 0 desenvolvimento de um senso estético ¢ um olhar ertico ~olhar armado, exigente, atento & qualidade do espetieulo, que reflece sobre 0s fatos apresentacdos e nao se contenta em ser apenas 0 recepticulo de um discurso monolégico, que impde um siléneio passivo, A aquisigdo da Tinguagem teatral capacita o espectador 4 Interpretar a obra, desempenhando uma efetiva partieipagio no fato artistico ¢ assumindo a autoria da narrativa apresentada, mantendo viva sua possibilidade de construgio e reconstrugao da histria, Uma pesquisa realizada, na déeada de 1990, com criangas extremamente desfavoreoidas do subsrbio da cidade de Lio, na Franga, mostrou que uma das principsis caracteristicas dessas ‘eriangas, que se sentiam fracassadas pessoal e socialmente, era 4 absoluta incapacidade de pensar uma histéria, a sua histérla (Meirieu, 1993). A investigagio ressalta ainda que nas conversas, ‘ravadas com essas eriangas, que tinham entre sels e doze anos, ‘em que thes foi pedido para contar a propria vida, a propria historia, pode-se perceber a grande diffculdade que dem vam em se referir ao passado, mesmo recente. Foi possivel per- ceber que elas utilizavam constantemente 0 “voos” e o “a gen- 0", equase nunca o pronome “eu”, e que se mostravam ineapa- zes, mesmo as mais velhas, de utilizar “estas pequenas expres: ses to fundamentals para dar sentido a vida, que sto: fol a partir deste momento que eu compreendi’, ‘teve um momento | DESCOBERTA DO FRAZER DA ANSLISE 473, ‘em minha vida que aconteceu isto ¢ me levou a decidir isto ‘eu descobri que’, ete.” Ibidem, p. 15). A pesquisa ressalta ainda 0 fato de que, dentre as eriangas entrevistadas, as habituadas a freqiientar salas de teatro e cinema revelavam maior faciidade em utilizar esse tipo de discurso narrativo, apontando para a conclusio de que aprender a assist e interpretar uma hist6ria 6 aprender a contar e construir a propria histéra ‘O mergulho na corrente viva da linguagem abre a eonscléncla para uma ativa atuagdo e transformagao da vida pessoal e social A tomada de consei {do, ou melhor, aptidao para empreender uma leitura propria do ‘mundo, Apropriarse da linguagem é ganhar condigées para essa leitura, essa tomada de posigao diante da realidade. A conquista da linguagem viabiliza o didlogo com a vida e possibilta a (re) formulagao de projetos e a concretizagao de mudangas. ‘A arte langa 0 contemplador ao encontro da vida, sempre de ‘maneira surpreendente, inesperada. A compreensio da obra passa pelo necessdrio didlogo com a experiéneia eotidiana; essa laboragao relexiva no se processa, contudo, sem esforgo. Des- ccobrir 0 prazer dessa anilise & aprender a ser espectador, a tor arse autor de histérias, fazedor de culeura, Um prazer que, ‘como experiencia pessoal, dnica eintransierivel, pode ser apren- dido, mas nfo ensinado. Assim, formar espectadores consiste em provoear a descoberta do prazer do ato artistico mediante 0 prazer da anilise. A especializagio do espectador constitulsse ‘no tanto em ensinar como pensar, dilogar, lr, gostar, mas sim ‘em propor experiéneias que estimulem o espectador a construir (5 percursos préprios, o proprio saber, 0 proprio prazer, del- xando que cada qual vi descobrindo lagos e afinidades, tornan- ddo-se fntimo a seu modo, relacionando-se e gostando de teatro cia constitu, assim, uma leitura de mun- do seu jeito. 174 A DESCORERTA DO FRAZER DA ANSLISE © espectador especialista deseja 0 ato estético. Como os visi tantes do Museu D'Orsay, langados pela janela ao encontro do mundo I fora, esse espeotador descobre o gozo de empreender tama atitude prépria em face da realidade, prazer de fruit a vida, analisé-la econcebé-la de outra manelra, a sua maneira Procedimentos espetaculares ¢ extra-espetacular AAs transformagies no modo de vida ocorridas nas ditimas déeadas do séeulo XX, como vimos, ocasionaram modlficagdes na peroepgdo e na sensibilidade dos individuos. Com isso, al- ‘gumas das propostas ¢ recursos e€nioos que fundamentavam a teoria do teatro épico mademno no causam a mesma reagao de ‘outrora, a mesma atitude no espeetador ~o que demanda outras premissas para se pensar como a arte teatral pode dar sentido cexperigncia contemporiinea, e solieita outros procedimentos ‘estético-pedagégicos para dinamizar a recepgio do espect dor. Para a percepgio do individuo contemporineo, acostum: do as fibras 6tloas e telas de cristal iquido, 0 teatro talver seja lum evento insuportavelmente antillusionista, incapaz de provo- car adesio, eapturé-lo, delxando-o incomodamente distanciado dda acao. [As reflexoes e experimentos de Brecht, no entanto, esta0 lon {ge de serem irrelevantes e sous ensaios slo Incontornsvels se ‘quisermos investigar as possiveis relagbes do teatro com a sock ‘edade nos dias que correm. A anslise da atualidade do teatro pico moderno nio pode dar-se, contudo, sem a reafirmagao da vviga mestra desse teatro: o efeito distanciamento, 0 teatro épico ‘estéfandamentado na proposta feita no espectador de estranhar © estranhavel: de no tomar como normal os absurdos cotidi- anos, ndo aceitar os valores como provenientes de uma valida ‘gdo consensual, nem conformar-se com a repetigo Irefletida ‘A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANALISE as do pasado. O paleo ressalta, dessa maneira, a condigio histéri- cea dos acontecimentos ¢ a capacidade do homem de refazé-los socialmente. O teatro reafirma, assim, a idéla brechtiana de que no hé oposiglo entre ago e contemplagao," propondo ao es- Pectador que efetive 0 ato eriativo, artistico, produtivo. 0 redimensionamento do teatro pico mantém, portanto, © cariter pedagigico do teatro de espeticulo, caleado na atitude ‘observadora, ertica, na reflexividade proposta & platéia. O tea to recente, radicalizando a proposigao autoral earacteristioa «da arte moderna, propée-se a tratar 0 espectador como um igual, ‘outro necesssirio ao dilogo, que ¢ reconheoido pelo autor como lum outro autor, estabelecendo um dilogo franco, onde ambos estejam igualmente implicados, Para se pensar uma pedasogia do espectador torna-se rele- ante, entretanto, considerar niio apenas a proposta estétiea que cconstitui o espetdculo, mas também os procedimentos extraves- petaculares que podem fornecer instrumentos preciosos para ‘uma reeepedo mais apurada, Na verticalizago da pesquisa nes- ‘ses dols sentidos da espectalizagao do olhar, na tensio entre es- sas duas experiéncias estético-pedagogicas ~ a espetacular ¢ a cextra-espetacular ~ podem constituir-se efetivos projetos de es- pecializagao de espectadores de teatro, Inspirados nas teorias de Brecht, os exereicios de mediagio pretendem descortinar o espeticulo, apontar a dimensio coti- diana do que estd sendo apresentado, e afirmar 0 espectador ‘como participante ativo do evento, O teatro, nas atividades pe- Adagégicas, 6 apresentado como Jogo que aguarda a intervengio * Sobre esta questo, o encenador alemao tfimava “os flsofs burguses Insitem na dstngo fundamental enee agaoecontemplaeio. Mas pe sauorverdadeleo(o dileic) ao zest dstingto [recap Jameson, 1999, p, 101) 176 A DESCORERTA DO PRAZER DA ANALISE do espectador; a cena soicita novas solugées, outras resolugbes, fomando maledvel o mundo que se constr6i no Jogo. Os proce=

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