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Foto: Paulo Bedran

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Além da popularidade atual dos cartuchos 22 de fogo circular, esses têm uma relação direta com a evolução das munições
e, consequentemente, com a história das armas de fogo. Hoje, os cartuchos de fogo circular estão relegados ao controle de
pragas, caça de animais de pequeno porte e ao tiro desportivo. Mas, eles têm uma importância histórica muito maior do que
suas aplicações atuais sugerem e é sobre essa história que iremos tratar nesse artigo.

A origem do 22 fogo circular: o cartucho 22 Flobert

O cartucho 22 de fogo circular é a origem do cartucho metálico moderno. Vou contar um pouquinho dessa história. Em
meados do século XIX, o francês Louis-Nicolas Flobert projetou o primeiro cartucho metálico totalmente independente e
bem sucedido. Faço essa ressalva, pois, alguns poderão questionar: mas, e o Lefaucheaux? Bem, apesar de anterior, o
cartucho metálico desenvolvido por esse outro francês não pode ser tratado como bem sucedido, em razão dos problemas
que comprometiam sua eficiência, assunto para outra publicação.

O cartucho metálico desenvolvido por Flobert, também conhecido como 22 Flobert, utilizava sistema de ignição do tipo fogo
circular, não usava propelente e foi a inspiração de todos os 22 de fogo circular que vieram depois. Acho que já podem ter
surgido algumas dúvidas até aqui, vou me antecipar e destrinchar algumas características técnicas para facilitar e garantir a
compreensão de todo o texto.

Antes de prosseguir, farei umas breves considerações sobre a constituição básica dos cartuchos modernos destinados a
armas de alma raiada. Esses são constituídos por quatro elementos. O estojo, que garante a união física dos demais
elementos e acondiciona o propelente. O propelente, também conhecido como pólvora, responsável por gerar os gases que
impulsionam o projétil. O projétil, o corpo a ser impulsionado contra o alvo. E, por fim, a espoleta, elemento que contém a
mistura iniciadora, responsável por gerar a chama necessária para acender a pólvora.
Alinhando essas definições, podemos tratar o cartucho Flobert de forma mais técnica. Chamarei a atenção para dois
aspectos curiosos desse cartucho. Primeiro, ele não utilizava propelente. Mas como assim? O propelente não é o
responsável pela impulsão do projétil? Sim, mas o Flobert utilizava apenas a impulsão da mistura iniciadora. Era munição
com pouca energia, usada tão somente para treinos em locais fechados. É considerado o primeiro cartucho desenvolvido
para a prática do tiro como esporte.

Como funciona o sistema de ignição do tipo fogo circular?

O segundo aspecto a ser destacado é o fato do Flobert ter introduzido o fogo circular, sistema de ignição que revolucionou o
universo das armas de fogo e continua em uso até os dias de hoje. Mas como funciona esse sistema? Simples! A mistura
iniciadora fica acondicionada dentro do aro do estojo e, quando o percussor esmaga o aro, a mistura iniciadora é
comprimida e detona, criando a chama necessária para inflamar a pólvora.

Apesar de revolucionário, o Flobert era anêmico. Em rifles, seu projétil de 18 grains voava a pouco mais de 700 pés/s. No
entanto, aproveitando a tecnologia do fogo circular, por volta de 1857, a Smith & Wesson resolve projetar seu próprio
cartucho. Foi dessa investida que surgiu o 22 Short, primeiro cartucho metálico fabricado em solo norte-americano e
cartucho mais antigo ainda carregado nos dias atuais.

22 Short

O 22 Short começou a ser produzido com projétil de 29 grains e carga propulsora de 4 grains de pólvora negra. Naqueles
idos, era uma aposta destinada à defesa pessoal. Curiosamente, o 22 Short surge juntamente com o revólver Smith &
Wesson Model 1. Ou seja, o primeiro revólver fabricado pela icônica empresa norte-americana foi projetado para utilizar
cartuchos 22 Short.

22 Long

Na busca por uma munição mais potente, em 1871, foi lançado o cartucho 22 Long. Uma evolução do 22 Short, mesmo
projétil, porém, o estojo mais comprido acondicionava 25% mais pólvora negra. O novo calibre tinha mais aplicações que
seus sucessores, era comumente utilizado no campo, tanto no controle de pragas como na caça de pequenos animais.
Apesar de incomum nos dias de hoje, o 22 Long ainda é fabricado.

22 Extra Long

Quase uma década depois, surgiu o 22 Extra Long, com a missão de superar o desempenho balístico do 22 Long. Um
projétil de 40 grains combinado com 6 grains de pólvora negra resultavam em maior velocidade e poder de penetração. No
entanto, para as exigências da época, o 22 Extra Long deixava a desejar no quesito precisão. Deficiência que estimulou o
desenvolvimento de outro cartucho, o cartucho de fogo circular mais popular de todos os tempos.

22 Long Rifle

Foi então que, a J. Stevens Arm & Tool Company apresentou ao mundo o cartucho 22 Long Rifle (22 LR), o calibre nominal
mais difundido no mundo nos dias atuais, utilizado em rifles, pistolas, revólveres e espingardas (“garden gun”). O 22 LR
herdou o sistema de ignição do Flobert, o diâmetro do projétil do 22 Short, a carga de propelente do 22 Long e o projétil de
40 grains do 22 Extra Long. Receita que deu origem a um dos cartuchos mais versáteis já construídos até hoje. Apesar de
centenário, o 22 Long Rifle continua atual em inúmeras aplicações, que vão do tiro olímpico à caça de pequenos animais.

22 Stinger
Mas a saga do 22 fogo circular não parou no 22 LR. Vou citar mais dois calibres dessa família. O 22 Stinger é um deles.
Mas alguns devem estar se perguntando: o 22 Stinger não é 22 LR? Para esses, eu respondo: será? Raciocinemos juntos:
o que define um calibre nominal? A resposta é relativamente simples, são especificações técnicas, dentre elas dimensões
de estojo, do projétil e do cartucho, além da pressão gerada pelo mesmo no interior das armas.

E onde encontro essas especificações? Nas normas técnicas publicadas pelas agências regulamentadoras, como a SAAMI
e a CIP. Veremos, então, o que a SAAMI diz sobre o 22 Long Rifle. Na descrição das dimensões máximas, o estojo do 22
Long Rifle não deve ultrapassar 15,57mm. E quanto mede o estojo do cartucho 22 Stinger? Aproximadamente 18mm.
Portanto, considero motivo suficiente para questionar sua classificação como 22 Long Rifle.

Para clarear o entendimento, falarei um pouco mais sobre ele. No final da década de 70, a norte-americana CCI lançou no
mercado um cartucho “22 Long Rifle” modificado. Manteve o comprimento total do cartucho, porém, aumentou o
comprimento do estojo às custas da diminuição do projétil. O tradicional projétil de 40 grains deu lugar a um de 32 grains. O
estojo maior foi capaz de acondicionar mais pólvora, o propelente extra foi capaz de acelerar o novo projétil acima dos
1.600 pés/s, aumentando consideravelmente a energia cinética do conjunto.

O raciocínio foi relativamente simples, pois, em regra, se quer energia cinética, investir em velocidade costuma ser mais
vantajoso do que apostar no acréscimo de massa. Física! Basta relembrar a fórmula utilizada para calcular a energia
cinética: (massa x velocidade²) dividido por 2. Ou seja, o acréscimo à velocidade é elevado ao quadrado.

Esse novo cartucho passa despercebido como 22 Long Rifle, pois, como o headspace de ambos é feito pelo aro, a
alteração no comprimento do estojo não interferiu na intercambialidade. Como o comprimento total (OAL) também foi
respeitado, os cartuchos 22 Stinger encaixam, perfeitamente, nas câmaras 22 Long Rifle. Mas, tecnicamente, o
comprimento dos estojos 22 Stinger não condiz com as especificações técnicas do 22 LR.

Enfim, independente desses preciosismos técnicos, os cartuchos 22 Stinger deram um acréscimo de desempenho à família
22 fogo circular. Claro que eles não escaparam do imaginário popular, todo atirador mais antigo tem uma história
mirabolante sobre esses cartuchos CCI, os famosos mitos.

O Stinger não fura colete balístico tampouco chapas de aço. Ainda assim, apresenta energia digna de ser destacada.
Quando acelerado à 1.640 pés/s, o projétil apresenta energia próxima de 260 joules. Similar ao 38 Special 158 grains,
quando acelerado num cano de 4”. Se compararmos com o Flobert, cuja energia à boca do cano era algo próximo de 30
joules, podemos concluir que o 22 fogo circular evoluiu.

22 Winchester Magnum Rimfire

Para terminar esse artigo, citarei um último cartucho, o 22 Winchester Magnum Rimfire (22 WMR), o mais poderoso 22 fogo
circular já produzido. Em meados do século passado, cem anos depois do surgimento do 22 fogo circular, o projétil de 40
grains ultrapassou a barreira dos 2.000 pés/s, graças à Winchester, que criou uma versão Magnum do 22 fogo circular. O
saudoso Frank Barnes fez uma observação importante sobre o 22 WMR, tratou-o como o único cartucho de fogo circular
bem sucedido, introduzido no século XX.

O 22 WMR usa um estojo maior do que o 22 Long Rifle, tanto em comprimento quanto em diâmetro. O maior comprimento
serviu para acondicionar a maior carga de propelente. O diâmetro do estojo cresceu, mas o diâmetro do projétil
permaneceu o mesmo. Mas isso tem um curioso motivo. Até então, os cartuchos da família 22 fogo circular utilizavam
projétil tipo “heeled”, esses têm o mesmo diâmetro do estojo.
Para muitos, essa informação poderá ser uma surpresa. Explicarei melhor esse assunto. O projétil tipo “heeled” tem seu
corpo exposto, não adentra no estojo. Apenas uma pequena porção do projétil é rebaixada para permitir sua união
mecânica com a cápsula. Portanto, em razão da parte do projétil que engasta com o raiamento ficar exposta, a lubrificação
do mesmo é externa. Essa lubrificação é necessária nos projéteis de chumbo, para diminuir o acúmulo de resíduos de
chumbo no armamento. Os mais familiarizados com o 22 LR irão visualizar essa fala, ao recordarem da cera que envolve o
projétil.

Voltando ao 22 WMR, o cartucho abandonou os projéteis de lubrificação externa, aderindo aos de lubrificação interna.
Nesses últimos, a lubrificação é feita através de canaletas que, quando o projétil é assentado, ficam protegidas dentro do
estojo. Essa outra maneira de permitir a lubrificação dos projéteis, internamente, é mais prática e exige que o projétil tenha
o diâmetro do interior do estojo, não mais o diâmetro externo do mesmo. Motivo pelo qual, para preservar o diâmetro do
projétil, foi necessário aumentar a circunferência do estojo. O 22 WMR ainda está em produção. No Brasil, é pouco
difundido, pois, é escassa a oferta de armas nesse calibre.

Considerações Finais

Essa publicação não teve como escopo esgotar o assunto, cartuchos 22 fogo circular têm mais de um século de histórias,
seria impossível. Ressalto, também, que o sistema de fogo circular não serviu apenas a cartuchos pequenos, destinado à
prática de tiro desportivo ou controle de pragas. Rifles de batalha também utilizaram essa tecnologia, basta lembrar do 44
Henry, o calibre que nasceu junto dos rifles de ação por alavanca e teve emprego massivo na guerra civil norte-americana.
Ou do 38 Rimfire, usados pelo exército dos EUA, em seus rifles e pistolas. Mas esses serão assuntos de outra publicação.

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