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(©1997, de Sunley J. Gren “Titulo do original The Moral Quest, edigio publicada por IncerVarity Press (Downers Grove, nots, 60515. BUA) F< Tadesosdivetor em lingua portuguesa reservados por Editora Vide PROMIDA A REPROBUGAD POR QUAISQUER MEIOS, SHIVO EM. BREVES CITAGOES, COM INDICAGAO DA FONTE. “Todas as ccages biblicas foram extraldas da Nova Verto Internacional (NVD, ©2001, publicada por Editora Vide, salvo indicacio em conteéti. 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Brien ests 241 5 Propostas cristas contemporaneas Portanto, também nds, uma vez. que estamos rodeados (por téo grande nuvem de testemunhas, livremo-nos de tudo 0 que nos atrapalha e do pecado que nos envolve, ¢ corramos com perseveranca a corrida que nos proposta, tendo os olhos fixos em Jesus, autor consumador da nossa fe. Hepreus 12.1,2 Durante a tiltima década de 40, um pensador descrito como “tedlogo dos tedlogos” dirigiu uma queixa mordaz contra ética teolégica reinante em sua época. Numa frase que se tornou uma caracterizagao cléssica do evangelho social — se é que no hé exagero nisso —, H. Richard Niebuhr declarou: “Um Deus sem ira conduziu homens sem pecado a um reino sem julgamento Por meio das pregages de um Cristo sem uma cruz”. Embora tivesse a intengao de enfocar a fundamentagao teoldgica do movi- mento, a acusagao de Niebuhr atingiu o coragao da pauta ética do evangelho social, isto é, a tentativa de levar a cabo uma “cristianizac4o” da ordem social nos Estados Unidos. Mas, fazendo isso, seu comentério pés a nu uma questo mais profunda que estava em jogo. Niebuhr e os defensores do evangelho social divergiam num ponto bsico: o da natureza da tarefa ética crista em si mesma. Acciftica formulada por Niebuhr, em 1937, denuncia o profundo abismo que separa os arquitetos da ética social desde 0 advento do século XX. Os Pensadores cristaos tém divergido em seu modo de entender qual deve ser cxatamente o enfoque da vida ética que Ihes & imposta pelo Senhor. Neste 193 capitulo, analisaremos 0 cenério ético do tiltimo século correndo rapidamente os olhos pelos escritos de varios pensadores cuja obra ¢ significativa quanto aos motivos predominantes na reflexo ética. Identificaremos sete trajetérias prin- cipais que emergiram e, de uma forma ou de outra, continuaram em evidéncia nas discuss6es éticas do século passado. UMA ETICA PARA A CRISTIANIZAGAO DA ORDEM SOCIAL O advento do século XX testemunhou a ascensao da orientagao ética que considerava a vida ética crista primeiramente voltada “para fora”. Cristéos engajados procuravam levar a sério 0 ensinamento biblico de que o amor ao préximo é a medida do amor que se tem a Deus € no termina na pratica de boas obras em beneficio de individuos necessitados, mas envolve a busca da erradica¢ao das mazelas sociais que atormentam os que vivem ao nosso redor. Conseqiientemente, a virada para o século XX foi uma época “ativista”. Despertados pelos grandes avivamentos evangélicos do século anterior, os cris- tos encabegaram indmeras causas sociais, Viram-se liderando o ataque contra 0s poderes das trevas que tentavam subverter as intengGes de Deus para o bem- estar social do homem. Walter Rauschenbusch eo evangetho social. Como indica 0 livro que con- tém a declaragao de Niebuhr — The Kingdom of God in America [O Reino de Deus na América] —, a guinada para o ativismo social apoiava-se num conceito teoldgico especifico, o Reino de Deus. Os defensores do evangelho social nutriam esperangas de que, cooperando com o Espirito divino, os homens pudessem promover a obra de Deus e propagar seu Impétio sobre a Terra. Essa idéia, o progresso do Reino de Deus neste mundo, j4 havia pro- porcionado forte motivagao teoldégica para o ativismo social cristéo durante boa parte do século XIX. Nao surpreende que a idéia aparecesse como forca motriz no incipiente movimento do evangelho social. Talvez ninguém te- nha representado melhor que Walter Rauschenbusch o crescente fervor evan- gélico pela reforma social. Filho de um ministro luterano alem4o que se tornara batista, logo de- pois de emigrar para os Estados Unidos, o jovem Rauschenbusch também quis naturalmente tornar-se ministro. Seu primeiro chamado pastoral le- 194 | ; vou-o para Hell’s Kitchen, drea particularmente pobre da zona oeste da cidade de Nova York. Seu primeiro contato com o lado negativo do capi- talismo /aissez-faire norte-americano fez nascer nele uma profunda preo- cupagio social: Quando vi como os homens arduamente labutavam a vida inteira ¢ no fim nao tinham quase nada nas méos para mostrar; como homens robustos imploravam trabalho em véo em tempos de crise; como as ctiancinhas mor- riam — ah, 0s funerais de criancinhas! Eles me cortavam 0 coracZo [...] por que as criancinhas tinham de morrer? (...] E dese modo, aos poucos, a informagio e a paixdo social nasceram dentro de mim.? . Em 1891, Rauschenbusch passou varios meses na Alemanha, onde sofreu a influéncia de Albrecht Ritschl, especialmente no que se refere a énfase no Reino de Deus prépria desse tedlogo liberal. Ao retornar aos Estados Unidos, Rauschenbusch entregou-se ao florescente movimento do evangelho social, F. tornando-se seu expoente mais gabaritado do ponto de vista teolégico.4 Com B seus escritos, ele tentou aplicar os objetivos e as idéias da ética do Reino de B Deus vida social concreta da América industrializada. - A obra de maior repercusséo de Rauschenbusch foi Christianity and the E Social Crisis [O cristianismo ea crise social] (1907). Depois de alertar o leitor sobre o extremo abismo entre a riqueza ¢ a pobreza na América, 0 autor faz. a B cotajosa declaracao de que a tarefa crista consiste em “transformar a sociedade dos homens no Reino de Deus pela regeneracio das relagdes humanas e pela sua reconciliagao de acordo com a vontade de Deus”.> Por isso, convocou os tistaos a trabalhar pela redencio das estruturas econémicas que perpetuavam a pobreza. Agindo assim, poderiam fomentar um ressurgimento em que nio apenas almas individuais, mas entidades e estruturas sociais inteiras, se arre- Penderiam e seriam salvas. Em seu segundo livro mais importante, Christianizing the Social Order [Cristianizagdo da ordem social] (1912), Rauschenbusch presenta sugestes ., Para o ressurgimento por ele sonhado, reivindicando a socializacéo das princi- {Pais indtistrias, o apoio aos sindicatos ¢ a aboligo de uma economia centrada | Da gandncia, na competisao e na motivacdo do lucro. Algumas mudangas ca- ; facterizariam a gradativa cristianizacéo da ordem social, levando a sociedade 195 norte-americana a uma aproximacio cada vez maior do Reino de Deus, que em A Theology for the Social Gospel (Uma teologia para 0 evangelho social] (1917) cle compara com a “humanidade organizada de acordo com avontade de Deus”.6 A cristianizagao da sociedade, Como fenémeno organizado, o movimento do evangelho social nao sobreviveu a seus proponentes mais famosos. Toda- via, seu legado ainda perdura, especialmente na ética social ecuménica origina da por ele. O mais notavel divulgador dessa ética social tem sido o Conselho Mundial de Igrejas (CMI). A ligacdo entre o evangelho social e 0 CMI é de fato indireta e se deu por via do movimento Vida e Trabalho. Renomados promotores do evangelho social estavam presentes no encontro conhecido como Conferéncia de Edim- burgo (1910), que criou o movimento Vida e Trabalho com o objetivo de incentivar uma unidade maior entre os cristos empenhados na ago € no tes- temunho social. As declaragées do movimento, anunciadas na Conferéncia de Estocolmo (1925), inclufam os temas centrais do evangelho social. Mais tar- de, quando o movimento passou a fazer parte do incipiente CMI, trouxe consigo o legado da preocupasio pela cristianizacéo da ordem social. Conse- qiientemente, a ética social continuou sendo muito relevante em circulos ecuménicos, como fica evidenciado pelo papel sempre importante das ques- tes sociais na pauta do CMI” Emboraa preocupagao com a cristianizagao da ordem social sobrevivesse, a orientagao tealdgica do evangelho social voltada para o Reino de Deus como fandamento para a compreenséo da ética crista desapareceu. De fato, impul- sos neo-ortodoxos levaram os participantes da Conferéncia de Oxford do movimento Vida ¢ Trabalho (1937) a acautelar os cristéos contra a identifica- ¢40 do Reino de Deus com instituigées humanas. Em conseqiiéncia, nos documentos do CMI outras idéias substitufram 0 enfoque do Reino de Deus, tao caracteristico da antropologia teolégica crista. Por isso, a Assembléia de Amsterda (1948) recorreu 4 nossa criacdo como seres responsdveis perante Deus para lancar um apelo a uma “sociedade responsével”, nna qual prevalecessema liberdade ¢a justica. Agindo assim, a assembléia exaltou esse ideal como o critério para julgar todas as sociedades existentes. Mais recentemente, os eticistas sociais do CMI passaram a considerat a sociedade humana no contexto de um meio natural sustentavel. Para atingit 196 esse fim, recorreram 2 teologia trinitdria, capaz de thes dar o embasamento teoldgico do valor instrumental da criagao.* Apesar da insergao de outros conceitos teolégicos fundamentais, com a negacio do tema do evangelho social do Reino de Deus neste mundo, a visdo ética mais antiga de uma cristianizagio da sociedade perdeu muito de seu im- pacto. Na verdade, as declarag6es ecuménicas muitas vezes dao a impressio de que sua ética social est & procura de um fundamento teoldgico, em vez de ser aquela consumada e tio promissora ética social do antigo evangelho social. AETICA DA TRANSCENDENCIA Os canhées de agosto de 1914 anunciaram a morte do otimismo progres- sista que impregnava 0 movimento do evangelho social. O Reino de Deus no viria por meio da conversio das estruturas sociais. Nas décadas seguintes, formou-se uma ténue coalizio de pensadores, unidos pela rejei¢go do que consideravam o cristianismo da cultura do liberalismo. Embora estabeleces- sem seus roteiros individuais, esses teélogos estavam unidos na convicgéo de que © preco da tentativa de cristianizar a ordem social fora a perda da Palavra de Deus —avvoz do Ser transcendente — anunciando as boas-novas da reconciliagao a uma humanidade desesperadamente perdida em seus pecados. Por tentar resga- tar as verdadeiras doutrinas que haviam sido bdsicas para a ortodoxia crista mais antiga, o movimento é agora em geral conhecido como neo-ortodoxia. Em parte alguma, a necessidade de ouvir de novo a transcendente voz de Deus foi mais crucial que na 4rea da vida cristé. Por isso, os tedlogos da neo- ortodoxia pediram uma ruptura com a abordagem ética do liberalismo. Coe- rentes com sua descoberta dos temas teolégicos fundamentais da Reforma Protestante, eles propuseram nada menos que uma ética radical da Reforma cen- trada na obediente escuta do comando divino. Nas palavras do historiador Edward LeRoy Long Jt., todos eles postulam a importincia da revelagao e rejeitam com veeméncia a validade da deliberacéo moral auténoma; todos eles derivam o contetido da norma moral da vontade de Deus ¢ em algum ponto de seu discurso usam a idéia do comando em relagéo aquela vontade; todos eles se posicionam dentro da heranga da Reforma, na qual a justificagéo pela fé & 0 conceito central.? 197 Karl Barth: a ética como 0 comando de Deus. O pensador que iniciou 0 ataque contra o liberalismo teoldgico e contraa ética do evangelho social foi o pastor suico, que mais tarde se tornou tedlogo, Karl Barth (1886-1968). Seu objeti- vo era convocara Igreja a ouvir novamente a Palavra'de Deus, a mensagem que itrompe no mundo provinda do Deus que é totalmente distinto de nés,!® Conseqi berania de Cristo e na dédiva da revelagao. Essa pauta teolégica teve profundas implicagées também para a ética de Barth. Na visao dele, a ética teolégica (que engloba a ética crista) tem como tarefa “entender a Palavra de Deus como 0 -ntemente, sua teologia centrava-se na transcendéncia divina, na so- comando de Deus”." Barth no considerava a ética uma disciplina separada que se somasse & teologia, ¢ sim o seu avesso. Em sua Fiica, ele afirma sem medo: “A ética teo- légica é ela mesma uma dogmatica, e nao uma disciplina independente parale- laa si propria”."® Em algumas segoes de sua A dogmdtica da igreja dedicadas 2 ética,” ele ressalta que estd simplesmente expondo as implicagées éticas de questées doutrinais particulares, a saber, as doutrinas de Deus e da criagao. Assim como a sua teologia, também a ética teoldgica de Barth esté radical- mente centrada em Cristo. A ética crista, insiste ele, nao pode ser relegada ao status de mera subdivisdo da rubrica mais ampla da ética geral,"* que traz a luz a universalidade do impulso ético. A ética crista n4o pode ser justificada pelo apelo a algum critério ético geral. Ea capacidade de distinguir o bem do mal tampouco € caracteristica da superioridade humana sobre os animais, como sustentam muitos eticistas filoséficos. Segundo Barth, todos os esforgos hu- manos de fazer o bem sao tentativas vas de uma humanidade decafda, visando 4 propria justificagao. Os seres humanos sao simplesmente incapazes de res- ponder a questo ética, uma vez que essa resposta se restringe unicamente a graca santificadora da eleigao de Deus." ~ Em suas primeiras palestras sobre ética, Barth declarou — contrariando a ética filosdfica tradicional — que o bem nada mais é que a obediéncia ao comando divino."’ Mas ele tinha em mente um conceito especifico. Nao estava teferindo-se aos mandamentos biblicos como imperativos universais. Em sua avaliacao, tratar as injungoes das Escrituras dessa maneira ou envolver-se em questdes casuisticas é trocar a vontade divina por um conjunto de prescrigdes fixas e inflexiveis, ou seja, ¢ cair no legalismo ¢ até mesmo na idolatria."” Em 198 vez disso, os mandamentos sao testemunhos do comando fundamental que recebemos em cada momento da vida.'* Quando deparamos com “a vontade absoluta, pessoal e viva de Deus”, estamos diante de “uma decisao a favor de Deus ou contra ele”."” A boa noticia, acrescentou Barth, é que nesse confronto com 0 comando divino, Deus nos accita —~ nos justifica. De fato, o amor de Deus nos é revelado nesse comando.”” Por trds dessa intrigante abordagem, esté a profunda teologia da graca pro- posta por Barth. Na base de seu entendimento da ética, constata-se nossa con- digo como eleitos em Cristo e em Cristo mantemos uma alianga com Deus.?! De fato, para ele a ética ¢ a contrapartida da doutrina da elei¢4o.” O ato divino da elei¢do, asseverava Barth, traz consigo o comando divino. Deus or- dena que sejamos 0 que ele mesmo em sua graga escolheu que sejamos. Em conseqiiéncia, a base da moralidade nfo est em nossa capacidade, argumenta Barth, mas em nossa resposta de fé & Palavra da graca que Deus comunica em Jesus Cristo. Por isso, a ética crista consiste em viver na graca, ¢ por meio dela somos livres para ser o que realmente somos. A vida cristd sempre se dé nas situa6es concretas da existénci Barth, “o bem ¢ um questionamento que nos é dirigido, ao qual devemos corresponder agindo, com uma ac’o que é, por sua vez, sempre concreta e individual” * Dessa maneita, Barth procura testabelecer a ligagéo entre 0 sere © agir, entre a aco e a existéncia, pois na sua avaliagao os seres humanos exis- tem quando agem. Embora Cristo seja o centro da ética de Barth, a criagéo constitui seu con- texto. Barth estabeleceu uma ligacdo entre a criacdo ¢ a alianga, que por sua vez conduz 3 alternativa da ética da lei da natureza proposta por ele. A alianga, escreve ele, “€ 0 objetivo da criag4o”, ao passo que a criagao é “o caminho para aalianca’, Barth em seguida explica que, enquanto o amor gratuito de Deus éa base interior da alianga, a ctiagao é a base externa. Com isso, ele quer dizer que actiacSo torna aalianca . Segundo tecnicamente possivel; que ela prepara ¢ estabelece a esfera na qual a ins- tituicdo ¢ a histéria da alianga acontecem; que ela possibilita a existéncia do sujeito que deve ser o parceito de Deus nessa histéria, em suma a natureza que a graca de Deus deve adotar ¢ para a qual ela deve voltar-se nessa histéria.’6 199 Barth, com base nisso, apresenta uma dupla avaliacio da importancia do mundo natural e das instituigdes humanas. Essas realidades nao constituem a alianga em si e, portanto, néo possuem significado ¢ bondade em si mesmas. Todavia, aalianga da graga de Deus depende delas, e como resultado elas contém padroes significativos do ponto de vista moral. Em conseqiiéncia, Barth rejei- ta qualquer tentativa de construir uma ética crista sobre a lei natural. Ele con- segue, todavia, tirar importantes conclusées ¢ticas da estrutura presente no” mundo natural.” James Gustafson: ética no servigo de Deus. Talvez nenhum outro pensador do século XX tenha projetado uma influéncia tao marcante como Karl Barth; quer no campo da teologia quer no campo da ética teolégica. Ao nome de Barth podemos acrescentar o de outros pensadores importantes, cuja ética teolégica fez avancar uma pauta similar & dele. Varios deles — como Emil Brunner ¢ Reinhold Niebuhr — foram contemporineos do grande tedlogo suico. E alguém cuja obra maior apareceu mais tarde € que, portanto, apanhou desse contexto o manto da neo-ortodoxia bdsica ¢ James Gustafson. Como fizera Barth — e plenamente consciente dessa ligac4o —, Gustafson critica no campo da ética as tradigdes filoséficas e teolégicas que operam com base no pressuposto de que o ser humano é a “medida de todas as coisas”. ‘Tradicionalmente, os eticistas entenderam essa expresso como uma sugestao de que a principal preocupacao de Deus é o bem-estar humano e que o resto da ctiagéo existe para servit-nos. Para Gustafson, esse “antropocentrismo” envol- ve “uma negacao de Deus como Deus”, pois nega o Deus que é “o poder ea ordenac&o da vida na natureza e na Histéria, que sustenta ¢ limita a atividade humana, que ‘exige’ o reconhecimento de princ{pios e limites de atividades para o bem do homem e de toda a vida”. Axemplo de Barth, Gustafson procura servir-se da heranga da Reforma, especialmente a de Joao Calvino, para reconduzir a ética a uma perspectiva teocéntrica coerente. Por que a heranga da Reforma? Gustafson achou nela trés pontos dignos de louvor: um sentimento da existéncia de um poderoso Ou- tro, o papel central na vida religiosa e moral da piedade, ou seja, os sentimen- tos religiosos (i.e., uma atitude de reveréncia que implica um sentimento de devogao ¢ de responsabilidade), ¢ um entendimento de que a vida humana em relagéo a Deus exige que toda atividade humana seja ordenada em relagio aos 200 ; i & PTA objetivos divinos.*! Além disso, Gustafson segue seus antepassados neo-orto- doxos, garimpando na tradicao da Reforma uma consciéncia da profundidade da “falha humana”.** Partindo dessa base, Gustafson apresenta uma alternativa radical ao antropocentrismo que descobriu nao apenas nas teorias catélicas da lei natural € no evangelho social, mas também nos apelos calvinistas a uma providéncia ~ especial ¢ até mesmo na neo-ortodoxia mais antiga.” Opondo-se a tudo isso, Gustafson pretende articular uma posigo que “nao vé os propdsitos do poder supremo coincidindo perfeitamente com nossos conceitos de bem-estar humano”.*4 Em vez de considerar que Deus e o Universo existem pata nds e para nossa salvacao, ele afirma o contrério: nds ¢ que existimos para Deus. Nosso fim principal, declara ele evocando o Catecismo de Westminster, é“hon- rar, servir e glorificar (celebrar) a Deus”. Conseqiientemente, seguindo seu mentor teoldgico Julian N. Hartt, Gustafson assevera que a primeira tarefa da moralidade religiosa ¢ “relacionar-se com todas as coisas de maneira apropriada as relagdes entre elas e Deus”.** Com esse objetivo, ele estabeleceu como seu programa o desenvolvimento de um conceito adequado de Deus, uma interpretaco conveniente da humani- dade em relagao a Deus e um padrao de ética apropriado. Como o modelo de Barth, o de Gustafson esta centrado na aceitagao humana do governo divino (ie., na obediéncia a Deus). Para ele, esse enfoque teocéntrico transforma a questao da moral humana numa preocupacdo com o “que serve aos objetivos divinos”. Tal enfoque determina que, em tiltima andlise, a vida moral consiste no discernimento dos objetivos de Deus e na adesio a esses objetivos.” Embora profundamente influenciado por Barth, Gustafson recusava-se a se- guir servilmente a autotidade do grande teélogo. Por exemplo, a ética teoldgica de Barth contém uma forte dimensio coletiva, uma vez que se fundamenta no princ{pio da eleicao da humanidade em Cristo. Mais explicitamente que Barth, todavia, Gustafson procurou ir além do individualismo endémico da ética mo- derna e, com base numa profunda consciéncia do cariter social da experiéncia humana”, resgatar o cardter social da vida ética. Daf resultou seu interesse pelo papel das virtudes no desenvolvimento da vida moral no seio da comunidade.” Talvez uma divergéncia ainda maior em relacdo a Barth esteja na importan- cia que Gustafson atribui 2 experiéncia humana. Evocando Schleiermacher e 201 servindo-se diretamente de Jonathan Edwards, Gustafson faz da experiéncia religiosa a plataforma de langamento de sua ética teolégica. Ele apela direta- mente para o sentimento religioso da dependéncia de um poder supremo que nos ultrapassa, um poder que se inclina sobre nés, nos sustenta, ordena nossos relacionamentos, estabelece as condig6es da atividade humana e nos ddo senso de direcao.° Para dar nome a esse poder, Gustafson invoca tradicionais “sim- bolos de Deus” do cristianismo — Criador, Provedor, Dominador, Juiz e Re- : dentor.™ Como sugere o tratamento que Gustafson dé & experiéncia, o pensador norte-americano era muito menos pessimista do que Barth acerca do valor da ética geral. Ele nao via nenhuma contradigao radical entre a natureza ea graca, € sim uma continuidade. A natureza, argumenta Gustafson, é redirecionada ou transformada pela graca. Por isso, a solugdo proposta por ele para o “erro humano” nao nega o aipecto:natural. Ao contrétio, consiste em “controle teordenacio de nossos desejos naturais, amores, instintos naturais aspira- des”. Conseqiientemente, embora compartilhando a preocupacao da Refor- ma para que a ética crista nao cafsse no legalismo, Gustafson achou um bom lugar para os princfpios morais como normas gerais que se podem aplicar em condigées histéricas mutéveis.” E a natureza pode desfrucar uma importincia normativa na qualidade de fonte de normas morais.* O AMOR COMO NORMA CRISTA. Enquanto alguns pensadores exploravam a ética teoldgica da perspectiva da obediéncia ao comando divino, outros ponderavam o contetido desse coman- do. Certos eticistas conclufram que é possivel resumir a vida ética crista a régia lei do amor. Esses pensadores puseram no centro do palco a ética do agape, que sempre desempenhou um papel significativo no pensamento cristo. Para eles, o amor constitufa a norma crista. Os que seguiram essa rota formam a terccira trajetéria do pensamento ético contemporaneo. No in{cio do século XX, o nome mais freqiientemente associado com a reaptopriagéo do conceito cristo do amor foi o de Anders Nygren, nascido em 1890, precursor de outros que construfram sobre o tema. Em sua obra mais conhecida,® esse pensador luterano sueco estabelece um nitido contraste entre as maneiras biblica ¢ helenistica de entender o amor e procura mostrar 202 Speicilaoatetieeatin aiid Reais ci lla que o amor de Deus nao motivado — livre e gratuito — é a categoria funda- mental do cristianismo.** Nygren estabeleceu as categorias no contexto das quais a discussao teolégica sobre o amor se desenvolveu. Mas ele deixou que outros pensassem a tarefa de desenvolver uma ética teolégica do 4gape. Paul Ramsey: a ética do princtpio do amor. Em meados do século XX, da pena de Paul Ramsey saiuta declaragao paradigmtica de uma ética teolégica do gape. Seu livro Basic Christian Ethics (Etica crista basica]” inaugurou a carteira literdria de um dos mais distintos eticistas cristos dos Estados Unidos. Em sua obra, Ramsey repete certos temas fundamentais da neo-ortodoxia. Como Barth, sua principal preocupacdo é construir uma ética realmente bibli- ca — deliberadamente enraizada nas Escrituras, sobretudo nos conccitos de alianca e de Reino de Deus.* A exemplo de outros pensadores de meados do século, Ramsey era cauteloso quando se tratava de cobrir alguma proposta particular ou programa social com o manto de ser a abordagem crista.” Nu- ma t{pica forma-neo-ortodoxa, ele via seu projeto como tentativa de rear- ticular a ética cristocéntrica da Reforma.” A fundamentagio biblica e cristolégica levou Ramsey a fazer do tema do “amor obediente” 0 conceito central da ética crista.>! Com isso, ele apresentou o que Long denomina “ética do princfpio do amor” *2O objetivo de Ramsey era estabelecer uma ética do 4gape que nao eliminasse todo apelo as regras, mas fundamentasse regras morais ¢ estabelecesse “regras praticas” e até instituigdes morais com base no entendimento cristao do amor. Por isso, sua posigao é as vezes caracterizada como “império do agapismo”.»° No entanto, o que é exatamente o amor cristéo? Ramsey foi buscar a res- posta na injung4o biblica de amar ao préximo como a si mesmo. Esse amor, declara ele, envolve “a preocupagio de considerar 0 outro o proximo”, ou seja, “a benevoléncia desinteressada” pelo outto.™ Assim, os cristaos devem buscar o bem do préximo exatamente com a mesma determinagao com que, por natureza, buscam o proprio bem. Devem abandonar a consideragao pruden- te em beneficio préprio e dispor-se a praticar um “altrufsmo esclarecido”.** Definindo 0 amor dessa maneira, Ramsey construiu deliberadamente uma ética deontoldgica, que em primeiro lugar se preocupa com o “certo”, mais que com o “bom”. Em conseqiiéncia, embora defendendo a orientagao cris- 203 tocéntrica abstrafda da Biblia, ele se declarou aberto a defender as causas co- muns da tradicéo filoséfica, especialmente o idealismo.>” Mas o programa de Ramsey envolvia uma transformagio radical da ética filos6fica. Para ele, o que define o que é certo ou obrigatério é 0 amor cristo ao préximo, nao algum princfpio filosdfico, como a preocupacéo com o cu ou até mesmo a busca do bem maior para o maior nimero possivel de pessoas.** Assim, segundo Ramsey, o eticista cristo n&o procura dissuadir o hedonista, por-exemplo,. mas busca transformar os hedonistas, de pessoas que pensam apenas no pird- prio prazer, em pessoas que do prazer (o maior bem conhecido por eles) ao préximo.” De modo semelhante, a ética do 4gape de Ramsey transforma a preocupa- ¢40 com normas ou princ{pios morais. Para ele, existe apenas um princfpio ético fundamental, o do amor ao préximo. Por isso, o ideal moral nao nasce de regras de conduta, e sim de regras auto-impostas por pessoas incondicional- mente ligadas a seu préximo.® As normas tém realmente seu lugar, admite Ramsey, quando concretizam o amor. Portanto, a aco que infringe uma norma pode resultar no enfraquecimento dessa norma e, por via de conseqiiéncia, no enfraquecimento do préprio amor. Todavia, o fundamento para qualquer re- gra ou conjunto de regras morais que regem uma esfera da atividade humana nao estd no apelo a lei natural ou na reflexao sobre a experiéncia moral huma- na em geral, assegura ele, e sim em sua relacdo com o amor.‘! Ramsey, por- tanto, oferece uma posi¢éo matizada em relacao 3 lei natural, admitindo que a reflexao filoséfica pode levar a percepgdes com conceitos éticos, como a justi- Ga, € que 0 cristéo pode servir-se das percepgoes éticas dos te6ricos da lei natu- ral. Mas o eticista do Agape ¢ inflexivel em sua afirmacao de que a lei natural jamais pode ocupar o lugar privilegiado dos fundamentos da ética crista — essa posigéo deve ficar reservada para o amor,* pois nenhuma lei natural pode abranger todas as exigéncias do amor cristao. O enfoque no valor normativo do amor levou a uma fluidez que nao se encontra em outras propostas éticas mais rigidas e centradas na norma. Ramsey escreve: “O amor cristo, cuja natureza é deixat-se guiar pelas necessidades dos outros, muda de tdtica com a mesma facilidade com que se mantém firme e imével. Faz isso ou aquilo por causa da sua estratégia sempre inalterdvel de acomodar-se as necessidades do préximo”. 204 O amor cristo deu a Ramsey um ponto de partida para atacar outras ques- t6es filosdficas modernas. Dentre elas, destacam-se duas: os direitos pessoais ¢ a busca da virtude. O eticista do agape afirmava que, na ética crist, os direitos so “derivados retroativamente” de uma consideragéo pelo amor ao préximo. Essa abordagem resultou numa mudanga radical dos direitos para os deveres, “da reivindicacao para a doagao do que nos cabe”.° Qualquer reivindicagao de direitos, declarou ele, é de fato uma reivindicagao de “que meu préximo os possui em mim. Se meu préximo os possui em mim, esses direitos s40 meus deveres — deveres também para comigo mesmo, se forem deveres cristios —, que tenho para com 0 préximo por amor a Cristo”. Embora expressasse algum interesse pela teoria da virtude, chegando até a sugerir que ela flui do amor, Ramsey recusou-se a endossar a equiparagio da ; vida ética com o cultivo de virtudes pessoais, posi¢ao to proeminente entre | 08 fildsofos antigos. Ao contrério, ele parece desmantelar toda a tradi¢ao grega . com um tinico e poderoso golpe ao afirmar que a razdo € a inteligéncia morais | ho faziam parte da dotacao original dos seres humanos, mas passaram a exis- tir como conseqiiéncia da Queda.” A principal preocupacao de Ramsey com a ética da virtude, todavia, estava. } dum nivel mais profundo. Mais que o produto do cuidadoso cultivo de tra- . Gs de cardter ou hdbitos, para usar uma linguagem tomista, 0 amor ao préximo ; é sempre uma “decisdo presente”. Todavia, apesar dessa critica, o eticista do * égape de fato realga certas virtudes — principalmente a humildade e af — como as que contribuem para o amor ao préximo. Estas, conclui ele, tém um * lugar na estrutura de uma ética do dgape.” | Joseph Fletcher e a ética da situagao. O primeiro nome que vem & mente de muitas pessoas quando se menciona a ética do amor nao é 0 de Paul Ramsey, mas o de Joseph Fletcher. Em 1966, o antigo dedo da catedral de Saint Paul em Cincinnati, que depois foi professor de ética social na Escola Episcopal de Teologia em Cambridge, Massachusetts, produziu o que seu editor anunciou . como um livro “explosivo” que “vai ofender a alguns, entusiasmar a muitos ¢ g desafiar a todos!”. E a obra’ nao ficou aquém de sua promogo. Assim que # Apareceu, o livro criou uma tremenda tempestade — embora em grande parte fora dos muros da academia. ‘Num ensaio do famoso livro, publicado trés anos antes, Fletcher distingue y sua abordagem do método tradicional da ética crista. De acordo com essa 205 caracterizacao, o modelo mais antigo, que Fletcher rotula de “casufstica”, co- mega com 0 ideal cristo, formula um conjunto de princfpios funcionais de conduta e depois reflete sobre como essas normas se aplicam a situagées espe- cfficas. Ele, ao contrario, procurou virar esse processo de cabega para baixo: Comecamos examinando a situagéo de modo empirico ¢ indutivo em todas as suas particularidades contextuais. Depois tentamos extrair dela alguns principios praticos “geralmente” validos. E sé no fim, de uma for- ma ainda mais aberta, referimo-nos em temor ¢ tremor ao ideal, E do ideal em si sé vemos um tnico princfpio, uma norma ou padrao monolitico em relagéo a0 qual todos os outros principios devem ser verificados na situagao concreta, Esse tinico juizo € 0 amor égape.”! O que resultou dessa inverséo do método ético tradicional foi um “aga- pismo da ago”, uma é¢tica radicalmente contextual em que o agente moral determina a melhor forma de agir “em determinado lugar ¢ hora’”?de uma situagao especffica. Em que base se estabelece essa determinagao? O agapismo da aco apresen- ta uma resposta simples — na base do amor. Em cada situagio, o agente moral procura determinar qual a coisa mais amorosa a fazer. Assim, 0 objetivo da reflexdo ética é determinar o que Fletcher denomina “propriedade contextual”, isto é, nao o bem, nao o certo, mas o “adequado”.” Fletcher nao considerava sua teoria ética nova ou radical.” Em sua opiniao, 0 situacionismo traga uma rota intermediéria entre o legalismo e o antinomis- mo sem principios.”> Todavia, ele estava sobretudo interessado em solapat a primeira dessas alternativas, convencido de que ao longo dos séculos os legalistas dominaram a ética crista.” Assim, no agapismo da agao nfo cabem principios morais absolutos (excetuada a norma geral do amor). Todas as outras “normas” sao meros “métodos praticos”,” compardveis ao know-how de um esportista experiente, e devem portanto ser alteradas de acordo com as circunstancias.”* Assim, em vez de confiar nas normas, Fletcher declara que “o indicativo mais 0 imperativo é igual ao normativo”. Em seguida, explica essa capciosa formulagi O amor, no modo imperativo da preocupagdo com o préximo, exami- nando os fatos relativos da situag’o no modo indicativo, descobre o que é 206 thane tb be SATEEN BY. aR wa obrigado a farer, 0 que deve fazer, no modo normativo. © que é & luz do que o amor exige, mostra 0 que deve ser.” A descrigéo do amor apresentada por Fletcher nao difere muito da de ou- tros autores da tradigao crista. Basicamente, ela consiste na benevoléncia ou boa vontade. O amor também pode ser equacionado a justia, no sentido de que a justiga € simplesmente amor distribuido.® Esse amor é desinteressado, imparcial, inclusivo e indiscriminado. Quer o bem do préximo, gostemos ou no desse préximo.*'Em tiltima andlise, nao praticamos esse tipo de amor por amor a nés mesmos ou ao préximo, e sim por amor a Deus.” O agapismo da ago de Fletcher foi aplaudido por adeptos convictos atacado por criticos céticos.” Alguns dos protestos basearam-se em interpreta- ges equivocadas de sua verdadeira posi¢ao ou foram desencadeados por suas declaragées radicais sobre certas questées, especialmente as relacionadas com a sexualidade humana. Mais pertinentes sdo as criticas que ressaltam a evidente falta de embasamento teoldgico da obra desse autor. Ele faz uma débil tenta- tiva de estabelecer uma base cristolégica para sua posi¢go. O amor cristo, decla- ra ele, é motivado simplesmente pela gratidao por aquilo que Deus fez por nés em Cristo.> Mas talvez ele mesmo tenha percebido sua principal falha, a saber, que a obra Sitwation Ethics (Etica da situagao}, como apresentago de uma ética especificamente teolégica, deixa a desejar. De fato, como o préprio Fletcher admite, “o situacionismo € um método, e nao uma ética substantiva”.* AETICA DO DISCIPULADO ‘A maior parte dos cristios provavelmente concordaria que a ética cristé, em certo sentido, ¢ a ética do amor. A maior parte também acrescentaria que a vida crista esta de alguma forma ligada ao discipulado: os cristios devem se- guir os passos de seu Senhor. Por isso, o discipulado tem sido um tema recor- rente no pensamento ético cristo. Mas como devemos entender o discipulado? O crescente ntimero de pensadores que enfrentam essa quest4o compée a quarta trajetéria dentro da ética teolégica contemporanea. O romance de Charles Sheldon Eim seus passos, que faria Jesus? representa 0 que poderia ser a cldssica resposta a esta pergunta do século XIX: “O queé ;. discipulado cristéo?”. Segundo Sheldon, discipulado significa enfrentar os 207 problemas sociais 4 maneiza de Jesus, isto é, respondendo & pergunta: “O que Jesus faria?”, Como vimos, para os eticistas do século XX, escolados pelos horrores de guerras devastadoras ¢ pela desintegracao da sociedade, essa abor- dagem simples nao parecia crivel nem vidvel. Todavia, a ética do discipulado ndo desapareceu da esfera de aco dos pensadores cristaos. Dietrich Bonhoeffer: ética como santidade no mundo. A prisio em 1943 ea subseqiiente morte nas mos da Gestapo nos Ultimos dias do regime nazista interrompeu a carreira de um dos mais promissores jovens intelectuais da Ale- manha, Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Apesar da natureza fragmentéria de seus escritos, as reflexdes éticas desse autor continuam vivas em obras como Discipulado,” concluida durante a época em que ele dirigia um seminério clandestino em nome da Igreja Confessante,* Etica,** uma reconstrugao ba- seada em manuscritos incompletos escondidos da Gestapo, bem como em sua informal Resisténcia e submissdo: cartas e anotagbes escritas na prisio.? A ctistologia proporcionou o fio unificador dos escritos de Bonhoeffer, como também aconteceu com Barth.” Durante toda a vida, Bonhoeffer de- bateu-se intensamente com a pergunta: “Quem ¢ Jesus Cristo?”." Respondeu com firmeza, baseando-se na doutrina luterana: “Cristo é aquele em quem Deus se reconciliou com 0 mundo”. Mais dificil foi a pergunta afim: “Onde Cristo estd presente?”. Sua primeira resposta foi eclesiolégica: “Cristo esté na comunidade dos que créem”.”* Mas um segundo tema — a presenca de Cristo no mundo — logo juntou-se ao primeiro.® Esses postulados eclesiolégicos proporcionaram-Ihe o fundamen- to para sua conclusao tipicamente barthiana de que a ética cristé comega com 0 comando divino e a obediéncia a esse comando.™ Mas eles levaram o autor A insistente idéia, nada barthiana, de que a vida crista tem como conseqiiéncia seguir Cristo de volta para o mundo e, portanto, participar de seus sofrimen- tos messidnicos. Bonhoeffer preparou o palco para a sua posi¢’o ética no vivido contraste entrea “graca barata’ ea “graca cata” que cle apresenta em Discipulado. A “graga *A Igreja Confessante, Bekennende Kirche, movimento de renovacao no seio das igrejas cists da Alemanha de 1930, propunha-se a resistir as tentativas de Hitler de transformar as igrejas em instrumentos de propaganda politica do nazismo [N. dol]. 208 barata” refere-se ao “sectarismo religioso”, que o pensador alemio descreve de modo incisivo: “A graga barata é a pregacao do perdao sem exigit-se 0 arre- pendimento, do batismo sem a disciplina, da comunhio sem a confissio, da absolvicao sem a confissio pessoal”.”* A “graca cara”, ao contrdrio, €a mensa- gem de que a salvago custa muito, Custou a Deus seu Filho, ¢ exige de nés obediéncia, isto é, uma vida de discipulado. ‘Com essas palavras, 0 jovem alemio mirava diretamente para a Igreja Luterana de seu tempo, que na avaliagéo dele havia exaltado a graca em detri- mento do discipulado. Contra os que cometeram esse erro, ele apelava para 0 préprio Lutero, que, afirmava Bonhoeffer, descobriu a graga cara quando vol- tou do claustro para o mundo. Aquela altura, o grande reformador aprendeu. que “a Unica maneira de seguir Jesus era vivendo no mundo” % Na prisio, Bonhoeffer refletiu mais sobre 0 significado da vida ética crista. Concluju que a experiéncia contemporinea de um mundo “que atingiu a maioridade” exige um discipulado radical caracterizado pela “vida santa no mundo”. Para entender o apelo de Bonhoeffer por uma vida crista no mundo, preci- samos vé-lo como a aplicacao de seu axioma cristolégico fundamental 4 vida do discipulado. Para o pensador alemao, a principal tentagéo que os cristaos enfrentam éa vontade de retirar-se do mundo e fechar-se num piedoso enclave ou ver a religido como uma dimensao da existéncia paralela a outras. Cristo, porém, encontra-se no mundo, e nao apenas em alguma esfera religiosa espe- cial. Conseqiientemente, 0 evangelho no é um chamado a ser “religioso”. ‘Tampouco devem os cristéos lutar por uma devogao distanciada, desengajada, que busque elevé-los acima da humanidade. Mais que a pratica do asceticismo ow a tentativa de servir a Deus apenas em algum santudrio estéril ou num enclave cristio protegido e isolado, ser cristo significa participar da vida do mundo. A Igreja, argumenta Bonhoeffer, deve “erguer-se no centro daaldeia’.” ‘Ao seu estilo, Bonhoeffer declara que devemos “beber a taga terrena até as fezes”, pois sé assim o Senhor crucificado € ressuscitado estard.coriosco.”* Ele reconhece que essa participagio na vida no mundo significa desfrutar-do bom _ daexisténcia.” Mais importante, porém, é que a vida santang supdoimplica a participacéo nos sofrimentos de Deus na vida do mundad#? Yiver como verdadeiro discfpulo significa caminhar seguindo os passoinglesquem foi “o 209 homem para os outros” e tornar-se vulnerdvel no servico em favor do mundo, pois “a Igreja ¢ ela mesma apenas quando existe para a humanidade”."®! Para Bonhoeffer, o verdadeiro discipulado emerge quando tomamos cons- ciéncia da forte ligagao entre o “pemiltimo” ¢ 0 “tiltimo”, entre 0 mundo presente ¢ a realidade eterna que Ihe dé significado. Vivemos como quem pertence inteiramente a este mundo, sem perder de vista a visio da realidade Ultima. Essa ligacZo com o mundo significa que os cristaos devem evitar tanto a total rejeigao quanto qualquer sangio completa do pentiltimo mundo, 0 mundo presente,' a esfera em que o objetivo de Deus de justificar 0 pecador apenas pela graca deve ser provado e servido. Quando agimos assim, nossa vida se torna uma participagio no encontro entre Deus e 0 mundo.!° O apelo de Bonhoeffer a uma vida santa no mundo nao era um aval para uma vida permissiva ou imoral. Ao contrério, seu enfoque incidia diretamen- te sobre a senda da moralidade da verdadeira fé crista. Visto por esse Angulo, ser cristéo no mundo envolve o abandono de “todas as tentativas de ser al- guém importante, sem importar que seja um santo, um pecador convertido, um eclesidstico (do tipo clerical!), um homem justo, um injusto, um enfermo ou um homem sadio”. Em vez disso, “vivendo naturalmente [...] atiramo-nos sem restrig6es aos bragos de Deus e participamos de seus sofrimentos no mun- do”. A participagao nos softimentos de Deus no mundo exige que chegue- mos ao nosso limite, ¢ isso requer que vivamos “junto & presenca de Deus”. Apenas estando “em Cristo”, conclui Bonhoeffer, podemos obter forca para enfrentar os desafios da vida.!% James McClendon: uma ttica para disctpulos em comunidade. Todos os cris- Gos compartilham o desejo de viver como seguidores de Cristo, mesmo que no seja no grau estabelecido por Bonhoeffer para uma vida santa no mundo. Ainda assim, pensadores que defendiam radicalmente a tradi¢Zo da Reforma foram os primeiros a situar o discipulado exatamente no centro da vida ctis- 14,'%° ‘Todavia, 0 conceito tipico do discipulado que encontramos entre os herdeiros da Reforma radical nao se confunde com a devogao individualista que muitas vezes se constata nos circulos protestantes mais tradicionais. Ao contrério, esses pensadores — fazendo coro com vozes de outras tradigoes radicais'” — tendem a colocar no centro do palco um tema que Bonhoeffer descobriu por meio da experimentagao no campo da educagio zeolégica clan- 210 Adie th ld, * B destina, a saber, a importancia da comunidade crista para a construcao de uma ética do discipulado. O tedlogo batista James William McClendon apresenta uma interessante mudanca de diregdo nessa ética do discipulado em comunidade. Opondo-se tanto a Bonhoeffer quanto ao influente pensador menonita John Howard Yoder (a quem ele confessa gratido), McClendon aborda a tarefa ética pela ~ porta da teologia narrativa. De fato, ele se distinguia como pensador narrativo antes ainda de se dedicar especificamente A ética, como se vé no titulo de um livro da fase inicial, Biography as Theology: How Life Stories Can Remake Today’ Theology (Biografia como teologia: como as biografias podem reformular a teologia de hoje] (1974). Na década de 80, McClendon passou a se dedicar 4 tremenda tarefa de construir uma ética narrativa. Seus esforgos cristalizaram-se na obra intitulada Exhies: Systematic Theology, Volume One (Etica: teologia sistemética, volume um] (1986),!8 que serviu de base para uma obra subseqiiente, Doctrine: Systematic Theology, Volume Two (Doutrina: teologia sistematica, volume dois] (1994). Essa seqiténcia ilustra a importante tese, que McClendon partilha com alguns pensadores contemporancos, de que a ética precede a doutrina cronolo- gicamente (embora no logicamente). O pensador batista explica a ordem apropriada da investigacao teolégica: “Comegamos descobrindo a forma da vida comum no Corpo de Cristo. [...] Isso ¢ ética. Continuamos com a inves- tigagdo do ensinamento piiblico e comum que sanciona e sustenta essa vida comum”.!!° Essa sébria definicdo de ética indica a diregao tomada pela ética teolégica de McClendon. A base da qual ela se origina éa heranga batista do autor. Essa heranga inclui forte énfase tanto no discipulado “como vida transformada em obediéncia 4 soberania de Jesus” quanto na comunidade “como comparti- Ihamento cotidiano da visio”.'"" Em harmonia com esse enfoque, McClendon desloca a énfase moderna na tomada de decisao em beneficio da vida compar- tilhada da igreja crista.!” McClendon reconhecia o fato de que os cristéos vivem em varias esferas simultaneamente—a ordem natural, o mundo social humano ¢ 0 nove mundo escatoldgico estabelecido por Deus por meio da ressurrei¢ao de Jesus.'? Essa observacao levou-o a dividir a reflexio ética crista nas categorias de ética do 211 corpo, ética social e ética da ressurrei¢éo. No centro da moralidade cristé, po- rém, estd a ressurrei¢ao de Jesus, que nos proporciona “uma nova base, uma nova visio, um novo dinamismo”" que conduzem 2 transformacao da vida social ¢ da vida corpérea. Essa transformacSo acontece na vida da comunidade crista. Para os cristdos, afirma McClendon, a igreja reunida é o vinculo que liga a ética do corpo com a ética social — que liga 0 eu moral com moralidade social." A vida crista emer- ge “nas préticas comuns que envolvem o individuo e juntam os discipulos de Jesus Cristo numa uniao de solidariedade para seguir obedientemente a ele”."" Assim, utilizando a propria sugestao de McClendon, podemos caracterizar sua posigio como “uma ética para discfpulos em comunidade”."”” Segundo ele, trata-se de uma ética narrativa, porque por meio da interacao de seus trés fios exibe os elementos de uma narrativa: personagem (identidade pessoal corporificada), cendtio social (a comunidade crista) e incidente ou circunstin- cia (a acdo de Deus sobre nés na cruz e na ressutreigao de Cristo)."* AETICA DA LIBERTAGAO Como movimento distinto, o evangelho social nao sobreviveu ao ataque dos criticos neo-ortodoxos. Todavia, 0 etos encamnado por ele néo morreu. Vimos anteriormente como esse movimento transmitiu seu legado a ética social ecuménica do Conselho Mundial de Igrejas. Sua visio de uma sociedade em que os marginalizados usufruem os beneficios da justica continua viva também sob outra forma, a saber, nos virios tipos de ética da libertagao que emergiram a partir de 1960. Alguns dos arquitetos da libertacéo, como Martin Luther King Jr., sofre- ram influéncia direta dos defensores do evangelho social, especialmente de Walter Rauschenbusch.!”? Outros, como Gustavo Gutiérrez, talvez nunca te- nham lido os escritos desse heréi norte-americano.’” Seja como for, os pro- ponentes da libertagao dao novos rumos ao apelo do evangelho social por uma sociedade realmente justa, numa tentativa de satisfazer 0 que eles véem como necessidades da situagio que os confronta. Agindo assim, eles constituem a quinta trajetéria distintiva da reflexao ética contemporanea. Martin Luther King Jr.: ¢tica da néo-violéncia militante. Nos Estados Uni- dos, o nome que, acima de qualquer outro, passou a ser associado com a luta 212 ' politica dos marginalizados é 0 do pastor batista e ativista social Martin Luther King Jr. (1929-1968). Em vida, King foi uma figura controversa. Mas, desde sua morte prematura pelas maos de um assassino, a nagao norte-americana passou a reconhecer nele o grande lider do movimento dos direitos civis du- rante a turbulenta década de 60 e entendeu seu compromisso com a resisténcia pacifica na luta pela igualdade racial para os afro-americanos. “~~ O trabalho incansdvel de King foi uma decorréncia de convicgées teolégi- cas que lhe deram a base do entendimento da ética. Mais pritico que tedrico, ele nao estava interessado em organizar uma ética teolégica elaborada. Tam- pouco concentrava as energias na formulagio de respostas elaboradas as ques- tes ticas comuns acerca da natureza do bem. Ao contrério, sua preocupacao voltava-se para um problema concreto e imediato: como conhecer ¢ praticar 0 bem em determinadas situagdes,!”! especialmente em relagio & justica social. Por isso, antecipando-se aos tedlogos da libertaco, ele procurou envolver a teologia na pratica da ética social. De fato, segundo esse lider, todo o pensa- © mento ético é apenas um método para eliminar o mal social, ¢ a vida ética primeiramente a implementagao desse método.'” O-compromisso de King com a ética social nasceu de seu modo de enten- det o evangelho.” Ele acredirava que um dos primeiros propésitos de Deus era o estabelecimento de uma ordem social e econémica justa sobre a Terra. Essa ordem promoveria o desenvolvimento de todos os seres humanos,'™ de acordo com o modelo revelado por Jesus, que € nosso ideal humano. Esse entendimento proporcionou a King um critério para avaliar a justica de todas as leis criadas pelo homem: Como se determina quando uma lei é justa ou injusta? Uma lei justa é um cédigo estabelecido pelo homem que se hatmoniza com a lei moral. [uu] Qualquer lei que eleve o ser humano é justa. Qualquer lei que degrade o ser humano ¢ injusta. Todos os estatutos de segtegacio racial sao injus- tos porque a segregacéo desfigura a alma ¢ prejudica a personalidade. Bles dao a quem segrega a falsa impressao de superioridade, ¢ a0 segregado, a falsa impressio de inferioridade.!?> Una ver que a implementagao do programa divino exige o envolvimento humano, a justica social tornou-se para King a tarefa ética primeira. Esse obje- 213 tivo, acrescenta ele, é atrapalhado por certas estruturas mds, incluindo-se af o individualismo econémico, bem como atitudes e habitos como a apatia em telaco aos pobres, o materialismo prdtico e o desconhecimento da situagZo alheia. O desafio para a ética nesse contexto, conclui King, é estabelecer um método moral que se oponha a estruturas ¢ atitudes negativas, como as men- cionadas, provocando assim a mudanga. Motivado pela visio ctistd, o objetivo de King ndo era o “poder negro”, mas uma comunidade racialmente inclusiva— a integraco racial.”6 Ele acte- ditava que, por serem criadas & imagem de Deus, as pessoas esto insepara~ velmente ligadas.”” Em sua avaliacéo, porém, esse ideal nao € simplesmentea substancia do evangelho. Ele também resume 0 propésito do povo norte- americano. Por isso, 0 objetivo de King era nada menos que “moldar uma nagSo verdadeiramente crista”.”* O método que ele defendia para promover a passagem da injustiga para a justiga e assim propiciar a restauragéo do que ele chamava “bem-amada comu- nidade” integral era resisténcia ndo violenta, ou seja, a ndo-violéncia militan- te. Estava convencido de que essa tatica era a melhor maneira de combinar a moral ¢ a politica para chegar & verdadeira justica.'” Mas para King a nao- violéncia era mais que um mero meio pragmitico para chegar a justica.'"° De fato, ele elevou o que chamava “ndo-violéncia consciente” ao n{vel de conceito normativo central.’ Entretanto, por que a ndo-violéncia? King apresenta varias razdes. Uma delas, muito pragmdtica. A ndo-violéncia pode conseguir resultados em situa- gOes em que a violencia seria simplesmente imutil. Numa situagao de medo, 6dio, violéncia ou irracionalidade, argumenta King, apenas a nao-violéncia produz respeito pela lei, convencendo o povo de que as leis esto certas: Por isso, a ndo-violéncia se apresenta como a suprema forma de per- suasio. Eo método que procura implementar a lei justa, apelando para a consciéncia da grande maioria decente que, pot cegueira, medo, orgulho ¢ irracionalidade, permitiu que a consciéncia ficasse entorpecida.” Além disso, uma vez que a luta, em tiltima andlise, é contra os poderes do mal, € nao contra seres humanos, King declarava que seu objetivo nao era a vitéria sobre os opositores fisicos, e sim a vitéria sobre a fonte do conflito, o que 214 ua batting aba saa baat eis mig aoe levaria a uma reconciliagao com seus opositores.!® O melhor meio de alimen- tar esse propésito era a no-violéncia, que nao sé ajuda os moralmente fortes aresistir ao mal, como também se recusa a espalhar novas sementes de rancor, quebrando assim a corrente do ddio. Era a melhor maneira de provocar a reconciliagao entre a vitima e o autor da injustica. Métodos violentos, ao con- trdrio, apenas intensificam a hostilidade. King explica: O problema do édio ¢ da violéncia ¢ que eles intensificam os temores da maioria branca e permitem que ela sinta menos vergonha de seu pre- conceito contra os negros. Em meio & culpa e confuséo que nossa socie- dade enfrenta, a violéncia apenas alimenta 0 caos. Aprofunda a brutalidade do opressor € aumenta 0 rancor do oprimido. A violéncia ¢ a antitese da criatividade ¢ integridade. Destréi a comunidade e torna a fraternidade imposstvel.™ ‘Acima de tudo, porém, King defendia a ndo-violéncia por ser o que mais se aproxima da encarnagio do ideal cristéo do amor (agapé), o qual inclui a possibilidade do sofrimento. De fato, para ele, a nfio-violéncia envolve a dis- posigio de preferit softer na propria carne a infligir softimento a outros." Em liltima andlise, é esse aspecto que transforma a ndo-violéncia de simples meio alternativo para a violéncia naquilo que para King era um estilo de vida, ou, como observa James Hanigan, uma “espiritualidade”."™ Mas, para que essa transformagao aconteca, o resistente nao violento deve renunciar nao apenas a qualquer violéncia fisica, mas também a qualquer violéncia espiritual,'"” de mo- do que o proprio amor possa ser a motivagio para a resisténcia nao violenta."* Como no caso do préprio Jesus, a ndo-violéncia motivada pelo amor pode causar grande bem. King resume toda a sua ética ao declarar: © softimento se torna uma poderosa forga social quando se aceita deliberadamente essa violéncia na prépria carne, de modo que o softi- mento pessoal ocupa o centro do movimento da nao-violéncia, ¢ os envol- vidos sapem sofrer de maneita criativa, sentindo que o sofrimento imerecido & redentor e pode servir para transformar a situagio social.” Gustavo Gutiérrez: a ética da libertagao, Em 1968, na cidade colombiana de Medellin, os bispos da Igreja Catdlica da América Latina chocaram o mundo 215 ao condenar a tradicional alianga da Igreja Romana com os poderes dominan- tes da América Latina, descrevendo a situagdo nessa patte do mundo como “violéncia institucionalizada” contra o povo.° Em muitos paises, 0 crescente abismo entre ricos e pobres foi tratado com uma “segunda violéncia” — mo- vimentos revoluciondrios dispostos a derrubar regimes opressores. Numa ten- tativa de declarar que papel devem desempenhar os cristéos num clima de revolucao, Gustavo Gutiérrez, padre peruano € professor de teologia, publi- cou a obra Teologia da libertagdo, Nascia assim um novo movimento teolégico. A ligacao intima entre teologia e ética no movimento da libertacao fica evi- dente numa de suas mdximas diretivas: a teologia é “uma reflex4o critica da prdxis crista a luz da Palavra de Deus”."“" ‘Um pressuposto por trds da teologia da libertacao diz que a teologia deve ser contextualizada, isto é, deve estar intrinsecamente vinculada A situagao cultural e social do momento. Essa posicao baseia-se em parte na chamada “sociologia do conhecimento”, teoria segundo a qual o conhecimento sempre tende a refletir os direitos adquiridos do conhecedor. Para elevar-se acima dessa estrutura fecha- da em si mesma, o povo deve submeter seu condicionamento sécio-ambiental a um exame critico, isto ¢, deve exercer uma “consciéncia critica”." Esse processo foi inaugurado no fim da década de 50 e no inicio da década seguinte por Paulo Freire, educador catélico do nordeste do Brasil. Convencido de que os préprios pobres devem dar o primeiro passo para solucionar o pro- blema da miséria, cle se empenhou na pregagio do que chamou conscientiza- ¢fo ou “tomada de consciéncia”. Uma vez que a pobreza é causada por alguns privilegiados que defendem a prépria condigao, declara Freire, os pobres de- vem libertar-se da “mentalidade de dominados condicionados” ¢ libertar os ticos da filosofia de “dominadores condicionados”. Partindo da obra de Freire, Gutiérrez declarou que, em virtude da situagio particular da regido, a tarefa da teologia era reagir ao problema da “nao-pessoa”, “o ser humano que nao € considerado humano pela ordem social presente — que explora classes, marginaliza grupos étnicos ¢ despreza culturas”.'“ O padre peruano explica: “Nosso problema é como dizer a essas nio-pessoas, aos ndo- humanos, que Deus é amor e que esse amor nos faz a todos irmaos e irmas”."" No entanto, nao foi sempre essa a tarefa da Igreja crista? Para entender Gutiérrez, precisamos lembrar que a América Latina, ao longo de sua histéria, 216 tem sido predominantemente catélica romana. Na avaliagao dele, apesar de € afirmar o contrério, a Igreja Catélica ndo é “neutra”. Ela de fato sempre se : posicionou a favor do status quo, isto é, dos opressores que impingem a po- breza estrutural ¢ a violéncia institucionalizada contra pobres e marginaliza- dos.“ A questo, portanto, nao é saber se ela deve “envolver-se na politica”, } mas saber de que lado deve ficar. “A resposta de Gutiérrez a essa questo ¢ inflexfvel e clara. Em situagao » revoluciondria, caracterizada pela luta e pelo conflito de classes, a Igreja deve ficar do lado dos oprimidos. Por qué? Nesse ponto, emerge a fundamentagao teoldgica da ética de Gutiérrez. Deus tem demonstrado que estd do lado dos . pobres. A fim de provar essa tese, o tedlogo apela para a histéria biblica da libertacao, associando-a intimamente com Deus. Nos grandes acontecimen- __ tos do AT, como o Exodo, explica Gutiérrez, Deus de fato interferiu na His- t6ria, libertando seu povo da escravidao e da opressao. Acima de tudo, Deus interferiu na Histéria em Jesus Cristo." A atividade histérica de Deus a favor » dos pobres no terminou, porém, no passado. Segundo o tedlogo da liberta- ; ¢éo, Deus atua hoje onde quer que os pobres ¢ marginalizados estejam ga- - nhando a liberdade. Por via de conseqiiéncia, para Gutiérrez. “os pobres sao preferidos nao por serem melhores que os outros do ponto de vista moral ou religioso, mas por- que Deus é Deus, ¢ aos olhos dele ‘os tiltimos serao primeiros’”."“ Embora Deus ame a todos, ele se identifica com os pobres, revela-se aos pobres € posiciona-se ao lado dos pobres contra todos os opressores que tentam explord- los e desumanizé-los. Esse enfoque de Deus como Libertador dos marginalizados esté em perfeita ; sintonia coma reinterpretac4o que Gutiérrez faz de outra doutrina fundamen- = tal da ética libertétia—a da salvagao.! Na verdade, o padre peruano articula . uma ampla explicagio desse conceito teolégico: salvacao significa Deus e seres © humanos trabalhando juntos no seio da Histéria para conseguir a humanizagio » plena de todos os relacionamentos. Na avaliagao de Gutiérrez, porém, a Igreja , tem oferecido uma visdo truncada da salvagio, referindo-se a ela unicamente em termos “quantitativos”, numa tentativa de “garantir 0 céu” a seus fiéis se- : guidores, Ao contratio disso, a situacio da América Latina exige que a salvagio E -seja reinterpretada em termos qualitativos — como 0 compromisso de pro- 217 mover uma transformagao social que fomente a “libertagdo de tudo o que limita ou impede os seres humanos de se realizarem”.!*° Todas as aces que promovem o objetivo de abolir as estruturas sociais injustas, opressivas, ex- ploradoras e alienantes sdo libertadoras e, portanto, salvificas,'*! O envolvimento na transformacio social tem outra finalidade também. Segundo Gutiérrez, essa é “a tinica maneira de se ter um verdadeiro encontro com Deus”.'* Deus, afirma sem medo o padre peruano, sé pode ser encontra- do na “converséo para o préximo” e por meio dela.'*8 Portanto, unindo-nos & causa de Deus neste mundo, estamos de fato nos unindo a Deus. Os principais instrumentos da missao crista no mundo s4o a dentincia de estruturas sociais opressoras ¢ 0 antincio da vontade de Deus paraa total liber- tagao de tudo o que desumaniza as pessoas. Mas, ao contrdrio da posigéo de rigorosa ndo-violéncia de Martin Luther King Jr., Gutiérrez admitia que, mesmo nunca sendo ideal, a violéncia as vezes é 0 ultimo recurso necessdrio na luta pela justica. Conseqiientemente, ele se recusava a criticar os que pegavam em armas para combater a violéncia do poder estabelecido. Seu argumento é sim- ples: “Nao podemos dizer que a violencia esté certa quando o opressor a utiliza para manter ou preservar a ‘ordem’, mas esté errada quando 0 oprimido a usa para derrubar essa mesma ordem”.' Rosemary Radford Ruether: tvica ecofeminista. A partir de 1970, algumnas pensadoras feministas usaram linguagem semelhante a de Gutiérrez para cla- mar pela libertagao de outro grupo marginalizado — as mulheres. No entan- to, em vez de enfocar a justiga econémica, como fizeram os tedlogos latino-americanos, as femninistas voltaram-se para a opressio distintiva que prevalecia nos relacionamentos de géneros. Por essa raz4o, 0 cavalo-de-batalha da ética feminista em geral tem sido a busca de modelos participativos e igua- litétios de estruturas sociais capazes de substicuir as estruturas hierérquicas € patriarcais que as feministas veem como dominantes ao longo de quase toda a histéria humana. Uma voz exponencial da causa feminista é a prolifica autora e professora de teologia do Seminario Teolégico Evangélico de Garrett, Rosemary Radford Ruether. Nos tiltimos anos, Ruether introduziu a abordagem feminista na discusséo de outro grave problema da ética contemporanea — a ecologia. E ébvio que Ruether nao é a nica tedloga cristé a ingressar na esfera da ecolo- 218 a 4 & 3 4 3 4 2 4 seinen gia.'°O que ¢ importante em sua obra é a mistura de feminismo ¢ ambientalismo no que ela e outros chamam “ecofeminismo”.!® Juntando os dois fios, o ecofeminismo, nas palavras da autora, “explora como a dominacio masculina das mulheres ¢ a dominagao da natureza esto interligadas, tanto na ideologia cultural quando nas estruturas sociais”.'*” Sua tarefa como ecofeminista, por sua vez, é “continuar a luta para reconciliar a justica nas relagdes humanas com uma comunidade de vida sustentavel sobre a Terra”.!* Eticistas ambientalistas contemporaneos abordam este tema por muitos meétodos, alguns dos quais sao deliberadamente religiosos ou teolégicos. Como indica o titulo de seu livro, Gaia and God [Gaia e Deus}, 0 ecofeminismo de Ruether € representativo daqueles que retornam 2 antiga idéia de Gaia, a deusa grega Terra.'” Todavia, a tedloga feminista nao descarta completamente a tra- dicdo crista. Em vez disso, ela toma o legado daqueles que, dentro das tradi- g6es cldssicas, lutaram contra a injustica € 0 pecado, separando-o do que ela chama de “o lixo téxico da dominagao sacralizada’.!° Avisao de Ruether tampouco se limita a antecipat uma nova conscientiza- So ecolégica. Considerando interligados todos os modelos de destrui¢o que imperam no mundo, seu objetivo é nada menos que promover uma reor- denago profunda da sociedade em todas as suas dimensdes. Essa reordenacao social envolveria uma reestruturagao fundamental das relagées sociais, de modo que elas deixassem de ser sistemas de “dominacao/exploragio” Para tornar-se sistemas que cla denomina “reciprocidade biofilica [ie., amiga da Terra)” ! Uma sociedade assim transformada alimentaria “um inter-relacionamento amoroso ¢ justo entre homens ¢ mulheres, entre ragas ¢ nagées, entre grupos atualmente estratificados em classes sociais, evidentes nas grandes disparidades de acesso aos meios de vida”," Se esse € 0 objetivo, qual é o fundamento da ética ecofeminista? Ruether esboga varios temas teolégicos que poderiam atuar juntos para transformar nossa “cultura de alienacao ¢ dominagao competitivas” numa cultura de “soli- dariedade compassiva’.'® Apelando para o antigo conceito filosdfico do ser humano visto como um microcosmo ou um fragmento da “alma césmica”," Ruether baseia-s¢ na. idéia do inter-relacionamento fundamental de todas as coisas. Por isso, a'exemplo de muitos outros ambientalistas teoldgicos, ela discorre sobre 16888 ligacio 219 com 0 Universo inteiro. Todavia, em vez de concentrar-se no monismo mistico que muitas vezes surge em circulos ambientalistas, ela destaca a crescente cons- ciéncia cientifica de nossa interdependéncia com toda a criagéo. Assim funda- mentada, propde uma tarefa inovadora para a ética humana: impor ao ser humano o papel de imaginar ¢ sentir 0 softimento dos outros, bem como encontrar maneitas de criar uma cooperacao mutuamente enriquecedora.' ‘A ética ecofeminista de Ruether serve-se também da dissociagio do pecado eda morte. A morte € natural, argumenta ela. Portanto, devemos substituira idéia errénea de que a humanidade é culpada pela finitude humana, bem como cxplicagbes da salvagdo concentradas na reconquista de uma imortalidade su- postamente perdida. No lugar dessas idéias, ela exalta o que considera a antiga visdo hebraica “de que a mortalidade é nossa condi¢o natural, que partilha- mos com todos os outros seres da Terra, e a redengio é a plenitude da vida dentro desses limites finitos”.'% Em vez de residir na finitude humana, declara Ruether, o pecado ¢ funda- mentalmente a distorcao do relacionamento ou até mesmo um “telaciona- mento errado”." No pecado, damos valor absoluto ao nosso direito & vida e ao poder, em vez de considerar nosso inter-relacionamento fundamental com os outros. Empregamos mala liberdade para “explorar outros scres humanos e a Terra, e assim violamos as relagdes basicas que sustentam a vida”.'® Isso conduz ao ciclo da violéncia e & construcao de sistemas de controle.’” Duas tradig6es no seio do cristianismo deram a Ruether 0 entendimento basico do divino. Elas originaram os motivos gémeos: Deus e Gaia. Deus, a vor masculina, transcendente, do poder ¢ da Lei, falando em nome dos fra- cos,” surge do tema biblico da alianga. A perspectiva da alianga estipula 0 lugar dos seres humanos no Universo como zeladorés que no criam nem sio donos do resto da vida, mas s4o responsdveis pelo seu bem-estar perante Deus, que é a Fonte divina da-vida.!”' A tradigao sacramental proporciona 0 motivo de Gaia, que para Ruether é semelhante & voz imanente do divino — “o centro pessoal do proceso universal”, “o Grande Eu” ou “a Matriz da vida”!”? — convidando-nos a uma comunhio. Para viver uma ética ecofeminista realmente construtiva, conclui Ruether, essas duas “vozes santas” — de Deus ¢ de Gaia — devem ser ouvidas.'” Toda- via, como estamos vivendo no fim de uma era em que Gaia hd muito tempo 220

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