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=3 Eutanasia: a legalizacao da liberdade face 4 vidae amorte i Joao Gabriel Caia Mestrando em Historia Contemporanea na NOVA FCSH elicenciado em Historia pela UE. nvestigador da luta de classes no Portugal Rural e de colecgdes colonias, epresentagbes culturas e usos do passado. 5 de Novembro de 2021, 15:44 ce) © uga este artigo aqui sox O resultado da votaco desta sexta-feira, que aprovou de forma inequivoca a eutandsia, sendo que o texto ainda ira seguir para Belém, marca estruturalmente a concepcao colectiva majoritaria de existéncia individual na sociedade portuguesa. Antes de discutir 0 que é — para mim — 0 mais essencial desta decisio, remato ja dois aspectos que marcaram o debate. Em primeiro lugar, a lei ser4 suficientemente abrangente na resolugao das necessidades dos utentes, inerentes & auséncia da eutanasia no SNS até ao momento, e idealmente restritivas nas condicdes necessarias para ser aplicada. A tal “rampa deslizante” é impossivel de se aplicar aqui, pois um debate de décadas a aprendizagem com outros exemplos assim o permitiram. Em segundo lugar, como se verifica nos exemplos que temos, Ievantar a questéo dos cuidados paliativos torna-se inttil porque ambas nao sao incompativeis, quer porque 08 paliativos no solucionam todas as situacées de sofrimento incuravel, quer porque o sentido da eutandsia est muito para além de um diagndstico ~ para explicar essa dimensio, passo para 0 essencial. (ESI cuTanésia Parlamento aprova eutandsia novamente. Texto segue para Belém nas proximas semanas Tal como em Janeiro, nove decroto da legalizagdo da morte medicamenteassstida foi aprovade pelo PS, 8loco, PAN, PE, IL, as duas deputadas nao-inscrit O.ermas Muitos se surpreenderam pelas posi¢des do PCP ou do PSD. Creio que s6 se surpreenderam porque assumiram que esta era uma questo de absoluta ideologia politica. Enganaram-se. O que a eutandsia deixa em debate so questées puramente filos6ficas, que concernem ao sentido da vida, a relacao da existéncia com a esséncia, ao controlo que o ser tem da sua liberdade. Como ¢ evidente, qualquer pessoa cujos valores seguem uma matriz filoséfica crist muito ortodoxa nao pode ser senao contra a eutanasia, pois ela representa a transferéncia do controlo da vida para o ser-em-si, rejeitando que a esséncia precede a existéncia, que o ser é controlado e determinado pelo divino, que a vida seja um “milagre”. So contra e so coerentes consigo proprios. Neste sentido, nao aceito discursos populistas de diabolizagio do “Nao”, porque quem os tem revela estar mesmo muito mal preparado para discutir a eutand CO essencial da questo da eutanasia é entdo wm debate filosGfico. A sociedade portuguesa demonstra hoje ter uma visdo mais existencialista (ou “sartriana”) das questdes que acima levantei, rejeitando visdes cristas de si mesma que historicamente a moldou. Trata-se, por isso, da materializacdo de uma alteracao estrutural que se verifica na nossa matriz intelectual colectiva e ¢ isto que, fundamentalmente, faz do dia de hoje uma data muito importante, pelos varios debates e perspectivas futuras que pode motivar sobre a sociedade portuguesa. Sou, sem orgulho nem vergonha, ateu ¢ isso marca indubitavelmente a minha matriz filosGfica que serve de ponto de partida para reflectir esta matéria, Aliado a isso, defendo a exaltagao da liberdade individual, ainda que inevitavelmente delimitada, por relacdo, pela colectiva. Entendo, por isto, que o controlo da vida humana deve residir na mesma. Ea existéncia que permite a esséncia e nio 0 contrario. A vida humana ganha efectivamente significado quando alcanga a liberdade de se definir em si mesma e s6 o faz se estiver plenamente consciente das suas limitagoes, dos seus determinismos, aceitando as angiistias que dai advém — e, por isso, nao entregando o controlo destas para um dominio exteno —, ou seja, controlar até a sua nio-iberdade. Sim, até mesmo no fim da liberdade o ser deve ser livre. Mais: ter © controlo de uma situagao de ndo-liberdade é mesmo o que permite afirmar que 0 ser é efectivamente livre. Tao livre que, se o entender, pode deixar de o ser, neste caso, optando pelo final da vida quando nao ha cenario possivel que a torne digna, isto é, livre. Porque nao tenho qualquer crenca num prolongamento divino da vida ou num sentido da mesma que é ja adquirido antes de esta sequer existir, tenho 0 direito de querer ter a opcao de controlo da vida durante o tinico perfodo de duracdo que Ihe prevejo, o tinico que lhe pode dar razo de ser. Mais: ter o controlo de uma situacao de nao- liberdade é mesmo o que permite afirmar que 0 ser é efectivamente livre. Tao livre que, seo entender, pode deixar de o ser, neste caso, optando pelo final da vida quando nao ha cenario possivel que a torne digna, isto é, livre. Nesse sentido, se, conforme define a lei agora aprovada, estiver numa situagio de impossivel cura e sofrimento certo e definitivo, tiver as consideragdes favoraveis de ‘médicos especialistas que me garantem a certeza disso mesmo (e uma maior liberdade, na medida em que tornam a minha posic’o mais informada), nao estiver em situagao de inconsciéncia (ou seja, ainda em controlo da minha liberdade), ter a possibilidade de reflectir e voltar atras na minha posicéio (garantindo uma acco ciente e livre de decises momentneas), entio estarei efectivamente com o control absoluto da minha existéncia. Serei, de acordo com as orientagées filos6ficas que me norteiam sempre a acco, completamente livre. Assim felicito, pelas raz6es elencadas, a legalizagao da eutandsia, Quem é contra, por ter orientacdes contrarias 4 mesma, continuard, e ainda bem, a ndo ser obrigado a fazé-la, Quem € a favor, passara a ter também o direito de cumprir a sua vida conforme as suas conviccées.

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