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XXI
MONTESQUIEU
DO ESPÍRITO
DAS LEIS
De 1’Esprit des lois, ou du rapport que les lois doivent avoir avec la constitution de chaque
gouvernement, les moeurs, le climat, la religion, le commerce, etc. (l.a edição, 1748)
Introdução ................................................................................................. 9
Prefácio ........................................................................................................ 27
Advertência do Autor .......................... 29
Primeira Parte ............................................................................................. 33
Segunda Parte ............................................... •.......................................... 135
Terceira Parte ........................................................................................... 209
Quarta Parte ............................................................................................. 291
Quinta Parte ............................................................................................... 373
Sexta Parte ................................................................................................. 417
INTRODUÇÃO
MONTESQUIEU E O ESPÍRITO DAS LEIS
MONTESQUIEU
1 É possível, como pretende Vian, que nomeadamente não fez parte dele; mas é difícil acreditar que não o
tivesse frequentado.
10 INTRODUÇÃO
cando sua inteligência nas diversas circunstâncias da vida: sua obra inicialmente
o solicita, o dirige e permanece sua principal preocupação.
Não que nesse jogo de inteligência ele se despoje da sensibilidade ou mesmo
de uma certa vivacidade de impressões. Ele é essencialmente bom, embora de sin
gular pudor ou de singular prudência na sua bondade; gosta de ficar anônimo na
prática da virtude e contaram-nos que, para se subtrair ao reconhecimento, recu
sava confessar-se autor de um benefício3* . Muito abertamente declara-se a favor
de uma justiça estreita ou contra os abusos, e vemo-lo escrever à Marquesa de •
Pompadour em favor de Piron que um poder muito circunspecto afasta da Aca
demia. Agradável e benevolente na sociedade, por outro lado, aí se coloca em seu
lugar e não se proíbe a necessidade de uma malícia bastante picante. Tem plena1
consciência de seu valor e talvez não tenha agido de forma mais direta do que
pelos escritos por falta de ocasião. Numa época, por exemplo, desejou “ser
empregado numa corte estrangeira”. “As razões pelas quais se dá atenção a
mim ”, escreve ao Abade d’Olivet*, “devem-se ao fato de que não sou mais idiota
que os outros, de que tenho minha fortuna feita e de que trabalho pela honra e
não para viver, e porque sou sociável e bastante curioso para ser instruído em
qualquer país em que esteja. ” E, tendo o Padre Toumemine o amofinado a pro
pósito das Lettres Persanes, vingou-se desse jesuíta ávido de popularidade, repe
tindo na sociedade com um jeito friamente escarnecedor: “Quem é esse Padre
Toumemine? Nunca ouvifalar dele”.
Devemos dizer agora, para uma apreciação correta nesta visão moral de
Montesquieu, que foi ele um homem feliz e de um otimismo inacreditável nesta
vida cujos fundamentos tão bem discernia. Se pôde dizer, numafrase célebre, que
a leitura o consolou de toda mágoa, é porque, evidentemente, nunca conheceu
mágoas. E estas linhas espantosas de seu “diário ”o confirmam:
“Parece-me que a Natureza trabalhou para os ingratos: somos felizes e nos
sos discursos são tais que parece que não o suspeitamos. Entretanto, encon
tramos prazeres em toda parte; estão ligados a nosso ser e as penas não são
senão acidentes. Em toda parte, os objetos parecem preparados para nossos pra
zeres: quando o sono nos chama, as trevas agradam-nos, e quando despertamos,
a luz do dia encanta-nos. A Natureza é enfeitada de mil cores; os sons agradam
nossos ouvidos; as iguarias têm gostos agradáveis, e, como se não bastasse a feli
cidade da existência, cumpre ainda que nossa máquina necessite ser reparada
para nossos prazeres ”5.
Por essa euforia, comprazer-se-ia em saudar um contemporâneo de Rous-
seau. Entretanto, pelo tom da sensibilidade, como pela feição de espírito,
Montesquieu permanece na primeira parte do século. Por mais distinta, por mais
decente, pode-se dizer, que seja sua libertinagem, ela existiu, e se ele teve algumas
observações corretas sobre o amor, se tão elegantemente notou, de passagem, o
frescor de seu nascimento 6, sentimos bem que não teve história amorosa. Tam
bém aqui, o espírito é que o conduziu.
3 Uma comprovação disso é a opinião de Brunetière, muito insuficientemente matizada mas que não se
subtrai completamente à verdade: “Ele [Montesquieu] era de uma amabilidade seca e de uma beneficência
magnânima. Até nas fórmulas de sua polidez colocava não sei que de irônico; existe algo de enigmático e
desdenhoso até em sua arte de agradar”. (Études Critiques sur 1’Histoire de la Littérature Française, 1."
série, pág. 251.)
* 10 de maio de 1728.
5 Cahiers, ed. Grasset, pág. 20.
6 Vede também Cahiers, pág. 39.
INTRODUÇÃO 13
os dias as mãos paternais tombarem; seguia meu objetivo sem formar desíg
nio . . . ” Devemos ver aqui os tateamentos, as perturbações e as dúvidas da ges
tação, e também um certo método de trabalho que possui seus inconvenientes:
propositadamente Montesquieu procede por partes separadas. Desde 1736
dArgenson tivera, assim, conhecimento de uma parte da obra. Talvez isso expli
que melhor, então, certa incerteza no plano, essa acumulação fatigante dos capí
tulos, reduzidos, por vezes, a algumas linhas, o que dispersa um pouco a atenção.
Mas o procedimento não é apenas um procedimento; ele tem sua razão pro
funda e relaciona-se com a própria constituição da inteligência que dele faz uso.
Montesquieu ainda no-lo ensina. “Porém, quando descobri meus princípios”,
escreve ele ainda na mesma passagem, “tudo quanto procurava a mim me veio e,
no curso de vinte anos, vi minha obra começar, crescer, progredir e termi
nar. . . ” Veremos o que são esses “princípios”, o que eles valem e aonde condu
zem na concepção; esperando, veremos o que eles fazem e qual o seu papel na
execução; representam eles algumas opiniões gerais do espírito em torno das
quais as observações, as noções e os conhecimentos ordenam-se à medida que
este espírito progride na diversidade das coisas. E é assim que aparece todo um
sistema claro e múltiplo de deduções onde os fatos particulares vêm confirmar as
idéias gerais e onde as idéias gerais dão uma coerência por vezes muito rigorosa
aos fatos particulares. E tal é a armadura — de onde o Espírito das Leis extrai
uma força e um aspecto de regularidade — que algo de arbitrário quase não
pode deixar de passar.
II. — Os dez primeiros livros do Espírito das Leis, depois de terem defi
nido a natureza das leis próprias ao homem, as consideram em relação à forma
do governo; sabe-se que Montesquieu distinguiu três formas de governo: a tira
nia, a monarquia e a democracia, com seus fundamentos, respectivamente, no
medo, na honra e na virtude, com a condição de serem estas palavras entendidas
num sentido político, sendo a “virtude ”, a virtude cívica. A partir do livro VIII
considera Montesquieu a corrupção dos princípios dos três governos e a maneira
pela qual esses governos se conservam. Os livros XI, XII e XIII examinam as
condições da liberdade política e o capítulo VI do livro XI é a exposição apolo-
gética da Constituição inglesa; do livro XIV ao XX temos a famosa teoria do
“clima ” e suas consequências. Os livros XX a XXIII relacionam-se às circuns
tâncias ou aos efeitos mais exteriores da indústria, do comércio e da demografia;
os livros XXVI e XXIX são uma conclusão geral; encontram-se ligados aos li
vros XXVII e XXVIII, sobre as revoluções das leis em Roma e em França; os
livros XXX e XXXI — teorias das leis feudais — constituem tratados especiais
em forma de apêndice. E esses quatro livros, na afirmação do autor, são efetiva
mente adições. Eles dão a esse fim uma aparência de desordem que prejudicou o
plano de Montesquieu, mas quando se considera o conjunto da obra vê-se que, se
ela está excessivamente parcelada, não deixa de se delinear em linhas assaz
nítidas.
Por que meios e com que intenção é tratada esta vasta matéria? É aqui que
retomamos a esses “princípios ” que esclareceram o caminho do autor desde que
ele os concebeu, e basta também tomar emprestado suas próprias palavras. Veja
mos o capítulo III do primeiro livro. “A lei, em geral, dizemos, é a razão huma
na, na medida em que governa todos os povos da terra, e as leis políticas e oivis
de cada nação devem ser apenas os casos particulares em que se aplica essa
18 INTRODUÇÃO
12 Les Grands Écrivains Français, de Sainte-Beuve (ed. Aliem, séc. XVIII. “Philosophes et Savants”, tomo
I, pág. 65).
22 INTRODUÇÃO
na e postula que ela não é tudo e que outra natureza pode agir sobre ela. Montes
quieu não quer levar em conta nem o pecado original, nem qualquer transcen
dência, nem mesmo o mistério que envolve nossa natureza e nosso destino.
Também racionalista e historiador, devia e deve aceitar os limites assaz estreitos
desta condição intelectual.
Só consegue safar-se por seu gênio próprio, e quando este gênio se exerce
sobre as coisas em sua medida. Se é filósofo, é também moralista e, desde que o
moralista deve bastar à tarefa, ele mostra-se de uma saborosa penetração. Deixe-
mo-lo errar sobre o clima, dizer que o frio favorece a indústria ou a coragem e o
calor favorece a indolência, e esquecer, como lhe censura Voltaire, que os árabes,
que não vinham, entretanto, do setentrião, “conquistaram em oitenta anos mais
países que o Império Romano possuía”. Admiremos antes que, depois de terfixa
do à democracia condições tais que toda democracia surge quase como impossí
vel, ele aparente não perceber isso; salientemos numerosas observações sagazes
sobre os costumes; saboreemos, por exemplo, no capítulo III do livro XXIX,
esta mordaz interpretação da lei de Sólon que obrigava à tomada de posição nas
querelas públicas: “Nas sedições que ocorriam nestes pequenos Estados, o gros
so da cidade participava da querela ou a fazia. Nas nossas grandes monarquias,
os partidos são formados por poucas pessoas e o povo desejaria viver na inação.
Neste caso, é natural atrair os sediciosos ao grosso da população e não o grosso
dos cidadãos aos sediciosos; no outro, cumprefazer entrar o pequeno número de
pessoas prudentes e tranquilas entre os sediciosos: é assim que a fermentação de
um licor pode ser paralisada por apenas uma gota de outro ”.
Em semelhantes trechos encontramos Montesquieu. No restante, sua obra
conserva um valor de fundo como de circunstância. Pretendeu-se que ele teve
predecessores através da história e remontou-se até Buda e Confúcio, passando
por Jean Bodin, Hotman, Thomas More, Pufendorf, Maquiavel, Cícero, Platão.
Esta impressionante série não impede sua originalidade. Efetivamente, ele fez, à
sua maneira, uma coisa única e decisiva: separou a legislação do arbitrário do
capricho dos homens, do acaso das circunstâncias, e a relacionou, tanto pela
moral como pela psicologia e pela história, ao tronco comum da natureza huma
na. Pode ser incompleto, inexato, tendencioso: em sua concepção como em sua
execução, o Espírito das Leis não deixa de permanecer um monumento da arte e
do pensamento.
Gonzague Truc
DO ESPÍRITO
DAS LEIS
As primeiras edições trazem este título, que é uma espécie de título-programa: Do espírito das leis ou das
relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo, com os costumes, o clima, a religião,
o comércio etc. Ao que o autor acrescentou pesquisas novas sobre as leis romanas referentes às suces
sões, sobre as leisfrancesas e sobre as leis feudais.
Prefácio
Se, no número infinito de coisas contidas neste livro, houver uma que,
contra minha vontade, possa ofender, não há, pelo menos, uma só que tenha
sido escrita com má intenção. Não tenho naturalmente o espírito desaprova-
dor. Platão agradecia ao céu por ter nascido no tempo de Sócrates; e eu rendo-
lhe graças por me ter feito nascer no Governo em que vivo e por ter querido
que eu obedecesse aos que mefez amar.
Peço uma graça que receio não me seja concedida: de não julgar, pela lei
tura de um momento, um trabalho de vinte anos, de aprovar ou condenar o
livro inteiro e não algumas frases. Se se quiser descobrir a intenção do autor,
só a poderemos descobrir na intenção da obra.
Examinei, de início, os homens e julguei que, nesta infinita diversidade de
leis e costumes, não eram eles orientados unicamente por seus caprichos.
Coloquei princípios e vi os casos particulares submeterem-se a eles como
por si mesmos, as histórias de todas as nações serem apenas sequências e cada
lei particular ligada a outra lei, ou depender de outra mais geral.
Quando remontei à Antiguidade, esforcei-me por captar seu espírito a fim
de não tomar, como semelhantes, casos realmente diferentes e não omitir as
diferenças dos que se mostrassem semelhantes.
Não extraí meus princípios de meus preconceitos mas da natureza das
coisas.
Aqui, muitas verdades só se farão sentir depois que se tenha visto a cadeia
que as liga a outras. Quanto mais refletirmos sobre os pormenores, mais senti
remos a validade dos princípios. Esses próprios pormenores, não os apresentei
todos, pois quem poderia apresentá-los todos sem um tédio mortal?
Não encontraremos aqui os traços marcantes que parecem caracterizar as
obras atuais. Por pouco que se observem as coisas de uma perspectiva mais
ampla, esses traços marcantes desaparecem; geralmente, eles apenas surgem
porque os espíritos voltam-se só para um lado, abandonando todos os demais2.
Não escrevo para censurar o que está estabelecido em qualquer país.
Cada nação encontrará nesta obra as razões de suas máximas; e extrair-se-á
naturalmente esta conclusão: que só cumpre propor mudanças aos que são
assaz afortunadamente nascidos para apreender, num rasgo de gênio, toda a
constituição de um Estado.
Não é indiferente que o povo seja esclarecido. Os preconceitos dos magis
trados começaram por ser os da nação. Numa época de ignorância, não temos
qualquer dúvida, mesmo quando se cometem os piores males; numa época de
2 Aproximou-se justamente essa passagem às opiniões expressas por Buffon num Discours sur le Style.
28 PREFACIO
Para compreensão dos quatro primeiros livros desta obra, é preciso obser
var que o que chamo virtude na república é o amor à pátria, isto é, o amor à
igualdade. Não é absolutamente virtude moral, nem virtude cristã, é virtude polí
tica; e essa é a mola que faz mover o governo republicano, como a honra é a
mola que faz mover a monarquia. Chamei portanto de virtude política o amor à
pátria e à igualdade. Concebí novas idéias; foi necessário encontrar novas pala
vras ou dar às antigas novas acepções. Os que não compreenderam isso fizeram-
me dizer coisas absurdas e que seriam revoltantes em todos os países do mundo;
pois, em todos os países do mundo, exige-se moral.
2.° Cumpre notar que há grande diferença entre dizer que certa qualidade,
modificação da alma, ou virtude, não é a mola que faz agir o governo e dizer que
ela não existe absolutamente nesse governo. Se eu dissesse: esta roda, este carrete
não são a mola que faz mover este relógio, disso deveriamos concluir que eles
não existem no relógio? Pouco importa que as virtudes morais e cristãs estejam
excluídas da monarquia e que a própria virtude política não o esteja. Numa pala
vra, a honra existe na república, embora a virtude política seja sua mola; a virtu
de política existe na monarquia, embora a honra seja sua mola.
Enfim, o homem de bem ao qual nos referimos no livro III, capítulo V, não
é o homem de bem cristão mas o homem de bem político, que possui a virtude
política à qual me referi. É o homem que ama as leis de seu país e que age pelo
amor às leis de seu país. Lancei uma nova luz em todas essas coisas nesta edição,
precisando ainda melhor as idéias; e, na maior parte das passagens em que me
servi da palavra virtude coloquei virtude política.
1 Essa “Advertência”, observa a edição Laboulaye, “não existe nas primeiras edições. Foi escrita para res
ponder às críticas da época, que consideraram um insulto ao governo e quase um crime de lesa-majestade,
que um francês do século XVIII não fizesse da virtude o princípio da monarquia”. Aliás, Montesquieu —
ele próprio o assinala no final dessas linhas preliminares — confere a essas palavras, virtude, honra, um
sentido bem delimitado, quase técnico.
PRIMEIRA PARTE
LIVRO PRIMEIRO
DAS LEIS EM GERAL
1 As primeiras edições não comportam essa divisão em seis partes que aparece numa edição de 1750, reco
nhecida por Montesquieu, numa carta a Grosley, como a mais exata.
Capítulo I
físico, pois ainda que o mundo inteligente pos nas quais não encontramos nem conhecí
sua também leis que por sua natureza são mento, nem sentimento, seguem-nas melhor.
invariáveis, não as segue constantemente, Os animais não possuem as supremas van
como o mundo físico segue as suas. A razão tagens que nós possuímos; possuem outras que
disso reside no fato de estarem os seres parti não possuímos. Não têm as nossas esperanças
culares inteligentes limitados por sua natureza mas também não têm os nossos temores; estão,
e, consequentemente, sujeitos a erro; e, por como nós, sujeitos à morte, mas sem conhecê-
la; a maioria conserva-se mesmo melhor do
outro lado, é próprio de sua natureza agirem
por si mesmos. Não seguem, pois, constante que nós e não faz tão mau uso de suas paixões.
O homem, como ser físico, é, tal como os
mente suas leis primitivas e, mesmo as que eles
outros corpos, governado por leis invariáveis.
próprios criam, nem sempre as seguem.
Como ser inteligente, viola incessantemente as
Não se sabe se os animais são governados leis que Deus estabeleceu e modifica as que ele
pelas leis gerais do movimento ou por uma próprio estabeleceu. Cumpre que ele se oriente
moção particular. De qualquer forma, não e, entretanto, é um ser limitado; está sujeito,
mantêm com Deus relações mais íntimas do como todas as inteligências finitas, à igno
que o resto do mundo material, e o sentimento rância e ao erro, e perde ainda os frágeis
só lhes serve nas relações que mantêm entre si conhecimentos que possui; torna-se, como
ou com outros seres particulares, ou consigo criatura sensível, sujeito a mil paixões. Tal ser
mesmos. poderia, a todo instante, esquecer seu criador
Pela atração dó prazer, os animais conser — Deus, pelas leis da religião, chamou-o a si;
vam seu ser particular; e, pela mesma atração, um tal ser poderia, a todo instante, esquecer-se
conservam sua espécie. Possuem leis naturais de si mesmo — os filósofos advertiram-no
porque estão unidos pelo sentimento; não pos pelas leis da moral. Feito para viver em socie
suem leis positivas porque não estão unidos dade, poderia esquecer os outros — os legisla
pelo conhecimento. Contudo, não seguem dores devolveram-no a seus deveres pelaç leis
invariavelmente suas leis naturais: as plantas, políticas e civis.
Capítulo II
Antes de todas essas leis, existem as da semos necessidade da experiência para com
natureza, assim chamadas porque decorrem provar isso, encontraram-se, nas florestas, ho
unicamente da constituição de nosso ser. Para mens selvagens6: tudo os faz tremer, tudo os
conhecê-las bem, é preciso considerar o faz fugir.
homem antes do estabelecimento das socieda Nesse estado, todos se sentem inferiores e
des. As leis da natureza seriam as que elé rece dificilmente alguém se sente igual. Ninguém
bería em tal caso. procuraria, portanto, atacar e a paz seria a pri
Essa lei, que, inculcando-nos a idéia de um meira lei natural.
criador, leva-nos a ele, é, por sua importância, Não é razoável o desejo que Hobbes atribui
mas não pela ordem das leis, a primeira das aos homens de subjugarem-se mutuamente. A
leis naturais. O homem em estado natural teria idéia de supremacia e de dominação é tão
de preferência a faculdade de conhecer a ter complexa e dependente dê tantas outras que
conhecimentos. É evidente que suas primeiras não seria ela a primeira idéia que o homem
teria.
idéias não seriam especulativas5; procuraria
Hobbes indaga7: “Por que os homens,
conservar seu ser antes de procurar sua ori
gem. Tal homem sentiría, antes de tudo; sua
fraqueza e seu medo seria grande; e, se tivés 6 Disso é testemunho o selvagem encontrado nas
florestas de Hanôver, visto na Inglaterra durante o
reinado de Jorge I. (N. do A.)
5 Isto é, não filosofaria. 7 In praef.-lib. de Cive.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 35
mesmo quando não estão naturalmente em prazer que sente um animal à aproximação de
guerra, estão sempre armados? E por que utili outro da mesma espécie. Demais, este encanto
zam chaves para cerrar suas casas?” Mas não que os dois sexos, pela sua diferença, inspi
percebe que atribuímos aos homens, antes do ram-se mutuamente aumentaria esse prazer, e
estabelecimento de sociedades, o que só pode o pedido natural que sempre fazem um ao
ría acontecer-lhes após esse estabelecimento, outro seria uma terceira lei.
fato que os leva a descobrir motivos para ata Além do sentimento que os homens inicial
car e defender-se mutuamente. mente possuem, conseguem eles também ter
Ao sentimento de sua fraqueza, o homem conhecimentos; assim, possuem um segundo
acrescentaria o sentimento de suas necessida liame que os outros animais não têm. Existe,
des. Assim, outra lei natural seria a que o inci portanto, um novo motivo para se unirem, e o
taria a procurar alimentos. desejo de viver em sociedade constitui a quarta
Disse que o medo levaria os homens a afas lei natural8.
tarem-se uns dos outros, mas a comprovação
de um medo recíproco levá-los-ia logo a se
aproximarem. Aliás, eles seriam levados pelo 8 Aristóteles, Política, liv. I, cap. I.
Capítulo III
Logo que os nomens estão em sociedade, possível e, na guerra, o mínimo de mal possí
perdem o sentimento de suas fraquezas; a vel, sem prejudicar seus verdadeiros interesses.
igualdade que existia entre eles desaparece, e o O objetivo da guerra é a vitória; o da vitó
estado de guerra começa. ria, a conquista; o da conquista, a conserva
Cada sociedade particular passa a sentir sua ção. Desse princípio e do precedente devem
força; isso gera um estado de guerra de nação derivar todas as leis que formam o direito das
para nação. Os indivíduos, em cada sociedade, gentes.
começam a sentir sua força: procuram reverter Todas as nações têm um direito das gentes,
em seu favor as principais vantagens da socie e os próprios iroqueses10, que devoram seus
dade; isso cria, entre eles, um estado de guerra.,
prisioneiros, possuem um. Enviam e recebem
Essas duas espécies de estado de guerra
embaixadas, conhecem o direito da guerra e da
acarretam o estabelecimento de leis entre os
paz; o mal é que este direito das gentes não se
homens. Considerados como habitantes de um
planeta tão grande, a ponto de ser necessária a baseia em princípios verdadeiros.
existência de diferentes povos, existem leis nas Fora o direito das gentes, que diz respeito a
relações que esses povos mantêm entre si; é o todas as sociedades, existe um direito político
Direito das Gentes9. Considerados como vi para cada uma. Sem um governo, nenhuma
vendo numa sociedade que deve ser mantida, sociedade poderia subsistir. A reunião de todas
possuem leis nas relações entre os que gover as forças individuais, diz muito corretamente
nam e os que são governados; e é o Direito
Gravina1 \ forma o que denominamos Estado
Político. Possuem-nas ainda nas relações que
Político.
todos os cidadãos mantêm entre si: é o Direito
Civil. A força geral pode ser colocada nas mãos
O direito das gentes está naturalmente de apenas um ou nas mãos de muitos.
baseado neste princípio: as diversas nações
devem fazer-se, na paz, tanto bem quanto for 10 Os iroqueses, tribo guerreira, então muito beli
cosa, depois degenerada, que habitava o Norte dos
Estados.Unidos e o Sul tio Canadá.
9 Direito das gentes, direito das nações (no sentido 11 Gravina, jurista, nascido em Rogliano (Calá
usado em latim, gentes, nações). bria), 1664-1718.
36 MONTESQUIEU
Alguns12 pensargm que, tendo a Natureza pretende estabelecer, quer elas o formem,
estabelecido o poder paterno, o governo de um como as leis políticas, quer elas o mantenham,
só estaria mais de acordo com a Natureza. como fazem as leis civis.
Porém, o exemplo do poder paterno nada Devem as leis ser relativas ao físico do país,
prova, pois, se o poder do pai está relacionado ao clima frio, quente ou temperado; à quali
com o governo de um só, depois da morte do dade do solo, à sua situação, ao seu tamanho;
pai, o poder dos irmãos ou, depois da morte ao gênero de vida dos povos, agricultores,
dos irmãos, o dos primos coirmãos está rela caçadores ou pastores; devem relacionar-se
cionado com o governo de muitos. O poder com o grau de liberdade que a constituição
político implica, necessariamente, a união de pode permitir; com a religião dos habitantes,
muitas famílias. suas inclinações, riquezas, número, comércio,
É melhor dizer que o governo mais de acor costumes, maneiras. Possuem elas, enfim, rela
do com a Natureza é aquele cuja disposição- ções entre si e com sua origem, com os desíg
partícular melhor se relaciona com as disposi nios do legislador e com a ordem das coisas
ções do povo para o qual foi estabelecido. sobre as quais são elas estabelecidas. É preciso
As forças individuais não se podem reunir considerá-las em todos esses aspectos.
sem que todas as vontades se reúnam. À reu É isso que pretendo realizar nesta obra.
nião dessas vontades, diz Gravina ainda muito Examinarei todas essas relações; formam elas,
corretamente, é o que denominamos Estado no conjunto, o que chamamos de Espírito das
Civil. Leis.
A lei, em geral, é a razão humana, na medi Não separei de modo algum as leis políticas
da em que governa todos os povos da terra, e das civis, pois, como absolutamente não trato
as leis políticas e civis de cada nação devem de leis mas do espírito das leis e como esse
ser apenas os casos particulares em que se espírito consiste nas diferentes relações que as
aplica essa razão humana. •leis podem ter com diversas coisas, devo seguir
Devem ser elas tão adequadas ao povo para menos a ordem natural das leis que a dessas
o qual foram feitas que, somente por um gran relações e dessas coisas.
de acaso, as leis de uma nação podem convir a Examinarei, primeiramente, as relações que
outra. as leis possuem com a natureza e com o princí
Cumpre que se relacionem à natureza e ao pio de cada governo e, como esse princípio
princípio do governo estabelecido ou que se possui sobre as leis uma suprema influência,
aplicar-me-ei em bem conhecê-lo e, uma vez
12 Filmer, por exemplo, escritor político inglês, que consiga estabelecê-lo, dele ver-se-á fluírem
nascido no Condado de Kent e autor dos Patriarcha as leis. Passarei, em seguida, às outras relações
(1604-1688). que parecem ser mais particulares.
LIVRO SEGUNDO
DAS LEIS QUE DERIVAM DiRETAMENTE
DA NATUREZA DO GOVERNO
Capítulo I
Existem três espécies de governo: o Republi que o povo, como um todo, ou somente uma
cano, o Monárquico e o Despótico13. Para parcela do povo, possui o poder soberano; a
descobrir-lhes a natureza, é suficiente a idéia monarquia é aquele em que um só governa,
que deles têm os homens menos instruídos. mas de acordo com leis fixas e estabelecidas,
Suponho três definições, ou antes, três fatos: enquanto, no governo despótico, uma só pes
um que o “governo republicano é aquele em soa, sem obedecer a leis e regras, realiza tudo
por sua vontade e seus caprichos”.
13 Lembrou-se, a respeito dessa divisão, a de Aris Eis aí o que denomino a natureza de cada
tóteles, distinguindo a monarquia, a aristocracia e a governo. É preciso conhecer quais são as leis
república (Política, liv. III, cap. V, 2 e 3). Para Vol- que derivam diretamente dessa rtatureza e que,
taire,icomentando Do Espírito das Leis,monarquia e
despotismo se assemelham a ponto de se confundi consequentemente, são as primeiras leis funda
rem. mentais.
Capítulo II
Quando, numa república, o povo como um Libânio1 4 afirma que em Atenas um estran
todo possui o poder soberano, trata-se de uma geiro que se imiscuísse na assembléia do povo
Democracia. Quando o poder soberano está era punido com a morte. É que esse homem
nas mãos de uma parte do povo, trata-se de usurpava o direito de soberania.
uma Aristocracia. O povo, na democracia, é, É essencial fixar o número de cidadãos que
sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o devem compor as assembléias; sem isso,
súdito. poder-se-ia ignorar se o povo, ou somente uma
O povo só pode ser monarca pelos sufrá parte dele, opinou. Na Lacedemônia, eram
gios, que constituem suas vontades. A vontade necessários dez mil cidadãos. Em Roma, que
do soberano é o próprio soberano. As leis que nasceu pequena para tornar-se poderosa; em
estabelecem o direito de sufrágio são, portanto, Roma, feita para experimentar todas as vicissi-
tudes da fortuna; em Roma, que tinha, ora
fundamentais nesse governo. Com efeito, aqui
quase todos os seus cidadãos fora de suas
é tão importante regulamentar como, por
muralhas, ora toda a Itália e uma parte da
quem, a quem, sobre o que os sufrágios devem
ser atribuídos, quanto o é, numa monarquia,
1 4 Declamações, 17 e 18. (N. do A.) *
saber quem é o monarca e de que maneira deve * Libânio, sofista grego (314-390), muito acredi
governar. tado junto a Juliano, o Apóstata.
40 MONTESQUIEU
terra no interior de suas muralhas, não se espe cargos, não se decidiu a elegê-los18 e apesar
cificara esse número1*5, sendo essa uma das de, em Atenas, poder-se, pela lei de Aristides,
principais causas de sua ruína. extrair magistrados de todas as classes, relata
O povo que possuí o poder soberano deve Xenofonte19 que nunca aconteceu de o baixo
fazer por si mesmo tudo o que pode realizar povo escolher os que pudessem defender sua
corretamente e, aquilo que não pode realizar segurança e sua glória.
corretamente, cumpre que o faça por inter Tal como a maioria dos cidadãos que pos
médio de seus ministros. suem suficiente capacidade para eleger mas
Seus ministros só lhe pertencem se ele os não a possuem para ser eleitos, igualmènte o
nomeia; é, pois, uma máxima fundamental povo, que possui suficiente capacidade para
deste governo que o povo nomeie seus minis julgar da gestão dos outros, não está apto para
tros, isto é, seus magistrados; governar por si próprio.
Tal como os monarcas e mesmo mais' do
É necessário que os negócios se desen
que eles, o povo necessita ser conduzido por
volvam e que se desenvolvam num certo ritmo,
um conselho ou senado1 6. Mas, para que haja
nem muito lento nem muito rápido. Mas o
confiança nesse, é necessário que eleja seus
povo sempre tem, ou muita, ou pouca ação.
membros, seja escolhendo-os diretamente,
Algumas vezes, com cem mil braços, tudo
como em Atenas, seja através de magistrados
transforma; outras, com cem mil pés, só cami
que tenha escolhido para os eleger, como se
nha como os insetos.
fazia em Roma, em algumas ocasiões.
No Estado popular, divide-se o povo em cer
O povo é admirável para escolher aqueles a
tas classes. É na maneira de realizar essa divi
quem deve confiar parte de sua autoridade1 7.
Só pode decidir-se por coisas que não pode
são que os grandes legisladores se revelam e é
ignorar e por fatos que estão ao alcamce de disso que sempre dependeu a continuidade da
democracia e sua prosperidade.
seus sentidos. Sabe muito bem que determi
Sérvio Túlio acompanhou, na composição
nado homem esteve muitas vezes em guerra e
de suas classes, o espírito da aristocracia.
que obteve tais e tais êxitos; é, então, capaz de
eleger um general. Sabe que um juiz é assíduo, Vemos, em Tito Lívio20 e em Dionísio de
Halicarnasso21, como ele coloca o direito de
que muita gente sai de seu tribunal satisfeita
com ele, que não se pode corrompê-lo: isso é sufrágio nas mãos dos principais cidadãos.
suficiente para que eleja um pretor. Se está Dividiu Sérvio Túlio o povo de Roma em 193
impressionado com a magnificência ou com as centúrias, formando seis classes. E colocando
riquezas de um cidadão, isso é suficiente para os ricos, mas em menor número, nas primeiras
que possa escolher um edil. Todas essas coisas centúrias, os menos ricos, mas em maior nú
são fatos que o povo aprende melhor na praça mero, nas seguintes, lançou toda a multidão
pública do que um monarca em seu palácio. dos indigentes na última; e cada centúria tendo
Entretanto, saberá o povo dirigir um negócio, somente um voto22, eram os meios e as rique
conhecer os lugares, as ocasiões, os momentos zas, mais do que as pessoas, que votavam.
e aproveitá-los? Não: não saberá. Sólon dividiu o povo de Atenas em quatro
Se pudéssemos duvidar da capacidade natu classes. Levado pelo espírito da democracia,
ral que o povo possui para discernir o mérito, não o fez para estipular os que teriam direito a
bastaria atentar para esta série contínua de votar mas os que poderíam ser eleitos e, dei
escolhas espantosas que fizeram os atenienses xando a cada cidadão o direito de voto, quis
e os romanos, fato que, indubitavelmente, não
pode ser atribuído ao acaso. 18 Maquiavel,Discurso sobre Tito Lívio, liv. I, cap.
Sabe-se que em Roma, apesar de o povo se XLVII. Considérations sur les Causes de la Gran
ter arrogado o direito de alçar plebeus para os deur des Romàins et de leur Décadence, cap.VIIL
18 Págs. 691 e 692, edição de Wechelius, do ano de
1596. (N. do A.)
1 5 Vede as Considérations sur les Causes de la 20 Liv. I. (N. do A.)
Grandeur des Romains et de leur Décadence, cap. 21 Liv. IV, art. 15 e segs. (N. do A.).
IX. (N. do A.) 22 Vede nas Considérations sur les Causes de la
1 6 Aristóteles, Política, liv. VI, cap. II. Grandeur des Romains et de leur Décadence, cap.
1 7 A experiência parece ter justificado pouco esse IX, como esse espírito de Sérvio Túlio se conserva
otimismo. na república. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 41
que23, em cada uma dessas quatro classes, se ou secretos. Cícero28 escreveu que as leis29
pudesse eleger juizes. Entretanto, foi apenas que tornaram secretos os sufrágios no último
nas três primeiras, onde se localizavam os período da república romana constituíram
cidadãos de fortuna, que se pôde extrair os uma das causas principais de sua queda.
magistrados2 4. Como isso se pratica de diferentes maneiras
Como a divisão dos que têm direito a voto é, nas diversas repúblicas, eis, creio, algo em que
na república, uma lei fundamental, a maneira é necessário pensar.
de o dar é outra lei fundamental. Está fora de dúvida que, quando o povo
O sufrágio pelo sorteio é da natureza da vota, seus votos devem ser públicos30, e isso
deve ser considerado como uma lei funda
democracia25; o sufrágio pela escolha, é da mental da democracia. É preciso que a plebe
natureza da aristocracia. seja esclarecida pelos principais e contida pela
O sorteio é uma maneira de eleger que a nin seriedade de certos personagens. Assim, na
guém aflige: deixa a cada cidadão uma espe república romana, estabelecendo-se o sufrágio
rança razoável de servir à sua pátria. secreto, destruiu-se tudo, não sendo mais pos
Entretanto, como essa maneira é em si defei sível esclarecer um populacho que se corrom
tuosa, foi na sua regulamentação e correção pia. Mas quando, numa aristocracia, o corpo
que os grandes legisladores se esmeraram. de nobres vota31 ou, numa democracia, vota o
Sólon estabeleceu, em Atenas, que se no senado32, e sendo apenas uma questão de pre
mearia através da escolha para todos os cargos venir os conluios, os sufrágios não poderíam
militares e que os senadores e juizes seriam ser muito secretos.
O conluio é perigoso num senado e também
escolhidos por sorteio.
entre o corpo dos nobres; não o é, porém, entre
Quis ele que se atribuíssem através da esco
o povo, cuja natureza é agir pela paixão. Nos
lha as magistraturas civis, que exigiam uma
Estados em que não participa do governo, o
grande despesa, e que as demais fossem atri povo entusiasmar-se-ia por um ator, assim
buídas pelo sorteio. como o faria pelos negócios. A desgraça de
Entretanto, para corrigir a sorte, estipulou- uma república advém quando não há mais
se que só se poderia eleger entre aqueles que se conluios e isso acontece quando se corrompe o
apresentassem; o que tivesse sido eleito seria povo pelo dinheiro: ele torna-se indiferente e
examinado pelos juizes2 6 e cada um poderia afeiçoa-se ao dinheiro, porém não mais se afei-
çoa aos negócios: sem se preocupar com o
acusá-lo de ser indigno2 7. Isso se relacionava
governo e com o que nele se propõe, espera
tanto ao sorteio como à escolha. Ao término tranquilamente seu salário.
da magistratura era necessário submeter-se a É ainda uma lei fundamental da democracia
outro julgamento sobre a maneira pela qual as que só o povo institua leis. Há, contudo, mil
pessoas se haviam comportado. As pessoas' ocasiões em que o senado deve estatuí-las; é
sem capacidade deviam sentir muita repug mesmo frequente experimentar oportunamente
nância em apresentar seu nome para serem uma lei antes de estabelecê-la. A constituição
sorteadas. de Roma e a de Atenas eram muito sábias. Os
decretos do senado33 tinham força de lei
A lei que determina a maneira de conceder durante um ano e as leis só se tornavam perpé
as cédulas de sufrágio é ainda na democracia tuas pela vontade do povo.
uma lei fundamental. Constitui um sério pro
blema saber se os sufrágios devem ser públicos 2 8 Liv. I e III das Leis. (N. do A.)
29 Chamavam-se leis tabulares (leis tabelarias).
Davam-se a cada cidadão duas tábuas (tabuletas)
23 Dionísio de Halicarnasso, Elogio de Isócrates, ou boletins: a primeira assinalada com um A, para
pág. 92, tomo II, edição de Wechelius, Pollux, liv. significar antiquo; a outra assinalada com um U e
VIII, cap. X, art. 130. (N. do A.) com um R, uti rogas. (N. do A.)
2 4 Aristóteles, Política, liv. II, cap. XII. 30 Em Atenas, levantavam-se as mãos. (N. do A.)
2 5 Id„ ibid., liv. IV, cap. IX. 31 Como em Veneza. (N. do A.)
2 8 Vede o discurso de Demóstenes, De Falsa 32 Os trinta tiranos ae Atenas quiseram que os
Legat., e o discurso contra Timarco. (N. do A.) sufrágios dos areopagitas fossem públicos, a fim de
2 7 Tiravam-se mesmo duas cédulas para cada os dirigir a seu bel-prazer. Lísias, Orat. contra Ago-
lugar: uma determinava o lugar, outra indicava rat, cap. VIII. (N. do A.)
quem deveria suceder, caso o primeiro fosse rejeita 33 Vede Dionísio de Halicarnasso. liv. IV e IX. (N.
do. (N. do A.) do A.)
42 MONTESQUIEU
Capítulo III
Na aristocracia3 4 o poder soberano encon mita o poder do monarca mas, numa república
tra-se em mãos de um número certo de pes em que um cidadão se faz atribuir3 7 um
soas. São elas que estipulam as leis e as fazem poder exorbitante, o abuso desse poder é
executar. O resto do povo está, em relação a maior, pois as leis que não o proveram nada
elas, simplesmente como numa monarquia os fizeram para limitá-lo.
súditos estão em relação ao monarca. Ocorre uma exceção a essa regra quando a
Nesta forma de governo não deve existir o constituição do Estado é tal que ele necessita
sufrágio pelo sorteio pois dele só existiríam os de uma magistratura que tenha um poder exor
inconvenientes. Com efeito, num governo que bitante. Assim era Roma com seus ditadores,
assim é Veneza com seus inquisidores de Esta
estabeleceu as distinções mais opressivas, não
do; essas são magistraturas terríveis que con
se será menos odiado quando se for escolhido
duzem, violentamente, o Estado à liberdade.
pela sorte: ao nobre é que se inveja e não ao
Mas por que essas magistraturas se mostram
magistrado.
tão diferentes nessas duas repúblicas? É que
Quando os nobres são muito numerosos é Roma defendia, contra o povo, os restos de sua
necessário um senado que regulamente os aristocracia, enquanto Veneza se .serve de seus
negócios que o corpo de nobres não poderia inquisidores de Estado para manter sua aristo
resolver e que prepare os que ele resolve. Neste cracia contra os nobres. Resulta daí que, em
caso, podemos dizer que a aristocracia existe, Roma, a ditadura só deveria durar por pouco
de alguma forma, no senado, a democracia no tempo porque o povo agia guiado por sua
corpo de nobres e que o povo nada é. impetuosidade e não por seus desígnios. Cum
Numa aristocracia seria algo muito bom se, pria que essa magistratura fosse exercida com
por algum meio indireto, tirássemos o povo de brilho pois se tratava de intimidar o povo e
sua prostração; assim, em Gênova, o Banco de não de puni-lo; cumpria que o ditador só fosse
São Jorge, administrado em grande parte pelos criado para uma única função e só tivesse
principais do povo3 5, confere a este certa autoridade ilimitada em razão dessa função,
influência sobre o governo, o que faz toda a uma vez que era ele sempre criado para um
sua prosperidade. caso imprevisto. Em Veneza, pelo contrário,
Os senadores não devem ter o direito de era necessário magistratura permanente; é aí
substituir os que faltam ao senado, pois nada que os planos podem ser iniciados, continua
perpetuaria tanto os abusos. Em Roma, que foi dos, suspensos, retomados; que a ambição de
nos primeiros tempos uma espécie de aristo um só se torna a de uma família, e a ambição
cracia, o senado não se completava por si de uma família, a de muitos. Necessita-se de
uma magistratura oculta porque os crimes que
mesmo: os novos senadores eram nomea
ela pune, sempre profundos, formam-se no
dos3 6 pelos censores.
segredo e no silêncio. Essa magistratura deve
A autoridade exorbitante conferida subita
ter uma inquisição geral, pois deve não apenas
mente a um cidadão, numa república, constitui
extinguir os males conhecidos como também
uma monarquia ou mais que uma monarquia.
prevenir os males desconhecidos. Finalmente,
Nessas, as leis proveram a constituição ou a
essa última é estabelecida para vingar os cri
ela se acomodaram; o princípio de governo li
mes de que ela suspeita; e a primeira utilizava
mais as ameaças do que as. punições para os
3 4 Aqui, e no que segue, Montesquieu pensa princi
palmente em Veneza.
3 5 Vede Adisson, Viagens na Itália, pág. 16. (N. do 3 7 Foi isso que derrubou a república romana. Vede
A.) as Considérations sur les Causes de la Grandeur des
3 6 De início, eles o foram pelos cônsules. (N. do Romains et de leur Décadence, cap. XIV e XVI. (N.
A.) do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I
43
crimes, mesmo os confessados por seus auto poder é tão pequena e tão pobre que a parte
res. dominante não tem qualquer interesse em opri-
É mister compensar, em toda magistratura, mi-la. Assim, quando Antipater41 estabele
a grandeza de seu poder pela brevidade de sua ceu, em Atenas, que os que não possuíssem
duração38. Um ano é o prazo que a maioria dois mil dracmas perderíam o direito de voto,
dos legisladores determinou; um prazo mais formou a melhor aristocracia possível, pois
longo seria perigoso, um mais curto seria con este censo era tão baixo que só excluiría pou
trário à natureza das coisas. Quem desejaria cas pessoas e nunca uma pessoa que possuísse
governar assim seus interesses particulares? alguma consideração na cidade.
Em Ragusa39 muda-se o chefe da república Portanto, as famílias aristocráticas, na me
todos os meses, os outros oficiais todas as dida do possível, devem fazer parte do povo.
semanas e o gove‘rnador do castelo todos os Quanto mais uma aristocracia aproximar-se
dias. Isso só pode ocorrer numa república da democracia, tanto mais perfeita será ela;
pequena40, cercada de potências formidáveis tornar-se-á menos perfeita à medida que se
que corromperíam facilmente os pequenos aproximar da monarquia.
magistrados. A mais imperfeita de todas é aquela em que
a parte do povo que obedece permanece na
A melhor forma de aristocracia é aquela em escravidão civil dos que comandam, como na
que a parte do povo que não participa do
aristocracia da Polônia, em que os camponeses
são escravos da nobreza.
3 8 Aristóteles, Política, liv. V, cap. VIII.
3 9 Voyages, de Toumefort. (N. do A.)
40 A duração da magistratura, em Luca, é de ape 41 Diodoro, liv. XVIII, pág. 601, edição de Rhodo-
nas dois meses (N. do A.) man. ( N. do A.)
Capítulo IV
fixasse bem sua jurisdição. Não se trata de os corpos políticos: dissolvia4 5 a monarquia
saber se há motivos para estabelecê-la mas sim por seus reembolsamentos quiméricos e pare
se ela está estabelecida, se faz parte das leis do cia querer comprar a própria constituição.
país, se é relativa em toda parte, se entre dois Numa monarquia não é suticiente a exis
poderes reconhecidos como independentes as tência de posições intermediárias; é necessário
condições não devem ser recíprocas e se não é ainda um repositório de leis. Esse repositório
a mesma coisa para um bom súdito defender a só pode existir nos corpos políticos que anun
justiçá do príncipe ou os limites que ela, em ciam as leis, quando são feitas, e relembram-
todos os tempos, se prescreveu. nas, quando são esquecidas46. A ignorância
Assim como, numa república, o poder db natural da nobreza, sua desatenção, seu des
clero é perigoso, ele é conveniente numa prezo pelo governo civil, exigem que haja um
monarquia, sobretudo nas que caminham para órgão que incessantemente faça sair as leis da
o despotismo. Onde estariam a Espanha e Por poeira onde estariam enterradas. O Conselho
tugal, desde a perda de suas leis, sem esse do príncipe não é um repositório conveniente.
poder que, sozinho, contém o poder arbitrário? É, por sua natureza, o repositório da vontade
Barreira sempre útil quando não existem momentânea do príncipe que executa e não o
outras, pois, como o despotismo causa à natu repositório das leis fundamentais. Além disso,
reza humana males horríveis, o próprio mal o Conselho do monarca modifica-se constante
que o limita é um bem. mente; não é de modo algum permanente; não
Como o mar que parece cobrir toda a terra poderia ser numeroso; não tem, em alto grau, a
e contido pelas ervas e pequenos seixos que se confiança do povo; não está, pois, em condi
encontram sobre a praia, também os monarcas ções de esclarecê-lo nos momentos difíceis,
cujo poder parece ilimitado são barrados pelos nem de chamá-lo à obediência.
Nos Estados despóticos, onde não há leis
menores obstáculos e submetem sua altivez
fundamentais, não há também repositório das
natural às lamentações e aos rogos.
leis. Disso decorre que, nesses países, comu-
Os ingleses, para favorecer a liberdade,
mente a religião possui grande poder, pois
suprimiram todos os poderes intermediários
constitui uma espécie de repositório e• de
que compunham sua monarquia. Têm muita
permanência; e, se não é a religião, são os cos
razão em conservar essa liberdade; se a per
tumes que aí se veneram em lugar das leis.
dessem seriam um dos povos mais escravi
zados da terra.
4 ? Fernando, rei de Aragão, fez-se grão-mestre das
Law, por ignorar tanto a constituição repu orderis e somente isso alterou a constituição. (N. dp
blicana como a monarquia, foi um dos maiores
promotores do despotismo já vistos na Europa. 4 6 Alusão aos parlamentos, com seu direito de assen
Além das transformações que promoveu, tão to e de admõestação*.
* Em francês, remontrance: trata-se dos discursos
bruscas, inusitadas e espantosas, pretendia dirigidos aos reis pelos antigos parlamentos, expon
suprimir as posições intermediárias e dissolver do os inconvenientes de um edito etc. (N. do T.)
Capítulo V
mente, o mesmo poder que ele. O estabeleci atordoados. Entretanto, depois de escolherem
mento de um vizir é, nesse Estado, uma lei um vizir e depois de, em seus haréns, se terem
fundamental. entregado às mais brutais paixões e depois de,
Conta-se que um papa, em sua eleição, numa corte corrompida, terem cumprido todos
compenetrado de sua incapacidade, apresen os seus caprichos, jamais teriam pensado que
tou, de início, dificuldades infinitas. Aceitou isso fosse tão fácil.
por fim e entregou a seu sobrinho todos os
negócios. E dizia, admirado: “Nunca pensei Quanto mais o império cresce, mais o harém
que isso fosse tão simples”. O mesmo ocorre aumenta e, conseqüentemente, mais o príncipe
com os príncipes do Oriente. Quando os tiram está embriagado de prazeres. Assim, nesses
dessa prisão — onde os eunucos lhes enfraque Estados, quanto mais súditos o príncipe possui
ceram o coração e o espírito, e onde, amiúde, para governar, menos pensa no governo; quan
os deixaram ignorar sua própria condição — to mais se avolumam os negócios, menos se
para colocá-los no trono, ficam inicialmente delibera sobre eles.
LIVRO TERCEIRO
DOS PRINCÍPIOS DOS TRÊS GOVERNOS
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Do princípio da democracia
Para que o governo monárquico ou despó Isso é confirmado por toda a História e está
tico se mantenha ou se sustente não é neces muito de acordo com a natureza das coisas.
sária muita probidade. A força da lei, no pri Pois é claro que numa monarquia, onde quem
meiro, o braço do príncipe sempre levantado, manda executar as leis se julga acima das leis,
no segundo, tudo regulamenta ou contém. tem-se rfecessidade de menos virtude do que
Mas, num Estado popular, é preciso uma força ' num governo popular, onde quem manda exe
a mais: a Virtude49.
cutar as leis sente que ele próprio a élas está
submetido e que delas sofrerá o peso.
49 Devemos entender, pela palavra “virtude”, a É claro ainda que o monarca que por maus
virtude do cidadão que Aristóteles já acrescentava
às de homem honesto, mesmo as distinguindo. Polí conselhos ou negligência deixa de mandar exe
tica, cap. III, 2. cutar as leis pode facilmente reparar o mal:
50 MONTESQUIEU
basta modificar o Conselho ou se corrigir sua força não é mais-do que o poder de alguns
dessa negligência. Entretanto, quando num cidadãos e a licença de todos.
governo popular as leis não mais são executa Atenas possuiu em seu seio as mesmas for
das, e como isso só pode ser consequência da ças enquanto dominou com tanta glória e
corrupção da república, o Estado já está enquanto humilhou-se com tanto opróbrio.
perdido 50. Possuía vinte mil cidadãos 53 quando defendeu
Foi um belo espetáculo observar, no século os gregos contra os persas, quando disputou o
passado, os esforços impotentes dos ingleses império à Lacedemônia e quando atacou a
para implantar, entre eles, a democracia. Sicília. Atenas possuía vinte mil quando
Como os que participavam dos negócios não Demétrio de Faleros os enumerou 5 4, tal como,
tinham virtude, como sua ambição irritava-se num mercado, se enumeram os escravos.
com o êxito do que era mais ousado51, como o Quando Filipe ousou submeter a Grécia, quan
espírito de uma facção só era contido pelo do ele apareceu nas portas de Atenas55, de
espírito de outra, o governo mudava incessan perdido esta só tinha o tempo. Podemos verifi
temente; perplexo, o povo procurava a demo
car, em Demóstenes, quanto esforço foi neces
cracia e não a encontrava em parte alguma.
sário para despertá-la: temia-se Filipe não
Enfim, após muitos movimentos, choques e
como o inimigo da liberdade mas como o ini
abalos, foi necessário confiar no próprio
migo dos prazeres5 6. Esta cidade, que resistira
governo que se proscrevera.
a tantos reveses, que vimos renascer após as
Quando Sila quis devolver a Roma sua
destruições, foi derrotada em Queronéia e para
liberdade, essa não pôde mais recebê-la, pois
não possuía mais do que um tênue resquício de sempre. Não importa que Filipe devolva todos
virtude e, como a possuía cada vez menos, em os prisioneiros, pois não devolve homens. Era
vez de despertar após César, Tibério, Caio, sempre tão fácil vencer as forças de Atenas
Cláudio, Nero, Domiciano, tornou-se cada vez como difícil vencer sua virtude.
mais escrava; todos os golpes foram dirigidos Como Cartago poderia manter-se? Quando
contra os tiranos mas nenhum contra a tirania. Aníbal, que se tornara pretor, quis impedir os
Os políticos gregos, que viviam no governo magistrados de pilhar a república, não foram
popular, só reconheciam uma força capaz de eles acusá-lo aos romanos? Infelizes, queriam
mantê-los: a força da virtude52. Os políticos ser cidadãos sem que existisse a cidade e man
atuais só nos falam de manufaturas, de comér ter suas riquezas graças ao poderio de seus
cio, de finanças, de riquezas e até de luxo. destruidores! Cedo Roma exigiu-lhes como
Quando esta virtude desaparece, a ambição reféns trezentos de seus principais cidadãos,
penetra o coração dos que podem acolhê-la e a fez com que se lhe entregassem suas armas e
avareza apodera-se de todos. Os desejos navios e depois lhes declarou guerra. Pelas coi
mudam de objeto: não mais se ama aos que se sas que o desespero fez na Cartago desarma
amava; era-se livre com as leis, quer-se ser da5 7, podemos imaginar o que ela teria feito
livre contra elas; cada cidadão é como um com sua virtude, quando ainda possuía suas
escravo que fugiu da casa de seu senhor; cha forças.
ma-se rigor o que era máxima; chama-se impo
sição o que era regra; chama-se temor o que
5 3 Plutarco, in Péricles; Platão in Crítias. (N. do
era respeito. A frugalidade agora é avareza c A.)
não desejo de possuir. Outrora, os bens dos 5 4 Encontraram-se, em Atenas, vinte e um mil
particulares constituíam o tesouro público cidadãos, dez mil estrangeiros e quatrocentos mil
mas, então, o tesouro torna-se patrimônio dos escravos. Vede Ateneu, liv. VI. (N. do A.)
particulares. A república é um despojo mas 5 6 Possuía ela vinte mil cidadãos. Vede Demóste
nes, in Aristog. (N. do Á.)
6 6 Eles tinham estabelecido uma lei para punir
50 Aristóteles, Política, liv. V, cap. VIII. com a morte quem propusesse utilizar para a guerra
61 Cromwell. (N. do A.) o dinheiro destinado aos teatros. (N. do A.)
52 Id., ibid., liv. II, cap. II. 5 7 Esta guerra durou três anos. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS 1 51
Capítulo IV
Do princípio da aristocracia
A virtude é tão necessária no governo popu si próprio58. Á natureza dessa constituição é
lar quanto na aristocracia. É verdade que aqui tal que parece colocar as mesmas pessoas sob
ela não é tão absolutamente requerida. a força das leis e dela as retirar.
O povo, que é para os nobres o que os súdi Ora, um corpo semelhante apenas pode
tos são para o monarca, é coibido por suas reprimir-se de duas maneiras: ou por uma
leis. Aqui o povo tem menos necessidade de grande virtude que faz com que os nobres se
virtude do que na democracia. Porém, como se achem de algum modo iguais a seu povo, coisa
coibirão os nobres? Os que devem mandar que pode formar uma grande república; ou por
executar as leis contra seus colegas sentem uma virtude menor, isto é, certa moderação
imediatamente que agem contra eles próprios. que torna os nobres, pelo menos, iguais entre
Cumpre portanto que, neste corpo, haja virtu si, o que faz a sua conservação.
de, pela natureza da constituição. A moderação é portanto a alma desses
O governo aristocrático possui, por si governos. Refiro-me à que se baseia sobre a
mesmo, uma certa força que a democracia não virtude e não à que decorre de uma covardia e
possui. Os nobres formam um corpo que, por preguiça da alma.
sua prerrogativa e interesse particular, reprime
o povo: basta que existam leis para que, a esse
58 Os crimes públicos aí poderão ser punidos pois
respeito, sejam executadas. constituem um assunto coletivo; os crimes particu
Porém, assim como é fácil para essè corpo lares não serão punidos porque o interesse de todos
reprimir os demais, é difícil que ele reprima a é não puni-los. (N. do A.)
Capítulo V
Nas monarquias, a política manda fazer as Embora, por sua natureza, todos os crimes
grandes coisas com o mínimo de virtude possí sejam públicos, distinguimos os crimes verda
vel, da mesma maneira como, nas máquinas deiramente públicos dos crimes particulares,
mais perfeitas, a arte emprega o menor número assim chamados porque atingem mais uma
possível de movimentos, forças e rodas. pessoa do que toda a sociedade.
O Estado subsiste independentemente de
Ora, nas repúblicas, os crimes particulares
amor pela pátria, do desejo da verdadeira gló
são os mais públicos, isto é, atentam mais con
ria, da renúncia a si mesmo, do sacrifício aos
tra a constituição do Estado do que os -indiví
interesses mais caros e de todas estas virtudes
duos; e, nas monarquias, os crimes públicos
heróicas que encontramos nos Antigos e das
são mais particulares, isto é, atingem mais as
quais apenas ouvimos falar.
fortunas particulares do que a constituição do
As leis ocupam o lugar de todas essas virtu
próprio Estado.
des, das quais não se tem qualquer necessi
dade, pois o Estado delas vos dispensa: uma Peço que não se ofendam com o que acabei
ação que se faz silenciosamente e que é, de de dizer pois refiro-me a todas as histórias. Sei
certo modo, sem consequências. muito bem que não raro existem príncipes vir
52 MONTESQUIEU
tuosos mas digo que, numa monarquia, é mam, creio, o caráter da maioria dos corte
muito difícil que o povo o seja6 9. sãos, observados em todos os lugares e em
Leia-se o que disseram os historiadores de todos os tempos. Ora, é muito lamentável que
todas as épocas sobre a corte dos monarcas; a maioria dos principais de um Estado sejam
recordem-se as narrativas dos homens de todos pessoas desonestas e que seus inferiores sejam
os países sobre o caráter vil dos cortesãos: não pessoas de bem; que aqueles sejam mentirosos
se trata de coisas de especulação60 mas de e estes só aceitam ser tolos.
uma triste experiência. Porque, se entre o povo encontramos algum
A ambição na ociosidade, a baixeza no infeliz homem honesto61, o Cardeal de Riche-
orgulho, o desejo de enriquecer sem trabalhar, lieu insinua, em seu testamento político62, que
a aversão pela verdade, a lisonja, a traição, a um monarca deve evitar servir-se dele 63, de tal
perfídia, o abandono de todos os compromis modo é verdadeiro que a virtude não é a mola
sos, o desprezo pelos deveres do cidadão, o desse governo! Certamente a virtude aí não
medo pela virtude do príncipe, a esperança em está totalmente excluída; mas ela não constitui
suas fraquezas e, mais do que tudo isso, o per a sua mola.
pétuo ridículo lançado sobre a virtude, for-
61 Entendei isso no sentido da nota precedente. (N.
59 Refiro-me aqui à Virtude política, que é a virtu do A.)
de moral, no sentido de que ela se orienta para o 62 Lembramos que Montesquieu aqui insere como
bem geral; falo muito pouco das virtudes morais nota, nas primeiras edições: “Este livro foi prepa
particulares e nada dessa virtude que se relaciona rado sçb os olhos e sobre as memórias do Cardeal
com as verdades reveladas. Ver-se-á bem isso no liv. de Richelieu, pelos Srs. de Bourseis e . . . que lhe
V, cap. II. (N. do A.) * eram ligados”.
63 Não é necessário, está dito aí, servir-se das pes
* Vede a nota de Montesquieu e a nota 49. soas de baixa extração: elas são muito austeras e
60 Coisas de especulação, deduções dos filósofos. muito difíceis (Testament, cap. IV). (N. do A.)
Capítulo VI
Apresso-me e caminho a passos largos a fim tadas, todos serão quase bons cidadãos mas
de que não se creia que faço uma sátira do raramente encontrar-se-á alguém que seja
governo monárquico. Não, se a ele falta uma homem de bem, pois para ser homem de
mola, possui outra: a Honra, isto é, o precon bem 6 4 é necessário ter a intenção de sê-lo 6 5 e
ceito de cada pessoa e de cada condição,
amar o Estado mais em si mesmo do que em
ocupa o lugar da virtude política à qual já me
referi e a representa em toda parte. Pode ela interesse próprio.
inspirar as mais belas ações; pode, ligada à
64 Esta palavra, homem de bem, só é entendida
força das leis, levar o governo aos seus objeti aqui num sentido político. (N. do A.)
vos como a própria virtude. 6 5 Vede a nota I da página 129 da antiga edição.
Assim, nas monarquias bem regulamen (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 53
Capítulo VII
Do princípio da monarquia
O governo monárquico supõe, como disse os reconduz. A honra movimenta todas as par
mos, preeminências, categorias e mesmo uma tes do corpo político; liga-as por sua própria
nobreza de origem. A natureza da honra é exi ação, fazendo com que cada uma caminhe
gir preferências e distinções; ela está, portanto, para o bem comum acreditando ir em direção
pela própria coisa, situada neste governo. de seus interesses particulares.
A ambição é perniciosa numa república mas É verdade que, filosoficamente falando, é
acarreta bons resultados na monarquia: dá uma falsa honra que dirige todas as partes do
vida a esse governo com a vantagem de não ser Estado. Porém, esta falsa honra é tão útil ao
perigosa porque pode aí ser incessantemente público como o seria a verdadeira honra para
reprimida. os indivíduos que pudessem tê-la.
Direis que isso se assemelha ao sistema do E já não basta obrigar os homens a cumprir
universo, em que há uma força que afasta todas as ações difíceis que requerem força, sem
incessantemente todos os corpos do centro do outra recompensa que a repercussão dessas
sistema, e uma força de gravidade que para aí ações?
Capítulo VIII
A honra não constitui o princípio dos Esta só é poderoso porque pode suprimi-la. Como
dos despóticos; sendo todos os homens iguais, poderia ela tolerar o déspota? Tem regras
não se pode antepor uns aos outros; sendo determinadas e caprichos obstinados; o dés
todos os homens escravos, ninguém pode ante- pota não observa regulamento algum e seus
por-se a coisa alguma.
caprichos destroem todos os demais.
Demais, como a honra possui suas leis e
regulamentos, não poderia transigir; como A honra — desconhecida nos Estados
depende muito de seu próprio capricho e não despóticos onde amiúde não existe mesmo
do de outra coisa, só pode ser encontrada nos uma palavra para expressá-la 66 — reina nas
Estados em que a constituição é fixa e que pos monarquias, dando vida a todo o corpo políti
suem leis certas. co, às leis e às próprias virtudes.
Como seria ela suportada pelo déspota? Ela
vangloria-se de menosprezar a vida e o déspota 6 8 Vede Perry, pâg. 447. (N. do A.)
Capítulo IX
Tal como a virtude é necessária numa repú Aqui, o imenso poder do príncipe passa
blica e a honra necessária numa monarquia, >o inteiramente àqueles a quem ele o confia, e
Medo é necessário num governo despótico; pessoas capazes de cuidar muito de si mesmas
nesse governo, a virtude é totalmente desneces seriam capazes de promover revoluções. Cum
sária, e a honra, perigosa. pre, portanto, que o medo aniquile todas as
54 MONTESQUIEU
coragens e extinga até o menor sentimento de O povo deve ser julgado de acordo com leis
ambição. e os poderosos pelo arbítrio do príncipe; a ca
Um governo moderado pode, se o quiser, e beça do súdito mais inferior deve estar em
sem se arriscar, distender suas molas, pois se segurança e a dos paxás sempre ameaçada.
mantém por suas leis e por sua própria força. Não se pode falar sem estremecer desses
Mas quando, num governo despótico, o prín governos monstruosos. O sufi da Pérsia,
cipe deixa, por um instante, de levantar o destronado, em nossos dias, por Mirivéis, viu o
braço e quando não pode destruir imediata governo perecer antes da conquista porque não
mente os que ocupam os postos mais impor fez verter bastante sangue 69.
tantes 6 7 tudo está perdido, pois não mais exis A História conta-nos como as horríveis
tindo a mola do governo, que é o medo, o povo crueldades de Domiciano aterrorizaram os
não mais possui protetor. governadores, de tal modo que o povo pôde
É provavelmente nesse sentido que os cádis refazer-se um pouco sob seu reinado70. É deste
afirmaram que o grão-senhor não era absoluta modo que uma torrente que, numa margem, •
mente obrigado a manter sua palavra ou seu tudo devasta, deixa, na outra, campos onde o
juramento quando isso implicava uma limita olhar percebe, de longe, alguns prados.
ção de sua autoridade 68.
69 Vede a história dessa revolução pelo Padre du
6 7 Como constantemente acontece na aristocracia Cerceau. (N. do A.)
militar. (N. do A.) 70 Suet., Domit., cap. VIII. Seu governo era mili
68 Ricaut, De lÍEmpire Ottoman, liv. I, cap. II. (N. tar, o que constitui um dos tipos de governo despó
do A.) tico. (N. do A.)
Capítulo X
A natureza do governo, nos Estados despó dão. Se ele estava bêbado ou fora de si, a sen
ticos, exige uma extrema obediência, e a vonta tença deve ser executada do mesmo modo71;
de do príncipe, uma vez conhecida, deve ter sem isso, ele se contradiría e a lei não pode
tão infalivelmente seu efeito quanto uma bola contradizer-se. Esse modo de pensar existiu
atirada contra outra deve ter o seu. sempre nesse país: não podendo ser revogada a
Não há temperamento, modificação, acor ordem que Assuero deu de exterminar os
dos, termos, equivalentes, conferências, ad- judeus, preferiu-se dar a eles permissão para se
moestações; não há nada igual ou melhor a ser defenderem.
proposto; o homem é uma criatura que obede Há, porém, uma coisa que pode às vezes ser
ce a outra criatura que manda. oposta à vontade do príncipe72: a religião.
Não mais pode expressar seus temores por Pode-se abandonar e mesmo matar o pai, se o
uTn acontecimento futuro, nem atribuir seus príncipe assim o ordenar, mas não se beberá
malogros aos caprichos do acaso. O quinhão vinho, ainda que ele assim queira e ordene. As
dos homens, tal como o dos animais, é o ins leis da religião são de preceito superior porque
tinto, a obediência, o castigo. recaem tanto sobre o príncipe como sobre seus
De nada vale colocar obstáculos tais como súditos. Entretanto, não sucede o mesmo com
os sentimentos naturais, o respeito paterno, a o direito natural: supõe-se que o príncipe não
ternura pelos filhos e pelas mulheres, as leis da mais é homem.
honra, o estado de saúde: recebeu-se ordem e Nos Estados monárquicos e moderados, o
isso basta. poder é limitado pelo que constitui seus funda-
Na Pérsia, quando o rei condena alguém, 71 Vede Chardin. (N. do A.)
não mais se pode falar-lhe, nem suplicar per 72 Vede Chardin. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 55
mentos; refiro-me à honra que reina como um rente a maneira de obedecer, o poder é, apesar
monarca sobre o príncipe e sobre o povo. Nin disso, o mesmo. Para qualquer lado que o
guém lhe alegará as leis da religião; um corte monarca se volte, ele decide e precipita a
são acreditar-se-á ridículo: ser-lhe-ão alegadas
balança, e é obedecido. Toda diferença reside
as da honra. Daí resultam modificações neces
sárias na obediência; a honra está natural no fato de que, na monarquia, o príncipe é
mente sujeita a singularidades, e a obediência esclarecido e os ministros são infinitamente
cumprirá todas. mais hábeis e mais versados nos negócios pú
Nesses dois governos, apesar de ser dife blicos do que no Estado despótico.
Capítulo XI
Tais são os princípios dos três governos, o monarquia, a honra reine e que, num dado Es
que não significa que, em determinada repú tado despótico, o medo vigore; mas sim que a
blica, se seja virtuoso, mas sim que se deveria honra e o medo deveríam existir, sem o que o
sê-lo. Isso também não prova que, numa certa governo seria imperfeito.
LIVRO QUARTO
DE COMO AS LEIS DEVEM SER RELATIVAS
AOS PRINCÍPIOS DO GOVERNO
Capítulo I
Capítulo II
Nas monarquias, não é nas escolas públicas qual os costumes nunca são tão puros nas
que se instrui a infância, que se recebe a princi monarquias como nos governos republicanos.
pal educação: a educação começa de alguma Permite a astúcia quando está unida à idéia
maneira quando se participa da vida. E aqui da grandeza do espírito ou da grandeza da
está a escola do que chamamos honra, esta questão, como, por exemplo, na política, cujas
preceptora universal que deve, em toda parte, sutilezas não a ofendem.
nos orientar. A honra só coíbe a adulação quando esta
Lá é que sempre vemos e ouvimos dizer três está isolada da idéia de uma grande fortuna e
coisas: “Nas virtudes devemos inserir certa quando só se associa ao sentimento de sua pró
nobreza; nos costumes, certa franqueza; nas pria baixeza. Afirmei, a respeito dos costumes,
maneiras, certa polidez”. que a educação das monarquias deve neles
As virtudes que ali nos são mostradas são introduzir uma certa franqueza. Pretende-se,
sempre menos o que devemos aos outros do portanto, que a verdade exista nas palavras.
que o que devemos a nós próprios; não são Mas será que isso é por amor a ela? De modo
tanto o que nos aproxima de nossos concida algum. Desejamo-la porque um homem acos
dãos mas o que deles nos diferencia. tumado a proclamá-la parece ser audacioso e
Não se julga a ação dos homens como boas livre. Com efeito, tal homem parece depender
mas como belas, não como justas mas como apenas das coisas e não das maneiras pelas
grandiosas, não como razoáveis mas como quais outro as recebe.
extraordinárias. Isso faz com que, tanto como recomen
Desde que a honra, nas monarquias, pode damos esta espécie de franqueza, desprezemos
encontrar alguma coisa nobre, ela é o juiz que a do povo, que só possui como objetivo a ver
as torna legítimas ou o sofista que as justifica. dade e a simplicidade.
Permite a galanteria quando está associada Finalmente, a educação, nas monarquias,
à idéia dos sentimentos dó coração, ou à idéia requer uma certa polidez nas maneiras. Os
de conquista, e é este o verdadeiro motivo pelo homens, nascidos para viver em sociedade,
60 MONTESQUIEU
nasceram também para se agradar mutua Nas monarquias, não há nada que prescreva
mente, e quem não observasse as conveniên tanta obediência às vontades do príncipe como
cias* ofendendo todos com quem convivesse, as leis, a religião e a honra. Porém, esta honra
desacreditar-se-ia a ponto de se tornar incapaz nos afirma que o príncipe nunca nos deve pres
de praticar qualquer bem. crever uma ação que nos desonre, pois ela
Porém não é de tão pura fonte que a polidez tornar-nos-ia incapazes de servi-lo.
costuma extrair sua origem. Nasce ela do dese Crillon recusou-se a assassinar o Duque de
jo de se distinguir. Ê pelo orgulho que somos Guise mas se ofereceu a Henrique III para
delicados: sentimo-nos lisonjeados de possuir bater-se contra ele. Depois da noite de São
boas maneiras que provam que não perten Bartolomeu, tendo Carlos IX determinado a
cemos às camadas baixas e que não convive todos os governadores que exterminassem os
mos com éste tipo de gente que, em todas as huguenotes, o Visconde d’Orte, que governava
épocas, se desdenhou. na Bayonne, escreveu ao rei74: “Sire, encon
Nas monarquias, é na corte que a polidez trei entre os habitantes e militares apenas bons
está implantada. Um homem excessivamente cidadãos e valentes soldados e nenhum carras
grande torna pequenos todos os demais. co; assim, eu e eles suplicamos a Vossa Majes
Decorre daí o respeito que devemos a todos; tade empregar nossos braços e nossas vidas em
daí nasce a polidez que lisonjeia tanto os que coisas factíveis”. Essa grande e generosa cora
são polidos como aqueles com quem o somos, gem considerava uma covardia como algo
porque a polidez faz com que se compreenda impossível.
que somos da corte ou que somos dignos de Não há nada que a honra prescreva mais à
sê-lo. nobreza do que servir ao príncipe na guerra.
O vezo da corte consiste em substituir sua Com efeito, é a profissão distinguida porque
grandeza própria por uma grandeza empres seus acasos, seus sucessos e mesmo seus reve
tada. Essa lisonjeia mais um cortesão do que a ses conduzem à grandeza. Mas a honra, ao
sua própria. Ela confere uma certa modéstia impor esta lei, dela quer ser o árbitro e, se se
desdenhosa que se propala ao longe mas cujo julgar violada, exige ou permite que nos retire
orgulho diminui insensivelmente na proporção mos do país.
da distância em que se está da fonte dessa Pretende a honra que possamos indiferente
grandeza. mente aspirar aos empregos ou recusá-los e
mantém esta liberdade acima da própria
Encontramos na corte uma delicadeza de
fortuna.
gosto em todas as coisas que decorre de um
Possui a honra, portanto, suas regras supre
uso contínuo das superfluidades de uma gran
mas e a educação é obrigada a se conformar a
de fortuna, da variedade e sobretudo do tédio
elas7 5. As principais são: é-nos permitido atri
dos prazeres, da multiplicidade, da própria
buir importância à nossa fortuna porém nos é
confusão das fantasias que, quando são agra
soberanamente vedado atribuir qualquer im
dáveis, são sempre bem recebidas.
portância à nossa vida7 6.
A educação baseia-se sobre todas essas coi
A segunda estipula que, quando tenhamos
sas para constituir o que chamamos homem de
por uma vez ocupado uma posição, não deve
bem, senhor de todas as qualidades e virtudes
mos fazer, nem tolerar nada que revele que
exigidas nesse tipo de governo.
somos inferiores a esta mesma posição.
Aqui a honra, imiscuindo-se em tudo, pene
tra em todos os modos de pensar e em todas as
7 4 Vede a Histoire de d’Aubigné. (N. do A.)
maneiras de sentir, orientando até mesmo os 7 5 Dizemos aqui o que é e não o que deveria ser: a
princípios. honra é um preconceito que a religião trabalha, ora
Essa honra extravagante faz com que as vir para destruir, ora para regulamentar. (N. do A.)
7 6 Lemos em Bossuet (Discours sur l'Histoire
tudes não sejam o que ela deseja e como ela as Universelle, 3.“ parte, cap. VI): “Que torna nossa
deseja: introduz, por sua própria conta, regula nobreza tão altiva nos combates e tão ousada nos
mentos em tudo o que nos é prescrito; amplia empreendimentos? É a opinião recebida desde a
ou limita, a seu bel-prazer, nossos deveres, infância e estabelecida pelo sentimento unânime da
nação, que um gentil-homem sem coração [sem
quer esses se originem da religião, da política coragem] degrada a si próprio e não é digno de vir
ou da moral. ao mundo”.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 61
A terceira diz que as coisas que a honra que aquelas que a honra exige são mais forte
proíbe são mais rigorosamente proibidas quan mente exigidas quando as leis não as reqües-
do as leis não contribuem para proscrevê-las e tam.
Capítulo III
Como nas monarquias a educação não se ples de religião. O saber aí será perigoso, a
aplica senão em enobrecer os sentimentos, nos emulação, funesta; e, no que se refere às virtu
Estados despóticos ela procura apenas aviltá- des, Aristóteles não pode acreditar que exista
los. Cumpre que a educação, nesses Estados, alguma própria aos escravos7 7, fato que muito
seja servil. Será uma vantagem ter tido seme limitaria a educação nesses governos.
lhante educação, mesmo no comando, pois aí Portanto a educação, nessas formas de
ninguém será tirano sem ser ao mesmo tempo governo, é de alguma maneira nula. Precisa
escravo. tirar tudo a fim de dar algo e, para formar um
bom escravo, começa por formar um mau
A extrema obediência supõe ignorância em
súdito.
quem obedece; supÕe-na mesmo em quem
Ah! Por que se esmeraria a educação em
comanda; este nada tem a deliberar, a duvidar,
formar um bom cidadão que participasse da
nem a raciocinar; basta querer.
desgraça pública? Se ele amasse o Estado seria
Nos Estados despóticos, cada casa é um tentado a solapar os fundamentos do governo:
império separado. A educação, que consiste se não o lograsse, perder-se-ia; se o conse
principalmente em viver com os outros, é por guisse, correría o risco de se perder, ele, o prín
tanto muito limitada; reduz-se a introduzir o cipe e o império.
medo no coração e a conferir ao espírito o
conhecimento de alguns princípios muito sim 7 7 Política, liv. I, cap. III. (N. do A.)
Capítulo IV
A maioria dos povos antigos vivia em Hoje, recebemos três educações diferentes
governos cujo princípio era a virtude; e, desde ou contrárias: a de nossos pais, a de nossos
que esta estava no auge de seu vigor, faziam-se
coisas que hoje não mais vemos e que assom mestres e a da sociedade. O que nos é dito na
bram nossas frágeis almas. última destrói todas as idéias das primeiras.
Sua educação possuía outra vantagem sobre Isso decorre, em parte, do contraste existente
a nossa: nunca era desmentida. Epaminondas, em nosso meio entre os compromissos da reli
no derradeiro ano de sua vida, dizia, escutava,
via e fazia as mesmas coisas que na idade em gião e os da sociedade, fato que os Antigos
que começara a ser instruído. desconheciam.
62 MONTESQUIEU
Capítulo V
Capítulo VI
batalhas, se não se conseguisse suprimir sua mostrou, nessas regiões, a idéia da religião
polícia80. unida à da humanidade. Reparando as devas
Creta e a Lacônia foram governadas por tações dos espanhóis, começou por sanar uma
essas leis. A Lacedemônia foi a última a capi das grandes pragas que o gênero humano ja
tular perante os macedônios e Creta81 foi a mais recebeu.
derradeira presa dos romanos. Os samnitas Um sentimento raro que essa sociedade tem
possuíram essas mesmas instituições e elas por tudo o que se denomina honra, seu zelo
foram para esses romanos o motivo de vinte e por uma religião que humilha muito mais os
quatro triunfos82. que escutam do que os que a pregam, fizeram-
Esta singularidade que encontramos nas na empreender grandes coisas; e ela obteve
instituições da Grécia, vimo-la na escória e na êxito. Retirou das florestas povos dispersos;
corrupção dos tempos modernos83. Um legis garantiu-lhes uma subsistência; vestiu-os. E
lador honesto formou um povo no qual a pro mesmo que com isso nada mais tivesse feito do
bidade parecia tão natural quanto a bravura que aumentar a indústria entre os homens,
entre os espartanos. Penn8 4 é um verdadeiro teria feito muito8 7.
Licurgo e, apesar de o primeiro ter tido a paz Os que quiserem criar instituições seme
por objetivo como o outro teve a guerra, lhantes devem estabelecer a comunidade de
ambos se assemelham pelo caminho singular bens da República de Platão, o respeito que
pelo qual conduziram seu povo, na ascen esse exigia para com os deuses, a separação
dência que tiveram sobre homens livres, nos dos estrangeiros para a conservação dos costu
preconceitos que venceram, nas paixões que mes, cabendo o comércio à cidade e não aos
dominaram. cidadãos; implantarão nossas artes sem nosso
O Paraguai pode oferecer-nos outro exem luxo e nossas necessidades sem nossos desejos.
plo. Quiseram imputar à Companhia* 5, como Deverão proscrever o dinheiro, cujo efeito é
um crime, o fato de ela ter considerado o pra aumentar a fortuna para além dos limites que a
zer de comandar como o único bem da vida; natureza estabeleceu; ensinar a conservar
porém será sempre belo governar os homens inutilmente o que se acumulara do mesmo
tornando-os mais felizes8 6. modo; multiplicar ao infinito os desejos e su
É glorioso para ela ter sido a primeira que prir a natureza que nos dera meios muito limi
tados de estimular nossas paixões e de nos cor
80 Filopêmen obrigou os lacedemônios a abando romper mutuamente.
narem a maneira de alimentar seus filhos, sabendo “Os epidamnianos88*, vendo seus costumes
bem que, sem isso, teriam sempre uma alma grande corromperem-se por causa de seu contato com
e o coração elevado. Plutarco, Vida de Filopêmen. os bárbaros, elegeram um magistrado para efe
Vede Tito Lívio, liv. XXXVIII. (N. do A.)
81 Defendeu, durante três anos, suas leis e sua tuar todas as transações em nome da cidade e
liberdade. Vede os livros XCVIII, XCIX e C de para a cidade.” Assim, o comércio não cor
Tito Lívio, no Epítome de Floro. Ofereceu mais rompe a constituição e a constituição não
resistência que os grandes reis. (N. do A.) priva a sociedade das vantagens do comércio.
82 Floro, liv. I, cap. XVI. (N. do A.)
83 In Fece Romuli, Cícero, Cartas a Ático, II, I.
(N. do A.) 8 7 Os jansenistas reprovaram todo esse trecho por
8 4 William Penn, legislador da Pensilvânia. ser muito favorável aos jesuítas, os quais, por seu
8 5 Jesuítas. lado, não o consideraram suficientemente respei
8 6 Os índios do Paraguai não dependem de um se toso. (Cf. Montesquieu, Lettre à M. de Stainville, 27
nhor particular; pagam apenas um quinto dos tribu de maio de 1750.)
tos e possuem armas de fogo para se defender. (N. 88 Plutarco, Questões Gregas, cap. XXIX. (N. do
do A.) A.)
64 MONTESQUIEU
CAPÍTULO VII
Estas espécies de instituições podem convir supõem uma atenção especial de todos os cida
às repúblicas porque a virtude política é seu dãos uns para com os outros. Isso não pode ser
princípio. Entretanto, nas monarquias, para assegurado na confusão, nas negligências, na
chegar à honra, ou nos Estados despóticos, extensão dos interesses de um grande povo.
para inspirar o temor, não são necessários tan Cumpre, como se disse, abolir, nessas insti
tos cuidados. tuições, o dinheiro. Porém, nas grandes socie
Aliás, elas só podem ocorrer num pequeno dades, o número, a variedade, os obstáculos, a
Estado89, onde se pode dar uma educação importância dos negócios, a facilidade das
geral e educar como uma família todo um aquisições, a lentidão das trocas, exigem uma
povo. medida comum. Para exercer seu poder ou
As leis de Minos, de Licurgo e de Platão defendê-lo por toda parte, é mister possuir
aquilo a que, em toda parte, os homens asso
89 Como eram as cidades da Grécia. (N. do A.) ciaram o poder.
Capítulo VIII
Políbio, o judicioso Políbio, conta-nos90 Assim elaboraram as leis: assim queriam que
que a música era necessária para suavizar os se governassem as cidades.
costumes dos arcádios que habitavam uma Creio que poderia explicar isso. Deve-se ter
região onde o clima era triste e frio; que os de em mente que, nas cidades gregas, especial
Cineta, que negligenciaram a música, excede mente as que tinham a guerra por finalidade
ram em crueldade todos os gregos e que não há principal, todos os trabalhos e todas as profis
cidade em que se tenham visto tantos crimes. sões que poderíam acarretar lucro monetário
Platão91 não receia dizer que não se pode eram considerados indignos de um homem
fazer alteração na música sem que haja outra livre. “A maioria dos ofícios”, diz Xenofon-
na constituição do Estado. Aristóteles, que pa te9 5, “corrompe o corpo dos que os exercem;
eles obrigam a sentar-se à sombra ou perto do
rece só ter escrito sua Política para opor seus
fogo; não se tem tempo nem para os amigos
sentimentos aos de Platão, está, -contudo, de
nem para a república.” Foi somente quando da
acordo com ele quanto à influência da música corrupção de algumas democracias que os
sobre os costumes92. Teofrasto, Plutarco93, artesãos chegaram a ser cidadãos. É o que nos
Estrabão94, todos os Antigos pensaram do ensina Aristóteles9 6; afirma ele que uma boa
mesmo modo. Não é uma opinião lançada sem república nunca lhes dará o direito de cidada
reflexão: é um dos princípios de sua política. nia9 7.
90 História, liv. IV, cap. XX, XXI. 9 5 Liv. V, Sentenças Memoráveis. (Econômica, cap.
91 Da República, liv. IV. Incluíam-se na “música” a IV.) (N. do A.)
Eloquência, a Poesia e a História. 9 6 Política, liv. III, cap. IV. (N. do A.)
92 Política, liv. VIII, cap. V. 9 7 Diofanto, afirma Aristóteles, Política, liv. II, cap.
93 Vida de Pelópidas. (N. do A.) VII, determinou outrora, em Atenas, que os arte
9 4 Liv. I. (N. do A.) sãos seriam escravos do público. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 65
Era também a agricultura uma profissão tavam ser moderados por outros que pudessem
servil, sendo geralmente algum povo vencido amenizar os costumes. A música, que se trans
que a exercia: os hilotas, entre os lacedemô- mite ao espírito pelos órgãos do corpo, era
nios; os periecos, entre os cretenses; os penes- muito adequada para isso. Constitui um meio-
tos, entre os tessálios; outros98 povos escra termo entre os exercícios do corpo que fazem
vos, em outras repúblicas. os homens duros e as ciências de especulação
Enfim, todo o baixo comércio99 era degra que os tornam selvagens. Não podemos dizer
dante entre os gregos. Para exercê-lo teria sido que a música inspirasse virtude; isso seria
necessário que um cidadão prestasse serviços a inconcebível. Entretanto, impedia o efeito da
um escravo, a um arrendatário, a um estran brutalidade da instituição e fazia com que a
geiro; tal idéia contrariava o espífito da liber alma tivesse na educação uma parte que não
dade grega. Desta maneira, Platão1 °°, em suas teria tido.
Imagino que houvesse entre nós um grupo
leis, pretende que se castigue o cidadão que
de pessoas tão apaixonadas pela caça que só se
pratique o comércio.
ocupassem dela; indubitavelmente adquiriríam
Ficava-se, portanto, extremamente confuso certa rudeza. Se essas mesmas pessoas passas
nas repúblicas gregas. Não se desejava que os sem a apreciar a música, veriamos logo uma
cidadãos trabalhassem no comércio, na agri diferença nas suas maneiras e nos seus costu
cultura, nem nos ofícios, e também não se mes. Finalmente, os exercícios dos gregos esti
desejava que fossem ociosos101. Encontravam mulavam apenas um gênero de paixões: a
eles ocupação nos exercícios que dependiam rudeza, a cólera, a crueldade. A música esti
da ginástica e nos que se relacionavam com a mula todas elas, e pode fazer com que a alma
guerra102. A instituição não lhes oferecia sinta a doçura, a piedade, a ternura, o prazer
outras. Portanto, deve-se considerar os gregos suave. Nossos autores moralistas que, entre
como uma sociedade de atletas e de guerreiros. nós, proscrevem tão energicamente os teatros
Ora, esses exercícios, tão adequados para tor fazem-nos sentir claramente o poder que a mú
nar os homens duros e selvagens103, necessi sica possui sobre nossos espíritos.
Se déssemos ao grupo a que me referi músi
98 Destarte, Platão e Aristóteles querem que os ca suave em vez de apenas tambores e árias de
escravos cultivem as terras, Leis, liv. VII; Política,
liv. VII, cap. X. É verdade que a agricultura não era trombeta não é verdade que alcançaríamos
exercida em toda parte pelos escravos; ao contrário, melhor nosso objetivo? Portanto, os Antigos
como diz Aristóteles (Pol., liv. VI, cap. IV), as tinham razão quando, em certas circunstân
melhores repúblicas eram aquelas cujos cidadãos a
ela se dedicavam. Porém, isso só ocorreu com a cor cias, preferiam, para os costumes, uma modali
rupção dos antigos governos que se tomaram dade à outra.
democráticos, pois, nos primeiros tempos, as cida Mas, dir-se-á, por que dar preferência à mú
des da Grécia viviam na aristocracia. (N. do A.) sica? É que, de todos os prazeres dos sentidos,
99 Cauponatio. (N. do A.)
100 Liv. II. (N. do A.) não há nenhum que corrompa menos a alma.
101 Aristóteles, Política, liv. X. (N. do A.) Enrubescemos ao lermos em Plutarco104 que
102 A rs corporum exercendorum, gymnastica; va- os tebanos, para suavizar os costumes de seus
riis certaminibus terendorum, poedotribica. Aristó jovens, estabeleceram, por meio de leis, um
teles, Política, liv. VIII, cap. III. (N. do A.) amor que deveria ser proscrito por todas as
103 Aristóteles diz que as crianças lacedemônias,
que começavam esses exercícios desde a mais tenra nações do mundo.
idade, adquiriam muita ferocidade. Política, liv.
VIII, cap. IV. (N. do A.) 10 4 Vida de Pelópidas, cap. X. (N. do A.)
LIVRO QUINTO
DE COMO AS LEIS DECRETADAS PELO LEGISLADOR
DEVEM SER RELATIVAS AOS PRINCÍPIOS DO GOVERNO
Capítulo I
Acabamos de verificar que as leis da educa be daí, por sua vez, uma nova força. É assim
ção devem relacionar-se com o princípio de que, nos movimentos físicos, a ação é sempre
cada governo, assim como as que o legislador seguida de uma reação.
promulga para toda a sociedade. Esta relação Examinaremos essa relação em cada gover
das leis com este princípio fortalece todos os no; começaremos pelo Estado republicano que
fundamentos do governo e esse princípio rece tem a virtude como princípio.
Capítulo II
A virtude, numa república, é algo muito costumes, e a pureza dos costumes acarreta o
simples; é o amor pela república, é um senti amor pela pátria. Quanto menos podemos
mento e não uma série de conhecimentos; satisfazer nossas paixões individuais, tanto
tanto o último dos homens do Estado quanto o mais nos entregamos às gerais. Por que os
primeiro podem possuir esse sentimento. O monges amam tanto sua ordem? Exatamente
povo, uma vez que tem boas máximas, a elas pelo que ela tem de insuportável. Seu regula
se atém por mais tempo que as chamadas pes mento os priva de todas as coisas em que se
soas de bem. Raramente a corrupção começa apoiam as paixões comuns; resta, pois, essa
por ele. Frequentemente extrai da mediocri paixão pelo próprio regulamento que os morti-
dade de seus conhecimentos um apego mais fica. Quanto mais austero for ele, isto é, quan
forte pelo que está estabelecido. to mais restringir-lhes as inclinações, .tanto
O amor pela pátria acarreta a pureza dos mais força dará às que lhes deixa.
Capítulo III
O amor pela república, numa democracia, é lentar as mesmas esperanças, coisa que só se
o amor pela democracia; o amor pela demo pode esperar da frugalidade geral.
cracia é o amor pela igualdade. O amor pela igualdade, numa democracia,
O amor pela democracia é também o amor limita a ambição unicamente ao desejo, è "eli-
pela frugalidade. Nesse regime, devendo todos cidade de prestar à sua pátria serviços maiores
gozar da mesma felicidade e das mesmas rega que os outros cidadãos. Todos não podem
lias, devem fruir dos mesmos prazeres e aca prestar-lhe serviços iguais; mas todos devem
70 MONTESQUIEU
Capítulo IV
O amor pela igualdade e o pela frugalidade corrompidos pelo deleite não apreciarão a vida
são extremamente estimulados pela própria frugal e, se isso fosse natural ou comum, Alci-
igualdade e frugalidade, quando se vive numa bíades não teria provocado a admiração do
sociedade onde as leis estabeleceram uma e universo. Não serão também os que invejam
outra. ou admiram o luxo dos outros que apreciarão
Nas monarquias e nos Estados despóticos, a frugalidade; indivíduos que só têm diante dos
ninguém aspira à igualdade; isso nem ocorre olhos homens ricos ou miseráveis como eles
aos espíritos; cada um almeja a superioridade. odeiam sua misé ia sem amar ou conhecer o
As pessoas das mais baixas condições delas que extermina a miséria.
desejam sair apenas para serem senhoras de Logo, é bem verdadeira a seguinte máxima:
outras. numa república, para que se ame a igualdade e
O mesmo ocorre com a frugalidade; para a frugalidade, é mister que as leis as tenham
amá-la é necessário exercê-la. Os que são estabelecido.
Capítulo V
Alguns legisladores antigos, como Licurgo e estava tão corrompida e os espíritos numa tal
Rômulo, dividiram igualmente as terras. Isso disposição que os pobres se consideravam
só poderia ter acontecido na fundação de uma obrigados a procurar semelhante solução e os
república nova ou, então, quando a lei antiga ricos a ela resignar-se.
DO ESPIRITO DAS LEIS I 71
Se, quando o legislador realiza tal partilha, coubessem a uma mesma pessoa. Quando um
não elabora leis para assegurá-la, cria apenas homem desposava a irmã do ramo paterno, só
uma constituição efêmera: a desigualdade podia ter uma herança, que era a de seu pai;
infiltrar-se-á pelo lado em que as leis não a te porém, quando desposava a irmã uterina,
nham obstado, e a república estará perdida. podia ocorrer que o pai desta irmã, não tendo
Cumpre, portanto, neste caso, que se regula filhos varões, lhe deixasse a sucessão e, por
mentem os dotes das mulheres, as doações, as consequência, seu irmão que a desposava teria
heranças, os testamentos, enfim, todas as for duas.
mas de contrato, pois, se fosse permitido doar Não se me objete o que diz Filon111 que,
os bens como e a quem se entendesse, cada embora em Atenas se desposasse a irmã
vontade particular perturbaria a disposição da consangüínea e não a uterina, podia-se, na
lei fundamental. Lacedemônia, desposar a irmã uterina e não a
Sólon, que permitia, em. Atenas, que se consangüínea, pois encontro em Estrabão112
legassem os bens por testamento a quem se que, na Lacedemônia, quando uma irmã des
entendesse, desde que não se tivessem fi posava o irmão, recebia por dote a metade da
lhos1 0 6, contrariava as leis antigas, as quais parte dele. É patente que esta segunda lei tinha
ordenavam que os bens permanecessem na sido estabelecida para evitar as conseqüências
família do testador10 7. Contradizia suas pró negativas da primeira. A fim de se impedir que
prias leis porque, ao abolir as dívidas, procu os bens da família da irmã passassem à do
rara a igualdade. irmão, dava-se como dote para a irmã a meta
Era uma boa lei para a democracia a que de dos bens do irmão.
Sêneca113, referindo-se a Siíano, que despo-
interditava a posse de duas heranças108. Ela
sara a irmã, conta que em Atenas a permissão
originara-se na divisão eqüitativa das terras e
era restrita e que, em Alexandria, era geral11 4.
dos lotes outorgados a cada cidadão. A lei não
No governo único quase não era necessário
pretendera que um só homem possuísse vários
manter a partilha dos bens.
lotes. Para assegurar, na democracia, essa divisão
A lei que ordenava que o parente mais pró das terras, era boa a lei que estipulava que o
ximo desposasse a herdeira tinha uma origem pai de muitos filhos escolhesse um para herdar
semelhante. Era aplicada entre os judeus após a sua parte11 5 e desse os outros em adoção a
tal partilha. Platão109, que fundamentou suas alguém que não tivesse filhos, a fim de que o
leis nessa partilha, igualmente a instituiu: e era número dos cidadãos fosse sempre igual ao
uma lei ateniense. das partilhas.
Existia em Atenas uma lei cujo espírito não Faleas da Calcedônia11 6 imaginara um
sei se alguém compreendeu. Era permitido des- modo de igualar as fortunas numa república
posar a irmã consangüínea mas não a irmã em que elas não eram iguais. Desejava que os
uterina1»10. Esse costume originara-se nas ricos não recebessem e oferecessem dotes aos
repúblicas, cujo espírito era evitar que duas pobres e que os pobres recebessem dinheiro
glebas, e consequentemente duas heranças, pelas suas filhas e não o dessem. Porém, que
eu saiba, não há república que se tenha confor
I 0 6 Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.) mado com tal regulamento. Ele coloca os cida
'0 7 Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.) dãos, cujas diferenças são tão flagrantes, sob
108 Filolau de Corinto estabeleceu em Atenas
[lede: em Tebas] que o número dos lotes de terra e condições tais que eles odiariam esta própria
das heranças seria sempre o mesmo. (Aristóteles,
Política, liv. II, cap. XII.) (N. do A.) 111 De Specialibus Legibus quae Pertinent ad
109 República, liv. VIII. (N. do A.) Praecepta Decalogi. (N. do A.)
II 0 Cornélio Nepos, in praefat. (Neque enim Ci- 11 2 Liv. X. (N. do A.)
monifuit turpe, Atheniensium summo viro, sororem 11 3 Athenis dimidium licet, Alexandriae totum. Sê
germanam habere in matrimônio, quippe quum eive neca, De Morte Claudii. (N. do A.)
ejus eodem uterentur instituto. At id quidem nostris 11 4 Sêneca deixa simplesmente entender uma sus
moribus nefas habetur.) Este era o uso dos primei peita de incesto. Oficialmente, semelhante casa
ros tempos. Assim, diz Abraão a Sara: Ela é minha mento nunca teria sido tolerado em Roma.
irmã, filha de meu pai e não de minha mãe. (Gênese, 11 5 Platão fez uma lei semelhante, liv. III das Leis.
cap. XX.) As mesmas razões ocasionaram o estabe (N. do A.)
lecimento de uma mesma lei entre diferentes povos. 11 6 Aristóteles, Política, liv. II. cap. VII. (N. do
(N. do A.) A.)
72 MONTESQUIEU
igualdade que se tenta introduzir. Cumpre, Toda desigualdade numa democracia deve
algumas vezes, que as leis não pareçam ir tão ter sua origem na natureza da democracia e no
diretamente ao fim que se propõem. próprio princípio da igualdade. Por exemplo,
Embora na democracia a igualdade real seja pode-se temer que pessoas que, para viver, têm
a alma do Estado, ela é tão difícil de ser esta necessidade de um trabalho contínuo fiquem
belecida que um rigor exagerado a esse res
peito nem sempre é conveniente. Basta que se muito empobrecidas por uma magistratura ou
estabeleça um censo11 7 reduzindo as diferen negligenciem suas funções; que os artesãos se
ças a um certo ponto; em seguida, cabe às leis tornem orgulhosos; que os escravos forros se
particulares nivelar, por assim dizer, as desi tornem mais poderosos que os próprios anti
gualdades, através dos encargos que impõem gos cidadãos. Nesses casos a igualdade entre
aos ricos e do alívio que concedem aos pobres. os cidadãos11 8 deve ser suprimida na demo
Só as riquezas medíocres podem dar ou supor cracia para o bem da democracia. Entretanto,
tar estas espécies de compensações, pois, para suprime-se apenas uma igualdade aparente
as fortunas imoderadas, tudo o que não lhes porque um homem arruinado por uma magis
concede poder e honra é encarado como uma tratura estaria numa situação pior que a dos
ofensa.
outros cidadãos e esse mesmo homem que
11 7 Sólon estabeleceu quatro classes: a primeira, seria obrigado a negligenciar as funções colo
dos que possuíam quinhentas minas de rendimento, caria os demais cidadãos numa condição pior
em grãos ou em frutos líquidos; a segunda, dos que do que a sua; e assim por diante.
possuíam trezentas e podiam manter um cavalo; a
terceira, dos que só possuíam duzentas; a quarta, de
todos os que viviam de seu trabalho. Plutarco, Vida 11 8 Sólon exclui dos impostos todos os que per
de Sólon. (N. do A.) tencem ao quarto censo. (N. do A.)
Capítulo VI
de seu trabalho para conservar ou para Na Grécia, existiam dois tipos de repúbli
adquirir. cas: umas eram militares, como a Lacedemô-
Numa república comerciante, é muito boa a nia; outras eram comerciantes, como Atenas.
lei que dá a todos os filhos uma parte igual na Nas primeiras, desejava-se que os cidadãos
herança dos pais. Decorre daí que, seja qual fossem ociosos; nas segundas, procurava-se
for a fortuna que o pai tenha acumulado, os
inculcar o amor pelo trabalho. Sólon fez da
filhos, sempre menos ricos que ele, serão leva
dos a fugir do luxo e a trabalhar como o pai. ociosidade um crime e pretendeu que todos os
Só me refiro às repúblicas comerciantes, pois, cidadãos prestassem contas da maneira pela
para as que não o são, o legislador terá muitos qual ganhavam a vida. Com efeito, numa ver
outros regulamentos a prescrever12°. dadeira democracia, em que só se deve gastar
para o necessário, cada um deve tê-lo, pois de
120 Deve-se aí limitar bastante os dotes das mulhe
res. (N. do A.) quem o recebería?
Capítulo VII
Não se pode estabelecer em todas as demo Além disso, se alguma revolução ocorreu
cracias uma divisão igual da terra. Há circuns dando ao Estado uma nova forma, isso geral
tâncias em que tal medida seria impraticável, mente só pôde ser feito com sofrimentos e tra
perigosa, atentando mesmo contra a constitui balhos infinitos e raramente com ociosidade e
ção. Nem sempre se é obrigado a adotar os costumes corrompidos. Os mesmos que fize
métodos extremados. Se se verifica que, numa ram a revolução a quiseram experimentar e,
democracia, esta partilha, que deve servir para em geral, só o conseguiram através de boas
manter os costumes, não é conveniente, cum leis. Portanto, as instituições antigas são,
pre recorrèr a outros meios. comumente, correções, e as novas, abusos.
Se se estabelece um corpo permanente que Durante um longo governo, chega-se ao mal
por si mesmo seja o regulamento dos costu por um declive imperceptível e só se retorna ao
mes, um senado em que a idade, a virtude, a bem por um esforço.
circunspecção, os serviços permitem o acesso, Não se sabe exatamente se os membros aos
os senadores, expostos à vista do povo como quais nos referimos devem ser vitalícios ou
os simulacros dos deuses, inspirarão senti escolhidos por um certo prazo. É fora de dúvi
mentos que atingirão o seio de todas as da que devem ser vitalícios, tal como se fazia
famílias. em Roma121, na Lacedemônia122 e na pró
É necessário, sobretudo, que esse senado pria Atenas, pois não devemos confundir o
cuide das instituições antigas e proceda de que, em Atenas, se denominava senado, que
modo que o povo e os magistrados delas nunca era um corpo que se modificava de três em três
se afastem. meses, com o Areópago, cujos membros eram
No que diz respeito aos costumes, há muito vitalícios, como modelos perpétuos.
que lucrar na preservação dos antigos. Como Máxima geral: num senado escolhido para
os povos corrompidos raramente realizam
121 Os magistrados eram escolhidos por um ano e
grandes coisas, como quase não haviam esta os senadores eram vitalícios. (N. do A.)
belecido sociedades, fundado cidades, criado 122 Licurgo, narra Xenofonte, De Republ. Lace-
leis, e como, ao contrário, os que possuíam daem., cap. X, §§ 1 e 2, pretendia “que se elegessem
costumes simples e austeros criaram a maioria os senadores entre os anciãos, para que, mesmo no
fim da vida, eles não se negligenciassem; e, fazen
das instituições, lembrar aos homens as máxi do-os juizes da coragem dos jovens, tornava a velhi
mas antigas significa, geralmente, reconduzi- ce dos primeiros mais honrada que a força dos últi
los à virtude. mos”. (N. do A.)
74 MONTESQUIEU
ser o exemplo e, por assim dizer, o repositório conta Xenofonte12 6, consiste basicamente no
dos costumes, os senadores devem ser vitalí fato de essa ter feito com que os cidadãos
cios. Num senado feito para preparar os negó obedecessem às leis; eles acorrem quando o
cios, os senadores podem ser substituídos. magistrado os solicita. Entretanto, em Atenas,
O espírito, diz Aristóteles123, tal como o um homem rico desesperar-se-ia de receio de
corpo, envelhece. Esta reflexão só é válida no que se pensasse que ele dependia de um
que diz respeito a um único magistrado e não magistrado.”
pode ser aplicada a uma assembléia de A autoridade paterna é ainda muito eficaz
senadores. na manutenção dos costumes. Já afirmamos
Além do Areópago, existiam em Atenas que, numa república, não há uma força tão
guardiães dos costumes e guardiães das repressora como nos outros governos. É mis
leis124. Na Lacedemônia, todos os anciãos ter, portanto, que as leis procurem supri-la:
eram censores. Em Roma, dois magistrados conseguem-no pela autoridade paterna.
particulares ocupavam-se da censura. Consi Em Roma, os pais tinham direito de vida e
derando-se que o senado vela pelo povo, cum de morte sobre os filhos1 2 7. Na Lacedemônia,
pre que os censores vigiem o povo e o senado. todo pai tinha direito de punir o filho de outro.
É necessário que eles restabeleçam na repú O poder paterno, em Roma, desapareceu
blica tudo o que foi corrompido, que apontem com a república. Nas monarquias, em que não
a indolência, julguem as negligências e corri é necessário estabelecer costumes tão puros,
jam os erros, do mesmo modo como as leis pretende-se que todos vivam sob o poder dos
punem os crimes. magistrados.
A lei romana, que desejava que a acusação As leis de Roma, que habituaram os jovens
de adultério fosse pública125, era admirável à dependência, estabeleceram uma longa mino-
porque mantinha a integridade dos costumes; ridade. Talvez caiamos num erro ao adotar
intimidava as mulheres e também os que de esse costume: uma monarquia não requer
viam zelar por elas. tanta imposição.
Coisa alguma mantém mais os costumes do Numa república, essa mesma subordinação
que uma extrema subordinação dos jovens aos poderia exigir que o pai permanecesse, durante
anciãos. Ambos moderar-se-ão: os primeiros sua vida, como proprietário dos bens de seus
pelo respeito que sentirão pelos velhos e os filhos, tal como foi estabelecido em Roma.
segundos pelo respeito que sentirão por si Mas isso não é do espírito da monarquia.
próprios.
Coisa alguma dá mais força às leis do que a 12 6 República de Lacedemônia, cap. VIII. (N. do
extrema subordinação dos cidadãos aos magis A.)
trados. “A grande diferença que Licurgo colo 1 2 7 Podemos observar na história romana com que
cou entre a Lacedemônia e as demais cidades”, vantagem para a república utilizaram-se desse
poder. Refiro-me apenas ao período da maior
123 Política, liv. II, cap. IX. corrupção. Aulo Fúlvio se tinha posto em marcha
124 O próprio Areópago estava submetido a censu para ir encontrar Catilina; o pai chamou-o e man
ra. (N. do A.) dou matá-lo. Salústio, De Bello Catil., cap.
1 2 5 Pública, isto é, de modo a poder ser feita por XXXIX. Muitos outros cidadãos fizeram o mesmo.
qualquer um. Dion, liv. XXXVII, cap. XXXVI. (N. do A.)
Capítulo VIII
Se, na aristocracia, o povo é virtuoso, homens são tão desiguais haja muita virtude, é
desfrutar-se-á quase da felicidade do governo necessário que as leis tendam a dar, tanto
popular e o Estado tornar-se-á poderoso. quanto possam, espírito de moderação e pro
Porém, como é raro que onde as fortunas dos curem restabelecer essa igualdade que a consti
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 75
Capítulo IX
Sendo a honra o princípio deste governo, as cessos necessários; e todos os fundos vendidos
leis devem relacionar-se com ela. do reino permanecem, de certo modo, sem
É necessário que atuem para sustentar esta dono, pelo menos durante um ano1 40. Prerro
nobreza, cuja honra é, por assim dizer, a filha gativas associadas a feudos outorgam um
e a mãe. poder repleto de responsabilidades para os que
Elas devem torná-la hereditária, não por ser as suportam. São inconvenientes específicos à
o limite entre o poder do príncipe e a fraqueza nobreza, que desaparecem diante da utilidade
do povo, mas por ser o liame de ambos. geral que ela proporciona, mas quando esten
As substituições, que conservam os oens no didos ao povo, todos os princípios são inutil
seio das famílias, serão utilíssimas nesse mente abalados.
governo, apesar de não o serem em outros. Nas monarquias pode permitir-se legar a
Os retraits lignagersy 3 9 restituirão às famí maior parte dos bens a um dos filhos, mas só
lias nobres as terras que a prodigalidade de um nelas esta permissão é boa.
parente tenha alienado. E necessário que as leis favoreçam todo o
Tal como as pessoas, as terras nobres terão comércio1 41 que a constituição desse governo
privilégios. Não se pode separar a dignidade pode conceder, a fim de que os súditos possam,
do monarca da do reino; do mesmo modo, sem perecerem, satisfazer as necessidades sem
quase não se pode separar a dignidade do pre renascentes do príncipe e de sua corte.
nobre da do seu feudo. E mister que coloquem certa ordem na
maneira de arrecadar os tributos a fim de que
Todas estas prerrogativas serão específicas
não sejam mais pesados do que os próprios
da nobreza e, de modo algum, passarão ao
encargos.
povo, a menos que se queira contrariai o prin
O peso dos encargos produz primeiro o tra
cípio do governo, a menos que se queira dimi
balho; o trabalho, o esgotamento; o esgota
nuir a força da nobreza e a do povo.
mento, o espírito de preguiça.
As substituições constrangem o comércio; o
retrait lignager provoca uma infinidade de pro-13 1 40 Tinha-se esse prazo determinado, um ano e um
dia, para exercer o retrait lignager.
13 9 “Ação pela qual um parente do lado do vende 1 41 Ela o permite apenas ao povo. Veja a lei tercei
dor poderia retomar, num prazo fixo, e sem reem ra, no Código, De comm. et mercatoribus, repleta
bolso, a herança vendida.” (Littré) de bom senso. (N. do A.)
Capítulo X
O governo monárquico tem uma grande favorecer a natureza de cada constituição, mas
vantagem sobre o republicano: sendo os negó ainda remediar os abusos que poderíam resul
cios públicos conduzidos por um só, há mais tar dessa mesma natureza.
presteza na execução. Mas, como esta poderia O Cardeal de Richelieu1 42 quer que se evi-
degenerar em rapidez, as leis aí introduzirão
certa morosidade. Elas não devem somente 1 42 Testament politique. (N. do A.)
78 MONTESQUIEU
Capítulo XI
O governo monárquico tem uma grande medo de ser abandonados; os poderes interme
vantagem sobre o despótico. Como é próprio diários dependentes1 4 7 não querem que o
de sua natureza existirem, sob a dependência povo levante muito a cabeça. Ê raro que as or
do príncipe, várias ordens que se relacionam dens de Estado sejam inteiramente corrompi
com a constituição, o Estado é mais estável, a das. O príncipe depende dessas ordens e os
constituição mais sólida, a pessoa dos que sediciosos, que não têm nem vontade nem
governam mais garantida. esperança de derrubar o Estado, não podem
Cícero1 4 5 acredita que o estabelecimento nem querem derrubar o príncipe.
dos tribunos de Roma foi a salvação da repú Nessas circunstâncias, pessoas prudentes e
blica. “De fato”, diz ele, “a força do povo que que dispõem de autoridade intervém; re
não tem chefe é mais terrível. Um chefe sente freiam-se os ânimos, concilia-se, corrige-se; as
sua responsabilidade e reflete sobre isso; mas o leis recuperam seu vigor e se fazem ouvir.
povo, em sua impetuosidade, não conhece o Assim, todas as nossas histórias estão reple
perigo em que se lança.” Pode aplicar-se essa tas de guerras civis sem revoluções; as dos
reflexão a um Estado despótico, que é um povo Estados despóticos estão repletas de revolu
sem tribunos; e a uma monarquia, em que o ções sem guerras civis.
povo tem, de algum modo, tribunos1 4 6. Os que têm escrito a história das guerras-
civis de alguns Estados e mesmo os que as têm
De fato, vê-se por toda parte que, nos movi
fomentado provam muito bem como a autori
mentos do governo despótico, o povo, guiado
dade que os príncipes deixam a certas ordens
por si próprio, leva sempre as coisas tão longe
para o serviço deles deve serlhes pouco sus
quanto podem ir: todas as desordens que co
peita, pois, na própria confusão, eles apenas
mete são extremas, ao passo que, nas monar
aspiravam às leis e a seu dever, e retardavam a
quias, as coisas são rarissimamente levadas ao
fogosidade e a impetuosidade dos faccio
excesso. Os chefes temem por si mesmos; têm
sos1 48, mais do que poderíam servi-la.
O Cardeal de Richelieu, pensando talvez
1 4 5 Liv. III, das Leis, cap. X. Nimia potestas est
tribunorum plebis? Quis negat? Sed vis populi que aviltara muito as ordens do Estado, recor
multo saevior multoque vehementior, quae ducem reu, para sustentá-lo, às virtudes do príncipe e
quod habet, interdum lenior est quam si nullum
haberet. Dux enim suo se periculo progredí cogitat; 1 4 7 Vede, acima, a nota 45 — liv. II, cap. IV. (N.
populi impetus periculi notionem sui non habet. (N. do A.)
do A.) 1 48 Mémoires do Cardeal de Retz, e outras histó
1 4 6 Alusão aos parlamentos franceses. rias. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 79
de seus ministros1 49; e deles exigiu tais coisas Como os povos que vivem sob um bom regi
que, na verdade, só um anjo poderia ter tanta me são mais felizes que os que, sem lei e sem
solicitude, tanto saber, tanta segurança, tantos chefes, vagam nas florestas, também os monar
conhecimentos; e, quando muito, podemos nos cas que vivem sob as leis fundamentais de seu
vangloriar se daqui à dissolução das monar
Estado são mais felizes que os príncipes despó
quias houver um príncipe e ministros seme
ticos, desprovidos de tudo que possa regular
lhantes.
tanto seus próprios corações como os de seus
1 49 Testament Politique. (N. do A.) povos.
Capítulo XII
Continuação do mesmo assunto
Que não se procure magnanimidade nos príncipe, os súditos receberem sua influência;,é
Estados despóticos; o príncipe de modo algum ali que cada um, ocupando, por assim dizer,
oferecería uma grandeza que não possui. Nele
maior espaço, pode exercer essas virtudes que
não existe glória.
É nas monarquias que se verá, em torno do dão à alma, não independência, mas grandeza.
Capítulo XIII
Idéia do despotismo
Capítulo XIV
O governo despótico tem por princípio o mãos1 51 Portanto, raramente participa pes
medo. Mas, para povos tímidos, ignorantes, soalmente da guerra e quase não ousa fazê-lo
decaídos, não são necessárias muitas leis. através de seus lugar-tenentes.
Tudo, ali, deve girar em torno de duas ou Semelhante príncipe, acostumado a não
três idéias; as idéias novas não são, portanto, encontrar, em seu palácio, resistência alguma,
necessárias. Quando ensinais um animal, cui indigna-se com a que lhe é feita a mão armada;
dai de não lhe substituir o dono, as lições e as deixa-se, portanto, ordinariamente, levar pela
andaduras; impressionai seu cérebro com dois cólera ou pela vingança. Aliás, não pode ter
ou três movimentos e nada mais. idéia da verdadeira glória. As guerras devem,
Quando o príncipe vive fechado, não pode pois, fazer-se neste caso em todo seu furor
sair desse estado de voluptuosidade sem afligir natural e o direito das pessoas deve, no gover-
todos os que ali o retêm. Esses não poclem tole
rar que sua pessoa e seu poder passem a outras 1 51 Cf. Chardin, Voyage en Perse.
80 MONTESQUIEU
No governo despótico, ser mais reduzido que cidades que o inimigo está prestes a ocupar.
alhures. Não estando a força no Estado mas no exér
Tal príncipe possui tantos defeitos qüe deve cito que o fundou, seria necessário, para defen
ria temer expor publicamente sua estupidez der o Estado, conservar este exército. Porém
natural. Esconde-se e o estado em que se ele é temível para o príncipe. Como, então,
encontra fica ignorado. Felizmente, os homens conciliar a segurança do Estado com a segu
são de tal modo nesse país que necessitam ape rança da pessoa?
nas um nome que os governe. Vede, peço-vos, com que expedientes o
Estando Carlos XII em Bender1*52 e encon governo moscovita procura sair do despotismo
trando alguma resistência no senado da Sué que lhe é mais pesado do que aos seus próprios
cia, escreveu que lhes enviaria uma de suas povos. Destituíram-se os grandes corpos de
botas para governar. Esta bota teria coman guarda1 55; diminuíram-se as penas dos cri
dado como um rei despótico. mes; estabeleceram-se tribunais; começou-se a
Se o príncipe está prisioneiro, é classificado conhecer as leis; instruíram-se os povos. Mas
como morto e outro sobe ao trono. Os tratados há causas particulares que o reconduzirão, tal
feitos pelo prisioneiro são nulos; seu sucessor vez, à infelicidade da qual queria escapar.
não os ratificaria. Com efeito, como ele é a lei, Nesses Estados, a religião tem mais in
o Estado e o príncipe, desde que deixa de ser fluência do que em qualquer outro; é um temor
príncipe, nada mais é, e, se não fosse dado adicionado ao temor. Nos impérios maometa-
como morto, o Estado estaria destruído. nos, é da religião que os povos extraem, em
Uma das coisas que mais obrigaram os tur parte, o extraordinário respeito que têm por
cos a fazer a paz em separado com Pedro I foi seu príncipe.
o fato de os moscovitas dizerem ao vizir que É a religião que corrige, um pouco, a consti
havia, na Suécia, outro rei no trono1 53. tuição turca. Os súditos, que não estão ligados
A conservação do Estado nada mais é do à glória e à grandeza do Estado pela honra, o
que a conservação do príncipe, ou antes, do estão pela força e pelo princípio da religião.
palácio em que está encerrado. Tudo o que não De todos os governos despóticos não existe
ameaça diretamente este palácio ou a cidade um que arruine tanto a si próprio como aquele
capital absolutamente não impressiona os espí em que o príncipe declara-se proprietário de
ritos ignorantes, orgulhosos e prevenidos. E, todos os bens fundiários e herdeiro de todos os
quanto ao encadeamento dos acontecimentos, seus súditos. Isso sempre ocasiona o abandono
eles não podem segui-lo, prevê-lo e nem pensar do cultivo das terras e se, demais, o príncipe é
nisso. A política, seus fundamentos e suas leis mercador, toda espécie de indústria arruína-se.
devem ser limitados e o governo político é tão Nesses Estados, nada se repara, nada se
simples como o civil1 5 4. melhora1 5 6. Constroem-se casas apenas para
Tudo se reduz a conciliar o governo político uma'vida; não se planta árvore alguma; não se
e civil com o governo doméstico e os oficiais cavam fossos. Retira-se tudo da terra e nada se
do Estado com os do serralho. lhe restitui, tudo permanece abandonado e
Tal Estado estará em melhor situação quan deserto.
do puder considerar-se único no mundo, quan Pensais que as leis que anulam a proprie
do estiver cercado de desertos e separado dos dade das terras e a sucessão dos bens diminui
povos, aos quais chamará de bárbaros. Não rão a avareza e a cupidez dos poderosos? Não:
podendo confiar na milícia, será bom que des elas exasperarão esta cupidez e esta avareza.
trua uma parte de si mesmo. Ser-se-á levado a cometer mil vexames porque
Como o princípio do governo despótico é o não se acreditará ter de seu senão o ouro ou a
medo, o objetivo é a tranquilidade; mas isto prata que se poderá roubar ou esconder.
não é absolutamente uma paz: é o silêncio das Para que tudo não se perca é conveniente
que a avidez do príncipe seja moderada por
1 52 Observemos que não era em Bender, mas em
Demótica. algum costume. Assim, na Turquia, o príncipe
1 53 Série de Pufíendorf, História Universal, no tra
tado da Suécia, cap. X. (N. do A.) 1 5 5 Alusão aos Streltsy.
1 5 4 Segundo Chardin, absolutamente não existe 1 5 6 Vede Ricaut, État de 1’Empire Ottoman (ed. de
Conselho de Estado na Pérsia. (N. do A.) 1678, in-12), pág. 196. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 81
se contenta com tomar três por cento das sas mais importantes a de ser conhecida pelo
heranças1*5*7 das pessoas do povo. povo, a melhor é a que impressiona mais os
Mas como o grão-senhor dá a maior parte olhos, como o nascimento e uma certa ordem
das terras à sua milícia e delas dispõe a seu de nascimento. Uma disposição de tal tipo faz
bel-prazer, como se apodera de todas as suces cessar as conspirações, reprime a ambição;
sões dos oficiais do império; como, quando um não se cativa mais o espírito de um príncipe
homem morre sem deixar filhos varões, ao fraco e não se faz os moribundos falarem.
grão-senhor pertence a propriedade, e como as Quando a sucessão é estabelecida por uma
filhas possuem apenas o usufruto, acontece lei fundamental, apenas um príncipe herda, e
que a maior parte dos bens do Estado é pos seus irmãos não têm nenhum direito real ou
suída de maneira precária. aparente de disputar-lhe a coroa. Não se pode
Pela lei de Bantam1 58, o rei adquire a suces
presumir ou fazer valer uma vontade particu
lar do pai. Portanto, não é mais necessário
são e inclusive a mulher, os filhos e as
prender ou mandar matar o irmão do rei,
casas1 59. É-se obrigado, para eludir a disposi
assim como qualquer outro súdito, seja quem
ção mais cruel desta lei, a casar as crianças
for.
aos oito, nove ou dez anos, e algumas vezes
Mas, nos Estados despóticos em que os
mais jovens, a fim de que não sejam transfor
madas numa parte infeliz da sucessão do pai. irmãos do príncipe são igualmente seus escra
vos e rivais, manda a prudência que se se
Nos Estados em que não há leis fundamen garanta contra suas pessoas, sobretudo nos
tais, a sucessão do império não poderia ser países maometanos, em que a religião consi
fixa. A coroa é eletiva pelo príncipe, em sua dera a vitória ou o êxito como julgamento de
família ou fora dela. Em vão seria estabelecido Deus; de modo que ninguém ali é soberano de
que o primogênito sucedería; o príncipe sem direito mas somente de fato.
pre poderia escolher outro. O sucessor é decla A ambição é bem mais exasperada nos Esta
rado pelo próprio príncipe, por seus ministros dos em que príncipes de sangue vêem que, se
ou por uma guerra civil. Assim, esse Estado não sobem ao trono, serão encarcerados ou
possui uma razão a mais de dissolução do que levados à morte, do que entre nós, onde os
uma monarquia. príncipes de sangue gozam de uma situação
Tendo cada príncipe da família real igual que, se à ambição não é tão satisfatória, o é,
capacidade para ser eleito, acontece que quem talvez, aos desejos moderados.
sobe ao trono manda, em primeiro lugar, Os príncipes dos Estados despóticos sempre
estrangular seus irmãos, como na Turquia, ou abusaram do casamento. Tomam geralmente
manda cegá-los, como na Pérsia, ou torna-os várias mulheres, sobretudo na parte do mundo
loucos, como na Mongólia, ou, se não toma onde o despotismo está, por assim dizer, natu
essas precauções, como no Marrocos, cada ralizado, que é a Ásia. Têm tantos filhos que
vaga do trono é seguida de atroz guerra civil. quase não podem ter afeição por eles, nem
esses por seus irmãos.
Pela constituição de Moscóvia1 60, o czar
A família reinante assemelha-se ao Estado:
pode escolher quem quiser para seu sucessor,
é muito fraca e seu chefe muito forte; parece
em sua família ou fora dela. Tal sistema de
grande mas se reduz a nada. Artaxerxes1 61
sucessão acarreta mil revoluções e torna o
trono tão oscilante quanto arbitrária a suces mandou matar todos os seus filhos por terem
conspirado contra ele1 62. Não é verossímil
são. Sendo a ordem de sucessão uma das coi
que cinquenta filhos conspirem contra o pai e
1 5 7 Vede, sobre as heranças dos turcos, Lacédé- ainda menos que conspirem porque este não
mone Ancienne et Nouvelle, e também Ricaut, De quis ceder sua concubina ao filho mais velho.
l 'Empire Ottoman. (N. do A.) É mais simples acreditar que aí exista alguma
1 58 Bantam: Reino da ilha de Java. intriga desses serralhos do Oriente, desses
1 59 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
l Établissement de la Compagnie des Index, t. I. A lugares em que a astúcia, a malevolência, a
lei de Pegu é menos cruel; se se têm filhos, o rei
herda apenas dois terços. Ibid., t. III, pág. 1. (N. do 1 61 Vede Justino. (N. do A.)
A.) 1 62 Diz-se que Artaxerxes tinha cento e quinze
1 60 Vede as diferentes constituições, sobretudo a filhos. Somente cinquenta conspiraram contra ele e
de 1722. (N. do A.) foram condenados à morte.
82 MONTESQUIEU
Capítulo XV
Nos climas quentes, onde reina geralmente o dias civis, nem se teria experimentado o perigo
despotismo, as paixões revelam-se mais cedo, e dos males, nem os riscos dos remédios.
mais cedo são também amortecidas1*63; o espí A pobreza e a insegurança das fortunas, nos
rito é aí mais desenvolvido; os perigos da dissi- Estados despóticos, naturalizam a usura, au
pação dos bens são menores; há menos facili mentando cada um o preço de seu dinheiro à
dades de se sobressair, menos comércio entre proporção do perigo que há em emprestá-lo.
os jovens encerrados em suas casas; casam-se Portanto, a miséria vem de todas as partes nes
mais cedo; podem, portanto, tornar-se adultos tes países infelizes: tudo aí é negado, até o
mais cedo que nos climas da Europa. Na Tur recurso a empréstimos.
quia, a maioridade inicia-se aos quinze Sucede daí que um negociante não poderia
anos1 6 4*. fazer grande comércio; ocupa-se apenas com o
Neste caso, a cessão dos bens não pode
dia-a-dia; se comprasse muitas mercadorias, o
realizar-se. Num governo em que ninguém tem
lucro que obtivesse com sua venda não
fortuna assegurada, empresta-se mais à pessoa
compensaria os juros que teria que pagar para
do que aos bens.
sua compra. Assim, as leis que regulamentam
Ela entra, naturalmente, nos governos mo
o comércio quase não têm razão de ser: redu
derados1 65, e principalmente nas repúblicas,
zem-se a simples vigilância.
por causa da maior confiança que se deve ter
na probidade dos cidadãos e da doçura que O governo não poderia ser injusto sem ter
deve inspirar uma forma de governo em que mãos que exerçam suas injustiças. Ora, é
cada um parece se ter dado. impossível que essas mãos não operem em seu
Se na república romana os legisladores próprio interesse. Portanto, é natural o pecu
tivessem estabelecido a cessão dos bens1 6 6, lato nos Estados despóticos.
n.ão se teria caído em tantas sedições e discór Sendo esse crime comum, os confiscos são
inúteis. Com isso se consola o povo; o dinheiro
1 63 Vede o livro XIV das Leis, Da Relação com a que daí é retirado é um tributo considerável
Natureza do Clima. (N. do A.) que o príncipe dificilmente cobraria dos súdi
164 La Guilletière, Lacédémone Ancienne et Nou- tos arruinados. Não há mesmo, nesses países,
velle, pág. 463. (N. do A.)
165 A mesma coisa acontece com as moratórias nenhuma família que queira conservá-lo.
nas bancarrotas de boa fé. (N. do A.) Nos Estados moderados tudo é diferente. As
166 Só foi estabelecida pela Lei Julia, De Cessione confiscações tornariam a propriedade dos bens
Bonorum. Evitava-se a prisão, e a cessão de bens
não era ignominiosa. Cod., liv. II, tít. XII. (N. do incerta; espoliariam inocentes crianças; des
A.) truiríam uma família quando apenas bastaria
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 83
punir um culpado. Nas repúblicas, ocasiona fisque apenas no caso de crime de lesa-ma-
riam o mal de suprimir a igualdade que lhes jestade em primeiro grau. Muitas vezes seria
constitui a alma, privando um cidadão de suas prudente seguir o espírito desta lei, e limitar o
necessidades materiais1 6 7. confisco a certos crimes. Numa região onde
Uma lei romana1 68 determina que se con- um costume local dispôs dos bens de raiz,
1 6 7 Parece-me que os confiscos eram mais aprecia
Bodin1 69 afirma corretamente que seria sufi
dos na república de Atenas. (N. do A.). ciente confiscar os bens adquiridos.
1 68 Autêntico, Bonna Damnatorum. Cod. De bon.
proscript. seu damn. (N. do A.) 169 Dela République, liv. V, cap. III, (N. do A.)
Capítulo XVI
Da comunicação do poder
No governo despótico, o poder passa inte los, haveria no Estado, por si mesmo, grandes
gralmente às mãos daquele a quem é confiado. homens; fato que chocaria a natureza desse
O vizir é o próprio déspota, e cada oficial par governo.
ticular é o vizir. No governo monárquico, apli Pois, se o governador de uma cidade fosse
ca-se o poder menos imediatamente; outorgan- independente do paxá, todos os dias seriam
do-o, o monarca o modera1 70. Faz tal necessárias concessões mútuas para os acomo
distribuição de sua autoridade que só concede dar, coisa absurda num governo despótico. E,
uma parte dela quando retém uma maicr. além disso, o governador particular podendo
Assim, nos Estados monárquicos, os gover não obedecer, como poderia o outro responder
nos particulares das cidades não são tão pela província sob seu governo?
dependentes do governo da província, o qual Nesse governo, a autoridade não pode ser
depende ainda menos do príncipe; e os oficiais posta em dúvida; a do magistrado mais subal
particulares dependem ainda menos do prín terno não o é mais do que a do déspota. Nos
cipe do que do general. países moderados, a lei é sábia em toda parte,
Na maior parte dos Estados monárquicos, conhecida em todos os lugares e mesmo os
estabeleceu-se sabiamente que os que dispõem menores magistrados podem segui-la. Mas no
de um comando um pouco amplo não sejam despotismo, em que a lei é apenas a vontade do
ligados a qualquer corpo de milícia; de sorte príncipe, quando este fosse sábio, como o
que, dispondo do comando apenas pela vonta magistrado poderia obedecer a uma vontade
de particular do príncipe, podendo ser empre que desconhece? É preciso seguir a sua.
gados ou não, estão, de algum modo, no servi Além disso, sendo a lei apenas a vontade do
ço e, de outro, fora dele. príncipe, podendo este querer apenas o que
Isso é incompatível com o governo despó conhece, é muito necessário que exista uma
tico, pois, se os que atualmente não têm empre infinidade de pessoas que queiram as mesmas
go tivessem, pelo menos, prerrogativas e títu- coisas por ele e como ele..
Enfim, sendo a lei a vontade momentânea
170 Ut esse Phoebi dulcius lumen solei
Jamjam cadentis. . . ( N. do A.) * do príncipe, é necessário que os que querem
* Sêneca, As Troianas, versos 1 140-1 141. por ele, queiram subitamente como ele.
84 MONTESQUIEU
Capítulo XVII
Dos presentes
É costume, nos países despóticos, que só se despótico, em que não existe honra nem virtu
se dirija a quem estâ acima de si oferecendo- de, pode-se, apenas, ser levado a agir pela
lhe um presente, inclusive aos reis. O impera esperança de facilidades de vida.
dor dos mongóis1*71 apenas recebe petições Nas idéias da república, Platão1 72 queria
dos súditos que lhe tenham oferecido alguma que os que recebem presentes para cumprir seu
coisa. Estes príncipes chegam mesmo a cor dever fossem punidos com a morte. “Não se
romper seus próprios favores.
deve recebê-los”, dizia ele, “nem pelas coisas
Deve ser assim num governo em que nin boas, nem pelas más.”
guém é cidadão, num governo imbuído da
idéia de que o superior nada deve ao inferior, Era má a lei romana1 73 que permitia aos
num governo em que os homens se acreditem magistrados aceitarem pequenos presentes1 7 4,
ligados apenas pelos castigos que uns infligem conquanto não ultrapassassem cem escudos
aos outros, num governo onde há poucos negó por ano. Aqueles a quem nada se dá, nada
cios, sendo rara a necessidade de se apresentar desejam; aqueles a quem se dá um pouco, logo
diante de um poderoso, fazer-lhe petições e, desejam um pouco mais e, em seguida, muito.
ainda menos, queixas. Aliás, é mais fácil convencer quem, nada
Numa república, os presentes são coisa devendo receber, recebe alguma coisa, do que
odiosa, porque a virtude não tem necessidade quem recebe mais quando deveria receber
deles. Numa monarquia, a honra é motivo menos, e que, por isso, sempre encontra pretex
mais forte que os presentes. Mas no Estado tos, desculpas, motivos e razões plausíveis.
1 71 Recueil des Voyages qui Ont Servi à 1 72 Liv. XII das Leis. (N. do A.)
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, 1.1, pág. 173 L. 6, § 2, Dig. ad Leg. Jul. Repet. (N. do A.)
80. (N. do A.) 1 7 4 Munuscula. (Das Espécies.) (N. do A.)
Capítulo XVIII
Nos governos despóticos, em que, como É regra geral que, numa monarquia e numa
dissemos, é-se apenas levado a agir pela espe república, as grandes recompensas são um
rança de facilidades de vida, o príncipe que sinal de sua decadência, pois provam que os
recompensa possui apenas dinheiro para ofere príncipes estão corrompidos, que a idéia de
cer. Numa monarquia, onde apenas reina a honra, de um lado, não tem mais tanta força e
honra, as distinções seriam as únicas recom que a qualidade do cidadão, de outro lado,
pensas oferecidas pelo príncipe, se as distin enfraqueceu-se.
ções que a honra estabelece não estivessem Os piores imperadores romanos foram os
unidas a um luxo que, necessariamente, cria que mais ofereceram recompensas. Por exem
plo, Calígula, Cláudio, Nero, Otão, Vitélio,
necessidades. O príncipe recompensa, portan Cômodo, Heliogábalo e Caracala. Os melho
to, com honrarias que levam à fortuna. Porém, res, como Augusto, Vespasiano, Antonino Pio,
numa república em que a virtude reina, motivo Marco Aurélio e Pertinax, foram comedidos.
suficiente em si mesmo, e que exclui todos os Sob a direção dos bons imperadores, o Estado
demais, o Estado só recompensa com testemu recuperava seus princípios: o tesouro da honra
nhos dessa virtude. supria os demais.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 85
Capítulo XIX
Não posso resolver-me a terminar este livro quias, faz-se indiferentemente de um príncipe
sem efetuar, ainda, algumas aplicações de um criado e de um criado um príncipe.
meus três princípios. Terceira Questão. Colocar-se-ão sob a
Primeira Questão. Devem as leis forçar os responsabilidade de uma mesma pessoa em
cidadãos a aceitar empregos públicos? Res pregos civis e militares? É mister uni-los na
pondo que o devem num governo republicano república e separá-los na monarquia. Nas
e não num monárquico. No primeiro, as repúblicas, seria muito perigoso fazer da pro
magistraturas são testemunhos de virtude, fissão das armas um estado particular, dife
depósitos que a pátria confia a um cidadão,
rente do das funções civis; e, nas monarquias,
que só deve viver, agir e pensar por ela; não
não haveria menos perigo em outorgar as duas
pode, portanto, recusá-los1 7 5. No segundo, as
funções à mesma pessoa.
magistraturas são testemunhos de honrarias;
ora, as singularidades das honrarias são tais, Na república, não se tomam armas a não ser
que se se compraz a aceitar algumas somente na qualidade de defensor das leis e da pátria;
quando e da maneira como se quer. porque somos cidadãos é que, por algum
tempo, fazemo-nos soldados. Se houvesse dois
O falecido rei da Sardenha1 7 6 punia os que
estados diferentes, far-se-ia sentir ao que, no
recusavam as dignidades e empregos de seu
exército, se acredita cidadão, que ele é apenas
Estado; sem sabê-lo1 7 7, seguia idéias republi
soldado.
canas. Sua maneira de governar, aliás, prova
muito bem que essa não era sua intenção. Nas monarquias, os militares têm apenas
Segunda Questão. É boa máxima que um como finalidade a glória, ou, pelo menos, a
cidadão possa ser obrigado a aceitar, no exér honra ou a fortuna. Deve-se evitar completa
cito, um posto inferior ao que ocupou? Entre mente oferecer empregos civis a tais homens;
os romanos, via-se frequentemente o capitão cumpre, pelo contrário, que sejam contidos
servir, no ano seguinte, sob as ordens de seu pelos magistrados civis e que as mesmas pes
tenente1 78. É que, nas repúblicas, a virtude soas não tenham, ao mesmo tempo, a con
exige que se faça ao Estado sacrifício contínuo fiança do povo e força para dele abusar1 7 9.
de si mesmo e de suas repugnâncias. Mas, nas Vede, numa nação em que a república se
monarquias, a honra — verdadeira ou falsa — esconde sob a forma de monarquia180, quanto
não pode sofrer o que chamamos degradação. se teme um estado particular de militares e
Nos governos despóticos, onde se abusa, como o guerreiro continua sempre cidadão ou
igualmente, da honra, dos postos e das hierar mesmo magistrado, a fim de que suas qualida
des sejam um penhor para a pátria e que ele
1 7 5 Platão, em sua República, liv. VIII, inclui nunca seja esquecido.
essas recusas no número dos indícios da corrupção I
da república. Em suas Leis, liv. VI, quer que as Essa divisão das magistraturas em civis e
punam com uma multa. Em Veneza, são punidas militares, feita pelos romanos após a perda da
com o exílio. (N. do A.) república, não foi coisa arbitrária. Foi conti
1 7 6 Vítor Amadeu. (N. do A.) nuação da reforma da constituição de Roma;
1 7 7 Vítor Amadeu foi o primeiro rei da Sicília e da
Sardenha (1666-1732). ela era da natureza do governo monárquico e o
1 78 Tendo alguns centuriões apelado ao povo que
solicitasse o emprego que eles tinham tido: “É justo, 179 Ne imperium ad optimos nobilium transfer-
meus companheiros”, diz um centurião, “que vós retur, senatum militia vetuit Gallienus; etiam adire
considereis honrosos todos os postos nos quais exercitum. Aurélio Victor, De Caesaribus. (N. do
defendereis a república.” Tito Lívio, liv. XLII, cap. A.)
XXXIV. (N. do A.) 180 Trata-se da Inglaterra.
86 MONTESQUIEU
que só foi começado na época de Augusto1 81 não se vendem através de um acerto de contas
os imperadores seguintes1 82 foram obrigados público, a indigência e a avidez dos cortesãos
a concluir, para moderar o governo militar. vendê-los-iam da mesma maneira, o acaso
Assim, Procópio, concorrente de Valente ao dará melhores súditos do que a escolha do
império, nada disso sabia quando, dando a príncipe. Enfim, a maneira de progredir pelas
Hormisdas, príncipe de sangue real da Pérsia, riquezas inspira e sustenta a indústria18 6,
a dignidade de procônsul1 83, restitui o coman coisa muito necessária nesta espécie de gover
do dos exércitos à magistratura que outrora o no187.
possuía, a menos que tivesse razões particula Quinta Questão. Em que tipo de governo
res. Um homem que aspira à soberania procu são necessários censores? Eles são necessários
ra menos o que é útil ao Estado do que o que é numa república em que o princípio do governo
útil à sua causa. é a virtude. Não são apenas os crimes que des-
Quarta Questão. Convém que os cargos troem a virtude, mas também as negligências,
sejam venais? Não devem sê-lo nos Estados os erros, uma certa tibieza no amor à pátria,
despóticos, onde é necessário que os súditos exemplos perigosos, sementes de corrupção,
sejam colocados e substituídos instantanea tudo que não contraria as leis mas as elude; o
mente pelo príncipe. que não as destrói mas as enfraquece: tudo
Esta venalidade é boa nos Estados monár isso deve ser corrigido pelos censores.
quicos, porque obriga a fazer, como um ofício Surpreendemo-nós com a punição desse
de família, o que não se querería empreender areopagita que matara um pardal que, perse
pela virtude, porque, a cada um, destina seu guido por um gavião, se refugiara em seu colo.
dever e torna as ordens de Estado mais perma Pasmamo-nos que o Areópago tenha mandado
nentes. Suídas1 8 4 diz corretamente que Anas ipatar uma criança que furou os olhos de seu
tácio fizera do império uma espécie de aristo pássaro. Observe-se que, absolutamente, fião
cracia, vendendo todas as magistraturas. se trata aqui de uma condenação por crime
Platão1 8 5 não pode admitir esta venalidade. mas de um julgamento de costumes numa
“É”, diz ele, “como se, num navio, tornás república baseada nos costumes.
semos alguém piloto ou marinheiro a troco de Nas monarquias não são necessários censo
dinheiro. Seria concebível que a regra fosse má res; elas são baseadas na honra e a natureza da
para qualquer outro emprego existente, e boa honra é ter por censor todo o universo. Todo
somente para conduzir uma república?” Mas homem que falta com a honra é alvo das repro
Platão refere-se a uma república baseada na vações até mesmo dos que não a têm.
virtude e nós falamos de uma monarquia. Ora, Nas monarquias, os censores seriam cor
numq monarquia em que, quando os cargos rompidos por aqueles mesmos que deveríam
181 Augusto retirou, aos senadores, procônsules e corrigir. Não seriarh úteis contra a corrupção
governadores, o direito de portar armas. Dion., liv. numa monarquia, pois a corrupção de uma
XXXIII. (N. do A.)
182 Constantino. Vede Zósimo, liv. II. (N. do A.) ■monarquia seria muito forte contra eles.
183 Amiano Marcelino, liv. XXXVI. Et civilia, Percebe-se facilmente que não são necessá
more veterum, et bella recturo. (N. do A.) rios censores nos governos despóticos. O
184 “É um trecho de João de Antioquia, que foi exemplo da China parece derrogar esta regra,
conservado igualmente no Extrato das Virtudes e mas veremos no desenvolvimento desta obra
dos Vícios, de Constantino Porfirogêneto, mas com
uma mudança no texto que lhe faz dizer, mais as razões específicas desta verificação.
exatamente, que Anastácio perverteu tudo o que 18 6 Nota tomada, observa ainda Laboulaye, do
havia de bom no governo. Tomo essa observação de Testament Politique de Richelieu.
Crévier.” Por nossa vez tomamo-la de Laboulaye. 18 7 Indolência da Espanha, onde todos os empre
18 5 República, liv. VIII. (N. do A.) gos são dados. (N. do A.)
LIVRO SEXTO
CONSEQUÊNCIAS DOS PRINCÍPIOS DOS DIVERSOS
GOVERNOS EM RELAÇÃO A SIMPLICIDADE DAS LEIS CMS
E CRIMINAIS, A FORMA DOS JULGAMENTOS
E AO ESTABELECIMENTO DAS PENAS
Capítulo I
O governo monárquico não comporta leis cabe observá-las para deles dispor, o que
tão simples como o despótico. São necessários suprime ainda mais a simplicidade.
tribunais. Estes tribunais lavram as decisões Em nossos governos, os feudos tornaram-se
que devem ser conservadas, aprendidas para hereditários. Foi preciso que a nobreza pos
que se julgue hoje como se julgou ontem e para suísse determinados bens, quer dizer, que o
que a propriedade e a vida dos cidadãos sejam feudo tivesse certa consistência, a fim de que o
asseguradas e garantidas como a própria cons proprietário feudal estivesse em condição de
tituição do Estado. servir o príncipe. Isso acarretou muitas varie
Numa monarquia, a administração de uma dades: por exemplo, existiram regiões onde os
justiça que não decide somente da vida e dos feudos não puderam ser repartidos entre os
bens mas também da honra exige investigações irmãos; em outras, os irmãos mais novos pude
cuidadosas. O escrúpulo do juiz aumenta à ram dispor de um pouco mais para sua
medida que ele tem maior responsabilidade e subsistência.
julga sobre grandes interesses. O monarca, que conhece cada uma de suas
Portanto, não nos devemos espantar ao províncias, pode estabelecer diversas leis ou
encontrarmos nas leis desses Estados tantas submeter-se a diferentes costumes. Porém, o
regulamentações, restrições, extensões, que déspota nada conhece e por nada tem conside
multiplicam os casos particulares e parecem ração; é-lhe necessário um procedimento
fazer, da própria razão, uma arte. geral; governa de um modo intransigente que é
A diferença de posição social, de origem, de o mesmo em todos os lugares; tudo se aplaina
condição, estabelecida no governo monár sob seus pés.
quico, acarreta, muitas vezes, distinções na A medida que os julgamentos dos tribunais
natureza dos bens; e leis relativas à constitui multiplicam-se nas monarquias, a jurispru
ção deste Estado podem aumentar o número dência encarrega-se das decisões que, algumas
dessas distinções. Assim, entre nós, os bens vezes, se contradizem, seja porque os juizes,
são próprios, adquiridos ou conquistados188; que se sucedem, pensam diferentemente, seja
dotais, parafernais189; paternos ou maternos, porque os mesmos processos são ora bem, ora
móveis de vários tipos; livres, substituídos; de mal defendidos, ou, enfim, em consequência de
linhagem ou não; nobres em terras alodiais190 uma infinidade de abusos que se insinuam em
ou de origem plebéia; rendas latifundiárias ou tudo que passa pelas mãos dos homens. É um
constituídas em dinheiro. Cada espécie de bens mal necessário que o legislador corrige de
está submetida a regulamentações específicas; quando em quando, como contrário até ao
espírito dos governos moderados. Porque,
1 88 Em francês, conquèt: o que não é adquirido e quando se é obrigado a recorrer aos tribunais,
não vem por sucessão. é mister que isso decorra da natureza da cons
189 Em francês, paraphernaux: bens da mulher tituição e não das contradições e incertezas
cuja administração ela conserva.
1 90 Em francês, franc-aleu: bem hereditário isento das leis.
de qualquer direito senhorial (Littré). Nos governos em que, necessariamente, há
90 MONTESQUIEU
distinções entre as pessoas, privilégios são marido, do senhor, são por estes regulamen
necessários. Isto diminui ainda mais a simpli tadas e não por intermédio de magistrados.
cidade e cria mil exceções. Esquecia de dizer que o que chamamos
Um dos privilégios menos pesados à socie honra, sendo mal conhecido nesses Estados,
dade e, sobretudo, a quem o confere, é o de todas as questões a ela relacionadas, capítulo
pleitear perante um tribunal, de preferência a tão importante entre nós, neles não encontram
outro. Eis aí novas, questões, isto é, saber lugar. O despotismo basta a si mesmo; tudo é
perante qual tribunal se deve pleitear. vazio em torno dele. Destarte, quando os via
Os povos dos Estados despóticos encon- jantes nos descrevem as regiões onde ele impe
tram-se em situação bem diferente. Não sei ra, raramente falam-nos de leis civis1 91.
sobre o que o legislador poderia estatuir ou o Portanto, todas as possibilidades de disputa
magistrado julgar nessas regiões. Como as ter e de processo aí desaparecem. É o que, parcial
ras pertecem ao príncipe, não há quase leis ci mente, faz com que se maltrate tanto aos liti
vis sobre a propriedade dasterras. Do direito que gantes: a injustiça de sua demanda surge aber
o soberano tem de suceder resulta que também tamente, não sendo escondida, diminuída ou
não há leis sobre as sucessões. A exclusividade protegida por uma infinidade de leis.
dos negócios que exerce em certas regiões
torna inútil toda espécie de leis sobre o comér 191 No Masulipatão não se conseguiu descobrir se
existiu lei escrita. Vede Recueil desVoyages qui Ont
cio. Os casamentos que aí são contratados S.ervi à l Établissement de la Compagnie des Indes,
com escravas determinam que quase não exis t. IV, parte I, pág. 391. Nos julgamentos, os hindus
tam leis civis sobre os dotes e direitos das apenas se baseiam em certos costumes. Os Vedam
(lede os Vedas) e outros livros semelhantes não con
mulheres. Resulta ainda dessa prodigiosa mul têm leis civis mas preceitos religiosos. Vede Lettres
tidão de escravos quase não existirem pessoas Édifiantes, coletânea quadragésima quarta. (N. do
que possuam vontade própria e que, conse A.)*
quentemente, possam responder por sua con * Já observamos que Montesquieu é, aqui, precipi
tado e que, entre os árabes, por exemplo, existe,
duta perante um juiz. A maioria das ações derivada da lei religiosa, uma lei civil, e juriscon-
morais, que são apenas vontade do pai, do sultos muito sutis.
Capítulo II
Incessantemente, ouve-se dizer que se deve Na Turquia, em que se atribui muito pouca
ria administrar a justiça por toda parte, como atenção à fortuna, à vida, à honra dos súditos,
na Turquia. Entretanto, será que apenas o terminam-se prontamente, de uma maneira ou
mais atrasado de todos os povos viu claro na de outra, todas as disputas. A maneira de aca
coisa mais importante do mundo para os ho bá-las é indiferente, desde que sejam termina
mens saberem? das. O paxá, logo informado, manda distribuir,
Se examinardes as formalidades da justiça a seu capricho, bastonadas nas plantas dos pés
em relação ao esforço que um cidadão tem que dos litigantes e os manda embora.
empregar para obter a restituição de seus bens, Seria muito perigoso ter, ali, as paixões dos
ou para obter satisfação por algum ultraje, litigantes: elas supõem um ardente desejo de
indubitavelmente encontrareis muitas delas. Se obter justiça, um ódio, uma ação no espírito,
as considerardes na relação que têm com a uma constância em perseguir. Tudo isso deve
liberdade e a segurança dos cidadãos, encon ser evitado num governo em que se deve ter o
trareis, amiúde, muito poucas e vereis que os medo como único sentimento, e em que tudo
esforços, as despesas, as dilações, os próprios conduz, repentinamente, e sem que se possa
perigos da justiça são o preço que cada cida prever, a revoluções. Cada um deve saber que
dão paga por sua liberdade. não é necessário que o magistrado ouça falar
DO ESPIRITO DAS LEIS I 91
dele, e que apenas conserva sua segurança por atribuir mais importância aos inconvenientes
sua obscuridade. particulares do que à liberdade dos súditos,
Mas, nos Estados moderados, onde a cabeça para os quais não se concede qualquer
do mais humilde cidadão é considerada, não se importância.
lhe retiram a honra e os bens senão após um Vê-se que, nas repúblicas, são necessárias
longo exame, não se lhe tira a vida senão quan pelo menos tantas formalidades quanto nas
do a própria pátria o ataca e ela só ataca quan monarquias.
do lhe possibilita todos os meios de defesa. Num e noutro governo, elas aumentam em
Assim, quando um homem se torna mais razão da importância que se atribui à honra, à
absoluto192, imagina, antes de mais nada, fortuna, à vida e à liberdade dos cidadãos.
simplificar as leis. Começa-se, nesse Estado, a Todos os homens são iguais no governo
republicano; são também iguais no governo
1 92 César, Cromwell e tantos outros. (N. do despótico: no primeiro, por serem tudo; no
A.) segundo, por serem nada.
Capítulo III
Quanto mais o governo se aproxima da literalmente a lei. Não existe um cidadão con
república, tanto mais rígida se torna a maneira tra o qual se possa interpretar uma lei quando
de julgar. Era um vício da república da Lace- se trata de seus bens, de sua honra ou de sua
demônia o fato de os éforos julgarem arbitra vida193.
riamente sem que houvesse leis para orientá- Em Roma, os juizes apenas decidiam se o
los. Em Roma, os primeiros cônsules julgaram acusado era culpado de um certo crime e a
como os éforos: sentiram-se os inconvenientes pena encontrava-se na lei, como percebemos
e fizeram-se leis exatas. em diversas leis que foram feitas. Da mesma
maneira, na Inglaterra, os jurados decidem se
Nos Estados despóticos, não existe lei: a
o acusado é culpado ou não do fato que o trou
regra é o próprio juiz. Nos Estados monárqui
xe perante eles; se é declarado culpado, o juiz
cos, existe uma lei e, onde esta é exata, o juiz a
pronuncia a pena que a lei inflige para esse
observa; onde não existe, ele procura-lhe o fato e, para isto, bastam-lhe olhos.
espírito. Nos governos republicanos é da natu
reza da constituição que os juizes observem 193 Beccaria, Dos Delitos e das Penas, cap. IV.
Capítulo IV
só fato, e que ele precise apenas decidir se deve Decorria daí que os juizes, entre os roma
condenar, absolver ou procrastinar o julga nos, só aceitavam uma demanda específica,
mento. sem nada aumentar, diminuir ou modificar.
Os romanos, a exemplo dos gregos, introdu
Mas os pretores imaginaram outras fórmulas
ziram fórmulas de ação1 9 5 e estabeleceram a
de ações que se chamaram de boa féy 9 6, em
necessidade de conduzir cada demanda pela
ação que lhe era própria. Isto era necessário que a maneira de pronunciar estava mais à
em consequência da sua maneira de julgar: disposição do juiz. Isso estava mais de acordo
cumpria fixar o estado da questão, para que o com o espírito da monarquia. Por isso os juris-
povo o tivesse sempre diante dos olhos. De consultos franceses dizem: “Em França, todas
outro modo, no curso de um grande litígio, o as ações são de boa fé1 9 7”.
estado da questão transformar-se-ia continua
mente e não seria mais reconhecido. 1 9 6 Nas quais empregavam-se estas palavras: ex
bona fide. (N. do A.)
1 9 5 Quas actiones, ne populus, prout vellet, insti- 1 9 7 Condena-se, aí, às custas daquele a quem se re
tueret, certas solemnesque esse voluerunt. L. 2, § 6, quer mais do que deve, se não ofereceu e não con
Digest., De Orig. Jur. (N. do A.) signou o que deve. (N. do A.)
Capítulo V
gasse, seria, concomitantemente, juiz e parte. riam uma fonte inesgotável de injustiças e abu
Nestes mesmos Estados, o príncipe frequen sos; os cortesãos, com sua impertinência,
temente possui os confiscos: se julgasse os cri extorquiriam seus julgamentos. Alguns impe
mes, seria, ainda, juiz e parte. radores romanos tiveram a fúria de julgar; rei
Além disso, perdería o atributo mais nobre nado algum alarmou tanto o universo por suas
de sua soberania que é de conceder graça203 ; injustiças.
seria insensato que fizesse e desfizesse seus “Cláudio”, diz Tácito20 6, “tendo tomado a
julgamentos; não gostaria de estar em contra seu cargo o julgamento dos negócios públicos
dição consigo mesmo. Além de que isso e funções dos magistrados, permitiu toda sorte
confundiría todas as idéias, não se sabería se de rapinas.” Por isso Nero, assumindo a dire
um homem seria absolvido ou se recebería sua ção do império depois de Cláudio e querendo
graça. apaziguar os espíritos, declarou: “Que evitaria
Quando Luís XIII quis ser juiz no processo ser o juiz de todos os casos, para que acusado
do Duque de la Valette20 4 e com esta intenção res e acusados, nos muros dos palácios, não
chamou ao seu gabinete alguns oficiais do par fossem expostos ao iníquo poder de alguns
lamento e alguns conselheiros do Estado, libertos2 0 7”.
tendo o rei os forçado a opinar sobre o decreto “No reinado de Arcádio”, narra Zósimo2 0 8,
de prisão, o presidente de Bellièvre declarou: “a nação dos caluniadores expandiu-se, envol
veu a corte e a infectou. Quando um homem
“Que via neste caso uma coisa estranha, um
morria, supunha-se que não tivesse deixado
príncipe opinar no processo de um de seus sú
filhos209; seus bens eram dados por um rescri-
ditos; que aos reis apenas as graças eram
to. Pois, sendo o príncipe estranhamente estú
reservadas e que eles remetiam as condenações
pido e a imperatriz excessivamente empreende
para seus oficiais. E Vossa Majestade desejaria
dora, ela favorecia a avareza insaciável de seus
ver, no banco dos réus diante de si, um homem
domésticos e confidentes; de maneira que para
que, por seu julgamento, em uma hora seria le
as pessoas moderadas nada havia de mais
vado à morte? Que a face do príncipe, que traz
desejável do que a morte.”
as graças, não pode sustentar isso; que apenas
“Havia outrora”, conta Procópio210* ,
seu olhar suspendería os interditos das igrejas; “muito poucas pessoas na corte; mas, na
que apenas s.e deveria sair contente da pre época de Justiniano, como os juizes não mais
sença do príncipe”. Quando se julgou dos possuíssem liberdade de administrar justiça,
fundamentos da questão, o mesmo presidente seus tribunais permaneciam desertos, enquanto
disse no seu parecer: “Este é um julgamento o palácio do príncipe ressoava com os clamo
sem exemplo, até mesmo contra todos os res das partes que aí solicitavam seus casos.”
exemplos do passado até hoje, que um rei de Todos sabem como aí se vendiam os julga
França na qualidade de juiz e por seu voto mentos e, inclusive, leis.
tenha condenado um gentil-homem à As leis são os olhos do príncipe; vê por elas
morte”20 5. o que, sem elas, não poderia ver. Quer ele assu
Os julgamentos proferidos pelo príncipe se mir as funções dos tribunais? Com isso traba
lha não para si, mas para seus sedutores, con
203 Platão Carta VIII] não acredita que os reis
que são, diz ele, sacerdotes possam assistir ao julga tra si mesmo.
mento em que se condena à morte, ao exílio e à pri
são. (N. do A.) 20 6 Anais, liv. XI, cap. V. (N. do A.)
20 4 Vede a relação do processo feito ao Duque de 2 0 7 Tácito, Anais, liv. XIII, cap. IV. (N. do A.)
la Valette. Está impressa nas Mémoires de Montré- 20 8 Hist., liv. V. (N. do A.)
sor, t. II, pág. 62. (N. do A.) 209 A mesma desordem no reinado de Teodósio, o
20 5 Isso foi modificado posteriormente. Vede a Jovem. (N. do A.)
mesma relação, t. II, pág. 236. (N. do A.) 21 0 História Secreta. (N. do A.)
94 MONTESQUIEU
Capítulo VI
Capítulo VII
Do magistrado único
Tal magistrado só pode existir no governo nia como escrava; os pais de Virgínia lhe soli
despótico. Vê-se, na história romana, a que citaram que, em virtude de sua lei, ela lhes
ponto um único juiz pode abusar de seu poder. fosse confiada até o julgamento definitivo.
Como não teria Ápio, em seu tribunal, despre Declarou ele que sua lei apenas fora feita em
zado as leis, já que violou mesmo as que favor do pai e que, estando Virgínia ausente,
fez212? Tito Lívio informa-nos sobre a iníqua não poderia ter aplicação21 3.
distinção do decênviro. Ele tinha subornado
um homem que, diante dele, reclamava Virgí 213 Quod pater puellae abesset, locutn injuriae esse
ratus. Tito Lívio, Década Primeira, liv. III, cap.
21 2 Vede a lei 2, § 24, De Orig. Jur. (N. do A.) XLIV. (N. do A.)
Capítulo VIII
Temos atualmente uma lei admirável: a que de seu ministério, obrigá-lo-iam a nomear seu
determina que o príncipe, estabelecido para denunciador.
fazer executar as leis, designe um represen Nas leis de Platão21 7, os que negligenciam
tante2 1 6 em cada tribunal, para processar, em de advertir os magistrados ou de prestar-lhes
seu nome, todos os crimes. Assim, a função
auxílio devem ser punidos. Hoje, isso não seria
dos delatores é desconhecida entre nós e, se
este vingador público fosse suspeito de abusar conveniente. A parte pública vela por seus
cidadãos; ela atua e eles estão tranquilos.
21 6 Trata-se também do ofício do procurador-
geral; era o do procurador do rei. 217 Livro IX. (N. do A.)
Capítulo IX
A severidade das penas convém melhor ao da vida; aí os suplícios devem ser, portanto,
governo despótico, cujo princípio é o terror, do mais rigorosos. Nos Estados moderados, te
que à monarquia ou à república, quç têm por me-se mais perder a vida do que se receia a
mola a honra e a virtude. morte em si mesma; os suplícios que simples
Nos Estados moderados, o amor à pátria, a mente tiram a vida são aí, portanto, suficien
vergonha e o receio da censura são motivos tes.
coercitivos que podem deter muitos crimes. O Os homens extremamente felizes e os extre
maior castigo para uma má ação será o mamente infelizes tornam-se igualmente insen
reconhecimento dessa. Nos Estados modera síveis: atestam-nos os monges e os conquista
dos, portanto, as leis corrigirão mais facil dores. Apenas a mediocridade e a mistura da
mente e não necessitarão de tanta energia. boa e má sorte produzem a doçura e a piedade.
Nesses Estados, um bom legislador encarre- O que particularmente se vê nos homens, se
gar-se-á menos de punir os crimes do que de encontra nas diversas nações. Entre os povos
preveni-los; aplicar-se-á mais a fortalecer os selvagens que levam uma vida muito dura e
costumes do que a infligir suplícios. entre os povos dos governos despóticos em que
É uma perpétua observação dos autores há apenas um homem exorbitantemente favo
chineses21 8 que, quanto mais se via aumentar recido pela fortuna, enquanto os demais são
os suplícios em seu império, mais próxima es ultrajados, é-se igualmente cruel. A brandura
tava a revolução. É que se aumentavam os reina nos governos moderados.
suplícios à medida que os costumes desapare Quando nas histórias encontramos exem
ciam. plos da atroz justiça dos sultões, sentimos os
males da natureza humana com uma espécie
Seria fácil provar que, em todos ou quase de amargura.
todos os Estados da Europa, os castigos dimi Nos Estados moderados, para um bom
nuíram ou aumentaram à medida que se apro legislador, tudo pode servir para constituir cas
ximou ou se afastou da liberdade. tigos. Não é extraordinário que em Esparta um
Nos países despóticos é-se tão infeliz, que se dos castigos principais fosse não poder em
teme a morte mais do que se lastima a perda prestar a esposa a outro, nem receber a do
outro e nunca permanecer em sua casa a não
218 Farei ver, em seguida, que a China, nesse
aspecto, está no caso de uma república ou de uma ser com virgens? Numa palavra, tudo que a lei
monarquia. (N. do A.) chama castigo, é efetivamente castigo.
96 MONTESQUIEU
Capítulo X
É precisamente nas antigas leis francesas não-nobres são menos punidos que os no
que se encontra o espírito da monarquia. Nos bres21 9. Nos casos de crimes, acontece justa
casos relacionados a penas pecuniárias, os mente o contrário220: o nobre perde a honra e
é levado diante de um tribunal, enquanto o
219 “Assim, no caso de os não-nobres deverem vilão, que não tem honra, é punido em seu
pagar uma multa de quarenta soidos para se livra
rem de um mandado de prisão, os nobres devem corpo.
pagar sessenta libras.” Sotnme Rurale, liv. II, pág.
198, ed. got. do ano 15 12; e Beaumanoir, cap. LXI, 220 Vede o Conseil de Pierre Desfontaines, cap.
pág. 309. (N. do A.) XIII, principalmente o artigo 22. (N. do A.)
Capítulo XI
O povo romano tinha probidade. Esta probi toda violência contra um cidadão que tivesse
dade possuía tanta força, que muitas vezes apelado ao povo, somente afligia a quem a
bastava o legislador indicar o bem, para que contraviesse, com a pena de ser reputado
este fosse seguido. Parecia que, em vez de perverso.
ordenanças, bastavam conselhos.
Quase todos os castigos prescritos pelas leis 221 Foi estabelecida por Valério Publícola, logo
régias e pela das Doze Tábuas foram abolidas após a expulsão dos reis; foi renovada duas vezes,
na república, quer em consequência da lei sempre pelos magistrados da mesma família, como
Valéria221, quer em consequência da lei Pór- diz Tito Lívio, liv. X, cap. IX. Não era necessário
cia222. Não se notou que por isso a república dar-lhe mais força mas aperfeiçoar-lhe as disposi
ções. Diligentius sanctam, diz Tito Lívio, ibid. (N.
ficasse mal regulamentada e que a ordem tives do A.)
se sido prejudicada. 222 Lex Porciapro tergo civium lata. Foi estabele
Essa lei Valéria, proibindo aos magistrados cida no ano 454 da fundação de Roma. (N. do A.)
Capítulo XII
A experiência tem mostrado que nos países gi-lo subitamente e, em vez de procurar execu
onde as penas são leves o espírito do cidadão é tar as antigas leis, estabelece-se uma pena
atingido por elas como o é alhures pelas leis cruel que detém o mal imediatamente. Porém
severas. desgastam-se as bases do governo: a imagina
Quando algum inconveniente se faz sentir ção acostuma-se com esta grande pena como
num Estado, um governo violento quer corri se tinha acostumado com a menor e, como
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 97
diminui o temor por esta, logo é-se forçado a nas suplícios cruéis contêm os homens, consi
utilizar a outra para todos os casos. Os assal derai que isto é, em grande parte, devido à vio
tos nas estradas eram comuns em alguns Esta lência do governo que utilizou esses suplícios
dos223, quiseram terminá-los; inventaram o para punir pequenas faltas.
suplício da roda que os paralisou durante Amiúde um legislador que quer corrigir um
algum tempo. Mas, depois disto, os assaltos mal pensa apenas nesta correção; seus olhos
nas estradas continuaram tal como antes. estão abertos para este objetivo e fechados
A deserção foi em nossos dias muito para os inconvenientes. Quando o mal for cor
frequente; estabeleceu-se a pena de morte con rigido, repara-se apenas na severidade do legis
tra os desertores mas ela não diminuiu. A lador mas subsiste um vício no Estado, produ
explicação é muito simples: um soldado acos zido por esta severidade: os espíritos estão
tumado diariamente a expor sua vida despreza corrompidos, acostumados ao despotismo.
ou gaba-se de desprezar o perigo. Mas ele foi Tendo Lisandro2 2 5 sido vitorioso contra os
diariamente educado para temer a desonra: atenienses, foram julgados os prisioneiros; os
bastava, portanto, estabelecer uma pena224 atenienses foram acusados de ter lançado ao
que o estigmatizasse durante toda a vida. mar todos os cativos de duas galeras e resol
Pretenderam aumentar a pena mas, na realida veu-se, em plena assembléia, decepar o punho
de, diminuíram-na. de todos os prisioneiros que capturassem.
Os homens não precisam, absolutamente, Foram todos degolados, exceto. Adimanto que
ser levados pelos caminhos extremos; deve-se se opusera a este decreto. Antes de mandar
procurar os meios que a natureza nos oferece matá-lo, Lisandro exprobrou Fílocles de ter
para os conduzir. Que se examine a causa dos depravado os espíritos e ter dado lições de
relaxamentos: ver-se-á que eles se originam da crueldade a toda a Grécia.
impunidade dos crimes e não da moderação “Tendo os argienses”, conta Plutarco22 6,
das penas. “mandado matar mil e quinhentos de seus
Imitemos a Natureza que deu aos homens a cidadãos, os atenienses fizeram sacrifícios de
vergonha como seu flagelo e a infâmia de expiação, a fim de que os deuses desviassem
sofrê-la como o maior castigo. do coração dos atenienses tão cruel pensamen
Se há países em que a honra não é uma to.”
continuação do suplício, isto se deve à tirania Há dois gêneros de corrupção: um quando o
que infligiu os mesmos castigos aos celerados povo não observa as leis e outro quando é cor
e às pessoas de bem. rompido por elas; mal incurável porque reside
E, se encontrardes outros países em que ape no próprio remédio.
223 Montesquieu considera ainda a França, como 2 2 5 Xenofonte. História, liv. II, cap. II, §§ 20-22.
se verá mais abaixo, cap. XVI. (N. do A.)
22 4 Fendia-se o nariz, cortavam-se as orelhas. (N. 22 6 Obras Morais. “Dos que Manipulam os Negó
do A.) cios do Estado”, cap. XIV. (N. do A.)
Capítulo XIII
22 8 Recueil des Voyages qui Ont Servi à 230 Imperador espiritual do Japão antigo. (N. dos
lÉtablissement des Compagnies des Indes. Tomo T.)
II, parte II, pág. 428. (N. do A.) 23J Recueil des Voyages qui Ont Servi à
2 2 9 Notai bem isso como uma máxima de prática 1’Eiablissement des Compagnies des Indes, t. V,
nos casos em que os espíritos foram estragados por pág. 2. (N. do A.)
penas muito rigorosas. (N. do A.) 2 3 2 Ibid. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 99
Capítulo XIV
No consulado de Acílio Glábrio e de Pisão, Cornélio tinha resolvido estabelecer penas ter
para acabar com as conjurações, fez-se a lei ríveis contra este crime, para o qual o povo era
Acília233. Dion23 2*4 afirma que o senado obri fortemente impelido. O senado acreditava que
gou os cônsules a propô-la, pois o tribuno C.
as penas desmedidas lançariam o terror nos
233 A condenação dos culpados era uma multa: espíritos mas teriam o efeito de não se encon
eles não podiam ser admitidos na ordem dos sena trar mais ninguém para acusar nem para con
dores e nomeados para qualquer magistratura.
Dion, liv. XXXVI, cap. XXI. (N. do A.) denar, ao passo que, propondo penas leves,
23 4 Ibid. (N. do A.) apareceríam juizes e acusadores.
Capítulo XV
Sinto-me seguro em minhas máximas quan Mas as pessoas que queriam destruir a liber
do me ocupo dos romanos e creio que os casti dade temiam os escritos que podiam reanimar
gos dependem da natureza do governo quando o espírito da liberdade23 7.
vejo esse grande povo modificar, a esse respei Após a exclusão dos decênviros, quase
to, as leis civis, à medida que alterava as leis todas as leis que tinham estabelecido as penas
políticas. foram revogadas. Não foram ab-rogadas ex
Foram muito severas as leis reais feitas para pressamente, mas elas não tiveram aplicação,
um povo composto de fugitivos, de escravos e pois a lei Pórcia proibiu a condenação à morte
de ladrões. O espírito da república requeria de um cidadão romano.
que os decênviros não inserissem estas leis nas Eis aí a época em que se pode aplicar o que
suas Doze Tábuas. Porém, pessoas que aspira Tito Lívio23 8 disse dos romanos: nunca povo
vam à tirania não possuíam a preocupação de algum amou mais a moderação das penas.
seguir o espírito da república. Acrescentando-se à suavidade das penas o
Tito Lívio23 5 diz, referindo-se ao suplício direito que o acusado possuía de refugiar-se
de Mécio Sufécio, ditador de Alba, condenado antes do julgamento, ver-se-á claramente que
por Túlio Hostílio a ser arrastado por dois car os romanos seguiram o espírito que eu disse
ros, que esse foi o primeiro e último suplício ser natural à república.
em que se testemunha uma perda de respeito Sila, que confundiu a tirania, a anarquia e a
pela humanidade. Ele se engana: as Leis das liberdade, foi o responsável pelas leis cornelia-
Doze Tábuas estão repletas de disposições nas. Parecia que seus regulamentos só eram
muito cruéis23 6. feitos para estabelecer crimes. Assim, qualifi
A pena capital pronunciada contra os auto cando uma infinidade de ações como assassí
res de libelos e os poetas é a que melhor revela nios, encontrou por toda parte assassinos. E,
o propósito dos decênviros. Isto quase não é por uma prática logo imitada, preparou arma
próprio do espírito da república, em que o dilhas, semeou espinhos, abriu abismos no
povo gosta de ver os poderosos humilhados. caminho de todos os cidadãos.
2 3 5 Liv. I, cap. XXVIII. (N. do A.) 2 3 7 Sila, animado do mesmo espírito que os decên
23 6 Nelas, encontra-se o suplício do fogo, penas viros, aumentou, com eles, as penas contra os escri
quase sempre capitais, o roubo punido com a morte tores satíricos. (N. do A.)
etc. (N. do A.) 23 8 Liv. I, cap. XXXVIII. (N. do A.)
100 MONTESQUIEU
Quase todas as leis de Sila só continham a baixa condição social2 43, que foram as penas
interdição da água e do fogo. A isso César mais rigorosas.
acrescentou o confisco dos bens239, pois os O feroz e insensato Maximino irritou, por
ricos, conservando no exílio seu patrimônio, assim dizer, o governo militar, que ele deveria
eram mais audaciosos para cometer crimes.
ter acalmado. O senado era informado, diz
Tendo os imperadores estabelecido um
Capitolino2 4 4, de que uns tinham sido crucifi
governo militar, logo perceberam que este era
menos terrível para seus súditos do que para cados, outros lançados às feras, ou embru
eles. Assim, procuraram moderá-lo. Julgaram lhados em peles de animais recentemente mor
que as dignidades e o respeito que antes goza tos, sem nenhuma consideração por suas
vam eram necessários. dignidades. Ele parecia querer exercer a disci
Aproximaram-se um pouco da monarquia e plina militar do mesmo modo como pretendia
dividiram as penas em três classes2*40: as que administrar os negócios civis.
se relacionavam com as principais persona Encontrar-se-á, nas Considerações sobre a
gens do Estado2 41 e que eram assaz suaves; as Grandeza dos Romanos e Sua Decadência2 4 5,
que eram infligidas às pessoas de categoria
como Constantino transformou o despotismo
inferior2 42 e que eram mais severas; final
militar num despotismo militar e civil, aproxi
mente, as que diziam respeito às pessoas de
mando-se da monarquia. Pode-se acompanhar
239 Paenas facinorum auxit, cum locupletes eo as diversas revoluções desse Estado e ver
facilius scelere se obligarent, quod integris patrimo- como se passou do rigor à indolência e da
niis exularent. Suetônio, in Julio Caesare, cap.
LXII. (N. do A.) indolência à impunidade.
2 40 Vede a lei 3, § legis, ad legem Cornei, de sica-
riis, e um grande número de outras, no Digesto e no 2 43 ínfimos. L. 3, § legis, ad leg. Cornei, de sica-
Código. (N. do A.) riis. (N. do A.)
2 41 Sublímiores. (N. do A.) 2 4 4 Jul. Cap., MaximiniDuo, cap. VIII. (N. do A.)
2 42 Médios. (N. do A.) 2 4 5 Cap. XVII. (N. do A.)
Capítulo XVI
É essencial que as penas estejam harmonio lá. “Sire”, responderam-lhe, “é porque ele lan
samente relacionadas entre si, pois é mais çou alguns libelos contra vossos ministros.”
importante evitar antes um grande crime do “Grande tolo!”, retorquiu o rei, “por que não
que um menor, aquilo que ataca a sociedade os lançou contra mim? Nada lhe teria aconte
antes daquilo que a prejudica menos. cido.”
“Um impostor2 4 6, que se apresentara como “Setenta pessoas conspiraram contra o
Constantino Ducas, suscitou grande subleva- Imperador Basílio2 4 7, que determinou que elas
ção em Constantinopla. Foi preso e condenado fossem açoitadas; queimaram-lhes os cabelos e
ao açoite; mas, como acusasse pessoas impor o pêlo. Tendo um cervo lhe prendido o cinto
tantes, foi condenado a ser queimado como com sua galharia, alguém do séquito tomou da
caluniador.” É singular assim que se tivessem espada, cortou o cinto e o libertou. O impera
colocado em proporção as penas entre o crime dor mandou decepar-lhe a cabeça, pois, como
de lesa-majestade e o de calúnia.
explicou, usara da espada contra ele.” Quem
Este fato nos relembra uma frase de Carlos
poderia pensar que no governo do mesmo prín
II, rei da Inglaterra. Viu, ao passar, um homem
cipe estes dois julgamentos pudessem ser
no pelourinho e perguntou por que ele estava
proferidos?
2 4 6 História, de Nicéforo, patriarca7 de Constanti É, entre nós, um grande erro aplicar o
nopla. (N. do A.)* mesmo castigo ao que assalta estradas e ao
*Perry (John), viajante inglês, engenheiro de Pedro,
o Grande (1670-1732). 2 4 7 História, de Nicéforo. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 101
que rouba e assassina. É evidente, para a segu Quando não há diferença na pena, é neces
rança pública, que se deveria estabelecer algu sário colocá-la na esperança do perdão. Na
ma diferença na pena. Inglaterra, não se assassina porque os ladrões
Na China, os ladrões cruéis são esquarteja
podem esperar ser transportados para as colô
dos2 48, os outros não; essa diferença faz com
nias, mas os assassinos não.
que se roube mas que não se assassine.
Na Moscóvia, onde a pena para ladrões e Outro grande apoio para os governos mode
assassinos é a mesma, sempre se assassina2 49. rados são as cartas de perdão. Esse poder que
Os mortos, dizem, nada revelam. o príncipe tem de perdoar, executado com
sabedoria, pode ter efeitos admiráveis. O prin
2 4 8 P. du Halde, 1.1, pág. 6. (N. do A.)
2 49 O Estado Atual da Grande Rússia, por Perry. cípio do governo despótico, que não perdoa e
(N. do A.) não perdoará nunca, priva-o destas vantagens.
Capítulo XVII
Já que os homens são perversos, a lei é obri que o medo inspira participa dos fundamentos
gada a supô-los melhores do que são. Assim, o do governo. Ia dizer que os escravos, entre os
depoimento de duas testemunhas é suficiente gregos e os romanos. . . Mas ouço a voz da
para a punição de todos os crimes. A lei crê natureza que grita contra mim.
nelas como se falassem pela boca da verdade.
Julga-se, deste modo, que toda criança conce 2 50 “Questão”, aqui, com o sentido de interroga
bida durante o casamento é legítima. A lei con tório, seguido de suplícios. (N. dos T.)
fia na mãe como se ela fosse a própria pudicí- 251 A nação inglesa. (N. do A.)
cia. Mas a questão contra os criminosos não se 2 62 Os cidadãos de Atenas não podiam ser subme
inclui em casos extremos como esse. Vemos tidos às questões (Lísias, Orat. in Argorat.), exceto
por crime de lesa-majestade. As questões eram apli
atualmente uma nação251 muito civilizada cadas trinta dias após a condenação (Cúrio Fortu-
rejeitá-la sem qualquer inconveniente. Portan nato, Rhetor., Scol., liv. II). Não existia questão
to, ela não é naturalmente necessária2 52. preparatória. Quanto aos romanos, a lei 3 e 4 ad
Tantas pessoas notáveis e tantos gênios leg. Jul. mqj. fez ver que o nascimento, a dignidade,
a profissão de milícia isentavam da questão, se não
escreveram contra esta prática que não ouso se tratasse de crime de lesa-majestade. Vede as sá
falar depois deles. Ia dizer que elas poderíam bias restrições que a lei dos visigodos colocava con
convir aos governos despóticos, onde tudo o tra esta prática. (N. do A.)
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Da lei de talião
Os Estados despóticos, que apreciam as leis só condenava à pena de talião quando não
simples, utilizam amiúde a lei de talião2*5 4. Os podia apaziguar o suplicante2 5 5. Podia-se,
Estados moderados aceitam-na algumas vezes. após a condenação, pagar danos e perdas2 5 6,
Entretanto, existe esta diferença: os primeiros convertendo a pena corporal em pecuniá
a exercem rigorosamente, e os segundos a utili ria2 5 7.
zam moderadamente.
2 5 5 Si membrum rupit, ni cum eo pacit, talio esto.
A Lei das Doze Tábuas admitia duas delas: Aulo Gélio, liv. XX, cap. I. (N. do A.)
2 5 6 Ibid. (N. do A.)
2 5 4 É estabelecida no Alcorão. Vede o capítulo Da 2 5 7 Vede também a lei dos visigodos, livro VI, tit.
Vaca. (N. do A.) IV, §§ 3 e 5. (N. do A.)
Capitulo XX
Na China, punem-se os pais pelas faltas dos leis. Isto sempre supõe que não há honra entre
filhos. Isso era costume no Peru2 58. Tal proce os chineses. Entre nós, os pais cujos filhos são
dimento também é inspirado por idéias despó condenados ao suplício e os filhos2 59 cujos
ticas. pais sofreram a mesma sorte são punidos pela
Diz-se comumente que, na China, se pune o desonra, fato que corresponde à perda da vida
pai por não utilizar o poder paternal estabele na China.
cido pela Natureza e aumentado pelas próprias
2 59 Em lugar de puni-los, dizia Platão, deve-se
2 58 Vede Garcilaso, História das Guerras Civis elogiá-los por não se assemelharem a seus pais (liv.
dos Espanhóis. (N. do A.) IX das Leis). (N. do A.)
Capítulo XXI
Da clemência do príncipe
dade para eles terem ocasião de exercê-la; e o príncipe ao desprezo e até à impotência de
eles quase sempre podem exercê-la em nossos punir.
países. O Imperador Maurício resolveu nunca ver
ter o sangue de seus súditos. Anastácio2 60 não
Ser-lhe-á disputada, talvez, alguma parcela punia os crimes. Isaac, o Anjo, jurou que não
da autoridade, mas quase nunca toda a autori mandaria matar pessoa alguma em seu reina
dade e, se algumas vezes combatem pela do. Os imperadores gregos esqueceram que
coroa, de forma alguma combatem pela vida. não era em vão que usavam espada.
Mas, dir-se-á, quando se deve punir? Quan 2 6o Fragmentos dos suídas [que se encontramj em
do se deve perdoar? É uma coisa que é melhor Constantino Porfirogêneto. (N. do A.)*
sentir do que prescrever. Quando há perigos na * “O sentido do original”, diz Crévier, “é que
Anastácio dava os cargos a súditos indignos. A an
clemência, eles são muito visíveis; distingue-se tiga versão latina dos suídas enganou Montes
facilmente a clemência dessa fraqueza que leva quieu.’,’
LIVRO SÉTIMO
CONSEQUÊNCIAS DOS DIFERENTES PRINCÍPIOS
DOS TRES GOVERNOS EM RELAÇÃO ÀS LEIS SUNTUÃRIAS,
AO LUXO E Ã CONDIÇÃO DAS MULHERES
Capítulo I
Do luxo
porque os homens não mais estão distanciados mais necessidade, mais capricho quando se
uns dos outros. Não creio; há mais desejo, está reunido.
Capítulo II
Acabo de dizer que nas repúblicas em que república, o espírito volta-se para o interesse
as riquezas são distribuídas igualmente não particular, Para as pessoas a quem o neces
pode existir luxo e, como se viu no livro V2 63 sário é suficiente, só resta desejar a glória da
que esta igualdade na distribuição fazia a exce pátria e a sua própria. Porém, uma alma cor
lência de uma república, conclui-se que quanto rompida pelo luxo possui muitos outros dese
menos luxo haja numa república, tanto mais jos: cedo se torna inimiga das leis que a cons
perfeita será ela. Não havia luxo entre os pri trangem. O luxo que a guarnição de Régio
meiros romanos como também entre os lacede- começou a conhecer arruinou os seus habitan
mônios e, nas repúblicas em que a igualdade tes.
não está completamente perdida, o espírito de Logo que os romanos se corromperam, seus
comércio, de trabalho e de virtude faz com que desejos tornaram-se imensos. Isso pode ser jul
todos possam e todos queiram viver de acordo gado pelo preço que deram às coisas. Um cân
com suas posses e que, consequentemente, taro de vinho de Falerno2 6 4 era vendido por
exista pouco luxo. cem denários romanos; um barril de carne sal
As leis da nova partilha dos campos, recla
gada do Ponto custava quatrocentos; um bom
mada insistentemente em algumas repúblicas,
eram naturalmente salutares. Elas apenas são cozinheiro, quatro talentos; os jovens não ti
perigosas como ação súbita. Suprimindo re nham preço. Quando por uma impetuosida
pentinamente as riquezas de uns e aumentando de2 6 5 geral todos se entregavam à voluptuosi-
do mesmo modo as dos outros, produzem em dade, em que se transformava a virtude?
cada família uma revolução e devem produzir
2 6 4 Fragmento do livro XXXVI de Diodoro, cita
outra, geral, no Estado. do por Constantino Porfirogêneto, Extrato das Vir
A medida que o luxo se estabelece numa tudes e dos Vícios. (N. do A.)
2 6 5 Cum maximus omnium impetus ad luxuriam
2 63 Caps. III e IV. (N. do A.) esset. Ibid. (N. do A.)
Capítulo III
A aristocracia mal constituída possui esta tirar-lhes dinheiro. Utiliza-se este meio para
desgraça: os nobres são ricos e, entretanto, não apoiar a indústria: mulheres mais desprezíveis
devem gastar; o luxo contrário ao espírito de gastam sem perigo, enquanto seus tributários
moderação deve ser banido. Só há, portanto, levam a vida mais obscura do mundo.
As boas repúblicas gregas tinham, a este
pobres que não podem receber e ricos que não
respeito, instituições admiráveis. Os ricos
podem gastar. empregavam dinheiro em festas, em coros de
Em Veneza, as leis obrigam os nobres à música, carros, cavalos de corrida, magistra
modéstia. Acostumaram-se de tal modo a turas onerosas. As riquezas eram tão pesadas
economizar, que apenas as cortesãs podiam como a pobreza.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 109
Capítulo IV
“Os suiãos, povo germânico, rendem home senado, o restabelecimento das antigas leis
nagem às riquezas”, diz Tácito2*6 6, “o que faz suntuárias2 68. Este príncipe erudito opôs-se.
com que vivam sob ò governo de um só.” Isto “O Estado não poderia subsistir”, dizia ele,
significa que o luxo é singularmente caracte “no atual estado de coisas. Como poderia
rístico das monarquias e que nelas não se Roma viver? Como as províncias poderíam
necessita de leis suntuárias. viver? Tínhamos a frugalidade quando éramos
Como, pela constituição das monarquias, as cidadãos de uma única cidade; hojé consumi
riquezas são distribuídas de maneira desigual, mos a riqueza de todo o universo; fazemos
é realmente necessário que exista luxo. Se os senhores e escravos trabalharem para nós.”
ricos não despendem muito, os pobres morre Ele via bem que não mais se necessitava de leis
rão de fome. É mesmo indispensável que os suntuárias.
ricos gastem proporcionalmente à desigual Quando, no reinado do mesmo imperador,
dade das fortunas e, como dissemos, que o propôs-se ao senado proibir os governadores
luxo aumente na mesma proporção. As rique de levarem suas mulheres para as províncias
zas particulares só aumentam porque suprimi por causa dos desregramentos que aí introdu
ram a uma parcela dos cidadãos o necessário ziam, esta proposta foi rejeitada. Diz-se “que
físico; cumpre, portanto, que este lhe seja os exemplos da inflexibilidade dos antigos ti
devolvido. nham sido modificados em favor de um modo
Assim, para que o Estado monárquico se de vida mais agradável”2 69. Sentiu-se que
sustente, o luxo deve ir aumentando, do lavra havia necessidade de outros costumes.
dor ao artesão, ao negociante, aos nobres, aos O luxo é, portanto, necessário nos Estados
magistrados, aos grandes senhores, aos contra- monárquicos e também nos Estados despóti
tadores principais, aos príncipes, sem o que cos. Nos primeiros, é um uso que se faz do
tudo se perdería. grau de liberdade possuída; nos outros, é um
abuso feito das vantagens de sua servidão.
No senado de Roma, composto de graves
magistrados, de jurisconsultos e de homens
Quando um senhor, inseguro quanto ao futuro
de sua fortuna de cada dia, escolhe um escravo
imbuídos da idéia dos primeiros tempos,
para tiranizar os outros escravos, a única feli
propos-se, na época de Augusto, a correção
cidade que possui é saciar o orgulho, os dese
dos costumes e do luxo das mulheres. É curio
jos e as volúpias diárias.
so ver em Dion2 6 7 com que arte ele eludiu as
Tudo isso conduz a uma reflexão. As repú
demandas importunas desses senadores. É que blicas morrem pelo luxo e as monarquias, pela
ele fundava uma monarquia e dissolvia uma pobreza2 70.
república.
Na época de Tibério os edis propuseram, no 2 88 Tácito, Anais, liv. III, cap. XXXIV. (N. do A.)
289 Múlta duritiei veterum melius et laetius muta-
2 8 8 De Moribus Germanorum, cap. XLIV. (N. do ta. Tácito, Anais, liv. III, cap. XXXIV. (N. do A.)
A.) 2 70 Opulentia paritura mox egestatem. Floro, liv
2 8 7 Dion Cássio, liv. LIV, cap. XVI. (N. do A.) III, cap. XII. (N. do A.)
110 MONTESQUIEU
Capitulo V
Capítulo VI
Do luxo na China
Razões particulares reclamam leis suntuá França, há trigo em quantidade suficiente para
rias em alguns Estados. Pela força do clima, o nutrir os lavradores e os empregados de manu
povo pode tornar-se tão numeroso e de outro faturas. Além disso, o comércio com os estran
lado os meios de subsistência tão precários, geiros pode obter com coisas frívolas tantas
que é conveniente aplicá-lo integralmente à coisas necessárias, que quase não se deve
cultura da terra. Nesses Estados, o luxo é peri- temer o luxo.
e. as leis suntuárias devem ser rigorosas. Na China, pelo contrário, as mulheres são
Assim, para saber se é necessário encorajar ou tão fecundas e a espécie humana multiplica-se
proscrever o luxo, primeiramente se deve a tal ponto, que as terras, por mais cultivadas
observar a relação entre o número de habitan que sejam, mal chegam para a alimentação dos
tes e a facilidade de obtenção dos meios de habitantes. O luxo é, portanto, pernicioso e o
fazê-los viver. Na Inglaterra, o solo produz
espírito de trabalho e de economia é tão neces
muito mais cereais do que é necessário para
sário como em qualquer outra república2 7 4. E
nutrir os que cultivam as terras e os que procu
ram vestimentas. Portanto, podem-se aí cultivar
artes frívolas e, consequentemente, o luxo. Na 2 7 4 O luxo foi sempre detido. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 111
mister que se dediquem aos ofícios necessários ciosas achadas numa mina, não querendo que
e que se afastem da voluptuosidade. seu povo se fatigasse trabalhando por uma
Eis aqui o espírito das belas ordenanças dos coisa que não o poderia nutrir nem vestir,
imperadores chineses: “Nossos antepassados”, mandou fechar a mina.
diz um imperador da família dos Tang2 7 5, “ti “Nosso luxo é tão grande”, diz Kiayven-
nham por máxima que, existindo um homem ti2 7 7, “que o povo orna com bordados as san
que não lavrasse a terra, uma mulher que não
fiasse, alguém sofreria frio ou fome no impé dálias dos mancebos e donzelas, que é obri
gado a vender.” Havendo tantos homens
rio.. . ” E, baseado neste princípio, mandou
arrasar uma infinidade de monastérios de ocupados em fazer roupas para um único,
bonzos. como não haver muitas pessoas sem roupas?
Um terceiro imperador da vigésima pri Há dez homens que usufruem a renda das ter
meira dinastia2 7 6, a quem levaram pedras pre- ras para um lavrador: como não haver carên
cia de alimentos para muitas pessoas?
2 7 5 Numa ordenança citada pelo Padre du Halde,
tomo II, pág. 497. (N. do A.)
2 7 6 Histoire de la Chine, vigésima primeira dinas 2 7 7 Num discurso citado pelo Padre du Halde, t.
tia, na obra do Padre du Halde, 1.1. (N. do A.) II, pág. 418. (N. do A.)
Capítulo VII
Na história da China vê-se que ela possuiu verificado ser tão úteis e temessem as volúpias
vinte e duas dinastias sucessivas; quer dizer, que tinham verificado ser tão funestas. Porém,
ela experimentou vinte e duas revoluções após esses três ou quatro primeiros príncipes, a
gerais, sem contar uma infinidade de revolu corrupção, o luxo, o ócio, as delícias apodera
ções menores. As três primeiras dinastias ram-se de seus sucessores; encerravam-se em
duraram muito tempo, pois foram sabiamente seus palácios, seu espírito enfraquecia-se, sua
governadas e o império era menos extenso do
vida encurtava, a família declinava; os podero
que o foi mais tarde. Mas, de um modo geral,
sos fortalecem-se, os eunucos adquirem repu
pode-se dizer que todas essas dinastias come
çaram muito bem. Na China, a virtude, a vigi tação e apenas crianças sobem ao trono; o
lância, a atenção são necessárias. Elas existi palácio torna-se inimigo do império; um povo
ram no início das dinastias e faltaram no final. ocioso que o habita arruina os que trabalham,
De fato, era natural que os imperadores, edu o imperador é morto ou destruído por um
cados nas fadigas da guerra, conseguissem usurpador que estabelece uma dinastia, cujo
destronar uma família mergulhada numa vida terceiro ou quarto herdeiro ainda se encerrará
cômoda, conservassem as virtudes que tinham no mesmo palácio.
Capítulo VIII
Da continência pública2 7 8
creveram da república não somente o vício corrompidas, que dá um preço a todas as insig
como também sua própria aparência. Baniram nificâncias e rebaixa o que é importante, fazen
até mesmo esse comércio de galanteria que do com que as pessoas se orientem apenas
produz a ociosidade, que faz com que as pelas máximas do ridículo que as mulheres jul
mulheres corrompam antes mesmo de serem gam tão necessário estabelecer.
Capítulo IX
As mulheres têm pouco recato nas monar possuem várias mulheres e mil considerações
quias, pois as distinções sociais, çhamando-as obrigam-nos a conservá-las isoladas.
à corte onde o espírito de liberdade é quase o Nas repúblicas, as mulheres são livres pelas
único tolerado, por ele tomarão gosto. Todos leis e prisioneiras pelos costumes; o luxo é ba
nido delas, levando consigo a corrupção e os
se servem de seus prazeres e de suas paixões
vícios.
para aumentar a fortuna; e, como sua fraqueza
Nas cidades gregas, em que não se vivia sob
não lhes permite o orgulho mas a vaidade, o esta religião que estabelece que a pureza dos
luxo sempre impera com ela. costumes, mesmo entre os homens, é uma par
Nos Estados despóticos, as mulheres não cela da virtude; nas cidades gregas, em que o
introduzem o luxo, pois elas próprias são um vício cego reinava desenfreadamente, em que o
objeto de luxo e devem ser completamente amor possuía apenas uma forma que não ouso
escravizadas. Cada um acompanha o espírito dizer qual seja, enquanto só a amizade refugia-
ra-se no casamento2 7 9; a virtude, a castidade,
do governo e leva para casa o que vê estabele a simplicidade das mulheres eram tais, que
cido alhures. Como as leis são severas e de dificilmente se encontrou povo que tivesse tido
imediata execução, teme-se que a liberdade das a esse respeito melhores costumes280.
mulheres crie problemas. Suas tolices, suas
indiscrições, suas repugnâncias, suas tendên 2 79 “Quanto ao verdadeiro amor”, diz Plutarco*,
cias, seus ciúmes, suas implicâncias, esta arte “as mulheres não o possuem em parte alguma.”
Obras Morais, tratado Do Amor, pág. 600. Ele fala
que os espíritos insignificantes possuem de va como seu século. Vede Xenofonte no diálogo
predispor-se contra os grandes, não poderíam intitulado Hieron. (N. do A.)
deixar de ter consequências. * Ou pelo menos um dos personagens de Plutarco.
2 80 Em Atenas existia um magistrado particular
Além disso, como nesses Estados os prínci que velava pelo comportamento das mulheres. (N.
pes divertem-se com a natureza humana, eles do A.)
Capítulo X
Os romanos não possuíam, como os gregos, magistradura estabelecida entre os gregos2 82.
magistrados particulares que inspecionassem o O marido convocava os pais da mulher e a
procedimento das mulheres. Os censores ape
nas as vigiavam como o resto da república. A
instituição do tribunal doméstico281* supriu a 2 82 Vede, em Tito Lívio, liv. XXXIX,.o uso que se
fez desse tribunal quando da conjuração das baca
nais: as assembléias, em que se corrompiam os cos
281 Segundo Dionísio de Halicarnasso, liv. II, pág. tumes das mulheres e dos jovens, eram chamadas
96, Rômulo instituiu esse tribunal. (N. do A.) conjurações contra a república. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 113
julgava diante deles283. Este tribunal manti mentos da modéstia, quase não pode ser
nha os costumes na república, mas esses mes abrangido num código de leis. É fácil regula
mos costumes mantinham esse tribunal que mentar com leis o que se deve aos outros; é
devia julgar não somente da violação das leis difícil abranger nas leis tudo que se deve a si
como também da dos costumes. Ora, para jul mesmo.
gar da violação dos costumes é preciso tê-los. O tribunal doméstico regulamentava o com
As penas desse tribunal deviam ser arbitrá portamento geral das mulheres. Porém havia
rias, e efetivamente o eram, pois tudo que se um crime que, além da animadversão desse tri
relaciona com os costumes, com os manda- bunal, era ainda submetido a uma acusação
pública: era o adultério; seja porque, numa
283 Segundo Dionísio de Halicarnasso, liv. II, pela
república, tão grande violação dos costumes
instituição de Rômulo o marido, em casos ordiná interessasse ao governo, seja porque o desre-
rios, julgava sozinho diante dos pais da esposa e. gramento da esposa levantasse suspeita sobre
nos grandes crimes, julgava com cinco dentre eles. o do marido; seja, enfim, porque se temesse
Assim Ulpiano, no título VI, 9, 12 e 13, distingue que as próprias pessoas honestas preferissem
nos julgamentos dos costumes os que chama graves'
dos que o eram menos: mores graviores, mores ocultar esse crime a puni-lo, ignorá-lo a
leviores. (N. do A.) vingá-lo.
Capítulo XI
Como o tribunal doméstico supunha a exis mais para o término da acusação pública.
tência de costumes, a acusação pública tam Temia-se que um cidadão desonesto, ofendido
bém o supunha; e isto fez com que estas duas pelo desprezo de uma mulher, indignado com
coisas caíssem com os costumes e desapare suas recusas e mesmo exasperado com sua vir
cessem com a república2 8 4. tude, resolvesse planejar sua perda. A lei Júlia
O estabelecimento das questões perpétuas, ordenava que só se poderia acusar uma mulher
isto é, da divisão da jurisdição entre os preto- de adultério depois de ter acusado seu marido
res, e o costume, cada vez mais generalizado, de favorecer seus desregramentos; isso muito
de que esses próprios pretores julgassem todas restringiu esta acusação e, por assim dizer,
as questões2 8 5 enfraqueceram a prática do tri anulou-a2 8 6.
bunal doméstico, fato que se revela pela sur Sisto V pareceu querer renovar a acusação
presa dos historiadores que olhavam os julga pública2 8 7. Mas basta refletir um pouco para
mentos que Tibério mandou proferir por esse ver que esta lei, numa monarquia tal como a
tribunal como acontecimentos singulares e sua, era ainda mais imprópria que em qualquer
como renovação da antiga prática. outra.
O estabelecimento da monarquia e as trans
formações dos costumes contribuíram ainda284 28 6 Costantino suprimiu-a inteiramente. “È uma
coisa indigna”, dizia ele, “que casamentos felizes
sejam perturbados pela audácia de estranhos.” (N.
284 Judicio de moribus (quod antea quidem in anti- do A.)
quis legibus positum erat, non autem frequenta- 2 8 7 Sisto V ordenou que um marido que não fosse
baiur) penitus abolito. Liv. II, § 2. Cod. De Repud. lamentar-se da devassidão da esposa seria punido
(N. do A.) com a morte. Vede Leti, Vida de Sisto V. (N. do A.)
2 8 5 jUÍ]icia extraordinária. (N. do A.)
114 MONTESQUIEU
Capítulo XII
As instituições dos romanos colocavam as Pelos diversos códigos das leis dos bárbaros
mulheres sob uma tutela perpétua, a menos percebe-se que, entre os primeiros germanos,
que estivessem sob a autoridade do marido288 as mulheres também estavam sob tutela perpé
Esta tutela era outorgada ao parente mascu tua291. Este costume passou para as monar
lino mais próximo e parece, por uma expressão quias que eles fundaram, mas não subsistiu.
vulgar2 89, que elas ficavam muito constran
gidas. Isto era conveniente na república e
desnecessário na monarquia2 90. 2 90 A lei papiana ordenou, na época de Augusto,
que as mulheres que tivessem três filhos ficariam li
vres dessa tutela. (N. do A.)
2 88 Nisi convenissent in manum viri. (N. do A.) 291 Esta tutela denominava-se entre os germanos,
2 89 Ne sis mihipatruus oro. (N. do A.) Mundeburdium. (N. do A.)
Capítulo XIII
A lei Júlia estabeleceu uma pena contra o Nos historiadores encontram-se relatos de
adultério. Mas muito longe de ser esta lei, e as severos julgamentos proferidos, na época de
que depois foram calcadas sobre ela, sinal de Augusto e de Tibério, contra a impudicícia de
retidão dos costumes, foram, pelo contrário, algumas senhoras romanas; mas, ao nos faze
uma marca de sua depravação. rem conhecer o espírito desses reinados, permi-
Na monarquia, todo sistema político rela tem-nos também conhecer o espírito desses
tivo às mulheres transformou-se. Não se trata julgamentos.
va mais de estabelecer a pureza dos costumes,
Augusto e Tibério pensaram principalmente
entre elas, mas de punir esses crimes porque
em punir as devassidões de seus familiares.
não mais se puniam as violações, que não
eram absolutamente esses crimes.
292 Como lhe tivessem levado um jovem que des-
A espantosa dissolução dos costumes obri posarâ uma mulher com quem tivera anteriormente
gava muitos imperadores a estabelecer leis relações ilícitas, hesitou muito tempo, não ousando
para deter, até certo ponto, a impudicícia, mas nem aprovar nem punir essas coisas. Finalmente,
sua intenção não foi corrigir os costumes em tomando consciência, disse: “As sedições têm sido
geral. Fatos positivos, relatados por historia a causa de grandes males: esqueçamo-las”. (Dion,
dores, provam isso mais do que todas essas leis liv. LIX, cap. XVI.) Tendo os senadores lhe pedido
poderíam provar o contrário. Pode-se ver em regulamentos sobre os costumes das mulheres,
subtraiu-se a esta exigência dizendo-lhes que corri
Dion o procedimento de Augusto a este res
gissem suas mulheres como ele corrigia a sua. Dian
peito e como ele se subtraiu, tanto em sua pre- te dessa resposta, os senadores rogaram-lhe que dis
tura como em sua censura, aos pedidos que lhe sesse como ele procedia com sua mulher (pergunta,
foram feitos232. parece-me, muito indiscreta). (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 115
Não puniam o desregramento dos costumes pena aplicada pela lei Júlia, restabelecia contra
mas um certo crime de impiedade ou de lesa- ela o tribunal doméstico2 9 6.
majestade293 que tinham inventado, útil para Estas disposições concernentes às mulheres
o respeito, útil para sua vingança. Por isso os apenas diziam respeito às famílias dos senado
autores romanos protestaram tão ardente res e não às do povo. Procuravam-se pretextos
mente contra esta tirania. para acusações contra os poderosos e o mau
A pena da lei Júlia era muito leve29 4. Os comportamento das mulheres podia fornecer
imperadores quiseram que, nos julgamentos, se inúmeros.
aumentasse a pena da lei que haviam feito. Isto
Disse eu, finalmente, que a bondade dos
foi objeto das invectivas dos historiadores.
costumes não é o princípio do governo de uma
Eles não examinavam^se as mulheres mere
ciam ser punidas, mas se para puni-las a lei só pessoa, fato que nunca se verificou tão bem
tinha sido violada. como na época desses primeiros imperadores;
Uma das principais tiranias de Tibério295 e, se existisse dúvida quanto a isso, bastaria ler
foi o abuso que fez das antigas leis. Quando Tácito, Suetônio, Juvenal e Marcial.
queria punir alguma senhora romana, além da
priscis verbis obtegere*. Tácito, Anais, liv. IV, cap.
2 93 Culpam inter viros et feminas vulgatam gravi XIX. (N. do A.)
nomine laesarum religionum ac violatae majestatis * “Era um aspecto característico de Tibério ocultar
appellando, clementiam majorum suasque ipse leges sob termos antigos crimes recentes.”
egrediebatur*. Tácito, Anais, liv. III, cap. XXIV. 2 9 6 Adulterii graviorem poenam deprecatus, ut,
(N. do A.) exemplo majorum, propinquis suis ultra ducente-
* “Atribuindo a uma falta que se tornou tão simum lapidem removeretur suasit. Adultero Man-
comum entre os homens e as mulheres essas desig lio Italia atque África interdictum est*. Tácito,
nações agravantes do sacrilégio e lesa-majestade, Anais, liv. II, cap. L. (N. do A.)
ele ultrapassava os limites fixados pela clemência de * “Ele fez baixar em seu favor (de Varilla) as penas
nossos antepassados e suas própriàs leis.” do adultério e foi de opinião que, segundo o uso dos
2 9 4 Esta lei é citada no Digesto mas não foi aplica antepassados, a família a deportasse a duzentas mi
da. Julga-se que ela era apenas de relegação, pois a lhas de Roma, Mânlio, seu cúmplice, viu-se proi
de incesto só era de deportação. L. Si quis viduam, bido de penetrar na Itália e na África.” Observou-se
ff. De quest. (N. do A.) que se tratava de um abrandamento e não de um
2 9 5 Proprium id Tiberio fuit, scelera nuper reperta agravamento da pena que Tibério exigia.
Capítulo XIV
Falamos da incontinência pública porque quando elas exigiram a revogação da lei Ôpia.
ela caminha com o luxo, o qual sempre a Valério Máximo atribui a época de luxo entre
seguiu, e sempre por ela é seguido. Se deixar os romanos à ab-rogação dessa lei.
des em liberdade os movimentos do coração,
como podereis conter as fraquezas do espírito? 2 9 7 “Em parte alguma se diz que essas três leis te
nham sido levadas à solicitação ou requisição dos
Em Roma, além das instituições gerais, os censores. Os cônsules e tribunos que as levaram
censores mandaram fazer, pelos magistrados, cumpriram sua obrigação, sem que houvesse neces
sidade de serem estimulados pela intervenção dos
várias leis especiais para conservar as mulhe censores. As leis Fânia e Licínia não diziam res
res na frugalidade. As leis Fânia, Licínia e peito especialmente às mulheres. Regulamentavam
e moderavam a despesa da mesa.” (Nota de Crévier
Ópia tiveram esse objetivo2 9 7. É necessário retomada por Laboulaye.)
ver em Tito Lívio298 como o senado agitou-se 2 9 8 Década IV, liv. IV. (N. do A.)
116 MONTESQUIEU
Capítulo XV
Os dotes devem ser consideráveis nas domésticos e as atrai, mesmo contra vontade,
monarquias a fim de que os maridos possam aos cuidados de suas casas. A comunidade dos
conservar sua posição social e o luxo estabele bens não é menos conveniente na república,
cido. Devem ser medíocres nas repúblicas em onde as mulheres são mais virtuosas; mas ela
que o luxo não deve vigorar2 99. Devem ser seria absurda nos Estados despóticos onde,
quase nulos nos Estados despóticos, em que as quase sempre, as próprias mulheres são uma
mulheres são, de alguma maneira, escravas. parte da propriedade do senhor.
A comunidade dos bens, introduzida pelas Como as mulheres, por seu estado, são
leis francesas entre o marido e a esposa, é deveras propensas ao casamento, os ganhos
muito conveniente no governo monárquico
que a lei lhes confere sobre os bens de seus
porque interessa as mulheres nos assuntos
maridos são inúteis. Porém isso seria muito
pernicioso numa república porque suas rique
2 99 Marselha foi a república mais sábia de sua zas particulares produzem o luxo. Nos Estados
época. Os dotes não podiam ultrapassar cem escu
dos em dinheiro, e cinco em vestuários, diz Estra- despóticos, os dotes de núpcias devem consti-
bão, liv. IV. (N. do A.) tuir-se da sua subsistência e nada mais.
Capítulo XVI
Os samnitas tinham um costume que devia dos jovens apenas as belas qualidades e os ser
produzir efeitos admiráveis numa pequena viços prestados à pátria. O que possuísse em
república e sobretudo na situação em que se maior grau estas espécies de bens escolhia uma
encontrava a deles. Todos os jovens eram reu jovem em toda a nação. O amor, a beleza, a
nidos e julgados. O que fosse declarado melhor castidade, a virtude, o nascimento, as próprias
de todos, tomava para esposa a jovem que riquezas, tudo isto, por assim dizer, era o dote
desejasse; o que tivesse mais votos, depois da virtude. Seria difícil imaginar uma recom
pensa mais nobre, maior, menos onerosa para
dele, escolhería a seguir, e assim por dian um pequeno Estado, mais capaz de atuar sobre
301. Era admirável considerar entre os bens
te300 ambos os sexos.
Os samnitas descendiam dos lacedemônios,
300 “O autor”, observou Dupin, “tomou aqui os e Platão, cujas instituições nada mais são do
sunitas, povo da Sarmácia, por samnitas, povo da que o aperfeiçoamento das leis de Licurgo,
Itália. Stobes chama-os Sunilae. ” (Nota retomada criou uma lei quase semelhante302.
por Laboulaye.)
301 Fragmento de Nicolau de Damasco, extraído
de Stobes, na Coletânea, de Constantino Porfirogê- 302 Permite-lhes mesmo verem-se mais frequente
neto. (N. do A.) mente. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 117
Capítulo XVII
É contra a razão e contra a natureza que as não descendem de mãe do mesmo sangue, as
mulheres sejam senhoras na casa, como se filhas que possuem mae de sangue real suce
estabeleceu entre os egípcios303, mas não o é dem304. Confere-se-lhes um certo número de
que governem um império. No primeiro caso, pessoas para ajudá-las a suportar o peso do
o estado de fraqueza em que se encontram não
lhes permite a preeminência; no segundo, sua governo. Na África, segundo Smith30 5, tam
própria fraqueza lhes dá mais suavidade e bém se encaram com naturalidade governos de
moderação, virtudes que, mais do que a intran mulheres. Se acrescentarmos a isso o exemplo
sigência e a ferocidade, podem permitir um da Moscóvia e da Inglaterra, veremos que elas
bom governo. obtiveram igualmente êxito, tanto no governo
Nas índias, acha-se muito natural o governo moderado como no despótico.
das mulheres e estabeleceu-se que, se os varões
30 4 Lettres Edifiantes, 14.a coleção. (N. do A.)
303 Ver a XXXVIII das Lettres Persanes e o canto 30 5 Viagem a Guiné, segunda parte, sobre o reino
III do Temple de Cnide. de Angola, na Costa do Ouro. (N. do A.)
LIVRO OITAVO
DA CORRUPÇÃO DOS PRINCÍPIOS
NOS TRÊS GOVERNOS
Capítulo I
Capítulo II
Corrompe-se o espírito da democracia não go”, diz Cármides, “por causa de minha
somente quando se perde o espírito de igualda pobreza. Quando era rico, era obrigado a pres
de, mas ainda quando se quer levar o espírito tar homenagens aos caluniadores, sabendo
de igualdade ao extremo, procurando cada um muito bem que estava mais em condição de ser
ser igual àquele que escolheu para comandá-lo. prejudicado por eles do que prejudicá-los: a
Então o povo, não podendo suportar o próprio república exigia-me sempre alguma nova con
poder que escolheu, quer fazer tudo por si só: tribuição; não podia ausentar-me. Desde que
deliberar pelo senado, executar pelos magis sou pobre, adquiri autoridade; ninguém me
trados e destituir todos os juizes. ameaça mas eu ameaço os outros; posso partir
Não pode mais haver virtude na república. ou permanecer. Os ricos já se levantam de seus
O povo quer exercer as funções dos magis lugares e me cedem a prioridade. Sou um rei,
trados que não são, portanto, mais respeitados. era escravo; pagava um tributo à república,
As deliberações do senado não têm mais força, hoje ela me sustenta; não receio mais perder,
não havendo, assim, mais consideração pelos espero adquirir.”
senadores e consequentemente pelos anciãos. O povo cai nessa desgraça quando aqueles
E, se não mais se respeita aos anciãos, também em quem confia, procurando ocultar sua pró
não se respeitará aos pais, e os maridos não pria corrupção, buscam corrompê-lo. Para que
merecerão, igualmente, mais deferências, nem sua ambição não seja vista pelo povo, eles ape
os patrões tampouco merecerão submissão; nas falam da grandeza do povo; para que não
todos passarão a apreciar essa libertinagem; a se perceba sua avareza, elogiam incessante
pressão do comando fatigará tanto como a da mente a do povo.
obediência. As mulheres, as crianças, os escra A corrupção aumentará entre os corruptores
vos não se submeterão a pessoa alguma. Os e também entre os que já estão corrompidos. O
costumes, o amor pela ordem desaparecerão. povo distribuirá entre si toda a fazenda pública
Enfim, não mais existirá a virtude. e, como terá unido a gestão dos negócios à sua
Vê-se no Banquete de Xenofonte30 6 uma preguiça, desejará reunir à sua pobreza os
pintura muito ingênua de uma república em divertimentos do luxo. Mas, com sua preguiça
que o povo abusou da igualdade. Explica cada e seu luxo, terá como objetivo apenas o tesou
conviva, por sua vez, a razão por que está con ro público.
tente consigo mesmo. “Estou contente comi Ninguém deverá se espantar se votos forem
comprados a dinheiro. Não se pode dar muito
30 6 No cap. IV; cf. Platão, República, liv. VIII. ao povo sem retirar dele ainda mais; porém
122 MONTESQUIEU
para retirar dele é necessário subverter o Esta mencionado em sua história, experimentou
do. Quanto mais o povo pensa aproveitar de desgraças que a simples corrupção não pro
sua liberdade, mais se aproximará do momen duz. Essa cidade, sempre na licença3 0 9 ou na
to em que deve perdê-la. Cria pequenos tiranos opressão, igualmente trabalhada por sua liber
que possuem todos os vícios de um só. Em dade e por sua servidão, recebendo sempre a
breve, o que resta da liberdade torna-se uma e a outra como a uma tempestade, e, ape
insuportável: surge um único tirano; o povo sar de seu poderio no exterior, sempre condu
perde tudo, até mesmo as vantagens de sua zida a uma revolução pela mais fraca força
corrupção. estrangeira, tinha em seu seio um povo imenso,
A democracia deve, portanto, evitar dois ao qual só restava essa cruel alternativa de se
excessos: o espírito de desigualdade, que a entregar a um tirano ou de sê-lo ele
conduz à aristocracia ou ao governo de um só; mesmo3 ■ °.
e o espírito de igualdade extrema, que a con
duz ao despotismo de um só, assim como o
3 0 7 Vede Plutarco, nas Vidas de Timoleão e de
despotismo de um só acaba pela conquista. Dion. (N. do A.)
É verdade que aqueles que corromperam as 308 É o dos seiscentos, de que fala Diodoro, liv.
repúblicas gregas nem sempre se tornaram XIX, cap. V. (N. do A.)
tiranos. É que eles eram mais afeiçoados à 309 Tendo expulsado os tiranos, fizeram cidadãos
eloquência do que à arte militar, além de exis os estrangeiros e os soldados mercenários, o que
acarretou guerras civis. Aristóteles, Política, liv. V,
tir no coração de todos os gregos um ódio cap. III. Tendo o povo sido a causa da vitória sobre
implacável contra os que derrubavam o gover os atenienses, a república foi transformada, ibid.,
no republicano. Isso fez com que a anarquia cap. IV. A paixão de dois jovens magistrados, um
degenerasse em aniquilamento, ao invés de se dos quais roubou ao outro um mancebo, tendo esse
seduzido sua mulher, modificou a forma dessa repú
transformar em tirania. blica, ibid., liv. VII, cap. IV. (N. do A.)
Mas Siracusa, que se encontrou situada em
310 Aqui Montesquieu inspira-se em Cícero, De
meio de um grande número de pequenas Rep., liv. I, cap. XLIII-XL1V, e em Platão, Repú
oligarquias transformadas em tiranias30 7 ; Si blica, liv. VIII. As vezes segue este último ao pé da
racusa, que tinha um senado30 8 quase nunca letra.
Capítulo III
Assim como o céu está afastado da terra, o percam e apenas retornam à igualdade pelas
verdadeiro espírito de igualdade o está do espí leis.
rito de igualdade extrema. O primeiro não con Tal é a diferença entre a democracia regula
siste em fazer de maneira que todos comandem mentada e a que não o é, que, na primeira, é-se
ou ninguém seja governado; mas em obedecer
igual apenas como cidadão, e na outra ainda
e comandar seus iguais. Não procura não ter
se é igual como magistrado, senador, juiz, pai,
senhores, mas apenas ter seus iguais por
marido e senhor.
senhores.
No seu estado natural, os homens nascem O lugar natural da virtude é junto à liberda
numa verdadeira igualdade, mas não podem de; mas ela não se encontra mais perto da
permanecer nela. A sociedade faz com que a liberdade extrema do que da servidão.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 123
Capítulo IV
Os grandes êxitos, sobretudo aqueles para maneira que a derrota dós atenienses arruinou
os quais o povo contribui muito, lhe dão um a república de Siracusa312.
tal orgulho, que não é mais possível conduzi- A de Marselha nunca experimentou estas
lo. Sua inveja dos magistrados transforma-se grandes transições da decadência à grandeza:
destarte, ela governou-se sempre com sabedo
em inveja da magistratura; inimigo dos que
ria; assim, ela conservou seus princípios.
governam, logo o é da constituição. Foi assim
que a vitória de Salamina sobre os persas cor 311 Aristóteles, Política, liv. V, cap. IV. (N. do A.)
rompeu a república de Atenas311 e foi dessa 312 Ibid. (N. do A.)
Capítulo V
A aristocracia corrompe-se quando o poder hereditária torna, pois, o governo menos vio
dos nobres torna-se arbitrário: não mais pode lento; mas, como existe pouca virtude, cair-se-
haver virtude nos que governam nem nos que á num espírito de negligência, de preguiça e de
são governados. abandono, o que faz com que o Estado não
Quando as famílias reinantes observam as tenha mais força nem iniciativa31 4.
leis, trata-se de uma monarquia que possui vá Uma aristocracia pode manter a força de
rios monarcas e que é excelente por sua nature seu princípio se as leis são tais que façam sen
za; quase todos esses monarcas estão ligados tir aos nobres mais os perigos e as fadigas do
pelas leis. Mas quando elas não são observa comando que suas delícias; e se o Estado está
das, trata-se de um Estado despótico que pos numa tal situação que tenha algo a temer; e
sui vários déspotas. que a segurança venha de dentro e a incerteza,
Nesse caso, a república só subsiste em rela de fora.
ção aos nobres e somente entre eles. Ela está Como uma certa confiança faz a glória e a
no corpo que governa e o Estado despótico segurança de uma monarquia, é mister, ao
está no corpo que é governado. Isso é o que faz contrário, que uma república tema alguma
com que eles sejam os dois corpos mais desu coisa31 5. O temor aos persas mantém a lei
nidos do mundo. entre os gregos. Cartago e Roma intimida
Extrema corrupção existe quando os nobres ram se mutuamente e consolidaram-se. Coisa
tornam-se hereditários3 1 3 e quase não podem singular! Quanto mais segurança esses Esta
ter moderação. Se são em pequeno número, dos possuem, mais, como as águas muito tran
seu poder é maior mas sua segurança diminui; quilas, eles estão sujeitos a se corromper.
se são em maior número, seu poder é menor, e
sua segurança, maior: de maneira que seu 31 4 Veneza é uma das repúblicas que mais bem
poder vai crescendo e a segurança diminuindo, corrigiram, por suas leis, os inconvenientes da aris
até o déspota, em cuja cabeça está o excesso tocracia hereditária. (N. do A.)
do poder e do perigo. 31 5 Justino atribui à morte de Epaminondas a
O grande número de nobres na aristocracia313 extinção da virtude em Atenas. Não mais existindo
emulação, despenderam suas rendas em festas,
frequentius caenam quam castra visentes. Então, os
313 A aristocracia transforma-se em oligarquia. macedônios saíram da obscuridade. Liv. VI, cap.
(N. do A.) IX. (N. do A.)
124 MONTESQUIEU
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
O inconveniente não surge quando o Estado governada pelos costumes. Porém, se por um
passa de um governo moderado a outro gover longo abuso do poder, se por uma grande con
no moderado, como da república à monarquia, quista, o despotismo se estabelecesse até um
ou da monarquia à república, mas quando cai certo ponto, não haveria costumes nem clima
que o contivessem; e nesta bela parte do
e se precipita do governo moderado ao mundo a natureza humana sofreria, ao menos
despotismo. por algum tempo, os insultos que lhe são feitos
A maior parte dos povos da Europa é ainda nas outras três.
Capítulo IX
A nobreza inglesa amortalhou-se com Car Quando tantos príncipes dividiam entre si seus
los I sob os destroços do trono; e, antes disso, Estados, todas as peças de sua monarquia,
quando Filipe II fez chegar aos ouvidos dos imóveis e sem ação, caíam, por assim dizer,
franceses a palavra de liberdade, a coroa foi umas sobre as outras. Só havia vida nessa
sempre sustentada por esta nobreza que se
nobreza que se indignou, esqueceu tudo para
atém à honra de obedecer a um rei, mas que
combater e acreditou que lhe era glorioso pere
considera suprema infâmia partilhar o poder
cer e perdc ar3 2 3.
com o povo.
Viu-se a casa de Áustria trabalhar sem tré
gua para oprimir a nobreza húngara. Ignorava 323 Evidentemente, Montesquieu considera aqui a
de que valor ela lhe seria um dia. Procurava, atitude dos nobres húngaros na guerra da sucessão
da Áustria de 1741 a 1748 e no Moriamur pro rege
entre essas populações, dinheiro que aí não nostro Maria-Theresa: morramos por nosso rei
existia. Não via os homens que lá estavam. Maria Teresa.
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Não houve povo, diz Tito Lívio333, em que Inutilmente os tribunos proclamaram que nin
a devassidão se tenha introduzido tão tardia guém estava mais submetido a esse juramento,
mente e a moderação e a pobreza tenham sido que quando o tinham feito Quíncio não era um
tão longamente honradas como entre os homem público: o povo foi mais religioso do
romanos. que os que pretenderam orientá-lo; não deu
O juramento teve tanta força entre esse povo ouvidos nem às distinções nem às interpreta
que nada o ligou mais às leis. Muitas vezes, ele ções dos tribunos.
fez, para cumpri-lo, coisas que nunca teria Quando o mesmo povo quis retirar-se para
feito pela glória ou pela pátria. o Monte Sagrado, sentiu-se preso ao juramento
Quíncío Cíncinato, cônsul, desejando levan que havia feito aos cônsules de segui-los na
tar, na cidade, um exército contra os équos e guerra33 5; fez planos de matá-los; fizeram-lhe
volscos, chocou-se contra a oposição dos tri compreender" que o juramento ainda subsistia.
bunos. “Muito bem”, exclamou ele, “que todos Podemos avaliar, pelo crime que pretendia
os que prestaram juramento ao cônsul do ano cometer, a idéia que esse povo tinha da viola
precedente marchem sob minha bandeira33 4.” ção do juramento.
Depois da batalha de Canes, o povo aterro
333 Liv. I. Inpraefat. (N. do A.) rizado quis refugiar-se na Sicília33 6. Cipião
33 4 Tito Lívio, liv. III, cap. XX*. (N. do A.) obrigou-o a jurar que permanecería em Roma;
* Trata-se, na realidade, manda observar Crévier,
não do cônsul do ano precedente — os soldados te-
riam sido desobrigados de seu juramento —, mas 33 5 Tito Lívio, liv. II, cap. XXXII. (N. do A.)
do cônsul do ano em curso, que fora morto e substi 33 6 Não o povo, mas somente alguns militares
tuído por Cincinato. derrotistas. Cf. Tito Lívio, XXII-53.
128 MONTESQUIEU
o temor de violar o juramento superou qual- por duas âncoras no meio da tempestade: a
quer outro temor. Roma era um barco seguro religião e os costumes.
Capítulo XIV
33 7 Política, liv. II, cap. XI. 3 40 Vede Dion, liv. XXXVIII; vida de Cícero em
3 3 8 Aproximadamente cem anos depois. (N. do A.) Plutarco; Cícero a Ático, liv. IV, cartas X e XV;
33 9 Tito Lívio, XXIII-46. Ascónio sobre Cícero, De Divinatione. (N. do A.)
Capítulo XV
Capítulo XVI
É da natureza de uma república que seu Numa grande república, o bem comum ê
território seja pequeno; sem isso, ela dificil sacrificado a mil considerações, é subordinado
mente pode subsistir. Numa grande república às exceções, depende dos acidentes. Numa
há grandes fortunas e, consequentemente, república pequena, o bem comum é mais bem
pouca moderação nos espíritos; há enormes percebido, mais bem conhecido, mais próximo
depósitos a se colocar nas mãos de um cida de cada cidadão; os abusos são menos amplos
dão; os interesses individualizam se; um e, consequentemente, menos protegidos.
homem sente, em primeiro lugar, que poderá O que fez a Lacedemônia subsistir tanto
ser feliz, poderoso, sem sua pátria; e, logo, que tempo foi que, após todas as suas guerras, ela
só poderá ser poderoso sobre as ruínas da continuou sempre com seu território. O único
pátria. objetivo da Lacedemônia era a liberdade; a
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 129
única vantagem de sua liberdade era a glória. que qualquer outro governp que não fosse o
Foi próprio do espírito das repúblicas gre republicano pudesse subsistir em apenas uma
gas contentar-se com suas terras e com suas cidade. Um príncipe de um Estado tão peque
leis. Atenas tornou-se ambiciosa e influenciou no procuraria, naturalmente, oprimir, porque
a Lacedemônia: mas isso foi mais para dirigir disporia de um grande poder e de poucos
povos livres do que para governar escravos; meios para fruí-lo ou para fazê-lo respeitar:
mais para ser a cabeça da união do que para tripudiaria, portanto, sobre muitos de seus
rompê-la. Tudo se perdeu quando uma monar povos. Por outro lado, tal príncipe seria facil
quia, governo cujo espírito está mais voltado mente oprimido por uma força estrangeira ou
para o engrandecimento, surgiu. mesmo por uma força interna; o povo poderia,
Sem circunstâncias específicas3 41 é difícil a qualquer momento, coligar-se e reunir-se
contra ele. Ora, quando um príncipe de uma
341 Como quando um pequeno soberano se man cidade é expulso dela, o processo terminou; se
tém entre dois grandes Estados graças à inveja ele possui várias cidades, o processo está ape
mútua deles; porém, só existe precariamente. (N. do
A.) nas começando.
Capítulo XVII
Capitulo XVIII
Que não se cite o exemplo da Espanha, pois logo que o abandonou suas dificuldades
ele prova antes o que eu disse. Para conservar aumentaram. Por um lado, os valões não qui
a América, ela fez o que o despotismo nunca seram ser governados pelos espanhóis e, por
fizera: aniquilou os habitantes. Fora preciso, outro lado, os soldados espanhóis não quise
para conservar sua colônia, mantê-la na ram obedecer aos oficiais valões3 42.
dependência de sua própria subsistência.
A monarquia espanhola experimentou im 3 42 Vede a Histoire des Provinces-Unies, por Le
plantar o despotismo nos Países-Baixos, mas Cierc. (N. do A.)
130 MONTESQUIEU
Ela só se manteve, na Itália, à força de enri- querido desfazer-se do rei da Espanha não
quecê-la e de se arruinar, pois os que tivessem estariam dispostos a renunciar a seu dinheiro.
Capítulo XIX
Um grande império supõe uma autoridade magistrado distante; que a lei seja ditada por
despótica naquele que governa. Cumpre que a apenas uma pessoa e que ela seja incessante
presteza nas resoluções supra a distância dos mente substituída, tal como os acidentes que se
lugares para onde são enviadas; que o temor multiplicam sempre no Estado, na proporção
impeça a negligência do governador ou do de sua grandeza.
Capítulo XX
Sendo a propriedade natural dos pequenos que para manter os princípios do governo esta
Estados serem governados como república, a belecido é necessário manter o Estado na gran
dos Estados de tamanho medíocre serem sub deza que já tinha; e que esse Estado mude de
metidos a um monarca, a dos grandes impérios espírito à medida que seus limites forem redu
serem dominados por um déspota, segue-se zidos ou ampliados.
Capítulo XXI
Do império da China
Antes de terminar este livro, responderei a Demais, nossos comerciantes estão longe de
uma objeção que se poderá fazer sobre tudo o nos darem a idéia desta virtude de que nos
que disse até aqui. falam os missionários: podemos consultá-los a
Nossos missionários falam-nos do vasto respeito das pilhagens dos mandarins3 4 4.
império da China como sendo um governo Recorro ainda ao testemunho do notável
admirável que inclui ao mesmo tempo em seu Milorde Anson.
espírito o temor, a honra e a virtude. Terei Aliás, as cartas do Padre Parennin sobre o
estabelecido, portanto, uma diferenciação inú processo que o imperador moveu aos príncipes
til quando coloquei os princípios dos três de sangue neófitos3 4 5, que lhe tinham desagra
governos. dado, permitem-nos perceber um plano cons
Ignoro o que seja essa honra de que se fala tantemente seguido, e injúrias metodicamente
entre povo que nada fazem senão a golpes de feitas à natureza humana, isto é, a sangue frio.
bastão3 43. Temos ainda as cartas do Senhor de Mairan
e do já citado Padre Parennin sobre o governo
da China. Após perguntas e respostas muito
3 43 É o bastão que governa a China, afirma o judiciosas, o maravilhoso dissipa-se.
Padre du Halde. Disc, de la Chine, t. II, pág. 134*.
(N. do A.)
* Parece aqui que a idéia que os “filósofos” tinham 3 4 4 Vede, entre outros autores, a relação de Lange.
da China e das bases da civilização chinesa era, (N. do A.)
pelo menos, tão superficial como a que dela ofere 3 4 5 Da mesma família de Surniama, Lettres Edi-
ciam os missionários. fiarites, 18.a coleção. (N. do A.-)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 131
LIVRO NONO
DAS LEIS EM SUA RELAÇÃO
COM A FORÇA DEFENSIVA
Capítulo I
Se uma república é pequena, ela é destruída mais necessárias do que atualmente. Uma ci
por uma força estrangeira; se é grande, dade débil corria os maiores perigos. A con
destrói-se por um vício interno. quista fazia-lhe perder não somente o poder
Esse duplo inconveniente contamina igual executivo e legislativo, tal como acontece hoje,
mente as democracias e as aristocracias, sejam como ainda tudo o que há de propriedade entre
elas boas ou más. O mal está na própria coisa: os homens2*.
nada há que o possa remediar. Esse tipo de república, capaz de resistir à
Assim, há grandes indícios de que os ho força exterior, pode manter-se em sua gran
mens teriam sido obrigados a viver sempre sob deza sem que o interior se corrompa: a forma
o governo de um só, se não tivessem imagi dessa sociedade previne todos os inconve
nado um tipo de constituição que possui todas nientes.
as vantagens internas do governo republicano
Quem pretendesse usurpar dificilmente po
e a força externa da monarquia. Refiro-me à
dería ser acreditado em todos os Estados
república federativa.
confederados. Se se tornasse muito poderoso
Esta forma de governo é uma convenção
em um, alarmaria todos os demais; se subju
pela qual vários corpos políticos consentem
gasse uma parte, a que ainda estivesse livre
em tornar-se cidadãos de um Estado maior que
poderia resistir com forças independentes das
querem formar. É uma sociedade de socieda
que estariam usurpadís e vencê-lo antes que
des, que dela fazem uma nova, que pode ser
tivesse acabado de estabelecer-se.
aumentada pela união de novos associados.
Foram essas associações que, durante tanto Se qualquer sedição ocorresse em um dos
tempo, fizeram florescer o corpo da Grécia. membros confederados, os outros poderíam
Através delas os romanos atacaram o univer apaziguá-lo. Se abusos se introduzissem em al
so, e somente através delas o universo defen guma parte, seriam corrigidos pelas outras
deu-se contra eles; e, quando Roma atingiu o partes sadias. Este Estado poderia perecer
ápice do poderio, foi por associações do outro numa das partes sem que as demais também
lado do Danúbio e do Reno, associações que o perecessem; a confederação poderia ser dissol
terror construíra, que os bárbaros puderam vida permanecendo os confederados sobera
resistir. nos.
E graças a tais associações que a Holanda1, Composta de pequenas repúblicas, gozaria
a Alemanha e as Ligas Suíças são encaradas, da benignidade do governo interno de cada
na Europa, como repúblicas eternas. uma e, no que diz respeito ao exterior, teria,
As associações das cidades, outrora, eram pela força da associação, todas as vantagens
das grandes monarquias.
1 Ela é composta de' aproximadamente cinquenta
repúblicas, todas diferentes uma das outras. Etat 2 Liberdade civil, bens, mulheres, crianças, tem
des Provinces-Unies, por Janisson. (N. do A.) plos e a própria sepultura. (N. do A.)
136 MONTESQUIEU
Capítulo II
Os cananeus foram destruídos porque cons que, quando os véios escolheram um rei, todas
tituíam pequenas monarquias que não estavam as pequenas repúblicas da Toscana3 os aban
confederadas e que não se defenderam conjun donaram. Na Grécia, tudo malogrou quando
tamente. É que a confederação não é da natu os reis da Macedônia obtiveram um lugar
reza das pequenas monarquias. entre os anfictiões4.
A república federativa da Alemanha com-
A república federativa da Alemanha, com
põe-se de cidades livres e de pequenos Estados
posta de príncipes e cidades livres, subsiste
submetidos a príncipes. A experiência demons
porque possui um chefe5 que é, por assim
tra que ela é mais imperfeita do que a da
Holanda e a da Suíça. dizer, o magistrado da união e, por assim
O espírito da monarquia é a guerra e o dizer, o monarca.
engrandecimento; o espírito da república é a
paz e a moderação. Esses dois tipos de gover 3 Da Toscana: Montesquieu entende sempre, por
nos só podem subsistir numa república federa Toscana, a Etrúria.
4 Deputados dos Estados gregos confederados,
tiva de modo anormal. membros das ligas anfictiônicas. (N. dos T.)
Desta maneira, vemos na história romana 5 Este chefe era o imperador.
Capítulo III
Capítulo IV
Da mesma maneira como as repúblicas Esse Estado comete contra ele próprio todo
garantem sua segurança, unindo-se, os Estados o mal que poderia cometer um inimigo cruel,
despóticos garantem-na, separando-se e man mas um inimigo que não se poderia deter.
tendo-se, por assim dizer, isolados. Sacrificam O Estado despótico se mantém por outra
uma parte do país, devastam as fronteiras e espécie de separação, que é feita colocando-se
tornam-nas desertas; o corpo do império tor as províncias afastadas nas mãos de um prín
na-se inacessível.
Admite-se, em geometria, que, quanto mais cipe que fica como seu feudatário. A Mongó
os corpos se estendem, mais sua circunferência lia, a Pérsia, os imperadores da China pos
torna-se relativamente pequena. Esta prática suem seu feudatário; e os turcos ficaram muito
de devastar as fronteiras é, portanto, mais tole satisfeitos por terem colocado, entre seus ini
rável nos grandes Estados do que nos medío migos e eles, os tártaros, os moldavos, os valá
cres. quios e, outrora, os transilvanos.
Capítulo V
Capítulo VI
Para que um Estado esteja em pleno pode tamanho requerido. As forças comunicam-se
rio, cumpre que sua grandeza seja tal, que exis tão bem, que se transportam no primeiro
ta uma relação entre a rapidez com a qual se momento para onde se pretende; os exércitos
pode executar contra ele qualquer ataque e a reúnem-se e passam rapidamente de uma fron
prontidão que ele pode empregar para neutrali- teira a outra e não se teme nenhuma das coisas
zá-lo. Como o agressor pode atacar em qual que precisam ser executadas num certo prazo.
quer parte, é necessário que os defensores tam Na França, por admirável felicidade, a capi
bém possam defender-se em qualquer parte e, tal encontra-se mais perto das diferentes fron
consequentemente, que o Estado seja de tama teiras, justamente na proporção da fraqueza
nho medíocre a fim de que seja proporcional delas, e o príncipe vê melhor cada parte de seu
ao grau de rapidez que a natureza ofereceu aos país, na medida em que está mais exposta1 °.
homens para se transportarem de um lugar a
outro. 10 Isso não deixa de ter os inconvenientes que
A França e a Espanha são precisamente do vimos.
138 MONTESQUIEU
Porém, quando um vasto Estado, tal como a da: trabalham por seus interesses particulares.
Pérsia, é atacado, são necessários vários meses O império dissolve-se, a capital é conquistada
para que as tropas dispersas possam reunir-se e o conquistador disputa as províncias aos
e não se pode forçar sua marcha durante tanto governadores.
tempo como se faz durante quinze dias. Se o O verdadeiro poder de um príncipe não con
exército que guarnece as fronteiras é derrota siste tanto na sua facilidade de conquistar mas
do, certamente ele dispersar-se-á porque suas na dificuldade que há em atacá-lo c, se assim
retiradas não podem ser curtas. O exército ouso falar, na imutabilidade de sua condição.
vitorioso, que não encontra resistência, avança Mas o engrandecimento dos Estados lhes reve
rapidamente, surge diante da capital e estabe la novos lados por onde podem ser conquista
lece o sítio, quando os governadores das dos.
províncias mal puderam ser avisados para en Desta forma, como os monarcas devem agir
viar socorro. Os que julgam estar próxima a com sabedoria para aumentar seu poder, não
revolução apressam-na não obedecendo mais, devem ter menos prudência a fim de limitá-lo.
pois os súditos, fiéis unicamente porque a Fazendo cessar os inconvenientes da peque
punição está próxima, não mais o serão a par nez, é mister que tenham em mente os inconve
tir do momento em que a punição está afasta nientes da grandeza.
Capítulo VII
Reflexões
Os inimigos de um grande príncipe, que rei Seu povo, que, nos países estrangeiros, só se
nou durante longo período11 , acusaram-no mil comove por aquilo que abandonou; que, sain
vezes, antes, creio, pelos temores que alimenta do de sua casa, considera a glória como o
vam do que por suas razões, de ter formado e supremo bem e, nos países distantes, como um
levado adiante o projeto da monarquia univer obstáculo a seu retorno; que descontenta por
sal. Se ele tivesse obtido êxito, nada teria sido suas próprias boas qualidades, porque a elas
mais funesto à Europa, a seus antigos súditos, parece acrescentar o desprezo; que pode
a ele, à sua família. O céu, que conhece as suportar os ferimentos, os perigos e as fadigas,
verdadeiras vantagens, serviu-o melhor pelas mas não a perda de seus prazeres; que nada
derrotas do que o teria feito pelas vitórias. Em aprecia tanto como sua alegria, e se consola de
lugar de torná-lo o único rei da Europa, favo- uma batalha perdida louvando o general,
receu-o mais, tornando-o o mais poderoso de nunca teria chegado até o fim de uma empresa,
todos. que não pode falhar num país sem falhar em
todos os demais, nem falhar um momento sem
11 Luís XIV. falhar para sempre.
Capitulo VIII
tado acha-se enfraquecido por causa do mal ção à regra geral, que ensina que não se
que subsiste sempre, e é ainda enfraquecido empreendam guerras longínquas, e esta exce
pelo remédio. ção confirma bem a regra, visto que só se apli
A máxima do Senhor de Coucy é uma exce ca àqueles mesmos que a violaram.
Capítulo IX
Toda grandeza, toda força, todo poderio é os grandes monarcas que posteriormente pos
relativo. É mister tomar cuidado para que, ao suiu. A Itália estava no mesmo caso. A Escó
se procurar aumentar a grandeza real, não se cia e a Inglaterra não formavam um corpo de
monarquia. Aragão não estava unido a Caste-
diminua a grandeza relativa.
la; as partes separadas da Espanha estavam
Pelos meados do reinado de Luís XIV, a enfraquecidas por isso e enfraqueciam-na. A
França atingiu o ponto mais alto de sua gran Moscóvia não era mais conhecida na Europa
deza relativa. A Alemanha não possuía ainda do que na Criméia.
Capítulo X
Quando se tem por vizinho um Estado que mais cômodo para um príncipe que estar junto
se encontra em decadência1*3, deve-se abster de de outro que receba por ele todos os golpes e
apressar sua ruína, porque se está, a este res
todos os ultrajes da fortuna. É raro que, pela
peito, na mais feliz situação, nada havendo de
conquista de tal Estado, se aumente tanto em
1 3 Supôs-se que Montesquieu estivesse aqui refe- poder efetivo quanto se perdeu em poder
rindo-se à Espanha. relativo.
LIVRO DÉCIMO
DAS LEIS EM SUA RELAÇÃO
COM A FORÇA OFENSIVA
Capítulo I
Da força ofensiva
A Torça ofensiva é regulada pelo direito das gentes, que é a lei política das nações, considera
das na relação que possuem entre si.
Capítulo II
Da guerra
A vida dos Estados é como a dos homens; destruí-lo, e que o ataque é, neste caso, o único
estes têm direito de matar em caso de defesa meio de impedir esta destruição.
natural; aqueles têm direito de fazer a guerra Disso resulta que as pequenas sociedades
para a sua própria conservação. têm mais amiúde o.direito de guerrear do que
No caso de defesa natural, tenho direito de as grandes, porque estão mais constantemente
matar porque minha vida me pertence, como a no caso de temer ser destruídas.
vida do que me ataca lhe pertence; do mesmo O direito de guerra decorre, portanto, da
modo, um Estado faz a guerra porque sua necessidade e do justo exato. Se os que dirigem
conservação é justa como qualquer outra a consciência ou os conselhos dos príncipes
conservação. não se atêm a isso, tudo está perdido; e, quan
Entre cidadãos, o direito de defesa natural do nos baseamos em princípios arbitrários de
não se relaciona com a necessidade de ataque. glória, conveniência, utilidade, ondas de san
Em lugar de atacar, basta recorrer aos tribu gue inundarão a terra.
nais. Só podem, portanto, exercer o direito Sobretudo, que não se fale da glória do prín
desta defesa em casos momentâneos em que se cipe: sua glória seria seu orgulho; é uma pai
estaria perdido se se esperasse o auxílio das xão e não um direito legítimo.
leis. Mas, entre sociedades, o direito de defesa Verdade é que a reputação de seu poder
natural acarreta, algumas vezes, a necessidade poderia aumentar as forças de seu Estado» mas
de atacar, quando um povo vê que uma paz a reputação de sua justiça também as aumen
mais longa poria o outro em condição de taria.
Capítulo III
Do direito de conquista’
Do direito da guerra decorre o da conquista, quatro gêneros de leis: a lei da Natureza, que
que lhe é consequente; deve, portanto, seguir- determina que tudo tenda para a conservação
lhe o espírito. das espécies; a lei do saber natural, que deter
Quando um povo é conquistado, o direito mina que façamos aos outros o que queremos
que o conquistador tem sobre ele obedece a que nos façam; a lei que forma as sociedades
144 MONTESQUIEU
políticas, que são de tal ordem que a Natureza Do direito de matar na conquista, os políti
não lhes limitou a duração; finalmente, a lei cos inferiram o de reduzir à escravidão, mas a
extraída da própria coisa. A conquista é uma consequência é tão mal fundamentada quanto
aquisição; o espírito de aquisição traz consigo o princípio.
o de conservação e de usufruto, e não o de Não se tem o direito de reduzir à servidão, a
destruição. não ser quando isso é necessário para a
Um Estado que conquistou outro trata-o de conservação da conquista. O objetivo da con
uma das quatro maneiras seguintes: continua a quista é a conservação; a servidão nunca é o
governá-lo segundo suas leis e só toma para si objetivo da conquista, mas pode acontecer que
o exercício do governo político e civil; ou lhe seja um meio necessário para a conservação.
dá novo governo político e civil; ou destrói a Neste caso, é contrário à natureza da coisa
sociedade e a dispersa em outra; ou, enfim, que esta servidão seja eterna. É necessário que
extermina todos os cidadãos. o povo escravizado possa tornar-se súdito. A
O primeiro modo é conforme o direito das escravidão na conquista é coisa acidental.
gentes que observamos atualmente; o quarto é Quando, depois de certo tempo, todas as par
mais conforme ao direito das gentes dos roma tes do Estado conquistador ligaram-se às do
nos1*4, no que deixo para julgar até que ponto Estado conquistado, por costumes, casamen
nos tornamos melhores. É necessário, aqui, tos, leis, associações e certa conformidade de
render homenagem a nossos tempos modernos, espírito, a servidão deve cessar, pois os direitos
à razão presente, à religião de hoje, à nossa do conquistador só estão baseados no que
filosofia, a nossos costumes. aquelas coisas não são, e há tal distância entre
Os autores de nosso direito público, basea as duas nações que uma não pode ter con
dos nas histórias antigas, tendo saído dos fiança na outra.
casos rígidos, incidiram em grandes erros. Assim, o conquistador que reduz o povo à
Opinaram arbitrariamente; presumiram nos servidão deve sempre reservar-se meios (e
conquistadores um direito, não sei qual, de esses meios são inumeráveis) para fazê-lo sair
matar; o que lhes fez inferir consequências dela.
terríveis, como o princípio de estabelecer má Não afirmo aqui coisas vagas. Nossos ante
ximas que os próprios conquistadores, quando passados que conquistaram o império romano
tiveram um mínimo de juízo, jamais seguiram. assim agiram. As leis que fizeram no fogo, na
É evidente que, uma vez consumada a conquis ação, na impetuosidade, no orgulho da vitória,
ta, o conquistador perde o direito de matar, já eles as amenizaram: suas leis eram duras, eles
que não se trata mais de defesa natural e de tornaram-nas imparciais. Os borguinhões, os
sua própria conservação. godos e os lombardos queriam sempre que os
O que os fez pensar desse modo foi terem romanos fossem o povo vencido: as leis de
acreditado que o conquistador tinha direito de Eurico, de Dondovaldo e de Rotáris fizeram
destruir a sociedade; de onde concluíram que do bárbaro e do romano concidadãos1 5. Car
tinha o de destruir os homens que a compõem, los Magno, para domar os saxões, tirou-lhes a
o que é consequência falsamente deduzida de condição de ingênuos e a propriedade dos
um princípio falaz; pois, pelo fato de ser ani bens. Luís, o Bonachão, libertou-os1 6. Nada
quilada a sociedade, não decorre que os ho fez de melhor em todo o seu reinado. O tempo
mens que a formam devam também ser aniqui e a servidão tinham abrandado seus costumes:
lados. A sociedade é a união dos homens e não
foram-lhe sempre fiéis.
os homeiis; o cidadão pode desaparecer, e o
homem subsistir.
1 5 Vede o Código das Leis dos Bárbaros e o liv.
XXVIII, ad-ante. (N. do A.)
1 4 Há aqui uma sistematização muito bem feita 1 6 Vede o autor duvidoso da vida de Luís, o Bona
para legitimar o sistema; os romanos não extermi chão, na coleção Duchesne, tomo II, pág. 296. (N.
naram tudo nos lugares que conquistaram. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 145
Capítulo IV
Em vez de extraírem do direito de conquista pelos contratadores serem aliviados pelo con
consequências tão fatais, os políticos teriam quistador, que não tinha nem os compro
feito melhor se tivessem falado das vantagens missos nem as necessidades que tinha o prín
que este direito pode, algumas vezes, trazer ao cipe legítimo. Os abusos eram corrigidos
povo .vencido. Tê-las-iam sentido melhor se mesmo sem que o conquistador os corrigisse.
nosso direito das gentes fosse exatamente
Algumas vezes, a frugalidade da nação
seguido e estabelecido em toda a terra.
conquistadora coloca-a em condição de deixar
Os Estados conquistados não estão, geral
aos vencidos o necessário que lhes era negado
mente, no vigor de sua instituição; a corrupção
sob o reinado do príncipe legítimo.
neles se introduziu; as leis deixaram de ser
executadas; o governo tornou-se opressor. Uma conquista pode destruir os precon
Quem pode duvidar que semelhante Estado ceitos nocivos e colocar, se ouso assim falar,
não aproveitasse e não tirasse algumas vanta um povo sob um melhor governo.
gens da própria conquista, se esta não fosse Que benefícios os espanhóis podiam prestar
destrutiva! Um governo que chegou ao ponto aos mexicanos? Tinham para dar-lhes uma
em que não pode mais reformar a si mesmo, religião amena: levaram-lhes uma superstição
que perdería em ser refundido? Um conquis furiosa. Teriam podido tornar livres Os escra
tador que invadiu um país em que, por meio de vos, e tornaram os homens livres escravos. Po
mil astúcias e de mil artifícios, o rico utilizou- diam esclarecê-los sobre o abuso dos sacrifí
se, insensivelmente, de uma infinidade de cios humanos; em vez disso, exterminaram-
meios de usurpar, em que o infeliz que geme, nos. Não acabaria nunca se quisesse relatar
vendo o que julgava abusos transformar-se em todos os benefícios que não fizeram e todos os
leis, vivendo sob a opressão, e julgando não ter males que fizeram.
razão de suportá-la, um conquistador, repito,
Cabe a um conquistador reparar parte dos
pode transformar tudo, e a tirania surda é a
males que causou. Defino da seguinte maneira
primeira coisa que sofre1 7 a violência.
o direito de conquista: um direito necessário,
Vimos, por exemplo, Estados oprimidos legítimo e negativo, que deixa sempre imensa
dívida a ser paga, a fim de ficar quites com a
1 7 Que sofre, que legitima. natureza humana.
Capítulo V
O mais belo tratado de paz de que nos fala a para esses últimos; ou, antes, estipulava a
História foi, creio, o que Gelon estabeleceu favor do gênero humano.
com os cartagineses. Quis que abolissem o Os bactrianos faziam com que os seus ve
costume de imolar seus filhos1 8. Coisa admi
lhos pais fossem comidos por grandes cães:
rável ! Após ter derrotado trezentos mil carta
gineses, exigia uma condição que só era útil Alexandre proibiu-lhes esta prática1 9; e foi um
triunfo que ele alcançou sobre a superstição.
18 Vede a Recueil de Barbeyrac (Histoire des
Anciens Traités, 1739), art. 112.(N. do A.) 1 9 Estralião, liv. XI.
146 MONTESQUIEU
Capítulo VI
É contra a natureza das coisas que, numa Hanon nunca teria podido persuadir o sena
constituição federativa, um Estado confede do a não enviar auxílio a Aníbal, se não tivesse
rado subjugue outro, como vimos em nossos feito apenas a sua inveja falar. Este senado,
dias entre os suíços20. Nas repúblicas federa que Aristóteles nos conta ter sido sábio (coisa
tivas mistas, em que a associação se realiza que a prosperidade dessa república tão bem
entre pequenas repúblicas e pequenas monar nos prova), só poderia ser determinado por
quias, isso é menos chocante. motivos sensatos. Teria sido necessário ser
É ainda contra a natureza da coisa que uma muito estúpido para não perceber que um exér
república democrática conquiste cidades que cito a trezentas léguas de distância necessaria
se recusaram a participar da esfera da demo mente sofria perdas que deveríam ser repara
cracia. Cumpre que o povo conquistado possa das.
fruir dos privilégios da soberania, tal como os O partido de Hanon queria que se entre
romanos estabeleceram inicialmente. Deve-se gasse Aníbal aos romanos22. Se no momento
limitar a conquista ao número de cidadãos que não se podia temer os romanos, temia-se
se fixará para a democracia. Aníbal.
Se uma democracia conquista um povo para Não se podia acreditar, dizem, nos êxitos de
governá-lo como súdito, ela arriscará sua pró Aníbal; mas como duvidar deles: os cartagine
pria liberdade porque confiará um poder muito ses, disseminados por toda a terra, ignoravam
grande aos magistrados que enviará ao Estado o que se passava na Itália? Foi por não o igno
conquistado. rarem que não se quis enviar reforços a
Em que perigo cairia a república de Cartago Aníbal.
se Aníbal se tivesse apoderado de Roma? Que Hanon tornou-se mais obstinado depois de
não teria feito à sua cidade, depois da vitória, Trébia, depois de Trasimeno, depois de Canes:
ele que ocasionou tantas revoluções após sua não foi sua incredulidade que aumentou; foi
derrota21? seu temor.
Capítulo VII
Capítulo VIII
Deste modo, quando uma república mantém governador informado23. Vimos frequente
algum povo sob sua dependência, é necessário mente povos exigirem privilégios: aqui o sobe
que procure reparar os inconvenientes surgidos rano concede o direito de todas as nações.
da natureza da coisa, outorgando-lhe um bom
23 De 18 de outubro de 1738, impresso em Gêno
direito político e boas leis civis. va, pelo editor Franchelli. Vietamo al nostro general
Uma república da Itália mantinha insulares governatore in detta isola, di condannare in avenire
solcmente ex informata conscientia persona alcuna
sob sua obediência. Entretanto, o direito polí naztonale in pena ajflittiva. Potrà ben si far arres-
tico e civil que lhes oferecia era corrompido. tare ed incarcerare le persone che gli saranno sos-
petie; salvo di renderne poi a noi conto sollecita-
Lembramo-nos deste ato de anistia estipulando mente, art. VI. Vede também a Gazette de
que só se condene a penas aflitivas estando o Amsterdam, de 23 de dezembro de 1738. (N. do A.)
Capítulo IX
Se uma monarquia pode agir durante longo seu antigo domínio serão normalmente sobre
tempo antes que o engrandecimento a tenha carregadas de exações. Elas devem suportar os
enfraquecido, ela se tornará temível e sua força novos e antigos abusos e, amiúde, uma vasta
perdurará por todo o tempo em que estiver capital, que tudo absorve, as despovoa. Ora,
pressionada por monarquias circunvizinhas. se, após ter conquistado em torno desse domí
Portanto, ela não deve conquistar senão nio, tratasse os povos vencidos como se trata
enquanto permanecer nos limites naturais de os antigos súditos, o Estado estaria perdido; o
seu governo. A prudência manda que pare tão que as províncias conquistadas enviassem de
logo ultrapasse esses limites. tributo à capital não mais lhes retornaria; as
É mister nesse gênero de conquista deixar as fronteiras seriam arruinadas e, consequente
coisas tal como foram encontradas: os mes mente, mais fracas, os povos seriam menos
mos tribunais, as mesmas leis, os mesmos cos dedicados; a subsistência dos exércitos que
tumes, os mesmos privilégios. Somente o exér devem aí permanecer e atuar seria mais
cito e o nome do soberano devem ser precária.
modificados. Tal é a situação necessária de uma monar
Quando a monarquia, pela conquista de quia conquistadora: luxo desenfreado na capi
algumas províncias vizinhas, ampliou seus tal, miséria nas províncias que dela se afastam,
limites, cumpre que ela as trate com grande abundância nas extremidades. É o que acon
brandura. tece com nosso planeta: o fogo está no centro,
Numa monarquia que durante muito tempo a vegetação na superfície; entre os dois, uma
se esforçou para conquistar, as províncias de terra árida, fria e estéril.
148 MONTESQUIEU
Capítulo X
Ocorre, algumas vezes, uma monarquia conquistar outra. Quanto mais esta última for
pequena, mais facilmente será contida por fortalezas; quanto maior for, mais facilmente será con
servada pelas colônias 2 4. 2 4 Maquiavel, O Príncipe, cap. III.
Capítulo XI
Nas conquistas, não basta permitir que a Dizem os historiadores2 5 que os franceses
nação vencida conserve suas leis; possivel foram expulsos nove vezes da Itália por causa
mente será mais necessário conservar seus cos da sua insolência com relação às mulheres e às
tumes, porque um povo sempre conhece, ama e moças. É demais para uma nação ter de supor
defende mais seus costumes do que suas leis. tar o orgulho do vencedor, sua incontinência e
também sua indiscrição, indubitavelmente
2 5 Lede a História do Universo, de Puffendorff. (N. mais desagradável porque multiplica infinita
do A.) mente os ultrajes.
Capítulo XII
Não considero boa a lei que Ciro estabe debilitar a coragem da juventude. Quis que os
leceu para que os lídios só pudessem exercer jovens deixassem crescer os cabelos, como
profissões vis, ou profissões infames. Vai-se às moças, que os ornassem com flores e usassem
coisas mais urgentes; pensa-se nas revoltas e vestidos de diferentes cores até o calcanhar;
não nas invasões. Porém essas logo virão; os quis ele que, quando fossem à casa de seus
dois povos unem-se e corromper-se-ão mutua professores de dança e de música, mulheres
mente. Eu preferiría antes manter pelas leis a lhes trouxessem pára-sóis, perfumes e leques;
rudeza do povo vencedor do que sustentar com que, durante o banho, lhes trouxessem pentes e
elas a indolência do povo vencido. espelhos. Esta educação deveria durar até a
Aristodemo, tirano de Cumes2 6, procurou idade de vinte anos. Isso só poderia convir a
um pequeno tirano que arrisca sua soberania
2 6 Dionísio de Halicarnasso, liv. VII. (N. do A.) para defender a vida.
Capítulo XIII
Carlos XII
Este príncipe, que não fez uso senão de suas dos através de uma longa guerra que o reino
próprias forças, determinou sua queda ao for não poderia sustentar.
mular desígnios que só poderíam ser executa Não foi um Estado decadente que ele procu
DO ESPIRITO DAS LEIS II 149
Capítulo XIV
Alexandre
Ele só partiu depois de ter garantido a No início de sua empresa, isto é, no momen
Macedônia contra os povos bárbaros vizinhos to em que uma derrota poderia derrubá-lo, dei
e de ter acabado de submeter os gregos; só uti xou pouca coisa ao acaso; quando o êxito o
lizou essa vitória para assegurar a execução de colocou acima dos acontecimentos, a temeri
sua empresa; tornou impotente a inveja dos dade, algumas vezes, foi um de seus meios.
lacedemônios; atacou as províncias marítimas; Quando, antes de sua partida, marchou contra
fez com que seu exército bordejasse as costas os tribalianos e os ilírios, assistimos a uma
para não ficar separado de sua frota; utilizou- guerra2 7 semelhante à que César travou poste
se admiravelmente bem da disciplina contra o riormente contra os gauleses. Quando retomou
número; não faltaram abastecimentos e, se é à Grécia28, foi como que contra sua vontade
verdade que a vitória lhe deu tudo, ele também
envidou todos os esforços para alcançar a 2 7 Vede Arriano, De Exped. Alex., liv. I. (N. do A.)
vitória. 28 Ibid. (N. do A.)
150 MONTESQUIEU
que tomou e destruiu Tebas: acampando perto que qualquer outro conquistador possa vanglo
dessa cidade, esperou que os tebanos viessem riar-se.
estabelecer a paz; mas eles próprios precipi Nada consolida tanto uma conquista como
taram sua ruína. Quando se tratou de comba a união feita entre dois povos pelos casamen
ter29 as forças marítimas da Pérsia, foi antes tos. Alexandre tomou por esposas mulheres
Parmênio que teve a audácia mas foi Alexan das nações que submetera: quis que os de sua
dre que teve a sabedoria. Sua arte foi isolar os corte32 também as tomassem: os outros mace-
persas das costas marítimas e obrigar a que dônios seguiram seu exemplo. Os francos e os
eles mesmos abandonassem sua marinha, no borguinhões3 3 permitiram esse tipo de casa
que eram superiores. Tiro era, por princípio, li mento; os visigodos, na Espanha, proibiram-
gado aos persas, não podendo prescindir de no3 4 mas logo o permitiram; os lombardos
seu comércio e de sua marinha; Alexandre não somente o permitiram como o favorece
destruiu-a. Conquistou o Egito que Dario dei ram3 5. Quando os romanos pretenderam en
xara desguarnecido de tropas, enquanto mobi fraquecer a Macedônia, estipularam que não se
lizava enormes exércitos em outro universo. poderíam realizar uniões pelo casamento entre
A passagem de Granico fez com que Ale os povos das províncias.
xandre se tornasse senhor das colônias gregas; Alexandre, que procurava unir os dois
a batalha de Isso lhe deu Tiro e o Egito; a povos, pensou em criar, na Pérsia, numerosas
batalha de Arbelas lhe deu toda a terra. colônias gregas. Construiu uma infinidade de
Depois da batalha de Isso, deixou que Dario cidades e cimentou tão bem todas as partes
escapasse, ocupando-se unicamente em garan deste novo império, que, depois de sua morte,
tir e organizar suas conquistas; depois da bata na perturbação e confusão das mais horroro
lha de Arbelas, perseguiu-o tão de perto30, que sas guerras civis, depois que os gregos, por
não lhe deixou nenhum refúgio em seu impé assim dizer, aniquilaram a eles próprios,
rio. Dario só entrava em suas cidades para tor nenhuma província persa se revoltou.
nar a sair: as marchas de Alexandre foram tão Para não esgotar a Grécia e a Macedônia,
rápidas, que acreditaríamos ver o império do enviou a Alexandria uma colônia de judeus3 6:
universo antes como prêmio da corrida, como não lhe importavam os costumes desses povos,
nos jogos gregos, do que como prêmio da desde que lhe fossem fiéis.
vitória. Não apenas deixou aos povos vencidos seus
Se assim obteve suas conquistas, vejamos costumes, como ainda lhes conservou suas leis
como as conservou. e governadores que encontrara. Colocou os
Resistiu aos que pretendiam que ele tratas macedônios3 7 à frente das tropas e os habitan
se31 os gregos como senhores e os persas tes do país na direção do governo; preferia
como escravos; só pensou em unir as duas arriscar-se a alguma infidelidade particular (o
nações e em extinguir as diferenças entre povo que algumas vezes lhe aconteceu) do que a
conquistador e povo vencido. Abandonou, uma revolta geral. Respeitou as antigas tradi
após a vitória, todos os preconceitos que lhe ti ções e todos os movimentos da glória ou da
nham proporcionado. Adotou os costumes dos vaidade dos povos. Os reis da Pérsia tinham
persas para não afligi-los, fazendo-os adotar os
costumes gregos. Isso é que fez com que mos
32 Vede Arriano, De Exped. Alex., liv. VII (N. do
trasse tanto respeito pela esposa e pela mãe de A.)
Dario e que revelasse tanta continência. Quem 33 Vede a lei dos borguinhões. Tit. XII, art. V. (N.
é esse conquistador cuja morte foi lamentada do A.)
por todos os povos que dominou? Quem é esse 3 * Vede a lei dos visigodos, liv. III, tit. I, § 1, que
usurpador, a cuja morte a família que destro ab-roga a lei antiga, que tinha mais consideração,
dizia-se, pela diferença das nações do que pelas
nou verteu tantas lágrimas? É um traço de sua condições. (N. do A.)
vida, do qual os historiadores não nos contam 3 B Vede a lei dos lombardos, liv. II, tit. VII, §§ 1 e
2. (N. do A.)
3 6 Os reis da Síria, abandonando os planos dos
29 Ibid. (N. do AÓ fundadores do império, quiseram obrigar os judeus
3° Vede Arriano, De Exped. Alex., liv. III. (N. do a adotar os costumes dos gregos, fato que acarretou
A.) ao Estado terríveis abalos. (N. do A.)
31 Era o conselho de Aristóteles. Plutarco, Obras 3 7 Vede Arriano, De Exped. Alex., liv. III e outros.
Morais: Da Fortuna de Alexandre. (N. do A.) (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS II 151
destruído os templos dos gregos, dos babilô dados, partilhar com os gregos sua conquista,
nios e dos egípcios; ele restabeleceu-os38; pou fazer a fortuna de cada homem de seu exército,
cas foram as nações que se lhe submeteram, ele era Alexandre.
em cujos altares não fez sacrifícios. Parecia Cometeu duas más ações: queimou Persé-
que só tinha conquistado para ser o monarca polis e assassinou Clito. Tornou-os célebres
particular de cada nação e o primeiro cidadão por seu arrependimento, de modo que esquece
de cada cidade. Os romanos conquistaram mos suas ações criminosas para lembrarmo-
tudo para tudo destruir39; ele quis tudo con
nos de seu respeito pela virtude; assim, foram
quistar para tudo conservar e, qualquer que elas consideradas antes como desgraça do que
fosse o país que percorresse, suas primeiras
idéias, seus primeiros desígnios, foram sempre como coisas que lhe eram próprias; assim, a
fazer alguma coisa que pudesse aumentar sua posteridade encontra a beleza de sua alma
prosperidade e poder. Na grandeza de seu quase ao lado de seus arrebatametitos e de
gênio, encontrou os primeiros meios; os segun suas fraquezas; assim, foi possível lamentá-lo
dos, em sua frugalidade e em sua economia mas não foi possível odiá-lo.
particular40, os terceiros, em sua imensa Compará-lo-ei a César. Quando César quis
prodigalidade pelas grandes coisas. Sua mão imitar os reis da Ásia, atormentou os romanos,
se fechava para as despesas privadas e só se por uma coisa de pura ostentação; quando
abria para as despesas públicas. Se era neces Alexandre quis imitar os reis da Ásia, fez uma
sário organizar sua casa, ele era um macedô- coisa que entrava no plano de sua conquista41.
nio; se era necessário pagar os soidos dos sol-
41 Deve-se observar que Montesquieu foi um dos
3 8 Vede Arriano, De Exped. A lex. (N. do A.) primeiros, entre os modernos, a fazer justiça a Ale
3 9 Ver acima a nota 14, pág. 144. xandre por esta apologia. A História será, talvez,
40 Ibid., liv. VII. (N. do A.) mais prudente.
Capítulo XV
Capítulo XVI
império que possa agitar-se. Esta milícia deve guarda a soldo do príncipe42, independen
conter as demais e aterrorizar todos os que, no temente da que é mantida pela renda das ter
império, foram obrigados a perder certa auto ras43. Essas forças particulares mantêm o res
peito das gerais.
ridade. Há, em torno do imperador da China,
um poderoso corpo de tártaros sempre prepa
42 Os janízaros, na Turquia.
rados para qualquer eventualidade. Entre os 43 Também na Turquia, os “spahis” e os “timario-
mongóis, entre os turcos, no Japão, há uma tas”.
Capítulo XVII
Dissemos que os Estados conquistados pelo Estado conquistado, os governadores que en
monarca despótico devem ser feudatários. Os viar não poderão conter os súditos, nem ele
historiadores esgotam-se em elogios sobre as próprio seus governadores. Será obrigado a
generosidades dos conquistadores que resti- desguarnecer de tropas seu antigo patrimônio
tuíram a coroa aos príncipes que derrotaram. para garantir o novo. Todas as desgraças dos
Os romanos eram, portanto, muito generosos, dois Estados serão comuns: a guerra civil de
pois em toda parte criavam reis, a fim de pos um será a guerra civil de outro. Mas se, ao
suir instrumento de servidão4 4. Tal ação é um contrário, o conquistador devolve o trono ao
ato necessário. Se o conquistador conserva o príncipe legítimo, terá um aliado necessário
que, com forças que lhe serão próprias, aumen
tará as suas. Acabamos de ver Xá-Nadir con
4 4 Tac., Agrícola, cap. XIV. Vetere ac jam pridem
recepta populi romani consuetudine, ut haberent quistar os tesouros do Mogol e deixar-lhe o
instrumenta servitutis et reges. (N. do A.) Hindustão.
LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO
DAS LEIS QUE FORMAM A LIBERDADE POLÍTICA
EM SUA RELAÇÃO COM A CONSTITUIÇÃO
Capítulo I
Idéia geral
Distingo as leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição, das
leis que a formam em sua relação com o cidadão. As primeiras serão o assunto deste livro;
tratarei das segundas no livro seguinte.
Capítulo II
Não há palavra que tenha recebido as mais haviam experimentado o governo republicano
diferentes significações e que, de tantas manei situaram-na neste governo; os que haviam go
ras, tenha impressionado os espíritos como a zado do governo monárquico situaram-na na
palavra liberdade. Uns tomaram-na pela facili monarquia47. Enfim, cada um chamou liber
dade em depor aquele a quem outorgaram um dade ao governo que se adequava aos seus cos
poder tirânico; outros, pela faculdade de eleger tumes ou às suas inclinações; e como, numa
aquele a quem deveríam obedecer; outros, pelo república, nem sempre temos diante dos olhos
direito de se armar, e de exercer a violência; e de forma tão presente os instrumentos dos
estes, pelo privilégio de só serem governados males de que nos queixamos e, mesmo, como,
por um homem de sua nação, ou por suas pró nesta forma de governo, as leis parecem falar
prias leis4 5. Certo povo considerou, por muito mais e os executores da lei menos, ela é colo
tempo, como liberdade o hábito de usar barbas cada geralmente nas repúblicas e excluída das
compridas4 6. Estes ligaram esse nome a uma monarquias. Finalmente, como nas democra
forma de governo, excluindo as demais. Os que cias o povo parece quase fazer o que deseja,
ligou-se a liberdade a essas formas de governo
4 5 “Copiei”, diz Cícero, “o edito de Cévola que e confundiu-se o poder do povo com sua
permite aos gregos resolverem entre si suas diver liberdade.
gências, de acordo com suas leis; o que faz com que
eles se considerem povos livres.” (N. do A.)
4 6 Os moscovitas não podiam tolerar que o Czar 4 7 Os capadócios recusaram o Estado republicano
Pedro os obrigasse a cortá-la. (N. do A.) que os romanos lhes ofereceram. (N. do A.)
Capítulo III
O que é a liberdade
É verdade que nas democracias o povo pare- não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa
ce fazer o que quer; mas a liberdade política sociedade em que há leis, a liberdade não pode
156 MONTESQUIEU
consistir senão em poder fazer o que se deve mitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que
querer e em não ser constrangido a fazer o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque
não se deve desejar 4 8. os outros também teriam tal poder.
Deve-se ter sempre em mente o que é
independência e o que é liberdade. A liberda
49 Se Montesquieu cede, por vezes, a seus precon
de4 9 é o direito de fazer tudo o que as leis per- ceitos “filosóficos”, devemos reconhecer que apre
senta aqui a definição de “liberdade” mais justa.
48 Cf. as Considerações, cap. IV (in fine). Mas que ideal ele apresenta!
Capítulo IV
A democracia e a aristocracia, por sua natu encontra limites. Quem o diría! A própria vir
reza, não são Estados livres. Encontra-se a tude tem necessidade de limites.
liberdade política unicamente nos governos Para que não se possa abusar do poder é
moderados. Porém, ela nem sempre existe nos preciso que, pela disposição das coisas, o
Estados moderados: só existe nesses últimos poder freie o poder. Uma constituição pode ser
quando não se abusa do poder: mas a expe de tal modo, que ninguém será constrangido a
riência eterna mostra que todo homem que tem fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer
poder é tentado a abusar dele; vai até onde as que a lei permite.
Capítulo V
Capítulo VI
Da constituição da Inglaterra 52
Há, em cada Estado, três espécies de pode Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz
res: o poder legislativo, o poder executivo das 52 Observemos também que os princípios que
coisas que dependem do direito das gentes, e o Montesquieu apresentará encontram-se no Tratado
do Governo Civil de Locke, no cap. XII. Na origem
executivo das que dependem do direito civil. encontramos Aristóteles (Política, VI, XI-I).
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 157
leis por certo tempo ou para sempre e corrige Vede qual poderá ser a situação de um cida
ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, dão nessas repúblicas. O mesmo corpo de
faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embai magistratura tem, como executor das leis, todo
xadas, estabelece a segurança, previne as inva o poder que, como legislador, ele se atribuiu.
sões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as Pode devastar o Estado com suas vontades ge
querelas dos indivíduos. Chamaremos este úl rais e, como possui também o poder de julgar,
timo o poder de julgar e, o outro, simplesmente pode destruir cada cidadão por suas vontades
o poder executivo do Estado. particulares.
A liberdade política, num cidadão, é esta Todo poder, nessas repúblicas, é uno; e, ape
tranquilidade de espírito que provém da opi sar de não haver pompa exterior que denuncie
nião que cada um possui de sua segurança; e, um príncipe despótico, percebemo-lo a cada
para que se tenha esta liberdade 53, cumpre que instante.
o governo seja de tal modo, que um cidadão
Desta maneira, os príncipes que quiseram
não possa temer outro cidadão.
tornar-se despóticos começaram sempre reu
Quando na mesma pessoa ou no mesmo
nindo em sua pessoa todas as magistraturas; e
corpo de magistratura o poder legislativo está
vários reis da Europa, todos os grandes cargos
reunido ao poder executivo, não existe liberda
de seu Estado.
de, pois pode-se temer que o mesmo monarca
ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis Creio, efetivamente, que a pura aristocracia
tirânicas para executá-las tiranicamente. hereditária das repúblicas da Itália não corres
Não haverá também liberdade se o poder de ponde exatamente ao despotismo da Ásia. A
julgar não estiver separado do poder legisla multidão de magistrados algumas vezes suavi
tivo e do executivo. Se estivesse ligado ao za a magistratura; nem sempre todos os nobres
poder legislativo, o poder sobre a vida e a concorrem para os mesmos desígnios; for-
liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o mam-se diversos tribunais que se moderam.
juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Assim, em Veneza, ao Grande Conselho cabe
poder executivo, o juiz poderia ter a força de a legislação; aos pregadi, a execução; aos
um opressor. quaranties, o poder de julgar5 5. Mas o mal é
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou que esses tribunais diferentes são formados por
o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, magistrados do mesmo corpo, o que quase faz
ou do povo, exercesse esses três poderes: o de com que componham um mesmo poder.
fazer leis, o de executar as resoluções públicas O poder de julgar não deve ser outorgado a
e o de julgar os crimes ou as divergências dos um senado permanente mas exercido por pes
indivíduos. soas extraídas do corpo do povo5 6 num certo
Na maior parte dos reinos da Europa, o período do ano, de modo prescrito pela lei,
governo é moderado, porque o príncipe, que para formar um tribunal que dure apenas o
tem os dois primeiros poderes, deixa a seus sú tempo necessário.
ditos o exercício do terceiro. Entre os turcos, Desta maneira, o poder de julgar, tão terrí
onde esses três poderes estão reunidos na pes vel entre os homens, não estando ligado nem a
soa do sultão, reina um despotismo horroroso. uma certa situação nem a uma certa profissão,
Nas repúblicas da Itália, onde esses três torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. Não
poderes estão reunidos, há menos liberdade do se têm constantemente juizes diante dos olhos
que em nossas monarquias. Por isso, o gover e teme-se a magistratura mas não os magistra
no necessita, para manter-se, de meios tão vio dos.
lentos quanto o governo dos turcos; provam- Cumpre mesmo que, nos grandes processos,
no os inquisidores de Estado 5 4, e o tronco em o criminoso, juntamente com a lei, escolha os
que todo delator pode, a qualquer momento, juizes, ou que, pelo menos, possa recusar tão
jogar um bilhete com sua acusação.
5 5 O Grande Conselho era constituído pelo corpo
53 Na Inglaterra, se um homem possuísse tantos dos nobres, até o número de 1 500; escolhiam-se os
inimigos quantos são os cabelos de sua cabeça, pregadi, que eram em número de 120; os quaranties
nada lhe aconteceria; é muito, porque a saúde da eram 40 membros, como seu nome indica. Existiam
alma é tão necessária como a do corpo. (Notes sur três tipos, cada um com sua especialidade, do crimi
1’Angleterre.) (N. do A.) nal ao civil.
5 * Em Veneza. (N. do A.) 5 8 Como em Atenas. (N. do A.)
158 MONTESQUIEU
grande número deles que os que sobrarem tantes, faça tudo o que não pode fazer por si
sejam tidos como de sua escolha. mesmo.
Os outros dois poderes poderíam, preferivel Conhecemos muito melhor as necessidades
mente, ser outorgados a magistrados ou a cor de nossa cidade do que as das outras e julga
pos permanentes, porque não se exercem sobre mos melhor da capacidade de nossos vizinhos
nenhum indivíduo, sendo um somente a vonta do que das capacidades de nossos outros
de geral do Estado e outro somente a execução compatriotas. Não é necessário, portanto, que
dessa vontade geral. os membros do corpo legislativo sejam esco
Porém, se os tribunais não devem ser fixos, lhidos geralmente do corpo da nação; mas
os julgamentos devem sê-lo a tal ponto, que convém que, em cada localidade principal, os
nunca sejam mais do que um texto exato da lei. habitantes elejam entre-si um representante.
Se fossem uma opinião particular do juiz, A grande vantagem dos representantes é que
viver-se-ia na sociedade sem saber precisa são capazes de discutir os negócios públicos.
mente os compromissos que nela são assumi O povo não é, de modo algum, capaz disso,
dos. fato que constitui um dos graves inconve
É mister inclusive que os juizes sejam da nientes da democracia.
condição do acusado ou seus pares, para que Não é necessário que os representantes, que
ele não possa persuadir-se de que caiu em receberam dos que os elegeram uma instrução
mãos de pessoas inclinadas a lhe praticarem geral, recebam outra particular para cada
violências. questão, tal como se procede nas dietas da
Se o poder legislativo deixa ao executivo o Alemanha. É verdade que deste modo a pala
direito de prender cidadãos que podem dar vra dos deputados expressaria melhor a voz do
caução de seu procedimento, não há mais povo; mas isso ocasionaria infinitas delongas,
liberdade, a não ser que sejam detidos para tornaria cada deputado senhor de todos os de
responderem, sem prazo, a uma acusação que mais e, nas ocasiões mais urgentes, um capri
a lei tornou capital, caso em que são realmente cho paralisaria toda a força da nação.
livres, visto que só são submetidos ao poder da
Quando os deputados, diz muito correta
lei.
mente Sidney 58, representam uma camada do
Porém, se o poder legislativo se julgasse em
povo, como na Holanda, devem prestar contas
perigo, em virtude de alguma conjuração
aos que os elegeram; a situação é diferente
secreta contra o Estado ou algum acordo com
quando se trata de deputados eleitos pelos bur
os inimigos externos, poderia, por um prazo
gos, como na Inglaterra.
curto e limitado, permitir ao poder executivo
mandar prender os cidadãos suspeitos, que só Todos os cidadãos, nos diversos distritos,
perderíam momentaneamente a liberdade, a devem ter direito a dar seu voto para escolher
fim de poder conservá-la para sempre 5*7. o representante, exceto os que estão em tal es
E o único meio concorde com a razão é tado de baixeza, que são considerados sem
vontade própria.
substituir a tirânica magistratura dos éforos e
dos inquisidores de Estado de Veneza, igual Havia um grande vício na maior parte das
mente despóticos. antigas repúblicas, pois que nelas o povo tinha
Já que, num Estado livre, todo homem que direito de tomar resoluções ativas que exigem
supõe ter uma alma livre deve governar a si certa execução, coisa de que é inteiramente
próprio, é necessário que o povo, no seu con- incapaz. Ele só deve participar do governo
yciYito, possua o poder legislativo. Mas como para escolher seus representantes, procedi
isso é impossível nos grandes Estados, e sendo mento para o qual é bastante capaz. Portanto,
sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, se há poucos indivíduos que conhecem o grau
é preciso que o povo, através de seus represen exato da capacidade dos homens, cada um,
contudo, é capaz de saber, em geral, se quem
5 7 Tratar-se-ia da suspensão do habeas corpus que,
desde 1679, proibia, na Inglaterra, deter por mais de 58 Algernon Sidney (1617-1683), chefe da oposi
vinte e quatro horas um prisioneiro, sem que um ção contra o Duque de York, autor do Discurso
juiz se pronunciasse sobre a detenção. Somente o sobre o Governo, escrito contra as teorias de Filmer
Parlamento podia decidir dessa suspensão. e traduzido para o francês em 1702, por Samson.
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 159
escolheu é mais lúcido do que a maioria dos poder dos tribunos de Roma59. E, embora
outros. quem tenha a faculdade de impedir possa ter
O corpo representante também não deve ser também o direito de aprovar, esta aprovação,
escolhido para tomar qualquer resolução ativa, entretanto, não é mais do que uma declaração
coisa que não executaria bem, mas, sim, para de que não utilizará sua faculdade de impedir;
fazer leis ou para ver se as que fez são bem e, portanto, a faculdade de aprovar deriva da
executadas, coisa que pode realizar muito bem, de impedir.
e que ninguém pode fazer melhor do que ele. O poder executivo deve permanecer nas
Num Estado, há sempre pessoas dignifi mãos de um monarca porque esta parte do
cadas pelo nascimento, pelas riquezas ou pelas governo, que quase sempre tem necessidade de
honrarias; mas, se se confundissem com o uma ação momentânea60, é mais bem admi
povo e só tivessem, como os outros, um voto, a nistrada por um do que por muitos; ao passo
liberdade comum seria sua escravidão e não que o que depende do poder legislativo é,
teriam nenhum interesse em defendê-la, porque amiúde, mais bem ordenado por muitos do que
a maioria das resoluções seria contra elas. A por um só.
participação que tomam na legislação deve Porque, se não houvesse monarca, e se o
ser, portanto, proporcional às outras vanta poder executivo fosse confiado a certo número
gens que têm no Estado, o que acontecerá se de pessoas extraídas do corpo legislativo, não
formarem um corpo que tenha o direito de sus haveria mais liberdade, pois os dois poderes
tar as iniciativas do povo, tal como o povo tem estariam unidos, neles tomando parte, algumas
o direito de sustar as deles. vezes ou sempre, as mesmas pessoas.
Se o corpo legislativo ficasse durante muito
Deste modo, o poder legislativo será con
tempo sem se reunir, não haveria mais liberda
fiado tanto à nobreza como ao corpo escolhido
de, pois, de duas coisas, uma aconteceria: ou
para representar o povo, cada qual com suas
não haveria mais resolução legislativa, e o Es
assembléias e deliberações à parte e objetivos e
tado mergulharia na anarquia, ou estas resolu
interesses separados.
ções seriam tomadas pelo poder executivo e ele
Dos três poderes dos quais falamos, o de jul tornar-se-ia absoluto.
gar é, de algum modo, nulo. Restam apenas Seria inútil que o corpo legislativo estivesse
dois e, como esses poderes têm necessidade de sempre reunido. Isto seria incômodo para os
um poder regulador para moderá-los, a parte representantes e além disso ocuparia muito o
do corpo legislativo que é composta de nobres poder executivo, que não pensaria em executar
é bastante capaz de produzir esse efeito. mas em defender suas prerrogativas e seu direi
O corpo dos nobres deve ser hereditário. Ele to de executar.
o é primeiramente por sua natureza e, além Demais, se o corpo legislativo estivesse
disso, cumpre que tenha interesse muito forte continuamente reunido, poderia acontecer que
para conservar suas prerrogativas, odiosas por apenas se ocupasse em suprir com novos depu
si mesmas, e que, num Estado livre, devem tados o lugar dos que morressem e, neste caso,
estar sempre ameaçadas. se o corpo legislativo fosse uma vez corrom
Porém, como um poder hereditário poderia pido, o mal seria irremediável. Quando diver
ser induzido a seguir seus interesses particu sos corpos legislativos se sucedem mutua
lares e a esquecer os do povo, é necessário que mente, o povo, que tem má opinião do corpo
nas coisas em que se tem supremo interesse em legislativo atual, transfere, com razão, suas
corrompê-lo, como nas leis referentes à arreca esperanças para o que virá depois. Mas,
dação de dinheiro, ele só tome parte na legisla tratando-se sempre do mesmo corpo, o povo,
ção por sua faculdade de impedir e não por sua vendo-o uma vez corrompido, nada mais espe
faculdade de estatuir. raria de suas leis: tornar-se-ia furioso ou cairia
Chamo faculdade de estatuir o direito de na indolência.
1 ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi O corpo legislativo não deve convocar a si
ordenado por outrem. Chamo faculdade de
impedir o direito de anular uma resolução to 5 9 Trata-se do direito de veto.
mada por qualquer outro, o que constitui o 60 Momentânea, no sentido de “instantânea”.
160 MONTESQUIEU
próprio, pois um corpo só é considerado como monarquia mas uma república não livre. Mas,
tendo vontade quando está reunido. E, se ele como quem executa não pode executar mal
não se convocasse por unanimidade, não se sem ter maus conselheiros, que, como minis
poderia dizer que parte representaria verdadei- tros, odeiam as leis, apesar de favorecê-las
ramente o corpo legislativo: a que se reuniu ou como homens, estes últimos podem ser perse
a que não se reuniu. Pois se tivesse direito a guidos e punidos. E esta é a vantagem de tal
prorrogar a si próprio, poderia acontecer que governo sobre ode Cnido, em que a lei não per
ele nunca se prorrogasse, o que seria perigoso mite levar a julgamento os amimonas63 não
no caso em que se pretendesse atentar contra o podendo o povo, mesmo após a sua adminis
poder executivo. Aliás, alguns períodos são tração64, obter reparação pelas injustiças
mais convenientes do que outros para a assem cometidas contra si.
bléia do corpo legislativo; é necessário, portan Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo
to, que seja o poder executivo quem regula tempo clarividente e cega, fosse em certos
mente o momento da convocação e da duração casos muito rigorosa. Porém, os juizes de uma
dessas assembléias, com relação às circuns nação não são, como dissemos, mais que a
tâncias que ele conhece. boca que pronuncia as sentenças da lei, seres
Se o poder executivo não tem o direito de inanimados que não podem moderar nem sua
vetar os empreendimentos do corpo legislativo, força nem seu rigor. Ê, portanto, a parte do
este último seria despótico porque, como pode corpo legislativo que noutra ocasião dissemos
atribuir a si próprio todo o poder que possa ser um tribunal necessário, que aqui também é
imaginar, destruiría todos os demais poderes. necessária; cabe à sua autoridade suprema
Mas não é preciso que o corpo legislativo moderar a lei em favor dela própria, pronun-
tenha reciprocamente a faculdade de paralisar ciando-a menos rigorosamente do que ela.
o poder executivo porque, tendo a execução Apesar de que, em geral, o poder de julgar
limites por sua natureza, é inútil limitá-la, não deva estar ligado a nenhuma parte do
considerando-se também que o poder execu legislativo, isso está sujeito a três exceções,
tivo se exerce sempre sobre coisas momentâ baseadas no interesse particular de quem deve
neas: o poder dos tribunos de Roma era perni ser julgado.
cioso porque vetava não apenas a legislação, Os poderosos estão sempre expostos à inve
como também a execução, fato que acarretava ja e se fossem julgados pelo povo não fruiriam
grandes males. do privilégio que, num Estado livre, o mais
Porém, se num Estado livre o poder legisla humilde cidadão possui de ser julgado pelos
tivo não deve ter o direito de sustar o poder seus pares. Cumpre, portanto, que os nobres
executivo, tem o direito e deve ter a faculdade sejam levados, não diante dos tribunais ordiná
de examinar de que maneira as leis que pro rios da nação, mas diante da parte do corpo
mulga devem ser executadas. Esta é a vanta legislativo composta de nobres.
gem que este governo possui sobre o de Creta Poderia ainda ocorrer que algum cidadão,
e o da Lacedemônia, onde os cosmos61 e os nos negócios públicos, violasse os direitos do
éforos não prestam contas de sua administra povo, cometendo crimes que os magistrados
ção 62. estabelecidos não saberíam ou não poderíam
Entretanto, qualquer que seja esse exame, o punir. Porém, em geral, o poder legislativo não
corpo legislativo não deve ter o direito de jul pode julgar e o pode ainda menos neste caso
gar a pessoa e, por conseguinte, a conduta de específico, em que representa a parte interes
quem executa. Sua pessoa deve ser sagrada sada que é o povo. Assim, o poder legislativo
porque, sendo necessária ao Estado a fim de só pode ser acusador. Mas diante de que ele
que o corpo legislativo não se torne tirânico, acusaria? Rebaixar-se-ia diante dos tribunais
desde o momento em que for acusada ou julga da lei que lhe são inferiores e compostos, além
da, a liberdade desaparecería.
Em tais casos, o Estado não seria uma
63 Trata-se de magistrados que, todos os anos, o
povo elegia. Vede Estêvão de Bizâncio. (N. do A.)
81 Nome dos principais magistrados nas cidades 6 4 Podia-se acusar os magistrados romanos depois
de Creta, correspondentes mais ou menos aos éforos de sua magistratura. Vede, em Dionísio de Halicar-
de Esparta. (N. dos T.) nasso, liv. IX, o caso do tribuno Genúcio. (N. do
62 Aristóteles, Política, liv. II, cap. IX e X. A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 161
disso, de pessoas que, sendo povo como ele, se sem o que haveria nas resoluções uma confu
riam impressionadas pela autoridade de tão são fora do comum.
poderoso acusador? Não; para conservar a Se o poder executivo não estatui sobre a
dignidade do povo e a segurança do indivíduo, arrecadação do dinheiro público apenas pelo
é mister que a parte legislativa do povo faça seu consentimento, não mais existiría liberda
suas acusações diante da parte legislativa dos de, porque ele se tornaria legislador no ponto
nobres, a qual não possui nem os mesmos inte mais importante da legislação.
resses que ele nem as mesmas paixões. Se o poder legislativo estatui, não de ano em
Esta é a vantagem que esse governo possui ano, mas para sempre, sobre a arrecadação do
sobre a maioria das repúblicas antigas, onde dinheiro público, corre o risco de perder sua
este abuso existia: o povo era, ao mesmo liberdade, porque o poder executivo não mais
tempo, juiz e acusador. dependerá dele e, quando se possui para sem
O poder executivo, como dissemos, deve pre tal direito, é assaz indiferente que o mante
participar da legislação através do direito de nha para si ou para um outro. Acontece o
veto, sem o que seria despojado de suas prerro mesmo se ele estatui, não de ano em ano, mas
gativas. Mas, se o poder legislativo participar para sempre, sobre as forças da terra e do mar,
da execução, o poder executivo estará igual as quais deve confiar ao poder executivo.
mente perdido. Para que quem execute não possa oprimir, é
Se ò monarca participasse da legislação pela necessário que o exército que se lhe confie seja
faculdade de estatuir, não mais haveria liber povo e que tenha o mesmo espírito que o povo,
dade. Porém, como é preciso que ele participe como aconteceu em Roma, até o período de
da legislação para se defender, cumpre que ele Mário. E, para que assim seja, só há dois
aí tome parte pela sua faculdade de impedir. meios: ou que aqueles que participam dos
exércitos possuam bens suficientes para res
A causa da mudança do governo em Roma
ponder por sua conduta diante dos outros cida
foi que o senado, que tinha uma parte do poder
dãos e que só sejam recrutados por um ano, tal
executivo, e os magistrados, que possuíam a
como se praticava em Roma6 5; ou, se se pos
outra, não tinham, como o povo, a faculdade
sui um corpo permanente de tropa em que os
de impedir.
soldados são uma das partes mais vis da
Eis, assim, a constituição fundamental do nação, é mister que o poder legislativo possa
governo de que falamos. O corpo legislativo destituí-lo assim que desejar, que os soldados
sendo composto de duas partes, uma parali convivam com os cidadãos e que não tenham
sará a outra por sua mútua faculdade de impe nem campo separado, nem casernas, nem pra
dir. Todas as duas serão paralisadas pelo ças de guerra.
poder executivo, que o será, por sua vez, pelo
O exército, uma vez estabelecido, não deve
poder legislativo.
depender, imediatamente, do corpo legislativo,
Estes três poderes deveríam formar uma
mas do poder executivo; e isso pela natureza
pausa ou uma inação. Mas como, pelo movi da coisa; seu feito consiste mais na ação do
mento necessário das coisas, eles são obriga que na deliberação.
dos a caminhar, serão forçados a caminhar de
É próprio da maneira de pensar dos homens
acordo.
que se dê mais importância à coragem do que
O poder executivo, fazendo parte do legisla à timidez, mais à atividade do que à prudência,
tivo apenas pela sua faculdade de impedir, não mais à força do que aos conselhos. O exército
poderia participar dos debates das questões desprezará sempre o senado e respeitará seus
públicas. Não é mesmo necessário que as pro oficiais. Não dará atenção às ordens que lhe
postas partam dele porque, podendo sempre serão enviadas de um corpo composto de gente
desaprovar as resoluções, pode rejeitar as deci que crê tímida e, por isso, indigna de coman
sões das proposições que desejaria não fossem dar. Assim, tão logo dependa o exército unica
feitas. mente do corpo legislativo, o governo tornar-
Em algumas repúblicas antigas, em que o se-á militar. E, se alguma vez o contrário
povo, em conjunto, participava dos debates
dos negócios, era natural que o poder execu 6 5 Cf. Benjamin Constant, Cours de Droit Consti-
tivo os propusesse e os debatesse com o povo, tutionnel, 1.1, pág. 107.
162 MONTESQUIEU
aconteceu, isso se deve à ação de algumas Assim como todas as coisas humanas têm
circunstâncias extraordinárias; ao fato de o um fim, o Estado ao qual nos referimos perde
exército estar sempre separado; ao fato de ser rá sua liberdade, perecerá. Roma, Lacede-
ele composto de vários corpos que dependem mônia e Cartago pereceram completamente.
cada um de sua província particular; ap fato Ele extinguir-se-á quando o poder legislativo
de as cidades capitais serem excelentes sítios for mais corrompido que o executivo.
que se defendem apenas por sua situação, e Não me cabe examinar se atualmente os
onde não há tropas. ingleses gozam ou não dessa liberdade. É-me
A Holanda encontra-se ainda em maior suficiente dizer que ela é estabelecida pelas leis
segurança do que Veneza; ela submergiría as e eu nada mais procuro.
tropas sublevadas, fá-las-ia morrer de fome. Não pretendo com isso depreciar os demais
Estas não estão em cidades que lhes poderíam governos, nem afirmar que esta liberdade polí
prover a subsistência; esta subsistência é, por tica extremada deve mortificar os que apenas
tanto, precária. possuem uma liberdade limitada. Como pode
E se, no caso em que o exército é governado ria afirmar isso, eu que acredito que o próprio
pelo corpo legislativo, circunstâncias particu excesso da razão nem sempre é desejável e que
lares impedem o governo de tornar-se militar, os homens, quase sempre, se acomodam me
cair-se-á em outros inconvenientes; de duas, lhor no meio do que nas extremidades?
uma: ou será necessário que o exército destrua
o governo, ou que o governo enfraqueça o Harrington6 7, em seu Oceana, também exa
exército. minou qual era o mais alto grau de liberdade
E este enfraquecimento teria uma causa bem que a constituição de um Estado podia atingir.
fatal: originar-se-ia das próprias fraquezas do Porém podemos dizer que ele só procurou esta
governo. liberdade depois de tê-la desprezado e que
Quem ler a admirável obra de Tácito Sobre construiu Calcedônia tendo a costa de Bizân-
os Costumes dos Germanos6 6 verá que foi cio diante dos olhos 6 8.
deles que os ingleses extraíram a idéia do
governo político. Este ótimo sistema foi encon 67 Harrington (1611-1677), autor de Oceana, ro
mance político em forma de utopia, surgido em
trado na floresta. 1656, no qual o autor revela sua preferência pela
república.
66 Cap. XI. De minoribus rebus príncipes consul- 68 São palavras de Megabiso, em Heródoto, fiv.
tant, de majoribus omnes; ita tamen ut ea quoque IV, cap. CXLIV. Vemos, neste capítulo de extensão
quorum penes plebem arbitrium est apud príncipes inusitada, a complacência de Montesquieu pela
pertractentur. (N. do A.) constituição inglesa.
Capítulo VII
As monarquias que conhecemos não têm, Os três poderes, nessas monarquias, não são
como aquela a que acabamos de nos referir, a divididos e calcados no modelo da constitui
liberdade como seu objetivo direto; buscam ção à qual nos referimos. Cada um deles pos
somente a glória dos cidadãos, do Estado e do
príncipe. Mas desta glória resulta um espírito sui uma divisão particular, segundo a qual eles
de liberdade que, nesses Estados, pode também se aproximam mais ou menos da liberdade
construir grandes coisas e talvez contribuir
tanto para a felicidade como a própria política e, se dela não se aproximassem, a
liberdade. monarquia degeneraria em despotismo.
DO ESPIRITO DAS LEIS II 163
Capítulo VIII
Os antigos não conheciam o governo basea é suficiente ver Tácito, Sobre os Costumes dos
do num corpo de nobreza e ainda menos o Germanos. Os conquistadores disseminaram-
governo baseado num corpo legislativo forma se pela região; habitavam os campos e pouco
do pelos representantes de uma nação. As as cidades. Quando estavam na Germânia,
repúblicas da Grécia e da Itália eram cidades todo o povo podia ser reunido. Quando, pela
que possuíam, cada uma delas, seu governo e conquista, foram dispersados, isso não mais
que reuniam seus cidadãos em suas muralhas. era possível. Era mister, entretanto, que a
Antes que os romanos tivessem absorvido nação deliberasse sobre seus problemas tal
todas as repúblicas, quase não existia rei em como fazia antes da conquista, e ela o fez atra
parte alguma, na Itália, na Gália, na Espanha, vés de seus representantes. Eis a origem do
na Alemanha; todas essas fegiões eram consti governo gótico entre nós. Foi inicialmente um
tuídas de pequenos povos ou de pequenas misto de aristocracia e de monarquia. Havia o
repúblicas; a própria África estava submetida inconveniente de o baixo povo ser aí escravo.
a outra maior; a Ásia Menor estava ocupada Era um bom governo que tinha em si a possibi
pelas colônias gregas. Não havia, portanto, lidade de tornar-se melhor. Surgiu o costume
exemplo de deputados de cidades, nem de de conceder cartas de alforria e logo a liber
assembléias de Estados; seria preciso ir até a dade civil do povo, as prerrogativas da nobre
Pérsia para encontrar o governo de um só. za e do clero, o poderio dos reis encontraram-
É verdade que existiam repúblicas federa se tão bem concertados, que não creio que
tivas e várias cidades enviavam deputados a tivesse existido na terra governo tão bem
uma assembléia. Mas afirmo que não havia harmonizado como este que existiu em cada
monarquia calcada naquele modelo. parte da Europa, durante o período em que
Eis como se formou o primeiro esboço das subsistiu. E é admirável que a corrupção do
monarquias que conhecemos. As nações ger governo de um povo conquistador tenha for
mânicas que conquistaram o império romano mado a melhor forma de governo que os ho
eram, como sabemos, muito livres. Sobre isso mens puderam imaginar.
Capítulo IX
Capítulo X
Para amenizar o governo de um só, Arri do que o comando; quiseram rivais e tiveram
bas70, rei de Epiro, não imaginou senão uma inimigos.
república. Os molossos, não sabendo como Somente na Lacedemônia dois reis eram
restringir o mesmo poder, escolheram dois toleráveis; eles não formavam a constituição,
reis71: com isso enfraqueciam mais o Estado mas eram uma de suas partes.
70 Vede Justino, liv. XVII, cap. III. Primus leges et 71 Aristóteles, liv. V, cap. IX.* (N. do A.)
senatum, annuosque magistratus, et reipublicae for * Devemos observar que Montesquieu leu mal e
mam composuit. (N. do A.) que só havia um rei entre os molossos.
Capítulo XI
Entre os gregos, nos tempos heróicos, ao menor capricho, destruir o reinado, tal
estabeleceu-se uma espécie de monarquia que como o fez em toda parte.
não subsistiu72. Os que tinham inventado as Num povo livre, possuidor do poder legisla
artes, feito a guerra pelo povo, reunido os ho tivo; num povo encerrado numa cidade, onde
mens dispersos, ou que lhes tinham distribuído tudo que é odioso toma-se ainda mais odioso,
terras, obtinham para si o reino e legavam-no a obra-prima da legislação é saber situar bem
para seus filhos. Eram reis, sacerdotes, ou jui o poder de julgar. Mas ele não podia estar
zes. Trata-se de uma das cinco espécies de mais mal colocado do que nas mãos de quem
monarquia de que nos fala Aristóteles73 e é a já tinha o poder executivo. A partir deste
única que pode lembrar a idéia da constituição momento, o monarca tornou-se terrível.
monárquica. Mas o plano desta constituição é Porém, como ele não possuía a legislação, não
oposto ao das monarquias atuais. podia defender-se contra ela e, ao mesmo
Os três poderes estavam divididos de manei tempo, tinha muito poder mas não tinha o
ra que o povo tinha o poder legislativo7 4, e o suficiente.
rei o poder executivo, juntamente com o poder
Não se descobrira ainda que a verdadeira
de julgar, enquanto nas monarquias que
função do príncipe era estabelecer juizes e não
conhecemos o príncipe possui o poder execu
ele próprio julgar. A política contrária tornava
tivo e legislativo ou, pelo menos, uma parte do
o governo de um só insuportável. Todos esses
legislativo, mas não julga.
reis foram expulsos. Os gregos não imagina
No governo dos reis dos tempos heróicos, os
ram a verdadeira distribuição dos três poderes
três poderes eram mal distribuídos. Estas
monarquias não podiam subsistir porque, no governo de um só; só o imaginaram no
desde que possuía a legislação, o povo podia, governo de vários e denominaram esse tipo de
constituição,polícia7 5.
72 Aristóteles, Política, liv. III, cap. XIV. (N. do
A.) 7 6 Vede Aristóteles, Política, liv. IV, cap. VIII.*
73 7òW.(N.doA.) (N. do A.)
7 * Vede o que diz Plutarco, Vida de Teseu, cap. * Polícia, a mesma coisa que Políbio chama de
VIII. Vede também Tucídides, liv. I. (N. do A.) “democracia”.
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 165
Capítulo XII
O governo dos reis de Roma tinha alguma O povo tinha direito de eleger81 os magis
relação com o dos reis dos tempos heróicos trados, de aceitar novas leis e, quando o rei o
entre os gregos. Esse poder caiu, tal como os permitia, de declarar guerra e concluir a paz.
demais, por seu vício geral, apesar de que, em Não tinha de maneira alguma o poder de jul
si mesmo e em sua natureza particular, fosse gar. Quando Túlio Hostílio atribuiu ao povo o
ótimo. julgamento de Horácio, ele teve razões particu
Para explicar esse governo, distinguiria o lares, que se encontram em Dionísio de
dos cinco primeiros reis, o de Sérvio Túlio e o Halicarnasso82.
de Tarqüínio. Na época83 de Sérvio Túlio a constituição
A coroa era eletiva e, durante os cinco pri mudou. O senado não participou de sua elei
meiros reis, cabia ao senado a parte mais ção; ele se fez proclamar pelo povo, despojou-
importante da eleição. se dos julgamentos8 4 civis, reservando para si
Depois da morte do rei, o senado examinava apenas os criminais, entregou diretamente ao
se seria conservada a forma de governo que es povo todas as questões, amenizou-lhe as taxas
tava estabelecida. Se considerava útil conser e colocou todo o peso delas sobre os patrícios.
vá-la, nomeava um magistrado7 6 extraído de Assim, à medida que enfraquecia o poder real
seu corpo, que elegia um rei; o senado deveria e a autoridade do senado, aumentava o poder
aprovar a eleição, o povo confirmá-la e os aus do povo8 5.
pícios garanti-la. Se uma das três condições Tarqüínio não se fez eleger nem pelo senado
falhasse, seria necessário realizar outra elei nem pelo povo. Considerava Sérvio Túlio um
ção. usurpador e tomou a coroa como um direito
A constituição era monárquica, aristo hereditário; exterminou a maioria dos senado
crática e popular, e tal foi a harmonia do res; não mais consultou os que sobraram nem
poder, que não se viu, nos primeiros reinados, mesmo os convidou para seus julgamentos8 6.
nem inveja nem disputa. O rei comandava os Seu poderio aumentou, porém o que havia de
exércitos e tinha a intendência dos sacrifícios; odioso nesse poderio tornou-se ainda mais
tinha o poder de julgar as questões civis7 7 e odioso. Ele usurpou o poder do povo; estabe
criminais7 8; convocava o senado, reunia o leceu leis sem ele e fê-las mesmo contra ele8 7.
povo, atribuía-lhe certas questões e regulamen Teria reunido os três poderes em sua pessoa,
tava as demais com o senado79. mas o povo lembrou-se por um momento que
O senado possuía grande autoridade. Os reis era legislador e Tarqüínio deixou de existir.
amiúde convidavam os senadores para julgar
com eles; não levavam nenhuma questão ao
povo antes que ela tivesse sido deliberada80 no 81 Ibid, liv. II. Cumpria, entretanto, que ele não
senado. nomeasse para todos os cargos porque Valério
Publícola fez a famosa lei que proibia todo cidadão
de exercer qualquer emprego se este não fosse obti
7 6 Dionísio de Halicarnasso, liv. II, pág. 120, e liv. do pelo sufrágio do povo. (N. do A.)
IV, págs. 242 e 243. (N. do A.) 82 Ibid, liv. III, pág. 159. (N. do A.)
7 7 Vede o discurso de Tanaquil, em Tito Lívio, liv. 83 Ibid, liv. IV. (N. do A.)
I, e o regulamento de Sérvio Túlio, em Dionísio de 8 4 Ele privou-se da metade do poder real, diz Dio
Halicarnasso, liv. IV, pág. 229. (N. do A.) nísio de Halicarnasso, liv. IV, pág. 229. (N. do A.)
78 Vede Dionísio de Halicarnasso, liv. II, pág. 118, 8 5 Acreditava-se que, se não tivesse sido prevenido
e liv. III, pág. 171. (N. do A.) por Tarqüínio, teria estabelecido o governo popular.
7 9 Foi por um senatus-consulto que Túlio Hostílio Dionísio de Halicarnasso, liv. IV, pág. 243. (N. do
mandou destruir Alba. Dionísio de Halicarnasso, A.)
liv. III, págs. 167 e 172 (N. do A.) 8 6 Dionísio de Halicarnasso, liv. IV. (N. do A.)
80 Ibid, liv. IV, pág. 276. (N. do A.) 87 Ibid. (N. do A.)
166 MONTESQUIEU
Capítulo XIII
Capítulo XIV
Quatro coisas principalmente obstavam a nenhuma influência nos sufrágios. Foram esses
liberdade de Roma. Apenas os patrícios obti quatro abusos que o povo corrigiu.
nham todos os empregos sagrados, políticos,
civis e militares; havia-se atribuído ao consu 88 Laboulaye observa que Montesquieu se baseia
lado um poder exorbitantes ultrajava-se o indiscriminadamente em Dionísio de Halicamasso,
com o qual a História Moderna tem especial
povo; e, finalmente, não se lhe deixava quase precaução
DO ESPIRITO DAS LEIS II 167
Capítulo XV
Capítulo XVI
Não se tinha direito a disputar, na época por centúrias, era composto de senadores,
dos decênviros. Porém, quando se recuperou a patrícios e plebeus. Nas disputas, os plebeus
liberdade, viram-se as invejas renascer: en ganharam esta questão99100: sozinhos, sem os
quanto restaram alguns privilégios aos patrí patrícios e sem o senado, poderíam fazer leis,
cios, os plebeus Ihos retiraram. que se chamaram plebiscitos; e os comícios
Teria havido pouco mal se os plebeus se onde foram feitas chamaram-se comícios por
tivessem contentado em privar os patrícios de tribo. Assim, houve casos em que os patrí-
suas prerrogativas e se não os tivessem ofen
dido na sua própria qualidade de cidadãos. 100 Dionísio de Halicarnasso, liv. XI, pág. 725.
Quando o povo estava agrupado por cúrias ou (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 169
cios101 não tiveram nenhuma participação no mentado; através de outra, era limitado.
poder legislativo1 °2, em que foram submetidos Os censores, e antes deles os cônsules1 °3,for
ao poder legislativo de outro corpo de Estado. mavam e criavam, por assim dizer, cada cinco
Foi um delírio da liberdade. O povo, para esta anos, o corpo do povo; legislavam sobre o pró
belecer a democracia, feriu os próprios princí prio corpo que possuía o poder legislativo.
pios da democracia. Parecia que um poder tão “Tibério Graco, censor”, diz Cícero, “trans
exorbitante teria podido destruir a autoridade feriu os libertos às tribos da cidade, não pela
do senado. Mas Roma possuía instituições força de sua eloquência, mas por uma palavra
admiráveis, principalmente duas delas: através e por um gesto; e se não o tivesse feito, não
de uma, o poder legislativo do povo era regula- teríamos mais esta república que hoje mal
sustentamos.”
De outro lado, o senado tinha o poder de
101 Pelas leis sagradas, os plebeus puderam efetuar retirar, por assim dizer, a república das mãos
plebiscitos, sozinhos e sem que os patrícios fossem
admitidos em suas assembléias; Dionísio de Hali do povo, pela criação de um ditador, diante do
carnasso, liv. VI, pág. 410, e liv. VII, pág. 430. (N. qual o soberano abaixava a cabeça e as leis
do A.) mais populares permaneciam silenciosas10 4.
10 2 Pela lei feita depois da expulsão dos decênvi-
ros, os patrícios foram submetidos aos plebiscitos,
apesar de não poderem votar. Tito Lívio, liv. III, 103 No ano 312 de Roma , os cônsules ainda fa
cap. IV, e Dionísio de Halicarnasso, liv. XI, pág. ziam o censo, como aparece em Dionísio de Hali
725. Esta lei foi confirmada pela de Públio Filo, carnasso, liv. XI. (N. do A.)
ditador, no ano de Roma de 416. Tito Lívio, liv. 10 4 Como as que permitiram apelar ao povo das
VIII, cap. XII. (N. do A.) ordenanças de todos os magistrados. (N. do A.)
Capítulo XVII
Se o povo foi cioso de seu poder legislativo, uma aristocracia. O senado dispunha do
o foi menos de seu poder executivo: deixou-o dinheiro público e dava os impostos em arren
quase inteiramente nas mãos do senado e dos damento. Era o árbitro dos negócios dos alia
cônsules e quase só se reservou o direito de ele dos; decidia da guerra e da paz e orientava os
ger os magistrados e de confirmar os atos do cônsules nesse assunto; fixava o número das
senado e dos generais. tropas romanas e das tropas aliadas, distribuía
Roma, cuja paixão era comandar, cuja as províncias e os exércitos aos cônsules ou
ambição era tudo submeter, que sempre usur aos pretores e, quando o ano de comando expi
para, que ainda usurpava, tinha continuamente rava, podia determinar-lhe o sucessor; conce
grandes preocupações: seus inimigos conjura- dia os triunfos, recebia e enviava embaixadas;
vam contra ela, ou ela conjurava contra seus nomeava os reis, recompensava-os, punia-os,
inimigos. julgava-os, concedia-lhes ou retirava-lhes o tí
Obrigada a se conduzir, de um lado, com tulo de aliados do povo romano.
coragem heróica e, de outro, com sabedoria Os cônsules procediam ao levantamento das
consumada, o estado de coisas exigia que o se tropas que deveríam ir à guerra; comandavam
nado tivesse a direção dos negócios. O povo os exércitos de terra ou do mar, dispunham
disputava ao senado todos os ramos do poder dos aliados; tinham nas províncias todo o
legislativo, porque era cioso de sua liberdade; poder da república; faziam a paz com os povos
não lhe disputava os ramos do poder executi vencidos, impunham-lhes as condições ou
vo, porque era cioso de sua glória. enviavam-nas ao senado.
A participação do senado no poder execu Nos primeiros tempos, quando o povo tinha
tivo era tão grande que Políbio10 5 diz que alguma participação nos negócios da guerra e
todos os estrangeiros pensavam que Roma era106 da paz, ele exercia antes seu poder legislativo
do que seu poder executivo. Quase só confir
106 Liv. VI. (N. do A.) mava o que os reis, e depois deles os cônsules
170 MONTESQUIEU
ou o senado, tinham feito. Longe de ser o povo bunos das legiões que até então os generais
o árbitro da guerra, vemos que os cônsules ou nomeavam e, pouco tempo antes da Primeira
o senado a faziam frequentemente malgrado a Guerra Púnica, estabeleceu que apenas ele
posição de seus tribunos. Mas, na embriaguez teria o direito de declarar guerra10 1.
das prosperidades, o povo aumentou seu poder
executivo. Destarte10 6, ele próprio criou os tri-
107 O povo arrancou-a do senado, narra Freinshe-
mius, Segunda Década, liv. VI.* (N. do A.)
106 No ano 444 de Roma. Tito Lívio, Primeira Dé * Também aqui Crévier afirma que Montesquieu
cada, liv. IX, cap. XXX. Parecendo perigosa a
guerra contra Perseu, um senatus-consulto ordenou interpreta mal Freinshemius, o qual cita em sua
que esta lei fosse sustada e o povo o consentiu. Tito nota e declara, remontando a Tito Lívio, que “toda
Lívio, Quinta Década, liv. II. (Liv. XLII, cap. a História depõe contra esse fato” (cf. a nota da ed.
XXXI). (N. do A.) Laboulaye).
Capítulo XVIII
O poder de julgar foi atribuído ao povo, ao Inglaterra. E, fato que muito favorecia a liber
senado, aos magistrados, a certos juizes. Deve dade1 13, era que o pretor escolhia os juizes de
mos ver como ele foi distribuído. Começa comum acordo11 4 com as partes. O grande
remos pelas questões civis. número de recusas que atualmente se pode
fazer na Inglaterra assemelha-se quase inteira
Os cônsules108 julgaram depois dos reis,
mente a esse hábito.
como os pretores julgaram depois dos cônsu Os juizes apenas decidiam sobre as questões
les. Sérvio Túlio despojara-se do julgamento de fato11 5. Por exemplo: se uma soma tinha
das questões civis; os cônsules também não as ou não sido paga; se uma ação tinha ou não
julgaram, a não ser em casos muito raros109, sido cometida. Porém, quando se tratava de
que foram chamados, por esta razão, extraor questões de direito11 6, eram levadas ao tribu
dinários' 1 °. Eles contentaram-se com nomear nal dos centúnviros11 7.
os juizes e compor os tribunais que deveríam Os reis reservavam para si o julgamento
julgar. Parece, pelo discurso de Ápio Cláudio, dos casos criminais e os cônsules sucederam-
em Dionísio de Halicarnasso111, que, desde o lhes nesta função. Foi em consequência desta
ano 259 de Roma, isso era considerado como autoridade que o cônsul Bruto mandou matar
um costume estabelecido entre os romanos e seus filhos e todos os que tinham conjurado em
atribuí-lo a Sérvio Túlio não significa remon favor dos Tarqüínios. Esse poder era exorbi
tá-lo para muito tempo atrás. tante. Possuindo o poder militar, os cônsules
Cada ano, o pretor fazia uma li^ta112 ou rol
dos que escolhia para exercer a função de juiz 113 “Nossos antepassados não quiseram”, diz Cí
durante o ano de sua magistratura. Escolhia- cero, Pro Cluentio, cap. XLIII, “que um homem,
cujas partes não estivessem concordes, pudesse jul
se, para cada questão, um número suficiente. gar, não somente da reputação de um cidadão,
Isso se pratica quase da mesma maneira na como mesmo da mais insignificante questão pecu
niária.” (N. do A.)
11 4 Vede nos fragmentos da lei Servília, da Corné-
108 Não se pode duvidar que os cônsules, antès da lia e outras, de que maneira essas leis escolhiam os
criação dos pretores, não tivessem tido os julga juizes para os crimes que se propunham punir.
mentos civis. Vede Tito Lívio, Primeira Década, liv. Frequentemente, eles eram designados por escolha,
II, cap. I; Dionísio de Halicarnasso, liv. X, pág. algumas vezes pelo sorteio, ou, finalmente, pelo sor
627, e o mesmo livro, pág. 645. (N. do A.) teio combinado com a escolha. (N. do A.)
109 Amiúde os tribunos julgaram sozinhos; nada 11 5 Sêneca, De Benef., liv. III, cap. VII, in fine. (N.
os tornava mais odiosos. Dionísio de Halicarnasso, do A.)
liv. XI, pág. 709. (N. do A.) 11 6 Vede Quintiliano, liv. IV pág. 54, in-fol., ed. de
110 Judicia extraordinário. Vede as Institutas, liv. Paris, 1541. (N. do A.)
IV. (N. do A.) 117 L. 2, § 24, ff. De Orig. Jur. Magistrados,
111 Liv. VI, pág. 360. (N. do A.) chamados decênviros, presidiam ao julgamento,
112 Albumjudicum. (N. do A.) todos sob a direção de um pretor. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 171
exerciam-no mesmo nos negócios da óidade; e muito sábia. Ela conciliou admiravelmente o
o procedimento deles, alheio às formas de jus corpo dos plebeus e o senado. Pois, como a
tiça, eram mais ações violentas do que competência de uns e de outros dependia da
julgamentos. grandeza da pena e da natureza do crime, era
Isso originou a lei Valeriana, que permitia o preciso que elas estivessem harmonizadas.
apelo ao povo contra todas as ordenanças dos A lei Valeriana suprimiu tudo o que restava
cônsules que colocassem -em perigo a vida de em Roma do governo que tivera relação com
um cidadão. Os cônsules não puderam mais os dois reis gregos dos tempos heróicos. Os
pronunciar uma pena capital contra um cida cônsules viram-se sem poder para punir os cri
dão romano contra a vontade do povo11 8. mes. Apesar de todos os crimes serem públi
cos, cumpria, entretanto, distinguir os que inte
Vemos, na primeira conjuração pelo retorno ressavam mais os cidadãos entre si, daqueles
dos Tarqíiínios, que o cônsul Bruto julga os
que interessavam mais o Estado nas suas rela
culpados; na segunda, convocam-se o senado e ções com um cidadão. Os primeiros chamam-
os comícios para julgar11 9. se privados; os segundos, crimes públicos. O
As leis, que se chamaram sagradas, conce próprio povo julgava os crimes públicos; com
deram tribunos aos plebeus, formando um relação aos privados, para, cada crime, por
corpo que teve inicialmente imensas preten intermédio de uma comissão específica, no
sões. Não se sabe qual foi a maior: se a vil meava um questor para dar-lhe andamento.
ousadia dos plebeus em demandar, ou se a Frequentemente, era um dos magistrados,
condescendência e a facilidade de conceder do algumas vezes um particular, que o povo esco
senado. A lei Valeriana permitira os apelos ao lhia. Chamavam-no questor do parricídio, ao
povo, isto é, ao povo composto de senadores, qual se faz menção nas leis das Doze
de patrícios e de plebeus. Estes últimos estabe Tábuas121.
leceram que seria diante deles que as apelações O questor nomeava o que se chamava juiz
seriam levadas. Logo se questionou se os ple da questão, o qual sorteava os jurados, forma
beus poderíam julgar um patrício. Isso foi va o tribunal e presidia ao julgamento122.
assunto de uma disputa que o caso Coriolano Convém observar aqui a parte que cabia ao
originou e que foi resolvida com este caso. senado na nomeação do questor, a fim de que
Coriolano, acusado pelos tribunos diante do se perceba como os poderes eram, a esse res
povo, afirmava, contra o espírito da lei Valé peito, equilibrados. Algumas vezes, o senado
ria, que, sendo patrício, não podia ser julgado elegia um ditador para cumprir a função de
senão pelos cônsules; os plebeus, contra o espí questor1 23, outras vezes, ordenava que o povo
rito da mesma lei, pretendiam que só eles fosse convocado por um tribuno, para que
poderíam julgá-lo, e julgaram-no. nomeasse um questor124; enfim, o povo
nomeava, por vezes, um magistrado para apre
A Lei das Doze Tábuas modificou essa sentar seu relatório ao senado a respeito de um
questão: ordenou que somente se poderia deci determinado crime e demandar-lhe um ques
dir da vida de um cidadão nos grandes Estados tor, como se vê no julgamento de Lúcio
*120. Assim, o corpo dos plebeus, ou, o
do povo118 Cipião1 2 5, em Tito Lívio1 2 6.
que é a mesma coisa, os comícios por tribos,
apenas julgaram os crimes cuja pena não pas
sasse de uma multa pecuniária. Era necessária 121 Diz Pompônio, na lei 2, no Digesto De Orig.
uma lei para infligir a pena capital; para con Jur. (N. do A.)
denar a uma pena pecuniária bastava um 1 22 Vede um fragmento de Ulpiano, que cita outro
plebiscito. da lei Cornélia; encontran.o-lo na Colação das Leis
Mosaicas e Romanas, tít. I, De sicariis et homici-
Essa disposição da Lei das Doze Tábuas foi diis. (N. do A.)
123 Isso ocorria sobretudo nos crimes cometidos
na Itália, onde o senado possuía a principal inspe
118 Quoniam de capite civis romani, injussu populi ção. Vede Tito Lívio, Primeira Década, liv. IX, cap.
romani, non erat permissum consulibus jus dicere. XXVI, sobre a conjuração de Cápua. (N. do A.)
Vede Pompônio, liv. 2, § 6, De Orig. Jur. (N. do A.) 1 2 4 Foi assim no processo da morte de Postúmio,
11 9 Dionísio de Halicarnasso, liv. V, pág. 322. (N. no ano 340 de Roma. Vede Tito Lívio, liv. IV, cap.
do A.) L. (N. do A.)
120 Os comícios por centúrias. Destarte, Mânlio 12 5 Este julgamento efetuou-se no ano 567 de
Capitolino foi julgado nesses comícios. Tito Lívio, Roma. (N. do A.)
Primeira Década, liv. VI, cap. XX. (N. do A.) 126 Liv. VIII. (N. do A.)
172 MONTESQUIEU
No ano de Roma de 604, algumas dessas Disso resultaram infinitos males. Mudou-se
comissões tomaram-se permanentes12 7. Divi- a constituição num momento em que, no fogo
diram-se progressivamente todas as matérias das discórdias civis, mal havia uma constitui
criminais em diversas partes, que foram cha ção. Os cavaleiros deixaram de ser essa ordem
madas questões perpétuas. Criaram-se diver intermediária que unia o povo ao senado e a
sos pretores e atribuíram-se a cada um algu continuidade da constituição rompeu-se.
mas dessas questões. Entregou-se-lhes, por um Havia mesmo motivos particulares que
ano, o poder de julgar os crimes que deles deveríam impedir que os julgamentos passas
dependiam e, em seguida, iam governar sua sem aos cavaleiros. A constituição de Roma
província. alicerçava-se neste princípio: aqueles deviam
Em Cartago, o senado dos cem era com ser soldados com posse suficiente para respon
posto de juizes vitalícios12 8, mas em Roma os der, com sua conduta, à república. Os cavalei
pretores eram anuais e os juizes não o eram ros, sendo os ricos, formavam a cavalaria das
nem por um ano, visto que eram escolhidos legiões. Quando sua dignidade aumentou, eles
para cada caso. Viu-se, no capítulo sexto deste não mais quiseram servir nesta milícia; foi
livro, como, em certos governos, esta disposi necessário recrutar outra cavalaria; Mário
ção era favorável à liberdade. recrutou todo tipo de gente nas legiões e a
Até o tempo dos Gracos, os juizes foram república perdeu-se13 2.
escolhidos na ordem dos senadores. Tibério Demais, os cavaleiros eram os contrata-
Graco129 ordenou que eles fossem escolhidos dores da república, causavam desgraça sobre
na ordem dos cavaleiros, mudança tão consi desgraça e faziam aparecer necessidades públi-
derável, que o tribuno se vangloriava de, com Icas das necessidades públicas. Em vez de con
apenas uma rogação, ter cortado os nervos da ferir a tais pessoas o poder de julgar, teria sido
ordem dos senadores. necessário que elas estivessem incessantemente
Deve-se notar que os três poderes podem ser sob os olhos dos juizes. Em louvor às antigas
bem distribuídos com relação à liberdade da leis francesas, é preciso que se diga isto: elas
constituição, apesar de não o serem tão bem estipularam, com os homens de negócios, com
em relação à liberdade do cidadão. Em Roma, a desconfiança que se tem pelos inimigos.
tendo o povo a maior parte do poder legisla Quando, em Roma, os julgamentos foram
tivo, parte do poder executivo e parte do poder entregues aos contratadores, não mais houve
de julgar, esse grande poder necessitava ser virtude, ordem, leis, magistratura, magistra
contrabalançado por- outro. O senado tinha dos.
parte do poder executivo e um ramo do legisla Encontramos um retrato bem ingênuo dessa
tivo13 °, mas isso não era suficiente para com situação em alguns fragmentos de Diodoro da
pensar o poder do povo. Cumpria que ele Sicília e de Dion. “Múcio Cévola”, conta
participasse do poder de julgar e isso acontecia Diodoro133, “quis restabelecer os antigos cos
quando os juizes eram escolhidos entre os tumes e viver frugal e integralmente de seus
senadores. Quando os Gracos privaram os próprios bens134, pois, tendo seus predeces-
senadores de seu poder de julgar131, o senado sores formado uma sociedade com os contrata
não mais pôde resistir ao povo. Estes atingi dores, que então tinham, em Roma, os julga
ram, portanto, a liberdade da constituição para mentos, cobriram a província de toda sorte de
favorecer a liberdade do cidadão; mas essa crimes. Mas Cévola mostrou quem eram real
desapareceu com aquela. mente os publicanos e mandou prender os que
arrastavam os outros para esse caminho.”
Relata-nos Dion13 5 que Públio Rutílio, seu
12 7 Cícero, in Bruto. (N. do A.)
12 8 Tito Lívio, liv. XXXIII, cap. XLVI, que diz ter
Aníbal tornado sua magistratura anual, prova isso. 13 2 Capite censos plerosque. Salústio, Guerra de
(N. do A.) Jugurta, cap. LXXXIV. (N. do A.)
12 9 Devemos ler Caio e não Tibério. 133 Fragmento desse autor, liv. XXXVI, na coletâ
130 Os senatus-consultos tinham força durante um nea de Conçtantino Porfirogêneto, Das Virtudes e
ano, embora não fossem confirmados pelo povo. dos Vícios. (N. do A.)
Dionísio de Halicarnasso, liv. IX, pág. 595, e liv. 13 4 Foi por ocasião de seu proconsulado da Ásia.
XI, pág. 735. (N. do A.) 13 5 Fragmento de sua história, tirado do Extrato
131 No ano de 630. (N. do A.) das Virtudes e dos Vícios. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 173
lugar-tenente, que não era menos odioso aos da região só podiam dizer que tinham como
cavaleiros, foi acusado, à sua volta, de ter rece propriedade particular o que estivesse dentro
bido presentes, e foi condenado com uma das muralhas da cidade. Não existia nem pro-
multa. Ele procedeu imediatamente à cessão de cônsul nem pretor que pudesse ou quisesse
bens. Sua inocência foi comprovada, pois opor-se a tal desordem, e que ousasse punir
encontraram-lhe muito menos bens do que se esses escravos, porque eles pertenciam aos
lhe acusava de ter roubado, e ele mostrou os tí cavaleiros que, em Roma, tinham o poder de
tulos de sua propriedade. Não quis mais per julgar13 7.” Isso foi, entretanto, uma das cau
manecer na cidade com gente dessa espécie. sas da guerra dos escravos. Direi apenas uma
“Os italianos”, conta ainda Diodoro13 6, palavra: uma profissão que só tem e só pode
“compravam na Sicília tropas de escravos ter como objetivo o lucro, uma profissão que
para lavrar seus campos e cuidar de seus reba exigia sempre e da qual nada se exigia, uma
nhos; recusavam-lhes alimentos. Esses infeli profissão surda e inexorável, que empobrecia
zes eram obrigados a assaltar nas estradas, as riquezas e a própria miséria, não deveria,
armados de lanças e de maças, cobertos com em Roma, possuir o poder de julgar.
peles de animais e rodeados por grandes cães.
Toda a província foi devastada e os habitantes
13 7 Penes quos Romae tum judicia erant, atque ex
equestri ordine solerent sortito judices eligi in causa
13 8 Fragmento do livro XXXIV, no Extrato das praetorum et proconsulum, quibus, post adminis-
Virtudes e dos Vícios. (N. do A.) tratam provinciam, dies dieta erat. (N. do A.)
Capítulo XIX
Foi assim que os três poderes foram distri próprios cidadãos tinham, pela natureza das
buídos na cidade, mas nas províncias a situa coisas, os empregos civis e militares. Isso faz
ção estava longe de ser igual. A liberdade esta com que uma república que conquista quase
va no centro e a tirania nas extremidades. não possa comunicar seu governo e reger o Es
Enquanto Roma só dominou na Itália, os tado conquistado de acordo com a forma de
povos foram governados como confederados. sua constituição. Com efeito, tendo o magis
Obedecia-se às leis de cada república. Mas trado que envia para governar o poder executi
quando ela estendeu suas conquistas, quando o vo, civil e militar, é muito necessário que ele
senado não mantinha diretamente as provín possua também o poder legislativo, pois quem
cias sob suas vistas, quando os magistrados faria leis sem ele? É mister também que ele
que estavam em Roma não mais puderam tenha o poder de julgar, pois quem julgaria
governar o império, foi preciso enviar pretores
independentemente dele? Cumpre, portanto,
e procônsules. Então, essa harmonia entre os
que o governador enviado pela república pos
três poderes desapareceu. Os que eram envia
dos tinham um poder que agrupava o de todas sua os três poderes, como aconteceu nas
as magistraturas romanas; que digo? o próprio províncias romanas.
poder do senado, o próprio poder do povo13 8. Uma monarquia pode comunicar mais facil
Eram magistrados despóticos, que muito con mente seu governo, porque os oficiais que
vinham aos longínquos lugares a que eram envia têm, uns, o poder executivo civil e,
enviados. Exerciam os três poderes e eram, se outros, o poder executivo militar, o que não
ouso servir-me do termo, os paxás da repú traz consigo o despotismo.
blica. Constituía um privilégio de grande impor
Dissemos alhures139 que, na república, os tância para um cidadão romano só poder ser
julgado pelo povo. Sem isso, ele teria sido sub
metido, nas províncias, ao poder arbitrário de
13 8 Eles proclamavam seus editos ao entrarem nas
províncias. (N. do A.) um procônsul ou de um propretor. A cidade
13 9 Liv. V, cap. XIX. Vede também os livros II, não sentia a tirania que apenas se exercia
III, IV e V. (N. do A.) sobre as nações submetidas.
174 MONTESQUIEU
Assim, no mundo romano, como na Lacede dade os tributos, ou mesmo não os pagava1 40,
mônia, os que eram livres eram extremamente as províncias eram devastadas pelos cavalei
livres e os que eram escravos eram extrema ros, que eram os contratadores da república.
mente escravos. Já nos referimos às afrontas que realizaram e
Enquanto os cidadãos pagavam tributos, toda a história delas está repleta.
estes eram arrecadados com uma equidade “Toda a Ásia espera-me como seu liberta
muito grande. Obedecia-se à determinação de dor”, dizia Mitridates1 41, “tanto ódio excita
Sérvio Túlio, que distribuira todos os cidadãos ram contra os romanos as rapinas dos procôn-
em seis classes, segundo a ordem de suas sules1 42, as exações dos homens de negócios e
riquezas, e fixara a parte de imposto propor as calúnias dos julgamentos1 43 e 1 4 4
cionalmente à parte que cada cidadão possuía Eis o que fez com que a força das províncias
no governo. Disso resultava que se sofria a nada acrescentasse à da república mas, ao
grandeza do tributo por causa da grandeza do contrário, só a enfraquecesse. Eis o que fez
crédito e se consolava com a pequenez do cré com que as províncias considerassem a perda
dito pela pequenez do tributo. da liberdade de Roma como a época do estabe
Havia ainda uma coisa admirável; sendo a lecimento da sua.
divisão de Sérvio Túlio por classe, por assim
dizer, o princípio fundamental da constituição,
1 41 Arenga extraída de Troga Pompeu, relatada
acontecia que a equidade na arrecadação dos por Justino, liv. XXXVII, cap. IV. (N. do A.)
tributos atinha-se ao princípio fundamental do
1 42 Vede os Discursos contra Verres. (N. do A.)
governo e só poderia ser suprimida com ele.
Mas, enquanto a cidade pagava sem dificul 1 43 Sabe-se que foi o tribunal de Varo que levou os
germanos à revolta. (N. do A.)
144 Laboulaye observa que a expressão Calumniae
1 40 Depois da conquista da Macedônia, cessaram litium “deve ser traduzida por chicanas odiosas e
os tributos em Roma. (N. do A.) não por calúnias dos julgamentos”.
Capítulo XX
Não basta ter tratado da liberdade política Não há senão a disposição das leis, e
em sua relação com a constituição; é neces mesmo das leis fundamentais, que forma a
sário verificá-la na relação que mantém com o liberdade em sua relação com a constituição.
cidadão. Mas na relação com o cidadão, costumes,
Disse que, no primeiro caso, é formada por maneiras, exemplos recebidos podem fazê-la
uma certa distribuição dos três poderes; nascer, e certas leis civis favorecê-la, como
porém, no segundo, cumpre considerá-la de veremos neste livro.
outro ângulo. Consiste ela na segurança, ou na Demais, na maioria dos Estados, sendo a
opinião que se tem de sua segurança. liberdade mais restringida, abalada ou des
Poderá ocorrer que a constituição seja livre truída do que o exige a constituição, é conve
e que o cidadão não o seja. O cidadão poderá niente falar das leis particulares que, em cada
ser livre e a constituição não o ser. Nesses constituição, podem favorecer ou prejudicar o
casos, a constituição será livre de direito mas princípio da liberdade da qual cada um deles
não de fato; o cidadão será livre de fato e não pode ser suscetível.
de direito.
Capítulo II
Da liberdade do cidadão
A liberdade filosófica consiste no exercício tão imperfeita, que Sérvio Túlio pronunciou a
de sua vontade, ou, pelo menos (se é preciso sentença contra os filhos de Anco Márcio, acu
falar em todos os sistemas), na opinião que se sado de ter assassinado o rei, seu sogro1 4 6. No
tem do exercício da vontade. A liberdade polí período dos primeiros reis dos francos, Clotá-
tica consiste na segurança, ou, pelo menos, na rio fez uma lei1 47 pela qual um acusado não
opinião que se tem de sua segurança. poderia ser condenado sem ser ouvido, o que
Esta segurança nunca é mais atacada do que prova uma prática contrária em algum caso
nas acusações públicas ou privadas. É, portan particular ou entre algum povo bárbaro. Cha-
to, da brandura das leis criminais que depende rondas foi quem introduziu os julgamentos
principalmente a liberdade do cidadão. contra os falsos testemunhos1 48. Quando a
As leis criminais não foram aperfeiçoadas inocência dos cidadãos não é garantida, a
de repente. Nos próprios lugares onde mais se liberdade também não o é.
procurou a liberdade, nem sempre ela foi
encontrada. Aristóteles1 4 5 conta-nos que, em
Cumes, os pais do acusador podiam ser teste 1 4 6 Tarqüínio Prisco. Vede Dionísio de Halicar
nasso, liv. IV. (N. do A.)
munhas. Na época dos reis de Roma, a lei era
1 4 7 Do ano 560. (N. do A.)
1 48 Aristóteles, Política, liv. II, cap. XII. Ele deu
1 4 B Política, liv. II, cap. VIII. (N. do A.) suas leis a Túrio na 84.* olimpíada. (N. do A.)
178 MONTESQUIEU
Os conhecimentos que se têm em alguns paí É apenas na prática desses conhecimentos
ses e se adquirirão em outros sobre os regula que a liberdade pode ser alicerçada e, num Es
mentos mais corretos que possam ser aplica tado que possuísse a este respeito as melhores
dos nos julgamentos criminais interessam ao leis possíveis, um homem que fosse processado
gênero humano mais que qualquer outra coisa e que devesse ser enforcado no dia seguinte
no mundo. seria mais livre que um paxá na Turquia.
Capítulo III
As leis que condenam à morte segundo o voto a mais para condenar1 50. Nossas leis
depoimento de uma única testemunha são fa francesas exigem dois1 51. Os gregos preten
tais à liberdade. A razão exige duas testemu diam que seu costume fora estabelecido pelos
nhas, pois uma que afirma e um acusado que deuses1 52; entretanto, esse costume também é
nega resultam num empate, e é necessário um o nosso.
terceiro para decidi-lo.
Os gregos e os romanos1*49 exigiam um 1 50 Isto é, maioria de um voto.
1 51 Sobre isso, alega-se Loisel: vox unius, yox nul-
lius; voto de apenas um, voto nulo (Institutes
1 49 Dionísio de Halicarnasso, sobre o julgamento Coutumières, liv. V, cap. V, n.° 10).
de Coriolano, liv. VII. (N. do A.) 1 52 Minervae calculus. (N. do A.)
Capítulo IV
Como a liberdade é favorecida pela natureza
das penas e pela proporção delas
Quando as leis criminais extraem cada pena da natureza1 5 4 da coisa, deve ela consistir na
da natureza específica do crime, há o triunfo privação de todas as vantagens que a religião
da liberdade. Todo o arbitrário desaparece, a oferece: expulsão dos templos; privação da
pena não mais se origina do capricho do legis sociedade dos fiéis, por um certo tempo ou
lador, mas da natureza da coisa, e não é um para sempre; fuga de sua presença; execrações,
homem que comete violência contra outro. detestações, conjurações1 5 5.
Há quatro tipos de crime: os da primeira Nas coisas que perturbam a tranquilidade
espécie atentam contra a religião; os da segun ou a segurança do Estado, as ações ocultas são
da, contra os costumes; os da terceira, contra a da alçada da justiça humana. Mas nas que afe
tranquilidade; os da quarta, contra a segu tam a Divindade, onde não existe nenhuma
rança dos cidadãos. As penas a serem aplica ação pública, não há objeto de crime; tudo diz
das devem derivar da natureza de cada espécie. respeito ao homem e Deus, que conhece a me
Não classifico entre os crimes que afetam a dida e o momento de suas vinganças. Porque,
religião os que a atacam diretamente, como se o magistrado, confundindo as coisas, procu
todos os sacrilégios simples1 53, pois os crimes ra também o sacrilégio oculto, ele dirige uma
que perturbam seu exercício são da natureza inquisição sobre um gênero de ação onde ela
dos que afetam a tranquilidade dos cidadãos não é necessária e destrói a liberdade dos cida-
ou sua segurança e devem ser colocados nesta
classe.
Para que a pena dos sacrilégios seja extraída 1 5 4 São Luís promulgou leis tão severas contra os
que juravam, que o papa julgou ser seu dever adver
ti-lo. Este príncipe moderou seu zelo e abrandou
1 53 Sacrilégios simples, isto é, que não acarretam suas leis. Vede suas ordenanças. (N. do A.)
consequências para outrem ou para a sociedade, 1 5 6 Provavelmente Montesquieu refere-se, aqui, às
sacrilégios exclusivamente religiosos. excomunhões, as quais não cita.
DO ESPIRITO DAS LEIS II 179
dãos, levantando contra eles o zelo das cons Trata-se aqui tão-só dos crimes que dizem
ciências tímidas e o das consciências atrevidas. respeito unicamente aos costumes e não dos
O mal decorre da idéia de que é necessário que afetam também a segurança pública, tais
vingar a Divindade. Porém, deve-se honrar a como o rapto e a violação, que são da quarta
Divindade e nunca vingá-la. Com efeito, se nos espécie.
orientássemos por esta última idéia, qual seria Os crimes da terceira classe são os que afe
o objetivo dos suplícios? Se as leis dos homens tam a tranquilidade dos cidadãos, e as penas a
devem vingar um ser infinito, elas se basearão esse respeito devem ser extraídas da natureza
em sua infinidade e não sobre suas fraquezas, da coisa, e se relacionam a esta tranquilidade,
sobre as ignorâncias, sobre os caprichos da como a prisão, o exílio, as correções e outras
natureza humana. penas que reorientam os espíritos inquietos e
Um historiador1 5 6 da Provença relata um os fazem entrar na ordem estabelecida.
fato que nos dá bem uma imagem do efeito que Restrinjo os crimes contra a tranquilidade
produz sobre os espíritos fracos a idéia de vin às coisas que encerram uma simples violação
gar a Divindade. Um judeu, acusado de ter da ordem, pois os que, perturbando a tranquili
blasfemado contra a Santa Virgem, foi conde dade, atingem ao mesmo tempo a segurança
nado a ser escorchado. Cavaleiros mascara devem ser colocados na quarta classe.
dos, punhais na mão, subiram ao cadafalso,
As penas para esses últimos crimes são as
expulsaram o carrasco, a fim de vingarem, eles
que chamamos suplícios. É uma espécie de
próprios, a honra da Santa Virgem. . . mas
talião, que leva a sociedade a recusar garantia
não quero influenciar as reflexões do leitor.
ao cidadão que a privou dela, ou que quis pri
A segunda classe é a dos crimes cometidos
var outro cidadão. Essa pena é extraída da
contra os costumes, como o é a violação da
natureza da coisa, tirada da razão e das fontes
continência pública ou particular; isto é, da
do bem e do mal. Um cidadão merece a morte
vigilância sobre a maneira como se deve fruir
quando violou a segurança a ponto de suprimir
dos prazeres relacionados ao uso dos sentidos
e à união dos corpos. As penas para tais cri
uma vida, ou quando tentou suprimi-la. Esta
mes devem igualmente ser extraídas da natu
pena de morte é como o remédio de uma socie
reza da coisa. A privação das vantagens que a
dade doente. Quando se viola a segurança rela
tiva aos bens, podem existir, neste caso, moti
sociedade atribui à pureza dos costumes, as
vos para que a pena seja capital; mas seria
multas, a desonra, a coerção que obriga a ocul
talvez melhor, e mais natural, que a pena dos
tar-se, a infâmia pública, a expulsão da cidade
crimes contra a segurança dos bens fosse puni
e da sociedade, enfim, todos os castigos que
são atributos da jurisdição correcional bastam da com a perda destes bens; e deveria ser
para reprimir os atrevimentos de ambos os assim, se as fortunas fossem comuns ou iguais.
sexos. Com efeito, essas coisas estão menos Porém, sendo os que não possuem bens os que
baseadas na malevolência do que no esqueci habitualmente atentam contra os bens de
mento ou no desprezo de si mesmo. outrem, foi necessário que a pena corporal
suprisse a pecuniária.
Tudo o que disse foi extraído da natureza e
1 5 6 Padre Bougerel. (N. do A.) é muito favorável à liberdade do cidadão.
Capitulo V
Máxima importante: cumpre ser muito infinidade de tiranias, se o legislador não sou
circunspecto no combate à magia e à heresia. ber restringi-la, pois, como ela não diz respeito
A acusação desses dois crimes pode afetar diretamente às ações de um cidadão, mas
extremamente a liberdade e ser a fonte de uma principalmente à idéia que se faz de seu cará
180 MONTESQUIEU
ter, ela torna-se perigosa na proporção da um milagre havia falhado por causa da magia
ignorância do povo e, desde então, um cidadão de um indivíduo, este e seu filho foram conde
encontra-se sempre em perigo, porquanto a nados à morte. De quantas coisas prodigiosas
melhor conduta que se possa ter, a moral mais não dependia esse crime? Que não sejam raras
pura, o cumprimento de todos os deveres, não as revelações; que o bispo tenha tido uma; que
constituem garantias contra as suspeitas des ela fosse verdadeira; que tivesse havido um
ses crimes. milagre; que esse milagre tivesse malogrado;
Na época de Manuel Comneno, o protesta- que a magia pudesse subverter a religião; que o
tor' 5 7 foi acusado de ter conspirado contra o referido indivíduo fosse mágico; que ele tives
imperador e de se ter servido para isso de cer se, finalmente, cometido essa magia.
tos segredos que tornam os homens invisíveis. O Imperador Teodoro Lascaris atribuía sua
Narra a biografia desse imperador que se moléstia à magia. Aos que disso eram acusa
surpreendeu Aarão lendo um livro de Salo dos só restava o recurso de tocar um ferro em
mão, cuja leitura ocasionava o aparecimento brasa sem se queimar. Seria bom, entre os gre
de uma legião de demônios. Ora, atribui-se à gos, ser mágico para se inocentar da magia.
Sua idiotice era tão grande, que , para o crime
magia um poder que engendra o inferno e,
mais incerto, reuniam as provas mais incertas.
partindo-se daí, considera-se o que se chama
No reinado de Filipe, o Longo, os judeus
um mágico como ò homem mais apto em todo foram expulsos da França, acusados de terem
o mundo para perturbar e para subverter a envenenado as fontes por meio de leprosos.
sociedade, e é-se levado a puni-lo indiscrimina Esta absurda acusação deve servir muito bem
damente. para pôr em dúvida todas aquelas que são
A indignação aumenta quando se acrescenta baseadas no ódio público.
à magia o poder de destruir a religião. A histó Não disse, aqui, que não se deve punir a
ria de Constantinopla1 58 ensina-nos que, com heresia; disse que cumpre ser muito circuns
base numa revelação que teve um bispo de que pecto ao puni-la.
1 s 7 Niceta, Vida de Manuel Comneno, liv. IV. (N. 1 58 História do Imperador Maurício, por Teofi-
do A.) lacto, cap. XI. (N. do A.)
Capítulo VI
Não permita Deus que eu diminua o horror “publicou uma lei contra esse crime; mandou
que se tem por um crime que a religião, a buscar todos os que dele eram culpados, não
moral e a política condenam alternativamente. somente após a promulgação da lei mas tam
Seria necessário proscrevê-lo ainda quando só bém antes. O depoimento de uma bastava,
desse a um sexo as fraquezas do outro e prepa sobretudo contra os ricos e contra os que eram
rasse para uma velhice infame por uma juven da facção dos verdes.”
tude vergonhosa. O que dele direi deixar-lhe-á É curioso que, entre nós, três crimes tenham
todas as ignomínias e só atingirá a tirania que sido, todos os três, castigados com a pena do
pode abusar do próprio horror que dele se deve fogo: a magia, a heresia e o crime contra a
ter. natureza, dos quais poder-se-ia provar, quanto
Como é da natureza desse crime ser oculto, ao primeiro, que não existe; quanto ao segun
ocorre amiúde que os legisladores o têm puni do, que é suscetível de uma infinidade de
do segundo o depoimento de uma criança. Isso distinções, interpretações, limitações; quanto
significava abrir uma porta muito ampla à ao terceiro, que é frequentemente obscuro.
calúnia. “Justiniano”, relata Procópio1 59, Afirmo que o crime não realizará grandes
progressos numa sociedade se o povo a isso
1 5 9 História Secreta. (N. do A.) não for levado por algum costume, como entre
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 181
os gregos, onde os jovens praticavam nus tê-las. Que não se prepare esse crime, que seja
todos os seus exercícios, como entre nós, onde proscrito por uma correta vigilância, como
a educação doméstica está fora de uso1*60, ou qualquer violação dos costumes, e ver-se-á
como entre os asiáticos, onde certos cidadãos subitamente a Natureza defender seus direitos
possuem um grande número de mulheres, as ou retomá-los. Suave, amável, encantadora, ela
quais desprezam, enquanto outros não podem distribuiu seus prazeres com uma mão liberal
e, em nos cumulando de delícias, prepara-nos,
1 60 . . .onde a educação doméstica está fora de pelos filhos que nos fazem, por assim dizer,
uso, ou seja, onde a educação não é ministrada no
lar, mas coletivamente, em determinados estabeleci renascer para satisfações maiores que esses
mentos. próprios prazeres.
Capítulo VII
Do crime de lesa-mqjestade
As leis da China estipulam que quem colocado, por descuido, uma observação num
desrespeitar o imperador deve ser punido com memorial assinado com pincel vermelho pelo
a morte. Como não definem o que é essa falta imperador, decidiu-se que ele faltara com o
de respeito, qualquer coisa pode fornecer pre respeito a esse, fato que acarretou contra essa
texto para suprimir a vida e exterminar a famí
família uma das mais terríveis perseguições
lia que se queira.
que a história já conheceu1 62.
Tendo duas pessoas encarregadas de fazer o
diário da corte incluído num fato circuns Basta que o crime de lesa-majestade não
tâncias que não se revelaram verdadeiras, afir seja especificado para que o governo degenere
mou-se que mentir num diário da corte signifi em despotismo. Ater-me-ei mais longamentc
cava falta de respeito à corte; e condenaram- sobre isso no livro Da Composição das Leis,
nas à morte1 61. Tendo um príncipe de sangue
Capítulo VIII
Constitui também abuso violento chamar de Outra lei declarara que os que atentam contra
crime de lesa-majestade a uma ação que não o os ministros e oficiais do príncipe são crimino
é. Uma lei dos imperadores1 63 castigava como sos de lesa-majestade, como se atentassem
sacrílegos os que colocavam em dúvida o jul contra o próprio príncipe1 6 5. Devemos essa lei
gamento do príncipe e duvidavam do mérito a dois príncipes1 66 cuja fraqueza é célebre na
dos que tinham sido escolhidos para alguma história; dois príncipes que foram guiados por
função1 64. Foram precisamente o gabinete e seus ministros como os rebanhos são guiados
os favoritos que estabeleceram esse crime. pelos pastores; dois príncipes, escravos no
palácio, crianças no conselho, estranhos aos
1 63 Graciano, Valentiniano e Teodósio. É a ter exércitos, que só conservaram o império por-
ceira no código De Crim. Sacril. (N. do A.)
1 6 4 Sacrilegii instar est dubitare an is dignus sit
quem elegerit imperator, ibid. Esta lei serviu de mo 1 6 5 Lei quinta, ad leg. Jul. mqj. Código IX, tít.
delo à lei de Rogério, nas constituições de Nápoles, VIII..(N. do A.)
tít. IV. (N. do A.) 1 6 6 Arcâdio e Honório. '(N. do A.)
182 MONTESQUIEU
que o entregaram diariamente. Alguns desses serve lealmente a seu príncipe e a seu Estado;
favoritos conspiraram contra seus imperado tiram-no a ambos; é como se se privasse o pri
res. Fizeram mais: conspiraram contra o impé meiro de um braço1 68 e o segundo de uma
rio, atraíram os bárbaros e, quando se preten parte de seu poder”. Quando a própria servi
deu sustá-los, o Estado estava tão fraco que foi dão dominar na terra, ela não falará de outro
necessário violar sua lei e expor-se ao crime de modo.
lesa-majestade para puni-los. Outra lei de Valentiniano, Teodósio e
Foi, entretanto, nesta lei que se funda Arcádio1 69 declara os falsos moedeiros
mentou o acusador do Senhor de Cinq- culpados do crime de lesa-majestade. Mas
Mars1 6 7, quando, pretendendo provar que ele isso não significa confundir as idéias das coi
era culpado do crime de lesa-majestade por ter sas? Atribuir a outro crime o nome de lesa-ma
desejado afastar o Cardeal de Richelieu dos jestade não é diminuir o horror do crime de
negócios, disse: “O crime que afeta a pessoa lesa-majestade?
dos ministros dos príncipes é reputado, pelas
constituições dos imperadores, tão grave como
o que afeta os próprios príncipes. Um ministro 1 68 Nam ipsi pars corporis nostri sunt. Encon
tramos a mesma lei no código ad. leg. Jul. maj. (N.
do A.)
1 6 7 Mémoires de Montrésor, t. I, pág. 238, ed. de 169 È a nona no código Teod., Defalsa moneta.ÇN.
Colônia, 1723. (N. do A.) do A.)
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Dos pensamentos
Um tal Mársias sonhou que cortava a gar grande tirania porque, mesmo que Mársias
ganta de Dionísio1 80. Este mandou matá-lo, tivesse pensado, não teria perpetrado o atenta
do181. Às leis não cabe punir senão as ações
afirmando que ele não teria sonhado à noite, se
exteriores.
não tivesse pensado nisso de dia. Era uma
181 É necessário que ao pensamento se acrescente
180 Plutarco, Vida de Dionísio. (N. do A.) qualquer ação. (N. do A.)
Capítulo XII
Nada torna os crimes de lesa-majestade todos os discursos. Nada é tão equívoco como
ainda mais arbitrários do que quando palavras tudo isso. Como, pois, distinguir um crime de
indiscretas tornam-se seu motivo. Os discursos lesa-majestade? Em toda parte em que ele é
são tão sujeitos a interpretação, há tanta dife estabelecido, não somente a liberdade desapa
rença entre a indiscrição e a malícia e tão rece como ainda sua própria sombra.
pouca nas expressões que elas empregam, que No manifesto da falecida czarina183* , diri
a íeí quase não pode submeter as palavras a gido contra a família Dolgoruki1 84 c 1 8 5, um
uma pena capital, a menos que declare expres desses príncipes é condenado à morte por ter
samente as que submete a essa pena1 82. proferido palavras indecentes relacionadas à
As palavras não formam um corpo de deli sua pessoa; outro, por ter malignamente inter
to; elas só ficam na idéia. Geralmente, nada pretado suas sábias disposições para o impé
significam em si mesmas, mas pela maneira rio, e ofendido sua sagrada pessoa por pala
como são pronunciadas. Frequentemente, re- vras pouco respeitosas.
petindo-se as mesmas palavras, atribuímos a Não pretendo diminuir a indignação que se
elas um sentido diferente, dependendo esse sen deve ter contra os que querem macular a glória
tido de sua relação com outras coisas. Algu de seu príncipe, mas deixo claro que, se se pre-
mas vezes, o silêncio é mais expressivo que
183 A falecida czarina: Ana Ivanovna
182 Si non tale sit delictum, in quod vel scriptura (1693-1740).
legis descendit, vel ad exemplum legis vindicandum 184 Em 1740. (N. do A.)
est, diz Modestino na lei 7, § 3, ff. ad leg. Jul. maj. 185 A família de Ivan Dolgoruki, favorito de Pedro
(N. do A.) II e supliciado em Novgorod.
184 MONTESQUIEU
tende moderar o despotismo, uma simples cor minosa. Invertemos tudo se fazemos das pala
reção, nestas ocasiões, será mais adequada do vras um crime capital, em vez de considerá-las
que uma acusação de lesa-majestade sempre como indício de um crime capital.
terrível à própria inocência18 6. Os imperadores Teodósio, Arcádio e Honó-
As ações não são diárias; muitas pessoas rio escreveram a Rufino, prefeito do pretório:
podem observá-las; uma falsa acusação sobre “Se alguém fala mal de nossa pessoa ou de
fatos pode ser facilmente esclarecida. As pala nosso governo, não ó puniremos18 7: se falou
vras que são ligadas a uma ação adquirem a por leviandade, cumpre desprezá-lo; se foi por
natureza desta ação. Assim, um homem que insensatez, cumpre lamentá-lo; se foi por injú
numa praça pública exorta os súditos à revolta ria, cumpre perdoá-lo. Destarte, deixando as
torna-se culpado de lesa-majestade, porque as coisas tal como estão, dai-nos informações
palavras são ligadas à ação e dela participam. sobrç elas, a fim de que julguemos as palavras
Não se punem as palavras mas uma ação pelas pessoas e analisemos corretamente se
cometida, na qual empregam-se as palavras. devemos submetê-las a julgamento ou negli
Elas só se transformam em crime quando pre genciá-las”.
param, acompanham ou seguem uma ação cri-
187 Si id ex levitate processerit, contemnendum
18 8 Nec lubricum linguae adpoenam facile trahen- est; si ex insania, miseratione dignissimum; si ab
dum est. Modestino, na lei 7, § 3, ff.ad. leg.Jul. mqj. injuria, remittendum. Leg. única, cod. si quis impe
(N. do A.) rai maled. (N. do A.).
Capítulo XIII
Dos escritos
Os escritos contêm alguma coisa de mais cracia eles não são impedidos pelo mesmo mo
permanente do que as palavras, mas, quando tivo que no governo de um só o são. Como eles
não preparam o crime de lesa-majestade, não são geralmente compostos contra pessoas
constituem uma questão de lesa-majestade. poderosas, lisonjeiam na democracia a malig-
Augusto e Tibério, entretanto, atribuíram nidade do povo que governa. Na monarquia
aos escritos a pena de lesa-majestade188; são proibidos, mas fizeram-nos antes um caso
Augusto o fez quando de certos escritos dirigi de polícia do que um crime. Podem eles agra
dos contra homens e mulheres ilustres; Tibério dar à malignidade geral, consolar os descon
tentes, diminuir a inveja que se tem dos altos
o fez por causa dos crimes que pensou serem
cargos, dar ao povo a paciência de sofrer e
cometidos contra ele. Nada foi mais fatal à
fazê-lo rir de seus sofrimentos.
liberdade romana. Cremúcio Cordo foi acusa A aristocracia é o governo que mais proíbe
do porque, em seus anais, chamara Cássio de as obras satíricas. Os magistrados são peque
último dos romanos189. nos soberanos que não são suficientemente
Os escritos satíricos são pouco conhecidos poderosos para desprezar as injúrias. Se, na
nos Estados despóticos, onde o desalento, de monarquia, um escrito é dirigido contra o
wn lado, e a ignorância, de outro, não dão nem monarca, ele está colocado tão aíto que não é
talento nem vontade de escrevê-los. Na demo alcançado. Um senhor aristocrata é por ele
atravessado de lado a lado. Dessa maneira, os
decênviros, que formavam a aristocracia, puni
188 Tácito, Anais, liv. I, cap. LXXII. Isto continuou ram com a morte os escritos satíricos190.
nuou durante os reinados seguintes. Vede a primeira
lei do código Defamosis libellis. (N. do A.)
189 Tácito, Anais, liv. IV, cap. XXXIV. (N. do A.) 190 A Lei das Doze Tábuas. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 185
Capítulo XIV
Capítulo XV
Augusto determinou que os escravos dos nizada em favor de Tarqüínio, mas não foi tes
que tivessem conspirado contra ele seriam ven temunha contra os filhos de Bruto. Era justo
didos ao público, a fim de que pudessem depor conceder liberdade aos que tinham prestado
contra seus senhores19 4. Não se deve despre tão grande serviço à pátria; mas não lha deram
zar nada que possibilite a descoberta de um a fim de que prestassem este serviço à pátria.
grande crime. Destarte, num Estado em que Desta maneira, o Imperador Tácito ordenou
existam escravos, é natural que eles possam ser que escravos não poderíam testemunhar con
informantes; mas não poderíam ser testemu tra o seu senhor, inclusive no crime de lesa-
nhas. majestade19 5, lei que não foi incluída na
Víndex informou sobre a conspiração orga- compilação de Justiniano.
Capítulo XVI
É necessário fazer justiça aos Césares, pois Orações de Cícero, Pro Cluentio, art. 3; in Pisonem,
não foram os primeiros a imaginar as tristes art. 21; Segunda contra Verres, art. 5; Epístolas
leis que fizeram. Foi Sila1 9 6 quem lhes ensi Familiares, liv. III, carta II. César e Augusto inseri-
nou que não se devia punir os caluniadores. ram-nas nas leis Júlias; outros fizeram novos acrés
Logo se chegaria mesmo a recompensá-los19 7. cimos. (N. do A.)
197 Et quo quis distinctior accusator, eo magis
honores assequebatur, ac veluti sacrosanctus erat.
19 6 Sila fez uma lei de majestade, mencionada nas Tácito, An., IV, cap. XXXVI. (N. do A.)
186 MONTESQUIEU
Capítulo XVII
“Quando teu irmão, teu filho, tua filha, tua Ela só deve ser aplicada com toda a sua
bem-amada esposa ou teu amigo, que é como severidade ao crime de lesa-majestade de pri
tua alma, te disserem em segredo: Vamos a ou meiro grau. Nesses Estados é muito impor
tros deuses, tu os apedrejarás; primeiro tua tante não confundir os diferentes graus desse
mão estará sobre ele, logo a de todo o povo.” crime.
Esta lei do Deuteronômio1 98 não poderia ser
No Japão, onde as leis anulam todas as
uma lei civil na maioria dos povos que conhe
cemos porque abriria as portas a todos os idéias da razão humana, o crime de não revela
crimes. ção aplica-se aos casos mais comuns.
A lei que em vários Estados ordena, sob Uma relação200 fala-nos de duas jovens que
pena de morte, revelar as conspirações das foram encerradas até a morte num cofre eriça-
quais não se foi nem mesmo cúmplice não é
menos dura1". Quando é transportada para o do de farpas; uma por ter tido uma intriga
governo monárquico, é muito conveniente amorosa qualquer; outra, por não a ter
restringi-la. revelado.
1 98 Cap. XIII, versículos 6, 7, 8 e 9. (N. do A.) 200 Recueil des Voyages qui ont Servi à
199 Ela foi causa da morte de Thou, executado por lÉtablissement de la Compagnie des Indes, pág.
não ter revelado a conspiração de Cinq-Mars. 423, liv. V, parte II, (N. do A.)
Capítulo XVIII
Quando uma república chegou a exterminar filhos201, algumas vezes cinco dos parentes
os que pretenderam derrubá-la é necessário mais próximos202. Expulsaram uma infini
terminar logo com as vinganças, com as penas dade de famílias. Com isso enfraqueceram
e com as próprias recompensas. suas repúblicas; o exílio ou o retorno dos exila
Não se pode aplicar grandes punições e, dos foram sempre épocas que assinalaram a
consequentemente, grandes modificações, sem modificação da constituição.
colocar nas mãos de alguns cidadãos um gran Os romanos foram mais sábios. Quando
de poder. Ê melhor, portanto, nesses casos, Cássio foi condenado por ter aspirado à tira
muito perdoar do que muito punir; exilar nia, discutiu-se se seus filhos deveríam ser
pouco do que exilar muito; deixar os bens do mortos; eles não foram condenados a nenhuma
que multiplicar os confiscos. Estabelecer-se-ia pena. “Os que pretenderam”, diz Dionísio de
a tirania dos vingadores sob o pretexto de vin Halicarnasso203; “mudar esta lei no fim da
gar a república. Não se trata de destruir quem guerra dos Marsós e da guerra civil e destituir
domina mas a dominação. Cumpre retornar dos cargos os filhos dos proscritos por Sila são
tão logo seja possível a esse ritmo normal de
governo em que as leis tudo protegem e não se 201 Dionísio de Halicarnasso, Antiguidades Ro
armam contra ninguém. manas, liv. VIII. (N. do A.)
Os gregos não colocaram limites às vingan 202 Tyranno occiso, quinque ejusproximos cogna-
tione, magistratus necato. Cícero, De Inventione,
ças que tornaram contra os tiranos ou contra liv. II, cap. XXIX. (N. do A.)
os que suspeitãram sê-lo. Mandaram matar os 203 Liv. VIII, pág. 547. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS II 187
muito criminosos.” Vê-se, nas guerras de tanto os meios que emprega são superiores aos
Mário e de Sila, até que ponto as almas dos outros, tanto os ricos estarão em segurança,
romanos se tinham paulatinamente depravado. tanto o baixo povo estará tranquilo, tanto se
Parecia que coisas tão funestas não mais se teme pôr em perigo a vida dos cidadãos, tanto
riam vistas. Porém na época dos triúnviros se quer apaziguar os soldados e tanto, final
quis-se ser mais cruel parecendo sê-lo menos. mente, se será feliz 2 0 5.
Afligimo-nos ao ver os sofismas que a cruel Roma estava inundada de sangue quando
dade utilizou. Encontramos em Apiano20 4 a Lépido venceu na Espanha e, por um absurdo
fórmula das proscrições. Dirieis que seu único sem precedentes, ordenou que se regozijasse,
objetivo era o bem da república, tanto nos fala sob pena de ser proscrito20 6.
de sangue-frio, tanto nos mostra as vantagens,
20 5 Quodfelixfaustumque sit. (N. do A.)
20 6 Sacris et epulis dent hunc diem: qui secus faxit,
20 4 Das Guerras Civis, liv. IV. (N. do A.) interproscriptos esto. (N. do A.)
Capítulo XIX
Há, nos Estados onde mais se cuida da gamento que, tendo sido aprovado pelas duas câma
liberdade, leis que a violam contra um só, a ras e assinado pelo rei, passa a ato, pelo qual o acu
sado é declarado culpado de alta traição, sem outra
fim de conservá-la para todos. Tais são, na formalidade e sem apelo ”. As últimas edições subs
Inglaterra, os bilis denominados de atingir20 7. tituem esta nota pela seguinte: "Não basta, nos tri
Eles remontam às leis de Atenas que estatuíam bunais do reino, que haja uma prova tal que os jui
contra um indivíduo208, posto que fossem zes sejam convencidos; cumpre ainda que esta
prova seja formal, isto é, legal; e a lei exige que hqja
estabelecidas pelo sufrágio de seis mil cida duas testemunhas contra o acusado; outra prova
dãos. Eles remontam às leis que se estabele não bastaria. Ora, se um homem reputado culpado
ciam em Roma contra os cidadãos particula do que se chama alto crime tinha encontrado meio
res, e que se chamavam privilégios200. Só de afastar as testemunhas, de modo a tornar impos
sível sua condenação pela lei, poder-se-ia dirigir
eram feitas nos grandes Estados do povo. Mas contra ele um bill particular de atingir, ou seja:
qualquer que fosse a maneira com que os fazer uma lei especial contra sua pessoa. Procede-se
povos as outorgassem, Cícero desejava que aqui como para todos os demais bilis; é necessário
fossem abolidas, pois só existe a força da lei que passe pelas duas câmaras e que o rei dê o seu
consentimento, sem o que não há bill, isto é, julga
quando ela estatui para todos210. Confesso, mento. O acusado pode fazer com que seus advoga
entretanto, que a prática dos povos mais livres dos falem contra o bill, e pode-se falar na câmara
que já existiram sobre a terra faz-me acreditar em favor do bill”. (N. dos T.)
que existem casos em que é mister, por certo 208 Legem de singulari aliquo ne rogato, nisi sex
millibus ita visum. Ex Andocide de mysteriis. Tra-
tempo, colocar um véu sobre a liberdade, tal ta-se do ostracismo. (N. do A.)
como se esconde a estátua dos deuses2 11. 209 De privis hominibus latae.Leg., Cícero, De liv.
III, cap. XIX. (N. do A.)
21 0 Scitum est jussum in omnes. Cícero, ibid. (N.
20 7 O texto francês apresenta aqui, como nota, a do A.)
seguinte variante contida nas edições de 1748 e de 211 Os amigos da “liberdade” muito se indignaram
1749 in-4.° e reproduzida segundo a edição Labou- com essa frase de Montesquieu. Nós acreditamos
laye, que julgamos útil inserir também na presente que é possível tomá-la num sentido razoável e que
tradução portuguesa: “O autor da continuação de em política haja ocasião em que se necessite suspen
Rapin Thoyras define o bill de atingir como um Jul der as leis.
188 MONTESQUIEU
Capitulo XX
Sucede, amiúde, nos Estados populares, que era estigmatizado de infâmia213 e marcava-
as acusações sejam públicas, e que seja permi se-lhe a fronte com a letra K21 4. Vigiava-se o
tido a todo homem acusar quem desejar. Isso acusador a fim de que ele não pudesse corrom
acarretou o estabelecimento de leis capazes de per os juizes ou as testemunhas21 5.
defender a inocência dos cidadãos. Em Atenas, Já me referi a esta lei ateniense e romana
o acusador que não obtivesse a quinta parte que permitia ao acusado retirar-se antes do
dos votos pagava uma multa de mil dracmas. julgamento.
Ésquines, que acusara Ctesifonte, incorreu
nesta pena212. Em Roma, o acusador injusto 213 Pela lei Remnia. (N. do A.)
21 4 É a primeira letra da palavra Kalumnia na
velha ortografia. Cf. Plínio, Panegyricus, cap.
212 Vede Filostrato, liv. I, Vida dos Sofistas, Vida XXXV.
de Ésquines. Vede também Plutarco e Fócio. (N. do 21 5 Plutarco, no tratado: Como se Poderia Apro
A.) veitar a Utilidade de seus Inimigos. (N. do A.)
Capítulo XXI
Um cidadão já adquire uma superioridade Essas leis cruéis contra os devedores muitas
muito grande sobre outro em lhe emprestando vezes colocaram em perigo a república roma
um dinheiro que esse último só tomou empres na. Um homem coberto de chagas evadiu-se da
tado para dele se desfazer, e consequente casa de seu credor e apareceu na praça21 8. O
mente, não mais o tem. Que aconteceria se, povo comoveu-se com esse espetáculo. Outros
numa república, as leis aumentassem ainda cidadãos que seus credores não ousavam mais
mais essa servidão? reter saíram de seus calabouços. Fizeram-se-
Em Atenas e em Roma21 6 inicialmente foi Ihes promessas que não foram cumpridas; o
permitido vender os devedores que não esta povo retirou-se para o Monte Sagrado. Não
vam em condições de saldar sua dívidas. Em obteve a ab-rogação dessas leis, mas um
Atenas, Sólon corrigiu essa prática: ordenou magistrado que o defendesse219. Saía-se da
que ninguém seria escravizado por dívidas anarquia, acreditava-se mergulhar na tirania;
civis. Mas, em Roma, os decênviros21 7 não Mânlio, para tornar-se popular, ia retirar das
reformaram igualmente essa prática e, apesar mãos dos credores os cidadãos que tinham
de terem diante de seus olhos a regulamen sido reduzidos à escravidão220. Sustaram-se
tação de Sólon, não quiseram segui-la. Não é o os desígnios de Mânlio mas o mal sempre per-
único item da Lei das Doze Tábuas em que se durava. Leis particulares concederam aos
vê o desígnio dos decênviros de contrariar o devedores facilidades no pagamento221 e, no
espírito da democracia.
218 Dionísio de Halicarnasso, Antiguidades Ro
21 6 Muitos vendiam os filhos para pagar dívidas. manas, liv. VI. (N. do A.)
Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.) 219 Instituições dos tribunos do povo.
21 7 Parece, pela História, que essa prática não se 220 Plutarco, Vida de Fúrio Camilo, cap. XVIII.
tinha estabelecido entre os romanos antes da Lei (N. do A.).
das Doze Tábuas. Tito Lívio, Primeira Década, liv. 221 Vede, mais abaixo, o capítulo XXII do Liv.
II, cap. XXIII e XXIV. (N. do A.) XXII. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS II 189
ano 428 de Roma, os cônsules apresentaram horror contra os tiranos que lhe tinha dado a
uma lei222 que suprimiu o direito dos credores desgraça de Lucrécio. Trinta e sete anos22 6
de manter os devedores em servidão nas suas depois do crime infame de Papiro, um crime
casas223. semelhante22 7 fez com que o povo se retirasse
Um usurário chamado Papiro pretendera para o Janículo228 e que a lei feita para a
corromper a pudicícia de um jovem chamado segurança dos devedores readquirisse nova
Públio22 4 que ele mantinha preso. O crime de força.
Sexto22 5deu a Roma a liberdade política; o de Desde essa época, os credores foram antes
Papiro, a liberdade civil. perseguidos pelos devedores por terem violado
Foi do destino desta cidade que novos cri leis estabelecidas contra a usura do que os
mes aí assegurassem a liberdade que crimes devedores por não as terem saldado.
antigos lhe tinham ocasionado. O atentado de
Ápio contra Virgínia restabeleceu no povo este 22 6 No ano 465 de Roma. (N. do A.)
22 7 O de Pláucio que atentou contra a pudicícia de
222 Cento e vinte anos depois da Lei das Doze Tá Vetúrio, Valério Máximo, liv. VI, cap. I, art. IX.
buas. Eo anno plebi romanae velut aliud initium Não se deve confundir esses,dois acontecimentos.
libertatis factum est, quod necti desierunt. Tito Não se trata das mesmas pessoas nem da mesma
Lívio, liv. VIII, cap. XXVIII. (N. do A.) época. (N. do A.)
223 Bona debitoris, non corpus obnoxium esset. 22 8 Vede um fragmento de Dionísio de Halicar
Ibid. (N. do A.) nasso, no Extrato das Virtudes e dos Vícios, Epí-
22 4 Ler: Publílio. tome de Tito Lívio, liv. XI e Freinshemius, liv XI.
22 5 Sexto Tarqüínio. (N. do A.)
Capítulo XXII
A coisa mais inútil do mundo para o prín que sempre se acreditam muito justificados por
cipe tem, frequentemente, enfraquecido a liber suas ordens, por um obscuro interesse de Esta
dade nas monarquias: os comissários nomea do, pela escolha que deles se fez e por seus pró
dos algumas vezes para julgar um indivíduo. prios temores.
Os comissários são tão pouco úteis para o No reinado de Henrique VIII, quando se
príncipe, que não vale a pena que ele modifi processava um par, faziam-no ser julgado por
que a ordem das coisas para isso. Ele está comissários escolhidos na câmara dos pares;
moralmente seguro que possui mais espírito de com este procedimento condenaram-se à morte
probidade e de justiça do que seus comissários todos os pares que se quis.
Capítulo XXIII
São necessários espiões na monarquia229? necessária à pessoa pode fazer julgar da infâ
Não é esta a prática comum dos bons prínci mia da coisa. Um príncipe deve tratar com
pes. Quando um homem é fiel às leis, ele está seus súditos com candura, franqueza, confian
satisfeito com o que deve ao príncipe. Cumpre, ça. Quem tem tantas inquietudes, suspeitas e
ao menos, que ele tenha sua casa para asilo e o
temores é um ator que não está à vontade para
resto de sua conduta em segurança. A espiona
gem talvez fosse tolerável se pudesse ser exer representar seu papel. Quando percebe que as
cida por pessoas honestas, mas a infâmia leis estão de posse de sua força e que são
respeitadas, pode acreditar-se em segurança. O
22 9 Trata-se de espiões operantes no civil e da comportamento geral informa-o sobre o com
mola da política interna. portamento de todos os particulares. Que não
190 MONTESQUIEU
tenha ele nenhum temor, pois não pode imagi pre se imagina que o príncipe teria concedido.
nar quanto se é levado a amá-lo. Ah! E por Mesmo quando das calamidades públicas,
que não seria amado? Ê a fonte de quase todo nunca acusamos sua pessoa; queixamo-nos
bem que se pratica e quase todas as punições daquilo que ele ignora ou nos queixamos de
correm por conta das leis. Aparece sempre ao que ele está confundido pelas pessoas corrom
povo com um rosto sereno; sua própria glória pidas que o cercam. Se o príncipe soubesse!
a nós se comunica e seu poder sustenta-nos. A — exclama o povo. Essas palavras são uma
prova de que é amado é que se tem confiança espécie de invocação e uma prova da con
nele, e que, quando um ministro recusa, sem fiança que nele se deposita.
Capítulo XXIV
Os tártaros são obrigados a colocar seu têm motivos para temê-las, e a menor pena que
nome em suas flechas a fim de que se saiba se pode infligir-lhes é não acreditar neles. Só se
quem as lança. Filipe da Macedônia, tendo poderia prestar-lhes atenção nos casos em que
sido ferido durante o cerco de uma cidade, não poderíam sofrer a lentidão da justiça
encontrou no dardo: Aster assestou este golpe comum e nos que concernem à salvação do
mortal em Filipe230. Se os que acusam o fizes príncipe. Neste caso pode-se acreditar que
sem visando o bem público, não o acusariam quem acusa fez um esforço que desatou sua
diante do príncipe, que pode ser facilmente língua e a fez falar. Porém, em outros casos,
prevenido, mas diante dos magistrados, que cumpre dizer com o Imperador Constâncio:
têm regras que só são temíveis para os calunia “Não poderiamos suspeitar daquele a quem
dores. O fato de não quererem deixar as leis
faltou um acusador quando não lhe faltava um
entre eles e os acusados é uma prova de que
inimigo231”.
230 Plutarco, Obras Morais, Colação de Algumas
Histórias Romanas e Gregas, t. II, pág. 487. (N. do 231 Leg., VI, Cod. Teod. Defamos. libellis. (N. do
A.) A.)
Capítulo XXV
A autoridade real é uma grande mola que opinião que o povo tem da moderação do
deve movimentar-se fácil e silenciosamente. Os governo. Um ministro inábil quer sempre vos
chineses louvam um de seus imperadores que advertir de que sois escravos. Mas, se isso
governou, dizem eles, como o céu, isto é, pelo fosse verdade, ele deveria procurar fazer com
seu exemplo. que esse fato fosse ignorado. Ele só sabe escre
Há casos em que o poder deve agir em toda ver-vos ou dizer-vos que o príncipe está abor
recido, surpreso, que manterá a ordem. Há
a sua extensão; há outros em que deve agir por uma certa facilidade no comando: é mister que
seus limites. O sublime da administração é o príncipe encoraje e que sejam as leis que
saber exatamente qual é a parte do poder, ameacem232.
grande ou pequena, que se deve empregar nas
diferentes circunstâncias. 232 Nerva, diz Tácito, aumentou a indulgência do
Nas monarquias, toda felicidade consiste na poder. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 191
Capítulo XXVI
Perceber-se-á isso muito melhor pelos con sejam apresentadas petições antes que duas te
trastes. nham sido apresentadas a seus oficiais. Pode-
“O Czar Pedro I”, relata o Senhor Perry233,
se, em caso de denegação da justiça, apresen
“fez uma nova ordenança proibindo que lhe
tar-lhe a terceira, mas quem não tiver razão
233 Estado da Grande Rússia, pág. 173, ed. de deverá perder a vida. Desde então, ninguém
Paris, 1717. (N. do A.) apresentou petição ao czar.”
Capítulo XXVII
Os costumes do príncipe contribuem tanto desde que os aprecie. Que ganhe o coração
para a liberdade como as leis; ele pode, tal mas não cative o espírito. Que se torne popu
como as leis, fazer dos homens animais, e dos lar. Deve orgulhar-se do amor de seu súdito
animais, homens. Se ele aprecia as almas mais humilde, pois se trata, sempre, de
livres, terá súditos; se aprecia as almas vis, homens. O povo exige tão pouca consideração,
terá escravos. Quer ele conhecer a suprema que é justo concedê-la; a infinita distância que
arte de reinar? Que traga para junto de si a separa o soberano do povo impede que este úl
honra e a virtude, que atraia o mérito pessoal. timo o incomode. Exorável à súplica, cumpre
Pode mesmo dar, algumas vezes, atenção aos que seja inflexível quanto às demandas e que
talentosos. Que não tema esses rivais chama saiba que seu povo frui de suas recusas e seus
dos homens de mérito, pois são seus iguais, cortesãos de suas graças.
Capítulo XXVIII
Cumpre que eles sejam extremamente mode insultam, eles humilham mas não desonram;
rados na zombaria. Essa agrada quando é mas os monarcas humilham e desonram.
comedida porque oferece possibilidade de criar O preconceito dos asiáticos é tal, que enca
familiaridade. Porém uma zombaria ferina ram uma afronta cometida pelo príncipe como
lhes é bem menos permitida do que ao último uma bondade paternal, e tal é nossa maneira
de seus súditos, porque são os únicos que sem de pensar, que acrescentamos ao cruel senti
pre ferem mortalmente. mento da afronta o desespero de nunca poder
Ainda menos devem dirigir contra um de mos lavá-la.
seus súditos um insulto pesado, pois os monar Devem eles ficar encantados por terem súdi
cas existem para perdoar, para punir, mas tos a quem a honra é mais cara que a vida e
nunca para insultar. não é menos um motivo de fidelidade do que
Quando insultam seus súditos, eles os tra de coragem.
tam bem mais cruelmente do que o turco ou o Podem ser lembradas as desgraças ocorri
moscovita trata os seus. Quando esses últimos das aos príncipes por terem insultado seus sú
192 MONTESQUIEU
ditos, as vinganças de Quereas, do eunuco rique III, que revelara um de seus defeitos
Narses e do Conde Juliano e, enfim, da Duque secretos, atormentou-o durante toda a sua
sa de Montpensier que, indignada contra Hen vida.
Capítulo XXIX
Apesar de ser o governo despótico, em sua Veda entre os hindus, os livros clássicos entre
natureza, o mesmo em toda parte, as circuns os chineses. Ó código religioso completa o có
tâncias, uma opinião religiosa, um precon digo civil e fixa o arbitrário.
ceito, exemplos recebidos, uma mudança de Não é inconveniente que, nos casos duvido
idéias, de maneiras, de costumes, podem, sos, os juizes consultem os ministros da reli
entretanto, introduzir nele diferenças conside gião23 5. Destarte, na Turquia, os cádis consul
ráveis. tavam os molás23 6, porque, se o caso deve ser
É útil que certas idéias aí sejam estabele punido de morte, poderia ser conveniente que o
cidas. Assim, na China, o príncipe é conside juiz particular, se há algum, consulte o gover
rado o pai dos povos e, nos inícios do império nador, a fim de que o poder civil e o eclesiás
dos árabes, o príncipe era seu pregador23 4. tico sejam também moderados pela autoridade
Convém que haja algum livro sagrado que política.
sirva de regra, como o Alcorão entre os ára
bes, os livros de Zoroastro entre os persas, o 23 5 História dos Tártaros, III parte, pág. 277, nas
notas. (N. do A.)
23 6 Montesquieu não distingue o molá e o mufti. O
23 4 Os califas. (N. do A.) molá é um juiz de ordem superior.
Capítulo XXX
considerados2 42 escravos, e os que escapa 2 42 Há normalmente, nas monarquias, uma lei que
vam, escravos fugitivos, a prática da Pérsia proíbe aos que têm empregos públicos abandonar o
reino sem a permissão do príncipe. Esta lei deve ser
era, entretanto, muito útil ao despotismo, onde estabelecida também nas repúblicas. Mas, nas que
o temor da fuga ou a evasão dos devedores têm instituições singulares, a defesa deve ser geral
paralisa ou modera as perseguições dos paxás para que não se importem costumes estrangeiros.
e dos exatores. (N. do A.)
LIVRO DÉCIMO TERCEIRO
DAS RELAÇÕES QUE A ARRECADAÇÃO DOS TRIBUTOS
E A GRANDEZA DAS RENDAS PUBLICAS
TEM COM A LIBERDADE
Capítulo I
As rendas do Estado são uma parcela que de, os que, com um espírito inquieto, estavam
cada cidadão dá de seu bem para ter a segu na direção dos negócios sob o governo do prín
rança da outra ou para fruí-la agradavelmente. cipe, julgaram que as necessidades do Estado
Para fixar corretamente essas rendas, cum eram as necessidades de suas almas insignifi
pre considerar as necessidades do Estado e as cantes.
necessidades dos cidadãos. Não se deve tirar A sabedoria e a prudência devem regula
das necessidades reais do povo para suprir as mentar tão bem como a porção que se retira e
necessidades imaginárias do Estado. a porção que se deixa aos súditos.
Necessidades imaginárias são as exigidas Não é pelo que o povo pode dar que se deve
pelas paixões e fraquezas dos que governam, a medir as rendas públicas mas sim pelo que ele
atração de um projeto extraordinário, o desejo deve dar; e, se as medimos pelo que ele pode
doentio de uma glória inútil e uma certa impo dar, é mister que isto seja, pelo menos, segun
tência do espírito contra os caprichos. Amiú- do o que o povo pode sempre dar.
Capítulo II
Viu-se, em certas monarquias, como peque Seria melhor concluir que eles não eram neces
nos países, isentos de tributos, eram tão mise sários. São todos os miseráveis dos arredores
ráveis quanto os que, à sua volta, estavam que se refugiam nesses lugares para nada
sobrecarregados deles. O principal motivo é fazer; já desencorajados pela sobrecarga do
que o pequeno Estado cercado não pode ter trabalho, fazem da preguiça toda a sua
indústria, artes, nem manufatura, porque é, no felicidade.
que diz respeito a essa questão, prejudicado de O resultado das riquezas de um país é inse
mil maneiras pelo grande Estado no qual está rir a ambição em todos os corações. O resul
encravado. O grande Estado que o rodeia tem
tado da pobreza é criar o desespero. A pri
meira estimula-se no trabalho; o outro
a indústria, as manufaturas e as artes e estabe
consola-se na indolência.
lece os regulamentos que lhe são favoráveis. O A Natureza é justa com os homens; recom
pequeno Estado torna-se, portanto, necessaria pensa-os de seus sofrimentos; torna-os laborio
mente pobre, apesar de os impostos arreca sos porque atribui as maiores recompensas aos
dados não serem elevados. maiores trabalhos. Porém, se um poder arbi
Concluiu-se, entretanto, da pobreza desses trário suprime as recompensas da Natureza,
pequenos países que, para que o povo fosse recupera-se a aversão pelo trabalho e a inação
laborioso, eram necessários pesados impostos. parece ser o único bem.
198 MONTESQUIEU
Capítulo III
A escravidão da gleba estabelece-se, algumas vezes, depois de uma conquista. Neste caso, o
escravo que cultiva deve ser o colono arrendatário do senhor. Somente uma sociedade de perdas
e ganhos pode reconciliar os que estão destinados a trabalhar com os que estão destinados a
desfrutar.
Capítulo IV
Quando uma república reduziu uma nação a acreditava-se que os senhores seriam melhores
cultivar as terras para ela, não se deve permitir cidadãos quando só aspirassem ao que esta
que o cidadão possa aumentar o tributo do vam acostumados a possuir.
escravo. Isso não era permitido na Lacedemô-
nia; imaginava-se que os heloas2*43 cultiva 2 43 Plutarco, Ditos Notáveis dos Lacedemônios*
riam melhor as terras se soubessem que sua (N. do A.)
servidão não seria aumentada ainda mais; * Os helotas, os hilotas.
Capítulo V
Quando, numa monarquia, a nobreza faz os escravos de sua nobreza, cumpre que o se
cultivar as terras em seu próprio benefício pelo nhor seja fiador2 4 5 do tributo, que o pague
povo dominado, é necessário ainda que o pelos escravos e o recupere desses; e, se não se
censo não possa ser aumentado2 4 4. Demais, é segue essa regra, o senhor e os que arrecadam
conveniente que o príncipe se contente com seu os tributos do príncipe, um após outro, ator
domínio e com o serviço militar. Mas, se ele mentarão o escravo sucessivamente e o repri
pretender arrecadar tributos em dinheiro sobre mirão até que ele pereça de miséria ou se refu
gie nas florestas.
2 4 4 Foi isso que levou Carlos Magno a estabelecer
suas notáveis instituições a esse respeito. Vede o 2 4 5 Isso é praticado assim na Alemanha. (N. do
livro V das Capitulares, artigo 303. (N. do A.) A.)
Capítulo VI
O que acabo de dizer é ainda mais indispen suas terras e de seus escravos não é tão estimu
sável num Estado despótico. O senhor que lado a conservá-los.
pode a qualquer momento ser despojado de Pedro I, pretendendo imitar a prática da
DO ESPIRITO DAS LEIS II 199
Capítulo VII
Num Estado, quando todos os indivíduos Se alguns cidadãos não pagarem bastante, o
são cidadãos, e quando cada um possui por mal não é grande; a abastança deles sempre
seu domínio o que o príncipe possui por seu retornará ao público; se alguns indivíduos
império, pode-se taxar as pessoas, as terras ou pagam muito, a ruína deles voltar-se-a contra
as mercadorias; duas delas ou todas as três. o público. Se o Estado mantém sua fortuna
No imposto sobre a pessoa, a proporção proporcional à dos particulares, o bem-estar
injusta seria a que seguisse exatamente a pro dos indivíduos logo fará aumentar a sua. Tudo
porção dos bens. Tinha-se dividido, em Ate depende do momento. Para se enriquecer, o
nas2*4 6, os cidadãos em quatro classes. Os que Estado começará empobrecendo os súditos?
extraíam de seus bens quinhentas medidas de Ou esperará que os súditos, à vontade, o enri
frutos líquidos ou secos pagavam ao público queçam? Caber-lhe-á a primeira vantagem ou
um talento; os que extraíam trezentas medidas a segunda? Começará por ser rico ou termina
deviam meio talento; os da quarta classe nada rá por sê-lo?
Os direitos sobre as mercadorias são os que
pagavam2 4 7. A taxa era justa, embora não
os povos menos sentem, porque não se lhes faz
fosse proporcional; se não acompanhava a
uma arrecadação formal. Podem eles ser tão
proporção dos bens, acompanhava a propor
sabiamente manipulados, que o povo quase
ção das necessidades. Julgou-se que cada um
ignorará que os paga. Por isso, é muito impor
possuía um necessário material igual, que não
tante que quem vende a mercadoria seja quem
devia ser taxado; que o útil vinha em seguida e
pague o direito. Ele saberá muito bem que não
deveria ser taxado, porém menos que o supér
é ele quem paga e o comprador, que é quem
fluo, e que a grandeza da taxa sobre o supér
efetivamente paga, o confunde com o preço.
fluo impedia o supérfluo.
Alguns autores disseram que Nero suprimira o
Nas taxas sobre as terras, estabeleciam-se
direito do vigésimo quinto escravo vendi
listas nas quais incluíam-se as diversas classes do248; entretanto, não fizera ele outra coisa
de fundos. Mas é muito difícil conhecer essas senão ordenar que seria o vendedor que o
diferenças e ainda mais encontrar pessoas que pagaria e não o comprador; este regulamento
não estejam interessadas em desconhecê-las. que conservava todo o imposto pareceu supri-
Há nisso, portanto, duas espécies de injustiças: jni-lo.
a injustiça do homem e a injustiça da coisa. Há dois reinos na Europa em que se lança
Mas, em geral, a taxa não é muito excessiva; se ram impostos muito elevados sobre as bebi
se deixa ao povo um necessário abundante, das2 49; num, apenas o cervejeiro paga o direi
essas injustiças individuais nada significam; to; noutro, eles são arrecadados
mas se, ao contrário, deixa-se ao povo apenas
aquilo de que tem absoluta necessidade para 2 48 Vectigal quoque quintae et vicesimae venalium
viver, a menor desproporção será da maior mancipiorum remissum specie magis quam vi; quia
consequência. cum venditor pendere juberetur, in partem pretii
emptoribus accrescebat. Tácito, Anais, liv. XIII,
cap. XXXI. (N. do A.)
2 4 6 Pólux, liv. VIII, cap. X, art. 130. (N. do A.) 2 49 . . .dois reinos: um, a Inglaterra, e outro, a
2 4 7 Porque eles nada possuíam, eram simples França. Na França, o direito em questão chamava-
assalariados. se “direito de auxílio”.
200 MONTESQUIEU
indiferentemente sobre todos os súditos que as Aliás, para que o cidadão pague, são neces
consomem. No primeiro, ninguém sente o sárias contínuas sindicâncias em seu estabele
rigor do imposto; no segundo, ele é conside cimento. Nada é mais contrário à liberdade; e
rado oneroso; naquele, o cidadão só sente a os que estabelecem esse tipo de imposto não
liberdade que tem de não pagar; neste, sente têm a felicidade de haver, a esse respeito,
apenas a necessidade que o constrange. encontrado a melhor forma de administração.
Capítulo VIII
Para que o preço da coisa e o direito possam a pena natural, a que a razão exige, que é o
confundir-se na mente de quem paga, cumpre confisco da mercadoria, torna-se incapaz de
que exista alguma relação entre a mercadoria e sustá-la, tanto mais que esta mercadoria, geral
o imposto e que, sobre um gênero de pouco mente, é de preço muito vil. É preciso, assim,
valor, não se lance um direito excessivo. Há recorrer a penas exageradas, semelhantes às
países em que o direito excede dezessete vezes que se infligem aos maiores crimes. Toda a
o valor da mercadoria2 50. Então o príncipe proporção das penas desaparece. Pessoas2 51
extirpa a ilusão de seus súditos; estes percebem que seriam consideradas simplesmente homens
que são governados de uma maneira que não é perversos são punidas como celeradas; isso é o
correta, o que os leva a sentir sua servidão no que há de mais contrário ao espírito do gover
mais alto grau. no moderado.
Aliás, para que um príncipe possa arrecadar Acrescento ainda que, quanto mais se propi
um direito tão desproporcional em relação ao cia ao povo ocasião de fraudar o contratador,
valor da coisa, é mister que ele próprio venda a mais este se enriquece e o povo se empobrece.
mercadoria e que o povo não possa comprá-la Para impedir a fraude, é mister dar ao arrema
em outro lugar, coisa que está sujeita a mil tante meios de vexações extraordinárias, e
inconvenientes. tudo teria fim.
Sendo a fraude, neste caso, muito lucrativa,
2 51 Pessoas, os contrabandistas de sal, ou burlado-
2 50 Montesquieu refere-se ao imposto do sal, a res dos regulamentos do sal. Eles lotavam as
gabela. galeras.
Capítulo IX
Capítulo X
Devem os tributos ser leves no governo ser aumentados nem diminuídos pelos que os
despótico. Se assim não fosse, quem se daria arrecadam. Uma porção sobre os frutos da
ao trabalho de cultivar as terras? Demais, terra, uma taxa por cabeça, um tributo de
como pagar pesados tributos num governo que tanto por cento sobre as mercadorias são os
nada acrescenta àquilo que o súdito deu? únicos convenientes.
No extraordinário poder do príncipe e na É bom, no governo despótico, que os comer
estranha fraqueza do povo é necessário que ciantes tenham uma garantia pessoal e a prá
não possa haver equívoco sobre nada. Os tri tica os faça respeitar; sem isso, eles seriam
butos devem ser facilmente compreendidos e muito fracos nas discussões que pudessem ter
tão claramente estabelecidos, que não possam com os oficiais do príncipe.
Capítulo XI
É uma particularidade das penas fiscais soas que não são comerciantes. A fraude, entre
serem, contra a prática geral, mais severas na os mongóis, não é punida com o confisco mas
Europa do que na Ásia. Na Europa, confis com a duplicação dos direitos. Os prínci
cam-se as mercadorias e, algumas vezes, inclu pes2 5 4 tártaros, que na Ásia habitam as cida
sive os navios e os meios de transporte; na des, quase nada arrecadam sobre as mercado
Ásia, não se faz nem uma coisa nem outra. É rias em trânsito. E se, no Japão, o crime de
que na Europa os comerciantes têm juizes que fraude no comércio é considerado crime capi
podem garanti-los contra a opressão; na Ásia, tal, é porque há motivos para proibir toda
os juizes despóticos são os próprios opresso comunicação com os estrangeiros e porque a
res. Que faria um comerciante contra um paxá fraude2 5 5 é, aí, antes uma contravenção às leis
que resolvesse confiscar-lhe as mercadorias? da segurança do Estado do que às leis do
É a vexação que supera a si própria e vê-se comércio.
constrangida a uma certa brandura. Arreca
da-se, na Turquia, apenas um único direito de 2 5 4 História dos Tártaros, parte III, pág. 290. (N.
entrada; e, depois disso, todo o país está aberto do A.)
aos mercadores. Não implicam falsas declara 2 5 5 Necessitando manter um comércio com os
estrangeiros sem se comunicar com eles, escolheram
ções, nem confisco, nem aumento dos direitos. duas nações: a holandesa, para o comércio com a
Na China, não se abrem2 53 os fardos das pes Europa, e a chinesa, para o comércio com a Ásia.
Mantêm os corretores e os marinheiros numa espé
cie de prisão e os atormentam até fazê-los perder a
2 53 Du Halde, t. II, pág. 37. (N. do A.) paciência. (N. do A.)
202 MONTESQUIEU
Capítulo XII
Regra geral: pode-se arrecadar tributos mais Mas a regra geral continua válida. Há, nos
elevados, na proporção da liberdade dos súdi Estados moderados, uma compensação para o
tos, e é-se forçado a moderá-los na medida em excesso de tributos: é a liberdade. Nos Estados
que a servidão aumenta. Isso sempre aconte despóticos2 5 6 há um equivalente para a liber
ceu e acontecerá sempre. É uma regra extraída dade: a modicidade dos impostos.
da natureza que nunca varia; encontramo-la Em certas monarquias européias encon
em todos os países, na Inglaterra, na Holanda tramos províncias2 5 7 que, pela natureza de
e em todos os Estados em que a liberdade se seu governo político, estão em melhor situação
vai degradando, até na Turquia. A Suíça pare que as demais. Imagina-se sempre que elas não
ce ser uma exceção porque lá não se pagam tri pagam o suficiente porque, como resultado da
butos. Não sabemos o motivo específico disso, bondade do governo, poderíam pagar ainda
mas esse país confirma também o que afirmo. mais, e sempre se pensa suprimir-lhes este
Nas suas montanhas estéreis, os víveres são governo, justamente o que produziu este bem
tão caros e o país tão povoado, que um suíço que se comunica, que se propaga longe, e do
paga quatro vezes mais à Natureza do que um qual seria melhor aproveitar.
turco paga ao sultão.
Um povo dominador, como os atenienses e 2 5 6 Na Rússia, eram leves; foram aumentadas
os romanos, pode libertar-se de todo imposto desde que o despotismo se tornou mais moderado.
porque reina sobre nações dominadas. Não Vede a História dos Tártaros, parte II. (N. do A.)
paga, então, na proporção de sua liberdade, 2 5 7 Ospays dÉtats (na França)*. (N. do A.)
•Esses pays dtétats fixavam eles próprios a cota
pois que, nesta questão, não é um povo mas de seu imposto, mas já na época de Luís XIV este
um monarca. direito estava em pleno desuso.
Capítulo XIII
Pode-se aumentar, na maioria das repúbli tos porque a moderação do governo pode
cas, os tributos, porque o cidadão, que pensa proporcionar riquezas. É como a recompensa
do príncipe, por causa do respeito que ele tem
estar pagando a si próprio, deseja pagá-los e,
pelas leis.
geralmente, em consequência da natureza do No Estado despótico, não se pode aumentá-
governo, tem-se poder para isso. los, porque não se pode aumentar a própria
Na monarquia, pode-se aumentar os tribu servidão.
Capítulo XIV
O imposto por pessoa é mais adequado à No governo despótico, é natural que o prín
servidão; o imposto sobre as mercadorias é cipe não dê dinheiro nem à sua milícia nem
mais adequado à liberdade, porque se rela aos nobres mas que distribua terras e, conse
ciona de modo menos direto à pessoa. quentemente, que poucos tributos sejam arre
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 203
Capítulo XV
Abuso da liberdade
Essas grandes vantagens da liberdade fize porque tratam sempre de suas necessidades e
ram com que se abusasse da própria liberdade. nunca das nossas.
Do fato de o governo moderado ter dado admi De uma imperdoável negligência, que os
ráveis resultados, abandonou-se essa modera ministros desses países2 60 extraem do governo
ção; porque se arrecadaram grandes tributos, e, amiúde, do clima, os povos desfrutam essa
quis-se arrecadá-los em excesso e, desprezan- vantagem de não serem incessantemente esma
do-se a mão da liberdade que concedia essas gados por novas exigências. As despesas não
dádivas, caminhou-se para a servidão que tudo aumentam porque novos projetos não são fei
recusa. tos, e, se por acaso são feitos, são projetos dos
A liberdade acarretou o excesso de tributos, quais se vê o fim, e não projetos começados.
mas o efeito desses tributos excessivos é pro Os que governam o Estado não o atormentam
porque não atormentam incessantemente a si
duzir, por sua vez, a servidão, é produzir a
mesmos. Mas, para nós, é impossível que algu
diminuição dos tributos. ma vez tenhamos ordem em nossas finanças
Os monarcas da Ásia quase só proclamam porque sabemos sempre que faremos alguma
editos para isentar de tributos, anualmente, al coisa mas nunca o que faremos.
guma província de seu império2 58: as manifes Entre nós, não mais se chama de grande
tações de suas vontades são benefícios. Mas, ministro aquele que é um prudente adminis
na Europa2 59 os editos dos príncipes afligem trador das rendas públicas mas sim aquele que
mesmo antes que deles se tenha conhecimento, é um homem de empreendimentos e que é
capaz de descobrir o que chamamos expedien
tes.
2 58 É o costume dos imperadores da China. (N. do
A.)
2 59 Na Europa: leia-se “na França”. 2 60 Esses países: os países da Ásia.
204 MONTESQUIEU
Capítulo XVI
Capítulo XVII
Uma nova doença difundiu-se na Europa; força de mantermos soldados, só teremos sol
atingiu nossos príncipes e fê-los manter um nú dados e seremos como os tártaros2 6 4.
mero desordenado de tropas. Ela teve seus Os grandes príncipes, não satisfeitos em
desdobramentos e tornou-se necessariamente comprar as tropas dos mais pequenos265, pro
contagiosa, porque, logo que um Estado curam de todos os lados comprar aliados, isto
aumenta o que chama suas tropas, os demais é, perder quase sempre seu dinheiro.
subitamente aumentam as suas, de modo que, A consequência de semelhante situação é o
com isso, apenas se alcança a ruína comum. perpétuo aumento dos impostos, o que anula
Cada monarca mantém preparados todos os todos os remédios futuros; não se conta mais
exércitos que deveria manter se seus povos com as rendas, mas faz-se a guerra com seu
estivessem em risco de serem exterminados. E capital. Não é mais um fato inédito ver Esta
chamamos paz a esses estados de alerta2 62 dos hipotecarem seus fundos durante a própria
de todos contra todos. Nestas condições, a Eu paz e utilizarem, para se arruinar, meios que
ropa encontra-se tão arruinada que os indiví
duos que estivessem na mesma situação em chamam de extraordinários e que são tão
que se encontram as três potências mais excessivos que o filho-família mais estróina
opulentas2 63 dessa parte do mundo não te- mal o imagina.
riam de que viver. Somos pobres com as rique
zas e o comércio de todo o universo e logo, à 2 6 4 Para isso basta fazer valer a nova invenção das
milícias instituídas em quase toda a Europa e levá-
las ao mesmo excesso a que se levaram as tropas
2 62 É verdade que é principalmente este estado de regulares. (N. do A.)
alerta que mantém o equilíbrio porque esfalfa as 2 6 5 Os mais pequenos: podemos ver aqui uma alu
grandes potências. (N. do A.) são aos mercenários alemães e suíços, também
2 63 A Inglaterra, a França e a Holanda. empregados por Luís XIV e Luís XV.
Capítulo XVIII
Da isenção de tributos
A máxima dos grandes impérios do Oriente, províncias arruinadas, deveria muito ser imita-
de dispensar do pagamento de tributos as da nos Estados monárquicos. Em alguns, de
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 205
fato, ela já existe2 6 6, porém oprime mais do dos. Ocorre com o público a mesma coisa que
que se não existisse, porque, não arrecadando com os indivíduos: arruínam-se quando des
o príncipe nem mais nem menos, todo o Esta pendem exatamente a renda de suas terras.
do torna-se solidário. Para aliviar uma aldeia A respeito da solidez2 6 7 entre os habitan
que paga com dificuldade, sobrecarrega-se tes da mesma aldeia afirmou-se2 68 que ela
outra que paga melhor; não se restabelece a era razoável porque se podia supor um conluio
primeira, destrói-se a segunda. O povo fica
fraudulento de parte deles; mas de onde se
desesperado entre a necessidade de pagar, o
aprendeu que, baseado em suposições, deve-se
medo das exações, o perigo de pagar e o temor
estabelecer uma coisa injusta por si mesma e
das sobrecargas.
Um Estado bem governado deve colocar, ruinosa para o Estado?
como primeiro artigo de sua despesa, uma
soma regulamentada para os casos inespera- 2 6 7 Solidez, no sentido de “solidariedade”.
2 68 Vede Tratado das Finanças dos Romanos,
cap. II, impresso em Paris, Ed. Briasson, em 1740.
2 6 6 Principalmente na França. (N. do A.)
Capítulo XIX
lugares em que o príncipe arrenda seus portos reclamar durante o ano; que haveria um pretor
de mar e suas cidades de comércio. A história estabelecido para julgar suas pretensões, sem
das monarquias está repleta de malefícios formalidade; que os comerciantes não paga
ocasionados pelos contratadores. riam nada pelos navios2 73. Eis os dias glorio
Nero, indignado com as vexações dos publi- sos desse imperador.
canos, formou o projeto impossível e magnâ
nimo de abolir todos os impostos. Ele não ima 2 73 Tácito, Anais, liv. XIII, 1.1*. (N. do A.)
ginou a arrecadação oficial. Fez quatro * Ut leges cujusque publici, occultae ad id tempus,
proscriberentur, em outros termos, que as condições
ordenanças: que as leis proclamadas contra os dos arrendamentos feitos pelo Estado aos publica
publicanos, que até então tinham sido manti nos por cada espécie de imposto seriam fixadas
publicamente. É claro que o Sr. de Montesquieu não
das secretas, fossem publicadas; que eles não entendeu a palavra publicum. (Nota de Crévier
poderíam exigir o que tivessem negligenciado reproduzida pela edição Laboulaye.)
Capítulo XX
Dos contratadores
Tudo está perdido quando a profissão lucra dades das guerras de cinquenta anos, mas,
tiva dos contratadores consegue, por suas então, essas riquezas foram consideradas ridí
riquezas, ser uma profissão honrada. Isto pode culas, e nós as admiramos2 7 4.
ser conveniente nos Estados despóticos em Há um prêmio para cada profissão. O prê
que, amiúde, seu emprego é uma parte das fun mio dos que arrecadam os tributos são as
ções dos próprios governantes. Mas não é riquezas, e as recompensas dessas riquezas são
conveniente na república; e algo semelhante as próprias riquezas. A glória e a honra cabem
destruía a república romana. Isso também não a esta nobreza que só conhece, que só vê, que
é melhor na monarquia: nada é mais contrário só sente como verdadeiro bem a honra e a gló
do que isso ao espírito desses governos. A ria. O respeito e a consideração cabem a esses
mágoa apodera-se de todos os outros Estados; ministros e magistrados que, só encontrando
a honra perde toda a sua consideração, os trabalho sobre trabalho, velam noite e dia pela
meios lentos e naturais de ascensão perdem felicidade do império.
seu prestígio e o governo é afetado em seu
princípio. 2 7 4 Os contratadores receberam muito mal essas
Vimos perfeitamente, em épocas passadas, expressões se bem que Montesquieu pretendesse que
fortunas escandalosas; era uma das calami elas não eram dirigidas contra eles.
TERCEIRA PARTE
Idéia geral
Se é verdade que o caráter do espírito e as paixões do coração são extremamente diferentes nos
diversos climas, as leis devem ser relativas à diferença dessas paixões e à diferença desses
caracteres.
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
De como os maus legisladores aí são os que se opuseram
Os indianos acreditam que o repouso e o lência do clima, favorecendo-a por sua vez,
nada são o fundamento de todas as coisas e o ocasionou mil males.
fim onde terminam. Consideram eles, portan Os legisladores da China12 foram mais sen
to, a inação completa como o estado mais per satos quando, considerando os homens, não no
feito, e o objeto de seus desejos. Dão ao sobe tranquilo estado em que diariamente se encon
rano ser9 o sobrenome de imóvel. Os siameses tram, mas na ação adequada para levá-los a
acreditam que a felicidade10 suprema consiste cumprir seus deveres da vida, fizeram sua reli
em não ser obrigado a animar uma máquina e gião, sua filosofia e suas leis totalmente práti
a fazer um corpo agir. cas. Quanto mais as causas físicas levam os
Nesses países, em que o calor excessivo homens ao repouso, mais as causas morais
enerva e desanima, o repouso é tão delicioso e devem afastá-los dele.
o movimento tão penoso, que esse sistema de
metafísica parece natural. Foê11, legislador
11 Foê quer reduzir o coração ao puro vazio.
das índias, obedeceu ao que sentia, quando “Temos oihos e orelhas; mas a perfeição é não ver
pôs os homens num estado extremamente pas nem ouvir; uma boca, mãos etc., mas a perfeição é
sivo. Porém sua doutrina, que surgiu da indo- que esses membros estejam na inação.” Isso é tirado
do diálogo de um filósofo chinês, relatado pelo
Padre du Halde, tomo III*. (N. do A.)
à Paramanack. Vede Kircher. (N. do A.) * Foê é o nome chinês do Buda, Sáquia-Múni.
1 0 La Loubère, Relation de Siam, pág. 446. (N. do 12 Os legisladores da China: Confúcio ou os que se
A.) inspiram em sua doutrina.
Capítulo VI
A cultura da terra é o maior trabalho dos que dão aos príncipes a terra e vedam aos
homens. Quanto mais o clima tende a afastá- cidadãos o espírito da propriedade, aumentam
los desse trabalho, mais a religião e as leis os efeitos perniciosos do clima, isto é, a indo
devem estimulá-los. Assim, as leis das índias, lência natural.
Capítulo VII
Do monaquismo
O monaquismo acarretou os mesmos males; deles; esta mesma diferença existe na Europa.
surgiu nos países quentes do Oriente, onde não A fim de sobrepujar a preguiça do clima,
se é menos levado à ação do que à especula
seria preciso que as leis procurassem eliminar
ção.
Na Ásia, o número dos dervixes, ou monges, todos os meios de se viver sem trabalhar; mas,
parece aumentar com o calor do clima. As ín no Sul da Europa, elas fazem justamente o
dias, onde o calor é excessivo, estão repletas contrário: oferecem aos que desejam ser indo
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 213
lentes lugares apropriados à vida especulativa baixo povo. Este perdeu a propriedade dos
e a isso acrescentam riquezas imensas. Essas bens; aquelas recompensam-no pela ociosidade
pessoas, que vivem numa abundância que lhes da qual o fazem desfrutar e o baixo povo chega
é pesada, dão, com razão, seu supérfluo ao a apreciar sua própria miséria.
Capítulo VIII
Bom costume da China
Capítulo IX
Demonstrarei, no livro XIX, que as nações aos lavradores que melhor cultivassem seus
preguiçosas geralmente são orgulhosas. Po- campos, ou aos operários que mais estimu
der-se-ia voltar o efeito contra a causa e des lassem sua indústria. Esta prática será mesmo
vantajosa para toda região. Ela obteve êxito,
truir a indolência pelo orgulho. No Sul da em nossos dias, na Irlanda, com o estabeleci
Europa, onde os povos dão tanta importância mento de uma das mais importantes manufa
à honra, seria conveniente oferecer prêmios turas de tecido da Europa.
Capítulo X
exala-se pouco com a transpiração; ela perma saúde, seu excesso seja mais severamente puni
nece em grande abundância. Pode-se, pois, uti do do que nos países em que a embriaguez
lizar licores espirituosos sem que o sangue se acarreta poucos malefícios à pessoa e à socie
coagule. Ele está repleto de humores; os licores dade, não tornando os homens furiosos mas
fortes, que dão movimento ao sangue, podem apenas estúpidos. Assim, as leis21 que punem
aí ser convenientes. um homem embriagado, pela falta que come
A lei de Maomé que proíbe beber vinho é, teu, aplicam-se unicamente à embriaguez da
assim, uma lei do clima da Arábia; por isso, a pessoa e não à embriaguez da nação. Um ale
água era, antes de Maomé, a bebida usual dos mão bebe por costume, um espanhol por
árabes. A lei1 9 que proibia os cartagineses de prazer.
beber vinho era também uma lei do clima; Nos países quentes, o relaxamento das fi
efetivamente, o clima desses dois países é bras produz uma grande transpiração dos lí
quase o mesmo. quidos, mas as partes sólidas diluem-se menos.
Uma lei semelhante não seria boa nos países As fibras, que possuem apenas uma ação
frios, onde o clima parece forçar uma certa muito fraca e pouca flexibilidade, quase não se
embriaguez da nação, muito diferente daquela desgastam; pouco suco nutritivo basta para
da pessoa. A embriaguez encontra-se estabele repará-las. Come-se, portanto, muito pouco
cida por toda a terra, na proporção da frieza e nesses lugares.
da umidade do clima. Caminhai do equador
Foram as diferentes necessidades nos dife
até nosso pólo e vereis a embriaguez aumentar
rentes climas que formaram as diferentes
de acordo com os graus de latitude. Caminhai
maneiras de viver e são essas diferentes manei
do mesmo equador ao pólo oposto e encontra
ras de viver que formaram os diversos tipos de
reis a embriaguez aumentando para o Sul20,
leis. Pois, se numa nação os homens se comu
tal como deste lado ela avançara para o Norte.
É natural que, nos lugares em que o vinho é nicam22 muito, certas leis são necessárias;
contrário ao clima e consequentemente à para um povo que não se comunica, outro tipo
de lei é necessário.
1 9 Platão, liv. II das Leis, Aristóteles, Do Cuidado
com os Assuntos Domésticos, Hv. I, v. Eusébio, 21 Como estabeleceu Pítaco, segundo Aristóteles,
Prep. Evang., liv. XII, cap. XVII. (N. do A.) Política, liv. II, cap. III. Ele vivia num clima onde a
2 0 Isso se observa entre os hotentotes e os povos da embriaguez não é um vício de nação. (N. do A.)
extremidade do Chile, que se encontram muito perto 22 Se comunicam: possuem numerosas e estreitas
do Sul. (N. do A.) relações. (N. do A.)
Capítulo XI
Capítulo XII
As histórias não nos contam que os roma na, independentemente de qualquer outra
nos se fizessem matar sem motivo, mas os causa.
ingleses matam a si próprios sem que se possa Ele parece ser um defeito da filtração do
imaginar qualquer motivo para essa ação; suco nervoso; a máquina, cujas forças motri
suicidam-se quando se encontram no próprio zes encontram-se sempre sem ação, cansa-se
seio da felicidade. Este ato, entre os romanos, de si mesma; a alma não sente nenhuma dor
era resultado da educação e se relacionava à mas uma certa dificuldade em existir. A dor é
sua maneira de pensar e a seus costumes. Entre um mal localizado que acarreta o desejo de ver
os ingleses, ele é resultado de uma doença28 e cessar esta dor; o peso da vida é um mal que
está relacionado com o estado físico da máqui
não está situado num local determinado e nos
acarreta o desejo de acabar com esta vida.
2 7 A ação dos suicidas é contrária às leis naturais
e à religião revelada. (N. do A.) Está claro que as leis civis de alguns países
28 Ela poderia muito bem ser complicada com o tiveram motivos para estigmatizar o homicídio
escorbuto que, sobretudo em alguns países, torna o de si mesmo, mas, na Inglaterra, não se pode
homem esquisito e insuportável a si próprio. Voya-
ges, de François Pyrard, parte II, cap. XXL (N. do puni-lo, como não se punem os efeitos da
A.) demência.
216 MONTESQUIEU
Capítulo XIII
Capítulo XIV
tou para um povo que podia suspeitar de tudo. manietar e a apresentar ao marido a esposa
Essas leis concederam, portanto, extrema surpreendida em adultério; permitiam aos
atenção aos dois sexos. Mas parece que, nas filhos3 5 dela acusá-la e torturar seus escravos
punições que infligiram, pensaram mais em para comprovarem sua culpabilidade. Destar
favorecer a vingança individual do que em
te, foram essas leis mais aptas para refinar
exercer a vingança pública. Assim, na maioria
dos casos, submetiam os dois culpados à servi excessivamente certas questões de honra do
dão dos pais ou do marido ofendido. Uma que para estabelecer uma boa polícia. Não nos
mulher32 ingênua, que se entregasse a um devemos admirar se o Conde Juliano acreditou
homem casado, era colocada sob a autoridade que um ultraje dessa espécie exigia a perda de
da esposa, que dela dispunha33 a seu bel-pra sua pátria e de seu rei. Não nos devemos
zer. Tais leis obrigavam os escravos3 4 a surpreender se os mouros, com tal semelhança
de costumes, encontraram tanta facilidade em
32 Leis dos Visigodos, liv. III, tít. IV, § 9. (N. do
A.)
se estabelecer na Espanha, em se manterem e
33 Que dela dispunha a seu bel-prazer, entenda-se: aí retardarem a queda de seu império.
“para que a mulher casada dela disponha à sua
vontade’’.
3 4 Ibid., liv. III, tít. IV, § 6. (N. do A.) 3 5 Ibid., liv. III, tít. IV, § 13. (N. do A.)
Capítulo XV
Da escravidão civil
A escravidão propriamente dita é o estabele a escravidão política, a escravidão civil é mais
cimento de um direito que torna um homem tolerável do que alhures. Cada um deve estar
completamente dependente de outro, que é o assaz contente por ter sua subsistência e sua
senhor40 absoluto de sua vida e de seus bens. vida. Assim, a condição de escravo quase não
A escravidão, por sua natureza, não é boa: não é mais penosa do que a condição de súdito.
é útil nem ao senhor nem ao escravo: a este Mas no governo monárquico, onde é extre
porque nada pode fazer de forma virtuosa; mamente importante não humilhar ou aviltar a
àquele, porque contrai com seus escravos toda natureza humana, não deve existir a escravi
sorte de maus hábitos, porque se acostuma, dão. Na democracia, em que todos são iguais,
insensivelmente, a abandonar todas as virtudes e na aristocracia, em que as leis devem envidar
morais, porque se toma orgulhoso, irritável, todos os esforços para que todos sejam tão
duro, colérico, voluptuoso, cruel. iguais quanto a natureza do governo o permi
Nos países despóticos, em que já se está sob ta, os escravos são contra o espírito da consti
40 Que é o senhor absoluto: entenda-se: “que este é tuição; só servem para dar aos cidadãos um
o senhor absoluto”. poder e um luxo que não devem ter.
Capítulo II
no número dos bens uma parte dos homens Dir-se-á que ela pôde ser-lhe útil porque o
que deviam fazer essa partilha. A lei civil que senhor deu-lhe alimentação. Cumpriría, neste
restitui de acordo com os contratos que. encer caso, limitar a escravidão às pessoas que são
ram alguma lesão não pode deixar de restituir incapazes de ganhar a vida. Porém não se de
contra um acordo que encerra a maior de seja esse tipo de escravos. Quanto às crianças,
todas as lesões. a natureza que deu leite às mães assegurou sua
A terceira maneira é o nascimento. Esta cai
com as outras duas. Pois, se um homem não alimentação e o resto de sua infância está tão
pôde vender a si próprio, ainda menos pode perto da idade em que elas se tomam úteis, que
vender seu filho ainda não nascido. Se um não se poderia dizer que quem as alimentasse,
prisioneiro de guerra não pode ser reduzido à a fim de assenhorear-se delas, desse algo.
escravidão, com muito menos razão os seus A escravidão é, também, tão oposta ao
filhos. direito civil como ao direito natural. Que lei
O que faz com que seja lícito matar um cri civil poderia impedir um escravo de fugir, ele,
minoso é o fato de a lei que o pune ser feita em que não participa da sociedade e que, conse
seu favor. Um assassino, por exemplo, desfru quentemente, não é acolhido por nenhuma das
tou da lei que o condena; ela conservou-lhe a
vida a todo instante e ele não pode, portanto, leis civis? O escravo só pode ser retido por
protestar contra ela. Com relação ao escravo, uma lei de família, isto é, pela lei do senhor 4 4.
a situação é diferente: a lei do escravo nunca
pôde ser-lhe útil; em todos os casos ela é con 4 4 Montesquieu, observa Laboulaye, “protesta
aqui contra a teoria antiga defendida até ele por
tra ele, sem nunca ser-lhe favorável, o que é Grotius: De Jure Belli et Pacis, liv. V; Bossuet:
contrário ao princípio fundamental de todas as Avertissement aux Protestants; e Locke: Governo
sociedades. Civil, cap. VI, § 9”.
Capítulo III
Outra origem do direito de escravidão
Gostaria também de dizer que o direito de tícios: caranguejos, caracóis, cigarras, gafa
escravidão surge do desprezo que uma nação nhotos. Os vencedores fizeram disso um crime
tem por outra, desprezo baseado na diferença dos vencidos”. O autor confessa que foi sobre
dos costumes. isso que se fundamentou o direito que tomava
Lopes de Gomara4 5*diz que “os espanhóis os americanos escravos dos espanhóis; além
encontraram perto de Santa Marta cestos em disso, fumavam tabaco e não faziam a barba à
que os habitantes depositavam gêneros alimen- espanhola.
Os conhecimentos tornam os homens come
4 5 Bibliot. Ingl., t. XVIII, parte II, art. 3. (N. do didos; a razão conduz à humanidade; somente
A.) os preconceitos acarretam a renúncia disso.
Capítulo IV
Outra origem do direito de escravidão
Gostaria também de dizer que a religião dá direito de escravizar tantos povos, pois esses
aos que a professam um direito de reduzir à facínoras, que desejam a todo custo ser facíno
servidão os que não a professam, a fim de tra ras e cristãos, eram muito devotos.
balhar mais facilmente por sua propagação. Luís XIII47 opôs-se tenazmente à lei que
Foi esta maneira de pensar que encorajou os tornava escravos os negros de suas colônias,
destruidores da América em seus crimes46. mas, quando lhe fizeram ver que esta era a via
Foi sobre esta idéia que eles fundamentaram o mais segura para convertê-los, aceitou-a.
4 8 Vede a História da Conquista do México, por 4 7 Padre Labat, Nouveau Voyage aux fies de
Sólis, e da do Peru, por Garcilaso de la Vega. (N. do 1’Amérique, t. IV, pág. 114, ano 1722, in-12. (N. do
A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 223
Capítulo V
Se eu tivesse que defender o direito que tive Pode-se julgar da cor da pele pela dos cabe
mos de escravizar os negros, eis o que diria: los, que, entre os egípcios, os melhores filóso
Tendo os povos da Europa exterminado os fos do mundo, era de tão grande importância,
da América, tiveram que escravizar os da Áfri que mandavam matar todos os homens ruivos
ca, a fim de utilizá-los no desbravamento de que lhes caíam nas mãos.
tantas terras.
Uma prova de que os negros não têm senso
O açúcar seria muito caro se não se culti
comum é que dão mais importância a um colar
vasse a planta que o produz por intermédio de
de vidro do que ao ouro, fato que, entre as
escravos.
nações policiadas, é de tão grande conse
Aqueles a que nos referimos são negros da
quência.
cabeça aos pés e têm o nariz tão achatado, que
é quase impossível lamentá-los. É impossível supormos que tais gentes
Não podemos aceitar a idéia de que Deus, sejam homens, pois, se os considerássemos
que é um ser muito sábio, tenha introduzido homens, começaríamos a acreditar que nós
uma alma, sobretudo uma alma boa, num próprios não somos cristãos.
corpo completamente negro. Os espíritos mesquinhos exageram muito a
É tão natural considerar que é a cor que injustiça que se faz aos africanos, pois, se ela
constitui a essência da humanidade, que os fosse tal como eles dizem, não teria ocorrido
povos da Ásia, que fazem eunucos, privam aos príncipes da Europa, que estabelecem
sempre os negros da relação que eles têm entre eles tantas convenções inúteis, fazer uma
conosco de uma maneira mais acentuada. delas em favor da misericórdia e da piedade?
Capítulo VI
E tempo de procurar a verdadeira origem do de mil escravos, que são importantes comer
direito de escravidão. Essa deve estar baseada ciantes, que têm também muitos escravos sob
na natureza das coisas. Vejamos se existem suas ordens e estes muitos outros; são herda
casos em que isso não ocorre. dos e levados ao tráfico. NeSses Estados, os
Em todo governo despótico há grande facili homens livres, muito fracos contra o governo,
procuram tomar-se escravos dos que importu
dade em vender a si próprio: a escravidão polí
nam o governo.
tica, nesse governo, aniquila de algum modo a
É esta a origem, e de acordo com a razão,
liberdade civil. desse direito de escravidão muito suave que
Perry48 diz que os moscovitas se vendem encontramos em alguns países; ele deve ser
muito facilmente. Conheço exatamente ã suave porque está baseado na livre escolha de
razão: é que sua liberdade não vale nada. um senhor que um homem faz em seu próprio
Em Achim todos procuram vender-se. Al benefício, fato que estabelece uma convenção
guns dos principais senhores 4*9 não têm menos recíproca entre as duas partes.
4 8 Estado Atual da Grande Rússia, por Jean Perry. 49 Nova Viagem ao Redor do Mundo, por Dam-
(N. do A.) pier, t. III. (N. do A.)
224 MONTESQUIEU
Capítulo VII
Capítulo VIII
Deve-se, portanto, limitar a servidão natural los apreciar sua condição mais do que qual
a alguns países determinados da terra51. Em quer outra que poderíam ter adquirido.
todos os outros, parece-me que, por mais peno Não existe trabalho tão penoso que não se
sos que sejam os trabalhos que a sociedade possa adequar à força de quem o realiza, con
exige, tudo pode ser feito com homens livres. tanto que seja a razão e não a avareza que o
O que me faz pensar assim é que, antes que regulamente. Pode-se pela comodidade das
o cristianismo tivesse abolido na Europa a ser máquinas, que o engenho inventa ou aplica,
vidão civil, consideravam-se os trabalhos nas suprir o trabalho forçado que alhures os escra
minas como tão penosos, que se acreditava vos eram obrigados a fazer. As minas dos tur
que eles só poderíam ser efetuados por escra cos, no banato de Temesvar, eram mais ricas
vos ou por criminosos. Mas sabe-se atual do que as da Hungria mas nunca produziram
mente que os homens nelas empregados vivem tanto, porque os turcos nunca imaginavam
felizes52. Encorajou-se, com pequenos privilé outra coisa que o braço de seus escravos.
gios, essa profissão; ao aumento do trabalho Não sei se é o espírito ou o coração que dita
acrescentou-se o do lucro e conseguiu-se fazê- este artigo. Não há lugar na terra em que nao
se possa induzir homens livres ao trabalho.
51 Dito de outro modo: a servidão. Porque as leis eram mal feitas, houve homens
52 Podemos informar-nos do que ocorre, a esse res
peito, nas minas do Hartz, na Baixa Alemanha, e preguiçosos; porque os homens eram preguiço
nas da Hungria. (N. do A.) sos, foram escravizados.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 225
Capítulo IX
Capítulo X
Há duas formas de servidão: a real e a pes mônios; eram eles obrigados a todos os traba
soal. A real é a que prende o escravo à terra. lhos fora da casa e a toda sorte de insultos den
Eram assim os escravos entre os germanos, tro da casa: esse hilotismo é contrário à
segundo Tácito53. Não tinham nenhuma ocu natureza das coisas. Os povos simples pos
pação na casa; entregavam ao senhor certa suem apenas um escravo real54, porque suas
quantidade de trigo, de gado ou de estofo; o mulheres e filhos encarregam-se dos trabalhos
objeto de sua escravidão não ia mais além. domésticos5 5. Os povos voluptuosos têm um
Esse tipo de servidão existe ainda na Hungria, escravo pessoal, porque o luxo exige o serviço
na Boêmia e em muitas regiões da Baixa de escravos na casa. Ora, o hilotismo reúne,
Alemanha. nas pessoas, a escravidão existente entre os
A servidão pessoal relaciona-se com os povos voluptuosos e a existente entre os povos
encargos da casa e diz mais respeito à pessoa simples.
do senhor.
O abuso excessivo da escravidão ocorre 6 4 “Não podereis”, diz Tácito, Sobre os Costumes
quando ela é, conjuntamente, pessoal e real. dos Germanos, cap. XX, “distinguir o senhor do
Tal era a servidão dos hilotas, entre os lacede- escravo pelas delícias da vida.” (N. do A.)
66 São palavras, de Tácito: Cetera domus officia
úxor ac liberi exequuntur (De Mor. German., cap.
93 De Moribus German., cap. XXV. (N. do A.) XXV).
Capítulo XI
Capítulo XII
Abuso da escravidão
Nos Estados maometanos5 6, não se é ape e não para a voluptuosidade. As leis da pudicí
nas senhor da vida e dos bens das mulheres cia são do direito natural e devem ser observa
escravas, como também do que chamamos sua das por todas as nações do mundo.
virtude e sua honra. Constitui uma das desgra Ora, se a lei que preserva a pudicícia dos
ças desses países que a maior parte da nação escravos é boa nos Estados em que o ilimitado
não faça outra coisa senão servir à voluptuo- poder diverte-se cruelmente com tudo, quanto
o será nas monarquias? Quanto o será nos
sidade da outra. Esta servidão é recompensada
Estados republicanos?
pela indolência da qual se faz desfrutar tais
Há um dispositivo da lei58 dos lombardos
escravos, fato que constitui ainda nova des que parece bom para todos os governos. “Se
graça para o Estado. um senhor ultraja a mulher de seu escravo,
Ê essa indolência que torna os serralhos do ambos tornar-se-ão livres.” Admirável deter
Oriente.5 7 lugares deliciosos para aqueles mes minação para prevenir e sustar, sem muito
mos contra os quais eles são feitos. Pessoas rigor, a incontinência dos senhores.
que não temem senão o trabalho podem encon Não considero que os romanos tenham tido,
trar sua felicidade nesses lugares tranquilos. a esse respeito, uma boa polícia. Largaram as
Mas percebe-se que, com isso, afeta-se o pró rédeas à incontinência dos senhores; privaram
prio espírito do estabelecimento da escravidão. mesmo suas escravas do direito ao casamento.
Quer a razão que o poder do senhor não se Elas constituíam a parte mais vil da nação;
porém, por mais que o fossem, seria conve
estenda além das coisas que são de sua função;
niente que tivessem costumes, porque, além do
cumpre que a escravidão seja para a utilidade
mais, ao se lhes vedarem os casamentos,
corrompiam-se os dos cidadãos.
6 6 Vede Chardin, Voyage en Perse. (N. do A.)
5 7 Vede Chardin, t. II, na sua Description du Mar-
ché dlzagour. (N. do A.) 58 Liv. I, tít. XXXII, § 5. (N. do A.)
Capítulo XIII
O grande número de escravos tem efeitos Entretanto, nos Estados moderados, é muito
diferentes nos diversos governos. No governo importante que não existam muitos escravos.
despótico não é um peso; a escravidão política, A liberdade política torna preciosa a liberdade
estabelecida no corpo do Estado, faz com que civil, e quem for privado dessa última é igual
pouco se perceba a escravidão civil. Os que mente privado da outra: vê uma sociedade feliz
chamamos homens livres pouco se diferenciam da qual nem mesmo é uma parcela;'encontra
dos que não têm esse título; e os que não têm, sua segurança estabelecida por outros e não
tendo em mãos quase todos os negócios, fazem por ele próprio; sente que seu senhor possui
com que a condição de homem livre e a de uma alma que pode crescer, e que a sua é coa
escravo muito de aproximem. É, portanto, gida a se rebaixar incessantemente. Nada
quase indiferente que poucas ou muitas pes aproxima mais da condição dos animais do
soas vivam na escravidão. que ver sempre homens livres e não o . ser.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 227
Essas pessoas são inimigos naturais da socie isso tenha acontecido tão raramente59 nos
dade e sua quantidade seria perigosa. Estados despóticos.
Não nos devemos admirar, portanto, que,
59 A revolta dos mamelucos era um caso particu
nos governos moderados, o Estado tenha sido lar; tratava-se de um corpo de milícia que usurpara
perturbado pelas revoltas dos escravos e que o império. (N. do A.)
Capítulo XIV
Capítulo XV
Quando toda a nação é guerreira, os escra coisa roubada. Entre os alemães, as coisas que
vos armados são menos temíveis. tinham por princípio a coragem e a força não
Pela lei dos alemães, um escravo que rou eram odiosas. Serviam-se de seus escravos na
basse63 uma coisa que tivesse sido guardada
guerra. Na maioria das repúblicas procurou-se
era submetido à pena que se infligiría a um
homem livre; mas, se a roubava 6 4 pela violên sempre destruir a coragem dos escravos; o
cia, estava obrigado apenas à restituição da povo alemão, confiante em si próprio, pensava
aumentar a audácia dos seus; sempre armado,
63 Lei dos Alemães, cap. V, § 3. (N. do A.) nada temia deles; eram instrumentos de suas
6 4 Ibid., cap. V, § 5,per virtutem. (N. do A.) pilhagens ou de sua glória.
Capítulo XVI
Precauções a tomar no governo moderado
A benevolência para com os escravos, nos mesmo à servidão, contanto que o senhor não
Estados moderados, poderá prevenir os peri seja mais duro que a servidão. Os atenienses
gos que se poderia temer de seu número exces tratavam seus escravos com grande brandura e
sivo. Os homens acostumam-se a tudo, e não consta que eles tenham perturbado o Esta
228 MONTESQUIEU
Capítulo XVII
O magistrado deve velar para que o escravo essa questão deve ser regulamentada por lei.
obtenha sua alimentação e sua vestimenta; As leis devem cuidar para que eles sejam
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 229
tratados em suas doenças e na velhice. Cláu senhores podiam exigir que fossem vendidos a
dio72 ordenou que os escravos que tivessem outro. Nos últimos tempos, houve uma lei
sido abandonados, quando doentes, por seus semelhante em Roma77. Um senhor irritado
senhores seriam livres se escapassem73. Esta contra seu escravo e um escravo irritado con
lei assegurava sua liberdade, mas teria sido tra seu senhor deveríam ser separados.
necessário assegurar sua vida. Quando um cidadão maltrata um escravo de
Quando a lei permite ao senhor matar seu outrem, cumpre que este último possa apresen
escravo, trata-se de um direito que ele deve tar queixa em juízo. As leis78 de Platão e a
exercer como juiz e não como senhor: é mister maioria dos povos proíbem aos escravos a de
que a lei ordene formalidades que suprimam a fesa natural; é mister, portanto, possibilitar-
suspeita de uma ação violenta. lhes a defesa civil.
Quando, em Roma, não mais foi permitido Na Lacedemônia, os escravos não podiam
aos pais mandar matar seus filhos, os magis obter qualquer justiça contra os insultos nem
trados infligiram 7 4 a pena que o pai pretendia contra as injúrias. Sua desgraça era tanta, que
prescrever. Uma prática semelhante entre o se eles eram não somente escravos de um cidadão
nhor e os escravos seria razoável nos países como também do público; pertenciam a todos
em que os senhores têm o direito de vida e de e a um só. Em Roma, no dano causado ao
morte. escravo, apenas se considerava o interesse do
A lei de Moisés era bem severa: “Se alguém senhor 79. Confundia-se, sob efeito da lei Aqui-
espancar seu escravo e este morrer em suas liana, o ferimento feito a um animal àquele
mãos, ele será punido; mas, se o escravo sobre feito a um escravo; considerava-se apenas a
viver um dia ou dois, não o será, pois trata-se diminuição de seu preço. Em Atenas80, pu-
de seu dinheiro7 5”. Que povo este em que era nia-se severamente, algumas vezes inclusive
preciso que a lei civil se separasse da lei com a morte, quem maltratasse o escravo de
natural! outro. A lei de Atenas, com razão, não queria
Por uma lei dos gregos 7 6, os escravos que acrescentar à perda da liberdade a perda da
fossem tratados muito brutalmente por seus segurança.
Capítulo XVIII
Das alforrias
É fácil perceber que quando, no governo As diversas leis e os senatus-consultos que
republicano, se têm muitos escravos, cumpre se fizeram em Roma em favor e contra os
libertar muito. O mal é que, se há muitos escravos, ora para prejudicar, ora para favore
escravos, eles não podem ser contidos; se há cer as alforrias, mostram quantos obstáculos
muitos alforriados, eles não podem viver e tor- encontraram-se a esse respeito. Houve mesmo
nam-se uma carga para a república, sem con períodos em que não se ousou fazer leis. Quan
tar que esta república pode ser ameaçada, de do, na época de Nero81, demandou-se ao sena
um lado, por um número muito grande de do permissão para que os proprietários recolo
libertos e, de outro, por um número muito cassem na servidão os alforriados ingratos, o
grande de escravos. É necessário, portanto, imperador determinou que seria necessário jul-
que as leis considerem esses dois inconve
nientes. 81 Tácito, Anais, liv. XIII, cap. XXVII. (N. do A.)
230 MONTESQUIEU
gar os casos particulares e não estatuir em Quando existem muitos libertos, cumpre
geral. que as leis civis determinem o que eles devem a
Quase não saberia dizer quais são os regula seus proprietários ou que o contrato de alforria
mentos que uma boa república deve estabe estabeleça em lugar delas esses deveres.
lecer a esse respeito; isso depende muito das Percebe-se que a condição deles deve ser
circunstâncias. Eis algumas reflexões. mais favorecida no Estado civil do que no Es
Não se deve conceder, subitamente e por
uma lei geral, um número considerável de tado político, porque, mesmo no governo
alforrias. Sabemos que, entre os volsianos82, popular, o poder não deve cair nas mãos da
os libertos, senhores dos sufrágios, fizeram plebe.
uma abominável lei que lhes outorgava o direi Em Roma, onde existiam tantos alforriados,
to de serem os primeiros a dormir com as jo as leis políticas, a esse respeito, foram admirá
vens que se casavam com ingênuos. veis. Deu-se-lhes pouco e não se lhes excluiu
Há diversas maneiras de introduzir insensi quase nada. Tiveram efetivamente alguma
velmente novos cidadãos nas repúblicas. As participação na legislação, mas quase não
leis podem favorecer os pecúlios e possibilitar influíam nas resoluções a serem tomadas. Po
aos escravos comprar sua liberdade; podem diam participar dos cargos e do próprio
estabelecer um prazo para a servidão, como as sacerdócio8 4 mas esse privilégio era, de certo
de Moisés, que limitara em seis anos a dos modo, anulado pelas desvantagens que as elei
escravos hebreus83. É fácil libertar todos os
ções lhes proporcionavam. Tinham direito de
anos certo número de escravos entre os que,
entrar nas milícias, mas, para ser soldado, era
pela idade, pela saúde, pela engenhosidade, te
preciso um certo censo. Nada vedava aos
nham meios de vida. Pode-se mesmo cortar o
mal pela raiz: como o grande número de escra alforriados8 5 unir-se pelo casamento às famí
vos está relacionado aos diversos empregos lias ingênuas, mas não lhes era permitido
que lhes são dados, transferir aos ingênuos unir-se às dos senadores. Enfim, seus filhos
uma parte desses empregos significa diminuir eram ingênuos, apesar de eles próprios não o
o número de escravos. serem.
82 Suplemento de Freinshemius, década II, liv. V. 8 4 Tácito, Anais, liv. XIII, cap. XXVII. (N. do A.)
(N. do A.) 8 5 Arenga de Augusto, em Dion, liv. LVI. (N. do
83 Êxodo, cap. XXI. (N. do A.) A.)
Capítulo XIX
Assim, no governo de muitos, frequente qualquer que seja o privilégio que se lhes con
mente é útil que a condição dos libertos esteja ceda, quase não se pode considerá-los como
pouco abaixo da dos ingênuos e que as leis tra libertos, porque, como não podem constituir
balhem para suprimir-lhes a mágoa por sua família, estão, por sua própria natureza, liga
condição. Mas, no governo de um só, quando dos a uma família e é somente por uma espécie
reina o luxo e o poder arbitrário, nada se pode de ficção que se pode considerá-los cidadãos.
fazer a esse respeito. Os libertos se encontram Entretanto, há países em que se lhes outor
quase sempre acima dos homens livres; domi gam todas as magistraturas. “No Tonquim8 6”,
nam na corte do príncipe e nos palácios dos escreve Dampier8 7, “todos os mandarins civis
poderosos e, como estudaram as fraquezas de e militares eram eunucos.” Não têm família e,
seu senhor mas não suas virtudes, fazem-no
reinar, não por suas virtudes, mas por suas fra 8 6 Outrora, a mesma coisa acontecia na China. Os
quezas. Assim eram, em Roma, os alforriados dois árabes maometanos que a percorreram no sé
culo IX dizem eunuco quando desejam se referir ao
da época dos imperadores. governador de uma cidade. (N. do A.)
Quando os principais escravos são eunucos, 87 Tomo III, pág. 91. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 231
apesar de serem naturalmente avaros, o senhor lado, permite-se-lhes o casamento, porque eles
ou o príncipe aproveitam, no final das contas, têm a magistratura.
de sua avareza. É assim que os sentidos que sobram querem
O mesmo Dampier88 conta-nos que, nesse obstinadamente suprir os que faltam e que os
país, os eunucos não podem passar sem mu empreendimentos do desespero são uma espé
lher e que se casam. A lei que lhes permite o cie de prazer. Destarte, em Milton, este Espí
casamento só pode estar baseada, de um lado, rito ao qual só restam desejos, compenetrado
na consideração que se tem por gente dessa de sua degradação, quer fazer uso de sua
espécie e, de outro, no desprezo que se vota às impotência.
mulheres. Vemos, na história da China, grande cópia
Assim, confiam-se a essa gente as magistra de leis destinadas a vedar aos eunucos os
turas, porque eles não têm família, e, de outro empregos civis e militares; mas eles sempre
retornam. Parece que os eunucos no Oriente
8 8 Tomo III, pág. 94. (N. do A.) são um mal necessário.
LIVRO DÉCIMO SEXTO
COMO AS LEIS DA ESCRAVIDÃO DOMÉSTICA
RELACIONAM-SE COM A NATUREZA DO CLIMA
Capítulo I
Da servidão doméstica
Os escravos são antes estabelecidos para a família do que na família. Assim distinguirei sua
servidão daquela a que estão submetidas as mulheres em alguns países, à qual chamarei propria
mente de servidão doméstica.
Capítulo II
Nos climas quentes, as mulheres são nú- uma espécie de igualdade introduz-se natural
beis89* aos oito, nove ou dez anos. Desta mente entre os sexos e, por consequência, exis
maneira, a infância e o casamento estão quase te a lei que estabelece uma só esposa.
sempre juntos. Aos vinte anos, são velhas; a Nas regiões frias, o uso quase necessário
razão, portanto, nunca se encontra nelas com a das bebidas fortes introduz a intemperança
beleza. Quando a beleza reclama a suprema entre os homens. As mulheres, que a esse res
cia, a razão a recusa; quando a razão poderia
peito têm uma moderação natural, porque
obtê-la, a beleza não mais existe. As mulheres
devem sempre se defender, possuem, portanto,
devem viver na dependência, porque a razão
sobre os homens, a vantagem da razão.
não lhes pode oferecer na velhice um domínio
A Natureza, que distinguiu os homens pela
que a beleza não lhes dera na própria juventu
de. É, portanto, muito natural que um homem, força e pela razão, não pôs outro limite a seu
quando a religião a isso não se opõe, abandone poder senão o desta força e desta razão; deu
sua mulher para tomar outra, e que a poliga ela às mulheres os atrativos e quis que seu
mia apareça. desenvolvimento pusesse fim a seus encantos,
Nos países de clima temperado, em que os mas, nos países quentes, eles só se encontram
encantos femininos conservam-se melhor, em em seus inícios e nunca no curso de sua vida.
que elas se tornam núbeis mais tardiamente e Assim é a lei que não permite que uma mu
que têm filhos numa idade mais avançada, a lher se adapte mais ao físico do clima da Euro
velhice do marido, de alguma maneira, acom pa do que ao físico do clima da Ásia. Esta é
panha a dela, e, como as mulheres, na época uma das razões que fizeram com que o mao-
em que se casam, têm mais razão e conheci metismo encontrasse tanta facilidade em se
mentos, se mais não for porque viveram mais, estabelecer na Ásia e tanta dificuldade em
difundir-se na Europa, que fizeram com que o
89 Maomé desposou Cadija aos cinco anos, dor cristianismo se mantivesse na Europa e fosse
miu com ela aos oito. Nas regiões quentes da Ará destruído na Ásia, e que, finalmente, levam os
bia e das índias, as jovens são núbeis aos oito anos, maometanos a realizar tanto progresso na
e dão à luz um ano depois. Prideaux, Vie de Maho-
met. Vêem-se mulheres, nos reinos de Argel, parir China e os cristãos tão pouco. Os desígnios
aos nove, dez e onze anos. Laugier de Tassis, His humanos estão sempre subordinados a esta
toire du Royaume d’Alger, pág. 61. (N. do A.)* causa suprema, que faz tudo o que quer e que
* Cadija, observa Laboulaye, “tinha quarenta anos se serve de tudo que quiser.
quando desposou Maomé. È Ayescha que o profeta
desposou quando ela apenas tinha seis anos”. Algumas razões particulares a Valenti-
236 MONTESQUIEU
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Na costa do Malabar, na casta dos naires", costume. Os naires constituem a casta dos
os homens só podem ter uma mulher, e essa nobres, que são os soldados de todos esses
pode, pelo contrário, possuir vários maridos. povos. Na Europa, impede-se o casamento dos
Creio que se pode descobrir o motivo desse soldados. No Malabar, onde o clima exige
ainda mais, contentou-se em tornar-lhes o
99 Voyages, de François Pyrard. cap. XXVII, Let casamento tão pouco embaraçoso quanto pos
tres Édifiantes, terceira e décima coleções sobre o sível: deu-se uma mulher a vários homens,
Maleami na costa do Malabar. Isso é considerado coisa que diminui outro tanto o apego à famí
como um abuso da profissão militar e, como diz
Pyrard, uma mulher da casta dos brâmanes nunca lia e aos cuidados do lar, e deixa a essas pes
desposaria vários maridos. (N. do A.) soas o espírito militar.
Capítulo VI
Da poligamia em si mesma
Capítulo VII
10 4 Vovages, de François Pyrard, cap. XII. (N. do 105 Êxodo, cap. XXI, versículos 10 e 11. (N. do
A.) A.)
Capítulo VIII
Uma das consequências da poligamia, nas inútil. Nesses países, em lugar de preceitos, são
nações voluptuosas e ricas, é a existência de necessários ferrolhos.
Um livro clássico106 da China considera
um número excessivo de mulheres. Seu isola
um prodígio de virtude um homem encontrar-
mento dos homens e sua reclusão originam-se se sozinho com uma mulher num cômodo afas
naturalmente desse número excessivo. A tado sem lhe causar violência.
ordem doméstica assim o exige; um devedor
insolvente procura pôr-se ao abrigo das perse 10 6 “Encontrar, num lugar ermo, um tesouro do
guições dos credores. Há climas em que o físi qual se seja o dono, ou uma bela mulher sozinha em
seu cômodo afastado; ouvir a voz de seu inimigo
co tem tal força, que a moral quase nada pode. que perecerá se não for socorrido: admirável pedra
Deixai um homem com uma mulher; as tenta de toque.” Tradução de uma obra chinesa sobre a
moral, do Padre du Halde, t. III, pág. 151. (N. do
ções serão quedas, ataque seguro, resistência A.)
Capítulo IX
Capítulo X
No caso da multiplicidade de mulheres, Não se pode dizer o mesmo das índias, onde
quanto mais a família deixa de ser una, mais as o número infinito de ilhas e a situação do solo
leis devem reunir num centro essas partes dividiram-na em uma infinidade de pequenos
desgarradas, e, quanto mais diferentes são os Estados que grande número de causas (que
interesses, mais é necessário que as leis os não tenho tempo para expor) tornou despóti
reconduzam a um único interesse. cos.
Isso se faz principalmente pela clausura. As Nesse país, existem apenas miseráveis que
mulheres devem não somente estar separadas pilham e miseráveis que são pilhados. Os que
dos homens pela clausura da casa, como se chamam poderosos têm apenas muito pou
devem também ficar separadas nesta própria cos recursos; os que se chamam ricos mal têm
clausura, de modo que elas aí se estabeleçam para a sua subsistência. A clausura das mulhe
como uma família particular dentro da família. res não pode ser tão rigorosa; não se pode
Disso deriva, para as mulheres, toda prática da tomar grandes precauções para contê-las; a
moral: o pudor, a castidade, o silêncio, a paz, a corrupção dos seus costumes é inimaginável.
dependência, o respeito, o amor, enfim, uma É nisso que vemos até que ponto os vícios
orientação geral de sentimentos, a melhor por do clima, deixados em grande liberdade,
sua natureza, que é o apego exclusivo à podem acarretar a desordem. É nisso que a
família. Natureza tem uma força e o pudor uma fra
As mulheres têm, naturalmente, que cumprir queza que não podemos compreender. Em
tantos deveres que lhes são próprios, que não Patane108, a lubricidade109 das mulheres é
se pode separá-las muito de tudo quanto lhes
poderia dar outras idéias, de tudo o que diz 1 0 7 Há, aqui, muito de sistema, muito de otimis
respeito às distrações, e tudo a que chamamos mo, e talvez um pouco de ironia. Atentar ainda para
negócios. o fato de que Montesquieu utiliza também fontes
muito duvidosas, como essas coletâneas de viagens
Encontramos, no Oriente, costumes mais da Companhia das índias, que citará mais abaixo.
puros à medida que a clausura das mulheres é 10 8 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, t. II,
mais rigorosa. Nos grandes Estados há, neces parte II, pág. 196. (N. do A.)
sariamente, grandes senhores. Quanto mais 109 Nas Maldivas, os pais casam as filhas com dez
poderosos, mais estão eles em condições de e onze anos, porque é um grande pecado, explicam
eles, deixá-las suportar a necessidade de homens.
manter as mulheres numa rigorosa reclusão e Voyages, de François Pyrard, cap. XII. Em Ban-
impedi-las de entrar na sociedade. É por isso tam, logo que uma jovem completa treze ou catorze
que, nos impérios turco, persa, mogol, chinês e anos, cumpre casá-la, se não se quer que ela leve
uma vida devassa. Recueil des Voyages qui Ont
japonês, a conduta das mulheres é admirá Servi à lÉtablissement de la Compagnie des Indes,
vel10 7. pág. 348. (N. do A.)
240 MONTESQUIEU
tão grande, que os homens são constrangidos a 110 Viagem na Guiné, segunda parte, pâg. 192, da
utilizar certas guarnições para se protegerem tradução. “Quando as mulheres”, escreve ele, “en
contram um homem, agarram-no e ameaçam
de suas investidas. Segundo Smith110, as coi denunciá-lo a seu marido, no caso de serem despre
sas não são melhores nos pequenos reinos dá zadas. Elas enfiam-se na cama de um homem, acor-
Guiné. Parece que, nesses países, os dois sexos dam-no e, se ele as recusa, ameaçam-no com o
perdem até mesmo suas próprias leis. flagrante.” (N. do A.)
Capítulo XI
Não é somente a pluralidade de mulheres calmas, pouco ativas, pouco requintadas, onde
que exige, em certos lugares do Oriente, sua o amor tem sobre o coração um domínio tão
clausura: é o clima. Os que lerem os horrores, controlado, que a menor vigilância basta para
os crimes, as perfídias, as atrocidades, as peço-
orientá-las?
nhas, os assassínios que a liberdade das mulhe
É uma felicidade viver nesses climas que
res ocasionou em Goa e nos estabelecimentos
portugueses nas índias, onde a religião só per permitem que nos comuniquemos111, onde o
mite uma esposa, e os que compararem isso à sexo que possui mais atrativos parece adornar
inocência e à pureza dos costumes das mulhe a sociedade, e onde as mulheres, reservando-se
res na Turquia, na Pérsia, no Mogol, na China para os prazeres de um único homem, servem
e no Japão, perceberão que é, amiúde, neces
também para o entretenimento de todos112.
sário separá-las dos homens, tanto quando se
tem uma mulher como quando se têm várias.
É o clima que deve decidir as coisas. De que 111 Que nos comuniquemos: que vivamos em rela
serviría enclausurar as mulheres nos nossos ções contínuas. Vede, mais acima, a nota 22, do
livro XIV.
países do Norte, em que seus costumes são 112 Isto convém admiravelmente à França do
naturalmente bons e onde todas as paixões são tempo de Montesquieu... e de outras épocas.
Capítulo XII
Do pudor natural
Todas as nações estão concordes em despre ela a viola. A modéstia e a moderação é que
zar a incontinência das mulheres; é que a lhe obedecem.
Natureza falou a todas as nações. Ela estabe Aliás, é da natureza dos seres inteligentes
leceu a defesa e o ataque e, tendo posto nos perceber suas imperfeições; assim, a Natureza
dois lados o desejo, colocou num a temeridade colocou em nós o pudor, ou seja, a vergonha
e, noutro, a vergonha. Deu aos indivíduos, de nossas imperfeições.
Deste modo, quando a força física de certos
para se conservar, longos períodos de tempo e, climas viola a lei natural dos dois sexos e a dos
para se perpetuar, só lhes deu momentos. seres inteligentes, cabe aos legislador estabe
Portanto, não é verdade que a incontinência lecer as leis que vençam a natureza do clima e
obedeça às leis da Natureza; pelo contrário, restabeleçam as leis primitivas.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 241
Capítulo XIII
Do ciúme
Capítulo XIV
Capítulo XV
Do divórcio e do repúdio
A diferença entre o divórcio e o repúdio é gens dos encantos da juventude nas mulheres
esta: efetua-se o divórcio por um mútuo que, em idade avançada, um marido se com
consentimento quando de uma incompatibi porte bondosamente à lembrança de seus
lidade mútua, enquanto o repúdio se efetua prazeres.
pela vontade e em favor de uma das duas par Constitui, portanto, uma regra geral que, em
tes, independentemente da vontade e da vanta todos os países onde a lei concede aos homens
gem da outra. a faculdade de repudiar, deva ela também ser
Repudiar é algumas vezes tão necessário às concedida às mulheres. Demais, nos climas em
que as mulheres vivem em escravidão domés
mulheres e lhes é sempre tão desagradável
tica, parece que a lei deve permitir às mulheres
fazê-lo, quanto é dura a lei que outorga esse
o repúdio e aos maridos somente o divórcio.
direito aos homens sem outorgá-lo às mulhe Quando as mulheres vivem no serralho, o
res. Um marido é o senhor do lar; ele possui marido não pode repudiar por causa da incom
mil maneiras para manter ou reconduzir suas patibilidade dos costumes; a culpa cabe ao
mulheres ao dever e parece que, em suas mãos, marido, se os costumes são incompatíveis.
o abuso não passa de um novo abuso do seu O repúdio com base na esterilidade da mu
poder. Porém, a mulher que repudia utiliza lher só teria sentido na monogamia11 4: quan-
apenas um triste remédio. Sempre é para ela
uma grande desgraça ser constrangida a pro 11 * Isto não significa que o repúdio, sob alegação
curar novo marido, quando perdeu a maioria de esterilidade, seja permitido no cristianismo. (N.
de seus atrativos com outro. É uma das vanta do A.)
242 MONTESQUIEU
do há muitas esposas, este motivo não tem to, ao passo que a lei das Maldivas parece
nenhuma importância para o marido. menosprezar igualmente o casamento e o
A lei das Maldivas11 5 permite retomar uma repúdio.
mulher que se repudiou. A lei do México11 6 A lei do México apenas concedia o divórcio.
proibia, sob pena de morte, a reconciliação. A Era uma nova razão para não permitir que
lei do México era mais sensata do que a das casais, voluntariamente separados, tornassem
Maldivas; no mesmo momento da dissolução a sê reunir. O repúdio parece adequar-se mais
ela pensava na indissolubilidade do casamen- ao arrebatamento do espírito e a alguma pai
xão da alma; o divórcio parece mais fruto da
11 5 Voyages, de François Pyrard. Teve preferência
reflexão.
sobre outra porque, neste caso, era preciso menos
O divórcio tem, comumente, grande utili
despesas. (N. do A.) dade política e, no que concerne à utilidade
11 6 História de Sua Conquista, por Sólis, pág. 49. civil, ele é estabelecido para o marido e para a
(N. do A.) mulher, e nem sempre é favorável aos filhos.
Capitulo XVI
Rômulo permitiu ao marido repudiar a es Para conceder o divórcio, a lei não exigia
posa se ela tivesse cometido adultério, prepa que se apresentassem os motivos120, porque,
rado veneno ou falsificado chaves. Às mulhe pela natureza da coisa, requerem-se motivos
res não concedeu o direito de repudiar seus para o repúdio que não são necessários para o
maridos. Plutarco117 diz que essa lei era divórcio, uma vez que, onde a lei especificou
muito severa. os motivos que podem romper o casamento, a
Como a lei de Atenas118 outorgava, tanto à incompatibilidade mútua é o maior deles.
mulher como ao marido, a faculdade de repu Dionísio de Halicarnasso121, Valério Má
diar e como vemos que, entre os primeiros ximo122 e Aulo Gélio123 relatam um fato que
romanos, as mulheres obtiveram esse direito, não me parece verdadeiro. Dizem que, quando
não 'obstante a lei de Rômulo, é evidente que se estabeleceu em Roma o direito de repudiar a
esta instituição foi uma das que os deputados
esposa, teve-se tanto respeito pelos auspícios
de Roma imitaram dos atenienses e que foi
que ninguém, durante quinhentos e vinte
incluída nas leis das Doze Tábuas.
anos124, utilizou esse direito, até Carvílio
Cícero11 9 afirma que as causas do repúdio Ruga, que repudiou a sua por causa da esterili
estavam nas leis das Doze Tábuas. Não pode
mos duvidar, portanto, que esta lei tenha dade. Porém, basta conhecer a natureza do
aumentado o número das causas de repúdio espírito humano para perceber que prodígio
estabelecidas por Rômulo. seria que, dando a lei a todo um povo seme
lhante direito, ninguém se utilizasse dele.
O direito de divórcio foi também uma dispo Coriolano, partindo para seu exílio, aconse
sição, ou pelo menos uma consequência da Lei lhou12 5 sua mulher a casar com um homem
das Doze Tábuas, pois, desde o momento em
que a mulher ou o marido tivessem, separada 120 Justiniano modificou isso. Novel. 117, cap. X.
mente, o direito de repudiar, com mais forte (N. do A.)
razão podiam desfazer o concertado amigavel 121 Liv. II. (N. do A.)
mente e por vontade mútua. 122 Liv. II, cap. IV. (N. do A.)
1 2 3 Liv. IV, cap. III. (N. do A.)
124 Segundo Dionísio de Halicarnasso e Valério
11 7 Vida de Rômulo, cap. XI. (N. do A.) Máximo, e quinhentos e vinte e três, segundo Aulo
11 8 Era uma lei de Sólon. (N. do A.) Gélio. Por isso não citam os mesmos cônsules. (N.
119 Mimam res suas sibi habere jussit, ex duode- do A.)
cim tabulis causam addidit. Filip. II, cap. LXIX. 12 5 Vede o discurso de Vetúria em Dionísio de
(N. do A.) Halicarnasso, liv. VIII. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS III 243
mais feliz que ele. Acabamos de ver que a Lei anos depois de Rômulo”, isto é, a repudiou
das Doze Tábuas e os costumes dos romanos setenta e um anos antes da Lei das Doze Tá
ampliaram muito a lei de Rômulo. Por que tais buas, que ampliava o poder de repudiar e as
ampliações, se nunca se fez uso da faculdade causas do repúdio.
de repudiar? Além disso, se os cidadãos tives Os autores que citei dizem que Carvílio
sem um tal respeito pelos auspícios, que nunca Ruga amava sua mulher mas que, por causa
repudiassem, por que os legisladores de Roma da sua esterilidade, os censores lhe fizeram
o teriam menos? Como a lei corrompeu inces jurar que a repudiaria, a fim de que ele pudesse
santemente os costumes? dar filhos à república, e que isso o tornou odio
Cotejando-se duas passagens de Plutarco, so ao povo130. Cumpre conhecer o gênio do
ver-se-á desaparecer o maravilhoso do fato em povo romano para descobrir a verdadeira
questão. A lei real126 permitia ao marido
causa do ódio que votou a Carvílio. Não foi
repudiar nos três casos a que acabamos de nos pelo fato de repudiar a esposa que Carvílio
caiu na desgraça do povo; isso não perturbaria
referir. “E ela estipulava”, diz Plutarco127,
o povo. Porém, Carvílio fizera um juramento
“que quem repudiasse em outros casos fosse
aos censores, que, dada a esterilidade da
obrigado a dar a metade de seus bens à esposa
mulher, ele a repudiaria para dar filhos à repú
e que a outra metade fosse consagrada a
blica. Era um jugo que o povo percebia que os
Ceres.” Podia-se, portanto, repudiar em todos
censores iriam colocar sobre ele. Mostrarei, na
os casos, mas submetendo-se à pena. Ninguém
continuação131 desta obra, as repugnâncias
o fez antes de Carvílio Ruga128, que, como que o povo romano demonstrou por regula
narra ainda Plutarco129, “repudiou a esposa mentos semelhantes. Mas donde pode advir
por causa da esterilidade duzentos e trinta12 tamanha contradição entre estes autores? Ei-
la: Plutarco examinou um fato, e os outros
12 6 Plutarco, Vida de Rômulo. (N. do A.) relataram um prodígio.
12 7 Plutarco, Vida de Rômulo. (N. do A.)
12 8 Efetivamente, a causa da esterilidade não é
considerada pela lei de Rômulo. Ao que tudo indi 130 Crévier observa também que Montesquieu
ca, ele não esteve sujeito aos confiscos, pois obede apresenta o acontecimento como anterior às leis das
cia a ordens dos censores. (N. do A.) Doze Tábuas e que nesta época ainda não havia
129 Na Comparação de Teseu e Rômulo. (N. do censores.
A.) 131 No liv. XXin, cap. XXI. (N. do A.)
LIVRO DÉCIMO SÉTIMO
COMO AS LEIS DA SERVIDÃO POLÍTICA
SE RELACIONAM COM A NATUREZA DO CLIMA
Capítulo I
Da servidão política
A servidão política não depende menos da natureza do clima do que a servidão civil e a
doméstica, como demonstraremos.
Capítulo II
Já dissemos que o calor excessivo diminui a Não nos devemos, pois, espantar que a
força e a coragem dos homens e que havia nos covardia dos povos de clima quente os tenha,
climas frios uma certa força de corpo e de espí quase sempre, tornado escravos, e que a cora
rito que tornava os homens capazes de ações gem dos povos dos climas frios os tenha man
duradouras, penosas, grandes e ousadas. No- tido livres. É uma consequência que deriva de
ta-se isso não apenas de nação para nação sua causa natural.
como também num mesmo país, de uma região Verifica-se isso igualmente na América; os
impérios despóticos do México e do Peru esta
para outra. Os povos do Norte da China são vam próximos do equador e quase todos os
mais corajosos do que os do Sul132; os povos pequenos povos livres estavam ou estão ainda
do Sul da Coréia133 não o são tanto quanto os perto dos pólos.
do Norte.
133 Os livros chineses assim o dizem: ibid., t. IV,
1 32 Padre du Halde, 1.1, pág. 112. (N. do A.) pág. 448. (N. do A.)
Capítulo III
Do clima da Ásia
As13 4 relações contam-nos “que o Norte da situa-se num clima muito frio; que essas terras
Ásia, este vasto continente, se estende do quar imensas estão divididas de oeste a leste por
to grau, aproximadamente, até o pólo, e das uma cadeia de montanhas que deixam ao norte
fronteiras da Moscóvia até o mar Oriental, a Sibéria e ao sul a Grande Tartária; que o
clima da Sibéria é tão frio que, com exceção de
13 4 Vede as Voyages du Nord, t. VIII; a História alguns lugares, eia não pode ser cultivada; e
dos Tártaros e o quarto volume de La Chine, do apesar de que os russos tenham estabeleci
Padre du Halde. (N. do A.) mento em todo o longo do Irtixe, eles nada cul
248 MONTESQUIEU
tivam; que só crescem nesta região alguns apesar de quase todos os grandes rios da Ásia
pequenos abetos e arbustos; que os naturais da terem sua nascente na região, faltar água, de
região dividem-se em miseráveis bandos de nô modo que ela só pode ser habitada junto aos
mades, que são como os do Canadá; que o mo rios e lagos”.
tivo dessa frieza decorre, de um lado, da alti Estabelecidos esses fatos, eu raciocino
tude da região e, de outro, de que, à medida assim: a Ásia não está propriamente na zona
que se avança do Sul para o Norte, as monta temperada e os lugares num clima muito frio
nhas aplanam-se, de modo que o vento do confinam imediatamente com os que estão
Norte sopra por toda parte sem encontrar
situados num clima muito quente, isto é, a Tur
obstáculos; que esse vento, que toma a Nova
quia, a Pérsia, o Mogol, a Coréia e o Japão.
Zembla inabitável, varrendo a Sibéria, toma-
a inculta; que, na Europa, ao contrário, as Na Europa, pelo contrário, a zona tempe
montanhas da Noruega e da Lapônia são bas rada é muito extensa, apesar de que esteja
tiões admiráveis que protegem desse vento os situada em climas muito diferentes entre si,
países do Norte; que isso faz com que, em não havendo relação entre os climas da Espa
Estocolmo, que se localiza aproximadamente a nha e da Itália e os da Noruega e Suécia. Mas,
cinquenta e nove graus de latitude, a terra pro como o clima, à medida que passa do Sul paia
duza frutos, cereais, plantas; e que, em torno o Norte, torna-se insensivelmente frio, quase
do Abo, que está a sessenta e um graus, assim na proporção da latitude de cada país, ocorre
como pelos sessenta e três e sessenta e quatro que cada país é mais ou menos semelhante ao
graus, existam minas de prata e que o terreno que lhe é vizinho, que não existe uma diferença
seja muito fértil”.
Vemos também, nas relações, “que a Gran notável entre eles e que, como acabo de dizer,
de Tartária, que está ao Sul da Sibéria, é igual a zona temperada é muito extensa.
mente muito fria; que o país nada cultiva e que Disso resulta que, na Ásia, as nações se
aí só existem pastagens para os rebanhos; que defrontem com nações, do forte ao fraco; os
aí não crescem árvores mas somente algumas povos guerreiros, bravos e ativos confinam
urzes, como nã Islândia; que há, próximo da imediatamente com povos efeminados, indo
China e do Mogol, algumas regiões em que lentes e timoratos; cumpre, portanto, que um
cresce uma espécie de painço, mas que nem o seja conquistado e outro conquistador. Na
trigo nem o arroz podem amadurecer; que
Europa, pelo contrário, ás nações se defron
quase não há, na Tartária chinesa, lugares, nos
tam, forte ao forte; as que são fronteiriças têm
graus quarenta e três, quarenta e quatro e qua
renta e cinco, em que não gele durante sete ou aproximadamente a mesma coragem. Reside aí
oito meses no ano, de modo que ela é tão fria o principal motivo da fraqueza da Ásia e da
quanto a Islândia, apesar de que devesse ser força da Europa, da liberdade da Europa e da
mais quente do que o Sul da França; que não servidão da Ásia, motivo este que, ao que sei,
há cidades, exceto quatro ou cinco do lado do não tinha ainda sido observado13 6. Ê isso que
mar Oriental e algumas que os chineses, por faz com que, na Ásia, nunca aconteça de a
razões políticas, construíram perto da China; liberdade aumentar, enquanto, na Europa, ela
que, no resto da Grande Tartária, existem ape aumenta ou diminui segundo as circunstân
nas algumas delas localizadas nas Bucárias, cias.
Turquestão e Carismo; que a origem desse frio
extremo reside na natureza do solo nitroso, Ver-se-á sempre no fato de ter a nobreza
moscovita sido reduzida à servidão por um de
repleto de salitre e arenoso, e, além disso, na
altura do terreno. O Padre Verbiest descobriu seus príncipes os traços de impaciência que os
que um certo local, a oitenta léguas ao norte climas do Sul não propiciam. Não vimos o
da grande muralha, para o lado da nascente do governo aristocrático aí estabelecido durante
Kavamhuram, ultrapassava a altura do nível alguns dias? Se outro reino do Norte perder
do mar, perto de Pequim, em três mil passos suas leis, pode-se confiar no clima, pois ele não
geométricos; que essa altura1 3 5 é causa de, as perderá irremediavelmente.
136 A Tartária é como uma espécie de montanha 13 8 Cf., entretanto, Aristóteles, Política, liv. VII,
chata. (N. do A.) cap. VII.
DO ESPIRITO DAS LEIS III 249
Capítulo IV
Consequência de tudo isso
O que acabamos de dizer está coerente com meira causada pelas conquistas dos romanos;
os conhecimentos da História. A Ásia foi süb- a segunda, pelas inundações dos bárbaros que
jugada treze vezes: onze pelos povos do Norte destruíram os próprios romanos; a terceira,
e duas pelos do Sul. Há muito tempo os citas a pelas vitórias de Carlos Magno; e a última,
conquistaram três vezes; em seguida os medos pela invasão dos normandos. E, se exami
e os persas, uma vez cada um; os gregos, os narmos esses acontecimentos mais de perto,
árabes, os mongóis, os turcos, os tártaros, os encontraremos neles uma força geral difundida
persas e os aguanos13 7. Refiro-me apenas à em todas as partes da Europa. Sabemos das
Alta Ásia e deixo de lado as invasões ocorri dificuldades que os romanos encontraram para
das no Sul dessa parte do mundo, que conti fazer a conquista na Europa e da facilidade
nuamente sofreu grandes revoluções. que tiveram para invadir a Ásia. Conhecemos
Na Europa, ao contrário, só conhecemos, os percalços que os povos do Norte sofreram
desde o estabelecimento das colônias gregas e para derrubar o império romano, as guerras e
fenícias, quatro grandes transformações: a pri- as dificuldades de Carlos Magno e os diversos
empreendimentos dos normandos. Os destrui
137 Os aguanos, os afegãos. dores eram incessantemente destruídos.
Capítulo V
Capítulo VI
Na Ásia, sempre encontramos grandes im Estados de extensão média, nos quais o gover
périos; na Europa, eles nunca puderam subsis no das leis não é incompatível com a manuten
tir. É que, na Ásia que conhecemos, estão ção do Estado, sendo, pelo contrário, tão favo
situadas as maiores planícies; e é cortada em rável, que, sem elas, este Estado cairia na
maiores porções pelos mares e, como está decadência e tornar-se-ia inferior a todos os
localizada mais ao sul, as fontes aí secam mais demais.
facilmente, as montanhas são menos cobertas Foi isso que originou um espírito de liber
de neves e os rios1 4 4 menos caudalosos for dade que torna cada parte muito difícil de ser
mam barreiras menores. subjugada e submetida a uma força estran
Na Ásia, o poder deve sempre ser despótico, geira, a não ser pelas leis e pela utilidade de
pois, não sendo a servidão tão extremada, seu comércio.
ocorrería logo uma divisão que a natureza da Pelo contrário, na Ásia reina um espírito de
região não poderia suportar. servidão que nunca a abandonou e, em todas
Na Europa, a divisão natural forma vários144 as histórias desse continente, não é possível
encontrar um só traço que marque uma alma
144 As águas se perdem ou se evaporam antes de livre; aí nunca se verá senão o heroísmo da
se reunirem, ou depois de se reunirem. (N. do A.) servidão.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 251
Capítulo VII
Da África e da América
Eis o que posso dizer sobre a Ásia e sobre a de sua antiga história está muito de acordo
Europa. A África está situada num clima com nossos princípios.
semelhante ao do Sul da Ásia e encontra-se
sob uma mesma servidão. A América1*4 5, des
truída e novamente povoada pelas nações da 145 Os pequenos povos bárbaros da América são
chamados índios bravos pelos espanhóis, bem mais
Europa e da África, quase não pode hoje reve difíceis de serem submetidos do que os grandes
lar seu verdadeiro espírito, mas o que sabemos impérios do México e do Peru. (N. do A.)
Capítulo VIII
Da capital do império
Uma das consequências decorrentes do que correrá o risco de perder o Norte e quem a
acabamos de dizer é que é importante para um colocar ao Norte conservará facilmente o Sul.
príncipe muito poderoso escolher corretamente
Não me refiro a casos específicos: a mecânica
a sede de seu império1 4 6. Quem a situar ao Sul
tem efetivamente seus atritos que, muitas
1 4 6 Acreditou-se que Montesquieu se referia aqui a vezes, modificam ou paralisam os efeitos da
Pedro, o Grande, e a São Petersburgo. teoria; a política também tem os seus.
LIVRO DÉCIMO OITAVO
DAS LEIS EM SUAS RELAÇÕES
COM A NATUREZA DO TERRENO
Capítulo I
1 4 7 Liv. VII. (N. do A.) 1 4 8 Vida de Sólon, cap. VIII. (N. do A.)
Capítulo II
Tais regiões férteis são planícies onde nada Os montanheses conservam um governo
se pode disputar ao mais forte; está-se, portan mais moderado porque não estão muito expos
to, submetido a ele e, quando se lhe está sub tos à conquista. Defendem-se facilmente e são
metido, o espírito da liberdade não poderá sur
atacados dificilmente. As munições de guerra e
gir. Os bens agrários são um penhor da
fidelidade. Mas, nas regiões montanhosas, de boca são reunidas e transportadas contra
pode-se e tem-se pouco a conservar. A liberda eles com enormes despesas e a região não as
de, ou seja, o governo no qual nos compraze- fornece. Deste modo, é mais difícil de lhes
mos, é o único bem que merece ser defendido.
Ela reina, assim, mais nos países montanhosos fazer a guerra, mais perigoso empreendê-la, e
e difíceis do que nos que a natureza parece ter todas as leis feitas para a segurança do povo
favorecido mais. são aí menos necessárias.
256 MONTESQUIEU
Capítulo III
As regiões não são cultivadas em razão de Esses climas favoráveis tinham, assim, sido
sua fertilidade, mas em razão de sua liberdade despovoados por outras transmigrações e não
e, se dividíssemos a terra pelo pensamento, conhecemos as coisas trágicas que aí ocorre
ficaríamos admirados por ver, na maioria das ram.
vezes, desertos em suas partes mais férteis e “Parece, por vários monumentos”, diz Aris
grandes povoados naquelas onde o terreno pa tóteles1 49, “que a Sardenha era uma colônia
rece recusar tudo.
grega. Outrora, fora muito rica, e Aristeu, cujo
É natural que um povo abandone uma
amor pela agricultura tem sido tão louvado,
região má para procurar outra melhor, mas
não que abandone uma região boa para procu dera-lhe leis. Mas ela decaiu muito depois, por
rar outra pior. A maioria das invasões ocorre, que os cartagineses, conquistando-a, des
portanto, nas regiões que a natureza prepara truíram tudo o que podia torná-la propícia à
para serem felizes. E, como nada está tão pró alimentação dos homens, e proibiram, sob
ximo da devastação como a invasão, as melho pena de morte, o cultivo da terra.” A Sardenha
res regiões são, amiúde, as mais despovoadas, ainda não se tinha restabelecido na época de
enquanto que as horríveis regiões do Norte Aristóteles e não o está ainda hoje.
continuam sempre habitadas, por serem quase As regiões mais temperadas da Pérsia, da
inabitáveis. Turquia, da Moscóvia e da Polônia não pude
Vemos, pelo que nos contam os historia ram restabelecer-e das devastações dos gran
dores do êxodo dos povos da Escandinávia des e dos pequenos tártaros.
para as margens do Danúbio, que não se trata
va de uma conquista, mas somente de uma 1 49 Ou quem escreveu o livro De Mirabilibus. (N.
transmigração para terras desertas. do A.)
Capítulo IV
Capítulo V
Os povos das ilhas são mais inclinados à liberdade do que os povos do continente. As
DO ESPIRITO DAS LEIS III 257
ilhas são, geralmente, de pequena extensão1 50; gada com tanto êxito para oprimir a outra; o
mar as separa dos grandes impérios e a tirania
assim, uma parte do povo não pode ser empre-
não se pode manter; os conquistadores são
paralisados pelo mar; os insulares não são
1 50 O Japão não confirma isso por sua grandeza e envolvidos pelas conquistas e conservam mais
por sua servidão. (N. do A.) facilmente suas leis.
Capítulo VI
As regiões que o labor dos homens tornou império exigia mais os costumes de um povo
habitáveis e que necessitam desse mesmo labor austero do que os de um povo voluptuoso,
para existir, atraem os governos moderados. mais o poder legítimo de um monarca do que o
Existem principalmente três dessa espécie: as poder tirânico de um déspota. Cumpria que o
duas belas províncias de Kiang-Nan e Tche- poder aí fosse moderado como o fora, outrora,
Kiang, na China, o Egito e a Holanda. no Egito. Cumpria que o poder fosse modera
Os antigos imperadores da China não eram do, como o é na Holanda, feita pela natureza
conquistadores. A primeira coisa que fizeram para cuidar de si própria e não para ser aban
para engrandecer-se foi a que provou sua sabe donada ao desleixo ou ao capricho.
doria. Viram-se emergir das águas as duas Assim, malgrado o clima da China que
mais belas províncias do império; foram cons induz naturalmente à obediência servil, mal
truídas pelos homens. É a indizível fertilidade grado os horrores resultantes da enorme exten
dessas duas províncias que deu à Europa as são do império, os primeiros legisladores da
idéias de felicidade desta vasta região. Mas um China foram obrigados a fazer leis muito boas
cuidado contínuo e necessário para garantir e o governo, amiúde, foi obrigado a observá-
contra a destruição uma parte considerável do las.
Capítulo VII
Os homens, por seus cuidados e por suas tam inúmeros regatos, eles não pouparam
boas leis, tornaram a terra mais adequada a nenhuma despesa para obter a água. Atual
ser habitada. Vemos correrem rios onde ape mente, sem que saibamos de onde ela provém,
nas existiam lagos e pântanos; trata-se de um encontramo-la nos campos e jardins.
benefício que a Natureza não outorgou, mas Assim, como povos destruidores causam
que é mantido por ela. Quando os persas1 51 malefícios que perduram mais do que eles, há
eram senhores da Ásia, permitiam aos que
outros, laboriosos, que fazem benefícios que
canalizassem as águas das fontes para algum
não acabam nem mesmo com eles1 52.
lugar que não fosse irrigado usufruí-lo durante
cinco gerações, e, como do monte Tauro bro
1 52 Laboulaye observa que podemos nos referir
deste modo à Espanha, em que os árabes deixaram
1 51 Políbio, liv. X, cap. XXV. (N. do A.) todo um sistema de irrigação.
258 MONTESQUIEU
Capítulo VIII
As leis estão estreitamente relacionadas povo que se limita a cultivar suas terras. É pre
com o modo pelo qual os diferentes povos pro ciso um maior para este povo do que para
curam sua subsistência. É necessário um códi outro que vive de seus rebanhos. É necessário
go de leis mais amplo para um povo que se de um maior para este último do que para outro
dica ao comércio e ao mar do que para um que vive da caça.
Capítulo IX
Do solo da América
O que faz com que haja tantos povos selva Demais, os animais que pastam, como os bois,
gens na América é o fato de seu solo produzir os búfalos etc., adaptam-se melhor do que os
por si próprio muitos frutos com os quais animais carnívoros. Estes sempre dominaram
na África.
podemos nos alimentar. Se as mulheres culti
Creio que todas essas vantagens não existi
vam em redor da cabana uma nesga de terra, ríam na Europa se se deixasse a terra inculta:
logo aparece o milho. A caça e a pesca aca aqui quase só nasceríam florestas, carvalhos e
bam de oferecer aos homens a abundância. outras árvores estéreis.
Capítulo X
Quando as nações não cultivam a terra, eis Eles quase não podem formar uma grande
em que proporção se encontra o número de nação. Se são pastores, necessitam de uma
homens. Tal como o produto de um solo incul vasta região para que possam subsistir em
to está para o produto de um solo cultivado, o certo número; se são caçadores, são ainda em
número dos selvagens, numa região, está para menor número e, para viver, formam um povo
o número dos lavradores em outra. E, quando menor.
o povo que cultiva as terras cultiva igualmente Seus domínios são geralmente repletos de
as artes1 S3, seguem-se daí proporções que exi florestas e, como os homens aí não canali
giríam muitos pormenores. zaram as águas, a região é cheia de pântanos,
em que cada bando se agrupa e forma uma
193 As artes: leia-se: a indústria. pequena tribo.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 259
Capítulo XI
Entre os povos selvagens e os povos bárba um todo porque não poderíam obter alimento;
ros há esta diferença: os primeiros são peque os tártaros podem viver em conjunto durante
nas nações esparsas que, por motivos determi algum tempo porque seus rebanhos podem ser
nados, não se podem agrupar, ao passo que os reunidos durante certo tempo. Todas as hordas
bárbaros são, comumente, pequenas nações podem, portanto, agrupar-se, e isso ocorre
quando um chefe submete muitas outras, de
que se podem reunir. Os primeiros, geralmente,
pois do que é preciso que elas façam uma das
são povos caçadores; os segundos, pastores. duas coisas: que se separem ou que se lancem
Vê-se bem isso no Norte da Ásia. Os povos da a alguma grande conquista em algum império
Sibéria não poderíam viver agrupados como do Sul.
Capítulo XII
Esses povos, não vivendo numa região limi pelas suas pescas, pela pastagem de seus ani
tada e circunscrita, terão muitos motivos de mais, pelo apresamento de seus escravos e, não
querelas entre si. Disputarão mutuamente a
tendo território, terão tanta coisa a regula
terra inculta, como entre nós os cidadãos dis
putam as heranças. Deste modo, encontrarão mentar pelo direito das gentes, que pouca coisa
frequentes ocasiões de guerra pelas suas caças, terão que decidir pelo direito civil.
Capítulo XIII
É principalmente a partilha das terras que casa. Eles podem, portanto, mais facilmente
avoluma o código civil. Entre os povos onde mudar de mulheres, possuir várias e, algumas
esta partilha não se tenha efetuado, haverá vezes, cruzar-se indiferentemente como ani
poucas leis civis. mais.
Poderemos chamar as instituições desses Os povos pastores1 5 4 não podem separar-se
povos mais precisamente costumes do que leis. de seus rebanhos, que constituem sua subsis
Entre tais povos, os anciãos, que se lem tência; do mesmo modo, não poderíam sepa
bram das coisas passadas, mantêm grande rar-se de suas mulheres, que deles cuidam.
autoridade; entre eles ninguém se distingue Assim, rebanhos e mulheres devem deslocar-se
pelos bens mas pelo poder e pelos conselhos. conjuntamente, tanto mais que, vivendo geral-
Esses povos erram e dispersam-se nas pasta
gens e nas florestas. O casamento não é tão 154 Os povos pastores: os tártaros e os árabes. No
estável como entre nós, onde é fortalecido pelo início do capítulo, o autor parece referir-se mais aos
domicílio e onde a esposa se prende a uma selvagens da América.
260 MONTESQUIEU
mente nas grandes planícies, em que há poucos Suas leis regulamentarão a partilha das
sítios defensivos, suas mulheres, filhos e reba pilhagens e concederão, como nossas leis sáli-
nhos tornar-se-iam presa dos inimigos. cas, atenção particular aos roubqs.
Capítulo XIV
Esses povos gozam de grande liberdade', iriam logo procurá-la com outro, ou refugiar-
pois, como não cultivam as terras, não lhes se-iam nas florestas para viver com sua famí
lia. Entre esses povos a liberdade do homem é
estão ligados; são errantes, nômades e, se um tão grande, que acarreta necessariamente a do
chefe pretendesse suprimir-lhes a liberdade, cidadão.
Capítulo XV
Aristipo, tendo naufragado, nadou e alcan Essa cultura supõe muitas artes e conheci
çou uma praia próxima; viu que, na areia, ha mentos e vemos sempre marcharem paralela
viam sido traçadas figuras de geometria; mente as artes, os conhecimentos e as necessi
comoveu-se de alegria, julgando que encon dades. Tudo isso conduz ao estabelecimento de
trara um povo grego e não um povo bárba um símbolo de valores.
ro1 5 5.
Ficai isolado e encontrai, por algum aciden As torrentes e os incêndios1 5 6 permitiram-
te, um povo desconhecido; se encontrardes nos descobrir que o solo continha metais. Uma
uma moeda, ficai certo de que vos encontrais vez separados, é fácil utilizá-los.
entre um povo civilizado.
A cultura da terra requer o uso da moeda
1 5 • Assim é que Diodoro, liv. V, cap. XXXV, nos
relata como os pastores encontraram o ouro dos
155 Cf. Cícero, De Rep., 1-17. Pirineus. (N. do A.)
Capítulo XVI
Quando um povo não conhece o uso da surgem com os novos meios e com as diversas
moeda, encontramos, nele, somente injustiças maneiras de ser desonesto.
decorrentes da violência; e os fracos, unindo- Nos países em que a moeda não existe, o
se, se defendem contra a violência. Em seu larápio só rouba coisas .e as coisas nunca se
meio, quase só existem conluios políticos. assemelham. Nos países onde existe a moeda,
Mas, entre um povo em que a moeda está esta o ladrão rouba símbolos e os símbolos se asse
belecida, estamos sujeitos às injustiças decor melham. Nos primeiros países nada pode ser
rentes da astúcia e essas injustiças podem ser ocultado pois o ladrão sempre carrega consigo
exercidas de mil maneiras. Torna-se então as provas de seu crime; a mesma coisa não
necessária a existência de boas leis civis. Elas ocorre nos outros países.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 261
Capítulo XVII
O que mais assegura a liberdade dos povos da riqueza existem, podem eles ser amontoa
que não cultivam as terras é o fato de não dos e distribuídos a quem se quiser.
conhecerem a moeda. Os frutos da caça, da Entre os povos que não conhecem o uso da
pesca ou dos rebanhos não podem ser reunidos
moeda, cada um possui poucas necessidades e
em quantidade muito grande, nem ser conser
vados por muito tempo, a ponto de um homem as satisfaz fácil e igualmente. A igualdade é,
se encontrar em condições de corromper todos portanto, forçada e, destarte, os chefes não são
os demais, ao passo que, quando os símbolos despóticos.
Capítulo XVIII
Se é verdade o que nos dizem as relações, a vida. Dirieis que é o grande Sesóstris. Esse
constituição de um povo da Louisiana denomi chefe é tratado em sua cabana com cerimônias
nado natchês derroga isso. Seu chefe1*5 7 dis que se dispensariam a um imperador do Japão
põe dos bens de todos os súditos e os faz traba ou da China.
lhar a seu capricho; não lhe podem recusar sua Os preconceitos da superstição são superio
cabeça. Ele é como o Grão Senhor. Quando o res a todos os outros, e suas razões a todas as
demais. Assim, apesar de os povos selvagens
herdeiro presuntivo nasce, dão-se-lhe todas as
não conhecerem naturalmente o despotismo,
crianças de peito para servi-lo durante toda a esse povo o conhece. Adoram o Sol e, se o seu
chefe não tivesse imaginado que era irmão do
1 5 7 Lettres Édifiantes, vigésima coletânea. (N. do Sol, veriam nele apenas um miserável como
A.) eles próprios.
Capítulo XIX
Os árabes e os tártaros são povos pastores. gelados; habitam uma imensa planície; têm
Os árabes estão incluídos nos casos gerais a pastagens e rebanhos e, portanto, bens. Porém,
que já nos referimos, e são livres, enquanto os não têm nenhuma espécie de refúgio nem de
tártaros (o mais curioso povo da terra) encon- defesa. Assim que um cã é vencido, cortam-lhe
tram-se na escravidão política1 58. Já apre o pescoço1 60 e tratam seus filhos da mesma
sentei1 59 algumas razões para esse último
fato: eis outras novas. maneira e todos os seus súditos passam a per
Não têm cidades, não têm florestas, têm tencer ao vencedor. Não são condenados a
poucos pântanos; seus rios estão quase sempre uma escravidão civil, pois seriam uma carga
1 58 Quando se proclama um cã, todo o povo grita: 1 80 Assim, não nos devemos admirar se Miriveis,
Que sua palavra lhe sirva de gládio l (N. do A.) tendo-se tornado senhor do Isafã, mandasse matar
1 69 Liv. XVII, cap. V. (N. do A.) todos os príncipes de sangue. (N. do A.)
262 MONTESQUIEU
para uma nação simples que não possui terras livre, pois não existe uma parte dela que não
a cultivar e não necessita de nenhum serviço deva ter sido subjugada numerosas vezes.
doméstico. Assim, eles aumentam a nação. Os povos vencidos podem conservar certa
Mas,, em lugar da escravidão civil, concebe-se liberdade quando, pela força de sua situação,
que a escravidão política teve que se introduzir estão em condições de fazer tratados após a
aí. derrota. Mas os tártaros, sempre sem defesa,
Efetivamente, numa região em que as diver uma vez vencidos, nunca puderam impor
condições.
sas hordas guerreiam continuamente e con
Disse, no capítulo II, que os habitantes das
quistam sem cessar umas às outras; numa planícies cultivadas quase nunca eram livres:
região em que, pela morte do chefe, o corpo as circunstâncias fazem com que os tártaros,
político de cada horda vencida é sempre habitando uma terra inculta, estejam no
destruído, a nação em geral quase não pode ser mesmo caso.
Capítulo XX
Capítulo XXI
O Padre du Halde afirma que, entre os tárta cado de Rohan entre os plebeus1 61. Trata-se
ros, é sempre o último varão que herda, por indubitavelmente de uma lei pastoril originada
que, na medida em que os mais velhos estão de algum pequeno povo bretão ou trazida por
em condições de iniciar a vida pastoril, aban algum povo germânico. Sabemos, por César e
Tácito1 62, que esse último cultivava pouco
donam sua casa com uma certa quantidade de
suas terras.
gado que o pai lhes dá e vão constituir uma
nova moradia. O último dos varões que perma
161 “É o que se chama de direito de juveigneur e o
nece no lar com o pai é, assim, o herdeiro direito de quévaise*, ver O Costume da Bretanha. ”
natural. (Nota de Laboulaye).
Ouvi dizer que semelhante costume era * Direito de Juveigneur e de quévaise: é o que dá
certas vantagens aos filhos não primogênitos, em
observado em alguns pequenos distritos da detrimento desses últimos (N. dos T.)
Inglaterra e subsiste ainda na Bretanha, no du 1 62 Tácito, De Morib. Germ., cap. XIV e XV.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 263
Capítulo XXII
Explicarei aqui como esse texto particular pertencido às mulheres? Elas passavam para
da lei sálica, chamada comumente a lei sálica, outra casa.
diz respeito às instituições de um povo que não A terra sálica era, portanto, esse recinto que
cultivava as terras, ou, pelo menos, as culti dependia da casa do germano; constituía sua
vava pouco. única propriedade. Os francos, após a conquis
A lei sálica1 63 determina que, quando um ta, adquiriram novas propriedades e conti
homem deixa filhos, os do sexo masculino her nuaram a chamá-las terras sálicas.
dam a terra sálica em detrimento das filhas. Quando os francos viviam na Germânia,
Para saber o que eram as terras sálicas, seus bens eram constituídos de escravos, reba
cumpre verificar o que eram as propriedades nhos, cavalos, armas, etc. A casa e a pequena
ou o uso das terras entre os francos, antes de porção de terra que lhe estava agregada eram
deixarem a Germânia. naturalmente dadas aos filhos varões que deve
Ecchard1 6 4 provou muito bem que a pala ríam aí habitar. Mas quando, depois da con
vra sálica deriva do termo sala, que significa quista, os francos adquiriram grandes proprie
“casa”, e que, assim, a terra sálica era a terra dades, considerou-se injusto que as filhas e
da casa. Irei mais longe e examinarei o que era seus descendentes não pudessem delas partici
a casa e a terra da casa entre os germanos. par. Introduziram uma prática que permitia ao
“Eles não habitam cidades”, diz Tácito1 6 5, pai convocar à sucessão sua filha e os filhos de
“e não podem tolerar que suas casas se sua filha. Fizeram calar a lei; vê-se bem que
toquem; cada um deixa em torno de sua casa essas convocações se tornaram comuns, uma
um pequeno terreno ou espaço, que é fechado e vez que para elas foram criadas fórmulas1 68.
cercado.” Tácito falava corretamente, pois Entre todas essas fórmulas, encontro uma
muitas leis dos códigos1 6 6 bárbaros tinham singular1 69. O avô chama à sucessão os netos
diferentes disposições contra os que des para que herdem juntamente com os filhos e
truíssem essa cerca e contra os que pene filhas. Que acontecia, portanto, com a lei sáli
trassem na própria casa. ca? Cumpria que, mesmo nessa época, ela não
Sabemos por Tácito e César que as terras fosse observada ou que o uso contínuo de cha
cultivadas pelos germanos só lhes eram dadas mar à sucessão as filhas tivesse feito com que
por um ano, tornando-se públicas depois desse sua possibilidade de herdar fosse encarada
prazo. Não tinham como patrimônio senão as como o caso mais comum.
casas e um pedaço de terra ao redor das mes Não tendo a lei sálica por objeto certa prefe
mas1 6 7. É esse patrimônio particular que per rência por um sexo sobre outro, com muito
tencia aos homens. Com efeito, por que teria menos razão teria como objeto a perpetuidade
da família, do nome ou da transmissão da
163 Tít. LXII. (N. do A.)
terra; essas questões não passaram pela imagi
1 6 4 Ecchard em suas Leges francorum Salicae et nação dos germanos. Tratava-se de uma lei
Ripuariorum (1720). puramente econômica que dava a casa, e a
1 6 5 Nullas Germanorum populis urbes habitari terra dela dependente, aos varões que a deviam
satis notum est, ne pati quidem inter se junctas habitar e a quem, consequentemente, convinha
sedes. Colunt discreti ac diversi, ut fons, ut campus,
ut nemus placuit. laicos locant, non in nostrum melhor.
morem connexis et cohaerentibus aedificiis: suam
quisque domum spatio circundai. De Moribus
Germ., cap. XVI. (N. do A.) 1 68 Vede Marculfo, liv. li, form. 10 e 12; o Apên
166 A lei dos alemães, cap. X e a lei dos bávaros, dice de Marculfo, form. 49 e as fórmulas antigas,
tít. X, §§ 1 e 2. (N. do A.) ditas de Sirmond, form. 22. (N. do A.)
1 6 7 Esse recinto chamava-se curtis nas chartas. (N. 1 69 Form. 55, na coletânea de Lindembroch. (N.
do A.) do A.)
264 MONTESQUIEU
Basta transcrever aqui o título dos alódios era natural que as crianças considerassem a tia
da lei sálica, texto muito famoso, referido por como a própria mãe.
muitos e lido por poucos. A irmã da mãe tinha preferência com rela
“l.° Se um homem morre sem deixar filhos, ção à irmã do pai. Isso se explica por outros
seu pai ou sua mãe lhe sucederão. 2.° Se não textos da lei sálica. Quando uma mulher ficava
tem pai nem mãe, o irmão ou a irmã lhe suce viúva1 7 4* , passava para a tutela dos parentes
derão. 3.° Se não tem nem irmão nem irmã, a do marido; a lei preferia para esta tutela os
irmã de sua mãe lhe sucederá. 4.° Se sua mãe parentes do lado materno aos parentes do lado
não tem irmã, a irmã de seu pai lhe sucederá. paterno. Com efeito, a mulher que entrava
° Se seu pai não tem irmã, o parente mascu
5. numa família, unindo-se às pessoas de seu
lino mais próximo lhe sucederá1*70. 6.° Nenhu sexo, estava mais próxima dos parentes femini
ma parcela1 71 da terra sálica passará às nos do que dos parentes masculinos. Além
mulheres, mas pertencerá aos varões, ou seja: disso, se um1 75 homem assassinasse outro e
os filhos varões sucederão a seu pai.” não tivesse com que ressarcir a pena pecu
É claro que os cinco primeiros artigos dizem niária na qual incorrera, a lei permitia-lhe
respeito à sucessão de quem morre sem deixar ceder seus bens e os parentes deveríam cobrir o
filhos, e o sexto, à sucessão de quem tem que faltasse. Depois do pai, da mãe e da irmã,
filhos. era a irmã da mãe que pagava, como se esse
Quando um homem morria sem deixar laço tivesse algo de mais terno. Ora, o paren
filhos, a lei estipulava que nenhum dos dois tesco que dava os encargos devia igualmente
sexos tivesse preferência sobre o outro a não dar as vantagens.
ser em certos casos. Nos dois primeiros graus A lei sálica determinava que, depois da irmã
de sucessão, as vantagens dos varões e das do pai, o parente masculino mais próximo
mulheres eram as mesmas; no terceiro e no tivesse a sucessão, mas, se o parentesco fosse
quarto, as mulheres tinham preferência e os além do quinto grau, ele nada herdava. Assim,
varões a tinham no quinto. uma mulher no quinto grau sucedería em pre
juízo de um varão no sexto, e isso se vê na
Encontro as sementes dessas esquisitices em lei1 76 dos francos ripuários, fiéis intérpretes
Tácito. “Os filhos1 72 das irmãs”, diz ele, “são da lei sálica, no título dos alódios, onde ela
tão queridos pelo tio como pelo próprio pai. segue passo a passo o mesmo título da lei
Há pessoas que consideram este liame como sálica.
mais estreito e mesmo mais sagrado; prefe Se o pai deixava descendentes, a lei sálica
rem-no ao tornar reféns.” É por isso que nos estipulava que as filhas fossem excluídas da
sos primeiros historiadores1 73 falam-nos tanto sucessão da terra sálica e que esta pertencesse
do amor dos reis francos pela irmã e pelos fi aos varões.
Ser-me-á fácil provar que a lei sálica não ex
lhos dela, pois, se os filhos das irmãs eram
considerados na casa como os próprios filhos,
clui indistintamente as filhas da terra sálica,
mas somente no caso de os irmãos as
excluírem.
1 70 Laboulaye nota que “no texto publicado por 1. ° Vemos isso na própria lei sálica que,
Baluze são as irmãs do pai que sucedem, antes das após declarar que as mulheres nada possuirão
irmãs da mãe”. da terra sálica, mas somente os varões, inter
1 71 De terra vero salica in mulierem nulla portio
hereditatis transit, sed hoc virilis sexus acquirit, hoc preta-se e restringe-se a si própria, “isto é”, diz
est filii in ipsa hereditate succedunt. Tit. LXII, § 6. ela, “que o filho sucederá na herança do pai.”
(N. do A.) 2. ° O texto da lei sálica é esclarecido peJa Jei
1 72 Sororum Jtliis idem apud avunculum quam dos francos ripuários, que também tem o títu
apud patrem honor. Quidam sanctiorem arctio-
remque hunc nexurn sanguinis arbitrantur, et in lo1 7 7 dos alódios, muito semelhante ao da lei
accipiendis obsidibus magis exigunt, tanquam ii et sálica.
animum firmius et domum latius teneant. De Mori-
bus Germ., cap. XX. (N. do A.)
1 73 Vede, em Gregório de Tours, liv. VII, cap. 1 7 * Lei sálica, tít. XLVII. (N. do A.)
XVIII e XX; liv. IX, cap. XVI e XX, as cóleras de 1 7 8 ibid., tít. LXI, § 1. (N. do A.)
Gontrão com relação aos maus tratos infligidos a 1 7 6 Et deinceps usque ad quintum genuculum qui
Ingunda, sua sobrinha, por Leuvigildo, e como seu proximus fuerit in hereditatem succedat. Tít. LVI, §
irmão, Gildeberto, guerreou a fim de vingá-la. (N. 6. (N. do A.)
do A.) 177 Tít. LVI. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 265
3. ° As leis desses povos bárbaros, todos estabelecimento dos feudos, mas foi o apareci
originários da Germânia, interpretam-se mu mento desses últimos que impôs limites à
tuamente, tanto mais que todas elas têm sucessão feminina e às disposições da lei
aproximadamente o mesmo espírito. A lei dos sálica.
saxões1*78 exige que o pai e a mãe deixem sua Depois do que acabamos de dizer, não se
herança aos filhos e não às filhas mas que, se acreditaria que a sucessão perpétua dos varões
só tiverem filhas, a elas caberá toda a herança. à coroa da França pudesse ter-se originado da
4. ° Temos duas antigas fórmulas1 79 que lei sálica. Entretanto, é indubitável que ela se
colocam o caso em que, de acordo com a lei originou dessa lei. Demonstrá-lo-ei pelos di
sálica, as filhas são excluídas pelos varões; é versos códigos das leis bárbaras. A lei sáli
quando elas concorrem com o irmão. ca182 e a lei dos borguinhões183 não conce
5. ° Outra fórmula1 80 prova que a filha her diam às filhas o direito de herdar a terra, com
dava em prejuízo do neto; ela era, portanto, seus irmãos; elas também não tinham direito
excluída apenas pelo irmão. de sucessão à coroa. A lei dos visigodos1 8 4.
6. ° Se as filhas, pela lei sálica, tivessem sido pelo contrário, admite que as filhas1 8 5 pos
geralmente afastadas da sucessão das terras, sam, juntamente com os irmãos, herdar a
seria impossível explicar as histórias, as fór terra; as mulheres eram capazes de suceder à
mulas e as cartas que se referem continua coroa. Entre esses povos, a disposição da lei
mente às terras e aos bens das mulheres na pri civil forçou1 8 6 a lei política.
meira raça. Este não foi o único caso em que a lei políti
Tem-se1 81 errado ao dizer que as terras sá-
ca, entre os francos, dobrou-se ante a lei civil.
licas eram feudos. l.° Este título é chamado
Pela disposição da lei sálica, todos os irmãos
dos alódios. 2.° Inicialmente, os feudos não
sucediam igualmente à terra e esta era também
eram hereditários. 3.° Se as terras sálicas tives
a disposição da lei dos borguinhões. Destarte,
sem sido feudos, como Marculfo teria chama
na monarquia franca e na dos borguinhões,
do de ímpio o costume que excluía as mulheres
todos os irmãos sucediam à coroa, com algu
de sua sucessão, uma vez que os próprios
mas violências, assassínios e usurpações, entre
varões não herdavam os feudos? 4.° As char-
esses últimos.
tas, que são citadas para provar que as terras
sálicas eram feudos, provam apenas que elas
eram terras francas. 5.° Os feudos somente 182 Tít. LXII. (N. do A.)
foram estabelecidos após a conquista e as prá 183 Tít. I, § 3; tít. XVI, § 1, e tít. LI. (N. do A.)
18 4 Liv. IV, tít. II, § 1. (N. do A.)
ticas sálicas existiam antes que os francos dei 185 Os povos germânicos, diz Tácito, De Moribus
xassem a Germânia. 6.° Não foi a lei sálica Germ., cap. XXII, possuíam costumes comuns, mas
que, limitando a sucessão feminina, levou ao tinham também os que lhes eram particulares. (N.
do A.)
186 A coroa, entre os ostrogodos, passou por duas
1 7 8 Tít. VII, § 1. Pater aut mater defuncti, filio non vezes aos homens pelas mulheres: uma, por Amala-
filiae hereditatem relinquant. § 4. Qui defunctus, sunta na pessoa de Atalarico, e outra por Amala-
non fllios sedfilias reliquerit, ad eas omnis hereditas freda na pessoa de Teodato. Não é que, entre eles,
pertineat. (N. do A.) as mulheres não pudessem reinar por si próprias.
1 79 Em Marculfo, liv. II, form. 12, e no Apêndice Amalasunta reinou depois da morte de Atalarico, e
de Marculfo,form. 49. (N. do A.) reinou mesmo depois da eleição de Teodato, e
180 Na coletânea de Lindembroch, form. 55. (N. concorrentemente com ele. Vede as cartas de Ama
do A.) lasunta e de Teodato, em Cassiodoro, liv. X. (N. do
1 81 Du Cange, Pitrou, etc. (N. do A.) A.)
Capítulo XXIII
Os povos que não cultivam as terras não germânicos; as artes não eram aplicadas em
têm a mesma idéia do luxo. É preciso ver, em seus ornamentos, eles as encontravam na
Tácito, a admirável simplicidade dos povos Natureza. Se a família de seus chefes devia ser
266 MONTESQUIEU
distinguida por algum sinal, era na própria francos, dos borguinhões e dos visigodos ti
Natureza que deveríam procurá-lo. Os reis dos nham por diadema sua longa cabeleira.
Capítulo XXIV
Disse mais acima que, entre os povos que que, não por devassidão mas por nobreza, pos
não cultivam as terras, os casamentos eram suíam várias.”
muito menos estáveis e que se tomavam, geral Isto explica como os reis da primeira raça
mente, muitas mulheres, “Os germanos eram tiveram um tão grande número de mulheres.
quase os únicos1 8 7 de todos os bárbaros que Esses casamentos eram menos um testemunho
se contentavam com uma única mulher, com de incontinência do que um atributo de digni
exceção188”, afirma Tácito, “de alguns deles dade: retirar-lhes tal prerrogativa significaria
feri-los num lugar muito delicado189. Isto
18 7 Prope soli barbarorum singulis uxoribus con- explica por que o exemplo dos reis não foi
tenti sunt. De Moribus Germ., cap. XVIII. (N. do seguido pelos súditos.
A.)
188 Exceptis admodum paucis qui, non libidine sed
ob nobilitatem, plurimis nuptiis ambiuntur. Ibid. (N. 189 Vede a Crônica de Fredegário, no ano 628. (N.
do A.) do A.)
Capítulo XXV
Childerico
“Os casamentos entre os germanos são seve há poucos exemplos1 91, num povo tão nume
ros1 90”, diz Tácito, “os vícios não são motivo roso, de violação da fé conjugal.”
de ridículo: corromper ou ser corrompido não Isto explica a expulsão de Childerico; ele
se chama um hábito ou uma maneira de viver; violara os rígidos costumes que a conquista
ainda não tivera tempo de mudar.
190 Severa matrimonia. . . Nemo illic vitia ridet;
nec corrumpere et corrumpi saeculum vocatur. De 191 Paucissima in tam numerosa gente adulteria.
Moribus Germ., cap. XIX. (N. do A.) Ibid. (N. do A.)
Capítulo XXVI
Os povos bárbaros, que não cultivam as ter tratavam de nenhum negócio público ou parti
ras, não possuem propriamente um território e cular sem estarem armados. Apresentavam sua
são, como dissemos, antes governados pelo opinião1 93 por um sinal que faziam com suas
direito das gentes do que pelo direito civil. Eles armas. Assim que podiam194 carregá-las,
estão, portanto, quase sempre armados. Desta eram apresentados à assembléia; punham-lhes
maneira, Tácito diz “que os germanos1 92 não
1 93 Si displicuit sententia, aspernantur; sin placuit,
frameas concutiunt. Ibid., cap. XI. (N. do A.).
192 Nihil neque publicae, neque privatae rei, nisi 19 4 Sed arma sumere non ante cuiquam moris
armati agunt. Tácito, De Moribus Germ., cap. XIII. quam civitas sujfecturum probaverit. Ibid., cap.
(N. do A.) XIII. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS III 267
nas mãos um dardo19 5; desde esse momento Vemos na lei dos ripuários, na idade dos
saíam da infância196; eram uma parte da quinze anos, a capacidade de carregar armas e
família e tornavam-se uma parte da repúbli a maioridade marcharem juntas. “Se um ripuá-
ca”. rio é morto, ou foi morto”, diz essa lei200,
“As águias”, dizia1 9 7 o rei dos ostrogodos, “tendo deixado um filho, este não poderá con
“deixam de alimentar os filhotes logo que suas denar, nem ser condenado em julgamento, até
penas e unhas estão desenvolvidas; estes não que possua quinze anos completos; então ele
necessitam de socorro alheio quando vão sozi mesmo responderá ou escolherá um campeão.”
nhos em busca de uma presa. Seria indigno
Era mister que o espírito estivesse suficiente
que nossos jovens que estão em nossos exérci
mente formado para se defender em julga
tos fossem considerados muito jovens para mento, como também o estivesse o corpo para
administrar seus bens e para orientar a condu
se defender em combate. Entre os borgui
ta de sua vida. Entre os godos, é a virtude que
nhões201 , que também tinham o hábito do
determina a maioridade.”
Childeberto II tinha quinze198 anos quan combate nas ações judiciais, a maioridade
também era de quinze anos.
do Gontrão, seu tio, o declarou maior e capaz
de governar sozinho1 99. Agatias conta-nos que as armas dos francos
eram leves; a maioridade podia ser obtida aos
quinze anos. Posteriormente, as armas torna-
19 5 Tum in ipso concilio, velprincipum aliquis, vel ram-se pesadas, sendo-o já bastante na época
pater, vel propinquus, scuto frameaque juvenem
ornant. (N. do À.) de Carlos Magno, como mostram nossas capi
19 6 Haec apud illos toga, hic primus Juventae tulares ou nossos romances. Os
honos; ante hoc domus pars videntur, mox reipubli- que202 possuíam feudo e que, consequente
cae. (N. do A.)
19 7 Teodorico, em Cassiodoro, liv. I, carta 38. (N. mente, deviam fazer o serviço militar, só atin
do A.) giram a maioridade aos vinte e um anos203 .
198 Ele mal tinha cinco anos, diz Gregório de
Tours, liv. V, cap. I, quando sucedeu a seu pai, no
ano 575, e tinha, portanto, cinco anos. Gontrão o 200 Tít. LXXXI. (N. do A.)
declarou maior no ano de 585; tinha, então, quinze 2 01 Tít. LXXXVII. (N. do A.)
anos. (N. do A.) 202 Para os plebeus não houve modificação. (N. do
199 Gregório de Tours, VII, cap. XXXIII. Gon A.)
trão declarou maior seu sobrinho Childeberto que já 203 São Luís apenas atingiu a maioridade com
era rei e, além disso, fe-lo seu herdeiro. Ver infra, essa idade. Isso mudou por um ano o edito de Car
cap. XXVIII. (N. do A.) los V, do ano de 1374. (N. do A.)
Capítulo XXVII
Vímos que, entre os germanos, não se com Childeberto os degolaram e dividiram seu
parecia às assembléias antes da maioridade; reino. Esse exemplo fez com que, posterior
era-se parte da família mas não da república. mente, os príncipes órfãos fossem declarados
Isso fez com que os filhos de Clodomiro, rei de reis imediatamente depois da morte dos pais.
Orleans e conquistador da Borgonha, não fos
Assim, o Duque Gondovaldo salvou Childe
sem declarados reis porque, na tenra idade em
que se achavam, não podiam estar presentes berto II da crueldade de Chilperico e o procla
na assembléia. Ainda não eram reis mas deve mou rei2 0 5 com a idade de cinco anos.
ríam sê-lo quando fossem capazes de carregar Porém, nesta própria modificação, obede
armas e, enquanto isso, Clotilde, sua avó, ceu-se, em primeiro lugar, ao espírito da
governava o Estado20 4. Seus tios Clotário e nação, de modo que os atos nem sequer eram
20 4 Parece, por Gregório de Tours, liv. III, que ela feitos em nome dos reis pupilos. Destarte,
escolheu dois homens de Borgonha, que era uma
conquista de Clodomiro, para educá-los na capital 20 5 Gregório de Tours, liv. V, cap. I. Vix lustro
de Tours, que também era do reino de Clodomiro. aetatis uno jam peracto, qui die dominicae natalis,
(N. do A.) regnare coepit. (N. do A.)
268 MONTESQUIEU
houve entre os francos uma dupla administra feudos, houve uma diferença entre a tutela e o
ção: uma que dizia respeito à pessoa do rei pu bailio20 6.
pilo e outra que dizia respeito ao reino; nos
20 6 A tutela se aplica à pessoa, o bailio à terra.
Capítulo XXVIII
Como, entre os germanos, em recebendo querendo adotar o rei dos hérulos, escreveu-
armas, obtinha-se a maioridade, a adoção era lhe208: “É uma bela coisa entre nós poder ser
efetuada sob o mesmo símbolo. Assim, Gon- adotado pelas armas, porque os homens cora
trão, querendo declarar maior seu sobrinho josos são os únicos que merecem tomar-se
Childeberto e também adotá-lo, disse-lhe: nossos filhos. Há uma tal força nesse ato, que
“Coloquei20 7 esse dardo em tuas mãos como
aquele que dele é objeto preferirá sempre mor
um símbolo de que te dei meu reino”. E,
voltando-se para a assembléia: “Vedes que rer a suportar algo de vergonhoso. Assim, pelo
meu filho Childeberto tornou-se um homem; costume dos povos e porque sois um homem,
obedecei-lhe”. Teodorico, rei dos ostrogodos, adotamos-vos por esses escudos, por essas
espadas, esses cavalos, que vos enviamos”.
20 7 Vede Gregório de Tours, liv. VII, cap. XXIII.
(N. do A.) 208 Em Cassiodoro, liv. IV, carta II. (N. do A.)
Capítulo XXIX
Clóvis não foi o único dos príncipes, entre conseguiu. Temia, diz Gregório de Tours210,
os francos, que empreendeu expedições nas que os francos tomassem outro chefe. Seus fi
Gálias. Muitos de seus parentes para lá tinham lhos e seus sucessores adotaram a mesma prá
levado tribos particulares; como ele obtivesse tica tanto quanto puderam. Viram-se irmãos,
grandes êxitos, podendo dar estabelecimentos tios, sobrinhos, que digo? filhos, pais, conspi
consideráveis aos que o tinham seguido, fran
cos de todas as tribos acorreram-lhe e os de rarem incessantemente contra toda a família.
mais chefes encontraram-se muito enfraque A lei separava constantemente a monarquia; o
cidos para lhe resistir. Ele se impôs como temor, a ambição e a crueldade queriam
objetivo exterminar toda a sua casa209 e o reuni-la.
209 Gregório de Tours, liv. II. (N. do A.) 210 Ibid. (N. do A.)
Capítulo XXX
Dissemos acima que os povos que não culti- germanos estavam nesse caso. Tácito conta
vam as terras gozam de grande liberdade. Os que eles só outorgavam a seus reis ou chefes
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 269
um poder muito moderado211, e César212, negócios dos quais o povo toma conhecimento
que eles não possuíam magistrado comum são levados diante do príncipe.” Esse costume
durante a paz, mas que, em cada aldeia, os consefrvou-se após a conquista, como se vê21 5
príncipes faziam a justiça entre os seus. Desta em todos os monumentos.
maneira, os francos, na Germânia, não pos
Tácito21 6 diz que os crimes capitais podiam
suíam reis, como Gregório de Tours213 prova
ser levados diante da assembléia. Essa prática
muito bem.
“Os príncipes21 4”, diz Tácito, “deliberam continuou após a conquista e os grandes vas
sobre as pequenas coisas, toda a nação sobre salos aí foram julgados.
as grandes, de tal maneira, entretanto, que os
21 4 De minoribus príncipes consultant, de mqjori-
bus omnes; ita tamen ut ea quorum penes plebem
211 Nec regibus libera aut infinita potestas. Caete- arbitrium est, apud príncipes quoque pertractentur.
rum neque animadvertere, neque vincire, neque ver- De Moribus Germ., cap. XI. (N. do A.)
berare, etc. De Moribus Germ., cap. XXII. (N. do
A.) 21 5 Lex consensu populi fit et constitutione regis.
212 In pace nullus est communis magistratus; sed Capitulares de Carlos, o Calvo, ano 864, art. 6. (N.
príncipes regionum atque pagorum inter suos jus do A.)
dicunt. De Bello Gall., liv. VI, cap. XXII. (N. do 21 6 Licet apud concilium accusare et discrimen
A.) capitis intendere. De Moribus Germ., cap. XII. (N.
213 Liv. II. (N. do A.) do A.)
Capítulo XXXI
Entre os povos bárbaros, os sacerdotes por uma inspiração da divindade, sempre pre
geralmente têm o poder, porque dispõem da sente aos que fazem a guerra.
autoridade que devem receber da religião e o Não nos devemos espantar se, desde os iní
cios da primeira raça, vemos os bispos serem
poder que entre tais povos dá a superstição.
os árbitros21 9 dos julgamentos, se os vemos
Destarte, vemos em Tácito que os padres eram aparecer nas assembléias da nação, se eles
muito prestigiados entre os germanos, porque foram tão influentes nas resoluções dos reis e
policiavam21 7 a assembléia do povo. Só a se a eles foram dados tantos bens.
eles21 9 era permitido castigar, prender, bater,
coisa que faziam, não por uma ordem do prín 218 Nec regibus libera aut infinita potestas. Caete-
rum neque animadvertere, neque vincire, neque ver-
cipe, nem para infligir uma pena, mas como berare, nisi sacerdotibus est permissum; non quasi
in poenam, nec ducis jussu, sed velut Deo imperan-
te, quem adesse bellatoribus credunt. Ibid., cap. VII.
21 7 Silentium per sacerdotes, quibus et coercendi (N. do A.)
jus est, imperatur. De Moribus Germ., cap. XI. (N. 219 Vede a constituição de Clotário do ano 560,
do A.) art. 6. (N. do A.)
LIVRO DÉCIMO NONO
DAS LEIS EM SUAS RELAÇÕES COM OS PRINCÍPIOS
QUE FORMAM O ESPÍRITO GERAL,
OS COSTUMES E AS MANEIRAS DE UM POVO
Capítulo I
Esta matéria é muito extensa. Dessa multidão de idéias que se apresentam a meu espírito, darei
mais atenção à ordem das coisas do que às próprias coisas. É preciso que eu afaste à direita e à
esquerda, desvende e me esclareça
Capítulo II
Nada parece mais insuportável aos germa acostumados a dela fruir. Assim é que, algu
nos220 que o tribunal de Varo. Aquele que mas vezes, o ar puro é prejudicial aos que vive
Justiniano erigiu221 entre os lazianos, para ram nas regiões pantanosas.
processar o assassino de seu rei, pareceu-lhes Um veneziano, chamado Balbi, estando em
uma coisa horrível e bárbara. Mitridates222, Pegu, foi apresentado ao rei. Quando este
arengando contra os romanos, censura-lhes soube que em Veneza não existiam reis, riu
sobretudo as formalidades223 de sua justiça. tanto e foi acometido por um acesso de tosse
Os partos não puderam suportar esse rei que, que lhe deu muita dificuldade para falar a seus
tendo sido educado em Roma, tornou-se afável cortesãos22 4. Que legislador poderia propor o
e acessível a todos. A própria liberdade pare governo popular a povos semelhantes?
ceu insuportável a povos que não estavam
22 4 Balbi apresentou a descrição do Pegu em 1596.
220 Eles cortavam a língua dos advogados e Recueil des Voyages qui ont Servi à l "Établissement
diziam: Víbora,pára de sibilar. Tácito. (N. do A.) de la Compagnie des Indes, t. III, parte I, pág. 33.*
2 21 Agatias, liv. IV. (N. do A.) (N. do A.)
2 2 2 Justino, liv. XXXVIII. (N. do A.) * Pegu: capital de um reino do mesmo nome, ane
223 Calumnias litium. Ibid. (N. do A.) xado pelos ingleses ao reino de Bengala em 1853.
Capítulo III
Da tirania
Há duas espécies de tirania: uma real, que temia que não quisesse sagrar-se rei, mudou de
consiste na violência do governo, e outra de idéia. Os primeiros romanos não queriam reis
opinião, que se faz sentir quando os que gover porque não lhes poderíam suportar o poder.
nam estabelecem coisas que chocam a maneira Porque, apesar de César, os triúnviros e
de pensar de uma nação. Augusto serem verdadeiros reis, eles conser
Dion diz que Augusto quis se fazer chamar varam toda a aparência de igualdade e suas
Rômulo mas que, tendo sabido que o povo vidas particulares encerravam uma espécie de
274 MONTESQUIEU
oposição com os faustos dos reis dessa época indignara contra Augusto, por causa de certas
e, quando os romanos não queriam reis, isto leis muito severas que ele fizera, mas que,
significava que queriam conservar seus costu assim que fez retornar o comediante Piládio,
mes e não copiar os dos povos da África e do que as facções tinham expulsado da cidade, o
Oriente. descontentamento cessou. Esse povo sentia
Dion22 5 relata-nos que o povo romano se mais vivamente a tirania quando se expulsava
um truão do que quando se lhe suprimiam
22 5 Liv. LIV, cap. XVII, pág. 532. (N. do A.) todas as leis.
Capítulo IV
Capítulo V
Se existisse no mundo uma nação que tives Poder-se-ia conter as mulheres, decretar leis
se um temperamento social, uma sinceridade para corrigir seus costumes, e limitar seu luxo,
de coração, umá alegria na vida, um gosto, mas quem sabe se não perderiamos certo gosto
uma facilidade em comunicar seus pensamen que seria a fonte das riquezas da nação, e uma
tos; que fosse viva, agradável, algumas vezes polidez que atrai para ela os estrangeiros?
imprudente, muitas vezes indiscreta; e que Cabe ao legislador obedecer ao espírito da
tivesse, juntamente com tudo isso, coragem, nação, quando ele não é contrário aos princí
generosidade, franqueza, certo pundonor, não pios do governo, pois nada fazemos melhor do
se deveria procurar constranger, com leis, suas que aquilo que fazemos livremente, obede
maneiras, para não prejudicar suas virtudes. cendo a nossa inclinação natural.
Se, em geral, o caráter é bom, não importa que Dê-se um espírito de pedanteria a um povo
alguns defeitos aí se encontrem22 7. naturalmente alegre: o Estado nada ganhará
com isso, nem interna nem externamente. Dei
22 7 É bem evidente que Montesquieu traça tam xai-o fazer as coisas frívolas seriamente e
bém aqui uma imagem da França de seu tempo. alegremente as coisas sérias.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 275
Capítulo VI
Que nos deixem como somos, dizia um oferece, inspirando-nos o gosto pela sociabili
gentil-homem de uma nação que se assemelha dade e, sobretudo, pelo trato com as mulheres.
muito àquela da qual acabamos de dar uma Que nos deixem tal como somos. Nossas
idéia. A Natureza tudo corrige. Ela nos deu qualidades indiscretas, unidas a nossa pouca
uma vivacidade capaz de ofender e apta a nos malícia, fazem com que as leis que constran
fazer faltar a todos os respeitos; essa mesma gessem o temperamento sociável entre nós não
vivacidade é corrigida pela polidez que ela nos sejam convenientes.
Capítulo VII
Os atenienses, prosseguia esse gentil-ho vivacidade que punham nos conselhos, leva-
mem, formavam um povo que tinha alguma vam-na para a execução. O caráter dos lacede
mônios era grave, sério, seco, taciturno. Não
relação com o nosso: introduziam jovialidade
se tiraria mais proveito de um ateniense abor-
nos negócios. Uma pequena facécia lhes agra recendo-o do que de um lacedemônio, divertin
dava, tanto na tribuna como no teatro. Esta do-o.
Capítulo VIII
Quanto mais os povos se comunicam, mais mes e forma o gosto; o desejo de se adornar
modificam facilmente as maneiras, porque mais do que os outros estabelece os enfeites, e
cada um é mais um espetáculo para o outro: o desejo de agradar mais do que por si mesmo
vêem-se melhor as singularidades dos indiví estabelece as modas. As modas são um objeto
duos. O clima que faz com que um povo goste importante: à força de tornar o espírito frívolo,
de se comunicar, faz também com que ele aumentam-se incessantemente os ramos de seu
goste de variar, e o que faz com que um povo comércio228.
goste de variar, faz também com que forme seu
22 8 Vede A Fábula das Abelhas*. (N. do A.)
gosto. * A Fábula das Abelhas, romance filosófico inglês
A sociedade das mulheres desgasta os costu de Mandeville.
Capítulo IX
A vaidade é uma força tão boa para um sa. Para ver isto basta imaginar, de um lado,
governo quanto o orgulho é uma força perigo- os inumeráveis benefícios que decorrem da
276 MONTESQUIEU
vaidade: o luxo, a indústria, as artes, as indolentes; os que não possuem escravos alu
modas, a polidez, o gosto; e, de outro lado, os gam um, mesmo que seja para andar cem pas
infinitos malefícios que nascem do orgulho de sos e carregar duas pintas de arroz; conside-
certos povos: a indolência, a pobreza, o aban rar-se-iam desonrados se eles próprios as
dono de tudo, a destruição das nações que o carregassem.
acaso fez cair entre suas mãos, e sua própria Há vários lugares da terra em que se deixa
destruição. A preguiça229 é o resultado do crescer as unhas para mostrar que não se
orgulho; o trabalho é uma consequência da trabalha.
vaidade; o orgulho de um espanhol leva-lo-á a
As mulheres das índias231 crêem que lhes é
não trabalhar; a vaidade de um francês levá-
vergonhoso aprender a ler; esse assunto, dizem
lo-á a saber trabalhar melhor que os outros.
Todo povo preguiçoso é grave, pois os que elas, cabe aos escravos que entoam cânticos
não trabalham se consideram como soberanos nos pagodes. Numa casta, elas não fiam; em
dos que trabalham. outra, apenas fazem cestos e esteiras, não
Examinai todos os povos e vereis que, na devendo mesmo pilar o arroz; em outras, não
maioria, a gravidade, o orgulho e a indolência devem buscar água. O orgulho, aí, estabeleceu
marcham na mesma cadência. suas regras e faz com que sejam obedecidas.
Os povos de Achim230 são orgulhosos e Não é necessário dizer que as qualidades mo
rais têm efeitos diferentes segundo estejam uni
229 Os povos que obedecem ao cã de Malacamber, das a outras. Assim, o orgulho, unido a uma
os de Camataca e os de Coromandel, são povos
orgulhosos e preguiçosos; consomem pouco, porque grande ambição, à grandeza de idéias, etc.,
são miseráveis, enquanto os mongóis e os povos do produziu entre os romanos o resultado que
Hindustão trabalham e fruem das comodidades da conhecemos.
vida, como os europeus. Recueil des Voyages qui
ont Servi à VÉtablissement de la Compagnie des
Indes, 1.1, pág. 54. (N. do A.) 2 31 Lettres Édifiantes, duodécima coleção, pág. 80.
230 Vede Dampier, t. III. (N. do A.) (N. do A.)
Capítulo X
Os diversos caracteres dos povos estão mes arrependeram. Mas essa qualidade admirável,
clados de virtudes e de vícios, de boas e más unida à preguiça, forma uma mistura cujo
qualidades. As misturas felizes são aquelas resultado lhes é pernicioso: os povos da Euro
que produzem grandes benefícios que frequen pa fazem, sob seus olhos, todo o comércio de
temente não seriam suspeitados; há misturas sua monarquia.
das quais resultam grandes males, que muito O caráter dos chineses forma outra mistura
menos seriam suspeitados. que está em contraste com o caráter dos espa
A boa-fé dos espanhóis sempre foi famosa. nhóis. Sua vida precária23 4 faz com que te
Justino232 fala-nos de sua fidelidade em guar nham uma atividade prodigiosa e um desejo de
dar os depósitos2 3 3 ; muitas vezes, morreram lucro tão grande, que nenhum povo comer
para mantê-los secretos. Esta fidelidade que ciante pode fiar-se neles23 5. Esta reconhecida
outrora possuíam, ainda hoje a conservam. infidelidade conservou-lhes o comércio com o
Todos os povos que comerciam em Cádiz con Japão; nenhum comerciante europeu ousou
fiam suas fortunas aos espanhóis e nunca se empreendê-lo sob o nome deles, qualquer que
fosse a facilidade que para isso tivesse, através
2 3 2 Liv. XLIV, cap. II. (N. do A.) de suas províncias marítimas do Norte.
233 Crévier pretende que Justino se refere apenas à
fidelidade dos espanhóis em conservar os “segre
dos”: Saepe tormentis pro silentio rerum creditarum 23 4 Pela natureza do clima e do solo. (N. do A.)
immortui. 23 5 Padre du Halde, t. II. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS III 277
Capítulo XI
Reflexão
Não disse tudo isso para diminuir em nada cos não são vícios morais, e como todos os ví
a distância infinita que há entre os vícios e as cios morais não são vícios políticos, e é isso
virtudes; que Deus não permita! Pretendi que não devem ignorar os que fazem leis que
somente mostrar como todos os vícios políti afetam o espírito geral.
Capítulo XII
É máxima capital nunca mudar os costumes ções. Portanto, modificam-se menos as manei
e as maneiras no Estado despótico; nada ocor ras e os costumes. As maneiras mais fixas
rería tão prontamente como uma revolução. É aproximam-se mais das leis. Assim, cumpre
que, nesses Estados, não há leis, por assim que um príncipe ou um legislador aí contrarie
dizer; há somente costumes e maneiras e, se menos os costumes e as maneiras do que em
derrubardes isso, derrubareis tudo. qualquer outro país.
As leis são estabelecidas, os costumes são As mulheres são geralmente enclausuradas e
inspirados; estes concernem mais ao espírito não têm opinião a emitir. Em outros países em
geral; aquelas a uma instituição particular; que vivem com os homens, o desejo que têm de
ora, é tão perigoso, e mesmo mais, destruir o agradar, e o desejo que também se tem de
espírito geral quanto modificar uma instituição agradá-las, fazem com que se mude constante
particular. mente de maneiras. Os dois sexos estragam-se
Comunica-se menos nos países em que cada mutuamente, perdendo ambos sua qualidade
um, tanto o superior como o inferior, exerce e distintiva e essencial; surge um arbitrário no
suporta um poder arbitrário, do que nos países que era absoluto, e as maneiras transformam-
em que a liberdade reina em todas as condi se diariamente.
Capítulo XIII
Mas é na China que as maneiras são indes transmitidas como preceitos e por circuns
trutíveis. Além de serem as mulheres absoluta pectos doutores, fixam-se como princípios de
mente separadas dos homens, nas escolas ensi- moral e não mudam mais.
nam-se tanto as maneiras como os costumes.
Conhece-se um letrado23 6 pela maneira como
ele faz a reverência. Essas coisas, uma vez 23 6 Diz o Padre du Halde (N. do A.)
278 MONTESQUIEU
Capítulo XIV
Dissemos que as leis eram instituições parti atraiu à corte, fê-las vestirem-se à moda alemã,
culares e exatas do legislador e os costumes e enviou-lhes tecidos. Este sexo experimentou
as maneiras, instituições da nação em geral. então uma maneira de viver que agradava
Disso decorre que, quando se quer modificar muito fortemente seu gosto, sua vaidade e suas
os costumes e as maneiras, não é com leis que paixões, e fez com que os homens também a
se deve modificá-los: isto parecería muito tirâ apreciassem.
nico; é melhor modificá-los por outros costu O que tornou a transformação mais fácil foi
mes e outras maneiras. o fato de os costumes de então serem estranhos
Assim, quando um príncipe pretende intro ao clima, e haverem sido para aí levados por
duzir grandes modificações em sua nação, uma mistura de nações e pelas conquistas.
cumpre que reforme por leis o que está estabe Pedro I, impondo os costumes e as maneiras
lecido por leis, e que modifique por novas da Europa a uma nação da Europa, encontrou
maneiras o que está estabelecido pelas manei facilidades que ele próprio não esperava. A
ras. supremacia do clima é a primeira de todas as
A lei que obrigava os moscovitas a raspar a supremacias.
barba e encurtar as roupas, e a violência de Portanto, ele não necessitava de leis para
Pedro I, que mandava aparar até os joelhos os modificar os costumes e as maneiras de seu
trajes compridos dos que entravam na cidade, povo: ter-lhe-ia sido suficiente inspirar outros
eram tirânicas. Há meios para impedir os cri costumes e outras maneiras.
mes: as penas; há outros para acarretar a Em geral, os povos são muito apegados a
mudança das maneiras: os exemplos. A facili seus costumes; suprimir-lhos violentamente é
dade e a rapidez com que essa nação se poli torná-los infelizes. Não se deve, assim, modifi
ciou demonstrou bem que esse príncipe lhe cá-los, mas fazer com que eles próprios os
tinha péssima opinião e que esses povos não modifiquem23 7 .
eram animais, como ele dizia. As medidas vio Toda pena que não deriva da necessidade é
lentas que empregou eram inúteis; ele teria tirânica. A lei não é um puro ato de poder; as
igualmente atingido seu objetivo pela brandu- coisas indiferentes por sua natureza não são de
ra. sua alçada.
Ele próprio experimentou a facilidade des
sas modificações. As mulheres eram enclausu 23 7 Os modifiquem: a frase é anfibológica. Leia-se
radas e, de certa maneira, escravizadas; ele as “modifiquem esses costumes”.
Capítulo XV
Tais mudanças nos costumes das mulheres indubitavelmente influenciarão muito o governo da
Moscóvia. Tudo está estreitamente relacionado: o despotismo do príncipe relaciona-se natural
mente com a servidão das mulheres; a liberdade das mulheres, com o espírito da monarquia.
DO ESPIRITO DAS LEIS III 279
Capítulo XVI
Os costumes e as maneiras são práticas que modo, de outro. Eles deram, portanto, às re
as leis não estabeleceram, ou não puderam, ou gras da civilidade, o maior alcance.
não quiseram estabelecer. Assim, entre os povos chineses, viram-se
Há esta diferença entre as leis e os costu aldeões239 observarem entre si cerimônias
mes: as leis regem mais as ações do cidadão e como pessoas de elevada condição; meio
os costumes regem mais as ações do homem. muito próprio para inspirar a brandura, para
Há esta diferença entre os costumes e as manter entre o povo a paz e a boa ordem, e
maneiras: as primeiras concernem mais à con para extirpar todos os vícios que decorrem de
duta interior e as outras à exterior. um espírito inflexível. Com efeito, despojar-se
Algumas vezes, num Estado, essas coi das regras da civilidade não significa procurar
sas238 confundem-se. Licurgo fez um mesmo uma maneira de colocar os defeitos mais à
código para as leis, os costumes e as maneiras; vontade?
e os legisladores da China também fizeram o A civilidade vale mais, a esse respeito, do
mesmo. que a polidez. A polidez favorece os vícios dos
outros e a civilidade impede-nos de revelar os
Não nos devemos admirar se os legisladores
nossos: é uma barreira que os homens colocam
da Lacedemônia e os da China confundiram as
entre si para se impedirem de se corromper.
leis, os costumes e as maneiras. É que os cos
Licurgo, cujas instituições eram severas,
tumes representam as leis, e as maneiras repre
não teve como objetivo a civilidade quando
sentam os costumes.
formou as maneiras; tinha em mira este espí
Os legisladores da China tinham como obje
tivo principal fazer com que o povo vivesse rito belicoso que pretendia incutir em seu
tranquilo. Queriam que os homens muito se povo. Pessoas que estão sempre corrigindo, ou
que são sempre corrigidas, que instruem sem
respeitassem, que cada qual sentisse a todo
pre e que são sempre instruídas, ao mesmo
instante que muito devia aos demais e que não
existia cidadão que não dependesse, de algum
tempo simples e rudes, praticariam mais entre
si as virtudes, do que teriam considerações.
238 Moisés estabeleceu um mesmo código para as
leis e a religião. Os primeiros romanos confundiram 239 Vede o Padre du Halde, Description de la
os costumes antigos com as leis. (N. do A.) Chine, t. II. (N. do A.)
Capítulo XVII
Os legisladores da China fizeram mais2 40; chinês triunfou. Passaram toda a sua vida
confundiram a religião, as leis, os costumes e aprendendo-os e toda a sua vida praticando-os.
as maneiras: tudo isso foi a moral, tudo isso Os letrados ensinaram-nos, os magistrados
foi a virtude. Os preceitos concernentes a esses ■pregaram-nos. E, como eles envolviam todas
quatro pontos foram chamados ritos. Foi na as pequenas ações da vida, logo que se encon
estrita observância desses ritos que o governo trou o meio de fazer com que eles fossem estri
tamente observados, a China foi bem governa
2 40 Vede os livros clássicos dos quais o Padre du da.
Halde nos ofereceu tão belas passagens. (N. do A.) Duas coisas-puderam gravar facilmente os
280 MONTESQUIEU
Capítulo XVIII
Disso resulta que a China não perde suas sua participação nos sacramentos, a confissão
leis pela conquista. As maneiras, os costumes, auricular, a extrema-unção, a monogamia,
as leis, a religião, sendo nesse país a mesma tudo isso aniquila os costumes e as maneiras
coisa, não se pode mudar tudo isso ao mesmo do país, atingindo também, ao mesmo tempo,
tempo. E como é necessário que o vencedor ou a religião e as leis.
o vencido mudem, na China foi sempre o ven A religião cristã, pelo estabelecimento da
cedor que mudou, porque seus costumes, não caridade, por um culto público, pela participa
sendo suas maneiras; suas maneiras, suas leis; ção nos mesmos sacramentos, parece exigir
suas leis, sua religião, tem sido mais fácil ao que tudo se una; os ritos dos chineses parecem
vencedor dobrar-se paulatinamente ao povo ordenar que tudo se separe.
vencido, do que o povo vencido a ele. E, como vimos que a separação2 43 diz res
Disso também decorre uma coisa bem triste: peito, em geral, ao espírito do despotismo,
é quase impossível ao cristianismo implantar- encontrar-se-á nisso uma das razões que fazem
se na China2 42. Os votos de castidade, a reu com que o governo monárquico e todo gover
nião das mulheres nas igrejas, sua comunica no moderado se entrosem melhor2 4 4 com a
ção necessária com os ministros da religião, religião cristã.
2 42 Vede as razões apresentadas pelos magistrados 2 43 Vede o liv. IV, cap. III, e o liv. XIX, cap. XIII.
chineses, nos decretos pelos quais proscreviam a (N. do A.)
religião cristã (Lettres Èdtfiantes, coletânea XVII). 2 4 4 Vede mais abaixo o liv. XXIV, cap III. (N. do
(N. do A.) A.)
Capítulo XIX
Os legisladores da China tiveram como maneira mais adequada para mantê-la. Nessa
principal objetivo do governo a tranquilidade idéia, acreditaram dever inspirar o respeito
do império. A subordinação pareceu-lhes a pelos pais e, para issò, congregaram todas as
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 281
suas forças. Estabeleceram uma infinidade de que parecem mais indiferentes. Esse império
ritos e de cerimônias para honrá-los durante está baseado na idéia do governo de uma famí
sua vida e depois de sua morte. Era impossível lia. Se diminuirdes a autoridade paterna ou
honrar tanto os pais falecidos sem honrá-los mesmo se reduzirdes as cerimônias que expres
quando vivos. As cerimônias para os pais fale sam o respeito que se tem por ela, enfraque
cidos relacionavam-se mais à religião; as ceri cereis o respeito pelos magistrados, que são
mônias para os pais vivos relacionavam-se considerados como pais. Os magistrados não
mais às leis, aos costumes e às maneiras, mas mais terão o mesmo desvelo para com povos
isso não eram senão as partes de um mesmo aos quais devem considerar como crianças; a
código e esse código era muito extenso. relação de amor que existe entre o príncipe e
O respeito, pelos pais estava necessaria os súditos também desaparecerá pouco a
mente relacionado a tudo que os pais represen pouco. Eliminai uma dessas práticas e abala
tavam: os anciãos, os senhores, os magistra reis o Estado. É muito indiferente, em si
dos, o imperador. Esse respeito pelos pais mesmo, que todas as manhãs uma nora se
supunha uma reciprocidade do amor pelos fi levante para ir cumprir esses ou aqueles deve
lhos e, consequentemente, a mesma reciproci res à sogra. Porém, se prestarmos atenção ac
dade dos anciãos aos jovens, dos magistrados fato de que essas práticas exteriores despertam
aos que lhes estavam submetidos, do impera sem cessar um sentimento que é necessário
dor aos seus súditos. Tudo isso formava os imprimir em todos os corações e que irá, em
ritos, e esses ritos o espírito geral da nação. todos os corações, formar o espírito que gover
Notaremos a relação que podem ter, com a na o império, veremos que é necessário que
constituição fundamental da China, as coisas uma tal ação particular seja efetuada.
Capítulo XX
O que há de singular é que os chineses, cuja vida precária; aí só se está com a vida assegu
vida é inteiramente dirigida pelos ritos, sejam, rada à força de indústria e de trabalho.
entretanto, o povo mais velhaco da terra. Isso Quando todos obedecem e todos trabalham,
se manifesta sobretudo no comércio, que o Estado encontra-se numa feliz situação. Foi
nunca lhes pôde inspirar a boa fé que lhe é a necessidade, e talvez a natureza do clima,
própria. Quem compra deve levar sua própria que deu a todos os chineses uma avidez incon
balança2*4 5 , tendo cada negociante três delas: cebível pelo ganho, e as leis não pensaram em
uma pesada para comprar; uma leve, para ven detê-lo. Tudo foi proibido quando se tratou de
der, e uma exata, para os que estão prevenidos. adquirir pela violência; tudo foi permitido
Creio poder explicar essa contradição. quando se tratou de obter pelo artifício ou pela
Os legisladores da China tiveram dois obje indústria. Não comparemos, portanto, a moral
tivos: pretenderam que o povo fosse submisso dos chineses com a da Europa. Todos, na
e pacífico e que fosse diligente e trabalhador. China, tiveram que estar atentos ao que lhes
Pela natureza do clima e de solo, ele tem uma era útil. Se o tratante vela por seus interesses, o
que é simplório deve cuidar dos seus. Na Lace
2 4 5 Journal de Lange, em 1721 e 1722; tomo VIII demônia, era permitido roubar; na China, é
das Voyages du Nord, pág. 363. (N. do A.) permitido ludibriar.
282 MONTESQUIEU
Capítulo XXI
Somente instituições singulares confundem tar”. Belas palavras, que deveríam ser ouvidas
assim coisas naturalmente separadas: as leis, por todos os legisladores. Quando a sabedoria
os costumes e as maneiras; mas, apesar de divina diz ao povo judeu: “Dei-vos preceitos
serem separadas, não deixam de manter entre
si estreitas relações. que não são bons”, isso significa que tinham
Perguntou-se a Sólon se as leis que ele dera apenas uma bondade relativa, o que é a espon
aos atenienses eram as melhores. “Dei-lhes”, ja de todas as dificuldades que se pode fazer
respondeu ele, “as melhores que podiam supor quanto às leis de Moisés.
Capítulo XXII
Quando um povo possui bons costumes, as mento para cada chefe. Mas, diz o mesmo
leis devem ser simples. Platão2 4 6 diz que Platão2 4 7, quando um povo não é religioso,
Radamante, que governava um povo extrema somente se pode fazer uso do juramento nas
mente religioso, expedia todos os processos ocasiões em que quem jura não é interessado,
com celeridade, deferindo somente o jura como um juiz e testemunhas.
Capítulo XXIII
Na época em que os costumes de Roma derado como um grande castigo, tal como o
eram puros, não havia lei específica contra o testemunha o julgamento de Cipião2 4 9.
peculato. Quando esse crime começou a apare
cer, acharam-no tão infame, que ser conde 2 48 In simplum. (N. do A.)
nado a restituir2 48 o que se tomara foi consi 2 4 9 Tito Lívio, liv. XXXVIII, cap. III. (N. do A.)
Capítulo XXIV
Na época em que se fez a Lei das Doze Tá ciladas ao pupilo, ele pode deixar a descoberto
buas, os costumes de Roma eram admiráveis. a substituição vulgar2 52, e colocar a pupilar
Concedeu-se a tutela ao parente mais próximo numa parte do testamento que só poderá ser
do pupilo, imaginando-se que quem tivesse o aberta depois de certo tempo.” Eis temores e
encargo da tutela deveria ter a vantagem da precauções desconhecidos dos primeiros roma
sucessão. Nem se pensava que a vida do pupilo nos.
pudesse estar em perigo, apesar de estar colo
cada entre as mãos daqueles a quem sua morte 2 50 Instit., liv. II, tít. VI, § 2, a compilação de
deveria ser útil. Mas, quando em Roma os cos Ozel, em Leide, 1658. (N. do A.)
tumes mudaram, viram-se legisladores mudar 2 51 Instit., liv. II, Depupil. substit., § 3. (N. do A.)
também de maneira de pensar. “Se, na substi 2 52 A substituição vulgar é: Se uma pessoa não
aceita a hereditariedade, eu a substituo, etc. A pupi
tuição pupilar”, afirmam Caio2*50 e Justinia- lar é: Se uma pessoa morre antes da puberdade, eu
no2 51, “o testador teme que o substituto arme a substituo, etc. (N. do A.)
Capítulo XXV
A lei romana dava liberdade de se fazerem ria desposar além de um décimo de seus bens e
donativos antes do casamento; depois do casa que, durante o primeiro ano de casamento,
mento, não o permitia mais. Isso estava basea nada lhe poderia dar. Isso decorria também
do nos costumes dos romanos, que só eram dos costumes do país. Os legisladores quise
levados ao casamento pela frugalidade, simpli ram sustar essa jactância espanhola, inclinada
cidade e modéstia, mas que podiam se deixar unicamente a liberalidades excessivas num ato
seduzir pelos carinhos domésticos, pelos des- de ostentação.
velos e pela felicidade de toda uma vida. Os romanos, por suas leis, sustaram alguns
A lei dos visigodos2 53 determinava que o inconvenientes do império mais durável do
esposo não pudesse oferecer àquela que deve- mundo, que é o da virtude. Os espanhóis, pelas
suas, queriam impedir os maus efeitos da mais
2 53 Liv. III, tít. I, § 5. (N. do A.) frágil tirania do mundo, que é a da beleza.
Capítulo XXVI
Capítulo XXVII
Os costumes de um povo escravo fazem O ódio que existiría entre as duas partes
parte de sua servidão; os de um povo livre prolongar-se-ia, porque seria sempre impoten
fazem parte de sua liberdade. te.
Referi-me, no livro XI2 58, a um povo livre; Sendo esses partidos compostos de homens
apresentei os princípios de sua constituição. livres, se um adquirisse muita preponderância,
Vejamos os efeitos deles decorrentes, o caráter as conseqüências da liberdade fariam com que
que se formou e as maneiras que deles este fosse rebaixado, enquanto os cidadãos,
resultaram2 59. como mãos que socorrem um corpo, viriam
Não afirmo que o clima não produza, em levantar o outro.
grande parte, as leis, os costumes e as manei Como cada cidadão, sempre independente,
ras dessa nação, mas sim que os costumes e as obedecería muito a seus caprichos e fantasias,
maneiras dessa nação deveríam ter estreita mudar-se-ia frequentemente de partido; aban-
relação com as suas leis. donar-se-ia um, onde se deixaria a todos os
Como haveria, neste Estado, dois poderes amigos, para se ligar ao outro no qual se
visíveis — o poder legislativo e o executivo — encontraria a todos os inimigos e, amiúde,
e como todo cidadão teria sua vontade própria nesta nação, poder-se-ia esquecer as leis da
e faria valer a seu bel-prazer sua indepen amizade e as do ódio.
dência, a maioria das pessoas teria mais afei O monarca estaria no caso dos cidadãos e,
ção por um desses poderes do que por outro, contra as máximas ordinárias da prudência,
não tendo a grande maioria, geralmente, sufi seria constantemente obrigado a confiar nos
ciente equidade nem discernimento para sim que mais o tivessem ofendido e infelicitar os
patizar igualmente com ambos2 60. que melhor o tivessem servido, fazendo por
E, como o poder executivo, dispondo de necessidade o que os outros príncipes fazem
todos os empregos, poderia dar grandes espe deliberadamente.
ranças e nunca temores, todos os que dele obti Tememos ver escapar um bem que percebe
vessem algo seriam levados a voltar-se para
mos, que quase não conhecemos e que pode,
seu lado, e ele poderia ser atacado por todos os
nos ser disfarçado; e o temor sempre amplia os
que dele nada esperassem.
objetos. O povo inquietar-se-ia com sua situa
Sendo aí livres todas as paixões, o ódio, a ção e acreditaria estar em perigo mesmo nos
inveja, o ciúme, a febre de enriquecer e se dis momentos mais estáveis.
tinguir surgiríam em toda a sua amplidão; e, se
isso ocorresse de outro modo, o Estado seria Tanto mais que os que se oporiam mais
como um homem derrotado pela doença, que ardorosamente ao poder executivo, não poden
não tem paixões porque não tem força. do confessar os motivos de sua oposição,
aumentariam o terror do povo, que nunca
saberia exatamente se estaria ou não em peri-
2 58 Cap. VI. (N. do A.)
2 59 Trata-se aqui do célebre quadro político da go. Porém, isso mesmo contribuiría para lhe
Inglaterra, uma das partes mais conhecidas e mais fazer evitar os verdadeiros perigos a que pode
significativas, com efeito, do Espírito das Leis. ria, consequentemente, ser exposto.
2 60 Daí os dois grandes partidos: trata-se dos
tories, zelosos pela manutenção da autoridade da Mas tendo o corpo legislativo a confiança
coroa, e dos whigs, mais ligados ao jogo do regime do povo e sendo mais esclarecido que ele,
parlamentar. Estes últimos, que compreendiam poderia fazê-lo esquecer as más impressões
principalmente os grandes senhores e os represen que lhe teriam sido inculcadas, e acalmar seus
tantes da cidade, predominavam então. A época era
a do Rei Jorge II, o qual deveria amiúde suportar movimentos.
ministros pelos quais não tinha simpatia. É esta a grande vantagem que teria esse
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 285
governo com relação às antigas democracias, deira e poderia acontecer que, para defendê-la,
nas quais o povo tinha um poder imediato, ela sacrificasse seus bens, sua comodidade,
pois, quando os oradores agitavam, essas agi seus interesses; que ela se sobrecarregasse de
tações alcançavam sempre seus objetivos. impostos tão pesados e tão numerosos, que o
Assim, quando os terrores incutidos não príncipe mais absoluto não ousaria fazer com
tivessem um objetivo certo, eles só produzi que seus súditos suportassem.
ríam vãos clamores e injúrias, e teriam mesmo Mas, como ela teria um conhecimento certo
esse bom efeito: distenderíam todas as molas da necessidade de se submeter, como pagaria
do governo e manteriam atentos os cidadãos. na esperança bem fundada de não mais pagar,
Mas, se eles nascessem por ocasião do desmo os encargos seriam mais pesados que o senti
ronamento das leis fundamentais, seriam sur mento desses encargos, ao passo que há Esta
dos, funestos, atrozes e produziríam catástro dos em que o sentimento está infinitamente
fes. acima do mal2 62.
Logo se veria uma horrenda calmaria, Teria crédito garantido, porque emprestaria
durante a qual tudo se reuniria contra o poder e pagaria a si própria. Poderia ocorrer que ela
violador das leis. empreendesse acima de suas forças naturais, e
Se, no caso em que as inquietações não têm faria valer contra seus inimigos imensas rique
um objeto preciso, alguma potência estran zas fictícias, que a confiança e a natureza de
geira ameaçasse o Estado e colocasse em peri seu governo tornariam reais2 63
go sua glória ou sua fortuna, então, os interes Para conservar sua liberdade, esta nação
ses mesquinhos, cedendo lugar aos maiores, emprestaria a seus súditos, que veriam que seu
tudo se reuniria em favor do poder executivo. crédito estaria perdido se fosse conquistada e
Porque, se as disputas surgissem por oca teriam um novo motivo de envidar esforços
sião da violação das leis fundamentais e se para defender sua liberdade.
uma potência estrangeira aparecesse, haveria Se esta nação habitasse uma ilha, não seria
uma revolução que não mudaria a forma de conquistadora, porque as conquistas separadas
governo, nem sua constituição, uma vez que as a enfraqueceríam. Se o solo desta ilha fosse
revoluções que asseguram a liberdade não são bom, seria ainda menos conquistadora, porque
mais que uma confirmação da liberdade2*61. não teria necessidade de guerra para enrique
Um povo livre pode ter um libertador; um cer-se. E, como nenhum cidadão dependería de
povo subjugado só pode ter um opressor, pois outro, cada um daria mais importância à sua
todo homem que tem força suficiente para liberdade do que à glória de alguns cidadãos,
expulsar quem já é senhor absoluto num Esta ou de um só deles.
do, a possui suficiente para tornar-se ele pró Ali considerar-se-iam os militares como pes
prio senhor absoluto. soas de um ofício que pode ser útil e muitas
Como, para fruir da liberdade, cumpre que vezes perigoso, como pessoas cujos serviços
todos possam dizer o que pensam, e como, são laboriosos2 6 4 para o próprio povo, e as
para conservá-la, é também necessário que qualidades civis seriam mais consideradas.
todos possam dizer o que pensam, um cidadão, Esta nação, que a paz e a liberdade torna
nesse Estado, diria e escrevería tudo o que as riam abastada, liberta dos preconceitos des
leis não lhe proíbem expressamente dizer ou truidores, seria levada a tornar-se comerciante.
escrever. Se possuísse qualquer dessas mercadorias
Esta nação, sempre exaltada, poderia mais primitivas2 6 5, que servem para fazer essas coi
facilmente ser conduzida por suas paixões do sas às quais a mão do operário confere um
que pela razão, que nunca produz grandes efei preço, poderia fazer estabelecimentos adequa
tos sobre o espírito dos homens, e seria fácil dos para obter a fruição desse dom do céu em
aos que governam fazê-la agir contra seus toda sua extensão.
verdadeiros interesses.
Esta nação amaria prodigiosamente sua 2 62 A França.
liberdade, porque esta liberdade seria verda 2 63 Alusão às “notas do Erário”, que nos levam a
pensar em nossos “bônus do Tesouro”.
2 6 4 Laborioso, no sentido de oneroso.
2 61 Montesquieu refere-se evidentemente ao Rei 2 6 5 Entre essas “mercadorias primitivas”, a lã e o
Jaime II, a Luís XIV e à revolução de 1688. linho.
286 MONTESQUIEU
Se esta nação fora situada para o Norte, e se de nação para nação, que seriam tais, que sua
tivesse um grande número de gêneros supér prosperidade não seria senão precária, e
fluos2*6 6 , como também lhe faltaria um gran somente como depósito para um senhor.
de número de mercadorias que seu clima recu Habitando a nação dominadora uma grande
saria, estabelecería um comércio necessário, ilha, e possuindo um comércio muito desenvol
mas grande, com os povos do Sul, e, esco vido, teria todo tipo de facilidades para possuir
lhendo os Estados que favorecería com um uma força naval, e como a preservação de sua
comércio vantajoso, faria tratados reciproca liberdade exigiria que ela não possuísse nem
mente úteis com a nação que tivesse escolhido. praças, nem fortaleza, nem exercito, teria
Num Estado em que, de um lado, a çpulên- necessidade de uma armada que a garantisse
cia fosse extrema e, de outro, os impostos contra invasões, e sua marinha seria superior à
excessivos, quase não se poderia viver sem de todas as outras potências que, tendo neces
indústria com uma fortuna limitada. Muitas sidade de aplicar suas finanças para a guerra
pessoas, sob pretexto de viagens ou de saude, terrestre, não as teriam em quantidade sufi
exilar-se-iam e procurariam a abundância até ciente para a guerra marítima.
em países de servidão. O império do mar sempre deu aos povos que
Uma nação comerciante tem um número o possuíram um orgulho natural porque,
prodigioso de pequenos interesses particulares; sentindo-se capazes de atacar, acreditam que
pode, portanto, ofender e ser ofendida de uma seu poder não possui outros limites que o
infinidade de maneiras. Isso a tornaria sobera oceano.
namente invejosa e se afligiría mais com a Esta nação poderia ter uma grande in
prosperidade dos outros do que desfrutaria a fluência nos negócios de seus vizinhos, pois,
sua. como não utilizaria seu poderio para conquis
E suas leis, aliás amenas e fáceis, poderíam tar, procuraria mais sua amizade, e temer-se-ia
ser tão rígidas a respeito do comércio e da mais seu ódio do que a inconstância de seu
navegação que nela se fizessem, que parecería governo e sua agitação interna não pareceríam
negociar apenas com inimigos. permitir.
Se esta nação estabelecesse colônias longín Assim, seria destino do poder executivo ser
quas, fá-lo-ia antes para ampliar seu comércio quase sempre perturbado internamente, e res
do que sua dominação. peitado externamente.
Como prefere estabelecer em outros lugares Se acontecesse de esta nação tornar-se em
o que se encontra estabelecido em casa, daria algumas ocasiões o centro das negociações da
ao povo de suas colônias a forma de seu pró Europa, a elas traria um pouco mais de probi
prio governo e esse governo, trazendo consigo dade e de boa fé do que as outras, porque,
a prosperidade, veria formarem-se grandes sendo seus ministros frequentemente obrigados
povos nas próprias florestas que mandasse a justificar sua conduta diante de um conselho
habitar. popular2 68 , suas negociações não poderíam
Poderia acontecer que ela tivesse outrora ser secretas, e eles seriam forçados a ser, a esse
subjugado uma nação vizinha2 6 7 que, por respeito, um pouco mais honestos.
sua situação, pela qualidade de seus portos, Demais, como seriam, de algum modo, fia-
pela natureza de suas riquezas, lhe causasse dores dos acontecimentos que uma conduta
inveja. Assim, apesar de que lhe tivesse outor fraudulenta poderia originar, o mais seguro
gado suas próprias leis, mantê-la-ia numa para eles seria seguir o caminho reto.
grande dependência, de modo que os cidadãos Se os nobres tivessem tido, em alguns perío
seriam livres, mas o próprio Estado seria dos, um poder imoderado na nação, e se o
escravo. monarca tivesse encontrado o meio de subme
O Estado conquistado teria um governo tê-los enaltecendo o povo, o ponto extremo da
civil muito bom, mas seria oprimido pelo servidão estaria entre o momento da queda dos
governo das gentes, e ser-lhe-iam impostas leis poderosos e o momento em que .o povo tivesse
começado a sentir seu poder.
Poderia acontecer que essa nação, tendo es-
2 6 6 Gêneros supérfluos; entenda-se: “gêneros em
supérfluo”.
2 6 7 Uma nação vizinha: a Irlanda. 2 68 O Parlamento.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 287
tado outrora submetida a um poder arbritá- Não podendo este clero proteger a religião,
rio2 69 , tivesse, em muitas ocasiões, conser nem por ela ser protegido, sem força para coa
vado o modelo, de modo que, sobre a base de gir, procuraria persuadir e veriamos saírem de
um governo livre, ver-se-ia, amiúde, a forma de sua pena obras excelentes, para provar a reve
um governo absoluto. lação e a providência do Grande Ser.
Relativamente à religião, como nesse Esta Poderia acontecer que se evitassem suas
do cada cidadão teria sua vontade própria, e assembléias e que não se quisesse permitir que
seria, consequentemente, guiado por suas pró ele corrigisse seus próprios abusos; e que, por
prias luzes, ou por seus caprichos, aconteceria um delírio de liberdade, se preferisse deixar
que ou cada cidadão seria muito indiferente a sua reforma imperfeita do que suportar que ele
todas as formas de religião, quaisquer que fos fosse o reformador.
sem elas, mediante o que todos seriam levados As dignidades, fazendo parte da constitui
a abraçar a religião dominante, ou se zelaria ção fundamental, seriam mais fixas do que
pela religião em geral, mediante o que as seitas alhures. Porém, de outro lado, os poderosos,
se multiplicariam. neste país de liberdade, aproximar-se-iam mais
Não seria impossível existirem, nesta nação, do povo; as ordens seriam portanto mais sepa
pessoas que não tivessem religião e que, entre radas e as pessoas mais próximas.
tanto, não poderíam tolerar que as obrigassem Tendo os que governam um poder que se
a mudar a que tivessem, caso tivessem uma, renova, por assim dizer, e se refaz todos os
porque sentiríam inicialmente que a vida e os dias, teriam mais consideração pelos que lhes
bens, tanto como sua maneira de pensar, não são úteis do que pelos que os divertem. Assim,
mais lhes pertenciam, e que quem pode arreba ver-se-iam poucos cortesãos, bajuladores, adu
tar os primeiros, pode ainda mais facilmente ladores, enfim toda sorte de pessoas que fazem
suprimir a segunda. pagar aos grandes o próprio vazio de seu
espírito.
Se, entre as diferentes religiões, existisse
uma cujo estabelecimento tivesse sido tentado Quase não se estimariam os homens pelos
por intermédio da escravidão2 70, ela seria talentos ou pelos atributos frívolos, mas pelas
odiosa, pois, como julgamos as coisas pelas qualidades reais, e, desse gênero, só há duas:
relações e pelos acessórios que nelas introduzi as riquezas e o mérito pessoal.
mos, aquela jamais se apresentaria ao espírito Haveria um luxo sólido, baseado não nos
unida à idéia de liberdade. refinamentos da vaidade, mas em suas reais
As leis contra os que professassem esta reli necessidades, e quase só se procurariam nas
gião não seriam sanguinárias, porque a liber coisas os prazeres que a natureza nelas inseriu.
dade não imagina esses tipos de penas, mas se Desfrutar-se-ia de um grande supérfluo, e
riam tão repressoras, que ocasionariam todo o entretanto as coisas frívolas seriam proibidas.
mal que se pode fazer a sangue-frio. Assim, muitas pessoas, tendo mais bens do que
ocasiões de despesa, os utilizariam de uma
Poderia acontecer de mil maneiras que o
estranha maneira e nessa nação ter-se-ia mais
clero desfrutasse de tão pouco crédito, que os
espírito do que gosto.
outros cidadãos o tivessem mais. Assim, em
Como sempre se estaria ocupado com os
lugar de se separar2 71, acharia melhor supor
próprios interesses, não se teria essa polidez
tar os mesmos encargos que os leigos, for
que está baseada na ociosidade; realmente,
mando apenas, a esse respeito, um mesmo
não se teria tempo para isso2 72.
córpo. Mas, como procuraria sempre atrair o
A época da polidez dos romanos é a mesma
respeito do povo, distinguir-se-ia por uma vida
do estabelecimento do poder arbitrário. O
mais retirada, uma conduta mais reservada e
governo absoluto produz a ociosidade, e a
costumes mais puros.
ociosidade origina a polidez.
Quanto mais gente há numa nação que tem
2 69 Montesquieu refere-se ao dos Tudors. necessidade de ter deferências entre si e não
2 70 O catolicismo que precisamente os Tudors
pretenderam estabelecer pela intolerância e pela
violência. 2 72 “Os ingleses fazem-vos poucas gentilezas, mas
2 71 De se separar: de formar, assim como na Fran nunca grosserias.” (Notes sur ÍAngleterre.) (N. do
ça, uma ordem à parte. A.)
288 MONTESQUIEU
desagradar, mais há polidez. Mas é mais a Nenhum cidadão temendo outro, esta nação
polidez dos costumes do que a das maneiras seria orgulhosa, porque o orgulho dos reis só
que deve nos distinguir dos povos bárbaros. está baseado sobre sua independência.
Numa nação em que todo homem, à sua As nações livres são soberbas, as outras
maneira, participa da administração do Esta podem mais facilmente ser vãs.
do, as mulheres pouco deveríam imiscuir-se Mas, esses homens tão orgulhosos, vivendo
com os homens. Elas seriam, portanto, modes
muito consigo mesmos, encontrar-se-iam mui
tas, ou seja, tímidas. Essa timidez constituiría
tas vezes em meio a pessoas desconhecidas; se
sua virtude, enquanto os homens, sem galante-
riam tímidos, e veriamos neles, a maior parte
ria, mergulhariam numa depravação que lhes
do tempo, uma estranha mistura de tolo
deixaria toda a sua liberdade e lazer.
acanhamento e de orgulho.
Não sendo as leis feitas para um cidadão
mais que para outro, todos se considerariam O caráter da nação aparecerá, sobretudo,
monarcas, e os homens, nesta nação, seriam nas obras de espírito, nas quais se verão pes
antes confederados do que concidadãos. soas retraídas que as teriam pensado comple
Se o clima tivesse dado a muitas pessoas um tamente sós.
espírito inquieto e vistas largas, num país em A sociedade ensina-nos a sentir os ridículos;
que a constituição outorgasse a todos uma o recolhimento faz-nos mais aptos a sentir os
participação no governo e interesses políticos, vícios. Seus escritos satíricos seriam impiedo
falar-se-ia muito de política. Veriamos pessoas sos e encontrar-se-iam muitos Juvenais entre
que passariam sua vida a calcular os aconteci eles, antes de se encontrar um Horácio2 73.
mentos que, considerando-se a natureza das Nas monarquias completamente absolutas,
coisas e o capricho da sorte, isto é, dos os historiadores traem a verdade, porque não
homens, quase não são suscetíveis de cálculo. têm liberdade para dizê-la. Nos Estados extre
Numa nação livre, é frequentemente indife mamente livres, traem a liberdade por causa
rente que os cidadãos raciocinem bem ou mal; da própria liberdade, que, sempre- produzindo
basta que raciocinem; daí origina-se a liber divisões, cada qual se torna tão escravo dos
dade que assegura os resultados desses mes preconceitos de sua facção, como o seria de
mos raciocínios. um déspota.
Da mesma maneira, num governo despó
Seus poetas teriam mais frequentemente
tico, é igualmente pernicioso que se raciocine
essa rudeza original da invenção do que uma
bem ou mal; é suficiente raciocinar para que o
certa delicadeza criada pelo gosto. Encontrar-
princípio do governo seja atingido.
se-ia neles algo que mais se aproximaria da
Muitas pessoas não cuidariam de agradar a
força de Miguel Ângelo do que da graça de
ninguém; entregar-se-iam ao seu tempera
Rafael2 7 4.
mento. A maioria dos que fossem dotados de
espírito seria atormentada por seu próprio
espírito: no desdém ou na aversão a todas as 2 73 Alusão às Viagens de Gulliver, de Jonathan
Swift, obra aparecida em 1726.
coisas, seriam infelizes com tantos motivos 2 7 4 Alusão possível, desta feita, a Milton e a seu
para não sê-lo. Paraíso Perdido.
1
QUARTA PARTE
LIVRO VIGÉSIMO
DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM O COMERCIO,
CONSIDERADO EM SUA NATUREZA E EM SUAS DISTINÇÕES
1 Com este livro XX iniciava-se o segundo tomo da edição de 1749 de Genebra, trazendo em epígrafe: Do-
cuit quae maximus Atlas, o que se pode traduzir por: o que me ensinou o estudo da natureza e de suas gran
des leis, e é tirado do verso 741 do livro I da Eneida:
. . . Cithara crinitus lopas
Personat aurata docuit quae maximus Atlas.
Invocação às Musas2
Virgens do Monte Piério, escutais o nome fazei com que seja instruído e com que eu não
que vos dou? Inspirai-me. Percorro um longo ensine; que reflita e que pareça sentir; e quan
caminho; estou sucumbido com tristezas e té do eu anunciar coisas novas, fazei com que se
dios3. Inseri em meu espírito este encanto e creia que eu nada sabia e que vós tudo me
esta doçura que sentia outrora e que fogem dissestes.
para longe de mim. Nunca sois tão divinas Quando as águas de vossa fonte saem do
como quando conduzis à sabedoria e à verda rochedo que amais, elas não sobem aos ares
de pelo prazer. para recair; correm nas campinas, fazem vos
Mas se não pretendeis amenizar o rigor de sas delícias porque fazem as delícias dos
meus trabalhos, ocultai o próprio trabalho; pastores.
Encantadoras Musas, se pousardes sobre
2 Esta “Invocação às Musas”, que parece tão mim um só de vossos olhares, todos lerão
estranha em assunto desta natureza, não teria sido
inspirada pelos dois versos de Juvenal que Montes minha obra, e o que não passaria de recreação
quieu cita? Declarou tê-la escrito a fim de “des será prazer.
cansar o leitor” e consentiu em suprimi-la. (Cf. a
nota de Laboulaye, Oeuvres de Montesquieu, t. IV, Musas divinas, sinto que me inspirais, não o
pág. 359.) que se canta em Tempé nas flautas ou o que se
3 Narrate puellae repete em Delos com a lira; quereis que fale à
Pierides; prosit mihi vos dixisse puellas. razão; ela é o mais perfeito, o mais nobre e o
(Juvenal, Sátira IV, versos 35-36.) (N. do A.) mais delicado de nossos sentimentos.
Capítulo I
Do comércio
As matérias que se seguem exigiríam ser tra parte; compararam-nos mutuamente e disso
tadas mais amplamente; mas a natureza desta resultaram grandes benefícios.
obra não o permite. Desejaria deslizar sobre Pode-se dizer que as leis do comércio aper
um rio tranquilo; sou arrastado por uma feiçoam os costumes, pela mesma razão pela
torrente. qual estas mesmas leis deturpam os costumes.
O comércio afasta os preconceitos destrui O comércio corrompe os costumes puros4: era
dores; e é quase uma regra geral que, onde esse o assunto das queixas de Platão; civiliza e
quer que haja costumes amenos, exista comér suaviza os costumes bárbaros, como vemos
cio e, onde quer que haja comércio, existam todos os dias.
costumes amenos.
Não nos espantemos, portanto, se nossos 4 César diz dos gauleses que a vizinhança e o
comércio de Marselha os corrompera, de modo que
costumes são menos rudes que outrora. O eles, que outrora sempre tinham vencido os germa
comércio fez com que o conhecimento dos cos nos, se lhes tinham tornado inferiores. Guerra das
tumes de todas as nações penetrasse em toda Gálias, liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.)
292 MONTESQUIEU
Capítulo II
Do espírito do comércio
O efeito natural do comércio é trazer a paz. no número das maneiras de adquirir. O espí
Duas nações que comerciam juntas tornam-se rito não é oposto a certas virtudes morais: por
reciprocamente dependentes; se uma tem inte exemplo, a hospitalidade, muito rara nos paí
resse em comprar, a outra tem em vender; e ses de comércio, encontra-se admiravelmente
todas as uniões estão baseadas nas mútuas entre os povos salteadores.
necessidades. È um sacrilégio, entre os germanos, diz Tá
Mas se o espírito de comércio une as cito, fechar a casa a um homem, quem quer
nações, não une do mesmo modo os indiví que ele seja, conhecido ou desconhecido.
duos. Vemos que nos países5 em que só se é Quem exerceu6 a hospitalidade com relação a
afetado pelo espírito de comércio trafica-se um estranho mostrar-lhe-á outra casa onde ela
com todas as ações humanas e com todas as é também praticada, e ele é recebido com a
virtudes morais: as mais pequenas coisas, as mesma humanidade. Mas, quando os germa
que a humanidade exige, se fazem ou se dão nos fundaram reinos, a hospitalidade se lhes
por dinheiro. tornou uma carga. Isso transparece por duas
O espírito de comércio produz nos homens leis do código7 dos borguinhões, no qual uma
certo sentimento de justiça exata, oposto, de lei inflige uma pena a todo bárbaro que mostre
um lado, à pilhagem e, de outro, a essas virtu a um estrangeiro a casa de um romano; a outra
des morais que fazem com que nem sempre se reza que quem receber um estrangeiro será
discutam seus interesses com rigidez e que se indenizado pelos habitantes, cada um com sua
possa negligenciá-los pelos dos outros. quota-parte.
A ausência total de comércio produz, pelo
contrário, a pilhagem, que Aristóteles coloca 6 Et qui modo hospes fuerat, monstrator hospitii.
De Moribus Germ., cap. XX. Vede também César,
Guerra das Gálias, liv. VI, cap. XXI. (N. do A.)
6 A Holanda. (N. do A.) 7 Tít. XXXVIII. (N. do A.)
Capítulo III
Há duas espécies de povos pobres: os que a são pobres porque foram desdenhados, ou por
dureza do governo assim tornou e os que são que não conheceram as comodidades da vida;
incapazes de quase toda virtude, porque sua estes podem fazer grandes coisas, porque esta
pobreza faz parte de sua servidão; os outros só pobreza faz parte de sua liberdade.
Capítulo IV
repúblicas de Tiro, de Cartago, de Atenas, de tanto desejo de ganhar pouco se coloca numa
Marselha, de Florença, de Veneza e da Holan situação em que não tem menos desejo de ga
da praticaram o comércio. nhar muito.
Esta espécie de tráfico relaciona-se ao Demais, os maiores empreendimentos dos
governo de muitos por sua natureza, e ao negociantes estão sempre necessariamente
monárquico por ocasião. Pois como apenas confundidos com os negócios públicos. Porém,
está fundado sobre a prática de ganhar pouco, nas monarquias, os negócios públicos são, na
e mesmo de ganhar menos que qualquer outra maior parte do tempo, tão suspeitos aos
nação e de só se ressarcir ganhando continua comerciantes quanto lhes parecem seguros nos
mente, é quase impossível que possa ser feito Estados republicanos. Os grandes empreendi
por um povo no qual o luxo está estabelecido, mentos de comércio não são, portanto, para as
que despende muito e que apenas vê grandes monarquias, mas para o governo de muitos.
objetos8.
Numa palavra, uma maior certeza de
É nesse espírito que Cícero9 dizia tão bem:
propriedade, que se acredita ter nestes Estados,
“Não gosto que um mesmo povo seja ao
faz com que tudo se empreenda; e, porque se
mesmo tempo dominador e distribuidor do
universo”. Com efeito, cumpriría supor que acredita estar seguro do que se adquiriu, ousa-
cada indivíduo, nesse Estado, e mesmo todo o se expor para adquirir ainda mais; correm-se
Estado, tivesse sempre a cabeça cheia de gran
riscos apenas quanto aos meios de aquisição;
des projetos e esta mesma cabeça repleta de ora, os homens esperam muito de sua fortuna.
pequenos projetos: isso é contraditório. Não quero dizer que exista alguma monar
Não que, nesses Estados que subsistem pelo quia que esteja totalmente excluída do comér
comércio de economia, não se façam também cio de economia; mas, por sua natureza, ela
os maiores empreendimentos, e que não se está menos inclinada a isso. Não quero dizer
tenha uma audácia que não se encontra nas que as repúblicas que conhecemos estejam
monarquias; eis a razão disso. inteiramente privadas do comércio do luxo,
Um comércio leva a outro: o pequeno ao mas este tem menos relação com sua constitui
medíocre, o medíocre ao grande; e quem teve ção.
Quanto ao Estado despótico, é inútil referir-
8 ... que apenas vê grandes objetos. . . sendo, de mo-nos a ele. Regra geral: numa nação que
outro lado, o comércio considerado pela nobreza — está na servidão, trabalha-se mais para conser
que o faz prosperar — como uma profissão avil var do que para adquirir. Numa nação livre,
tante.
9 -Nolo eumdem populum, imperatorem et partito- trábalha-se mais para adquirir do que para
rem esse terrarum. Cíc., De Rep., liv. IV. (N. do A.) conservar.
Capítulo V
Marselha, refúgio necessário em meio a um fosse sempre tranquilo, que tivessem, enfim,
mar tempestuoso; Marselha, lugar onde os costumes frugais para que sempre pudessem
ventos, os bancos de areia, a disposição das viver de um comércio que conservariam mais
costas obrigam a atracar, foi frequentada pela seguramente quanto menos vantajoso fosse.
gente do mar. A esterilidade10 de seu território Viu-se em toda parte a violência e as vexa-
levou seus cidadãos ao comércio de economia. ções darem nascimento ao comércio de econo
Foi necessário que eles fossem laboriosos, mia, quando os homens foram constrangidos a
para substituir o que a Natureza lhes recusava, se refugiar nos pântanos, nas ilhas, nos baixios
que fossem justos para viver entre as nações e até nos escolhos. É assim que Tiro, Veneza e
bárbaras que deviam fazer sua prosperidade, as cidades da Holanda foram fundadas; os
que fossem moderados, para que seu governo fugitivos aí encontraram sua segurança. Cum
pria subsistir; eles tiraram sua subsistência de
1 0 Justino, liv. XLIII, cap. III. (N. do A.) todo o universo.
294 MONTESQUIEU
Capítulo VI
Sucede, às vezes, que uma nação que pratica nada perca, acreditará ter feito muito. É assim
o comércio de economia, tendo necessidade de que a Holanda tem também suas pedreiras e
uma mercadoria de um país que lhe fornece florestas.
recursos para adquirir mercadorias de outro, Não só um comércio que nada rende pode
contenta-se com ganhar muito pouco, e por ser útil como um comércio, mesmo desvanta
vezes nada, sobre umas, na esperança ou certe joso, pode sê-lo. Ouyi dizer, na Holanda, que a
za de ganhar muito sobre as outras. Assim, pesca da baleia, em geral, quase nunca rende o
quando a Holanda comerciava quase sozinha que custa; mas os que foram empregados na
do Sul ao Norte da Europa, os vinhos france construção de barcos, os que forneceram mas-
ses que ela transportava para o Norte apenas sames, aprestos e víveres são também os que
lhe serviam, de alguma maneira, de fundos têm o principal interesse nesta pesca. Se per
para fazer seu comércio no Norte. dem na pesca, ganham nos fornecimentos. Este
Sabemos que, amiúde, na Holanda, certos comércio é uma espécie de loteria, e cada qual
gêneros de mercadorias vindas de longe não se é seduzido pela esperança de tirar o bilhete
vendiam mais caro do que custaram nos luga premiado. Todos gostam de jogar; os mais sá
res onde foram adquiridas. Eis a explicação: bios jogam voluntariamente quando não vêem
um capitão que necessita lastrar seu navio as aparências do jogo, seus desregramentos,
adquirirá mármore; se necessita de madeira suas violências, suas dissipações, a perda de
para a estivagem, comprá-la-á; e, uma vez que tempo e mesmo de toda a vida.
Capítulo VII
A Inglaterra quase não mantém tarifa comércio que nela se faz, pouco se prende a
regulamentada11 com as demais nações; sua tratados e apenas depende de suas leis.
Outras nações deixaram os interesses políti
tarifa muda, por assim dizer, com cada parla
cos sobrepujarem os do comércio; a Inglaterra
mento, pelos direitos particulares que suprime sempre subordinou os interesses políticos aos
ou impõe. Quis também conservar sobre isso de seu comércio.
sua independência. Soberanamente zelosa do E o povo do mundo que melhor soube
prevalecer-se, ao mesmo tempo, dessas três
11 ... tarifa regulamentada. . tratados comer grandes coisas: da religião, do comércio e da
ciais. liberdade.
Capítulo VIII
com navios da fábrica do pais de que cios, sabe onde colocar todas as mercadorias
provinham. supérfluas; que é rica e pode sobrecarregar-se
Cumpre que o Estado que impõe essas leis de muitos gêneros; que os pagará pronta
possa facilmente fazer, por si só, o comércio;
mente; que tem, por assim dizer, necessidade
sem isso, ocasionará.a si mesmo um prejuízo
de ser fiel; que é, por princípio, pacífica; que
igual. É melhor negociar com uma nação que
exige pouco — e que as necessidades do procura ganhar e não conquistar; é melhor,
comércio tornam, de alguma forma, depen dizia eu, negociar com esta nação do que com
dente — do que com uma nação que, pela outras sempre rivais, e que não dariam todas
extensão de seus horizontes ou de seus negó essas vantagens.
Capítulo IX
A verdadeira máxima é nunca excluir qual certo preço. Os poloneses, com o trigo, prati
quer nação do comércio sem que para isso caram esse comércio com a cidade de Danzig;
haja grandes motivos. Os japoneses só comer vários reis da índia têm semelhantes contratos
ciam com duas nações: a chinesa e a holande para as especiarias com os holandeses13. Estas
sa. Os chineses ganham mil por cento sobre o convenções só são adequadas a uma nação
açúcar e, por vezes, outro tanto sobre as devo pobre, que quer justamente perder a esperança
luções. Os holandeses obtêm quase os mesmos de enriquecer-se, uma vez que tenha uma
lucros. Toda nação que siga as normas japone subsistência assegurada; óu a nações cuja ser
sas será necessariamente enganada. A concor vidão consiste em renunciar ao uso das coisas
rência é que dá um justo preço às mercadorias que a Natureza lhes tinha proporcionado; ou
e que estabelece as verdadeiras relações entre em fazer com estas coisas um comércio
desvantajoso.
elas.
Um Estado deve sujeitar-se ainda menos a
13 Isso foi primeiramente estabelecido pelos portu
vender suas mercadorias a uma só nação, sob gueses. Voyages de François Pyrard, cap. XV, parte
pretexto de que esta lhe adquirirá todas a um II. (N. do A.)
Capítulo X
Nos Estados que fazem o comércio de eco que tenha possuído, ou que tenha podido pos
nomia, em boa hora estabeleceram-se bancos suir um tesouro; e, em toda parte onde há um.
que, pelo crédito, formaram novos símbolos de desde que seja excessivo, torna-se logo o tesou
valores1*4. Mas seria um erro transportá-los ro do príncipe.
para Estados que praticam o comércio do Pela mesma razão, as companhias de nego
luxo. Estabelecê-los em países governados por ciantes que se associam para um certo comér
um só é supor o dinheiro de um lado e o poder cio raramente convêm ao governo de um só. A
de outro: isto é, de um lado, a faculdade de
natureza dessas companhias é dar às riquezas
tudo possuir sem nenhum poder e, de outro, o
particulares a força das riquezas públicas1 5.
poder sem a faculdade de coisa alguma. Em
semelhante governo, nunca existiu um príncipe Mas, nesses Estados, essa força só pode encon-
trar-se nas mãos do príncipe. Digo mais: elas
1 4 Aqui Montesquieu pensa no banco da Holanda nem sempre convêm nos Estados onde se faz o
1 5 Mediante as ações ou as notas. comércio de economia; e, se os negócios não
296 MONTESQUIEU
são tão grandes a ponto de se acharem abaixo Ihor não obstando, por privilégios exclusivos,
do alcance dos particulares, far-se-á ainda me- a liberdade do comércio.
Capítulo XI
Nos Estados que praticam o comércio de blica. Mas, no governo monárquico, seme
economia, pode-se estabelecer um porto fran lhantes estabelecimentos seriam contrários à
co. A economia do Estado, que sempre acom razão; não teriam outro efeito senão o de ali
panha a frugalidade dos indivíduos, dá, por
viar o luxo do peso dos impostos. Ficar-se-ia
assim dizer, alma a seu comércio de economia.
O que perde em tributos pelo estabelecimento privado do único bem que o luxo pode propor
ao qual nos referimos é compensado pelo que cionar, e do único freio que, em semelhante
pode extrair da riqueza industriosa da repú constituição, ele pode receber.
Capítulo XII
Da liberdade de comércio
A liberdade de comércio não é uma facul via marítima para a capital; não permite a
dade concedida aos negociantes de fazerem o exportação de seus cavalos e estes não são cas
que querem: isto seria antes sua servidão. O trados; os navios1 6 de suas colônias que
comerciam na Europa devem fundear na Ingla
que prejudica o comerciante não prejudica por
terra1 7. Ela prejudica o comerciante mas em
isso o comércio. É nos países da liberdade que favor do comércio.
o negociante encontra inumeráveis contradi
ções; e ele nunca é menos obstado pelas leis do 16 Ato de Navegação de 1660. Foi apenas em
que nos países da servidão. período de guerra que os de Boston e de Filadélfia
mandaram seus barcos diretamente para o Mediter
A Inglaterra proíbe a exportação de suas râneo, a fim de levar seus gêneros. (N. do A.)
lãs; quer que o carvão seja transportado por 1 7 A França aplicava esta mesma lei.
Capítulo XIII
Capítulo XIV
A grande constituição dos ingleses19 proíbe que punia com a morte os que introduzissem
que se apreendam e confisquem, em caso de nos Estados da Espanha, mercadorias inglesas;
guerra, as mercadorias dos negociantes estran ela infligia a mesma pena aos que levassem a
geiros, exceto como represália. Ê notável que a Estados da Inglaterra mercadorias da Espa
nação inglesa tenha feito disso um dos itens de
nha. Semelhante ordenação só pode, creio,
sua liberdade.
encontrar modelo nas leis do Japão. Ela choca
Na guerra que a Espanha travou com os
ingleses, em 1740, ela estabeleceu uma20 lei nossos costumes, o espírito do comércio e a
harmonia que deve existir na proporção das
1 9 A carta de João sem Terra no início do século penas; ela confunde todas as idéias, transfor
XIII.
20 Publicada em março de 1740 em Cádis. (N. do mando em crime de Estado o que não passa de
A.) uma violação de polícia.
Capítulo XV
Sólon21 ordenou, em Atenas, que não mais em prazos amiúde muito curtos, a dá-las e
houvesse prisões por dívidas civis. Tirou22 retomá-las, faz-se mister que o devedor salde
esta lei do Egito; Bochóris a estabelecera e sempre seus compromissos no prazo determi
Sesóstris a renovara. nado, o que supõe a prisão por dívida.
Esta lei é muito boa para os negócios23 Nos negócios que decorrem dos contratos
civis ordinários; porém temos razão de não civis ordinários, a lei não deve permitir a pri
observá-la nos do comércio, pois, sendo os são por dívida, porque atribui mais impor
negociantes obrigados a confiar grandes somas tância à liberdade de um cidadão do que ao
bem-estar de outro. Mas, nas convenções que
derivam do comércio, a lei deve dar mais
21 Plutarco, no tratado De Como Não se Deve
Emprestar a Juros, cap. IV. (N. do A.) importância ao bem-estar público do que à
22 Diodoro, liv. I, parte II, cap. LXXIX. (N. do liberdade de um cidadão, o que não impede as
A.) restrições e as limitações que a humanidade e a
Pode-se censurar os legisladores gregos por boa polícia2 4 podem exigir.
terem proibido que se tomassem como penhor as
armas e as charruas de um homem, enquanto permi
tiam que se tomasse o próprio homem. Diodoro, 2 4 A prisão por dívida podia ser perpétua se o
livro I, parte II, cap. LXXIX. (N. do A.) devedor não a pagasse.
Capítulo XVI
Bela lei
A lei de Genebra que exclui das magistra- Iho, os filhos dos que viveram ou morreram
turas, e mesmo do ingresso no Grande Conse- insolventes, salvo se saldarem as dívidas de
298 MONTESQUIEU
seus pais, é muito boa. Tem este efeito: dá con bém à própria cidade. A fé particular aqui tem
fiança aos negociantes, aos magistrados e tam também a força da fé pública.
Capítulo XVII
Lei de Rodes
Os ródios foram mais longe. Sexto Empíri penso que a razão do próprio comércio deveria
co2 5 diz que, entre eles, o filho não podia dei introduzir esta limitação: as dívidas contraídas
xar de pagar as dívidas do pai, renunciando à pelo pai depois que o filho tivesse começado a
comerciar não afetariam os bens adquiridos
sua sucessão. A lei de Rodes era feita para por este último. Um comerciante deve sempre
uma república baseada no comércio. Ora, conhecer suas obrigações e se conduzir, a cada
instante, de acordo com o estado de sua
2 5 Hipotiposes, liv. I, cap. XIV. (N. do A.) fortuna.
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Teófilo28, vendo um navio onde havia centado: Quem poderá nos conter se fazemos o
mercadorias para sua mulher Teodora, man monopólio? Quem nos obrigará a cumprir
dou queimá-lo. “Sou imperador”, afirmou, “e nossos compromissos? O comércio que faze
vós me fazeis dono de galera. Em que poderão mos, os cortesãos desejarão fazê-lo; serão mais
as pobres gentes ganhar a vida, se nós também ávidos e mais injustos do que nós. O povo con
praticamos seu ofício?” Ele poderia ter acres fia em nossa justiça mas não confia em nossa
opulência; tantos impostos que causam sua
2 8 Zonaro. (N. do A.) miséria são provas exatas da nossa.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 299
Capítulo XX
Capítulo XXI
Capítulo XXII
Reflexão particular
Pessoas30 impressionadas pelo que se prati dos32 despóticos, onde ninguém pode nem
ca em alguns Estados pensam que seria neces deve ter emulação.
sário que, na França, existissem leis que indu Que não se diga que cada um seguirá me
zissem os nobres a comerciar. Este seria o lhor sua profissão quando não puder trocá-la
meio de destruir a nobreza, sem nenhuma utili por outra. Afirmo que se praticará melhor a
dade para o comércio. A prática deste país é profissão quando os que nela se tiverem distin-
muito sábia: os negociantes não são nobres guido esperarem obter outra.
mas podem chegar a sê-lo. Têm a esperança de A aquisição que se pode fazer da nobreza a
obter a nobreza sem dela ter o inconveniente preço de dinheiro encoraja muitos negociantes
atual. Não têm meio mais seguro de sair de sua a se colocarem em situação de adquiri-la. Não
profissão do que praticá-la bem, ou fazê-la examino se se fez bem em dar assim às rique
com honra, coisa que está comumente relacio zas o preço da virtude: há governos nos quais
nada à suficiência31. isso pode ser muito útil.
As leis que ordenam que cada um perma
Na França, este estado de toga que se
neça em sua profissão, e a transmita aos filhos,
encontra entre a alta nobreza e o povo; que,
não são nem podem ser úteis senão nos Esta sem ter o brilho daquela, possui todos os seus
30 Pessoas: o Abade de Saint-Pierre nas suas Rê-
veries d ’un Homme de Bien. 32 Efetivamente, isto é amiúde estabelecido desta
31 Suficiência, no sentido de capacidade. maneira. (N. do A.)
300 MONTESQUIEU
privilégios; este estado que deixa os particu parte da nação, que serve sempre com o capi
lares na mediocridade, enquanto o corpo das tal de seu bem; que, quando está arruinada, dá
leis está na glória; este estado, também, no seu lugar a outra que servirá ainda com seu
qual não se tem meio de se distinguir senão capital; que vai à guerra para que ninguém
pela suficiência e pela virtude; profissão hon ouse dizer que ela aí não esteve; que, quando
rada, mas que permite sempre ver uma mais não pode esperar riquezas, espera as honrarias,
distinguida: esta nobreza, inteiramente guerrei e que, quando não as obtém, se consola porque
ra, que pensa que, qualquer que seja o grau de adquiriu honrarias: todas essas coisas têm
riquezas em que se esteja, cumpre fazer fortu necessariamente contribuído para a grandeza
na, mas que é vergonhoso aumentar seu patri deste reino. E se, a partir de dois ou três sécu
mônio se não se começa por dissipá-lo33; esta los, ela aumentou constantemente seu poderio,
faz-se mister atribuir isso à bondade de suas
33 Mediante aquisições de cargos, militares ou leis, e não à fortuna que não tem essas espécies
outros. de constância.
Capítulo XXIII
A que nações é
desvantajosa a prática do comércio
As riquezas consistem em fundos territoriais do será carente de tudo e nada poderá adqui
ou em bens mobiliários: os fundos territoriais rir; melhor seria que não comerciasse com
de cada país são geralmente possuídos por nação alguma do mundo: é o comércio que,
seus habitantes. A maioria dos Estados tem nas circunstâncias em que ele se encontra, o
leis que desinteressam os estrangeiros pela conduz à pobreza.
aquisição de suas terras3 4; só mesmo a pre Um país que sempre envia menos mercado
sença do proprietário as faz valer: este gênero rias ou gêneros do que recebe, coloca a si
de riquezas pertence, pois, a cada Estado em mesmo em equilíbrio empobrecendo-se: rece
particular. Mas os bens mobiliários, comò o berá sempre menos, até que, numa extrema
dinheiro, as cédulas, as letras de câmbio, as pobreza, nada mais receberá.
ações de companhias, navios, todas as merca Nos países de comércio, o dinheiro que
dorias, pertencem ao mundo inteiro, que, nesta subitamente desaparece torna a voltar porque
relação, forma apenas um único Estado, do os Estados que o receberam o devem: nos
qual todas as sociedades forma membros; o Estados a que nos referimos, o dinheiro nunca
povo que possui a maioria desses bens mobi retorna, porque os que o adquiriram nada
liários do universo é o mais rico; alguns Esta devem.
dos possuem-nos em grande quantidade; ad A Polônia servirá aqui de exemplo. Ela não
quiriram-nos, cada um, por seus gêneros, pelo tem quase nenhuma das coisas a que chama
trabalho de seus operários, pela sua indústria, mos bens mobiliários do universo, a não ser o
pelas suas descobertas e pelo próprio acaso. A trigo de suas terras. Alguns senhores são
avareza das nações disputa os móveis3 5 de proprietários de províncias inteiras; eles pres
todo o universo. Podemos encontrar um Esta sionam os lavradores para ter maior quanti
do tão infeliz que esteja privado dos bens de dade de trigo para poder enviar ao exterior e
outros países e mesmo de quase todos os seus: obter coisas que o luxo requer. Se a Polônia
os proprietários dos fundos territoriais não não comerciasse com nenhuma nação seus
passarão de colonos de estrangeiros. Este Esta povos seriam mais felizes. Os poderosos, que
apenas teriam seu trigo, dá-lo-iam aos campo
3 4 Trata-se do direito de aubaine que confiscava neses para viver; domínios demasiado grandes
em favor do soberano a herança do estrangeiro que ser-lhes-iam um fardo; eles reparti-los-iam
morria nos seus Estados.
35 ... os móveis... os bens móveis, a riqueza entre os camponeses; encontrando toda gente
mobiliária. peles ou lãs em seus rebanhos, não mais have-
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 301
ria uma imensa despesa a fazer com as vesti adquirir poder; podem ocorrer casos em que se
mentas; os poderosos, que sempre apreciam o tenha necessidade de um rápido auxílio, que
luxo, e que só o poderíam encontrar em seu um Estado tão abastado possa dar mais
país, estimulariam os pobres ao trabalho. Digo depressa do que outro. É difícil que um país
que esta nação seria mais florescente, a menos tenha coisas supérfluas, mas é da natureza do
que se tornasse bárbara, coisa que as leis pode comércio tornar úteis as coisas supérfluas, e
ríam prevenir. necessárias as coisas úteis. O Estado poderá,
Consideremos agora o Japão. A quantidade portanto, oferecer as coisas necessárias a um
excessiva do que pode receber produz a quanti maior número de súditos.
dade excessiva do que pode exportar: as coisas Digamos, portanto, que não são as nações
estarão em equilíbrio se a importação e a que não têm necessidade de nada que perdem
exportação forem moderadas; e, aliás, esta ao praticar o comércio; perderão as que têm
espécie de excesso acarretaria ao Estado mil necessidade de tudo. Não são os povos que se
vantagens: haveria maior consumo, mais coi bastam a si próprios mas os que nada têm em
sas sobre as quais as artes poderíam exercer- seu país que se beneficiam em não traficar com
se, mais homens empregados, mais meios de ninguém.
LIVRO VIGÉSIMO PRIMEIRO
DAS LEIS NA RELAÇÃO QUE TÊM
COM O COMERCIO, CONSIDERADO
NAS REVOLUÇÕES QUE TEVE NO MUNDO
Capitulo I
Embora o comércio esteja sujeito a grandes lhes permite quase nada do que vem de nós.
revoluções, pode acontecer que certas causas Andam nus; as vestes que possuem, fornece-as
físicas, a qualidade do terreno ou do clima, convenientes o país; e a religião, que tem sobre
determinem para sempre sua natureza. eles tanto poder, provoca-lhes repugnância
Hoje, só fazemos comércio com a índia pelo pelas coisas que nos servem de alimento. Não
dinheiro que para ali mandamos. Os roma têm necessidade, portanto, a não ser dos nos
nos3*6 para lá levavam cerca de cinquenta sos metais, que são os símbolos dos valores e
milhões de sestércios cada ano. Esse dinheiro, pelos quais dão mercadorias que sua frugali
como o nosso hoje, era convertido em merca dade e a natureza do país lhes proporcionam
dorias que traziam para o Ocidente. Todos os em grande abundância. Os autores antigos que
povos que negociaram com as índias sempre nos falaram das índias descrevem-nas3 7 tais
levaram metais e trouxeram mercadorias. como as vemos hoje, quanto à polícia, às
É a própria Natureza que produz esse efeito. maneiras e aos costumes. As índias foram, as
Os indianos têm suas artes, que se adaptam à índias serão o que são atualmente; e, em todos
sua maneira de viver. Nosso luxo não poderia os tempos, os que negociarem com as índias
ser o deles, nem nossas necessidades suas levarão para lá dinheiro e não o trarão de
necessidades. Seu clima não lhes pede nem volta.
3 8 Plínio, Hist. Nat., liv. VI, cap. XXIII e infra, 3 7 Vede Plínio, liv. VI, cap. XIX, e Éstrabão, liv.
cap. VI. (N. do A.) XV. (N. do A.)
Capítulo II
A maioria dos povos das costas da África recebem imediatamente das mãos da Nature
são selvagens ou bárbaros. Creio que isso se za. Todos os povos civilizados estão, portanto,
deve muito ao fato de regiões quase inabitáveis em situação de negociar com eles vantajosa
separarem as pequenas regiões que podem ser mente; podem fazê-los estimar muitas coisas
habitadas. Não têm indústrias; não têm artes; sem valor algum, e por elas receber elevados
possuem em abundância metais preciosos que preços.
306 MONTESQUIEU
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Outras diferenças
O comércio, ora destruído pelos conquista Vendo-se hoje a Cólquida, que nada mais é
dores, ora impedido pelos monarcas, percorre do que uma vasta floresta, onde o povo, que
a terra, foge de onde é oprimido, radica-se diminui dia a dia, só defende sua liberdade
onde o deixam respirar: reina hoje onde só se para vender-se aos poucos aos turcos e aos
viam desertos, mares e rochedos; onde reinava persas, não se diria nunca que essa região
não há senão desertos. tivesse sido, ao tempo dos romanos, cheia de
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 307
cidades onde o comércio atraía todas as dos povos. Suas diversas destruições e certos
nações do mundo. Não se encontra nenhum de fluxos e refluxos de populações e de devasta
ções constituem seus maiores acontecimentos.
seus monumentos na região; só há traços delas
em Plínio38 e Estrabão39.
3 8 Liv. VI, cap. IV e V. (N. do A.)
A história do comércio é a da comunicação 39 Liv. XI. (N. do A.)
Capítulo VI
de espécies de braços52 para o Sul, teria sido unicamente da agricultura, pouco conhecia o
um grande obstáculo, sobretudo nesse tempo mar; assim, foi apenas ocasionalmente que os
em que não se possuía a arte de fazer eclusas. judeus negociaram no mar Vermelho. Eles
Poder-se-ia acreditar que Seleuco pretendia tomaram Elath e Asiongaber dos idumeus, que
fazer a ligação dos dois mares no mesmo lugar lhes deram esse comércio: eles perderam essas
em que o Czar Pedro I o fez depois, isto é, duas cidades e perderam também esse comér
nessa mesma faixa de terra em que o Tânais se cio.
aproxima do Volga; mas o Norte do mar Cás A mesma coisa não ocorreu com os fení-
pio não fora ainda descoberto. cios: não faziam um comércio de luxo; não
Enquanto nos impérios da Ásia havia um negociavam pela conquista: sua frugalidade,
comércio de luxo, os tírios faziam por toda a habilidade, indústria, audácias, fadigas, os tor
terra um comércio de economia. Bochard53 navam necessários a todas as nações do
dedicou o primeiro livro de seu Canaã à mundo.
enumeração das colônias que eles enviaram a As nações vizinhas do mar Vermelho ape
todos os países que estão situados próximos do nas negociavam neste e no mar da África. O
mar; eles passaram as colunas de Hércules e assombro do universo quando da descoberta
fundaram estabelecimentos5 4 nas costas do do mar das índias, efetuada na época de Ale
oceano. xandre, o prova suficientemente. Dissemos58
Naqueles tempos, os navegadores eram que sempre se levam às índias metais precio
obrigados a seguir as costas, que eram, por sos que não são trazidos59 de volta: as frotas
assim dizer, sua bússola. As viagens eram lon judias que, pelo mar Vermelho, transportavam
gas e penosas. Os trabalhos da navegação de ouro e prata voltavam da África e não das
Ulisses foram um assunto fértil para o poema índias.
mais belo do mundo, depois daquele que é o Digo mais: esta navegação fazia-se na costa
primeiro de todos5 5. oriental da África; e o estado em que então se
O pouco conhecimento que a maioria dos encontrava a marinha prova suficientemente
povos tinha dos que estavam afastados deles que não se ia a lugares longínquos.
favorecia as nações que-praticavam o comér Sei que as frotas de Salomão e de Josafá só
cio de economia. Inseriam em seus negócios as retornavam no terceiro ano mas não vejo por
obscuridades que desejassem; tinham todas as que a duração da viagem prova a extensão do
vantagens que as nações inteligentes adquirem afastamento.
sobre os povos ignorantes. Plínio e Estrabão informam-nos que o cami
O Egito, afastado de toda comunicação com nho que um navio das índias e do mar Verme
os estrangeiros pela religião e pelos costumes, lho, fabricado com juncos, percorria em vinte
quase não praticava um comércio exterior; dias era coberto em sete por um navio grego
tinha um solo fértil e de extrema abundância. ou romano60. Nesta proporção, a viagem de
Era o Japão dessa época; bastava-se a si um ano para as frotas gregas e romanas signi
próprio. ficava aproximadamente três para as de
Os egípcios foram tão pouco zelosos do Salomão.
comércio exterior, que deixaram o do mar Ver Dois navios de velocidade desigual não
melho a todas as pequenas nações que aí tives fazem sua viagem num tempo proporcional à
sem algum porto. Toleraram que os idumeus, sua velocidade: a lentidão produz amiúde uma
os judeus e os sírios aí tivessem frotas. Salo lentidão maior. Quando se trata de seguir cos
mão 5 6 empregou nessa navegação os tírios, tas; quando se encontra constantemente numa
que conheciam esses mares. posição diferente; quando cumpre esperar um
Josefo5 7 conta que sua nação, ocupando-se bom vento para sair de um golfo, e outro para
avançar, um navio bom de velas aproveita-se
52 Vede Estrabão, liv. XI. (N. do A.)
53 Bochard, orientalista francês (1599-1664). 58 No cap. I deste livro. (N. do A.)
54 Fundaram Tartesso e estabeleceram-se em 59 A proporção estabelecida na Europa entre o
Cádis. (N. do A.) ouro e a prata pode, algumas vezes, fazer com que
5 5 A Odisséia; o primeiro de todos seria a Ilíada. seja mais lucrativo tomar, nas índias, ouro por
5 6 Livro III, dos Reis, cap. IX, vers. 26; Paralip., prata; mas isso significa pouco coisa. (N. do A.)
liv. II, cap. VIII, vers. 17. (N. do A.) 60 Vede Plínio, liv. VI, cap. XXII, e Estrabão, liv.
5 7 Contra Apião. (N. do A.) XV. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 309
Capítulo VII
Os primeiros gregos eram todos piratas. tuada: separou dois mares, abriu e fechou o
Minos, que havia possuído o império do mar, Peloponeso, e abriu e fechou a Grécia. Foi
só obtivera talvez grandes êxitos nas pilha uma cidade de grande importância, numa
gens: esse império achava-se limitado às cerca época em que o povo grego era um mundo e as
nias de sua ilha. Porém, quando os gregos cidades gregas eram nações. Ela praticou um
tornaram-se um grande povo, os atenienses comércio maior do que o de Atenas. Tinha um
obtiveram o verdadeiro império do mar porque porto para receber as mercadorias da Ásia e
esta nação comerciante e vitoriosa ditou a lei outro para receber as da Itália; pois, como
ao monarca6 5 mais poderoso de então, e havia grandes dificuldades em contornar o
sobrepujou as forças marítimas da Síria, da promontório Máleo, onde ventos 6 7 opostos se
ilha de Chipre e da Fenícia. encontram e ocasionam naufrágios, preferia-se
É necessário que eu me refira a este império antes ir a Corinto e se podia mesmo fazer pas
marítimo que Atenas teve. “Atenas”, diz sar os navios de um mar a outro, por terra. Em
Xenofonte65 66, “tem tem o império do mar; nenhuma outra cidade se enalteciam tanto as
porém, como a Ática está presa à terra, os ini obras de arte. A religião acabou de corromper
migos devastam-na, enquanto ela empreende o que sua opulência lhe deixara de costumes.
suas expedições às regiões longínquas. Os Ela erigiu um templo a Vênus, onde mais de
principais deixam destruir suas terras e colo mil cortesãs foram consagradas. Foi desse
cam seus bens em segurança em alguma ilha: o seminário que saiu a maioria das belezas céle
populacho, que não possui terras, vive sem bres cuja história Atenas ousou escrever.
nenhuma inquietação. Mas, se os atenienses Parece que, na época de Homero, a opulên
habitassem uma ilha e tivessem, por outro cia da Grécia situava-se em Rodes, em Corinto
lado, o domínio do mar, teriam o poder de pre e em Orcômeno. “Júpiter”, diz ele 68, “amou os
judicar os outros sem que pudessem ser preju ródios e deu-lhes grandes riquezas.” Dá a
dicados, enquanto fossem senhores do mar.” Corinto 6 9 o epíteto de rica.
Dir-se-ia que Xenofontes quis referir-se à Da mesma maneira, quando quer referir-se a
Inglaterra. cidades que possuem muito ouro, cita Orcôme
Atenas, repleta de projetos de glória; Ate no70, que compara com Tebas do Egito.
nas, que aumentava a inveja em vez de aumen Rodes e Corinto conservaram seu poderio, e
tar a influência; mais preocupada em estender Orcômeno o perdeu. A posição de Orcômeno,
seu império marítimo do que dele fruir; com perto do Helesponto, da Propôntida e do
um governo político de tal espécie, que o baixo Ponto Euxino, leva naturalmente a pensar que
povo partilhava entre si as rendas públicas, ela extraía suas riquezas de um comércio sobre
enquanto os ricos permaneciam oprimidos, as costas desses mares que tinham dado ori
não fez este grande comércio que lhe prome gem à fábula do tosão de ouro. E, efetiva-
tiam o trabalho de suas minas, a multidão de menté, o nome de Miniares é atribuído a
seus escravos, o número de seus marinheiros, Orcômeno71 e também aos argonaatas.
sua autoridade sobre as cidades gregas e, mais Porém, como em seguida estes mares torna
do que tudo isso, as belas instituições de ram-se mais conhecidos; como os gregos aí
Sólon. Seu negócio quase só se limitou à Gré estabeleceram grande número de colônias;
cia e ao Ponto Euxino, de onde ela extraiu sua
subsistência. 6 7 Vede Estrabão, liv. VIII. (N. do A.)
Corinto se achou admiravelmente bem si 68 Ilíada, liv. II, verso 668. (N. do A.)
69 Ibid., verso 570. (N. do A.)
70 Ibid., liv. I, verso 381. Vede Estrabão. liv. IX,
65 O rei da Pérsia. (N. do A.) pág. 414 edição de 1620. (N. do A.)
6 6 De Republ. Athen, cap. II. (N. do A.) 71 Estrabão, liv. IX, pág. 414. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 311
como essas colônias negociaram com povos lia e na Itália e aí formou nações. Navegou
bárbaros; como elas se comunicaram com sua para os mares do Ponto, para as costas da
metropóle, Orcômeno começou a decair e en Ásia Menor, para as da África e aí procedeu
trou na multidão das demais cidades gregas. da mesma forma. Suas cidades adquirem pros
Os gregos, antes de Homero, quase só ti peridade à medida que se encontram perto de
nham negociado entre si e com alguns povos novos povos. E, o que era admirável, inumerá
bárbaros; mas estenderam seu domínio à medi veis ilhas, situadas como em primeira linha,
da que formavam novos povos. A Grécia era circundavam-na ainda.
uma grande península cujos cabos pareciam Quantas causas de prosperidade para a Gré
ter feito o mar recuar e os golfos abrirem-se de cia; quantos espetáculos oferecia, por assim
todos os lados, como também para os receber. dizer, ao universo; templos aonde todos os reis
Se lançarmos o olhar sobre a Grécia, veremos, enviavam oferendas; festas onde se reuniam
numa região bastante comprimida, uma vasta forasteiros de todas as partes; oráculos que
extensão de costas. Suas incontáveis colônias atraíam a atenção de toda a curiosidade huma
traçavam uma enorme circunferência em seu na; enfim, os gostos e as artes levados a tal
derredor; e ela via, por assim dizer, todo o ponto, que acreditar superá-los significará
mundo que não era bárbaro. Penetrou na Sicí- sempre não os conhecer!
Capítulo VIII
Alexandre penetrou pelo Norte. Seu desíg para fechá-lo; e ele não pensava num comércio
nio era marchar para o Oriente; mas, tendo do qual a descoberta do mar das índias pode
encontrado a parte do-Sul repleta de grandes ria por si só inspirar-lhe a idéia.
nações, de cidades e de rios, tentou a conquista Parece mesmo que, após esta descoberta,
e realizou-a. não teve mais nenhum novo objetivo com rela
Nessas condições, planejou unir as índias ção a Alexandria. Tinha efetivamente, em
ao Ocidente por um comércio marítimo, como geral, o projeto de estabelecer um comércio
os unira por colônias que estabelecera nas entre as índias e as partes ocidentais de seu
terras. império; mas faltavam-lhe muitos conheci
Mandou construir uma frota no Hidaspes, mentos para poder conceber o projeto de fazer
desceu este rio, entrou no Indo e navegou até o comércio pelo Egito. Vira o Indo, vira o
sua embocadura. Deixou seu exército e sua Nilo, mas não conhecia os mares da Arábia,
frota em Patala e ele próprio foi com alguns que estão entre os dois. Assim que chegou das
barcos reconhecer o mar, assinalou os lugares índias mandou construir novas frotas e nave
onde quis que se construíssem portos, angras e gou8 4 pelo Euleus, pelo Tigre, pelo Eufrates e
arsenais. De volta a Patala, separou-se de sua pelo mar: retirou as cataratas que os persas
frota e seguiu o caminho por terra para lhe dar haviam colocado nestes rios: descobriu que o
auxílios e recebê-los. A frota seguiu a costa seio pérsico8 5 era um golfo do oceano. Como
desde a embocadura do Indo, ao longo das foi reconhecer8 6 este mar, assim como reco
costas do país dos Oritas, dos Ictiófagos, da nhecera o das índias; como mandou construir
Caramânia e da Pérsia. Mandou abrir poços, um porto na Babilônia para mil barcos, e arse
construir cidades: proibiu os ictiófagos81 de nais; como enviou quinhentos talentos para a
viverem de peixe; quis que as margens deste Fenícia e a Síria, a fim de que lhe enviassem
mar fossem habitadas por nações civilizadas. navegantes, que desejava colocar nas colônias
Nearco e Onesícrito redigiram o diário dessa que espalhava nas costas; como, finalmente,
navegação82 que durou dez meses. Chegaram realizou imensos trabalhos no Eufrates e em
a Susa; aí encontraram Alexandre que oferecia outros rios da Assíria, não se pode duvidar que
festas a seu exército. seu intento fosse comerciar com as índias pela
Babilônia e pelo golfo Pérsico.
Este conquistador fundara Alexandria com Algumas pessoas, sob pretexto de que Ale
o objetivo de apoderar-se do Egito; era uma xandre pretendia conquistar a Arábia8 7, disse
chave para abri-lo, no próprio83 lugar em que ram que ele intencionava aí estabelecer a sede
os reis seus predecessores tinham uma chave de seu império; mas como teria escolhido um
lugar que não conhecia88? Aliás, tratava-se da
81 Isto não podia dizer respeito a todos os ictió região mais incômoda do mundo; ele estaria
fagos que habitavam uma costa de dez mil estádios. separado de seu império. Os califas, que
Como Alexandre teria podido lhes garantir a subsis
tência? Como se faria obedecido? Aqui só se trata conquistaram regiões longínquas, abando
de alguns povos particulares. Nearco, no livro naram primeiramente a Arábia para se estabe
Rerum Indicarum, diz que na extremidade desta lecerem alhures.
costa, do lado da Pérsia, encontrara povos menos
ictiófagos. Creio que a ordem de Alexandre refe
ria-se a esta região,.ou alguma outra ainda mais 8 * Arriano, De Exped. Alexandri, liv. VII. (N. do
vizinha da Pérsia. (N. do A.) A.)
82 Plínio, Nat. Hist., liv. VI, cap. XXIL (N. do A.) 8 5 O seio pérsico, o “golfo Pérsico” (de Sinus
83 Alexandria foi fundada numa regíão chamada persicus).
Racotis. Os antigos reis aí mantinham uma guarni 8 6 Arriano, ibid. (N. do A.)
ção para impedir a entrada dos estrangeiros, sobre 8 7 Estrabão, liv. XVI, no final. (N. do A.)
tudo os gregos, que eram, como sabemos, grandes 88 Vendo a Babilônia inundada, ele visou a Arábia
piratas. Vede Plínio, liv. VI, cap. X; e Estrabão, liv. que estava próxima como uma ilha. Aristóbulo, em
XVIII. (N. do A.) Estrabão, liv. XVI. (N. do A.).
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 313
Capítulo IX
É difícil compreender a obstinação dos dura do Indo; vê-se que este foi o percurso
Antigos em acreditar que o mar Cáspio era seguido pela frota de Alexandre. Depois,
uma parte do oceano. As expedições de Ale seguiu-se um caminho mais curto103 e mais
xandre, dos reis da Síria, dos partos e dos seguro e foi-se do mesmo promontório a Siger.
romanos, não conseguiram fazê-los mudar de Este Siger só pode ser o reino de Siger ao qual
idéia: é que nos corrigimos de nossos erros o se refere Estrabão104, que os reis gregos de
mais tarde que podemos. Inicialmente conhe Bactriana descobriram. Plínio só pôde dizer
cia-se apenas o Sul do mar Cáspio; acreditou- que este caminho foi mais curto considerando
se tratar do oceano; à medida que se progredia que era percorrido em menos tempo, pois Siger
ao longo de suas costas, ao norte, acreditou-se deveria estar mais afastado que o Indo, uma
ainda que era o oceano que penetrava nas ter vez que os reis de Bactriana o descobriram.
ras. Seguindo as costas, apenas se reconhecera, Cumpria, portanto, que assim se evitasse o
do lado este, até o laxartes, e do lado oeste, até contorno de certas costas e que se aproveitasse
as extremidades da Albânia. O mar, do lado de certos ventos. Enfim, os mercadores segui
norte, era lodoso9 6 e, consequentemente, ram um terceiro caminho: dirigiam-se a Canes
muito pouco próprio à navegação. Tudo deter ou a Océlis, portos situados na embocadura do
minou com que nunca se visse senão o mar Vermelho, de onde, por um vento de oeste,
oceano9 7. chegava-se a Muzíris, primeira etapa das ín
O exército de Alexandre não fora, do lado dias, e de lá a outros portos.
oriental, senão até o Hipanis, que é o último Vê-se que em lugar de Ir da embocadura do
dos rios que desembocam no Indo. Assim, o mar Vermelho até Siagre, subindo a costa da
primeiro comércio que os gregos tiveram nas Arábia propícia a nordeste, ia-se diretamente
índias realizou-se numa parte muito pequena de oeste a este, de um lado a outro, por inter
do país. Seleuco Nicátor penetrou até o Gan- médio das monções, cujas mudanças se desco
ges98 e, por essa via, descobriu-se o mar onde briram navegando-se nessas paragens. Os
este rio desemboca, isto é, o golfo de Bengala. Antigos só abandonaram as costas quando se
Atualmente descobrem-se terras por meio de serviram das monções10 5 e dos ventos alísios,
viagens marítimas; outrora, descobriam-se que eram uma espécie de bússola para eles.
mares pela conquista das terras. Plínio1 0 6 informa que se partia para as ín
Estrabão99, apesar do testemunho de Apo- dias em meados do verão e que se voltava por
lodoro, parece duvidar que os reis100 gregos volta do fim de dezembro e começos de janei
de Bactriana tenham ido mais além que Seleu ro. Isto é inteiramente conforme aos diários de
nossos navegantes. Nesta parte do mar das ín
co e Alexandre. Ainda que seja certo que, do
dias que está situada entre a península da Áfri
lado oriental, não tenham ido mais longe que
ca e a de aquém Ganges, há duas monções: a
Seleuco, foram mais além em direção ao sul:
primeira, durante a qual os ventos sopram de
descobriram101 Siger e portos no Malabar que
oeste a leste, começa nos meses de agosto e
deram lugar à navegação a que vou me referir.
setembro; a segunda, durante a qual os ventos
Plínio1 02 ensina-nos que se seguiram suces
sopram de leste a oeste, começa em janeiro.
sivamente três rotas para fazer a navegação
Assim, partimos da África para o Malabar no
das índias. Primeiramente, ia-se do promon
tempo em que partiam as frotas de Ptolomeu, e
tório de Siagre à ilha de Patalene, na emboca
retornamos no mesmo tempo.
A frota de Alexandre despendeu sete meses
9 6 Vede o mapa do czar. (N. do A.) para ir de Patala a Susa. Partiu ela no mês de
9 7 Crévier observa que outras autoridades, Diodo- julho, isto é, num tempo em que atualmente ne
ro de Sicília, Aristóteles e Heródoto, “referiam-se
corretamente a este mar e disseram que ele não se nhum navio ousaria fazer-se ao mar para
comunicava com nenhum outro”. (Cf. Laboulaye, t. regressar das índias. Entre uma monção e
IV, pág. 423, n° 4.)
98 Plínio, liv. VI, cap. XVII. (N. do A.)
99 Liv. XV. (N. do A.) 1 03 Plínio, liv. VI, cap. XXÍII. (N. do A.)
100 Os macedônios da Bactriana, das índias e da 10 4 Liv. XI, Sigertidis regnum. (N. do A.)
Ariana, tendo-se separado do reino da Síria, forma 105 As monções sopram, durante uma parte do
ram um grande Estado. (N. do A.) ano, de um lado e, durante a outra, do lado contrá
101 Apolônio Adramitino, em Estrabão, liv. XI. rio; e os ventos alísios sopram do mesmo lado
(N. do A.) durante todo o ano. (N. do A.)
1 0 2 Liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.) 10 6 Liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 315
outra, há um intervalo de tempo durante o qual das entre o Hipanis e o Ganges, diz que, entre
os ventos variam; e em que um vento do norte, os navegantes que vão do Egito às índias, pou
misturando-se com os ventos comuns, causa, cos iam até o Ganges. Efetivamente, vemos
principalmente junto às costas, horríveis tem que as frotas não iam até aí; pelas monções,
pestades. Isso abarca os meses de junho, julho iam de oeste a leste, da embocadura do mar
e agosto. A frota de Alexandre, partindo de Vermelho à costa do Malabar. Paravam nas
etapas que aí se localizavam e não chegavam a
Patala no mês de julho, sofreu muitas tempes
efetuar a volta da península do aquém Ganges
tades; e a viagem foi longa porque ela navegou
pelo cabo de Comorim e pela costa do Coro-
numa monção contrária.
mandel. O plano da navegação dos reis egíp
Diz Plínio que se partia para as índias no
cios e dos romanos era de fazer o retorno no
fim do verão: assim, utilizava-se o tempo da
mesmo ano111.
variação da monção para fazer o trajeto de Assim, faltava muito para que o comércio
Alexandria ao mar Vermelho. dos gregos e dos romanos nas índias fosse tão
Vede, peço-vos, como nos aperfeiçoamos extenso quanto o nosso; nós, que conhecemos
pouco a pouco na navegação. A que Dario regiões imensas que eles não conheciam; nós,
mandou efetuar para descer o Indo e ir ao mar que fazemos nosso comércio com todas as
Vermelho durou dois anos e meio10 7. A frota nações indianas e que inclusive comerciamos
de Alexandre108, descendo o Indó, chegou a para elas e navegamos para elas.
Susa dez meses depois, tendo navegado três Mas eles faziam este comércio com mais
meses no Indo e sete no mar das índias. Em facilidade do que nós; e, se apenas se nego
seguida, o trajeto da costa do Malabar ao mar ciasse na costa do Guzerate e do Malabar e,
Vermelho fez-se em quarenta dias109. sem procurar as ilhas do Sul, se se contentasse
Estrabão110, que explica os motivos da com as mercadorias que os insulares viessem
ignorância que se tinha sobre as regiões situa- trazer, dever-se-ia preferir a rota do Egito à do
cabo da Boa Esperança. Informa Estrabão112
que se negociava assim com os povos da
10 7 Heródoto, in Melpomene, liv. IV7 cap. XLIV. Taprobana.
(N. do A.)
108 Plínio, liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.)
109 Ibid. (N. do A.) 111 Plínio, liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.)
110 Liv. XV. (N. do A.) 112 Liv. XV. (N. do A.)
Capítulo X
Do périplo da África
Conta a História que, antes da descoberta Esperança. Porém, se se partia do mar Verme
da bússola, tentou-se quatro vezes fazer o péri lho, encontrava-se este cabo na metade do
plo da África. Fenícios, enviados por caminho mais depressa do que partindo do
Neco11 3 e Eudoxo11 4, fugindo da cólera de Mediterrâneo. A costa que vai do mar Verme
Ptolomeu-Latura, partiram do mar Vermelho e lho ao cabo é menos perigosa do que11 6 a que
obtiveram êxito. Sataspo11 5, no reinado de vai do cabo às colunas de Hércules. Para que
Xerxes, e Hanon, que foi enviado pelos carta os que partiam das colunas de Hércules pudes
gineses, partiram das colunas de Hércules e sem descobrir o cabo foi necessária a invenção
da bússola, a qual permitiu afastar-se da costa
não obtiveram êxito.
da África e navegar no vasto oceano11 7 em
O ponto capital para a realização da volta
da África era descobrir e dobrar o cabo da Boa
11 6 Acrescentai a isso o que afirmo no capítulo XI
deste livro, sobre a navegação de Hanon. (N. do A.)
113 Heródoto, liv. IV, cap. XLII. Ele desejava 11 7 Encontra-se, no oceano Atlântico, nos meses
conquistar. (N. do A.) de outubro, novembro, dezembro e janeiro, um
11 4 Plínio, liv. II, cap. LXVII. Pompônio Mela, liv. vento nordeste. Transpassa-se a linha e, para evitar
III, cap. IX. (N. do A.) o vento geral do leste, dirige-se a rota para o sul; ou
11 5 Heródoto, in Melpomene, liv. IV, cap. XLIII. então penetra-se na zona tórrida, em lugares onde o
(N. do A.) vento sopra de oeste para leste. (N. do A.)
316 MONTESQUIEU
Capítulo XI
Cartago e Marselha
Cartago possuía um singular direito das demais, não devemos confundir um empreendi
gentes; mandava12 7 afogar todos os estran mento que tem a audácia e a temeridade como
geiros que traficavam na Sardenha e cerca das objetivo, com o que é resultado de uma condu
colunas de Hércules. Seu direito político não ta comum.
era menos extraordinário; proibia os sardos de O relatório de Hanon é um belo documento
cultivar a terra, sob pena de morte. Ela aumen da antiguidade: o mesmo homem que execu
tou seu poderio pelas riquezas, e, em seguida, tou, escreveu; ele não insere qualquer ostenta
suas riquezas por seu poderio. Senhora das ção em suas narrativas. Os grandes capitães
costas da África que banha o Mediterrâneo, escrevem suas ações com simplicidade porque
estendeu-se ao longo das do oceano. Hanon,
são mais gloriosos pelo que fizeram do que
por ordem do senado de Cartago, espalhou
pelo que escreveram.
trinta mil cartagineses desde as colunas de
As coisas são como o estilo. Ele não intro
Hércules até Cemé. Afirma ele que essas
regiões eram tão afastadas das colunas de Hér duz o maravilhoso: tudo o que diz do clima, da
cules quanto estas eram de Cartago. Essa posi terra, dos costumes, das maneiras dos habitan
ção é notável; revela que Hanon limitou seus tes, se relaciona com o que vemos atualmente
estabelecimentos ao vigésimo grau de latitude nesta costa africana; parece que se trata do
norte, isto é, dois ou três graus além das ilhas diário de um de nossos navegantes.
Canárias, para o sul. Hanon observou131 em sua frota que,
Estando Hanon em Cemé, empreendeu durante o dia, reinava no continente um vasto
outra navegação, cujo objetivo era realizar silêncio; que, à noite, se ouvia o som de diver
descobertas cada vez mais para o sul. Quase sos instrumentos de música e que, em toda
não tomou conhecimento do continente. A parte, se viam fogos, uns maiores, outros
extensão das costas que seguiu foi de vinte e menores. Nossas relações confirmam isso: jul-
seis dias de navegação, tendo sido obrigado a ga-se que, de dia, os selvagens, para evitar o
retornar por falta de víveres. Parece que os ardor do sol, se refugiam nas florestas; que, à
cartagineses não fizeram nenhum uso do noite, acendem grandes fogos para afastar os
empreendimento de Hanon. Cílax128 diz que, animais ferozes, e que apreciam apaixonada-
além de Cemé, o mar não é navegável12 9, por mente a dança e os instrumentos de música.
que é raso, cheio de limo e de ervas marinhas: Hanon descreve-nos um vulcão com todos
efetivamente, há grandes quantidades delas os fenômenos que o Vesúvio apresenta atual
nessas paragens1 30. Os mercadores cartagine mente; e a descrição que faz das duas mulheres
ses, aos quais Cílax se refere, podiam encon peludas que preferiam ser mortas a seguir os
trar obstáculos que Hanon, que possuía ses cartagineses, e cuja pele mandou.levar a Car
senta navios de cinquenta remos cada um, tago, não é, como se disse, inverossímil132.
Esta relação é tanto mais preciosa porque é
tinha superado. As dificuldades são relativas e,
um monumento púnico; e é porque se trata de
1 2 7 Eratóstenes, em Estrabão, liv. XVII, pág. 802.
um monumento púnico que foi considerada
(N. do A.) como fabulosa, pois os romanos conservaram
128 Vede seu Périplo, artigo de Cartago. (N. do A.) seu ódio contra os cartagineses mesmo depois
129 Vede Heródoto, in Melpomene, liv. IV, cap. de os haver destruído. Mas foi apenas a vitória
XLIII, a respeito dos obstáculos que Sataspo
encontrou. (N. do A.)
13 ° Vede as cartas e as relações, o primeiro volume 131 Plínio, H. N., liv. V, cap. I, diz-nos a mesma
das Voyages qui Ont Servi à lÉtablissement de la coisa, referindo-se ao monte Átlas: Noctibus micare
Compagnie des Indes, parte I, pág. 201. Esta erva crebis ignibus, tibiarum cantu tympanorumque so-
cobre totalmente a superfície do mar, havendo difi nitu strepere, neminem interdiu cerni. (N. do A.)
culdade em ver a água; e os navios só podem passar 13 2 Supôs-se que se tratava de dois gorilas. (N. do
por ela com um vento vigoroso. (N. do A.) A.)
318 MONTESQUIEU
que decidiu se cumpriría dizer a fé púnica ou a mano vinte e cinco mil dracmas por dia: isto
fé romana. perfaz aproximadamente cinco milhões de li
Modernos133 seguiram este preconceito. bras por ano, a cinquenta francos o marco.
Que é feito, dizem eles, das cidades que Hanon Chamavam-se as montanhas onde estavam
descreveu e das quais, já no tempo de Plínio, estas minas de montanhas de prata13 7, o que
não restava o menor vestígio? O maravilhoso nos mostra que eram o Potosi daquela época.
seria que elas tivessem permanecido. Era Atualmente, as minas de Hanôver não utilizam
Corinto, ou Atenas, que Hanon ia levantar um quarto dos operários que se empregavam
nessas costas? Ele deixava, nesses lugares pro nas minas da Espanha, e elas produziam mais:
pícios ao comércio, famílias cartaginesas e, porém os romanos, quase só possuindo minas
rapidamente, as colocava em segurança contra de cobre e poucas de prata, e os gregos, só
os homens selvagens e os animais ferozes. As conhecendo as minas da Ática, muito pouco
calamidades dos cartagineses fizeram cessar a ricas, devem ter-se espantado com a abun
navegação da África, e essas famílias teriam dância das minas espanholas.
de perecer ou tornar-se selvagens. Digo mais: Durante a guerra pela sucessão da Espanha,
mesmo que as ruínas dessas cidades subsistis um homem chamado Marquês de Rodes, de
sem, quem iria descobri-las nas florestas e nos quem se dizia que se arruinara com as minas
pântanos? Entretanto, vê-se, em Cílax e em de ouro e se enriquecera com os hospitais138,
Políbio, que os cartagineses possuíram grandes propôs à corte de França abrir as minas dos
estabelecimentos nessas costas. Eis os vestí Pireneus. Citou os tírios, os cartagineses e os
gios das cidades de Hanon; não há outros por romanos. Permitiram-lhe pesquisar; ele procu
que mal existem os da própria Cartago. rou, esquadrinhou todos os lugares; citava
Os cartagineses estavam no caminho das sempre mas nada encontrou.
riquezas: e, se eles tivessem ido até o quarto Os cartagineses, senhores do comércio do
grau de latitude norte, e ao décimo quinto de ouro e da prata, quiseram sê-lo também do
longitude teriam descoberto a Costa do Ouro e chumbo e do estanho. Estes metais eram trans
as costas vizinhas. Teriam praticado um portados por terra, dos portos da Gália, no
comércio de importância completamente dife oceano, até os do Mediterrâneo. Os cartagi
rente daquele que se pratica hoje, quando a neses quiseram recebê-los em primeira mão;
América parece ter aviltado as riquezas de enviaram Himilcon para organizar139 estabe
todos os outros países; teriam encontrado lecimentos nas ilhas Cassitérides, que se julga
tesouros que não poderíam ter sido arreba va serem as de Scilly.
tados pelos romanos. Essas viagens da Bética à Inglaterra leva
Disseram coisas surpreendentes das rique-, ram certas pessoas a pensar que os cartagi
zas da Espanha. A crer em Aristóteles13 4, os neses conheciam a bússola, mas é claro que
fenícios, que abordaram em Tartesso, aí eles seguiam as costas. É-me suficiente, como
encontraram tanta prata, que seus navios não prova, o que afirma Himilcon, que levou qua
puderam contê-la, e fizeram, desse metal, os tro meses para ir da embocadura do Bétis à
utensílios mais vis. Os cartagineses, no relató Inglaterra; sem me referir à famosa1 40 história
rio de Diodoro13 5, encontraram tanto ouro e deste piloto cartaginês que, vendo um barco
prata nos Pireneus, que os utilizaram como ân romano aproximar-se, se deixou encalhar para
coras de seus navios. Não devemos dar crédito
a essas narrativas populares; eis os fatos 1 3 7 Mons argentarius. (N. do A.)
13 8 Ele tivera alguma participação na direção. (N.
precisos: do A.)
Vemos, num fragmento de Políbio citado 139 Vede Festus Avienus. Parece, segundo Plínio,
por Estrabão13 6, que as minas de prata situa que este Himilcon foi enviado ao mesmo tempo que
das na nascente do Bétis, onde quarenta mil Hanon e como, na época de Agátocles, havia um
Hanon e um Himilcon, ambos chefes dos cartagine
homens eram empregados, davam ao povo ro ses, Dodwel conjectura se seriam os mesmos, tanto
mais que nesse período a república era florescente.
133 Dodwel. Vede sua Dissertação sobre o Périplo Vede a Dissertação Sobre o Périplo de Hanon. (N.
de Hanon. (N. do A.) do A.)*
13 4 Das Coisas Maravilhosas. (N. do A.) * Parece, segundo Plínio, que este Himilcon. . .
135 Liv. VI. (N. do A.) Estas linhas só aparecem nas primeiras edições.
13 6 Liv. III. (N. do A.) 1 40 Estrabão, liv. III, no final. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 319
não lhe revelar a rota da Inglaterra1 41; fato lavassem as mãos nos mares da Sicília; não
que mostra que esses barcos estavam muito lhes foi permitido navegar além do belo
próximos da costa quando eles se encontra promontório; foi-lhes proibido1 44 traficar na
ram. Sicília1 4 5, na Sardenha, na África, com exce
Os Antigos poderíam ter feito viagens marí ção de Cartago, exceção que revela como não
timas que levariam a pensar que eles tivessem lhes preparava um comércio vantajoso.
Houve, nos primeiros tempos, grandes guer
a bússola, embora não a tivessem. Se um pilo
to se tivesse afastado das costas e, durante a
ras entre Cartago e Marselha1 4 6 a respeito da
pesca. Depois da paz, elas fizeram competiti
viagem, tivesse havido tempo sereno, tendo
vamente o comércio de economia. Marselha
visto sempre, durante a noite, uma estrela
foi tanto mais ciosa quanto, igualando sua
polar1 42, e, durante o dia, o levantar e o pôr
rival na indústria, se tornara inferior em pode
do sol, é evidente que ele poderia orientar-se
rio: eis a razão dessa grande fidelidade aos
como atualmente se orienta com a bússola; romanos. A guerra que estes travaram contra
mas seria um fato fortuito e não uma navega os cartagineses na Espanha foi uma fonte de
ção regular. riquezas para Marselha que servia de entre
Vemos, no tratado que pôs fim à primeira posto. A ruína de Cartago e de Corinto
guerra púnica, que Cartago se esforçou, aumentou ainda mais a glória de Marselha; e,
primeiramente, em conservar o império do sem as guerras civis, em que era necessário fe
mar, e Roma em conservar o da terra. char os olhos e tomar um partido, ela teria
Hanon1 43, nas negociações com os romanos, sido feliz sob a proteção dos romanos, que não
declarou que não permitiría sequer que eles tinham inveja de seu comércio.
141 Foi recompensado, por isso, pelo senado de 1 4 4 Políbio, liv. III. (N. do A.)
Cartago. (N. do A.) 145 Na parte submetida aos cartagineses. (N. do
1 42 Uma estrela polar. . . Crévier, que estuda A.)
Montesquieu sempre com a mesma severidade, 1 4 6 Justino, liv. XLIII, cap. V. Carthaginensium
observa com muita evidência que há apenas uma. quoque exercitus, cum bellum captis piscatorum
1 43 Tito Lívio, suplemento de Freinshemius, Se navibus ortum esset, saepe fuderunt, pacemque vic-
gunda Década, liv. VI. (N. do A.) tis dederunt. (N. do A.)
Capítulo XII
de comprar tropas em toda parte, de repa ciam só ter a temer a si próprios, Mitridates
rar1*51 continuamente suas perdas, de ter recolocou em discussão o que a tomada de
operários, navios, máquinas de guerra, de con Cartago, as derrotas de Filipe, de Antíoco e de
seguir aliados, de corromper os dos romanos e Perseu haviam decidido. Nunca guerra alguma
os próprios romanos, de assoldadar1 52 os bár fora mais funesta; e, tendo os dois partidos
baros da Ásia e da Europa, de guerrear duran poder e vantagens mútuas, os povos da Grécia
te longo tempo e, consequentemente, de disci e da Ásia foram destruídos, ou como amigos
plinar suas tropas; ele pôde armá-las e instruí- de Mitridates ou como seus inimigos. Delos foi
las na arte militar1 53 dos romanos e formar envolvida na infelicidade comum. O comércio
corpos consideráveis com seus trânsfugas; declinou em toda parte; efetivamente, ele deve
enfim, pôde suportar grandes perdas e sofrer ria ser destruído, pois os povos o estavam.
grandes malogros sem perecer; e não teria Os romanos, adotando um sistema a que já
perecido se, na prosperidade, o rei voluptuoso me referi alhures1 54, destruidores para não
e bárbaro não tivesse destruído o que, na parecerem conquistadores, arruinaram Carta
adversidade, o grande príncipe fizera. go e Corinto; e, com tal prática, ter-se-iam
É assim que, na época em que os romanos também arruinado se não houvessem conquis
tinham atingido o ápice da grandeza, e pare- tado toda a terra. Quando os reis do Ponto se
tornaram senhores das colônias gregas do
161 Perdeu, certa vez, 170 000 homens e logo Ponto Euxino, se abstiveram de destruir o que
novos exércitos reapareceram. (N. do A.) deveria ser a causa de sua grandeza.
1 52 Vede Apiano, Da Guerra Contra Mitridates.
(N. do A.) ’ s 4 Nas Considérations sur les Causes de la Gran-
153 Ibid. (N. do A.) deur des Romains et de leur Décadence. (N. do A.)
Capítulo XIII
Os romanos apenas atribuíam importância rados1 5 6 para participar das legiões: a gente
às tropas de terra cujo espírito era permanecer do mar era, normalmente, composta de liber
sempre firme, combater no mesmo lugar e aí tos.
morrer. Não podiam eles apreciar a prática da Atualmente, não temos nem a mesma estima
gente do mar que se apresenta ao combate, pelas tropas de terra, nem o mesmo desprezo
foge, retoma, evita sempre o perigo, empre pelas de mar. Entre as primeiras1 5 7 a arte
gando amiúde a astúcia e raramente a força. diminuiu; entre as segundas1 58 aumentou:
Tudo isso não era do gênio dos gregos1 5 5 e ora, estimam-se as coisas na proporção do
ainda menos do dos romanos. grau de suficiência exigido para fazê-las
corretamente.
Portanto, só destinavam à marinha os que
não eram cidadãos suficientemente conside
' 5 6 Políbio, liv. V. (N. do A.)
1 5 7 Vede as Considérations sur les Causes de la
1 5 5 Como observou Platão, liv. IV das Leis. (N. do Grandeur des Romains etc., cap. IV, (N, do A.)
A.) 158 Ibid. (N. do A.)
Capítulo XIV
Nunca se observou nos romanos inveja com não como nação comerciante que atacaram
relação ao comércio. Foi como nação rival e Cartago. Favoreceram as cidades que pratica-
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 321
vam o comércio, apesar de estas não serem sú nam-se seus escravos, e eles estão nos mesmos
ditas: assim, aumentaram, pela cessão de vá termos com relação a nós.”
rias regiões, o poder de Marselha. Temiam Seu direito civil não era menos opressivo. A
tudo dos bárbaros e nada de um povo nego lei de Constantino, depois de ter declarado
ciante. Aliás, seu gênio, sua glória, sua educa bastardos os filhos das pessoas vis que se tives
ção militar, a forma de seu governo, tudo os sem casado com as de condição elevada, con
afastava do comércio. funde as mulheres que têm uma loja1 60 de
mercadorias com as escravas, as tabemeiras,
Na cidade, apenas se ocupavam de guerras,
de eleições, de intrigas e de processos; no as mulheres de teatro, as filhas de um homem
que mantém um antro de prostituição ou que
campo, só da agricultura; e, nas províncias, fora condenado a combater na arena. Isso pro
um governo brutal e tirânico era incompatível vinha das antigas instituições romanas.
com o comércio. Sei perfeitamente que pessoas1 61 possui
Se sua constituição política a isso se opu doras dessas duas idéias: uma, que o comércio
nha, seu direito das gentes não se repugnava é a coisa mais útil do mundo a um Estado e,
menos. “Os povos”, diz o jurisconsulto Pom outra, que os romanos possuíam a melhor polí
pônio1*59, “com os quais não mantemos nem cia do mundo, acreditaram que eles muito
amizade, nem hospitalidade, nem aliança, não encorajaram e honraram o comércio; mas a
são nossos inimigos: entretanto, se uma coisa verdade é que eles raramente pensaram nele.
que nos pertence cai em suas mãos, eles se tor
nam seus proprietários: os homens livres tor- 1 60 Quae mercimoniis publiceproefuit. Leg. I, cod.
de natural, liberis. (N. do A.)
161 . . .pessoas. . . É ainda no Padre de Saint-
1 59 Leg. 5, § 2, ÍT. de captivis. (N. do A.) Pierre que Montesquieu pensa.
Capítulo XV
Capítulo XVI
O negócio da Arábia feliz e o das índias traziam eram vendidas em Roma pelo cêntu-
foram os dois ramos, quase os únicos, do plo. Creio que ele fala de uma maneira geral:
comércio exterior. Os árabes tinham grandes uma vez conseguido este lucro, todos teriam
riquezas; eles as extraíam de seus mares e de querido obtê-lo e, desde esse momento, nin
suas florestas; e, como compravam pouco e guém mais o obteria.
vendiam muito, atraíam1*6 7 para si o ouro e a Podemos pôr em dúvida se era necessário
prata de seus vizinhos. Augusto1 68 conheceu aos romanos fazer o comércio da Arábia e das
sua opulência e resolveu tê-los como amigos, índias. Cumpria que eles enviassem para lá
ou como inimigos. Mandou Élio Galo passar sua prata e eles não tinham, como nós, o recur
do Egito para a Arábia. Ele encontrou povos so da América, que supre o que enviamos.
ociosos, tranquilos e poucos aguerridos. Tra Estou persuadido que uma das razões que fize
vou batalhas, estabeleceu cercos e apenas per ram aumentar, entre eles, o valor numérico das
deu sete soldados; mas a perfídia de seus guias, moedas, isto é, estabelecer o bilhão1 72, foi a
as marchas, o clima, a fome, a sede as molés raridade da prata, causada pelo transporte
tias, as medidas mal tomadas, fizeram-no per contínuo que dela se fazia nas índias. Pois, se
der seu exército. as mercadorias desse país eram vendidas em
Foi preciso, portanto, contentar-se com Roma pelo cêntuplo, este lucro dos romanos
negociar com os árabes, como outros tinham era realizado sobre os próprios romanos e não
feito, isto é, levar a eles ouro e prata em troca enriquecia o império.
de suas mercadorias; a caravana de Alepo e o Poder-se-á dizer, de um lado, que este
navio real de Suez levaram-lhes imensas comércio proporcionava aos romanos grande
somas1 69 navegação, isto é, grande poderio; que merca
A Natureza destinara os árabes ao comércio dorias novas aumentavam o comércio interno,
mas não os destinara à guerra; porém, quando favoreciam as artes, mantinham a indústria;
que o número de cidadãos se multiplicava na
estes povos tranquilos se encontraram nas
proporção dos novos meios que se tinham para
fronteiras dos partos e dos romanos, torna-
viver; que este novo comércio produzia o luxo,
ram-se auxiliares de uns e de outros. Élio Galo
o qual provamos ser tão favorável ao governo
os havia encontrado comerciantes; Maomé os
de um só quanto fatal ao de vários; que este
encontrou guerreiros; infundiu-lhes entusiasmo
estabelecimento é da mesma época que a
e ei-los conquistadores.
queda de sua república; que o luxo de Roma
O comércio dos romanos com as índias era
era necessário; e que cumpria que uma cidade
considerável. Estrabão1 70 fora informado no que atraía todas as riquezas do universo as
Egito que eles empregavam cento e vinte
restituísse pelo seu luxo.
navios: este comércio ainda se sustentava ape Estrabão1 73 diz que o comércio dos roma
nas por seu dinheiro. Enviavam todos os anos nos nas índias era muito mais considerável
cinquenta milhões de sestércios. Plí que o dos reis do Egito; e é singular que os
nio1 71 informa que as mercadorias que daí se romanos, que conheciam pouco o comércio,
tenham tido pelo das índias mais atenção que
1 67 Plínio, liv. VI, cap. XXVIII; e Estrabão, liv. os reis do Egito que o tinham, por assim dizer,
XVI. (N. do A.) sob seus olhos. Cumpre explicar isso.
168 Ibid. (N. do A.)
1 69 As caravanas de Alepo e de Suez aí levaram
dois milhões em nossa moeda e outro tanto passa 1 72 . . .estabelecer o bilhão. . . trata-se da altera
fraudulentamente; o navio real de Suez levou-lhes ção das moedas pela aliagem.
também dois milhões. (N. do A.) 1 73 Diz ele, no liv. II, que os romanos aí emprega
1 70 Liv. II, pág. 181, ed. do ano de 1587. (N. do vam cento e vinte navios; e, no livro XVII, que os
A.) reis gregos para aí enviavam apenas vinte. (N. do
1 71 Liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 323
Capítulo XVII
O império romano foi invadido e um dos A lei1 78 dos visigodos permitia aos parti
efeitos da calamidade geral foi a destruição do culares ocupar a metade do leito dos grandes
comércio. Os bárbaros inicialmente apenas o rios, contanto que a outra ficasse livre para as
consideraram como um objeto de suas pilha redes de pesca e para os barcos; era forçoso
gens; e quando se estabeleceram não o honra que houvesse bem pouco comércio nas regiões
ram mais do que a agricultura e as demais
que eles tinham conquistado.
profissões do povo vencido.
Em pouco tempo quase não houve mais Naquela época, éstabeleceram-se os direitos
comércio na Europa; a nobreza, que reinava
em toda parte, não se interessava por ele. 1 7 8 Liv. VIII, tít. 4, § 9. (N. do A.)
324 MONTESQUIEU
Capítulo XVIII
Regulamento particular
A lei1 82 dos visigodos, entretanto, fez uma entre eles, pelas leis e pelos costumes de sua
disposição favorável ao comércio; ordenou nação. Isto estava baseado no uso estabelecido
que os mercadores que viessem de além-mar
seriam julgados, nos litígios que surgissem entre esses povos mestiços que cada homem
vivesse sob sua própria lei: coisa a que me
182 Liv. XI, tít. III, § 2. (N. do A.) referirei em seguida.
Capítulo XIX
Capítulo XX
tida ou necessária, apenas se transforma em para o príncipe ou para os senhores, das taxas
desonesta a gente que a pratica. que arrecadavam sobre os judeus, e das quais
O comércio passou a uma nação desde eram frustrados quando estes abraçavam o
então coberta de infâmia1*8 4 e logo não foi cristianismo. Nessa época, considerava-se aos
mais distinguido das usuras mais horríveis, homens como terras. E, observo de passagem,
dos monopólios, da arrecadação de subsídios e quanto de um século a outro se trapaceou com
de todos os meios desonestos de aquisição de esta nação. Confiscavam seus bens quando
dinheiro. eles desejavam ser cristãos e, logo depois, quei
Os judeus185, enriquecidos pelas exações, mavam-nos quando não mais desejavam sê-lo.
Entretanto, vimos o comércio sair do seio
eram pilhados pelos príncipes com a mesma
da vexação e do desespero. Os judeus, prescri
tirania: coisa que consolava os povos e não os
tos sucessivamente de cada país, encontraram
aliviava.
meios de salvar seus efeitos189 . Com isso,
O que se passou na Inglaterra dá uma idéia tornaram para sempre suas retiradas fixas,
do que se fez nos demais países. Tendo o Rei pois o príncipe que quisesse se desfazer deles
João1 8 6 mandado aprisionar os judeus para não estaria igualmente disposto a desfazer-se
apoderar-se de seus bens, poucos dentre eles do seu dinheiro.
deixaram de ter, pelo menos, um olho perfura Eles190 Inventaram as letras de câmbio e,
do: este rei fazia assim sua câmara de justiça. com isso, o comércio pôde afastar-se da vio
Um deles, a quem se arrancaram sete dentes, lência e manter-se em toda parte, não tendo o
um cada dia, deu dez. mil marcos de prata no negociante mais rico senão bens invisíveis, que
oitavo. Henrique III arrancou de Aaron, judeu podiam ser enviados a toda parte, em nenhuma
de York, quatorze mil marcos de prata, e dez deixando vestígios.
mil para a rainha. Nesses tempos fazia-se Os teólogos foram obrigados a restringir
violentamente o que hoje se faz com modera seus princípios; e o comércio, que fora violen
ção na Polônia. Não podendo os reis revistar tamente associado à má fé, entrou, por assim
as bolsas de seus súditos, por causa de seus dizer, no seio da probidade.
privilégios, mandavam torturar os judeus, os Destarte, devemos às especulações esco-
quais não eram considérados cidadãos. lásticas todas as desgraças191 que acompa
Finalmente, introduziu-se um costume que nharam a destruição do comércio; e, à avareza
confiscou todos os bens dos judeus que abra dos príncipes, o estabelecimento de uma coisa
çaram o cristianismo. Este costume tão estra que o coloca, de algum modo, fora do poder.
nho, nós o conhecemos através da lei1 8 7 que o Foi necessário, a partir dessa época, que os
ab-rogou. Para isso razões bem fúteis foram príncipes se governassem com mais prudência
dadas; disse-se que se queria experimentá-los, que eles próprios teriam imaginado, pois, com
e fazer com que nada restasse da escravidão do o acontecimento, os grandes atos de autori
demônio. Mas é evidente que esta confiscação dade se revelaram tão inábeis, que se tornou
era uma espécie de direito1 88 de amortização, uma experiência aceita que nada mais do que a
bondade do govêrno acarreta prosperidade.
Começamos a nos curar dó maquiavelismo
1 8 4 Montesquieu parece ter querido apenas assina
lar aqui o estado de reprovação a que estavam sujei e curar-nos-emos todos os dias. Faz-se neces
tos os judeus. sária mais moderação nos conselhos. O que
1 8 5 Vede, em Marca Hispanica, as constituições de outrora chamaríamos de golpes de Estado, não
Aragão, dos anos de 1228 e 1231;.e, em Brussel, o
acordo do ano de 1206, assinado entre o rei, a Con
dessa de Champagne e Guy de Dampierre. (N. do 189 ... seus efeitos. . . efeitos no sentido de “va
A.) lores mobiliários”.
1 8 6 Slowe, in his Survey of London, liv. III, pág. 1 90 Sabemos que, no reinado de Filipe Augusto e
54. (N. do A.) de Filipe, o Longo, os judeus, expulsos da França,
18 7 Edito lavrado em Bâville, em 4 de abril de refugiaram-se na Lombardia, e, desta região, entre
1392. (N. do A.) garam aos negociantes estrangeiros e aos viajantes
188 Na França, os judeus eram servos, mão-mor- letras secretas contra os que lhes tinham confiscado
táveis e os senhores lhes sucediam. Brussel relata os efeitos na França, e que foram pagas. (N. do A.)
um acordo do ano de 1206, entre o rei e Thibaut, 191 Vede, no Corpo do Direito, a 83.* novela de
conde de Champagne, pelo qual se estabelecia que Leão, que revoga a lei de seu pai, Basílio. Esta lei de
os judeus de um não poderíam emprestar em terras Basílio encontra-se no Harmenopule, sob o nome de
de outro. (N. do A.) Leão, liv. III, tít. VII, § 27. (N. do A.)
326 MONTESQUIEU
passaria, atualmente, de imprudências, inde- numa situação em que, enquanto suas paixões
pendentemente do horror. lhes inspiram o pensamento de ser maus, têm,
E é uma felicidade para os homens estar entretanto, o interesse de não o ser.
Capítulo XXI
com os povos vizinhos, com os quais todas as O extremo afastamento de nossas colônias
vantagens são recíprocas. Estabeleceu-se que não é inconveniente para sua segurança, pois,
somente a metrópole poderia negociar na colô se a metrópole está distanciada para defendê-
nia; e isso com grande razão, porque a finali las, as nações rivais da metrópole também
dade do estabelecimento foi a extensão do estão para conquistá-las.
comércio e não a fundação de uma cidade ou
Demais, este afastamento faz com que os
de um novo império.
Assim, é ainda uma lei fundamental da Eu que aí se vão estabelecer não possam adotar o
ropa que todo comércio com uma colônia modo de viver de um clima tão diferente; são
estrangeira seja considerado como um puro obrigados a perder todas as comodidades da
monopólio19 5 punível pelas leis do país; e isso vida do país de origem. Os cartagineses200,
não deve ser julgado pelas leis e pelos exem para tornar os sardos e os corsos mais depen
plos dos antigos19 6 povos, que não são aqui dentes, lhes tinham proibido, sob pena de
aplicáveis. morte, de plantar, semear ou de fazer qualquer
É igualmente estabelecido que o comércio
coisa semelhante a isso; enviavam-lhes víveres
efetuado entre as metrópoles não acarreta per
da África. Chegamos ao mesmo ponto sem
missão para as colônias, que permanecem
sempre em estado de proibição. estatuir leis tão severas. Nossas colônias das
A desvantagem das colônias, que perdem a ilhas das Antilhas são admiráveis; têm objeti
liberdade de comércio, é visivelmente compen vos de comércio que não temos nem podemos
sada pela proteção da metrópole197, que a ter; falta-lhes o que forma o objeto do nosso.
defende com suas armas, ou a mantém com O resultado da descoberta da América foi
suas leis. unir a Europa, a Ásia e a América. A América
Conclui-se daí uma terceira lei da Europa, fornece à Europa a matéria de seu comércio
que, quando o comércio estrangeiro é proibido com essa vasta parte da Ásia que se chama ín
com a colônia, não se pode navegar em seus dias Orientais. A prata, esse metal tão útil ao
mares senão em casos estabelecidos em trata comércio como símbolo, foi também a base do
dos. maior comércio do universo como mercadoria.
As nações, que estão em relação com todo o
Finalmente, a navegação da África se tornou
universo como os particulares estão em rela
ção com um Estado, se governam entre si pelo necessária: fornecia homens para o trabalho
direito natural e pelas leis que estabeleceram. das minas e das terras da América.
Um povo pode ceder a outro o mar, tal como A Europa atingiu um grau de poderio tão
pode ceder a terra. Os cartagineses exigi alto, que a História nada apresenta de compa
ram198 dos romanos que estes não navegas rável, se consideramos a imensidade das des
sem além de certos limites, como os gregos ti pesas, a grandeza dos empreendimentos, o nú
nham exigido do rei da Pérsia que se mero de tropas e a continuidade de sua
mantivesse sempre afastado das costas do manutenção, mesmo quando são as mais inú
mar1", à distância da corrida de um cavalo. teis e são mantidas apenas como ostentação.
O Padre du Halde201 afirma que o comér
cio interior da China é maior do que o de toda
1 9 5 Por “monopólio” Montesquieu entende, como
o direito antigo, toda associação não autorizada a Europa. Isso seria verdadeiro se nosso
pela lei. comércio exterior não aumentasse o interior. A
19 6 Excetuando-se os cartagineses, como vemos Europa faz o comércio e a navegação de três
pelo tratado que terminou a primeira guerra púnica. outras partes do mundo; como a França, a
(N. do A.)
1 9 7 Metrópole é, na linguagem dos antigos o Esta Inglaterra e a Holanda fazem aproximada
do que fundou a colônia. (N. do A.) mente a navegação e o comércio da Europa.
198 Políbio, liv. III. (N. do A.)
199 O rei da Pérsia se comprometeu, por um trata
do, a não navegar com nenhum barco de guerra 200 Aristóteles, Das Coisas Maravilhosas. Tito
além das rochas Cianéias e das ilhas Quelidônias. Lívio, liv. VII da Década II. (N. do A.)
Plutarco, Vida de Cimon. (N. do A.) 201 T. II, pág. 170. (N. do A.)
328 MONTESQUIEU
Capítulo XXII
Se a Europa202 encontrou tantas vantagens magnificência dos templos dos deuses e dos
no comércio com a América, seria natural palácios dos reis, não os procuravam com a
acreditar que a Espanha obteve as maiores. mesma avareza que nós; enfim, eles não
Ela extraiu do mundo recentemente descoberto conheciam o segredo da extração dos metais
uma quantidade de ouro e de prata tão prodi de todas as minas, mas somente das que a
giosa, impossível de comparar-se com o que separação era feita pelo fogo, não conhecendo
até eritão se tinha. a maneira de empregar o mercúrio, nem talvez
Porém (o que nunca se teria suspeitado), a o próprio mercúrio.
miséria fê-la malograr quase em toda parte. Fi A prata20 4, no entanto, não deixou de do
lipe II, que sucedeu a Carlos V, foi obrigado a brar muito rapidamente na Europa, o que se
fazer a célebre bancarrota que toda gente revela pelo fato de o preço de tudo que se com
conhece203, e quase nunca houve príncipe que prava ter-se tornado aproximadamente o
tenha sofrido mais do que ele murmúrios, inso dobro.
lências e revolta de suas tropas, sempre mal Os espanhóis escavaram as minas, abriram
pagas. as montanhas, inventaram máquinas para
A partir dessa época, a monarquia espa esvaziar a água, quebrar o minério e separá-lo;
nhola declinou incessantemente. Ê que existia e, como menosprezavam a vida dos indígenas,
um vício interno e físico na natureza dessas fizeram-nos, trabalhar sem descanso. A prata
riquezas que as tornava inúteis; e esse vício logo duplicou na Europa, o lucro diminuiu
aumentou todos os dias. sempre da metade para a Espanha, que cada
O ouro e a prata são uma riqueza de ficção ano só obtinha a mesma quantidade de um
ou de símbolo. Esses símbolos são muito durá metal que se tornara a metade menos precioso.
veis e se destroem pouco, como convém à sua
No dobro do tempo, a prata duplicou ainda,
natureza. Quanto mais se multiplicam, mais
e o lucro diminuiu ainda da metade.
perdem seu preço, porque representam menos
Diminuiu mesmo mais da metade: eis como.
coisas.
Para extrair o ouro das minas, para dar-lhe
Quando da conquista do México e do Peru,
as preparações necessárias e transportá-lo
os espanhóis abandonaram as riquezas natu
para a Europa, era preciso alguma despesa.
rais para apoderar-se das riquezas de símbolo
Suponho que ela estivesse como 1 está para
que por si próprias se aviltavam. O ouro e a
64: quando a prata duplicou uma vez, e conse
prata eram muito raros na Europa, e a Espa
quentemente tornou-se pela metade menos pre
nha, senhora, repentinamente, de imensa quan
ciosa, a despesa esteve como 2 está para 64.
tidade desses metais, concebeu esperanças que
Assim, as frotas que trouxeram para a Europa
jamais tivera. As riquezas encontradas nas
a mesma quantidade de ouro, trouxéram uma
regiões conquistadas não eram, entretanto,
coisa que realmente valia a metade menos e
proporcionais às de suas minas. Os índios
custava a metade mais.
ocultaram parte delas; e, demais, estes povos,
Se acompanharmos o fato, de duplicação
que só utilizavam o ouro e a prata para a
em duplicação, encontraremos a progressão da
causa da impotência das riquezas da Espanha.
202Isso foi publicado, há mais de vinte anos, numa Há cerca de duzentos anos que se trabalham
pequena obra manuscrita do autor, que foi quase
inteiramente fundida nesta obra*. (N. do A.) as minas das índias. Suponho que a quanti
*A “pequena obra” a que Montesquieu se refere em dade de prata que atualmente existe no mundo
sua nota “teria sido impressa pelo menos em pro que comercia esteja para aquela que existia
vas”, segundo Walcknaer. (Ver, a este respeito, a antes da descoberta como 32 está para 1, ou
nota da edição Laboulaye, t. IV, pág. 467, n.° 1).
203Esta bancarrota foi devida sobretudo ao acrés
cimo das despesas militares, como já foi observado. 2 0 4 ... a prata ... a quantidade de prata.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 329
seja, que tenha duplicado cinco vezes: em É verdade que os holandeses, pelo comércio
duzentos anos ainda a mesma quantidade será que praticaram nas índias Orientais, deram
a que estava, antes da descoberta, como 64 algum valor à mercadoria dos espanhóis, pois,
está para 1, o que vale dizer que ela duplicou como eles trouxeram a prata para trocar com
também. Ora, atualmente, cinquenta2 0 5 quin mercadorias do Oriente, aliviaram, na Europa,
tais de minério por ouro dão quatro, cinco e os espanhóis de uma parte de seus gêneros que
seis onças de ouro; e, quando há apenas dois, o ali existiam em abundância.
mineiro pode cobrir seus gastos. Em duzentos E este comércio, que apenas indiretamente
anos, quando existirem apenas quatro, o parece dizer respeito à Espanha, é-lhe vanta
mineiro também só cobrirá seus gastos. Have joso como às próprias nações que o fazem.
rá, portanto, pouco lucro a se obter do ouro.
Aplica-se o mesmo raciocínio para a prata, Por tudo o que acaba de ser dito, podemos
excetuando-se que o trabalho das minas de julgar das ordenanças do Conselho da Espa
prata é um pouco menos vantajoso que o das nha, que proíbe o emprego de ouro e de prata
minas de ouro. em douraduras e outras superfluidades: decre
Ainda que se descubram minas tão abun to semelhante aos que fariam os Estados da
dantes que dêem mais lucro, quanto mais Holanda, se eles proibissem o consumo da
abundantes forem elas, mais rapidamente o canela.
lucro desaparecerá. Meu raciocínio não se estende a todas as
Os portugueses encontraram tanto ouro20 6 minas: as da Alemanha e da Hungria, das
no Brasil, que será forçoso que o lucro dos quais se retira apenas pouca coisa acima do
espanhóis diminua consideravelmente dentro lucro, são muito úteis. Elas situam-se no Esta
em breve, e o dos portugueses também. do principal e aí empregam vários milhares de
Ouvi amiúde deplorarem a cegueira do Con homens que consomem gêneros superabun-
selho de Francisco I que repeliu Cristóvão dantes: são propriamente uma manufatura da
Colombo que lhe oferecia as índias20 7. Em região.
verdade, fez ele, talvez por imprudência, uma As minas da Alemanha e da Hungria valori
coisa bem sábia. A Espanha procedeu como zam o cultivo das terras; e o trabalho das do
esse rei insensato208 que pediu que tudo o que México e do Peru o destrói.
tocasse se convertesse em ouro, e que foi obri As índias209 e a Espanha são duas potên
gado a retornar aos deuses para suplicar que cias dominadas por um mesmo senhor: mas as
pusessem fim a sua miséria. índias são o principal, e a Espanha apenas o
As companhias e os bancos que diversas
acessório. É inutilmente que a política quer
nações estabeleceram, acabaram de envilecer o
sujeitar o principal ao acessório; as índias
ouro e a prata em sua qualidade de símbolo,
atraem sempre a Espanha para si.
pois, por novas ficções, multiplicaram de tal
De aproximadamente cinquenta milhões de
modo os símbolos dos gêneros, que o ouro e a
mercadorias enviadas anualmente às índias, a
prata apenas parcialmente representaram esse
Espanha só fornece dois milhões e meio: as ín
ofício, tornando-se assim menos preciosos.
Destarte, o crédito público substituiu as dias fazem, portanto, um comércio de cin
minas e diminuiu ainda mais o lucro que os quenta milhões e a Espanha um comércio de
espanhóis tiravam das suas. dois milhões e meio.
É uma má espécie de riqueza, um tributo
20 5 veíje as obras de Frézier. (N. do A.) acidental que não depende da indústria da
20 6De acordo com Milorde Anson, a Europa recebe nação, do número de seus habitantes, nem do
do Brasil, anualmente, cerca de dois milhões de cultivo de suas terras. O rei da Espanha, que
esterlinos em ouro, que se encontram na areia ao recebe grandes somas de suas aduanas de
sopé das montanhas, ou no leito dos rios. Quando
elaborei a pequena obra à qual me referi na primeira Cádiz, não é, a esse respeito, senão um parti
nota deste capítulo, faltava muito para que as cular muito rico num Estado muito pobre.
exportações do Brasil fossem um objeto tão impor Tudo passa dos estrangeiros para ele sem que
tante quanto atualmente. (Nota acrescentada na edi
ção de 1758.) (N. do A.)
20 7 Cristóvão Colombo morreu em 1506, e Fran 208 ... esse rei insensato... o rei Midas.
cisco I, que subiu ao trono em 1515, não pode, por 209 . . . As índias. . . as índias Ocidentais, a Amé
tanto, ter recebido suas propostas. rica, como no capítulo seguinte.
330 MONTESQUIEU
os súditos tenham alguma participação; este riquezas somente poderíam ser o efeito das. do
comércio é independente da boa ou má fortuna país; estas províncias estimulariam todas as
de seu reino. demais; e, todas reunidas, estariam mais aptas
Se algumas províncias, na Castela, lhe a suportar os respectivos encargos: em lugar
proporcionassem uma soma semelhante à de de um grande tesouro, ter-se-ia um grande
Câdiz, seu poderio seria bem maior: suas povo.
Capítulo XXIII
Problema
Não me cabe pronunciar sobre á questão se, quando estas são de preço vil. Talvez fosse útil
a Espanha não podendo fazer o comércio das que essas nações se prejudicassem mutua
índias por si mesma, ser-lhe-ia melhor que o mente a fim de que as mercadorias que trans
tornasse permitido a estrangeiros. Direi so portam para as índias fossem sempre baratas.
mente que lhe é conveniente levantar o menor Eis princípios que cumpre examinar, sem
número possível de obstáculos a esse comércio entretanto separá-los de outras considerações:
quanto sua política possa lhe permitir. Quando a segurança das índias, a utilidade de uma
as mercadorias que as diversas nações levam alfândega única, os perigos de uma grande
às índias são aí caras, as índias dão muito de mudança, os inconvenientes que se preveem e
sua mercadoria, que é ouro e prata, por pouca que, amiúde, são menos perigosos que os
mercadoria estrangeira; ocorre o contrário imprevistos.
LIVRO VIGÉSIMO SEGUNDO
DAS LEIS EM SUA RELAÇÃO
COM O USO DA MOEDA
Capítulo I
Os povos que possuem poucas mercadorias Tendo todas as nações necessidades recípro
para o comércio, como, por exemplo, os selva cas, acontece frequentemente desejar uma
gens e os povos policiados que apenas pos nação um número muito grande de mercado
suem duas ou três espécies delas, negociam por rias de outra, e esta muito pouca das daquela,
troca. Destarte, as caravanas dos mouros que enquanto, no que diz respeito à outra nação,
vão a Tombuctu, no coração da África, trocar encontra-se em situação contrária. Porém,
sal com ouro não têm necessidade de moeda.
quando as nações possuem uma moeda e pro
O mouro põe seu sal num monte; o negro, seu
cedem por compra e venda, as que adquirem
pó em outro; se não há bastante ouro, o mouro
diminui seu sal, ou o negro acrescenta ouro até mais mercadorias ficam quites, ou pagam o
que as partes estejam de acordo. excedente com dinheiro; e há esta diferença
Porém, quando um povo trafica com grande que, no caso da compra, o comércio se faz na
número de mercadorias, é necessário existir proporção das necessidades da nação que mais
moeda, porque um metal fácil de transportar exige; e que, na troca, o comércio faz-se
poupa muitos gastos que deveríam obrigatoria somente na medida das necessidades da nação
mente ser feitos se se procedesse sempre por que menos exige, sem o que esta última ver-se-
troca. ia na impossibilidade de saldar sua conta.
Capítulo II
Da natureza da moeda
A moeda é um signo que representa o valor Não tendo o uso dos metais, os atenienses se
de todas as mercadorias. Usa-se qualquer serviram de bois211 e os romanos, de ovelhas;
metal para que o símbolo seja durável210, se mas um boi não é a mesma coisa que outro
desgaste pouco com o uso e, sem se destruir, boi, como uma peça de metal pode ser a
seja capaz de muitas divisões. Escolheu-se um mesma que outra.
metal precioso, para que o símbolo possa ser Como o dinheiro é símbolo do valor das
facilmente transportado. O metal é muito ade mercadorias, o papel é o símbolo do valor do
quado para ser uma medida comum porque dinheiro; e, quando é bom, representa-o de tal
pode ser facilmente reduzido ao mesmo título. modo que, quanto ao efeito, não há diferença.
Cada Estado nele imprime seu cunho, a fim de Assim como o dinheiro é um símbolo de
que a forma corresponda ao título e ao peso e uma coisa, e o representa, cada coisa é um
que se conheçam um e outro por simples
inspeção. 211 Heródoto, in Clio, informa-nos que os lídios
descobriram a arte de cunhar a moeda; os gregos
aprenderam com eles; as moedas de Atenas tiveram
210 O sal utilizado na Abissínia tem o defeito de se como marca seu antigo boi. Vi uma dessas moedas
consumir, de se destruir continuamente. (N. do A.) no gabinete do Conde de Pembrocke. (N. do A.)
334 MONTESQUIEU
Capítulo III
mais ideal. Pode mesmo ocorrer que não se Para suprimir a fonte de abusos, seria uma
faça mais moeda que valha precisamente uma lei muitíssimo boa em todos os países em que
libra, e que não mais se faça uma moeda que se deseja que o comércio floresça, a que orde
valha um soldo; daí, então, a libra e o soldo nasse o emprego de moedas reais e a proibição
serão moedas puramente ideais. Dar-se-á a de operações que possam torná-las ideais.
cada moeda a denominação de tantas libras e Nada deve ser tão isento de variação como
de tantos soidos que se deseje: a variação o que é medida comum de tudo.
poderá ser contínua porque é tão fácil dar O negócio, por si mesmo, é muito incerto, e
nome a uma coisa quanto é difícil mudar a é um grande mal acrescentar uma nova incer
própria coisa. teza à que está baseada na natureza da coisa.
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VII
Capítulo VIII
Os negros da costa da África têm um sím um Estado duplica, será necessário para uma
bolo dos valores sem moeda: é um símbolo macuta o dobro de dinheiro; mas se, dobrando
puramente ideal, baseado no grau de estima o dinheiro, dobrais também as macutas, a pro
que eles atribuem, em seu espírito, a cada porção continuará tal como era antes de uma e
mercadoria, na proporção da necessidade que outra duplicação.
delas têm. Certo gênero ou mercadoria vale Se, desde a descoberta das índias, o ouro e a
três macutas; outra, seis macutas; outra, dez prata aumentaram na Europa na proporção de
macutas; é como se dissessem simplesmente um para vinte, o preço dos gêneros e mercado
três, seis, dez. Estabelece-se o preço pela rias deveria ter subido na proporção de um
comparação que se faz entre todas as merca para vinte. Mas se, de um lado, o número de
dorias; assim sendo, não possuem moeda par mercadorias aumentou de um para dois, será
ticular mas cada porção de mercadoria é necessário que o preço dessas mercadorias e
moeda da outra. gêneros tenha subido, de um lado, na proporçã
Introduzamos momentaneamente entre nós de um para vinte, e que tenha abaixado na pro
essa maneira de avaliar as coisas e acrescente- porção de um para dois, e que não esteja,
mo-la à nossa: todas as mercadorias e gêneros consequentemente, senão na proporção de um
do mundo, ou então todas as mercadorias ou para dez.
gêneros de um Estado em particular, conside A quantidade de mercadorias e gêneros
rado como separado de todos os demais, vale cresce com o aumento do comércio; o aumento
rão certo número de macutas; e, dividindo o do comércio, com o aumento do dinheiro que
dinheiro de certo Estado em tantas partes acorre, sucessivamente, e graças a novas
quantas são as macutas, uma parte dividida comunicações com novas terras e novos
desse dinheiro será o símbolo de uma macuta. mares, que nos proporcionam novos gêneros e
Supondo que a quantidade de dinheiro de novas mercadorias.
Capítulo IX
Além da abundância e da raridade positiva prata se torna comum, porque cada um o tem
do ouro e da prata, há ainda uma abundância para esconder; o ouro reaparece quando a
e uma raridade relativa de um desses metais prata se torna rara, porque se é obrigado a reti
para o outro. rá-lo de seus esconderijos.
A avareza guarda o ouro e a prata porque, E, portanto, uma regra: o ouro é comum
como ela não pretende consumir, aprecia sím quando a prata é rara, e o ouro é raro quando
bolos que não se destroem. Prefere guardar o a prata é comum. Isso mostra a diferença da
ouro à prata porque sempre receia perder e abundância e da raridade relativa com a abun
pode esconder melhor o que tem menor volu dância e a raridade real: coisas de que muito
me. O ouro desaparece, portanto, quando a falarei.
338 MONTESQUIEU
Capítulo X
Do câmbio
É a abundância e a raridade relativa das Há na Holanda uma moeda chamada flo
moedas dos diversos países que formam o que rim; o florim vale vinte soidos, ou quarenta
chamo câmbio. meios soidos, ou grossos2 2 7. Para simplificar
O câmbio é uma fixação do valor atual e as idéias imaginemos que não existam florins
momentâneo das moedas. na Holanda e que só existam grossos: um
O dinheiro, como metal, tem um valor como homem que possuir mil florins terá quarenta
todas as demais mercadorias; e tem ainda um mil grossos, e assim por diante. Ora, o câmbio
valor que decorre do fato de ser capaz de se com a Holanda consiste em saber quantos
tornar o símbolo de outras mercadorias; e se grossos valerá cada moeda dos outros países; e
fosse apenas uma simples mercadoria, não se como se conta, ordinariamente, na França, por
pode duvidar que perdería muito de seu preço. escudos de três libras, o câmbio indagará
O dinheiro, como moeda, tem um valor que quantos grossos valerá um escudo de três
o príncipe pode fixar em algumas relações e libras. Se o câmbio estiver a cinquenta e qua
que não poderia fixar em outras. tro, o escudo de três libras valerá cinquenta e
O príncipe, l.°, estabelece uma proporção quatro grossos; se estiver a sessenta valerá ses
entre uma quantidade de dinheiro como metal senta grossos; se o dinheiro estiver raro na
e a mesma quantidade como moeda; 2.°, fixa a França, o escudo de três libras valerá mais
que há entre diversos metais empregados como grossos; se estiver abundante valerá menos
moeda; 3.°, estabelece o peso e o título de cada grossos.
peça de moeda; enfim, dá a. cada peça este Esta raridade ou esta abundância, de que
valor idea! de que já falei; chamarei o valor da resulta a mutação do câmbio, não é a raridade
moeda nessas quatro relações de valor positi ou a abundância real; é uma raridade ou abun
vo, porque pode ser fixado por uma lei. dância relativa; por exemplo: quando a França
As moedas de cada Estado têm, além disso, tem mais necessidade de ter fundos na Holan
um valor relativo, no sentido que são compara da do que os holandeses têm necessidade de
das com as moedas de outros países: é este tê-los na França, o dinheiro é chamado
valor relativo que o câmbio estabelece. Ele comum na França e raro na Holanda; e
muito depende do valor positivo. É estabele vice-versa.
cido pela estimação mais geral dos negociantes
e não pode sê-lo pela ordenança do príncipe Suponhamos que o câmbio com a Holanda
porque varia incessantemente e depende de mil esteja a cinquenta e quatro. Se a França e a
circunstâncias. Holanda formassem apenas uma cidade, pro-
Para fixar o valor relativo, as diversas ceder-se-ia tal qual quando se dá a moeda de
nações se regulamentarão muito pela que tem um escudo: o francês tiraria de seu bolso três
mais dinheiro. Se ela tem tanto dinheiro quan libras e o holandês tiraria do seu cinquenta e
to todas as outras juntas, será muito necessário quatro grossos. Porém, como Paris é distante
que cada uma se compare com ela; o que fará de Amsterdam, cumpre que o que me dá por
com que elas se regulem aproximadamente meu escudo de três libras cinquenta e quatro
entre si como se comparam com a nação grossos que ele possui na Holanda, me dê uma
principal. letra de câmbio de cinquenta e quatro grossos
No estado atual do universo, é a Holan sobre a Holanda. Não se trata mais, agora, de
da22 6 esta nação de que falamos. Examinemos cinquenta e quatro grossos mas de uma letra
o câmbio em relação a ela. de cinquenta e quatro grossos. Destarte, para
228 Há mais dinheiro num lugar quando há mais 229 Uma vez deduzidos os gastos de transporte e
prata do que papel; há pouco dinheiro quando há de seguro. (N. do A.)
mais papel do que prata. (N. do A.). 230 Em 1744. (N. do A.)
340 MONTESQUIEU
enviando pelo câmbio cinquenta e quatro mil países estrangeiros um dinheiro que nunca
escudos para a Holanda, apenas comprará deve retornar, perde sempre.
mercadorias no valor de cinquenta mil; e que, Quando os negociantes fazem muitos negó
de outro lado, a Holanda, enviando o valor de cios num país, o câmbio sofre infalivelmente.
cinquenta mil escudos para a França, compra Isso decorre do fato de se assumirem muitos
rá no valor de cinquenta e quatro mil, o que compromissos e de se comprarem muitas
determinaria uma diferença de 8/54, ou seja, mercadorias; e sacar-se sobre o país estran
mais de um sétimo de perda para a França; de geiro para pagá-los.
sorte que seria necessário enviar para a Holan Se um príncipe acumula muito dinheiro em
da um sétimo a mais em dinheiro ou em seu Estado, o dinheiro poderá tornar-se raro
mercadoria, o que seria desnecessário se o realmente, e comum relativamente; por exem
câmbio estivesse ao par; e como o mal sempre plo, se, na mesma época, este Estado devesse
aumenta, já que semelhante dívida faria o câm comprar muitas mercadorias no país estran
bio diminuir ainda mais, a França estaria, no geiro, o câmbio baixaria, àpesar de o dinheiro
final, arruinada. Parece, digo, que isso deveria ser raro.
ocorrer, mas não ocorre por causa do princípio O câmbio de todas as praças tende sempre a
que estabelecí alhures231: o de que os Estados se colocar numa certa proporção; e isto reside
sempre tendem a se equilibrar e a procurar sua na natureza da própria coisa. Se o câmbio da
liberação. Assim, apenas emprestam na pro Irlanda com a Inglaterra está mais baixo que o
porção em que podem pagar e só compram na par, e se o da Inglaterra com a Holanda estiver
medida em que vendem. E, tomando o exemplo ainda mais baixo que o par, o da Irlanda com
acima, se o câmbio cai na França de cinquenta a Holanda estará ainda mais baixo; isto é, na
e quatro a cinquenta, o holandês que com razão composta do da Irlanda com a Ingla
prava mercadorias por mil escudos e que paga terra e o da Inglaterra com a Holanda; pois
va cinquenta e quatro mil grossos, não pagará um holandês, que pode fazer vir seus fundos
mais que cinquenta mil se o francês quiser con indiretamente da Irlanda através da Inglaterra,
sentir nisso. Porém, a mercadoria da França se não desejará pagar mais caro para trazê-los
elevará insensivelmente; o lucro será dividido diretamente. Digo que isso deveria ser assim;
entre franceses e holandeses, pois, quando um entretanto, isso não acontece exatamente
negociante pode ganhar, ele partilha facil assim; há sempre circunstâncias que fazem va
mente seu lucro; far-se-á, portanto, uma comu riar as coisas; e a diferença do lucro que há em
nicação do lucro entre o francês e o holandês. sacar numa praça, ou em sacar em outra, cons
Da mesma maneira, o francês, que comprava titui a arte ou a habilidade particular dos
mercadorias da Holanda por cinquenta e qua banqueiros, questão que não cabe tratar aqui.
tro mil grossos, e que pagava com mil escudos Quando um Estado eleva sua moeda, por
quando o câmbio estava a cinquenta e quatro, exemplo, quando chama de seis libras ou dois
seria obrigado a acrescentar 4/54 a mais em escudos o que chamava apenas de três libras
escudos da França para comprar as mesmas ou um escudo, esta nova denominação, que
mercadorias. Mas o comerciante francês, que nada acrescenta de real ao escudo, não deve
percebera a perda que teria, quererá dar menos proporcionar um só grosso a mais pelo câm
pela mercadoria da Holanda. Ocorrerá, por bio. Não se deveria ter, para os dois novos
tanto, uma comunicação de perda, entre o escudos, senão a mesma quantidade de grossos
comerciante francês e o holandês; o Estado que se recebia pelo antigo; e, se isso não acon
colocar-se-á insensivelmente na balança e a tece, não é absolutamente por efeito da fixação
baixa do câmbio não terá todos os inconve em si mesma, mas do efeito que ela produz
nientes que se deveria temer. como nova e do que produz como súbita. O
Quando o câmbio está mais baixo que o par, câmbio diz respeito a negócios começados e só
um negociante pode, sem diminuir sua fortuna, se regula depois de um certo tempo.
remeter seus fundos aos países estrangeiros; Quando um Estado, em lugar de elevar
porque, trazendo-os de volta, torna a ganhar o simplesmente sua moeda por uma lei, faz nova
que perdeu; mas um príncipe que só envia a fundição a fim de fazer de uma moeda forte
uma moeda mais fraca, acontece que, durante
2 31 Vede o liv. XX, cap. XXIII. (N. do A.) o tempo da operação, há dois tipos de moedas;
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 341
a forte, que é a velha, e a fraca, que é a nova; fará elevar o câmbio até o ponto em que se
e como a forte está depreciada e só é recebida terão, com pequena diferença, tantos grossos
na Casa da Moeda e como, consequentemente, pelo câmbio de um escudo de três libras quan
as letras de câmbio devem ser pagas em espé to se teria fazendo sair do país um escudo de
cies novas, parece que o câmbio deveria regu- três libras em espécies antigas. Digo com
lar-se de acordo com a espécie nova. Se, por pequena diferença porque quando o lucro for
exemplo, o enfraquecimento na França era da módico não se será tentado a fazer sair a espé
metade e se o antigo escudo de três libras desse cie, por causa dos gastos de transporte e dos
sessenta grossos na Holanda, ,o novo escudo riscos do confisco.
deveria valer apenas trinta grossos. De outro Convém dar uma idéia bem clara disso. O
lado, parece que o câmbio se deveria regular Senhor Bernard, ou qualquer outro banqueiro
sobre o valor da espécie velha, porque o ban que o Estado queira empregar, oferece suas le
queiro que tem dinheiro e que adquire letras é tras sobre a Holanda, e as entrega a um, dois
obrigado a entregar à Casa da Moeda as espé ou três grossos acima do câmbio atual; estabe
cies velhas, para adquirir as novas sobre as leceu uma provisão nos paísés estrangeiros por
quais ele perde. O câmbio se colocará, pois, meio das espécies antigas que ele mandou
entre o valor da espécie nova e o da espécie transportar continuamente; portanto, fez com
velha. O valor da espécie velha cai, por assim que o câmbio se elevasse ao ponto que acaba
dizer, porque já há no comércio espécie nova, e mos de dizer. Entretanto, à força de dar suas
porque o banqueiro não pode manter rigor, letras, apoderou-se de todas as espécies novas,
tendo interesse em fazer sair prontamente o e força os outros banqueiros, que têm paga
dinheiro velho de sua caixa para fazê-lo circu mentos a fazer, a levar suas espécies antigas à
lar, sendo mesmo forçado a isso para fazer Casa da Moeda; e, além disso, como obteve
seus pagamentos. Por outro lado, o valor da insensivelmente todo o dinheiro, forçou, por
espécie nova eleva-se, por assim dizer, porque sua vez, os demais banqueiros a lhe darem le
o banqueiro, com a espécie nova, se encontra tras a um câmbio muito alto; o lucro final o
numa circunstância onde iremos ver que ele indeniza em grande parte da perda inicial.
pode, com grande vantagem, obter a antiga. O Percebemos que, durante toda esta opera
câmbio colocar-se-á, portanto, como disse, ção, o Estado deve sofrer violenta crise. O
entre a espécie nova e a espécie velha. Então, dinheiro tornar-se-á muito raro: l.° porque é
os banqueiros lucrarão fazendo sair a espécie necessário depreciar-lhe a maior parte; 2.° por
antiga do Estado, porque obtêm com isso a que será necessário transportar uma parte para
mesma vantagem que proporcionaria uma os países estrangeiros; 3.° porque todos o guar
troca regulada sobre a espécie antiga, ou seja, darão, e ninguém desejará deixar ao príncipe
muitos grossos na Holanda; e têm um retorno um lucro que se espera obter para si mesmo. É
em câmbio, regulado entre a espécie nova e a perigoso fazer esta operação com lentidão: é
espécie antiga, isto é, mais baixo; o que perigoso fazê-la muito rapidamente. Se o lucro
proporciona muitos escudos na França. pressuposto é imoderado, os inconvenientes
Suponho que três libras da espécie antiga aumentam na mesma medida.
rendam, pelo câmbio atual, quarenta e cinco Vimos acima que, quando o câmbio estava
grossos e que, transportando esse mesmo escu mais baixo que a espécie, era lucrativo fazer
do para a Holanda, obtenha-se por ele sessen sair o dinheiro: pela mesma razão, quando ele
ta; mas, com uma letra de quarenta e cinco está mais alto que a espécie, é lucrativo fazê-lo
grossos, obter-se-á um escudo de três libras na retornar.
França, o qual, transportado em espécie para a Porém, há um caso em. que é lucrativo fazer
Holanda, dará ainda sessenta grossos: toda sair a espécie quando o câmbio está ao par; é
espécie antiga sairá, portanto, do Estado que quando é enviada a países estrangeiros para
faz a refundição, e o lucro será dos banqueiros. ser remarcada ou refundida. Quando retorna,
Para remediar isso, scr-se-á forçado a obtém-se lucro para a Casa da Moeda, seja
empreender nova operação. O Estado que efe empregando-a no país, seja adquirindo-se le
tua a refundição, enviará, ele próprio, grande tras para o estrangeiro.
quantidade de espécies antigas para a nação Se, num Estado, se formasse uma compa
que regula o câmbio; e, ali obtendo um crédito, nhia que tivesse um número muito conside
342 MONTESQUIEU
rável de ações, e se se fizesse, depois de alguns os países estrangeiros faria baixar o câmbio.
meses, elevar essas ações vinte ou vinte e cinco Suponhamos que, no tempo do Sistema, na
vezes acima do valor da primeira compra, e se relação do título e do peso da moeda de prata,
este mesmo Estado tivesse estabelecido um a taxa de câmbio fosse de quarenta grossos por
banco cujas cédulas devessem realizar a fun escudo; se uma inumerável quantidade de
ção da moeda; e se o valor numerário dessas papel fosse transformada em moeda, não mais
cédulas fosse prodigioso, para corresponder ao se desejaria dar senão trinta e nove grossos por
prodigioso valor numerário das ações (é o sis escudo, e, em seguida, trinta e oito, trinta e
tema do Sr. Law), seguir-se-ia da natureza da sete, etc. Isto iria tão longe, que não se dariam
coisa que estas ações e cédulas anular-se-iam mais que oito grossos e, finalmente, não mais
da mesma maneira como teriam sido estabele haveria câmbio.
cidas. Não se poderia elevar repentinamente as Era o câmbio que devia, neste caso, regular
ações vinte ou vinte e cinco vezes acima de seu na França a proporção da prata com o papel.
primeiro valor, sem oferecer a muitos o meio Supondo que, pelo peso e título da prata, o es
de obter imensas riquezas em papel: cada um cudo de três libras valesse quarenta grossos e
procuraria assegurar sua fortuna e, como o que se realizando o câmbio em papel, o escudo
câmbio oferece a via mais fácil para desnatu- de três libras em papel valesse apenas oito
rá-la, ou para transportá-la para onde se quei grossos, a diferença seria de quatro quintos. O
ra, remeter-se-ia incessantemente uma parte de escudo de três libras em papel valeria portanto
seus efeitos para a nação que regulamenta o quatro quintos a menos que o escudo de três li
câmbio. Um projeto contínuo de remeter para bras em prata.
Capítulo XI
Certas medidas de autoridade tomadas na Não nos resta monumento da maneira como
França atual, com relação às moedas, em dois os romanos fizeram sua operação na Primeira
ministérios consecutivos, os romanos as toma Guerra Púnica; mas a que fizeram na segunda
ram em escala ainda maior, não na época assinala uma prudência admirável. A repú
dessa república corrompida, nem na época blica não se encontrava em situação de saldar
dessa república que não passava de uma anar suas dívidas; o asse pesava duas onças de
quia, mas quando, na força de sua instituição, cobre e o denário, valendo dez asses, valia
pela prudência e pela coragem, depois de ter vinte onças de cobre. A república cunhou asses
vencido as cidades da Itália, ela disputava o de uma onça de cobre233; ganhou metade
império aos cartagineses. sobre seus credores2 3 4; pagou um denário
Sinto-me bastante inclinado a aprofundar com essas dez onças de cobre. Essa operação
um pouco esta matéria, a fim de que não se produziu grande abalo no Estado; era neces
tome por um exemplo o que não o é. sário que ele fosse o menor possível; continha
Na Primeira Guerra Púnica232, o asse, que uma injustiça; era preciso que fosse a menor
devia ser de doze onças de cobre, não pesava possível. Tinha como objetivo a libertação da
mais do que duas; e, na Segunda Guerra Púni república em face de seus cidadãos, não era
ca, não pesava mais do que uma. Esta redução necessário que tivesse o da libertação dos cida
corresponde ao que chamamos atualmente dãos entre si. Isto levou a efetuar uma segunda
aumento das moedas. Retirar de um escudo de operação; e ordenou-se que o denário, que até
seis libras a metade da prata para convertê-lo então só continha dez asses, contivesse dezes-
em dois, ou fazê-lo valer doze libras, é precisa
mente a mesma coisa.
233 Plínio, Hist. Hat., liv. XXXIII, art. 13. (N. do
A.)
232 Plínio, Hist. Nat., liv. XXXIII, art. 13. (N. do 23 4 Em só pagando metade das dívidas, uma sim
A.) ples falência.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 343
seis. O resultado dessa dupla operação foi que, nas de um quinto, a mudança real na moeda
enquanto os credores da república perdiam a era somente de um quinto; é fácil perceber as
metade23 5, os dos particulares só perdiam um outras consequências.
quinto2 3 6; as mercadorias aumentavam ape- Os romanos se conduziram, portanto, me
lhor do que nós, que envolvemos, em nossas
operações, quer as fortunas públicas, quer as
23 5 Eles recebiam dez onças de cobre por vinte.
(N. do A.) fortunas particulares. Isto não é tudo; veremos
23 6 Recebiam dezesseis onças de cobre por vinte. como procederam em circunstâncias mais
(N. do A.) favoráveis que as nossas.
Capítulo XII
Antigamente havia muito pouco ouro e prata e o cobre não mais se podendo manter,
prata na Itália. Este país possui poucas ou efetuou diversas operações que não conhece
nenhumas minas de ouro e de prata. Quando mos sobre as moedas. Sabemos apenas que, no
Roma foi tomada pelos gauleses, não se encon começo da Segunda Guerra Púnica, o denário
trou nela mais que mil libras de ouro23 7. romano não valia mais que vinte onças de
Entretanto, os romanos haviam saqueado mui cobre2 41; e que assim a proporção entre a
tas cidades poderosas e transportado suas prata e o cobre não mais era de 1 para 160. A
riquezas para Roma. Durante muito tempo só redução era considerável, pois a república ga
se serviram de moedas de cobre; só depois da nhou cinco sextos sobre toda moeda de cobre.
paz de Pirro contaram com prata suficiente Mas se fez apenas o que a natureza da coisa
para dela fazerem moedas238. Cunharam exigia e restabeleceu-se a proporção entre os
denários desse metal que valiam dez asses239 metais que serviam de moeda.
ou dez libras de cobre. Desde então, a propor A paz que pôs fim à Primeira Guerra Púni
ção da prata para o cobre era como de 1 para ca deixou os romanos senhores da Sicília.
960, pois o denário romano, valendo dez asses Logo eles entraram na Sardenha, começaram a
ou dez libras de cobre, valia cento e vinte conhecer a Espanha: a massa de prata aumen
onças de cobre; e o mesmo denário, valendo tou ainda em Roma. Fez-se a operação que
um oitavo de onça de prata2 40, estabelecia a reduziu o denário de prata de vinte onças para
proporção que acabamos de indicar. dezesseis2 42, que teve como consequência
Roma, tornando-se senhora dessa parte dat restabelecer a proporção entre a prata e o
Itália, a mais próxima da Grécia e da Sicília, cobre; esta proporção era de 1 para 160; pas
encontrou-se pouco a pouco entre dois povos sou a ser de 1 para 128.
ricos: os gregos e os cartagineses; séu dinheiro
aumentou; e a proporção de 1 para 960 entre a Examinai os romanos; nunca os encontra
reis tão superiores como na escolha das
circunstâncias nas quais praticaram os bens e
2 3 7 Plínio, liv. XXXIII, art. 5. (N. do A.) os males.
238 Freinshemius, liv. V da Década II. (N. do A.)
239 Ibid. loco citato. Cunharam igualmente, diz o
mesmo autor, meios denominados quinários, e.quar- 241 Plínio, Hist. Nat., liv. XXXIII, art. 13. (N. do
tos denominados sestércios. (N. do A.) A.)
2 40 Um oitavo, segundo Budée; um sétimo, segun 2 42 Plínio, Hist. Nat., liv. XXXIII, art. 13. (N. do
do outros autores. (N. do A.) A.)
344 MONTESQUIEU
Capítulo XIII
Nas operações qqe se efetuaram sobre as mais da metade de liga; a de Alexandre Seve
moedas no tempo das repúblicas, procedeu-se ro2 4 6, dois terços; o enfraquecimento conti
por meio da diminuição: o Estado confiava ao nuou; e no período de Galiano2 4 7 não se via
povo suas necessidades e não pretendia sedu mais do que cobre prateado.
zi-lo. Na época dos imperadores, procedeu-se
Percebe-se que essas operações violentas
por meio da liga. Estes príncipes, reduzidos ao
desespero por suas próprias liberalidades, se não poderíam efetuar-se atualmente: um prín
viram obrigados a alterar as moedas; via indi cipe enganaria a si mesmo e não enganaria
reta, que diminuía o mal e que parecia não ninguém. O câmbio ensinou o banqueiro a
tocá-lo: retirava-se uma parte da dádiva e comparar todas as moedas do mundo e a dar-
ocultaya-se a mão; e, sem que se falasse da lhes o justo valor; o título das moedas não
diminuição do soldo ou das generosidades,
pode mais ser secreto. Se um príncipe lança o
essas se encontravam diminuídas.
bilhão, todos continuam e o fazem em seu
Vemos ainda, nas exposições2*43, medalhas
chamadas forradas que têm apenas uma lâmi lugar; as espécies fortes saem em primeiro
na de prata cobrindo o cobre. Num fragmento lugar, e lhe são devolvidas fracas. Se, como os
do livro LXXVII de Dion2 4 4 há referência a imperadores romanos, ele enfraquece a prata
esta moeda. sem enfraquecer o ouro, verá subitamente o
Dídio Juliano começou o enfraquecimento. ouro desaparecer, e será reduzido à sua má
Sabe-se que a moeda2 4 5 de Caracala tivera prata. O câmbio, como disse no livro prece
dente248, suprimiu as grandes medidas de
2 43 Vede a Science des Médailles, do Padre Jou- autoridade, ou pelo menos seu êxito.
bert, ed. de Paris, 1739, pág. 59. (N. do A.)-
2 4 4 Extrato das Virtudes e dos Vícios. (N. do A.)
2 4 5 Vede Savot, part. II, cap. XII; e o Journal des 2 4 6 Ideml ibid. (N. do A.)
Savants de 28 de julho de 1681, sobre uma desco 2 4 7 Idem, ibid. (N. do A.)
berta de cinquenta mil medalhas. (N. do A.) 2 48 Cap. XXI. (N. do A.)
Capítulo XIV
A Moscóvia deseja sair de seu despotismo e Todos os súditos do império, como escravos,
não o consegue. O estabelecimento do comér não podiam sair, nem fazer sair seus bens, sem
cio exige o do câmbio; e as operações do câm permissão. O câmbio, que possibilita o trans
bio contradizem todas as suas leis. porte de dinheiro de um país para outro, é por
Em 1745, a czarina2 49 estabeleceu uma tanto contraditório com as leis da Moscóvia.
ordenança para expulsar os judeus porque eles O próprio comércio contradiz suas leis. O
tinham enviado para países estrangeiros o povo é composto apenas de escravos ligados
dinheiro dos que tinham sido exilados na Sibé às terras, e de escravos chamados eclesiásticos
ria e o dos estrangeiros que estavam a serviço. ou gentis-homens, porque são os senhores des
ses escravos. Sobram, pois, poucas pessoas
2 49 A Czarina Isabel, filha de Pedro, o Grande para o terceiro estado, que deve formar os ope
(1710-1762). rários e os comerciantes.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 345
Capítulo XV
Em algumas regiões da Itália estabelece outra, é uma má lei a que não permite dispor,
ram-se leis para impedir que os súditos vendes para seus negócios, dos fundos territoriais,
sem suas propriedades rurais para transportar uma vez que se pode dispor de seu dinheiro.
seu dinheiro para países estrangeiros. Essas Esta lei é má porque dá vantagens aos efeitos
leis poderíam ser boas quando as riquezas de mobiliários2 50 sobre os fundos territoriais,
cada Estado lhes pertencessem de tal modo, porque ela dissuade os estrangeiros de virem
que fosse muito difícil fazê-las passar a outro. estabelecer-se no país, e, finalmente, porque
Mas desde que, pelo uso do câmbio, as rique pode ser burlada.
zas não pertencem, de alguma maneira, a ne
nhum Estado em particular, e havendo muita 2 50 Aos efeitos mobiliários. . . aos valores mobi
facilidade em transportá-las de uma região a liários.
Capítulo XVI
Os banqueiros são feitos para trocar2 51 o considerável; e, se lhe pedem grandes lucros,
dinheiro e não para emprestá-lo. Se o príncipe ele pode ter certeza de que se trata de uma
só os utiliza para trocar seu dinheiro, como só falha de administração. Quando, pelo contrá
efetua grandes negócios, o menor lucro que ele rio, eles são usados para fazer adiantamentos,
lhes dá por suas remessas torna-se -um objeto a arte deles consiste em alcançar grandes lu
cros com esse dinheiro, sem que se possa acu
2 51 Trocar, no sentido de descontar. sá-los de usura.
Capítulo XVII
Algumas pessoas acreditaram que seria particulares da dívida da nação, isto é, que
conveniente que um Estado devesse a si pró lhes proporcione o pagamento. Mas eis os
prio: pensaram que isso multiplicaria as rique inconvenientes que disso resultam:
zas, aumentando a circulação. 1. ° Se os estrangeiros possuem muitos pa
Creio que se confundiu um papel circulante, péis que representam uma dívida, tiram cada
que representa a moeda, ou um papel circu ano, da nação, uma soma considerável para os
lante que é o signo dos lucros que uma compa juros.
nhia auferiu ou auferirá do comércio, com um 2. ° Numa nação assim perpetuamente deve-
papel que representa uma dívida2 52: os dois dora, o câmbio deve ser muito baixo.
primeiros são muito vantajosos para o Estado; 3. ° O imposto arrecadado para o paga
o último não pode sê-lo; e tudo que se pode mento dos juros da dívida prejudica as manu
esperar dele é que seja um bom penhor para os faturas, tornando a mão-de-obra mais cara.
4. ° Retiram-se as verdadeiras rendas do Es
2 82 Trata-se, respectivamente, nessas três espécies, tado dos que possuem atividade e indústria
de bilhetes de banco, de ações e de títulos de renda. para transferi-las às pessoas ociosas; isto sig
346 MONTESQUIEU
nifica que se facilita o trabalho aos que não dos: é, na linguagem dos algebristas: 200 000
trabalham, e se dificulta o trabalho aos que escudos — 100 000 escudos 4- 100 000 escu
trabalham. dos = 200 000 escudos
Eis os inconvenientes; não conheço as van
O que pode causar erro é que um papel que
tagens. Dez pessoas têm, cada uma, mil escu
representa a dívida de uma nação é um signo
dos de renda em fundos territoriais ou em
de riqueza; pois só um Estado rico pode sus
indústrias; isto representa para a nação, a
tentar um tal papel sem cair em decadência.
cinco por cento, um capital de duzentos mil
escudos. Se essas dez pessoas empregassem á Mas, para que não caia, é preciso que o Estado
metade de suas rendas, isto é, cinco mil escu tenha de fato grandes riquezas. Diz-se que não
dos^ para pagar os juros de cem mil escudos há mal algum porque há recursos contra este
que tomaram emprestados a outros, isto ainda mal; e diz-se que o mal é um bem porque os
só representa para o Estado duzentos mil escu recursos superam o mal.
Capítulo XVIII
Faz-se mister que exista uma proporção fundo de amortização pode ser pòuco conside
entre o Estado credor e o Estado devedor. O rável: numa monarquia é necessário que este
Estado pode ser credor ao infinito; mas só capital seja maior.
pode ser devedor até certo ponto; e quando se 2. ° Os regulamentos devem ser tais, que
chega a ultrapassar este ponto, o título de cre todos os cidadãos do Estado suportem o peso
dor desaparece. da instituição desses fundos porque todos
Se esse Estado ainda possui um crédito que arcam com o peso do estabelecimento da dívi
não tenha recebido qualquer dano, poderá da: o credor do Estado, pelas somas com que
fazer o que se praticou com tanto êxito num contribui, paga-se a si próprio.
Estado da Europa2 53: obter grande quanti 3. ° Há quatro classes de pessoas que pagam
dade de espécies e oferecer a todos os particu as dívidas do Estado: os proprietários de fun
lares seu reembolso, a menos que esses não dos territoriais, os que exercem sua indústria
queiram reduzir o juro. Com efeito, assim pelo negócio, os lavradores e os artesãos, e,
como, quando o Estado pede emprestado, são finalmente, os rendeiros do Estado ou dos
os particulares que fixam a taxa do juro, quan particulares. Destas quatro classes, a última,
do o Estado quer pagar, a ele cabe fixar tal em caso de necessidade, deveria ser, ao que
juro. parece, a menos poupada, porque é uma classe
Não basta reduzir o juro; é necessário que a inteiramente passiva no Estado, enquanto este
redução constitua um fundo de amortização mesmo Estado é sustentado pela força ativa
que reembolse cada ano parte dos capitais: das três outras. Mas, como não se pode sobre
operação tanto mais feliz quanto seu êxito carregá-la mais sem destruir a confiança públi
aumenta todos os dias. ca, da qual o Estado, em geral, e essas três
Quando o crédito do Estado não é comple classes, em particular, têm suprema necessi
to, isto é mais uma razão para tentar formar dade; como a fé pública não pode faltar a certo
um fundo de amortização; porque este fundo, número de cidadãos sem que pareça faltar a
uma vez constituído, logo restitui a confiança. todos; e como a classe dos credores é sempre
° Se o Estado é uma república, cujo
l. mais exposta aos projetos dos ministros, e
governo comporta, por sua natureza, que se como está sempre mais à vista e à mão, cum
elaborem projetos duradouros, o capital do pre que o Estado lhe dispense especial prote
Ç ção, e a parte devedora não tenha nunca a
2 53 A Inglaterra. (N. do A.) menor vantagem sobre a credora.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 347
Capítulo XIX
Capítulo XX
Capítulo XXI
Além do empréstimo feito para o comércio, Como o povo, entre os romanos, aumen
há também outra espécie de empréstimo feito tasse cada dia seu poder, os magistrados pro
por um contrato civil, do qual resulta um juro curaram adulá-lo e fazê-lo adotar leis que lhe
ou usura. fossem das mais agradáveis. O povo restringiu
348 MONTESQUIEU
os capitais2*5 5; diminuiu os juros; proibiu rece mais que, se as leis só apareciam de tempos em
bê-los; suprimiu as coerções corporais; final tempos, as queixas do povo eram contínuas e
mente, a abolição das dívidas foi posta em dis intimidavam sempre os credores. Isto fez com
cussão cada vez que um tribuno queria que fossem abolidos, em Roma, todos os meios
tornar-se popular. honestos de emprestar e de pedir emprestado e
Estas contínuas modificações, quer por leis,
que uma usura horrível, sempre fulminada2 5 6
quer por plebiscitos, naturalizaram a usura em
e sempre renascente, nela se instalasse. O mal
Roma, pois os credores, vendo o povo como
devedor, legislador e juiz, não mais tiveram advinha de essas coisas não terem sido bem
confiança nos contratos. O povo, como um arranjadas. As leis extremas no bem engen
devedor desacreditado, não convidava nin dram o mal extremo. Cumpria pagar pelo
guém a lhe emprestar senão a altos juros; tanto empréstimo de dinheiro e pelo risco das penas
da lei.
2 5 5 ... restringiu os capitais, reduziu o capital a
ser reembolsado, isto é, permitiu a bancarrota. 2 5 6 Tácito, An., liv. VI, cap. XVI. (N. do A.)
Capítulo XXII
Os primeiros romanos não dispunham de nega a avareza dos que emprestavam mas se
leis para regulamentar a taxa de usura2 5 7. Nas diz que os queixosos poderíam pagar se tives
disputas que surgiram a esse respeito entre ple sem tido uma conduta mais regular2 60.
beus e patrícios, na própria sedição2 58 do Faziam-se, portanto, leis que apenas in
Monte Sagrado, alegou-se, de um lado, apenas fluíam sobre a situação atual: ordenava-se, por
a fé e, de outro, apenas a severidade dos exemplo, que os que se alistassem para a guer
contratos. ra que se tinha que sustentar não seriam perse
guidos por seus credores; que os que estives
Seguiam-se, portanto, as convenções parti
sem nas çjideias seriam soltos; que os mais
culares; e creio que as mais comuns eram de
indigentes seriam levados para as colônias:
doze por cento ao ano. Digo isso porque, na
algumas vezes abria-se o tesouro público. O
antiga linguagem2 59 dos romanos, o juro a
povo apaziguava-se pelo alívio dos males pre
seis por cento era chamado metade da usura; o
sentes; e, como nada exigia para o futuro, o se
juro a três por cento, o quarto da usura; a
nado não cuidava de preveni-lo.
usura total era, pois, o juro a doze por cento. Na época em que o senado defendia com
Se se perguntar como tão grandes usuras tanta constância a causa das usuras, o amor
puderam estabelecer-se entre um povo que pela pobreza, pela frugalidade, pela mediocri
quase não tinha comércio, diria que este povo, dade, era extremo entre os romanos: mas tal
amiudadamente obrigado a partir sem soldo era a constituição, que os principais cidadãos
para a guerra, tinha muito frequentemente suportavam todos os encargos do Estado e o
necessidade de pedir emprestado e, efetuando baixo povo nada pagava. Qual o meio de pri
incessantemente expedições bem sucedidas, var aqueles do direito de demandar seus deve
tinha constantemente facilidade de pagar. Per dores e de exigir-lhes que quitem suas obriga-
cebemos isso perfeitamente no relato das ções e concorram para as necessidades
demandas surgidas a esse respeito; aí não se urgentes da república?
Diz Tácito2 61 que a Lei das Doze Tábuas
2 6 7 Usura e juro significavam a mesma coisa entre fixou o juro a um por cento ao ano. Ê claro
os romanos. (N. do A.) que se enganou, e tomou pela Lei das Doze
2 88 Vede Dionísio de Halicarnasso que tão bem a Tábuas outra lei de que vou falar. Se a Lei das
descreveu. (N. do A.)
2 59 Usura sentisses, trientes, quadrantes. Vede, a
esse respeito, os diversos tratados do Digesto e do 2 60 Vede os discursos de Apio, em Dionísio de
Código de usuris e sobretudo a lei 17, com sua nota, Halicarnasso, liv. V. (N. do A.)
na ÍT. de usuris. (N. do A.) 261 An., liv. VI, cap. XVI. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 349
Doze Tábuas regulamentou isso, como, nas permitido2 70 aos devedores agir em conse
disputas que se travaram depois entre credores quência dessas leis, foi morto pelos credo
e devedores, não se teria utilizado a sua autori res2 71 por ter querido reavivar a lembrança de
dade? Não se encontra nenhum vestígio dessa uma rigidez que não mais se podia sustentar.
lei sobre o empréstimo a juro; e, por menos Deixo a cidade para lançar um olhar sobre
versado que se seja na história de Roma, ver- as províncias.
se-á que semelhante lei não deveria ser obra Disse alhures2 72 que as províncias romanas
dos decênviros. eram devastadas por um governo despótico e
A lei Liciniana2*62, promulgada oitenta e inflexível. Mas isso não é tudo: elas o eram
cinco anos depois da Lei das Doze Tábuas, foi também por usuras horríveis.
uma dessas leis efêmeras às quais nos referi Cícero afirma2 73 que a gente de Salamina
mos. Ordenou ela que se subtraísse do capital queria pedir emprestado a Roma e que não
o que fora pago pelos juros, e que o restante podia fazê-lo por causa da lei Gabiniana. É
fosse quitado em três pagamentos iguais. necessário que eu pesquise o que era esta lei.
No ano 398 de Roma, os tribunos Duélio e Quando os empréstimos a juro foram proi
Menênio fizeram passar uma lei que reduzia os bidos em Roma, foram imaginadas todas as
juros a um2 63 por cento ao ano. É esta lei que espécies de meios para eludir a lei2 7 4, e, como
Tácito2 6 4 confunde com a Lei das Doze Tá os aliados2 7 5 e os da nação latina não esta
buas; e foi a primeira lei feita entre os romanos vam submetidos às leis civis dos romanos,
para fixar a taxa de juro. Dez anos depois2 6 5, recorreu-se a um latino ou a um aliado que
esta«usura foi reduzida à metade2 6 6 : posterior emprestava seu nome e era, aparentemente, o
mente, foi completamente suprimida2 6 7, e, a credor. A lei nada mais fizera, portanto, do
darmos crédito a alguns autores que Tito Lívio que submeter os credores a uma formalidade, e
conheceu, isto se passou na época do consu o povo não fora aliviado.
lado2 68 de C. Márcio Rutílio e de Q. Servílio, O povo queixou-se desta fraude; e Marcos
no ano 413 de Roma.
Semprônio, tribuno do povo, através da autori
dade do senado, mandou realizar um plebis
Aconteceu com esta lei o mesmo que com cito2 7 6 que estipulava que, em matéria de
todas aquelas em que o legislador levou as coi empréstimos, as leis que proibiam os emprés
sas ao excesso: encontrou-se um meio de elu- timos a juro entre um cidadão romano e outro
di-la. Foi preciso fazer muitas outras para seriam válidas igualmente entre um cidadão e
confirmá-la, corrigi-la, moderá-la. Ora foram um aliado, ou um latino.
abandonadas as leis para se seguirem os costu Nesse tempo, chamavam-se aliados os
mes2 69, ora foram abandonados os costumes povos da Itália propriamente dita, que se
para se seguirem as leis; porém, neste caso, o estendia até o Arno e o Rubicão e que não era
costume devia prevalecer facilmente. Quando governada como as províncias romanas.
um homem pede emprestado, encontra um Afirma Tácito2 7 7 que sempre se cometiam
obstáculo na própria lei feita em seu favor: novas fraudes contra as leis feitas para pôr
esta lei tem contra si quem ela socorre e quem cobro às usuras. Quando não mais se podia
ela condena. O pretor Semprônio Aselo, tendo emprestar nem pedir emprestado sob o nome
de um aliado, foi fácil fazer aparecer um
2 62 No ano de Roma de 388. Tito Lívio, liv. VI, homem das províncias, que emprestava seu
cap. XXV. (N. do A.) nome.
2 63 Unciaria usura. Tito Lívio, liv. VII, cap. XVI.
(N. do A.)
2 6 4 An., liv. VI, cap. XVI. (N. do A.) 2 70 Permisit eos legibus agere. Apiano, Da Guerra
2 6 5 No consulado de L. Mânlio Torquato e C. Civil, liv. I; e Epítome de Tito Lívio, liv. LXIV. (N.
Plâutio, segundo Tito Lívio, liv. VII, cap. XXVII; e do A.)
trata-se da lei citada por Tácito, An., liv. VI, ibid. 271 No ano de Roma de 663. (N. do A.)
(N. do A.) 2 72 Liv. XI, cap. XIX. (N. do A.)
2 6 6 Semiunciaria usura. (N. do A.) 2 73 Cartas aÁtico, liv. V, carta XXL (N. do A.)
2 6 7 Como diz Tácito, An., liv. VI. (N. do A.) 2 7 4 Tito Lívio, liv. XXXV, cap. VIL (N. do A.)
2 68 A lei foi feita por instigação de Genúcio, tribu 2 7 5 Ibid. (N. do A.)
no do povo. Tito Lívio, liv. VII, no final. (N. do A.) 2 7 6 No ano de Roma de 561. Vede Tito Lívio, liv.
2 69 Veteri jam more foenus receptum erat. Apiano, V, cap. VIL (N. do A.)
Da Guerra Civil, liv. I. (N. do A.) 2 7 7 An., liv. VI, cap. XVI. (N. do A.)
350 MONTESQUIEU
Era necessária uma nova lei contra estes Roma; e como cada governador baixava seu
abusos; e Gabínio2*78, estabelecendo a famosa edito ao entrar em sua província283, na qual
lei que tinha como objetivo extirpar a corrup estabelecia como lhe agradava a taxa da usura,
ção nos sufrágios, naturalmente deve ter pen a avareza ajudava a legislação e a legislação a
sado que o melhor meio para consegui-lo era avareza.
desencorajar os empréstimos: estas duas coi Cumpre que os negócios caminhem; e um
sas estavam naturalmente ligadas, pois as usu Estado está perdido se tudo aí permanece na
ras sempre aumentavam2 7 9 nas épocas de elei inação. Havia ocasiões em que era necessário
ção, porque se necessitava de dinheiro para que as cidades, os corpos, as sociedades das
obter votos. Vemos perfeitamente que a lei cidades, os particulares, emprestassem; e a
Gabiniana estendera o senatus-consulto Sem- necessidade de pedir emprestado era muito
proniano aos provincianos, uma vez que os premente, ainda que fosse para prover às
salaminianos não podiam pedir dinheiro em devastações dos exércitos, às rapinagens dos
prestado a Roma por causa desta lei. Bruto, magistrados, às concussões dos homens de
sob nomes emprestados, emprestou-lhes2 80 a negócios e aos maus costumes que se estabele
quatro por cento ao mês281 e obteve para isso ciam todos os dias; pois nunca se foi nem tão
dois senatus-consultos, no primeiro dos quais rico nem tão pobre. O senado, que tinha o
era dito que este empréstimo não seria conside poder executivo, concedia por necessidade,
rado como uma fraude à lei, e que o governa amiúde por favor, a permissão de pedir
dor da Cilícia julgaria de conformidade com emprestado dos cidadãos romanos, e estabele
as convenções assinaladas pelas disposições cia, então, senatus-consultos. Mas esses pró
dos salaminianos2 82. prios senatus-consultos estavam desacredi
Sendo o empréstimo a juro proibido pela lei tados pela lei: estes senatus-consultos28 4
Gabiniana entre as pessoas das províncias e os podiam permitir que o povo exigisse novas
cidadãos romanos, e tendo estes, então, todo o tabelas28 5, o que, aumentando o perigo da
dinheiro do universo entre suas mãos, foi perda do capital, aumentava ainda mais a
necessário tentá-los com grandes usuras que usura. Repetirei sempre que é a moderação que
fizessem desaparecer, aos olhos da avareza, o governa os homens e não os excessos.
perigo de perder a dívida. E como havia em Paga menos, diz Ulpiano28 6, quem paga
Roma gente poderosa que intimidava os mais tarde. Foi este princípio que orientou os
magistrados e fazia calar as leis, foram eles legisladores, depois da destruição da república
mais audaciosos em emprestar e mais audacio romana.
sos na exigência de grandes usuras. Isto fez
com que as províncias fossem sucessivamente 2 83 O edito de Cícero fixava-a a um por cento por
devastadas por todos os que tinham crédito em mês, com a usura da usura no fim de um ano. Quan
to aos contratadores da república, obrigava-os a
conceder prazo a seus devedores. Se estes não
2 7 8 No ano 615 de Roma. (N. do A.) pagassem no tempo determinado, adjudicava a
2 7 9 Vede as Cartas de Cícero a Ático, liv. IV, car usura estipulada no título de dívida. Cícero a Ático,
tas XV e XVI. £N. do A.) liv. VI, carta I. (N. do A.)
2 80 Cícero aAtico, liv. VI, carta I. (N. do A.) 28 4 Vede o que afirma Lucéio, carta XXI, a Ático,
281 Pompeu, que emprestara ao Rei Ariobarsano liv. V. Houve mesmo um senatus-consulto geral
seiscentos talentos, fazia-se pagar trinta e três talen para fixar a usura a um por cento ao mês. Vede a
tos áticos cada trinta dias. Cícero a Ático, liv. V, mesma carta. (N. do A.)
carta XXI; liv. VI, carta I. (N. do A.) 28 5 Novas tabelas. . ., novas leis concernentes às
2 82 Ut neque Salaminis, neque cui eis dedisset, dívidas.
fraudi esset. Ibid. (N. do A.) 28 6 L. 12, ff. De verbor. signif. (N. do A.)
LIVRO VIGÉSIMO TERCEIRO
DAS LEIS NA RELAÇÃO QUE TÊM
COM O NÚMERO DE HABITANTES
Capítulo I
Capítulo II
Dos casamentos
A obrigação natural que tem o pai de nutrir Esta obrigação, entre os animais, é tal, que a
seus filhos fez com que se estabelecesse o casa mãe pode comumente ser suficiente. Entre os
mento, que declara quem deve cumprir esta homens, ela é muito maior: os filhos são dota
obrigação. Os povos288 de que fala Pompônio dos de razão, mas esta só lhes chega gradual
Mela289 o fixavam apenas pela semelhança. mente. Não é suficiente nutri-los; cumpre tam
Entre os povos bem policiados, o pai é aque bém orientá-los: já poderíam viver mas não se
le que as leis, pela cerimônia do casamento, podem governar.
declararam dever ser tal290, porque encontram
As conjunções ilícitas pouco contribuem
nele a pessoa que procuram.
para a propagação da espécie. O pai, que tem a
obrigação natural de alimentar e educar os
288 Os garamantes.
289 Liv. I, cap. VIII. filhos, não é nesse caso fixado, e a mãe, em
290 Pater est quem nuptiae demonstrant. quem recai a obrigação, encontra mil obstácu
354 MONTESQUIEU
los; pela vergonha, pelos remorsos, pelos incô ção são mesmo incompatíveis com sua condi
modos de seu sexo, pelo rigor das leis: quase ção; e elas são tão corrompidas, que não pode
sempre faltam-lhe meios. ríam gozar da confiança da lei.
As mulheres que se submeteram à prostitui Decorre de tudo isso que a continência pú
ção pública não podem ter a comodidade de blica está naturalmente unida à propagação da
educar seus filhos. Os cuidados dessa educa espécie.
Capítulo III
291 E por isso que, nas nações que têm escravos, o filho segue quase sempre a condição da mãe.
Capítulo IV
Das famílias
Em quase toda parte é admitido que a mu uma espécie de propriedade: um homem que
lher passe à família do marido. O contrário tem filhos do sexo que não a perpetua, nunca
está, sem qualquer inconveniente, estabelecido está satisfeito de não ter os do sexo que a
em Formosa292, onde o marido vai formar a perpetua.
família da mulher. Os nomes, que dão aos homens a idéia de
Esta lei, que fixa a família numa série de uma coisa que parece não dever perecer, são
pessoas do mesmo sexo, muito contribui, muito adequados para inspirar em cada famí
independentemente dos motivos iniciais, para lia o desejo de prolongar sua duração. Há
a propagação da espécie humana. A família é povos nos quais os nomes distinguem as famí
lias: outros há em que eles só distinguem pes
2 92 Padre du Halde, t. I, pág. 156. (N. do A.) soas: o que não é tão bom.
Capítulo V
Algumas vezes as leis e a religião estabele neste país, exige que os bens que o imperador
ceram várias formas de uniões civis; e isto dá não sejam muito divididos, porque estão
ocorre entre os maometanos, onde há diversas submetidos a uma obrigação, como eram, -
ordens de esposas, cujos filhos são reconhe outrora, nossos feudos.
cidos pelo nascimento na casa, ou por contra Há países em que uma mulher legítima
tos civis, ou mesmo pela escravidão da mãe e goza, no lar, aproximadamente das honras que
subsequente reconhecimento do pai. tem, em nossos climas, uma mulher única: nes
Seria contra a razão que a lei condenasse ses países, os filhos das concubinas são consi
nos filhos o que aprovou nos pais: todos estes derados como pertencentes à primeira esposa.
filhos devem, portanto, herdar, a menos que al Isso está assim estabelecido na China. O res
guma razão particular a isso se oponha, como peito filial2 93, a cerimônia de um luto rigoro-
no Japão, onde apenas podem herdar os filhos
da esposa dada pelo imperador. A política, 293 Padre du Halde, t. II, pág. 121. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 355
so, não são devidos à mãe natural mas à mãe ção não existe, vê-se bem que a lei que legitima
determinada pela lei. os filhos das concubinas é uma lei forçada;
Com auxílio de tal ficção29 4, não hâ mais pois a maioria da nação é que seria aviltada
filhos bastardos; e, nos países em que esta fic
com eia. Igualmente, não se coloca nesses paí
ses o problema dos filhos adulterinos. As sepa
2 9 4 Distinguem-se as mulheres em grandes e
pequenas, isto é, em legítimas ou não; mas não exis rações das mulheres, a clausura, os eunucos,
te semelhante distinção entre os filhos. “É a grande os aldrabas tornam a coisa tão difícil, que a lei
doutrina do império”, está escrito numa obra chine
sa sobre a moral, traduzida pelo mesmo padre. (N. a julga impossível. Aliás, o mesmo gládio
do A.) exterminaria a mãe e o filho.
Capítulo VI
Quase não conhecemos, portanto, bastardos onde ela trazia consigo o soberano poder,
nos países em que a poligamia é permitida. faziam-se, amiúde, leis sobre a situação dos
Conhecemo-los nos lugares em que existe a lei bastardos, as quais tinham menos relação com
de uma única mulher. Foi necessário, nesses a própria coisa e com a honestidade do casa
países, desonrar a concubinagem; foi necessá mento do que com a constituição particular da
rio, portanto, desonrar os filhos que dela república. Assim, o povo aceitou, algumas
nasceram. vezes, os bastardos como cidadãos2 9 5, a fim
Nas repúblicas, onde é mister que os costu de aumentar sua força contra os poderosos.
mes sejam puros, os bastardos devem ser ainda Destarte, em Atenas, o povo separou os bas
mais odiosos do que nas monarquias. tardos do número de cidadãos para ter uma
maior porção do trigo que lhe enviara o rei do
Estabeleceram-se, em Roma, disposições
Egito. Enfim, Aristóteles2 9 6 nos ensina que,
talvez muito severas contra eles. Incitando, em muitas cidades, quando não havia um nú
porém, as instituições antigas todos os cida
mero suficiente de cidadãos, os bastardos her
dãos a se casarem, e sendo, aliás, os matrimô
davam, e que, quando este número era excessi
nios abrandados pela permissão de repudiar ou
vo, eles não herdavam.
de divorciar, só uma grande corrupção dos
costumes poderia levar à concubinagem.
295 Vede Aristóteles, Política, liv. VI, cap. IV. (N.
Devemos observar que, sendo a qualidade do A.)
de cidadão considerável nas democracias, 29 6 Ibid., liv. III, cap. III. (N. do A.)
Capítulo VII
O consentimento dos pais está baseado em que a natureza havia já dado aos pais. O amor
seu poder, isto é, em seu direito de proprie ao bem público, aí, pode ser tal, que iguale ou
dade; está ainda baseado em seu amor, em sua ultrapasse qualquer outro amor. Assim, Platão
razão e na incerteza da de seus filhos, que a queria que os magistrados regulamentassem os
idade mantém no estado de ignorância, e as casamentos; assim, os magistrados lacedemô-
paixões, no estado de embriaguez. nios os dirigiam.
Nas pequenas repúblicas ou instituições sin Porém, nas instituições comuns, cabe aos
gulares às quais nos referimos pode haver leis pais casar seus filhos; sua prudência a esse res
que conferem aos magistrados uma inspeção peito estará sempre acima de qualquer outra
sobre os casamentos dos filhos dos cidadãos, prudência. A natureza confere aos pais um de
356 MONTESQUIEU
sejo de proporcionar a seus filhos sucessores que tenham quinze anos se casem; regulamen
como se fora para si mesmos. Nos diversos tou-se mesmo o tempo do casamento dos
graus de progenitura, eles se vêem avançar indianos a catorze anos para os varões e a
insensivelmente para o futuro. Mas que acon treze anos para as jovens. Baseia-se num câno
teceria se a vexação e a avareza fossem a
ne que diz que a malícia pode suprir a
ponto de usurpar a autoridade dos pais? Escu
temos Thomas Gage2 9 7 sobre a conduta dos idade”2 98. Presenciou ele um desses censos:
espanhóis nas índias: “Era”, escreve, “uma coisa vergonhosa”.
“Para aumentar o número das pessoas que Assim, na ação do mundo que deve ser a mais
pagam tributo, cumpre que todos os indianos livre, os indianos ainda são escravos.
2 9 7 Relatório de Thomas Gage, pág. 171. (N. do 2 98 Cumpre entender por malícia, neste Malitia
A.) supplet aetatem, a engenhosidade do espírito.
Capítulo VIII
Na Inglaterra, as jovens abusam frequente recurso do celibato; e a lei que lhes ordena
mente da lei para se casar de acordo com seu esperar o consentimento dos pais poderia ser
capricho, sem consultar os pais. Não sei se mais conveniente. Desse ponto de vista, o cos
esse uso não seria, aí, mais tolerado do que tume da Itália e da Espanha seria o menos
alhures, uma vez que as leis, não tendo estabe razoável: o monarquismo existe nesses países e
lecido um celibato monástico, as moças, não pode-se casar sem o consentimento dos
tendo outra situação a escolher além da do pais299.
casamento, não podem a ele recusar-se. Na
França, ao contrário, onde o monarquismo
está estabelecido, as jovens sempre têm o 2 99 Era ainda a legislação do direito canônico.
Capítulo IX
Das moças
As jovens, que só pelo casamento são levadas ao prazer e à liberdade, que têm um espírito que
não ousa pensar, um coração que não ousa sentir, olhos que não ousam ver, ouvidos que não
ousam ouvir, que só se apresentam para se mostrar estúpidas, condenadas incessantemente a futi-
lidades e a preceitos, são muito dadas ao casamento; são os rapazes que se torna necessário
encorajar.
Capítulo X
Capítulo XI
Da severidade do governo
As pessoas que nada possuem, como os tratar-se das doenças; como poderíam educar
mendigos, têm muitos filhos. É que eles se criaturas que estão numa doença contínua, que
encontram na situação dos povos nascentes: é a infância?
nada custa ao pai transmitir sua arte aos filhos É a facilidade de falar, e a impotência de
que são mesmo, ao nascer, instrumento dessa examinar, que leva a dizer que, quanto mais os
arte300. Essas pessoas, num país rico ou súditos são pobres, mais as famílias são nume
supersticioso, multiplicam-se porque não têm rosas; que quanto mais se está sobrecarregado
os encargos da sociedade, sendo eles próprios de impostos, mais se fica em condição de
os encargos da sociedade. Mas as pessoas que
pagá-los; dois sofismas que sempre perderam e
são pobres apenas porque vivem sob um
que perderão sempre as monarquias.
governo severo, que consideram seu campo
menos como o fundamento de sua subsistência A severidade do governo pode chegar inclu
do que como um pretexto para a vexação; sive a destruir os sentimentos naturais pelos
essas pessoas, dizia eu, fazem poucos filhos. próprios sentimentos naturais. Pois as mulhe
Elas não têm nem mesmo seu alimento; como res da América301 não abortavam para que os
poderíam pensar em partilhá-lo? Não podem filhos não tivessem senhores tão cruéis?
300 Isto é, mão-de-obra gratuita. 301 Relatório de Thomas Gage, pág. 58. (N. do A.)
Capítulo XII
302 No liv. XVI, cap. IV. (N. do A.) 30 4 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
303 Vede Kempfer, que relata um recenseamento l 'Etablissement de la Compagnie des Indes, 1.1, pág.
de Meaco. (N. do A.) 347. (N. do A.)
Capítulo XIII
Nos portos de mar, onde os homens se que mulheres; entretanto, vêem-se mais crian
expõem a mil perigos, e vão morrer ou viver ças do que alhures. Isso é devido à facilidade
em climas longínquos, há menos homens do de subsistência. E talvez mesmo ao fato de
358 MONTESQUIEU
serem as partes oleosas do peixe mais aptas a onde quase só se vive de peixe30 7. Se assim
fornecer esta matéria que serve à geração. Esta fosse, certas regras monásticas, que obrigam a
seria uma das causas deste número infinito de
viver de peixe, seriam contrárias ao espírito do
gente que existe no Japão30 5 e na China30 6,
próprio legislador.
30 5 O Japão é composto de ilhas; há muitas costas
e o mar é muito piscoso. (N. do A.) 30 7 Vede o Padre du Halde, t. II, págs. 130, 142 e
30 6 A China é cheia de regatos. (N. do A.) segs. (N. do A.)
Capítulo XIV
Capítulo XV
preço medíocre, e convém igualmente a quem porque fizeram descansar uma infinidade de
a compra e ao operário que a faz, as máquinas, braços, privaram muitas pessoas do uso das
que simplificariam a manufatura, isto é, que águas e fizeram com que muitas terras perdes
diminuiríam o número de operários, seriam sem a fecundidade31 °.
perniciosas; e, se os moinhos de água não
tivessem sido estabelecidos em toda parte, eu 310 Que teria dito Montesquieu da mecanização
não os acreditaria tão úteis como se afirma, tal como existe hoje?
Capítulo XVI
Os regulamentos sobre o número dos cida quais Renaudot nos deu uma relação, ir procu
dãos dependem muito das circunstâncias. Há rar a opinião312 da metempsicose sobre isso.
países em que a Natureza fez tudo; o legisla Os mesmos motivos fazem com que, na ilha
dor, portanto, nada tem a fazer. Por que razão Formosa313, a religião não permita às mulhe
estimular, com leis, a propagação, quando a res dar à luz antes dos trinta e cinco anos:
fecundidade do clima favorece suficientemente
antes desta idade a sacerdotisa comprime-lhes
o aumento do povo? Algumas vezes o clima é
o ventre e as faz abortar.
mais favorável do que o terreno; o povo se
multiplica e as fomes o destroem; é o caso da
China. Destarte, um pai, nesse país, vende suas 311 Voyages de Dampierre, t. II, pâg. 41.
filhas e expõe seus filhos. As mesmas causas 312 Pág. 167.
313 Vede o Recueil des Voyages qui Ont Servi á
produzem em Tonquim311 os mesmos efeitos; lÉtablissement de la Compagnie des Indes, t. V.
e não se deve, como os viajantes árabes, dos parte I, págs. 182 e 188.
Capítulo XVII
Este efeito, que se prende a causas físicas nias31 5; eles se venderam para a guerra, como
em certos países do Oriente, foi, na Grécia, os suíços fazem hoje em dia; nada que pudesse
produzido pela natureza do governo. Os gre impedir a excessiva multiplicação dos filhos
gos eram uma grande nação, composta de foi negligenciado.
cidades que tinham, cada uma, seu governo e Havia entre eles repúblicas cuja constitui
suas leis. Não eram elas mais conquistadoras ção era singular. Povos submetidos eram obri
do que as da Suíça, da Holanda e da Alema gados a fornecer a subsistência aos cidadãos:
nha o são atualmente. Em cada república, o os lacedemônios eram alimentados pelos hilo-
legislador tivera como objetivo a felicidade dos tas; os cretenses, pelos periecos; os tessálios,
pelos penestas. Devia haver apenas um certo
cidadãos interiormente e, exteriormente, uma
número de hbmens livres para que os escravos
força que não fosse inferior à das cidades vizi
estivessem em condições de lhes garantir a
nhas3 1 4. Com pequeno território e grande feli subsistência. Dizemos hoje que é necessário
cidade, era fácil que o número dos cidadãos limitar o número das tropas regulares; ora, a
aumentasse e se tornasse uma carga: desta Lacedemônia era um exército mantido por
maneira, estabeleceram incessantemente colô
315 Os gauleses, que estavam no mesmo caso, fize
31 4 Pelo valor, disciplina e exercícios militares. ram o mesmo.
360 MONTESQUIEU
camponeses; cumpria, portanto, limitar este aconselha ele319 fazer com que a mulher abor
exército; sem isso, os homens livres, que goza te antes que o feto adquira vida.
vam de todas as vantagens da sociedade, se te O meio infame que empregavam os creten-
riam multiplicado ilimitadamente, e os lavra ses para evitar o número excessivo de filhos é
dores teriam sido sobrecarregados. relatado por Aristóteles320; e senti o pudor
Os políticos gregos consagraram-se, pois, horrorizado quando quis citá-lo.
particularmente a regulamentar o número dos Há lugares, narra ainda Aristóteles321, em
cidadãos. Platão31 6 fixa-o em cinco mil e qua que a lei transforma os estrangeiros, ou os bas
renta; e deseja que se detenha ou que se enco tardos, ou os que nasceram somente de mãe
raje a propagação, segundo a necessidade, cidadã em cidadãôs, mas, desde que têm bas
pelas honrarias, pela desonra ou pelas adver tante povo, não mais o fazem. Os selvagens do
tências dos anciãos; quer mesmo31 7 que se Canadá queimam seus prisioneiros; mas,
regulamente o número de casamentos de modo quando têm choças vazias a lhes oferecer,
que o povo se refaça sem que a república seja reconhecem-nos como de sua nação.
sobrecarregada. O Cavaleiro Petty supôs, em seus cálculos,
Se a lei do país, diz Aristóteles318, proíbe que um homem na Inglaterra vale o preço pelo
expor os filhos, far-se-á necessário limitar o qual seria vendido em Argel322. Isto só pode
número dos que cada um deve engendrar. Se se ser bom para a Inglaterra: há países em que
têm filhos além do número estipulado pela lei, um homem nada vale; outros há em que vale
menos do que nada.
31 6 Em suas Leis, liv. V. (N. do A.)
31 7 República, liv. V. (N. do A.) 320 Aristóteles faz alusão, na passagem referida
31 8 Polit., liv. VII, cap. XVI. (N. do A.) por Montesquieu, ao homossexualismo que, afirma
319 Ibid.(N. do A.)* ele, teria orientado o legislador.
* Acreditava Aristóteles que o feto só adquiria vida 321 Polít., liv. III, cap. V. (N. do A.)
a partir de um certo momento. 322 Sessenta libras esterlinas. (N. do A.)
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Despovoamento do universo
Todas essas pequenas repúblicas foram que hoje, sem alguns soldados e alguns escra
englobadas numa grande, e viu-se insensivel vos romanos, não passariam de um deserto.”
mente o universo se despovoar: basta ver o que “Os oráculos desapareceram”, diz Píutar-
eram a Itália e a Grécia antes e depois das co32 4, “porque os lugares onde falavam estão
vitórias dos romanos. destruídos; dificilmente encontrar-se-ão hoje,
“Perguntar-me-ão”, diz Tito Lívio323, na Grécia, três mil guerreiros.”
“onde os volscos puderam encontrar tantos “Não descreverei”, escreve Estrabão32 5, “o
soldados para fazer a guerra, depois de terem Epiro e os lugares circunvizinhos porque essas
sido tantas vezes vencidos. Teria sido preciso regiões estão inteiramente desertas. Este des-
que existisse um povo infinito nessas regiões,
32 4 Obras Morais: Dos oráculos que desapare
ceram. (N. do A.)
3 2 3 Livro VI, cap. XII. (N. do A.) 32 5 Liv. VII, pág. 496. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 361
povoamento, que começou há muito tempo, disso em Políbio, que diz que Paulo Emílio,
continua todos os dias; de sorte que os solda depois de sua vitória, destruiu setenta cidades
dos romanos têm seus acampamentos em do Epiro, levando cento e cinquenta mil
casas abandonadas.” Ele encontra a causa escravos.
Capítulo XX
Os romanos, destruindo todos os povos, diam, das associações que fizeram, dos direitos
destruíam a si mesmos. Incessantemente na de cidadania que outorgaram, e dessa imensa
ação, no esforço e na violência, gastavam-se, multidão de cidadãos que encontraram em
como uma arma da qual se faz uso sempre. seus escravos. Direi o que fizeram, não para
Não falarei aqui do cuidado que tiveram em reparar a perda de cidadãos, mas a de homens;
conseguir cidadãos32 6, à medida que os per- e, como foram o povo do mundo que melhor
I soube conciliar suas leis com seus projetos,
32 6 Tratei disso nas Considérations sur les Causes não é indiferente examinar o que fizeram a esse
de la Grandeur des Romains, cap. XIII. (N. do A.) respeito.
Capítulo XXI
As antigas leis de Roma muito se esforça per, muito contribuíram para dissuadir os
vam em induzir os cidadãos para o casamento. cidadãos do casamento, qur só traz preocupa
O senado e o povo fizeram amiúde regula ções para os que não mais têm atenções para
mentos sobre isso, como disse Augusto na os prazeres da inocência. Tal é o sentido da
arenga citada por Dion32 7. arenga331 que Metelo Numídico fez ao povo,
Dionísio de Halicarnasso328 não pôde crer em sua censura. “Se fosse possível não mais
que, após a morte de trezentos e cinco Fábios, ter mulher, nós nos livraríamos desse mal;
exterminados pelos Veios, só restasse dessa porém, como a Natureza estabeleceu que
raça uma única criança, porque a lei antiga, quase não se pode viver feliz com elas, nem
que ordenava a cada cidadão que se casasse e subsistir sem elas, faz-se necessário ter mais
educasse todos os filhos, ainda estava em consideração por nossa conservação do que
vigor32 9. por satisfações passageiras.”
Independentemente das leis, os censores A corrupção dos costumes destruiu a censu
visavam aos casamentos; e, segundo as neces ra, ela própria estabelecida para destruir a cor
sidades da república, a isso incitaram pela rupção dos costumes; mas, quando esta cor
vergonha330 e pelas penas. rupção se tornou geral, a censura não teve
Os costumes, que começavam a se corrom mais força332.
As discórdias civis, os triunviratos, as pres
crições enfraqueceram Roma mais do que
32 7 Liv. LVI. (N. do A.) qualquer guerra por ela travada: sobravam
32 8 Liv. II. (N. do A.)
32 9 No ano de Roma 227. (N. do A.)
330 Vede o que eles fizeram a esse respeito. Tito 331 Encontramo-la em Aulo Gélio, liv. I, cap. VI.
Lívio, liv. XLV; o Epítome de Tito Lívio, liv. LIX; (N. do A.)
Aulo Gélio, liv. I, cap. VI; Valério Máximo, liv. II, 332 Vede o que escrevi no liv. V, cap. XIX. (N. do
cap. IX. (N. do A.) A.)
362 MONTESQUIEU
poucos cidadãos333, e a maior parte não era nas procurais a paz em vossos desregramentos.
casada. Para remediar este último mal, César e Citareis, aqui, o exemplo das virgens Vestais?
Augusto restabeleceram a censura e quiseram Por conseguinte, se vós não obedeceis às leis
mesmo33 4 ser censores. Fizeram diversos da pudicícia, far-se-á necessário punir-vos
regulamentos: César33 5 ofereceu recompensas como elas. Sois igualmente maus cidadãos,
aos que tivessem muitos filhos; proibiu33 6 as quer todos imitem vosso exemplo, quer nin
mulheres que tivessem menos de quarenta e guém o siga. Meu único objetivo é a perpetui-
cinco anos, e que não possuíssem nem maridos dade da república. Aumentei os castigos dos
nem filhos, de usarem pedras preciosas e se que não obedeceram; e, com relação às recom
servirem de liteiras: método excelente de ata pensas, elas são tais que não me consta que a
car, pela vaidade, o celibato. As leis de virtifde tenha tido maiores alguma vez: há
Augusto3 3 7 foram mais incisivas; impôs338 menores que estimulam mil pessoas a arriscar
penas novas aos que não eram casados e a vida; e estas não vos incitariam a casar e a
aumentou as recompensas dos que o eram e nutrir os filhos?”
dos que possuíam filhos. Tácito chamou estas Instituiu ele a lei Júlia, derivada do seu
leis de Júlias339. Parece que nelas se tinham nome, e a lei Pápia Popéia, do nome dos côn
fundido os antigos regulamentos feitos pelo sules3 42 de uma parte daquele ano. A extensão
senado, pelo povo e pelos censores. do mal transparecia na própria eleição desses:
A lei de Augusto encontrou mil obstáculos; Dion3 43 diz-nos que eles não eram casados e
e, trinta e quatro anos3 40 depois que foi feita, não tinham filhos.
os cavaleiros romanos exigiram sua revoga Esta lei de Augusto foi propriamente um có
ção. Ele fez com que se colocassem, de um digo de leis e um corpo sistemático de todos os
lado, os que eram casados e, de outro, os que regulamentos que podiam ser feitos sobre este
não o eram: estes últimos apareceram em assunto. Nela refundiram-se as leis Júlias3 4 4 e
maior número, o que surpreendeu os cidadãos deu-se-lhes mais força; têm tantos desígnios,
e os confundiu. Augusto, com a gravidade dos influem sobre tantas coisas, que formam a
antigos censores, assim lhes falou3 41: mais bela parte das leis civis dos romanos.
“Enquanto as moléstias e as guerras nos Encontram-se trechos dispersos delas3 4 5
tiram tantos cidadãos, que acontecerá à cida nos preciosos fragmentos de Ulpiano, nas leis
de, se não se contraem mais casamentos? A ci do Digesto extraídas dos autores que escreve
dade não consiste nas casas, nos pórticos, nas ram sobre as leis Papianas; nos historiadores e
praças públicas: são os homens que fazem a outros autores que as citaram; no código Teo-
cidade. Não vereis, como nas fábulas, homens dosiano que as ab-rogou; nos padres que as
saírem de debaixo da terra para cuidar de vos censuraram, sem dúvida com louvável zelo
sos negócios. Não é para viver sós que vos pelas coisas da outra vida, mas com pouquís
conservais no celibato: cada um de vós tem simo conhecimento dos negócios desta vida.
companheira para a mesa e para o leito, e ape Estas leis tinham muitos itens e trinta e
cinco deles são conhecidos3 4 6. Mas, indo ao
meu assunto da maneira mais direta possível,
333 Após a guerra civil, tendo César mandado
fazer o censo, encontraram-se apenas cento e cin começarei pelo item que Aulo Gélio3 4 7 nos
quenta mil chefes de família. Epítome de Floro informa ser o sétimo e que diz respeito às hon
sobre Tito Lívio, Década XII. (N. do A.) rarias e às recompensas concedidas por esta
33 4 Vede Dion, liv. XLIII, e Xifil., in August. (N. lei.
do A..) Os romanos, originários na maioria das cída-
33 5 Dion, liv. XLIII, cap. XXV; Suetônio, Vida de
César, cap. XX; Apiano, liv. II, Da Guerra Civil.
(N. do A.) 3 42 Marcus Papius Mutilus et Q. Poppoeus Sabi-
33 6 Eusébio, em sua Crônica. (N. do A.) nus. Dion, liv. LVI. (N. do A.)
3 3 7 Dion, liv. LIV, cap. XVI. (N. do A.) ’343 Dion, liv. LVI. (N. do A.)
33 8 No ano 736 de Roma. (N. do A.)
33 9 Julias rogationes, An., liv. III, cap. XXV. (N. 3 4 4 O título XIV dos Fragmentos de Ulpiano dis
do A.) tingue perfeitamente a lei Júlia da Pápia. (N. do A.)
3 40 No ano 762 de Roma. Dion, liv. LVI, cap. I. 3 4 5 Jacques Godefroi compilou-as. (N. do A.)
(N. do A.) 3 4 6 O trigésimo quinto é citado na lei 19, ff. de ritu
341 Abreviei esta arenga que é de uma extensão nuptiarum. (N. do A.)
enfadonha; Dion relata-a no livro LVI. (N. do A.) 3 4 7 Liv. II, cap. XV. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 363
des latinas que eram colônias lacedemônias3*48 Se havia recompensas, havia também casti
que tinham inclusive extraído destas cida gos3 60. Os que não eram casados nada po
des349 uma parte de suas leis, tiveram pela diam receber pelo testamento dos estrangei
velhice, como todos os lacedemônios, o res ros3 61; e os que, sendo casados, não tinham
peito que concede todas as honrarias e todas filhos apenas recebiam a metade3 62. Os roma
as deferências. Quando faltaram cidadãos à nos, diz Plutarco3 63, casavam-se para ser her
república, concederam-se ao casamento e ao deiros e não para ter herdeiros.
número de filhos as prerrogativas que se ha As vantagens que marido e mulher se po
viam outorgado à idade3 50, atribuindo-se diam conceder pelo testamento eram limitadas
algumas só ao casamento, independentemente pela lei. Se tinham filhos, podiam deixar tudo
dos filhos que dele poderíam nascer: isto cha- para o outro3 6 4; se não os tinham, podiam
mava-se o direito dos maridos. Atribuíram-se receber a décima parte da sucessão, por causa
outras aos que tinham filhos, e maiores aos do casamento; e, se tinham filhos de outro
que tinham três filhos. Não devemos confundir casamento, podiam doar-se tantos décimos
estas três coisas. Existiam privilégios dos quais quantos filhos tivessem.
as pessoas casadas sempre gozaram, como, Se um marido se afastava3 6 5 de sua esposa
por exemplo, um lugar particular no teatro3 51; por outro motivo que não por negócios da
existiam outros de que só gozavam quando os república, não podia ser herdeiro.
que tinham filhos, ou aqueles que os tinham A lei concedia ao marido ou à esposa que
em maior quantidade, não Ihos tiravam, sobrevivesse o prazo de dois anos3 6 6 para tor
i nar a casar, e um ano e meio em caso de divór
Esses privilégios eram muito amplos. As
pessoas casadas que tinham maior número de cio. Os pais que não quisessem casar os filhos,
filhos eram sempre preferidas3 52, seja na soli ou outorgar um dote às filhas, a isso eram coa
citação de honrarias, seja no exercício dessas gidos pelos magistrados3 6 7.
próprias honrarias. O cônsul que tivesse mais Não se podia contratar casamento se esse
filhos recebia, em primeiro lugar, os fasces3 53 ; devesse ser adiado por mais de dois anos3 68;
tinha a escolha das províncias3 S4; o senador e, como não se podia desposar uma jovem
que tinha mais filhos era o primeiro no catá senão aos doze anos, não se podia contratar
logo dos senadores; no senado, era o primeiro seu casamento senão aos dez. A lei não queria
a opinar3 5 5. Podia-se alcançar, antes da idade, que se pudesse fruir inutilmente3 69, sob pre-
a magistratura, pois cada filho dispensava um
ano3 5 6. Em Roma, quem tivesse três filhos es 3 6° Vede os Fragmentos de Ulpiano, nos títs. XIV,
tava isento de todos os tributos pessoais3 5 7. XV, XVI, XVII e XVIII, que são um dos belos tre
As mulheres ingênuas que tivessem três filhos chos da antiga jurisprudência romana. (N. do A.)
3 61 Sozom., liv. I, cap. IX. Recebia-se dos paren
e as libertas que tivessem quatro saíam358 tes; Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § I. (N. do A.)
desta tutela perpétua em que as retinham3 59 as 3 62 Sozom., liv. I, cap. IX e leg, unic., cod. Teodos.
antigas leis de Roma. De infirm. paenis coelib. et orbitat. (N. do A.)
3 63 Obras Morais: Do amor dos pais para com os
filhos. (N. do A.)
3 48 Dionísio de Halicarnasso. (N. do A.) 3 6 4 Vede mais longo pormenor disso nos Fragmen
3 49 Os deputados de Roma, enviados para estudar tos de Ulpiano, tít. XV e XVI. (N. do A.)
leis gregas, foram a Atenas e às cidades da Itália. 3 6 5 Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § I. (N. do A.)
(N. do A.) 3 6 6 Fragm. de Ulpiano, tít. XIV. Parece que as pri
3 50 Aulo Gélio, liv. II, cap. XV. (N. do A.) meiras leis Júlias concederam três anos. Arenga de
3 51 Suetônio, in Augusto, cap. XLIV. (N. do A.) Augusto, em Dion, liv. LVI; Suetônio, Vida de
3 52 Tácito, An., liv. II, cap. CLI. Ut numerus libe- Augusto, cap. XXXIV. Outras leis Júlias apenas
rorum in candidatis praepolleret, quod lex jubebat. concederam um ano; finalmente a, lei Papiana con
(N. do A.) cedeu dois: Fragm. de Ulpiano, tít. XIV. Essas leis
3 53 Aulo Gélio, liv. II, cap. XV. (N. do A.) não eram do agrado do povo, e Augusto as mode
3 5 4 Tácito, An., liv. XV, cap. XIX. (N. do A.) rava ou as tornava mais rígidas segundo se estivesse
3 5 5 Vede a lei 6, § 5, ff. de decurion. (N. do A.) mais ou menos disposto a suportá-las. (N. do A.)
3 5 6 Vede a lei 2, ff. de minorib. (N. do A.) 3 6 7 Tratava-se do trigésimo quinto item da lei
3 5 7 Lei I, § 3, e a lei 2, ff. de vacat et excusat, Papiana, I, 19, ff. de ritu nuptiarum. (N. do A.)
muner. (N. do A.) 3 68 Vede Dion, liv. LIV, ano 736; Suetônio in
3 58 Fragmentos de Ulpiano, tít. XXIX, § 3. (N. do Octavio, cap. XXXIV. (N. do A.)
A.) . 3 69 Vede Dion, liv. LIV; e, no mesmo Dion, a
3 59 Plutarco, Vida de Numa. (N. do A.) arenga de Augusto, liv. LVI. (N. do A.)
364 MONTESQUIEU
texto de desposório, dos privilégios das pes res corrigiam, a este respeito, as desordens que
soas casadas. apareciam, ou as impediam de surgir.
A um homem de sessenta anos3 70 era proi
bido desposar uma mulher de cinquenta. Tendo Constantino3 78 feito uma lei pela
qual ele incluía na proibição da lei Papiana
Como se outorgaram grandes privilégios às
pessoas casadas, a lei não queria que houvesse não somente os senadores mas também os que
tivessem um posto importante no Estado, sem
casamentos inúteis. Pela mesma razão, o
senatus-consulto Calvisiano3 71 declarava de falar dos que eram de condição inferior, isto
sigual o casamento de uma mulher que tivesse constituiu o direito daquela época; apenas aos
mais de cinquenta anos com um homem de ingênuos, abrangidos pela lei de Constantino,
menos de sessenta; de sorte que uma mulher tais casamentos foram proibidos. Justinia-
que tivesse cinqüenta anos não podia casar no3 79 ab-rogou também a lei de Constantino,
sem incorrer nas penalidades dessas leis. Tibé e permitiu a todos os tipos de pessoas contrair
rio acentuou3 72 o rigor da lei Papiana e proi esses casamentos; é em conseqüência disso que
biu a um homem de sessenta anos esposar uma adquirimos uma liberdade tão triste.
mulher de menos de cinqüenta; de modo que E claro que as penas infligidas contra os que
um homem de sessenta anos não podia casar- se casavam contra a proibição da lei eram as
se, em nenhum caso, sem incorrer na pena; mesmas que as infligidas aos que não se casa
mas Cláudio3 73 ab-rogou o que havia sido vam. Esses casamentos não lhes davam nenhu
feito, na época de Tibério, a este respeito. ma vantagem civil3 80 : o dote381 ficava ca
Todas estas disposições eram mais confor duco382 depois da morte da mulher.
mes ao clima da Itália do que ao do Norte, Tendo Augusto adjudicado ao tesouro383
onde um homem de sessenta anos tem ainda público as sucessões e os legados dos que estas
força, e onde as mulheres de cinqüenta anos leis declaravam incapazes, tais leis foram antes
geralmente não são estéreis. fiscais do que políticas e civis. A aversão que
Para que não se ficasse inutilmente limitado já se sentia por um encargo que parecia
na escolha que se pudesse fazer, Augusto per acabrunhador foi aumentada pelo de se ver
mitiu a todos os ingênuos que não fossem continuamente exposto à avidez do fisco. Isto
senadores3 7 4 desposar libertas3 7 5. A lei3 7 6 fez com que, na época de Tibério, se fosse obri
Papiana interditava aos senadores o casa gado a modificar38 4 essas leis, que Nero dimi
mento com mulheres que tivessem sido liber nuísse a recompensa dos3 8 5 delatores ao fisco,
tas, ou que se tivessem exibido em teatro; e, no que Trajano38 6 detivesse as extorsões desses,
tempo de Ulpiano3 7 7, era proibido aos ingê que Severo38 7 modificasse essas leis e que os
nuos o casamento com mulheres que tivessem jurisconsultos as considerassem odiosas e, em
tido má vida, que se tivessem exibido em tea suas decisões, abandonassem seu rigor.
tro, ou que tivessem sido condenadas por um
julgamento público. Era necessário que isso
3 78 Vede a lei I, no código de nat. lib. (N. do A.)
tivesse sido estabelecido por algum sepatus- 3 79 Novela, 117. (N. do A.)
consulto. Na época da república quase não se 380 Lei 37, § 7, de oper. libert.; Fragm. de Ulpiano,
fizeram essas espécies de leis, porque os censo tít. XVI, § 2. (N. do A.)
3 81 Fragm., ibid. (N. do A.)
3 82 Vede a este respeito o cap. XIII do liv. XXVI.
3 70 Fragm. de Ulpiano, tít. XVI; e a lei 27, cod. de (N-. do A.)
nupiiis. (N. do A.) 383 Exceto em determinados casos. Vede os
3 71 Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § 3. (N. do A.) Fragm. de Ulpiano, tít. XVIII; e a lei única, no cód.
3 72 Vede Suetônio, in Cláudio, cap. XXIII. (N. do de caduc. tollend. (N. do A.)
A.) 38 4 Relatum de moderando Papia Poppaea. Táci
3 73 Vede Suetônio, Vida de Cláudio, cap. XXIII; e to, An., liv. III, cap. XXV. (N. do A.)
os Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § 3. (N. do A.) 3 8 B Reduziu-as à quarta parte. Suetônio, in Nero-
3 7 4 Dion, liv. LIV; Fragm. de Ulpiano, tít. XIII. ne, cap. X. (N. do A.)
(N. do A.) 38 6 Vede o Panegírico de Plínio. (N. do A.)
3 7 5 Arenga de Augusto, em Dion, liv. LVI. (N. do 38 7 Severo adiou até vinte e cinco anos para os ho
A.) mens e vinte para as mulheres o tempo das disposi
3 7 6 Fragm. de Ulpiano, cap. XIII; e a lei 44, na ff. ções da lei Papiana, como percebemos ao cotejar os
de ritu nuptiarum, no final. (N. do A.) Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, com o que diz Tertu-
3 7 7 Fragm. de Ulpiano, tít. XIII e XIV. (N. do A.) liano, Apologet., cap. IV. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 365
número de filhos; Teodósio, o Jovem, ab-ro expressa dos privilégios e das honrarias que os
gou400 também essas leis. romanos pagãos tinham concedido aos casa
Justiniano declarou válidos401 todos os mentos e ao número de filhos; mas, onde o
casamentos que as leis Papianas proibiram. celibato tivesse preeminência, não mais podia
Essas leis exigiam que se recasasse; Justia- haver honrarias para o casamento; e, apesar de
niano402 concedeu vantagens aos que não tor que se pudessem obrigar os contratadores a
navam a casar-se. renunciar a tantos lucros pela abolição das
Pelas antigas leis, a faculdade natural que penas, percebe-se que foi ainda mais fácil
cada pessoa possui de se casar e ter filhos não suprimir as recompensas.
podia ser abolida. Assim, quando se recebia
A mesma razão de espiritualidade, que per
um legado403 com a condição de não casar,
mitira o celibato, impôs, em breve, a necessi
quando um senhor fazia seu liberto jurar40 4
dade do próprio celibato. Que Deus não me
que não se casaria, e que não teria filhos, a lei
Papiana anulava40 5 tanto está condição como permita falar aqui contra o celibato que a reli
este juramento. As cláusulas, conservando viu gião adotou; mas quem poderá silenciar contra
vez, estabelecidas entre nós contradizem, por aquele que a libertinagem formou? Aquele em
tanto, o direito antigo, e se originam das que dois sexos, corrompendo-se pelos próprios
constituições dos imperadores, estabelecidas sentimentos naturais, evitam uma união que
sobre as idéias da perfeição. deve torná-los melhores, para viverem na que
Não há lei que contenha uma ab-rogação os torna sempre piores?
E uma regra extraída da Natureza que,
400 Leis 2 e 3, cód. Teod., de jure lib. (N. do A.) quanto mais se diminui o número dos casa
401 L. Sancimo, cód. denupfiis. (N. do A.) mentos que poderíam ser contraídos, mais se
4 0 2 f^ov [27, cap. TI, Nov. '117, cap. V. (N. do A.) corrompem os que são feitos; quanto menos
403 Lei 54, ff. de condit, et demonst. (N. do A.) pessoas casadas houver, menos haverá fideli
40 4 Lei 5, § 4, de jure patronat. (N. do A.)
40 5 Paulo, nas Sentenças, liv. III, tít. IV, § 15. (N. dade nos casamentos; como, quando há mais
do A.) ladrões, há mais roubos.
Capítulo XXII
Os primeiros romanos tiveram uma polícia nasso408 que a lei que ordenava aos cidadãos
muito boa acerca da exposição dos filhos. Rô- que se casassem e educassem todos os filhos
mulo, diz Dionísio de Halicarnasso40 6, impôs estava em vigor no ano 277 de Roma; vemos
a todos os cidadãos a necessidade de educar que o uso restringira a lei de Rômulo, que per
todos os filhos masculinos e as filhas primogê mitia expor as filhas mais novas.
nitas. Se os filhos eram disformes ou mons Não temos conhecimento do que a Lei das
truosos, ele permitia que fossem expostos, de Doze Tábuas, estabelecida no ano 301 de
pois de os ter mostrado a cinco dos vizinhos Roma, estatuiu sobre a exposição dos filhos,
mais próximos. senão por um trecho de Cícero 409 que, falan
Rômulo não permitiu40 7 que se matasse do a respeito do tribunato do povo, diz que,
qualquer criança que tivesse menos de três logo depois do nascimento, esse foi sufocado
anos: com isso conciliava a lei que outorgava tal como a criança monstruosa da Lei das
aos pais o direito de vida e morte sobre os Doze Tábuas: os filhos que não eram mons
filhos, e a que proibia que esses fossem truosos eram, portanto, conservados, e a Lei
expostos. das Doze Tábuas em nada modificou as insti
Vemos também em Dionísio de Halicar- tuições precedentes.
40 6 Antiguidades Romanas, liv. II. (N. do A.) 408 Liv. IX. (N. do A.)
40 7 Ibid. (N. do A.) 409 Liv. III, de legib., cap. XIX. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 367
“Os germanos”, narra Tácito410, “não riquezas partilhadas foram denominadas po
expõem seus filhos; e, entre eles, os bons costu breza, quando o pai acreditou ter perdido o
mes têm mais força do que as boas leis têm que dava à sua família, e desligou esta família
alhures.” Havia, pois, entre os romanos, leis de sua propriedade.
contra este uso, mas não eram observadas.
Não encontramos nenhuma lei411 romana que
permita a exposição dos filhos; foi sem dúvida 410 De Morib. Germ., cap. XIX. (N. do A.)
411 Não há título a este respeito no digesto: o títu
um abuso introduzido nos últimos tempos, lo do código nada diz a este respeito, tal como as
quando o luxo aboliu o bem-estar, quando as novelas. (N. do A.)
Capítulo XXIII
Os regulamentos que os romanos fizeram nham aniquilado: dir-se-ia que eles só tinham
para aumentar o número de seus cidadãos tive conquistado o mundo para enfraquecê-lo e
ram resultado enquanto sua república, no auge para entregá-lo indefeso aos bárbaros. As
de seu poderio, só teve que reparar as perdas nações godas412, géticas, sarracenas e tártaras
que sofria por sua coragem, por sua audácia, oprimiram-nos sucessivamente; em breve, os
por sua firmeza, por seu amor à glória e por povos bárbaros não tiveram para destruir
sua própria virtude. Mas logo as leis mais sá senão povos bárbaros. Destarte, no tempo das
bias não puderam restabelecer o que uma repú fábulas, depois das inundações e dos dilúvios,
blica moribunda, o que uma anarquia geral, o saíram da terra homens armados que se
que um governo militar, o que um império exterminaram.
duro, o que um despotismo soberbo, o que
uma monarquia fraca, o que uma corte estúpi 41 2 Godas, isto é, no vocabulário de Montesquieu,
da, idiota e supersticiosa sucessivamente ti germânicas.
Capítulo XXIV
Foram as perpétuas junções de vários de; cada parte do Estado era um centro de
pequenos Estados que produziram essa dimi poder; hoje, tudo se relaciona a um centro e
nuição. Outrora, cada povoado da França era este centro é, por assim dizer, o próprio
uma capital; atualmente, apenas há uma gran Estado.
Capítulo XXV
É verdade que a Europa tem, há dois sécu do particular que praticasse sozinho uma gran
los, aumentado muito sua navegação; isto lhe de navegação. Esse Estado aumentaria sua
proporcionou habitantes e fez com que os per população, porque todas as nações vizinhas vi
ríam participar desta navegação; acorreríam
desse. A Holanda envia todos os anos, às ín
marinheiros de todos os lados. A Europa,
dias, grande número de marinheiros, dos quais separada do resto do mundo pela religião41 5,
apenas dois terços retornam; o resto perece ou por vastos mares e por desertos, não se repara
se estabelece nas índias: a mesma coisa deve assim.
acontecer às outras nações que praticam este
comércio. 415 Os países maometanos cercam-na por quase
Não se deve julgar a Europa como um Esta todos os lados. (N. do A.)
Capítulo XXVI
Consequências
Devemos concluir de tudo isso que a Euro cidadãos que pesavam 41 6 à república, os polí
pa está, ainda hoje, na situação de ter necessi ticos de hoje não nos falam senão de meios
dade de leis que favoreçam a propagação da adequados a aumentá-los.
espécie humana: assim, como os políticos gre
gos nos falam sempre deste grande número de 416 ... que pesavam. . . que molestavam.
Capítulo XXVII
Luís XIV ordenou41 7 certas pensões para que tivessem doze. Mas não se tratava de
os que tivessem dez filhos, e maiores para os recompensar prodígios. Para favorecer um
certo espírito geral que induzisse à propagação
da espécie, teria sido necessário estabelecer,
41 7 Edito de 1666, em favor dos casamentos. (N. como os romanos, recompensas gerais ou
do A.) penas gerais.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 369
Capítulo XXVIII
Como se pode remediar o despovoamento
Quando um Estado se encontra despovoado tarde; os homens, em seus desertos, encon-
por acidentes particulares, guerras, pestes, tram-se sem coragem e sem indústria. Com ter
fomes, há recursos. Os homens que sobram ras para nutrir um povo, mal se tem com que
podem conservar o espírito de trabalho e de alimentar uma família. O baixo povo, nesses
indústria; podem procurar reparar suas des países, não tem mesmo quinhão em sua misé
graças e tornar-se mais industriosos em conse ria, isto é, nos terrenos baldios de que estão
quência da própria calamidade. O mal é quase cheios. O clero, o príncipe, as cidades, os
incurável quando o despovoamento vem de poderosos, alguns cidadãos principais torna
longa data, por um vício interno e um mau ram-se insensivelmente proprietários de toda a
governo. Os homens, neste caso, perecem por região: ela é inculta, mas as famílias destruídas
uma enfermidade insensível e habitual: nasci deixaram-lhes suas pastagens, e o homem de
dos no langor e na miséria, na violência ou nos trabalho nada tem.
preconceitos do governo, viram-se destruir, Nesta situação seria necessário fazer, em
amiúde sem perceber as causas de sua destrui toda a extensão do império, o que os romanos
ção. Os países devastados pelo despotismo ou faziam numa parte do seu: observar na escas
pelas prerrogativas excessivas do clero sobre sez o que observavam na abundância; distri
os laicos são dois grandes exemplos disso 41 8. buir terras a todas as famílias que nada têm;
Para restabelecer um Estado despovoado proporcionar-lhes os meios de desbravá-las e
desta maneira, esperar-se-ia inutilmente o cultivá-las. Essa distribuição deveria fazer-se
auxílio dos filhos que poderíam nascer. É na medida em que houvesse um homem para
recebê-la; de modo que não houvesse um só
418 Possível alusão à Espanha e à Itália. momento perdido para o trabalho.
Capítulo XXIX
Dos hospitais
Um homem não é pobre porque nada tem trabalhos de que são capazes; ensina outros a
mas porque não trabalha. O que não tem ne trabalhar, o que já constitui um trabalho.
nhum bem e trabalha, vive tão comodamente Algumas esmolas que se dão a um homem
quanto o que tem cem escudos de renda sem nu pelas ruas não preenchem de modo algum
trabalhar. Aquele que não tem nada e que tem as obrigações do Estado, que deve a todos os
um ofício, não é mais pobre do que aquele que cidadãos uma subsistência assegurada, alimen
possui dez arpentes de terra como propriedade tação, uma vestimenta conveniente, e um gêne
particular e deve trabalhá-los para subsistir. O ro de vida que não seja contrário à saúde.
operário que deu a seus filhos por herança sua Aureng-Zeb41 9, a quem se perguntava por
arte deixou-lhes um bem que se multiplicou na que não construía hospitais, diz: “Tornarei
proporção de seu número. O mesmo não acon meu império tão rico, que não terá necessidade
tece com aquele que tem dez arpentes de fun de hospitais”. Deveria ter dito: Começarei por
dos para viver, e os divide entre seus filhos. tornar meu império rico e construirei hospitais.
Nos países de comércio, onde muitas pes As riquezas de um Estado pressupõem
soas nada têm além de sua arte, o Estado é muita indústria. Não é possível que, em tão
frequentemente obrigado a prover às necessi grande número de ramos de comércio, não
dades dos velhos, dos doentes e dos órfãos.
Um Estado bem policiado extrai essa subsis 419 Vede Chardin, Voyage de Perse, tomo VIII.
tência do fundo das próprias artes; dá a uns os (N. do A.)
370 MONTESQUIEU
haja sempre algum que esteja em crise e que os lência dos demais, porque, praticando a hospi
operários, consequentemente, não estejam talidade, uma infinidade de pessoas ociosas,
numa necessidade momentânea. gentis-homens e burgueses, passava sua vida a
É então que o Estado necessita oferecer um correr de convento em convento. Suprimiu
pronto auxílio, seja para impedir o povo de ainda os hospitais onde o baixo povo encon
sofrer, seja para evitar que ele se revolte: é trava sua subsistência, como os gentis-homens
neste caso que são necessários hospitais, ou encontravam a sua nos monastérios. Desde
qualquer regulamento equivalente, que possa essas modificações, o espírito de comércio e
prevenir esta miséria. indústria estabeleceu-se na Inglaterra.
Mas, quando a nação é pobre, a pobreza Em Roma, os hospitais fazem com que toda
particular deriva da miséria geral; e ela é, por gente viva comodamente, exceto os que traba
assim dizer, a miséria geral. Todos os hospitais lham, exceto os que têm indústria, exceto os
do mundo não poderiam sanar esta pobreza que cultivam as artes, exceto os que têm terra,
particular; ao contrário, o espírito de indo exceto os que praticam o comércio.
lência que eles inspiram aumenta a pobreza Disse que as nações ricas tinham necessi
geral e, consequentemente, a particular. dade de hospitais, porque a fortuna aí estava
Henrique VIII420, querendo reformar a sujeita a mil acidentes; mas percebe-se que
Igreja da Inglaterra, destruiu os monges, classe auxílios momentâneos seriam melhores do que
indolente por si mesma e que mantinha a indo estabelecimentos perpétuos. O mal é momentâ
neo; é mister, pois, auxílios da mesma nature
420 Vede História da Reforma da Inglaterra, por za, e que sejam aplicáveis ao acidente particu
Burnet. (N. do A.) lar.
QUINTA PARTE
Como se pode julgar entre as trevas as que radas na relação com verdades mais subli
são menos espessas, e entre os abismos os que mes1.
são menos profundos, assim se pode procurar Quanto à verdadeira religião, bastará pou
entre as religiões falsas as que são mais con quíssima equidade para ver que jamais pre
formes ao bem da sociedade; as que, embora tendí fazer seus interesses cederem aos interes
não tenham o efeito de conduzir os homens ses políticos, mas uni-los: ora, para uni-los,
para as venturas da outra vida, podem contri cumpre conhecê-los.
A religião cristã, que ordena que os homens
buir mais para a sua felicidade nesta. se amem, quer sem dúvida que cada povo
Só examinarei, portanto, as diversas reli tenha as melhores leis políticas e as melhores
giões do mundo em relação ao bem que delas leis civis, porque elas são, depois dela, o maior
se tira no estado civil, quer fale das que têm bem que os homens podem dar e receber.
sua raiz no Céu, quer das que a têm na Terra.
Como nesta obra não sou teólogo mas escri
tor político, poderia haver coisas que não se 1 Notar-se-á aqui e posteriormente com que conve
niência e com que circunspecção Montesquieu fala
riam integralmente verdadeiras senão no modo de uma religião que ele parece considerar sobretudo
de pensar humano, não tendo sido conside como religião oficial.
Capítulo II
Paradoxo de Bayle
Bayle2 pretendeu provar que mais valia ser que nem sempre ela reprime, é dizer que as leis
ateu que idólatra; isto é, em outros termos, que civis também não são um motivo repressor. É
é menos perigoso não ter religião alguma do mau raciocinar contra a religião, reunir numa
que ter uma má. “Preferiría”, diz ele, “que dis grande obra uma longa enumeração dos males
sessem de mim que não existo, a que dissessem que ela produziu, se não se faz o mesmo com
que sou um homem perverso.” Isto não é mais os bens que ela produziu. Se eu quisesse relatar
do que um sofisma, baseado na idéia de que todos os males que as leis civis, a monarquia, o
não é de nenhuma utilidade para o gênero hu governo republicano produziram no mundo,
mano crer-se que certo homem existe, ao passo diria coisas espantosas. Ainda que fosse inútil
que é muito útil que se acredite que Deus exis que os súditos tivessem uma religião, não o
te. Da idéia de que ele não existe, decorre a seria que os príncipes a tivessem e embranque
idéia de nossa independência; ou, se não pode cessem de espuma o único freio que podem ter
mos ter esta idéia, a de nossa revolta. Dizer os que não temem as leis humanas.
que a religião não é um motivo repressor por Um príncipe que ama a religião e a teme é
um leão que cede à mão que o afaga ou à voz
2 Pensées sur la Comète, etc. Continuation des que o apazigua: o que teme a religião e a odeia
Pensées, etc., tomo II. (N. do A.) é como os animais selvagens que mordem a
374 MONTESQUIEU
corrente que os impede de atirar-se sobre os Para diminuir o horror do ateísmo acusa-se
que passam; aquele que não tem nenhuma reli muito a idolatria. Não é verdade que, quando
gião é este animal terrível que só sente sua os antigos erigiam altares a algum vício, isto
liberdade quando estraçalha e devora. significasse que amassem este vício; ao contrá
O problema não é saber se seria preferível rio, significava que o odiavam. Quando os
lacedemônios levantaram uma capela ao
que certo homem ou que certo povo não tives
Medo, isso não significava que esta nação beli
se religião a que abusasse da que tem, mas cosa lhe pedisse que se apoderasse, durante os
saber qual é o menor mal: que se abuse algu combates, dos corações dos lacedemônios.
mas vezes da religião ou que ela não exista Havia divindades a quem se pedia não inspirar
absolutamente entre os homens. o crime, e outras a quem se pedia desviá-lo.
Capítulo III
A religião cristã está afastada do puro filhos3 do rei de Senaar; com sua morte, o
despotismo: é que, sendo a brandura tão reco Conselho os manda degolar em benefício do
mendada no Evangelho, ela se opõe à cólera que sobe ao trono.
despótica com a qual o príncipe faria justiça e Que se ponham, de um lado, diante dos
exercería suas crueldades. olhos as chacinas contínuas dos reis e dos che
Proibindo esta religião a pluralidade de fes gregos e romanos; e, de outro, a destruição
esposas, os príncipes são menos enclausu dos povos e das cidades pelos mesmos chefes;
rados, menos separados de seus súditos e, Timur e Gengis-Cã, que devastaram a Ásia; e
consequentemente, mais homens; estão mais veremos que devémos ao cristianismo, no
dispostos a fazer leis e mais capazes de sentir governo, certo direito político, e na guerra
que não podem tudo. certo direito das gentes, que a natureza huma
Enquanto os príncipes maometanos conde na não poderia reconhecer de modo suficiente.
nam incessantemente à morte, ou são mortos, É o direito das gentes que faz com que, entre
a religião, entre os cristãos, torna os príncipes nós, a vitória deixe aos povos vencidos estas
menos tímidos, e, consequentemente, menos grandes coisas: a vida, a liberdade, as leis, os
cruéis. O príncipe confia em seus súditos, e os bens, e sempre a religião, desde que não nos
súditos no príncipe. Coisa admirável! A reli deixemos cegar4.
gião cristã, que parece não ter outro objetivo Podemos dizer que os povos da Europa não
senão a felicidade na outra vida, proporciona são hoje mais desunidos do que o eram os
também a nossa nesta vida. povos e os exércitos ou os exércitos entre si no
império romano, tornado despótico e militar:
É a religião cristã que, apesar da grandeza
de um lado, os exércitos guerreavam entre si, e,
do império e do vício do clima, impediu o des
de outro, a pilhagem das cidades e a partilha
potismo de se estabelecer na Etiópia, e levou
ou confisco das terras lhes eram entregues.
para o centro da África os costumes da Euro
pa e suas leis.
O príncipe herdeiro da Etiópia goza de um 3 Relation dEthiopie, pelo Senhor Ponce, médico,
principado, e dá aos outros súditos o exemplo na quarta coleção das Lettres Edifiantes, pág. 290.
(N. do A.)
de amor e de obediência. Bem próximo desse 4 “Tratar-se-ia”, pergunta Laboulaye, “de uma alu
país, vemos o maometismo mandar encerrar os são à expulsão dos judeus da Espanha?”
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 375
Capítulo IV
Com relação ao caráter da religião cristã e A história de Sabaco 5, um dos reis pastores,
ao da maometana devemos, sem outro exame, é admirável. O deus de Tebas lhe apareceu em
acolher uma e rejeitar outra, pois é bem mais sonhos e lhe ordenou que mandasse matar
evidente que uma religião deve abrandar os todos os sacerdotes do Egito. Julgou ele que
costumes dos homens do que ser verdadeira. seu reinado não mais agradava aos deuses pois
É uma infelicidade para a natureza humana
lhe ordenavam coisas tão contrárias à sua von
quando a religião é imposta por um conquista
dor. A religião maometana, que só fala do glá- tade normal, e retirou-se para a Etiópia.
dio, age ainda sobre os homens com este espí
rito destruidor que a fundou. 5 Vede Diodoro, liv. I, cap. XVIII. (N. do A.)
Capítulo V
Quando uma revolução nasce e se forma independência do clima que aquela que tem
num Estado, segue geralmente o plano do um.
governo no qual está estabelecida, pois os ho Nos próprios países em que a religião
mens que a recebem e os que a fazem receber protestante se estabeleceu, as revoluções se
quase não têm outras idéias de organização 6 fizeram no plano do Estado político. Lutero,
do que aquelas do Estado em que nasceram. tendo a seu favor grandes príncipes, quase não
Quando a religião cristã sofreu, há dois sé teria podido lhes fazer apreciar uma autori
culos, esta infeliz divisão que a separou em
católica e protestante, os povos do Norte abra dade eclesiástica que não tivesse tido preemi-
çaram a protestante, e os do Sul conservaram nêr\cia externa: e tendo Calvino a seu favor
a católica. povos que viviam em repúblicas, ou burgueses
É que os povos do Norte têm e terão sempre obscurecidos em monarquias, podia muito
um espírito de independência e de liberdade bem não estabelecer preeminências e dignida
que os povos do Sul não têm, e uma religião des.
que não Cem chefe visível convém mais à Cada uma dessas duas religiões podia acre
ditar-se a mais perfeita; a calvinista julgando-
6 ... organização, também aqui com sentido de se mais conforme ao que Jesus Cristo dissera,
administração, de governo. e a luterana ao que os apóstolos tinham feito.
Capítulo VI
O Senhor Bayle, depois de ter insultado mariam um Estado que pudesse subsistir. Por
todas as religiões, aviltou a religião cristã: que não? Seriam cidadãos infinitamente escla
ousa afirmar que verdadeiros cristãos não for recidos com relação a seus deveres, e que
376 MONTESQUIEU
Capítulo VII
As leis humanas feitas para falar ao espírito com que as primeiras fossem observadas. O
devem dar preceitos e nunca conselhos7: a reli celibato foi um conselho do cristianismo:
gião, feita para falar ao coração, deve dar quando se fez uma lei para uma certa ordem de
muito de conselhos e pouco de preceitos. pessoas8, foram necessárias diariamente novas
Quando, por exemplo, ela dá regras não leis9 para fazer com que os homens obser
para o bem mas para o melhor, não para o que
vassem a primeira. O legislador se fatigou e
é bom mas para o que é perfeito, é conveniente
que sejam conselhos e não leis, pois a perfei fatigou a sociedade para fazer os homens
ção não diz respeito à universalidade dos ho executarem, por preceito, o que os que amam a
mens nem das coisas. Demais, se são leis, seria perfeição teriam executado por conselho.
necessária uma infinidade de outras para fazer
8 ... uma certa ordem de pessoas... os sacerdo
7 Na terminologia teológica distingue-se o conse tes e os religiosos.
lho, que é simplesmente “conselho”, do preceito, que 9 Vede a Bibliothèque des -Auteurs Eclés. du
“ordena”. Sixième Siècle, tomo V, por Dupin. (N. do A.)
Capitulo VIII
Num país em que se tem a infelicidade de ter fazer, ao contrário, todo bem possível. Com
uma religião que Deus não deu, é sempre isso acreditam que as pessoas se salvarão em
necessário que ela esteja de acordo com a qualquer religião, qualquer que seja ela, o que
moral, porque a religião, mesmo falsa, é a me faz com que estes povos, apesar de orgulhosos e
pobres, usem de brandura e compaixão para
lhor garantia que os homens podem ter da pro com os infelizes.
bidade dos homens.
Os principais pontos da religião dos de
10 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
Pegu10 são: não matar, não roubar, evitar a l LÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo
impudicícia, não causar dano ao próximo e lhe III, parte I, pág. 63. (N. do Â.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 377
Capítulo IX
Dos essênios
Capítulo X
Da seita estóica12
As diversas seitas de filosofia entre os anti não encontrareis nada maior que os Antoni-
gos podiam ser consideradas como espécies de nos; o próprio Juliano, Juliano (um sufrágio
religião. Nunca houve uma cujos princípios arrancado desta maneira não me tornará cúm
fossem mais dignos do homem e mais adequa plice de sua apostasia), não, não houve depois
dos à formação de pessoas de bem que a dos dele príncipe mais digno de governar os
estóicos; e, se eu pudesse por um momento dei homens.
xar de pensar que sou cristão, não poderia me Enquanto os estóicos consideravam como
impedir de colocar a destruição da seita de uma coisa inútil as riquezas, as grandezas
Zenon no número das desgraças do gênero humanas, a dor, as mágoas, os prazeres, ape
humano. nas se empenhavam em trabalhar pela felici
Ela exagerava apenas as coisas nas quais há dade dos homens, em cumprir os devefes da
grandeza, o desprezo pelos prazeres e pela dor. sociedade; parecia que eles consideravam este
Só ela sabia fazer cidadãos; só ela formava espírito que acreditavam estar neles próprios
grandes homens; só ela fazia grandes impera como uma espécie de providência favorável
dores. que velava sobre o gênero humano.
Fazei por um momento abstração das ver Nascidos para a Sociedade, acreditavam
dades reveladas; procurai em toda natureza e todos que seu destino era trabalhar para ela,
coisa tanto menos penosa quanto suas recom
pensas estavam todas neles próprios, e, felizes
12 Laboulaye diz, segundo um artigo de Despois
da Revue Politique de 14 de novembro de 1874, que apenas com sua filosofia, parecia que a sim
“este capítulo teria sido tomado do Traité Général ples felicidade dos outros pudesse aumentar a
des Devoirs, obra da juventude de Montesquieu”. sua.
Capítulo XI
Da contemplação
Sendo os homens feitos para se conservar, Os maometanos tornam-se especulativos
para se nutrir, para se vestir, e fazer todas as por hábito; oram cinco vezes por dia, e de
ações da sociedade, a religião não deve lhes cada vez é necessário que façam um ato pelo
dar uma vida muito contemplativa13. qual lançam para trás tudo o que pertence a
este mundo; isto os prepara para a especula
13 É o inconveniente da doutrina de Foè e de Laoc-
ção. Acrescentai a isto esta indiferença por
kium. (N. do A.)* todas as coisas, que dá o dogma de um destino
* O “Foè” e o “Laockium” que Montesquieu cita rígido.
em sua nota são Buda e Lao-Tsé. Se, além disso, outras causas concorrem
378 MONTESQUIEU
para lhes inspirar o desprendimento, como se a A religião dos guebros tornou, outrora, o
dureza do governo, se as leis concernentes à reino da Pérsia florescente; ela corrigiu os
propriedade das terras incutem um espírito maus efeitos do despotismo. Hoje, a religião
precário, tudo está perdido. maometana destruiu esse mesmo império.
Capítulo XII
Das penitências
É útil que as penitências estejam ligadas à idéia de trabalho e não à idéia de ócio; à idéia do
bem e não à idéia do extraordinário; à idéia da frugalidade e não à idéia da avareza.
Capítulo XIII
Parece, por um trecho dos livros dos pontífi tém atados por algumas cadeias mas por um
ces, relatado por Cícero1*4, que havia entre os número incontável de fios; que deixa atrás de
romanos crimes1 5 inexpiáveis; e é sobre isso si a justiça humana e começa outra justiça;
que Zósimo baseia o relato tão próprio a enve que é feita para levar, incessantemente, do
nenar os motivos da conversão de Constantino arrependimento ao amor, e do amor ao
e, Juliano, essa zombaria amarga que faz dessa arrependimento; que coloca entre o juiz e o cri
mesma conversão em seus Césares' 6. minoso um grande mediador, entre o justo e o
A religião pagã, que só proibia alguns cri
mediador um grande juiz: uma tal religião não
mes grosseiros, que detinha a mão e abando
deve ter crimes inexpiáveis. Mas, embora ins-
nava o coração, podia ter crimes inexpiáveis;
mas uma religião que envolve todas as pai , pire temores e esperanças a todos, deixa sentir
perfeitamente que, se não há crime que pela
xões; que é tão ciosa das ações quanto dos
desejos e dos pensamentos; que não nos man sua natureza seja inexpiável, toda uma vida
pode sê-lo; que seria muito perigoso atormen
tar incessantemente a misericórdia com novos
1 4 Liv. II, Das Leis, cap. XXII. (N. do A.)
1 5 Sacrum commissum, quod neque expiaripoterit, crimes e novas expiações; que, inquietos com
impie commissum est; quod expiari poterit publici as antigas dívidas, nunca saldadas com o
sacerdotes expianto. (N. do A.) Senhor, devemos temer contrair novas, encher
1 6 Criticava-se Constantino de ter-se feito cristão
apenas para “expiar a morte de seu filho”, na reali as medidas, e chegar até o ponto em que a bon
dade ocorrida catorze anos depois. dade paternal termina.
Capítulo XIV
mais vigilante, para que os homens que, sem de inferno, mas para punir os que deixaram de
isso, se entregariam a si mesmos, sejam condu andar nus em certas estações, os que vestiram
zidos por estes motivos; mas, se a religião esta roupas de algodão e não de seda, os que procu
belece o dogma da liberdade, a coisa é outra. raram ostras, os que agiram sem consultar o
Da preguiça da alma nasce o dogma da canto dos pássaros. Destarte, não consideram
predestinação maometana; e do dogma desta como pecado a embriaguez e os desregra-
predestinação nasce a preguiça da alma. Foi mentos com mulheres; acreditavam mesmo
dito: isto está nos decretos de Deus; é preciso, que a devassidão dos filhos agradava os
pois, permanecer em repouso. Em tal caso, deuses.
deve-se despertar com leis os homens adorme Quando a religião justifica por uma coisa
cidos pela religião. acidental, perde inutilmente a maior mola que
Quando a religião condena as coisas que as pode existir entre os homens. Entre os india
leis civis devem permitir, é perigoso que as leis nos, acredita-se que as águas do Ganges têm
civis não permitam de seu lado o que a religião virtude santificante20, sendo os que morrem
deve condenar, assinalando sempre uma des em suas margens considerados isentos de cas
sas coisas uma falta de harmonia e de exatidão tigos na outra vida, devendo habitar uma
nas idéias que se difunde sobre a outra. região plena de delícias; enviam-se, dos luga
Assim, os tártaros1*8 de Gengis-Cã, entre os res mais distantes, urnas cheias de cinzas dos
quais era um pecado e mesmo um crime capi mortos para lançá-las no Ganges. Que importa
tal colocar a faca no fogo, apoiar-se contra um viver virtuosamente, ou não? Far-se-ão lançar
chicote, bater num cavalo com as rédeas, par no Ganges.
tir um osso com outro, não acreditavam que A idéia de um lugar de recompensa implica
houvesse pecado em violar a fé, arrebatar o necessariamente -a idéia de uma estada de cas
bem de outrem, injuriar um homem, matá-lo. tigos; e, quando se espera uma sem temer a
Numa palavra: as leis que fazem considerar outra, as leis civis não mais têm força. Ho
como necessário o que é indiferente têm o mens que acreditam em recompensas certas na
inconveniente de levar a considerar como indi outra vida escaparão ao legislador; terão
ferente o que é necessário. demasiado desprezo pela morte. Que meio
Os de Formosa19 acreditam numa espécie poderia conter pelas leis um homem que crê
estar certo que a maior pena que os magis
1 8 Vede a relação do Irmão Jean Duplan Carpin, trados lhe poderão infligir terminará num
enviado para a Tartária pelo Papa Inocêncio IV, no momento para logo começar sua felicidade?
ano de 1246. (N. do A.)
19 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo V, 20 Lettres Édifiantes, décima quinta coletânea. (N.
parte I, pág. 192. (N. do A.) do A.)
Capítulo XV
O respeito às coisas antigas, a simplicidade mulheres e filhos. Lei civil admirável que con
ou a superstição, têm, algumas vezes, estabele serva os costumes contra a religião!
Augusto22 proibiu os jovens de ambos os
cido mistérios ou cerimônias que podiam aten sexos de assistirem a qualquer cerimônia
tar ao pudor; e os exemplos disso não foram noturna se não estivessem acompanhados de
raros no mundo. Aristóteles diz21 que, neste um parente mais velho; e, quando restabeleceu
caso, a lei permite aos pais de família irem ao as festas23 lupercais, não quis que os jovens
corressem nus.
templo celebrar estes mistérios para suas
22 Suetônio, in Augusto, cap. XXXI. (N. do A.)
21 Política, liv. VII, cap. XVII. (N. do A.) 23 Ibid. (N. do A.)
380 MONTESQUIEU
Capítulo XVI
De outro lado, a religião pode sustentar o Nos Estados em que as guerras não se
Estado político quando as leis se acham na fazem por deliberação comum, e onde as leis
impotência. não deixaram nenhum meio de terminá-las ou
Assim, quando o Estado é amiúde agitado preveni-las, a religião estabelece tempos de paz
por guerras civis, a religião muito fará se esta
e de tréguas, para que o povo possa fazer as
belecer que alguma parte deste Estado perma
neça sempre em paz. Entre os gregos, os elea- coisas sem as quais o Estado não poderia sub
tas, como sacerdotes de Apoio, gozavam de sistir, como as sementeiras e trabalhos seme
uma paz eterna. No Japão2*4, deixa-se sempre lhantes.
em paz a cidade de Meaco2 5, que é uma cida Cada ano, durante quatro meses, toda hosti
de santa; a religião mantém este regulamento; lidade cessava entre as tribos2 6 árabes: a
e este império, que parece estar sozinho na
terra, que não tem e que não quer ter nenhum menor perturbação teria sido uma impiedade.
recurso da parte de estrangeiros, mantém sem Na França, quando cada senhor fazia a guerra
pre em seu seio um comércio que a guerra não ou a paz, a religião estabelecia tréguas que
arruina. deveríam ocorrer em certas estações2 7.
2 4 Recueil des Voyages qui Ont Servi à 2 6 Vede Prideaux, Vie de Mahomet, pág. 64. (N.
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo do A.)
IV, parte I, pág. 64. (N. do A.) 2 7 Reconheceu-se a “trégua de Deus” instituída
2 5 Meaco. Trata-se de Kioto Tokjo. por São Luís.
Capítulo XVII
Quando há muitos motivos de ódio num recebia a reparação. “Coisa muito útil”, escre
Estado, cumpre que a religião apresente mui ve Tácito30, “porque as inimizades são mais
tos meios de reconciliação. Os árabes, povo perigosas num povo livre.” Creio que os minis
salteador, frequentemente se dirigiam injúrias tros da religião, que gozavam de tanto crédito
e injustiças. Maomé28 estabeleceu esta lei: “Se entre eles, entravam nessas reconciliações.
alguém perdoa o sangue de seu irmão29, pode Entre os malaios31, em que a reconciliação
rá perseguir o malfeitor por danos e perdas;
não estava estabelecida, quem tivesse matado
mas quem prejudicar o comerciante, depois de
este lhe ter dado reparação, sofrerá no dia do outra pessoa, certo de ser assassinado pelos
juízo tormentos dolorosos”. parentes ou amigos do morto, entrega-se à sua
Entre os germanos, herdavam-se os ódios e fúria, fere e mata tudo o que encontra.
inimizades dos parentes; mas eles não eram
eternos. Expiava-se o homicídio oferecendo 30 De Moribus German., cap. XXI. (N. do A.)
uma certa quantidade de gado, e toda a família 31 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
VÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo
VII, pág. 303. Vede também as Mémoires du Comte
2 8 No Alcorão, liv. I, cap. Da Vaca. (N. do A.) de Forbin e o que ele diz sobre os macáçares. (N. do
2 9 Renunciando à lei do talião. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 381
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Os dogmas mais verdadeiros ou mais santos ses3 6 e assim é ainda hoje no Japão3 7, em
podem ter consequências muito más, quando Macáçar3 8 e em vários outros lugares da terra.
não estão relacionados aos princípios da socie Esses costumes emanam menos diretamente
dade; e, ao contrário, os dogmas mais falsos do dogma da imortalidade da alma que do da
podem ter admiráveis consequências quando ressurreição dos corpos; de onde se tirou esta
se faz de modo com que se relacionem com os consequência: que, após a morte, um mesmo
mesmos princípios.
A religião de Confúcio nega a imortalidade 3 5 Um filósofo chinês assim argumenta contra a
da alma; e a seita de Zenon não acreditava doutrina de Foè: “Diz-se, num livro desta seita, que
nela. Quem o diria? Estas duas seitas extraí o corpo é nosso domicílio, e a alma,o hóspede imor
ram de seus maus princípios consequências, tal que nele habita; mas, se o corpo de nossos pais
não passa de um alojamento, é natural considerá-lo
senão justas, ao menos admiráveis para a com o mesmo desprezo que se tem por um monte de
sociedade. lama e de terra. Não será isso querer arrancar do
A religião dos Tau e dos Foê acreditava na coração a virtude do amor pelos pais? Isso leva
imortalidade da alma; porém, desses dogmas mesmo a negligenciar o cuidado com o corpo, e lhe
recusar a compaixão e o afeto tão necessários para
tão santos, extraíram consequências horrí a sua conservação; assim, os discípulos de Foè se
veis3 5 matam aos milhares”. Obra de um filósofo chinês,
Quase em todo o mundo e em todos os tem na coletânea do Padre du Halde, tomo III, pág. 52.
pos, a opinião da imortalidade da alma, mal (N. do A.)
interpretada, levou as mulheres, os escravos, 3 6 Vede Thomas Bartholin, Antiguidades Dina
marquesas. (N. do A.)
os súditos, os amigos, a se matarem, para ir
3 7 Relação do Japão, em Recueil des Voyages qui
servir num outro mundo o objeto de seu res Ont Servi à lÈtablissement de la Compagnie des
peito ou de seu amor. Assim era nas índias Indes. (N. do A.)
Ocidentais; assim era entre os dinamarque 3 8 Mémoires de Forbin. (N. do A.)
382 MONTESQUIEU
indivíduo teria as mesmas necessidades, os Não basta para uma religião estabelecer um
mesmos sentimentos, as mesmas paixões. dogma; cumpre também que ela o oriente. É o
Desse ponto de vista, o dogma da imortalidade que faz admiravelmente bem a religião cristã
da alma afeta prodigiosamente os homens, com respeito aos dogmas de que falamos; faz-
pois a idéia de uma simples mudança de mora-* nos esperar um estado em que nós acreditamos
dia está mais ao alcance de nosso espírito e e não um estado que sentimos ou que conhece
lisonjeia mais nosso coração do que a idéia de mos; tudo, até a ressurreição dos corpos, leva-
uma nova modificação. nos a idéias espirituais.
Capitulo XX
Os livros39 sagrados dos antigos persas filhos, porque todas as boas ações que farão
diziam: “Se quereis ser santos, instruí vossos vos serão imputadas”. Aconselhavam a casar-
se cedo, porque os filhos seriam como uma
ponte no dia do julgamento, e os que não tives
39 Hyde, De Religione Veterum Persarum in sem filhos não poderíam passar. Esses dogmas
Sad-der. eram falsos mas muito úteis.
Capítulo XXI
Da metempsicose
O dogma da imortalidade da alma divide-se dos dois primeiros; e direi do terceiro que,
em três ramos: o da imortalidade pura, o da como foi bem e mal dirigido, teve nas índias
simples mudança de morada40, o da metem . bons e maus efeitos. Como dá aos homens
psicose, isto é, o sistema dos cristãos, o sistema certo horror ao derramamento de sangue, há
dos citas, o sistema dos hindus. Acabo de falar nas índias poucos homicídios; e, apesar de
nesse país quase não se punir com a morte,
toda gente está tranquila.
40 Mudança de morada, simples mudança de
lugar. A alma separada, entre os egípcios, por exem De outro lado, as mulheres são queimadas
plo, parece conservar as mesmas necessidades que quando da morte dos maridos; lá, só os ino
os corpos. centes sofrem morte violenta.
Capítulo XXII
Certa honra, que preconceitos de religião a certa aversão por outros homens, bem dife
estabelecem nas índias, faz com que as diver rente dos sentimentos que devem originar as
sas castas tenham horror umas pelas outras. diferenças de categoria, que entre nós encer
Essa honra está baseada unicamente na reli ram o amor pelos inferiores.
gião; tais distinções de família não formam As leis da religião evitarão inspirar outro
distinções civis: há determinado indiano que se desprezo além do vício, e sobretudo afastar os
acreditaria desonrado se comesse com seu rei. homens do amor e da piedade pelos homens.
Tais formas de distinção estão relacionadas A religião maometana e a hindu têm em seu
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 383
Capítulo XXIII
Das festas
Capítulo XXIV
Há muitas leis locais nas diversas religiões. cam4 7 mediocremente; estão sujeitos a muitas
E quando Montezuma se obstinava tanto em doenças: uma lei de religião que os conserve é,
dizer que a religião dos espanhóis era boa para portanto, muito conveniente à polícia do país.
o país deles, e a do México para o seu, não Enquanto as pradarias são queimadas, o
dizia um absurdo porque, efetivamente, os arroz e os legumes ali crescem facilmente gra
legisladores não puderam deixar de levar em ças às águas que se podem utilizar: uma lei de
conta o que a Natureza estabelecera antes religião que só permita esse alimento é por
deles. tanto muito útil aos homens desses climas.
A opinião da metempsicose é feita para o A carne48 do gado não tem gosto e o leite e
clima das índias. O calor excessivo queima4 6 a manteiga que dele se obtêm constituem uma
todos os campos; só se pode alimentar parcela de sua subsistência. A lei que proíbe
pouquíssimo gado; há sempre o perigo de esse
faltar para a lavoura. Os bois só se multipli
4 7 Lettres Édifiantes, segunda coletânea, pág. 95.
(N. do A.)
4 6 Voyage de Bernier, tomo II, pág. 137. (N. do A.) 48 Voyage áe Bernier, tomo II, pág. 137. (N. do A.)
384 MONTESQUIEU
matar e comer vacas não é portanto absurda oferendas aos deuses de certos pequenos pre
nas índias. sentes os honravam 49 mais do que os que imo
Atenas tinha em seu seio uma multidão lavam bois.
inumerável de povos; seu território era estéril;
foi uma máxima religiosa que os que faziam 49 Eurípides, em Ateneu, liv. II, pág. 40. (N. do A.)
Capítulo XXV
Capítulo XXVI
Chardin 5 5 afirma que não há rio navegável Quando a religião, baseada no clima, foi
na Pérsia, com exceção do rio Kur5 6, situado muito contrária ao clima de outro país, não
nas extremidades do império. A antiga lei dos pôde estabelecer-se nesse; e quando foi intro
guebros, que interditava a navegação nos rios, duzida, expulsaram-na. Parece, humanamente
não tinha, pois, qualquer inconveniente em seu
falando, que foi o clima que prescreveu limites
país; mas em outro teria arruinado o comércio.
à religião cristã e à maometana.
As contínuas abluções são muito usadas nos
climas quentes. Isso fez com que a lei maome- Decorre daí que é quase sempre conveniente
tana e a religião hindu as ordenassem. É um que uma religião tenha dogmas particulares e
ato muito meritório nas índias orar5 7 a Deus um culto geral. Nas leis que concernem às prá
em água corrente: mas como executar essas ticas do culto, faz-se mister poucos pormeno
coisas em outros climas? res; por exemplo, mortificações e não uma
certa mortificação. O cristianismo está repleto
5 5 Voyage en Perse, tomo II. (N. do A.) de bom senso: a abstinência é de direito divi
56 . . .rio Kur. . . antigamente, o Ciros, que se
lança ao mar Cáspio. no; mas uma abstinência particular é de direito
5 7 Voyage de Bernier, tomo II. (N. do A.) de polícia e pode-se mudá-la.
385
O homem piedoso e o ateu falam sempre de religião: um fala do que ama e outro do que teme.
Capítulo II
As diversas religiões do mundo não dão aos sua religião do que os protestantes à sua, e
que as professam motivos iguais de afeição por mais zelosos por sua propagação.
elas: isso depende muito da maneira como elas Quando 58 o povo de Éfeso soube que os pa
se conciliam com o modo de pensar e sentir dres do concilio tinham decidido que se podia
dos homens. chamar59 a Virgem Mãe de Deus, foi tomado
Estamos muito inclinados à idolatria e de alegria: beijava as mãos dos bispos, abra
entretanto não estamos muito ligados às reli çava seus joelhos, explodindo em aclamações.
giões idólatras; quase não tendemos às idéias Quando uma religião intelectual nos dá
espirituais e, todavia, somos muito afeiçoados ainda a idéia de uma escolha feita pela Divin
às religiões que nos fazem adorar um Ser espi dade, e de uma distinção entre os que a profes
ritual. É um sentimento feliz que decorre em sam e os que não o fazem, isso muito nos afei-
çoa a essa religião. Os maometanos não
parte da satisfação que encontramos em nós
próprios, de possuir inteligência suficiente seriam tão bons muçulmanos, se de um lado
não houvesse povos idólatras que lhes fizessem
para ter escolhido uma religião que tira a
pensar que eram os vingadores da unidade de
divindade da humilhação em que as demais a
Deus e se não houvesse, de outro lado, cristãos
haviam colocado. Consideramos a idolatria
para lhes fazer crer que eles eram o objeto de
como a religião dos povos rudes, e a religião suas preferências.
que tem por objeto um Ser espiritual, como a Uma religião carregada de muitas60 práti
dos povos esclarecidos. cas prende mais do que outra que as tenha
Quando à idéia de um Ser espiritual supre menos: prendemo-nos às coisas com que esta
mo, que forma o dogma, podemos acrescentar mos continuamente ocupados, como testemu-
também idéias sensíveis que fazem parte do
culto, isso nos dá um grande apego à religião,
58 Carta de São Cirilo. (N. do A.)
porque os motivos que acabamos de citar se 59 O concilio tornara obrigatória esta denomina
acham ligados à nossa tendência natural pelas ção.
60 Isso não está em contradição com o que afirmei
coisas sensíveis. Desse modo, os católicos, que no penúltimo capítulo do livro precedente: refiro-me
têm mais do que os protestantes essa espécie aqui aos motivos de apego a uma religião e ali aos
de culto, são mais invencivelmente apegados à meios de torná-la mais geral. (N. do A.)
388 MONTESQUIEU
nha a tenaz obstinação dos maometanos61 e der, é necessário que tenha uma moral pura.
dos judeus, e a facilidade com que os povos Os homens, velhacos isoladamente, são, toma
bárbaros e selvagens mudam de religião, pois, dos em conjunto, pessoas muito honestas;
ocupados unicamente com a caça ou a guerra, amam a moral e, se eu não tratasse de um
quase não se ocupam de práticas religiosas. assunto tão grave, diria que isso pode ser
Os homens estão muito inclinados a esperar observado admiravelmente bem nos teatros:
e a temer; e uma religião que não possua nem tem-se certeza de agradar o público pelos
inferno nem paraíso dificilmente poderia agra sentimentos que a moral reconhece e tem-se
dar-lhes. Prova-se isso pela facilidade que tive certeza de chocá-lo pelos que ela reprova.
ram as religiões estrangeiras em se estabelecer Quando o culto exterior possui grande
magnificência, isto nos lisonjeia e nos dá
no Japão, e o zelo e o amor com que foram
muito apego à religião. As riquezas dos tem
recebidas 62.
plos e as do clero muito nos afetam. Destarte,
Para que uma religião seja capaz de pren-
a própria miséria dos povos é um motivo de
apego a esta religião, que serviu de pretexto
61 Isso é observado em toda a terra. Vede, a res aos que causaram sua miséria.
peito dos turcos, as Missions du Levant; Recueil des
Voyages qui Ont Servi à l Établissement de la Com
pagnie des Indes, tomo III, parte I, pág. 201, sobre 62 A religião cristã e a religião dos hindus: estas
os mouros da Batávia, e o Padre Labat, sobre os ne têm um inferno e um paraíso, ao passo que a reli
gros maometanos, etc. (N. do A.) gião xintoísta não os tem. (N. do A.)
Capítulo III
Dos templos
Quase todos os povos policiados moram em Os povos que não têm templos possuem
casas. Disso decorreu naturalmente a idéia de pouco apego à sua religião: eis por que os tár
construir para Deus uma casa onde os homens taros sempre foram tão tolerantes65* , eis por
pudessem adorá-lo e procurá-lo em seus temo que os povos bárbaros que conquistaram o
res ou esperanças. império romano não hesitaram um momento
De fato, nada é mais consolador para eles em abraçar o cristianismo; eis por que os sel
do que um lugar onde encontram a divindade vagens da América são tão pouco afeiçoados à
mais presente, e onde todos em conjunto dei sua própria religião e eis por que, desde que
xam falar sua miséria e fraqueza. nossos missionários fizeram com que cons
Mas essas idéias tão naturais só ocorrem truíssem igrejas, no Paraguai, eles são tão
aos povos que cultivam a terra e não veremos zelosos pela nossa.
templos construídos entre os que não têm Como a divindade é o refúgio dos infelizes e
casas para si mesmos. como não há gente mais desgraçada do que os
Foi isso que fez com que Gengis-Cã reve criminosos, foi-se, naturalmente, levado a pen
lasse tão grande desprezo pelas mesquitas63. sar que os templos eram um asilo para eles; e
Este príncipe64 interrogou os maometanos; esta idéia parece ainda mais natural entre os
aprovou todos os seus dogmas, exceto o que gregos, onde os assassinos, expulsos das cida
diz respeito à necessidade de ir a Meca; não des e da presença dos homens, pareciam não
podia compreender que não se pudesse adorar possuir outras casas senão os templos e outros
Deus em qualquer parte. Os tártaros, não protetores senão os deuses.
morando em casas, não conhecem templos. Inicialmente isto só dizia respeito aos homi
cidas involuntários; mas, quando abrangeu os
grandes criminosos, caiu-se numa grosseira
63 Entrando na mesquita de Bucara (Bukhara),
arrebatou o Alcorão, e o atirou aos pés de seus
cavalos. Hist. des Tartares, parte III, pág. 273. (N. 6 5 Esta disposição de espírito atingiu inclusive os
do A.) japoneses, que se originaram dos tártaros, como é
6 4 Ibid., pág. 342. (N. do A.) fácil de provar. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS V 389
contradição: se haviam ofendido os homens, para eles. Os grandes criminosos não mere
com mais forte razão tinham ofendido os ciam asilo e não os tiveram68. Os judeus ti
deuses. nham apenas um tabernáculo, que mudava
Multiplicaram-se esses asilos na Grécia: os continuamente de lugar, o que excluía a idéia
templos, diz Tácito66, estavam repletos de de asilo. É verdade que deviam ter um templo;
devedores insolventes e de escravos perversos; mas os criminosos que para aí convergiríam de
os magistrados tinham dificuldade em exercer todas as partes teriam podido perturbar o ser
sua polícia; o povo protegia os crimes dos ho viço divino. Se os homicidas tivessem sido
mens como as cerimônias dos deuses; o senado expulsos do país, tal como o foram entre os
foi obrigado a excluir grande número deles. gregos, dever-se-ia temer que eles adorassem
As leis de Moisés foram muito sábias. Os deuses estrangeiros. Todas essas considerações
homicidas involuntários eram inocentes, mas levaram ao estabelecimento de cidades de asilo
deviam ser afastados da presença dos parentes em que se devia permanecer até a morte do
do morto; estabeleceu portanto um asilo67 sumo pontífice.
Capítulo IV
Os primeiros homens, diz Porfírio, não Exigindo o culto aos deuses atenção contí
sacrificavam senão ervas. Para um culto tão nua, a maioria dos povos foi levada a fazer do
simples, cada um podia ser pontífice em sua clero um corpo separado. Assim, entre os egíp
família. cios, os judeus e os persas71, consagraram-se à
O desejo natural de agradar à divindade divindade certas famílias, que se perpetuavam
multiplicou as cerimônias, o que fez com que e faziam o serviço. Houve mesmo religiões em
os homens, ocupados com a agricultura, se tor que não se pensou somente em afastar os
nassem incapazes de executar todas elas, e de eclesiásticos dos negócios, mas também em
fazê-lo com todos os pormenores. lhes suprimir o estorvo de uma família; e esta é
Consagraram-se aos deuses lugares particu a prática do principal ramo da lei cristã72.
lares: foram necessários ministros para tomá- Não falarei aqui das consequências da lei do
los a seus cuidados, como cada cidadão cuida celibato; sentimos que ela poderia tornar-se
de sua casa e de seus negócios domésticos. prejudicial na proporção em que o corpo do
Destarte, os povos que não têm sacerdotes são clero fosse muito amplo e o dos laicos, por
extraordinariamente bárbaros. Assim eram conseguinte, não o fosse bastante.
outrora os pedalianos 69, assim são ainda os Pela natureza do entendimento humano,
wolgusky 70. amamos em matéria de religião tudo o que
As pessoas consagradas à divindade deviam supõe um esforço, tal como, em matéria de
ser honradas, sobretudo entre os povos que ti moral, amamos especulativamente tudo o que
nham formado certa idéia de pureza corporal, leva o caráter à severidade. O celibato foi mais
necessária para se aproximar dos lugares mais agradável aos povos aos quais parecia convir
agradáveis aos deuses, e dependente de certas menos, e para os quais ele poderia acarretar
práticas. deploráveis consequências. Nos países do Sul
da Europa, em que, pela natureza do clima, a
69 Lilius Giraldus, pág. 726. (N. do A.)
70 Povos da Sibéria. Vede a Relação de Everard 71 Vede o Sr. Hyde. (N. do A.)
Isbrands-Ides, na Coletânea das Viagens do Norte, 72 Montesquieu evita dizer que se trata de um
tomo VIII. (N. do A.) ponto de disciplina católica.
390 MONTESQUIEU
lei do celibato é mais difícil de ser observada, admitida; nos em que há muitos, foi rejeitada.
ela foi mantida; nos do Norte, em que as pai Sentimos que todas estas reflexões apenas
xões são menos vivas, foi proscrita. Há mais: dizem respeito à enorme extensão do celibato,
nos países em que hâ poucos habitantes, foi e não ao celibato em si.
Capítulo V
Capítulo VI
Dos mosteiros
Um mínimo de bom senso faz ver que estes devem vender seus bens vitalícios, nem fazer
corpos que se perpetuam eternamente não empréstimos vitalícios, a menos que se queira
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 391
que eles se tornem herdeiros de todos os que ram tê-los. Essa gente joga contra o povo mas
não têm parentes e de todos os que não quei conserva a banca contra ele.
Capítulo VII
Do luxo da superstição
“São ímpios para com os deuses”, escreve tano7 6, “a fim de que tenhamos todos os dias
Platão 7 4, “os que negam sua existência; ou os com que honrar os deuses.”
que a aceitam, mas afirmam que eles não se O cuidado que os homens devem ter em ren
imiscuem nas coisas terrenas; ou, enfim, os der culto à divindade é bem diferente da
que pensam que os apaziguamos facilmente magnificência desse culto. Não lhe ofereçamos
com sacrifícios: três opiniões igualmente per nossos tesouros se queremos mostrar-lhe a es
niciosas.” Platão diz aqui tudo o que o saber tima que fazemos das coisas que ela quer que
natural jamais disse de mais sensato em maté desprezemos.
ria de religião. “Que devem pensar os deuses dos dons dos
A magnificência do culto exterior guarda ímpios”, diz Platão admiravelmente7 7, “se um
muita relação com a constituição do Estado. homem de bem se envergonharia ao receber
Nas boas repúblicas, não apenas se suprimiu o presentes de um homem desonesto?”
luxo da vaidade, mas também o da supersti Não é necessário que a religião, sob pretexto
ção. Fizeram-se, na religião, leis de poupança. de dádivas, exija dos povos o que as necessi
Entre elas, encontram-se leis de Sólon, várias dades do Estado lhes deixaram; e, como diz
leis de Platão sobre os funerais, que Cícero Platão, homens castos e piedosos devem ofere
adotou; enfim, algumas leis de Numa7 5 sobre cer dádivas que se lhes assemelhem.
os sacrifícios. Não seria também necessário que a religião
“Pássaros e pinturas feitas num dia”, diz Cí encorajasse as despesas dos funerais. Que
cero, “são dádivas muito divinas.” haveria de mais natural do que suprimir a dife
“Oferecemos coisas comuns”, diz um espar rença das fortunas numa coisa e nos momen
tos em que todas as fortunas se tornam iguais?
7 4 Das Leis, liv. X. (N. do A.)
7 5 Rogum vino ne respergito. Lei das Doze Tá 7 6 Um espartano, . . .Licurgo, diz Plutarco.
buas. (N. do A.) 7 7 Das Leis, liv. IV. (N. do A.)
Capítulo VIII
Do pontificado
Quando a religião tem muitos ministros, é religião com suas próprias leis e como resul
natural que eles possuam um chefe, e que o tado de sua vontade. Para evitar este inconve
pontificado se estabeleça. Na monarquia, em niente, é preciso que haja monumentos da reli
que não seria demais separar as ordens do Es gião; por exemplo, livros sagrados que a fixam
tado e onde não se deve reunir sob uma mesma e a estabelecem. O rei da Pérsia é o chefe da
cabeça todos os poderes, é conveniente que o religião; mas o Alcorão regulamenta a reli
pontificado esteja separado do império. A gião; o imperador da China é o soberano
mesma necessidade não existe no governo pontífice, mas existem livros que estão nas
despótico, cuja natureza é reunir numa mesma mãos de toda gente e aos quais ele próprio
cabeça todos os poderes. Mas, neste caso, deve curvar-se. Inutilmente um imperador quis
poderia ocorrer que o príncipe considerasse a aboli-los; eles triunfaram sobre a tirania.
392 MONTESQUIEU
Capitulo IX
Aqui somos políticos e não teólogos; e, para que a reprimiu, não como religião, mas como
os próprios teólogos, fcá muita diferença entre tirania.
tolerar uma religião e aprová-la. É, portanto, útil que as leis exijam dessas
Quando as leis de um Estado acreditaram diversas religiões não somente que não pertur
dever suportar várias religiões, cumpre que bem o Estado, mas também que não se pertur
elas as obriguem também a se tolerar entre si. bem mutuamente. Um cidadão não satisfaz às
É um princípio que toda religião reprimida se leis contentando-se com não agitar o corpo do
torna repressora, pois, logo que, por algum Estado, é preciso também que não perturbe
acaso, pode sair-da opressão, ataca a religião qualquer c itro cidadão.
Capítulo X
Copio quase somente as religiões intole leis políticas em matéria de religião. Quando
rantes têm grande zelo em se propagar em ou se está em condição de receber num Estado
tras partes, pois uma religião que pode tolerar uma nova religião, ou de não recebê-la, não é
necessário estabelecê-la; quando está estabele
as demais quase não se ocupa de sua propaga cida, faz-se mister tolerá-la.
ção, seria uma lei civil muito boa, quando o
Estado está satisfeito com a religião já estabe
7 8 Não falo, em todo este capítulo, da religião cris
lecida, não permitir o estabelecimento7 8 de tã, porque, como afirmei anteriormente, a religião
cristã é o primeiro bem. Vede, no fim do capítulo
outra. primeiro do livro precedente, e a Defesa do Espírito
Eis, portanto, o princípio fundamental das das Leis, segunda parte. (N. do A.)
Capítulo XI
Da mudança de religião
Um príncipe que empreende, em seu Estado, Demais, a religião antiga está ligada à cons
destruir ou mudar a religião dominante expõe- tituição do Estado e a nova não o está; a pri
se muito. Se seu governo é despótico, corre meira está mais de acordo com o clima, e,
mais risco em ver uma revolução que, qual amiúde, a nova se lhe contradiz. Há mais: os
quer que seja a tirania, nunca é uma coisa cidadãos se desgostam de suas leis; passam a
nova nesses tipos de Estados. A revolução menosprezar o governo já estabelecido; substi
resulta do fato de um Estado não mudar de
religião, de costumes, e de maneiras num ins tuem as desconfianças contra as duas religiões
tante e tão rapidamente quanto o príncipe por uma firme crença em uma delas; numa
publica a ordenança que estabelece uma nova palavra, dão ao Estado, ao menos por algum
religião. tempo, maus cidadãos e maus fiéis.
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 393
Capítulo XII
É preciso evitar as leis penais em matéria de esqueça; não pelo que indigna, mas pelo que
religião. Elas imprimem o temor, é verdade; lança na tibieza, quando outras paixões agem
mas, como a religião tãmbém tem suas leis pe sobre nossas almas e as que a religião inspira
nais que inspiram temor, um é destruído pelo estão silenciadas. Regra geral: em matéria de
outro. Entre esses dois temores diferentes, as mudança de religião, os convites são mais
almas tornam-se atrozes. poderosos do que os castigos.
O caráter do espírito humano revelou-se na
A religião possui ameaças tão grandes, tão
mesma ordem das penas que foram emprega
grandes promessas, que, quando elas estão pre
das. Quando nos lembramos das perseguições
sentes em nosso espírito, qualquer coisa que o
no Japão79, revoltamo-nos mais contra os
magistrado possa fazer para nos constranger a suplícios cruéis do que contra as longas penas
abandoná-la parece que não nos deixa nada que cansam mais do que amedrontam, que são
quando no-la retira e que não nos retira nada mais difíceis de superar, porque parecem
quando no-la deixa. menos difíceis.
Não é, pois, enchendo a alma deste grande Numa palavra, a história nos ensina que as
objeto, aproximando-a do momento em que ele leis penais nunca tiveram resultado senão
deve ser de maior importância, que se conse como destruição.
gue separá-la dele: ele está mais certo de ata
car uma religião pelo favor, pelas comodi 79 Vede a Recueil des Voyages qui Ont Servi à
dades da vida, pela esperança da fortuna; não rÉtablissement de la Compagnie des Indes, t. V,
pelo que adverte, mas pelo que faz com que se parte I, pág. 192. (N. do A.)
Capítulo XIII80
Muito humilde exortação aos inquisidores
da Espanha e de Portugal
Uma judia de dezoito anos, queimada em só podeis lamentar vossa fraqueza que vos im
Lisboa no último auto-de-fé, motivou esta pede de nos exterminar e que faz com que vos
pequena obra; e penso que é a mais inútil das exterminemos.’
que já foram escritas. Quando se trata de pro “Mas é necessário confessar que sois bem
var coisas tão evidentes, está-se certo de não mais cruéis do que este imperador. Mandai-
convencer. nos matar, nós que só acreditamos no que cre
O autor declara que, apesar de judeu, res des, porque não acreditamos em tudo o que
peita a religião cristã e que a ama bastante
credes. Seguimos uma religião que vos pró
para retirar aos príncipes que não são cristãos
prios o sabeis ter sido outrora a religião predi
um pretexto plausível para persegui-la.
leta de Deus; pensamos que Deus a ama ainda;
“Lamentai-vos”, diz ele aos inquisidores,
“de que o imperador do Japão mandou quei e vós pensais que Ele não a ama mais; e por
mar lentamente todos os cristãos de seus Esta que julgais assim, fazeis passar pelo ferro e
dos; mas ele vos responderá: ‘Tratamo-vos, pelo fogo os que se encontram neste erro tão
vós que não credes como nós, como vós pró
prios tratais os que não acreditam como vós; 80 Ver a XIX das Lettres Persanes.
394 MONTESQUIEU
perdoável de crer que Deus81* ama também o mas caberá aos filhos que tiveram a herança
que amou. dos pais odiar os que não a tiveram?
“Se sois cruéis conosco, sois muito mais em “Se possuís esta verdade, não a oculteis de
relação a nossos filhos; mandais queimá-los nós pela maneira com que no-la propondes. O
porque seguem muitas vezes as inspirações que caráter da verdade é seu triunfo sobre os cora
lhes deram aqueles que a lei natural e as leis de ções e os espíritos, e não esta impotência que
todos os povos lhes ensinam a respeitar como revelais quando quereis fazer que a recebam
deuses. com suplícios.
“Privais-vos da vantagem que Ivos deu sobre “Se sois razoáveis, não nos deveis matar,
os maometanos a maneira pela qual sua reli pois não vos desejamos ludibriar. Se vosso
gião se estabeleceu. Quando eles se gabam do Cristo é o filho de Deus, esperemos que ele nos
número de seus fiéis, vós lhes dizeis que o recompensará por não termos querido profa
adquiriram à força e que propagaram sua reli nar seus mistérios; e acreditamos que o Deus a
gião pelo ferro; por que, então, estabeleceis a que servimos, vós e nós, não nos punirá pelo
vossa pelo fogo? fato de termos sofrido a morte por uma reli
“Quando quereis fazer com que cheguemos gião que outrora nos deu, porque acreditamos
a vós, nós vos objetamos uma origem de que ainda que por ele nos foi dada.
vos gabais de descender. Respondeis que vossa “Viveis num século em que o saber natüral é
religião é nova mas divina e o provais porque mais vivo do que jamais o foi, em que a filoso
se difundiu sob a perseguição dos pagãos e fia iluminou os espíritos, em que a moral de
pelo sangue de vossos mártires; mas hoje assu vosso Evangelho é mais conhecida, em que os
mis o papel dos Dioclecianos e nos obrigais a direitos respectivos dos homens uns sobre os
assumir o vosso. outros, o império que uma consciência tem
“Conjuramo-vos, não pelo Deus poderoso a sobre outra consciência, estão melhor estabele
que servimos, vós e nós, mas pelo Cristo que cidos. Se, pois, não abandonais vossos antigos
nos dizeis ter assumido a condição humana preconceitos que, se não vos acautelardes,
para vos propor exemplos que pudésseis serão vossas paixões,, devemos confessar que
seguir; conjuramo-vos a agir como ele próprio sois incorrigíveis, incapazes de toda luz e de
agiria se estivesse ainda sobre a terra. Quereis toda instrução; e uma nação que outorga a
que sejamos cristãos e não o quereis sê-lo. autoridade a homens como vós é bem infeliz.
“Mas, se não quereis ser cristãos, sede ho “Quereis que vos digamos simplesmente
mens ao menos: tratai-nos como farieis se, nosso pensamento? Considerais-nos antes
possuindo apenas esses fugazes lampejos de como vossos inimigos do que como inimigos
justiça que a Natureza nos dá, não tivésseis de vossa religião; pois, se amásseis vossa reli
uma religião para vos conduzir, e uma revela gião, não a deixarieis corromper por grosseira
ção para vos esclarecer. ignorância.
“Se o céu vos amou bastante para fazer-vos “Cumpre advertir-vos de uma coisa: se
ver a verdade, ofereceu-vos uma grande graça; alguém na posteridade ousar alguma vez dizer
que no século em que vivemos os povos da Eu
ropa eram policiados, outra pessoa citar-vos-á
81 É a origem da obstinação dos judeus não perce
ber que a economia do Evangelho está na ordem para provar que eram bárbaros e a idéia que se
dos desígnios de Deus e que, assim, ela é uma terá de vós será tal, que aviltará vosso século e
consequência de sua própria imutabilidade. (N. do trará o ódio para todos os vossos contemporâ
neos.”
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 395
Capítulo XIV
Falei do caráter atroz das almas japone As punições, entre os japoneses, são consi
sas82. Os magistrados consideraram a firmeza deradas como a vingança de um insulto feito
que inspira o cristianismo quando se trata de ao príncipe. Os cantos de regozijo de nossos
renunciar à fé como muito perigosa: acredi mártires pareceram um atentado contra ele: o
taram ver aumentar a audácia. A lei do Japão título de mártir indignou os magistrados; em
pune severamente a menor desobediência. seus espíritos, significava rebelde; tudo fize
Ordena-se renunciar à religião cristã: não ram para impedir que fosse obtido. Foi então
renunciar significava desobedecer; castigava- que as almas se aterrorizaram e que se viu hor
se este crime e a continuação da desobediência rível combate entre os tribunais que condena
parecia merecer outro castigo. ram e os acusados que sofreram, entre as leis
82 Livro VI, cap. XIII. (N. do A.) civis e as da religião.
Capítulo XV
Da propagação da religião
Todos os povos do Oriente, exceto os maneiras, obtenha todo o êxito que sua santi
maometanos, julgam todas as religiões indife dade deveria prometer-lhe. Isso é verdadeiro
rentes em si mesmas. Temem o estabeleci principalmente nos grandes impérios despóti
mento de outra religião apenas como mudança cos: toleram-se inicialmente os estrangeiros,
no governo. Entre os japoneses, em que há vá porque não se dá atenção ao que não parece
rias seitas, e onde o Estado teve durante longo atingir o poderio do príncipe: vive-se numa
tempo um chefe eclesiástico, nunca se discute ignorância extrema de tudo. Um europeu pode
a respeito de religião83. Acontece o mesmo tornar-se agradável por certos conhecimentos
entre os siameses84. Os calmucos8 5 fazem que proporciona: isto é bom no início. Mas,
mais: consideram uma questão de consciência logo que se obtém algum êxito, que surge
tolerar todas as formas de religião. Em Cale- algum litígio, que as pessoas que podem ter
cute8 6 é uma máxima do Estado considerar algum interesse são advertidas, proscreve-sp
boa toda religião8 7. logo a nova religião e os que a anunciam, pois
Mas disso não resulta que uma religião, tra este Estado, pela sua natureza, exige sobretudo
zida de uma região muito afastada e total tranquilidade e a menor perturbação pode
mente diferente em clima, em leis, costumes e destrüí-lo; irrompendo as disputas entre os que
a pregam, começa-se a se desgostar de uma
83 Vede Kempfer. (N. do A.)
8 4 Mémoires do Conde de Forbin. (N. do A.) religião em que até mesmo os que a propagam
8 5 Histoire des Tartares, parte V. (N. do A.) não se põem de acordo88.
8 6 Calecute, na índia; na presidência de Madrasta,
capital de província inglesa.
8 7 Voyage de François Pyrard, cap. XXVII. (N. 88 Referência à rivalidade entre jesuítas e domini
do A.) canos na China.
LIVRO VIGÉSIMO SEXTO
DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE DEVEM TER COM A ORDEM
DAS COISAS SOBRE AS QUAIS ESTATUEM
Capítulo I
Os homens são governados por diversas sociedade, segundo o qual todo cidadão pode
espécies de leis: pelo direito natural; pelo direi defender seus bens e sua vida contra qualquer
to divino, que é o da religião; pelo direito outro cidadão; e, finalmente, pelo direito
eclesiástico, igualmente chamado canônico, doméstico, que deriva do fato de uma socie
que é o da polícia da religião; pelo direito das dade achar-se dividida em diversas famílias
gentes, que se pode reputar como o direito civil que têm necessidade de um governo particular.
do universo, no sentido de que cada povo é um
Há, portanto, diferentes ordens de leis; e a
cidadão seu; pelo direito político geral, que
sublimidade da razão humana consiste em
versa sobre esta sabedoria humana em que se
estribam todas as sociedades; pelo direito polí saber justamente com qual destas ordens se
tico particular, que diz respeito a cada socieda relacionam, principalmente, as coisas sobre as
de; pelo direito de conquista, fundamentado quais se deve estatuir, e em não introduzir con
em que um povo quis, pôde e teve de fazer fusão nos princípios que devem governar os
violências a outro; pelo direito civil de cada homens.
Capítulo II
Não se deve de modo algum estatuir pelas nas preceituam sobre o bem; a religião, sobre o
leis divinas o que deve sê-lo pelas leis huma melhor. O bem pode ter outro objeto, porque
nas, nem regulamentar pelas leis humanas o há vários bens, mas o melhor é somente um;
que deve ser feito pelas leis divinas. não pode mudar, portanto. A nós é dado
Essas duas sortes de leis divergem em sua mudar as leis, porque julgamo-las apenas
origem, em seu objeto e em sua natureza89. boas; mas as instituições da religião sempre
Todos estão de acordo em que as leis huma são consideradas as melhores.
nas são de natureza diferente da das leis da 2. °) Existem Estados em que as leis nada
religião, e isso constitui um grande princípio; representam, ou não passam de uma vontade
mas este mesmo princípio está sujeito a outros caprichosa e passageira de um soberano. Se,
que é necessário procurar. nestes Estados, as leis da religião fossem da
°) É da natureza das leis humanas estarem
l. mesma natureza das leis humanas, tampouco
submetidas a todos os acidentes que sobrevêm, nada representariam; é necessário, portanto, à
e variarem à medida que as vontades dos ho sociedade, que haja alguma coisa de fixo, e al
mens mudam; ao passo que é da natureza das guma coisa de fixo é a religião.
leis da religião nunca variarem. As leis huma
3. °) A principal força da religião promana
do fato de acreditarmos nela; já as leis huma
89 A distinção nem sempre é fácil, nem, sobretudo,
são tão conciliâveis as duas ordens, como se vê pelo nas têm sua força em temermo-las. À religião
debate entre Antígone e Créon. convém a antiguidade, porque muitas vezes
400 MONTESQUIEU
cremos mais nas coisas à medida que mais Ao contrário, as leis humanas tiram proveito
remotas se encontram de nós; e isso porque de sua novidade, que denota uma atenção par
não temos, na mente, idéias acessórias tiradas ticular e atual do legislador, a fim de torná-las
destes tempos, as quais possam contradizê-las. obedecidas.
Capítulo III
“Se um escravo”, diz Platão90, “se defende suplício do pudor natural? A educação aumen
e mata um homem livre, deve ser tratado como tou-lhe a idéia da conservação deste pudor; e
parricida.” Aí está uma lei civil que pune a de mal lhe restou, nestes momentos, uma idéia da
fesa natural. perda da vida.
A lei que, no tempo de Henrique VIII, con Muito se falou de uma lei da Inglaterra91
denava um homem sem que tivessem sido aca que permitia a uma menina escolher um mari
readas as testemunhas era contrária à defesa do. Esta lei era revoltante por dois aspectos:
natural: com efeito, para que se possa conde não tinha nenhuma deferência para com o
nar, é mister que as testemunhas saibam que o tempo da maturidade que a Natureza deu ao
homem contra quem depõem é mesmo o acu espírito, nem para com o tempo da maturidade
sado, e que esse possa dizer: Não é de mim que que ela deu ao corpo.
estais falando. Entre os romanos, um pai podia obrigar a
A lei admitida no mesmo reinado, conde filha a repudiar o marido92, embora tivesse
nando toda jovem que, tendo mantido relações antes consentido no casamento. Mas é contra a
ilícitas com alguém antes de desposá-lo, não o Natureza o divórcio ser posto nas mãos de
declarasse ao rei, contrariava a defesa do uma terceira pessoa.
pudor natural; é tão disparatado exigir de uma Se o divórcio é conforme à Natureza,
jovem que faça esta declaração, quanto pedir a somente o é quando as duas partes, ou ao
um homem que não procure defender a vida. menos uma delas, nele consentem; quando
A lei de Henrique II, que condena à morte a nem uma nem outra concordam com ele, o
jovem cujo filho tenha perecido, no caso em divórcio é uma monstruosidade. Enfim, a
que não tenha declarado sua gravidez ao faculdade de decretar o divórcio só deve ser
magistrado, não é menos contrária à defesa dada aos que sofrem dos incômodos do casa
natural. Bastava obrigá-la a informar a res mento e que conhecem o momento em que há
peito uma das suas parentas mais próximas, interesse em cessá-los.
que cuidaria da conservação da criança.
Que outra confissão poderia ela fazer neste 91 Bayle fala desta lei na pág. 293 da Critique de
l’Histoire du Calvinisme. (N. do A.)
92 Vede a lei 5, no cód. de Repudiis et Judicio de
90 Liv. IX Das Leis. (N. do A.) moribus sublato. (N. do A.)
Capítulo IV
Gondovaldo93, rei da Borgonha, ordenava crime94. Esta lei ia contra a Natureza. Como
que fossem reduzidos à escravidão a mulher ou podia uma mulher ser acusadora do marido?
filho daquele que roubou, se não revelassem o Como um filho podia ser acusador do próprio
93 Lei dos borguinhões. tít. XLVII. (N. do A.) 94 A fim de indenizar a vítima do roubo.
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 401
pai? Para compensar uma ação criminosa, descobrir o crime de sua madrasta quanto teria
ordenava outra ainda mais criminosa. pelo próprio crime; em sua surpresa, acusado,
A lei de9 5 Recessuindo permitia que os fi julgado, proscrito e coberto de infâmia, mal
lhos da mulher adúltera, ou os de seu marido, ousa fqzer algumas reflexões sobre o sangue
acusassem-na e submetessem a maus-tratos os abominável de que proveio Fedra; ele aban
escravos da casa. Lei iníqua, já que, para pre dona o que tem de mais caro, tudo o que pode
servar os costumes, subvertia a Natureza, onde
indigná-lo, a fim de entregar-se à vingança dos
os costumes têm sua origem.
Com prazer assistimos, em nossos teatros, a
deuses que ele não mereceu9 6. São os acentos
um jovem herói demonstrar tanto horror por da Natureza que causam este prazer; é a mais
doce de todas as vozes.
9 5 No Código dos visigodos, liv. III, tít. IV, § 13.
(N. do A.) 9 6 Trata-se da Fedra de Racine.
Capítulo V
Uma lei de Atenas9 7 obrigava os filhos a seu caráter1 00; que, no terceiro, havia-lhes tor
alimentar os pais que houvessem caído na nado insuportável uma vida que sentiam tanta
miséria; fazia exceção aos nascidos98 de uma dificuldade em manter. A lei encarava o pai e o
cortesã, àqueles cujo pai havia exposto a pudi- filho tão-somente como dois cidadãos, estatuía
cícia por um tráfico infame e àqueles a quem99 apenas sobre concepções políticas e civis;
não se tinha dado ofício para ganhar a vida. considerava que, numa boa república, são
A lei considerava que, no primeiro caso, necessários principalmente os costumes.
sendo incerto o pai, tornara precária sua obri Creio, na verdade, que a lei de Sólon era boa
gação natural; que, no segundo, aviltara a vida nos dois primeiros casos, ou seja, naquele em
que havia dado, e que o maior mal que poderia que a Natureza deixa que o filho ignore qual é
fazer a seus filhos, ele o fizera, ao privá-los de seu pai e naquele em que, segundo parece, ela
mesma ordena que o desconheça; mas não
poderiamos aprová-la no terceiro, em que o
9 7 Sob pena de infâmia; uma outra, sob pena de pri pai violara apenas um preceito civil.
são. (N. do A.)
98 Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.)
99 Plutarco, Vida de Sólon; e Galiano, in Exhort. ad 1 00 . . . de seu caráter. . ., de sua reputação, de sua
Art., cap. VIII. (N. do A.) honra.
Capítulo VI
Essas idéias procedem do fato de se ter visto o deia tem um chefe, segundo este antigo costu
direito que os filhos têm de suceder aos pais me escolhe-se o tio, ou qualquer outro parente,
como uma consequência da lei natural; o que para suceder.
não é. Há monarquias puramente eletivas; e, desde
A lei natural ordena aos pais que alimentem que está claro que a ordem das sucessões deve
seus filhos, mas não os obriga a instituí-los derivar das leis políticas ou civis, cabe a elas
herdeiros. A partilha dos bens, as leis sobre decidir em que caso a razão ordena que esta
esta partilha, as sucessões após a morte daque sucessão seja outorgada aos filhos, e em que
le que fez essa partilha, tudo isso só pode ter casos deve-se concedê-la a outros.
sido regulamentado pela sociedade e, por Nos países em que a poligamia é assentada,
conseguinte, por leis políticas ou civis. o príncipe tem muitos filhos; o seu número é
É verdade que a ordem política ou civil maior nuns países do que em outros. Há cer
quer, muitas vezes, que os filhos sucedam aos tos109 Estados em que a manutenção dos fi
pais; mas não o exige sempre. lhos do rei seria impossível ao povo; aí se pôde
As leis de nossos feudos podem ter tido estabelecer que os filhos do rei não lhe sucede
razões para que o mais velho dos filhos varões, ríam, mas sim os da irmã.
ou os parentes mais próximos na linha dos Um prodigioso número de filhos exporia o
homens, tivessem tudo, e que as filhas não Estado a temíveis guerras civis. A ordem de
tivessem nada; e as leis dos lombardos10 4 sucessão que outorga a coroa aos filhos da
podem tê-las tido para que as irmãs, os filhos irmã, cujo número não é maior do que seria o
naturais, os outros parentes e, na sua falta, o dos filhos de um príncipe que só tivesse uma
fisco tivessem os mesmos direitos que as filhas. esposa, previne tais inconvenientes.
Em algumas dinastias da China, foi regula Existem nações nas quais razões de Estado
mentado que os irmãos do imperador lhe suce ou alguma máxima de religião exigiram que
deríam, e que seus filhos não lhe sucederíam. uma certa família fosse sempre a reinante: tal
Se se queria que o príncipe tivesse alguma é, nas índias11 °, o ciúme de casta e o medo de
experiência, se se temiam as minoridades, se não descender dela. Pensou-se lá que, a fim de
era preciso prevenir que os eunucos colocas sempre ter príncipes de sangue real, cumpria
sem sucessivamente crianças no trono, agiu-se tomar os filhos da irmã mais velha do rei.
muito bem fixando-se semelhante ordem de Máxima geral: alimentar os filhos constitui
sucessão; e, quando alguns10 5 escritores cha uma obrigação do direito natural; conceder-
maram estes irmãos de usurpadores, estavam lhes a sucessão é uma obrigação do direito
julgando baseados em idéias tiradas das leis de político ou civil. Daí procedem as diferentes
seus países. disposições sobre os bastardos nos diversos
Segundo o costume da Numídia1 0 6, Delsá- países do mundo; seguem elas as leis civis ou
cio1 0 7, irmão de Gela, sucedeu-lhe ao trono, e políticas de cada país.
não Massinissa, seu filho. E ainda hoje108,
entre os árabes da Barbaria, em que cada al
109 Como em Lovengo, na África. Vede a Recueil
des Voyages qui Ont servi à 1'Établissement de la
1 0 4 Liv. II, tít. XIV, §§ 6, 7 e 8. (N. do A.) Compagnie des Indes, tomo IV, part. I, pág. 114, e
10 5 O Padre du Halde, sobre a segunda dinastia. Smith, Viagem à Guiné, part. II, pág. 150, sobre o
(N. do A.) reinado de Juidá. (N. do A.)
1 0 6 Tito Lívio, liv. XXIX, cap. XXIX. (N. do A.) 11 0 Vede as Lettres Édifiantes, décima quarta c&le-
1 0 7 Delsácio, Elsácio. tânea; e Les Voyages qui Ont Servi d
108 Vede as Viagens do Sr. Schaw, tomo I, pág. ITÈtablissement de la Compagnie des Indes, tomo
402. (N. do A.) III, parte II, pág. 644. (N. do A.).
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 403
Capítulo VII
Os abexins têm uma quaresma de cinquenta sábado; mas constituiu uma estupidez desta
dias, muito rude, e que de tal modo os debilita, nação não se defender112, quando seus inimi
que, por muito tempo, são incapazes de qual gos escolheram este dia para atacá-los.
quer ação: os turcos111 não deixam de atacá- Cambises, ao sitiar Pelusa, pôs na primeira
los após sua quaresma. A religião, em proveito fileira grande número de animais que os egíp
da defesa natural, deveria pôr limites a essas cios consideravam sagrados; os soldados da
práticas. guarnição não se atreveram a atirar. Quem
Ordenou-se aos judeus que descansassem no não vê que a defesa natural é de ordem supe
rior a todos os preceitos?
111 Recueil des Voyages qui Ont Servi a
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo '12 Como fizeram, quando Pompeu sitiou o Tem
IV, parte I, págs. 35 e 103. (N. do A.) plo.' Vede Dion, liv. XXXVII, cap. XVI. (N. do A.)
Capítulo VIII
Pelo direito civil dos romanos113, aquele nais da Igreja, onde só se viam as máximas do
que furta de um lugar sagrado uma coisa parti direito canônico; e, com efeito, encarando o
cular é castigado apenas pelo crime de furto; casamento apenas dentro das idéias puramente
pelo direito canônico11 4, é punido pelo crime espirituais e na relação com as coisas da outra
de sacrilégio. O direito canônico leva em vida, a violação é a mesma. Mas as leis políti
consideração o lugar; o direito civil, a coisa. cas ou civis de quase todos os povos fizeram
Mas levar em conta somente o lugar equivale a distinção, com razão, entre esses dois casos.
não refletir nem sobre a natureza e a definição Exigiram das mulheres um grau de comedi-
do roubo, nem sobre a natureza e a definição mento e de continência que não pedem aos
do sacrilégio. homens, porque a violação do pudor pressupõe
Como o marido pode pedir a separação em nas mulheres uma renúncia a todas as virtu
virtude de infidelidade da mulher, essa outrora des; porque a mulher, ao violar as leis do casa
pedia-a por causa da infidelidade do mari mento, deixa o estado de dependência natural;
do11 5. Tal uso, contrário ao dispositivo das porque a Natureza assinalou a infidelidade das
leis31 6 romanas, fora introduzido nos tribu- mulheres com marcas certas, além de que os fi
11 3 Leg. 5, ff. ad leg. Juliam peculatus. (N. do A.) lhos adulterinos da mulher são necessaria
114 Cap. quisquis 17, quaestione 4; Cujácio, mente do marido, e estão ao cargo dele,
Observat., liv. XIII, cap. XIX, tomo III. (N. do A.) enquanto os filhos adulterinos do marido não
11 5 Beaumanoir, Ancienne Coutume de Beauvoi- são da mulher, nem se encontram ao cargo
sis, cap. XVIII, § 6. (N. do A.)
11 6 Leg. I, cód. ad leg. Jul. de adulter. (N. do A.) dela.
404 MONTESQUIEU
Capítulo IX
As leis religiosas têm mais sublimidade; as rasse quatro anos, após os quais podia enviar
leis civis dispõem de mais extensão. ao chefe120 o libelo de divórcio; e, se seu mari
As leis de perfeição, extraídas da religião, do voltasse, não podia mais acusá-la de adulté
têm por objeto mais a bondade do homem que rio. Mas Justiniano121 estabeleceu que, qual
as segue do que a da sociedade nas quais são quer que fosse o tempo decorrido desde a
observadas; ao contrário, as leis civis versam partida do marido, não podia ela casar-se
mais sobre a bondade moral dos homens em novamente, a menos que provasse a morte do
geral do que sobre a dos indivíduos. marido, pelo depoimento e pelo juramento do
Deste modo, por respeitáveis que sejam as
chefe. Justiniano tinha em vista a indissolubi-
idéias que nascem imediatamente da religião,
lidade do casamento; mas pode-se dizer que a
não devem sempre servir de princípio às leis
civis, porque é outro o princípio destas, que é o tinha muito em vista. Pedia uma prova positi
bem geral da sociedade. va, quando bastava uma prova negativa; exigia
Os romanos estabeleceram regulamentos a uma coisa muito difícil: dar conta do destino
fim de resguardar na república os costumes de um homem afastado e exposto a tantos aci
das mulheres: eram as instituições políticas. dentes; presumia um crime, isto é, a deserção
Quando se instalou a monarquia, criaram leis do marido, quando era tão natural presumir-
civis a este respeito; e as estabeleceram sobre lhe a morte. Ia de encontro ao bem público, ao
os princípios do governo civil. Quando apare deixar uma mulher sem casamento; ia de
ceu a religião cristã, as novas leis estabelecidas encontro ao interesse particular, ao expô-la a
apresentaram menos relação com a bondade mil perigos.
geral dos costumes do que com a santidade do A lei de Justiniano122, que colocou entre as
casamento; considerar-se-á menos a união dos causas do divórcio o consentimento do marido
dois sexos no estado civil do que num estado e da mulher em ingressar num mosteiro, afas
espiritual. tava-se totalmente dos princípios das leis civis.
Primeiramente, pela lei11 7 romana, um ma
É natural que certas causas do divórcio prove
rido que recebia sua mulher após a condena
nham de certos impedimentos que não se podia
ção de adultério deveria ser punido como cúm
plice de seus desregramentos. Justiniano118, prever antes do casamento; mas se podia pre
dentro de outro espírito, ordenou que ele pode ver o desejo de castidade, pois está em nós.
ría, durante dois anos, ir retomá-la no mostei Esta lei favorecia a inconstância num estado
ro. que é perpétuo por sua própria natureza; cho
Quando uma mulher que tinha o marido na cava o princípio fundamental do divórcio, que
guerra não ouvia mais falar dele, podia, nos só aceitava a dissolução de um casamento na
primeiros tempos, casar de novo facilmente, esperança de outro; finalmente, mesmo se
porque tinha nas mãos o poder de divorciar-se. guindo as idéias religiosas, ela apenas dedi
A lei de Constantino11 9 ordenou que ela espe cava a Deus vítimas sem sacrifício.
11 7 Leg. II, § últ. ff. ad leg. Jul. de adult. (N. do A.) 120 ... ao chefe, à autoridade militar.
118 Novelas, 134, cap. X. (N. do A.) 121 Aut. Hodie quantiscumque, cód. de repud. (N.
11 9 Leg. 7, cód. de Repudiis et Judicio de moribus do A.)
sublato. (N. do A.) 12 2 Aut. Quod hodie; cód. de repud. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 405
Capitulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Constitui um dos abusos desse tribunal que, mento e salvo. Semelhante distinção, porém,
de duas pessoas acusadas do mesmo crime, não pode dizer respeito aos tribunais huma
aquela que nega é condenada à morte, e aquela nos; a justiça humana, que vê tão-somente as
que confessa evita o suplício. Isto é extraído ações, tem com os homens um único pacto,
das idéias monásticas, em que aquele que nega que é o da inocência; a justiça divina, que vê
parece estar na impenitência e condenado, e os pensamentos, tem dois, o da inocência e o
aquele que confessa parece estar no arrependi do arrependimento.
406 MONTESQUIEU
Capítulo XIII
Capítulo XIV
Na questão da proibição de casamento entre preciso falar, é necessário fazer-se amar, é pre
parentes, é coisa muito delicada situar com ciso seduzir; esta sedução é que deve ter inspi
exatidão o ponto em que se detêm as leis da rado horror.
natureza, e aquele em que se iniciam as leis Necessitou-se, portanto, de uma barreira
civis. Para tanto, é mister fixar princípios. insuperável entre aqueles que deviam ministrar
O casamento do filho com a mãe confunde o a educação e os que deviam recebê-la, e evitar
estado das coisas: o filho deve um respeito ili toda espécie de corrupção, mesmo em causa
mitado à mãe, a mulher deve um respeito ilimi legítima. Por que os pais privam com tanto
tado ao marido; o casamento da mãe com o cuidado os que tencionam desposar suas filhas
filho subvertería, num e noutro, seu estado da companhia e da familiaridade delas?
natural. O horror ao incesto do irmão com a irmã
Há mais: a Natureza adiantou, nas mulhe deve ter provindo da mesma fonte. Foi sufi-
res, o tempo em que podem gerar filhos; retar- cente que os pais e as mães tenham querido
dou-o nos homens; e, pela mesma razão, a mu conservar puros os costumes de seus filhos e
lher cessa de ter essa faculdade antes, e o suas casas, para inspirar aos filhos horror por
homem, mais tarde. Se fosse permitido o casa tudo o que podia incitá-los à união dos dois
mento entre mãe e filho, aconteceria quase sexos.
sempre que, quando o marido fosse capaz de A proibição do casamento entre primos
cumprir os desígnios da Natureza, a mulher coirmãos tem a mesma origem. Nos primeiros
não mais o seria. tempos, isto é, nos tempos santos, nas épocas
O casamento entre o pai e a filha repugna à em que não se conhecia o luxo, todos os1 2 7 fi
Natureza como o anterior; mas repugna lhos permaneciam em casa, e aí se estabele
menos, porque não apresenta esses dois obstá ciam; é que numa casa pequena podia-se abri
culos. Daí por que os tártaros, que podem des- gar uma grande família. Os filhos128 dos dois
posar suas filhas12 5, jamais o fazem com as irmãos, ou primos coirmãos, eram conside
mães, como vemos nos Relatórios'2 6. rados e se consideravam entre si irmãos. A
Sempre foi da natureza dos pais velar pelo mesma aversão que havia entre os irmãos e as
pudor de seus filhos. Encarregados do cuidado irmãs pelo casamento, havia também, portan
de formá-los, tiveram de conservar-lhes o to, entre os primos coirmãos1 29.
corpo no mais perfeito estado, a alma o menos Essas causas são tão fortes e tão naturais,
corrompida possível, tudo o que pode melhor que atuaram em quase toda a terra, indepen
inspirar desejos, e tudo o que é mais suscetível dentemente de qualquer comunicação. Não
de provocar ternura. Aos pais, sempre ocupa foram os romanos que ensinaram aos habitan-
dos em preservar os costumes dos filhos, foi
mister ter natural aversão por tudo o que pode
1 2 7 Assim ocorreu entre os primeiros romanos. (N.
ría corrompê-los. O casamento não constitui do A.) *
corrupção, dirão; mas, antes do casamento, é 12 8 Com efeito, entre os romanos, tinham o mesmo
nome; os primos coirmãos eram chamados irmãos.
(N. do A.)
12 6 Esta lei é muito antiga entre eles. Átila, conta 12 9 Foram-no em Roma nos primeiros tempos, até
Prisco em sua Embaixada, deteve-se em certo lugar que o povo fez uma lei permitindo-os: desejava com
a fim de desposar Esca, sua filha: coisa permitida, isso obsequiar um homem extremamente popular, e
continua ele, pelas leis dos citas, pág. 22. (N. do A.) que se casara com sua prima coirmã. Plutarco, no
1 2 6 Hist. des Tartares, part. III, pág. 256. (N. do tratado Das Demandas das Coisas Romanas. (N.
A.) do A.)
408 MONTESQUIEU
tes de Formosa130 que o casamento entre mãos deve ser encarado como contrário à
parentes até o quarto grau era incestuoso; não natureza; entre os outros, não.
foram os romanos que o disseram aos ára Mas as leis da Natureza não podem ser leis
bes1 31, não o ensinaram aos maldivas132. locais. Desse modo, quando esses casamentos
Se alguns povos não rejeitaram os casamen são proibidos ou consentidos, são, de acordo
tos entre os pais e os filhos, as irmãs e os com as circunstâncias, consentidos ou proibi
irmãos, viu-se no primeiro livro que os seres dos por uma lei civil.
inteligentes nem sempre seguem suas leis. Não é de uso necessário que o cunhado e a
Quem o diria! Idéias religiosas fizeram, cunhada habitem a mesma casa. O casamento
frequentemente, com que os homens caíssem não é, portanto, proibido entre eles a fim de
nesses desregramentos. Se os assírios, os per conservar a pudicícia em casa; e a lei que o
sas, desposaram suas mães, os primeiros fize proíbe ou consente não é uma lei da Natureza,
ram por religioso respeito para com Semíra- mas uma lei civil, que se estabelece sobre as
mis; e os segundos, porque a religião de circunstâncias, e depende dos costumes de
Zoroastro dava preferência a esses casamen cada país: são casos em que as leis dependem
tos133. Se os egípcios casaram-se com as dos costumes e das maneiras.
irmãs, foi também um desvairamento da reli As leis civis proíbem os casamentos, quan
gião egípcia, que consagrou tais casamentos do, pelos usos aceitos em certo país, se julga
em honra de ísis. Como é do espírito da reli encontrarem-se nas mesmas circunstâncias
gião levar-nos a fazer com esforço coisas gran que os que são proibidos pelas leis da Nature
des e difíceis, não se deve julgar que uma coisa za; e elas os permitem quando os casamentos
é natural somente porque uma religião falsa a
não se encontram neste caso. A proibição das
consagrou.
leis da Natureza é invariável, porque depende
O princípio de que os casamentos entre os de uma coisa invariável; o pai, a mãe e os fi
pais e os filhos, os irmãos e as irmãs, são proi lhos habitam necessariamente a mesma casa.
bidos pela preservação do pudor natural em Mas as proibições das leis civis são acidentais,
casa servirá para fazer-nos descobrir quais são porque dependem de uma circunstância aci
os casamentos proibidos pela lei natural, e os
dental, pois só acidentalmente é que os primos
que só podem sê-lo pela lei civil.
coirmãos e outros habitam a mesma casa.
Já que os filhos habitam, ou se julga habita Isso explica como as leis de Moisés, as dos
rem na casa de seu pai e, por conseguinte, o egípcios13 4 e de vários outros povos consen
enteado com a madrasta, o padrasto com a tem no casamento entre o cunhado e a cunha
enteada, ou com a filha de sua mulher, o casa da, ao passo que esses mesmos casamentos são
mento entre eles é proibido pela lei da Nature proibidos em outras nações.
za. Em tal caso, a imagem tem o mesmo efeito
que a realidade, porque tem a mesma causa; a Nas índias, há uma razão naturalíssima
lei civil não pode e não deve permitir tais para admitir essas espécies de casamento. O
casamentos. tio aí é olhado como pai, e é obrigado a manter
e estabelecer seus sobrinhos, como se fossem
Há povos entre os quais, como eu disse, os seus próprios filhos: isto provém do caráter
primos coirmãos são considerados irmãos, deste povo, que é bom e cheio de humanidade.
porque de ordinário habitam a mesma casa; há Esta lei ou este uso produziu outro. Se um ma
outros onde não se conhece esse uso. Entre rido perdeu a mulher, não pode deixar de des-
aqueles povos, o casamento entre primos coir- posar a irmã dela13 5; e isto é muito natural,
pois a nova esposa torna-se a mãe dos filhos
130 Coletânea das Viagens às índias, tomo V, da irmã, e de forma alguma existe madrasta
parte I; Relação do Estado da Ilha Formosa. (N. do injusta.
A.)
131 O Alcorão, cap. das Mulheres. (N. do A.)
13 2 Vede François Pyrard. (N. do A.) 13 4 Vede a lei 8, no cód. de incestis et inutilibus
133 Eram considerados mais honrosos. Vide Fílon, nuptiis. (N. do A.)
De Specialibus Legibus quae Pertinent ad Praecepta 13 5 Lettres Édifiantes, décima quarta coletânea,
Decalogi. Paris, 1640, pág. 778. (N. do A.) pág. 403. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 409
Capítulo XV
Como os homens renunciaram à sua inde deve triunfar a lei civil, que, como os dois
pendência natural para viver sob leis políticas, olhos da mãe, olha cada particular como toda
renunciaram à comunhão natural dos bens a cidade.
para viver sob leis civis13 6. Se o magistrado político desejar fazer algum
Essas primeiras leis lhes proporcionaram a edifício público, alguma estrada nova, cumpre
liberdade; as segundas, a propriedade. Não se que indenize; o público é, a este respeito, como
deve decidir pelas leis da liberdade que, como um particular que trata com um particular13 7.
dissemos, é apenas o império da cidade, o que É bastante que possa obrigar um cidadão a lhe
deve ser decidido somente pelas leis concer vender sua herança, e que lhe roube o grande
nentes à propriedade. Constitui um paralo- privilégio, que tem da lei civil, de não poder ser
gismo dizer que o bem particular deve curvar- forçado a alienar seu bem.
se ante o bem público: isso só ocorrre nos Depois que os povos que destruíram Roma
casos em que se trata do império da cidade, abusaram de suas próprias conquistas, o espí
isto é, da liberdade do cidadão; não acontece rito de liberdade fê-los voltar ao de equidade;
naqueles em que se trata da propriedade dos os mais bárbaros direitos, eles os exerceram
bens, porque o bem público consiste em que com moderação; e, se alguém duvidasse disso,
cada um conserve invariavelmente a proprie só teria que ler a admirável obra de Beauma-
dade que as leis civis lhe oferecem. noir, que escrevia sobre a jurisprudência no sé
Cícero sustentava que as leis agrárias eram culo XII138.
funestas, porque a cidade só era estabelecida Em seu tempo, as grandes estradas eram
para que cada um conservasse seus bens. consertadas, como acontece hoje. Diz ele que,
Tenhamos, portanto, por máxima que, quando não se podia restabelecer uma grande
quando se trata de bem público, não reside ele estrada, abria-se outra, o mais perto possível
jamais em se privar um particular de seu bem da antiga; mas se indenizavam proprietá
ou mesmo em lhe suprimir a menor parte por rios139 às custas dos que tiravam algum pro
uma lei ou um regulamento político. Neste veito da estrada. Decidia-se, nessa época, pela
caso, importa seguir com rigor a lei civil, que é lei civil; em nossos dias, decide-se pela lei
a salvaguarda da propriedade. política.
Assim, quando o público tem necessidade
do capital de um particular, nunca se deve agir 1 3 7 Este uso de indenizar por motivo de expropria-
com o rigor da lei política; mas é então que ção dataria somente da Revolução.
138 ... século XII, leia-se XIII.
139 O senhor nomeavaprudhommes a fim de fazer
1 3 6 De acordo com este ponto, afigurava-se que a a arrecadação de impostos sobre o camponês; os
independência absoluta e a comunhão dos bens fos gentis-homens eram obrigados a pagar a contribui
sem coisas naturais. Estamos desiludidos dessas ção pelo conde, e o eclesiástico, pelo bispo. Beau-
idéias simples. manoir, cap. XXV, §§ 13, 17. (N. do A.)
410 MONTESQUIEU
Capítulo XVI
Ver-se-á o fundo de todas as questões, se particulares é uma lei civil, que tem por objeto
não se confundirem as regras que derivam da o interesse dos particulares; a que regulamenta
propriedade da cidade, com as que nascem da a sucessão à monarquia é uma lei política, que
liberdade da cidade. tem por objeto o bem e a preservação do
O domínio de um Estado1 40 é alienável, ou Estado.
não é? Esta questão deve ser decidida pela lei Daí se segue que, quando a lei política esta
política, e não pela lei civil. Não deve ser deci belecer num Estado uma ordem de sucessão, e
dida pela lei civil, porque é tão necessário que esta ordem venha a findar-se, é absurdo recla
haja um domínio para prover à subsistência do mar a sucessão em virtude da lei civil de qual
Estado, quanto é necessário que haja, no Esta quer que seja o povo1 41. Uma sociedade parti
do, leis civis que regulamentem a disposição cular não vai fazer leis para outra sociedade.
dos bens. As leis civis dos romanos não são mais aplicá
Se, portanto, se alienar o domínio, o Estado veis do que todas as outras leis; eles próprios
será forçado a constituir novo capital para não as empregaram, quando julgaram os reis:
outro domínio. Mas este expediente arruina e as máximas pelas quais julgaram os reis são
também o governo político, porque, pela natu tão abomináveis, que de modo algum se deve
reza da coisa, a cada domínio que se estabele revivê-las.
cer, o súdito pagará sempre mais, e o soberano Disso ainda se segue que, quando a lei polí
retirará sempre menos; em suma, o domínio é tica fez qualquer família renunciar à sucessão,
necessário, e a alienação não o é. é absurdo querer empregar as restituições tira
A ordem de sucessão, nas monarquias, das da lei civil. As restituições estão na lei; e
baseia-se no bem do Estado, que exige que esta podem ser boas contra os que vivem na lei;
ordem seja fixada, a fim de evitar as desgraças mas não são boas para aqueles que foram esta
que, já disse, devem ocorrer no despotismo, belecidos para a lei e vivem para a lei.
onde tudo é incerto, porque tudo é arbitrário. E ridículo pretender decidir os direitos dos
Não é em proveito da família reinante que a reinos, das nações e do universo, pelas mesmas
ordem de sucessão é estabelecida, mas porque máximas com que se decide entre particulares
interessa ac Estado que haja uma família rei o direito de uma goteira, para servir-me da
nante. A lei que regulamenta a sucessão dos expressão de Cícero1 42.
Capítulo XVII
convicta de que esta prática apresenta alguma que não o merecia1 4 4, se deixou de empregá-
coisa de humano e de popular. Se, nos tempos lo1 4 5, ver-se-á muito bem que se tem dele uma
e nos lugares em que se exercia este julga idéia falsa, e que constituía uma lei admirável
mento, não o consideravam odioso, cabe a nós, a que previa os efeitos malsãos que podia pro
que vemos as coisas de tão longe, pensar de duzir a glória de um cidadão, ao cumulá-lo de
• modo diferente dos acusadores, dos juizes e do nova glória.
próprio acusado?
E se dermos atenção ao fato de este julga
mento do povo cumular de glória aquele con 1 44 Hipérbolo. Vede Plutarco, Vida de Aristides.
(N. do A.)
tra quem era pronunciado; ao fato de, quando 1 4 5 Achou-se que se opunha ao espírito do legisla
dele se abusou em Atenas contra um homem dor. Inf. XXIX, VII. (N. do A.)
Capítulo XVIII
Em Roma foi permitido que o marido nos desregramentos de sua esposa, que não a
emprestasse a mulher a outro. Plutarco no-lo levasse a julgamento, ou que voltasse1 48 a ela
diz formalmente1 4 6. Sabe-se que Catão em após a condenação, era punido. Tais leis pare
prestou sua mulher a Hortênsio1 4 7, e Catão cem contradizer-se, mas não se contradizem de
não era homem que violasse as leis de seu país. nenhum modo. A lei que permitia que um ro
De outro lado, um marido que consentisse mano emprestasse a esposa é visivelmente uma
constituição lacedemônia, fixada para dar à
república filhos de boa espécie, se ouso servir-
1 4 6 Plutarco, em Comparação de Licurgo com
Numa. (N. do A.) me do termo; a outra tinha por objeto resguar
1 4 7 Plutarco, Vida de Catão. Isto ocorreu em dar os costumes. A primeira era uma lei políti
nosso tempo, diz Estrabão, liv. XI. (N. do A.)* ca; a segunda, uma lei civil.
* Na realidade, Catão divorciou-se de sua mulher,
com quem tornou a casar após a morte de Hortên
sio. É evidentemente abusivo dizer que ele a
emprestou. 1 48 Leg. 11, § últ. ff. ad leg.Jul. de adult.
Capítulo XIX
A lei dos visigodos ordenava que os escra varica. Prende os criminosos, menos para
vos1 49 fossem obrigados a prender o homem e levá-los a julgamento do que para que julguem
a mulher que surpreendessem em adultério e a ele próprio, e para conseguir que se investi
apresentá-los ao marido e ao juiz: lei terrível, gue, nas circunstâncias da ação, se se pode
que colocava nas mãos destas vis pessoas o perder a suspeita de sua negligência.
encargo da vingança pública, doméstica e Mas nos países em que as mulheres não são
particular! guardadas, constitui uma insensatez que a lei
Esta lei só seria boa nos serralhos do Orien civil as submeta, elas que governam a casa, à
te, onde o escravo que é encarregado da clau inquisição de seus escravos.
sura já prevaricou no momento em que se pre Esta inquisição poderia ser, em certos casos,
no máximo uma lei particular doméstica,
1 49 Lei dos visigodos, liv. III, tít. IV, § 6. nunca uma lei civil.
412 MONTESQUIEU
Capítulo XX
A liberdade consiste, principalmente, em quando nós, que vivemos sob leis civis, somos
não poder ser forçado a fazer uma coisa que a coagidos a fazer algum contrato que a lei não
lei não ordena; e achamo-nos nesta situação exige, podemos, graças à lei, insurgir-nos con
tão-somente porque somos governados por leis tra a violência; mas um príncipe, que sempre
civis: somos livres, portanto, porque vivemos se encontra em situação de forçar ou ser força
sob leis civis. do, não pode queixar-se de um tratado que foi
Segue-se disso que os príncipes, que não obrigado a fazer por violência. É como se ele
vivem entre si sob leis civis, não são livres; são se queixasse de seu estado natural; é como se
governados pela força; podem continuamente quisesse ser príncipe em relação aos outros
forçar ou ser forçados. Daí se segue que os tra príncipes, e que os outros príncipes fossem
tados que fizeram forçados são tão obrigató cidadãos em relação a ele; isto é, chocar a
rios quanto os que teriam feito de bom grado; natureza das coisas.
Capítulo XXI
As leis políticas exigem que todo homem por um homem independente. Poder-se-ia
seja submetido aos tribunais criminais e cíveis imputar-lhes crimes, se pudessem ser punidos
do país onde se encontra, e à animadversão do por crimes; poder-se-ia atribuir-lhes dívidas, se
soberano. pudessem ser presos por dívidas. Um príncipe
O direito das gentes ordenou que os prínci que tem orgulho natural falaria pela boca de
pes enviassem embaixadores uns aos outros; e um homem que teria tudo a temer. Cumpre
a razão, extraída da natureza da coisa, não seguir, pois, em relação aos embaixadores, as
permitiu que tais embaixadores dependessem razões tiradas do direito das gentes, e não as
do soberano aos quais foram enviados, nem de que procedem do direito político. Se abusarem
seus tribunais. Representam a palavra do prín de seu ser representativo, fazem-nos cessar,
cipe que os envia, e esta palavra deve ser livre. reenviando-os a seu país: pode-se mesmo acu
Nenhum obstáculo deve obstar-lhes a ação. sá-los diante de seu senhor, que se torna, por
Podem muitas vezes desagradar, porque falam isso, seu juiz ou seu cúmplice.
Capítulo XXII
Capítulo XXIII
Quando a lei política, que estabeleceu no grande derramamento de sangue, como nos
Estado certa ordem de sucessão, toma-se deixam ver as histórias de todos os países.
destruidora do corpo político para o qual foi Segue-se daí que, se um grande Estado tem
feita, não se deve duvidar de que outra lei polí por herdeiro um possuidor de um grande Esta
tica não possa mudar esta ordem; e, bem longe do, o primeiro pode muito bem excluí-lo, por
de ser esta mesma lei oposta à primeira, ser- que útil se toma a ambos os Estados que se
Ihe-á inteiramente conforme na essência, pois' mude a ordem da sucessão. Desse modo, a lei
ambas dependerão deste princípio: A SALVA da Rússia, feita nos primórdios do reinado de
ÇÃO DO POVO É A SUPREMA LEI. Isabel, exclui prudentemente todo herdeiro que
Disse que um grande Estado1 51, ao se tor possua outra monarquia; desse modo, a lei de
nar acessório de outro, enfraquecia-se e enfra Portugal rejeita todo estrangeiro que seja
quecia mesmo o principal. Sabe-se que ao Es admitido à coroa por direito de sangue.
tado interessa ter seu chefe em seu próprio Se uma nação pode excluir, tem, com maior
país, que as rendas públicas sejam bem razão, o direito de fazer renunciar. Se ela teme
administradas, que seu dinheiro não saia para que um certo casamento tenha consequências
enriquecer outro país. Muito importa que que possam levar a perder a independência,
aquele que deve governar não se ache imbuído ou lançá-la numa partilha, poderá muito bem
de máximas estrangeiras; elas convêm menos fazer que os contraentes, e os que deles nasce
do que as que já se acham fixadas: aliás, os ho rem, renunciem a todos os direitos que teriam
mens têm prodigioso apego a suas leis e a seus sobre ela1 52; e aquele que renuncia, e aqueles
costumes; neles reside a felicidade de cada contra quem se renuncia, poderão se queixar
nação; é raro mudá-los sem grandes abalos e tanto menos quanto o Estado poderia ter feito
uma lei para excluí-los.
1 61 Vede supra, liv. V, cap. XIV; liv. VIII, cap.
XVI-XX; liv. IX, cap. IV-VII; e liv. X, cap. IX e X.
(N. do A.) 1 52 Outra alusão ao “direito” de “devolução”.
Capítulo XXIV
Há criminosos que o magistrado pune, há crimes, é a lei que pune mais do que o magis
outros que corrige. Os primeiros são submeti trado. As questões de polícia são coisas de
dos ao poder da lei, os outros à sua autorida todo instante, em que ordinariamente se trata
de1 53; aqueles são desligados da sociedade, a de pouca coisa: quase não se necessita de
estes obriga-se que vivam de acordo com as re formalidades. As ações da polícia são rápidas,
gras da sociedade. e elas se exercem sobre coisas que se repetem
No exercício da polícia, quem pune é mais o todos os dias: as grandes punições não são,
magistrado do que a lei; nos julgamentos de portanto, próprias para isso. Ela ocupa-se
perpetuamente dos pormenores: os grandes
1 63 À autoridade do magistrado. exemplos não são feitos, portanto, para ela.
414 MONTESQUIEU
Ela possui mais regulamentos do que leis. As lia1 5 4, em que o porte de armas de fogo é puni
pessoas que dela dependem estão incessante do como crime capital, e em que fazer mau uso
mente sob as vistas do magistrado; é, pois, delas não é mais fatal do que portá-las.
culpa do magistrado se caem em excessos. Segue-se ainda que a ação tão louvada desse
imperador que mandou empalar um padeiro
Assim, não se deve confundir as grandes viola
que ele surpreendera em fraude é uma ação de
ções das leis com a violação da simples polí
sultão, que só sabe ser justo exagerando a pró
cia: essas coisas são de ordem diferente. pria justiça.
Daí se segue que não se está conforme à
natureza das coisas nesta república da Itá 1 5 4 Veneza. (N. do A.).
Capítulo XXV
Será uma boa lei a que torna nulas todas as de sua viagem, que não são mais da sociedade,
obrigações civis concluídas no curso de uma mas cidadãos do navio, não devem contrair
viagem entre os marinheiros num navio? Fran- essas obrigações que só foram introduzidas
çois Pyrard nos diz1 5 5 que, em seu tempo, ela para manter os encargos da sociedade civil.
não era observada pelos portugueses, mas que
o era pelos franceses. Pessoas que estão juntas É neste mesmo espírito que a lei dós ródios,
somente por pouco tempo, que não têm nenhu feita para um tempo em que se seguiam sempre
ma necessidade, pois o príncipe a provê, que as costas, ordenava que aqueles que permane
não podem ter senão um único objeto, que é o cessem no barco durante a tempestade tives
sem o navio e a carga, e que aqueles que o hou
1 5 5 Capítulo XlV^parte 12. (N. do A.) vessem abandonado nada tivessem.
SEXTA PARTE
Esta matéria liga-se a estabelecimentos de Mas era indiferente que o herdeiro necessá
antiguidade muito remota, e, a fim de penetrá- rio, ou, na sua falta, o agnato mais próximo,
la a fundo, seja-me permitido procurar nas pri fosse homem ou mulher, porque, não suce
meiras leis dos romanos o que não sei se foi dendo os parentes do lado materno, embora
visto até agora. uma mulher herdeira se casasse, os bens volta
Sabe-se que Rômulo dividiu as terras de seu vam sempre à família de que haviam saído. É
pequeno Estado entre seus cidadãos1; parece- por isso que não se distinguia, na Lei das Doze
me que daí é que procedem as leis de Roma Tábuas, se a pessoa que sucedia era homem ou
sobre as sucessões2. mulher5.
A lei da divisão das terras exigiu que os Isso fez com que, embora os netos pelo filho
bens de uma família não passassem para sucedessem ao avô, os netos pela filha não lhe
outra; disso seguiu-se que houve somente duas sucedessem; pois os agnatos lhes eram preteri
ordens de herdeiros instituídos pela lei3: os fi dos, a fim de que os bens não passassem para
lhos e todos os descendentes que viviam sob a outra família. Dessa maneira, a filha sucedia
autoridade do pai, que foram chamados her ao pai, e seus filhos não6.
deiros necessários; e, à sua falta, os parentes Assim, entre os primeiros romanos, as
mais próximos pela linha masculina, chama mulheres sucediam, quando isso se harmoni
dos agnatos. zava com a lei da divisão das terras; e não
Segue-se ainda que os parentes pela linha sucediam quando tal coisa podia ir de encon
feminina, chamados cognatos, não deviam tro a ela.
suceder; teriam os bens transportados para Foram estas as leis das sucessões entre os
outra família; e isto assim ficou estabelecido. primeiros romanos; e, como eram uma depen
dência natural da constituição e procediam da
Segue-se ainda que os filhos não deviam
partilha das terras, vê-se muito bem que não
suceder à mãe nem a mãe aos filhos; isto teria
tiveram uma origem estrangeira, e não foram
levado os bens de uma família para outra. Daí
incluídas no número das que importavam os
por que são excluídos pela Lei das Doze Tá
deputados enviados às cidades gregas.
buas4; ela só designava à sucessão os agnatos,
Dionísio de Halicamasso7 diz-nos que Sér-
e o filho e a mãe não o eram entre si.
vio Túlio, encontrando abolidas as leis de Rô
mulo e de Numa sobre a partilha das terras,
1 Dionísio de Halicamasso, liv. II. cap. III; Plutar restabeleceu-as e fez outras a fim de dar nova
co, em Comparação de Numa com Licurgo. (N. do
A.) força às antigas. Assim, não se pode duvidar
2 É de notar que toda a legislação romana e nota- de que as leis de que falamos, feitas em conse
damente a que concerne à herança relacionava-se quência desta partilha, não sejam obra destes
com o culto dos antepassados, o que Montesquieu três legisladores de Roma.
parece não levar em consideração aqui. Sabe-se que
a agnação indica o parentesco pelo lar, pelo fogo Uma vez que a ordem de sucessão fora esta
(agni). belecida em consequência de uma lei política,
3 A st si intestatus moritur, cui suus haeres nec um cidadão não devia alterá-la por uma vonta
extabit, agnatus proximus familiam habeto. Fragm. de particular; isto é, nos primeiros tempos de
da Lei das Doze Tábuas, em Ulpiano, último título.
(N. do A.)
4 Vede os Fragm. de Ulpiano, § 8, tít. XXVI, Insti 5 Paulo, liv. IV, Senten., tit. VIII, § 3. (N. do A.)
tutos, tít. III. In proemio ad Sen. cons. Tertullia- 6 Institut., liv. III, tít. I, § 15.'(N. do A.)
num. (N. do A.) 7 Liv. IV, pág. 276. (N. do A.)
418 MONTESQUIEU
Roma, não devia ser permitido que se fizesse Sendo os testamentos propriamente uma lei
um testamento. Entretanto, foi penoso que se feita na assembléia do povo, os que se acha
tivesse sido privado em seus últimos momen vam no exército viam-se privados da faculdade
tos da participação dos benefícios. de testar. O povo deu aos soldados o poder de
Encontrou-se um meio de conciliar, a este fazer11, diante de alguns de seus companhei
respeito, as leis com a vontade dos particula ros, as disposições que teriam feito diante
res. Foi permitido dispor dos bens numa dele12.
assembléia do povo; e todo testamento, de al As grandes assembléias do povo só se reali
guma maneira, foi um ato do poder legislativo. zavam duas vezes por ano; por outro lado, o
povo aumentara e os negócios também. Jul
A Lei das Doze Tábuas permitiu àquele que gou-se que seria conveniente permitir que
fazia seu testamento que escolhesse para her
todos os cidadãos fizessem seu testamento na
deiro o cidadão que quisesse. A razão que fez presença de alguns cidadãos romanos púbe-
com que as leis romanas restringissem tão
res13, que representassem o corpo do povo:
grandemente o número dos que podiam suce
foram escolhidos cinco cidadãos1 4 ante os
der ab intestato foi a lei da partilha das terras;
quais o herdeiro comprava do testador sua
e a razão por que estenderam tão fortemente a
família, isto é, sua herança1 5; outro cidadão
faculdade de testar foi que o pai, podendo ven
portava uma balança a fim de pesar o seu
der os filhos8, podia, com maior razão, privá- preço; pois os romanos ainda não dispunham
los de seus bens. Eram, portanto, efeitos dife de moeda1 6.
rentes, pois promanavam de princípios Há indícios de que esses cinco cidadãos
diversos; e é este o espírito das leis romanas a representavam as cinco classes do povo, e que
respeito. a sexta não era contada, composta que era de
As antigas leis de Atenas não permitiram ao pessoas que nada possuíam.
cidadão fazer seu testamento. Sólon o permi Não se deve dizer, com Jystiniano, que essas
tiu9, excetuando os que tinham filhos; e os vendas eram imaginárias; tornaram-se depois,
legisladores de Roma, imbuídos da idéia do mas no início não o eram. A maioria das leis
poder paterno, permitiram testar mesmo em que regulamentaram, em seguida, os testa
detrimento dos filhos. Cumpre confessar que mentos têm sua origem na realidade de tais
as antigas leis atenienses foram mais conse vendas; vê-se muito bem a prova disto nos
quentes que as leis romanas. A permissão inde Fragmentos de Ulpiano' 1. O surdo, o mudo e
finida de testar, concedida aos romanos, arrui o pródigo não podiam fazêr testamento: o
nou paulatinamente o dispositivo político surdo porque não podia ouvir as palavras do
sobre a partilha das terras; introduziu, mais do comprador da família; o mudo porque não
que qualquer outra coisa, a funesta diferença podia pronunciar os termos da nomeação; o
entre as riquezas e a pobreza; vários quinhões pródigo porque, sendo-lhe interditada qualquer
foram reunidos numa só mão; certos cidadãos gestão de negócios, não podia vender sua famí
tiveram demasiado, uma infinidade de outros lia. Omito os outros exemplos.
nada teve. Por isso, o povo, continuamente pri
vado de sua parte, pediu sem cessar uma nova 11 Este testamento, denominado in procinctu, era
distribuição das terras1 °. Solicitou-a no tempo diferente do que se chamava militar, que só foi esta
em que a frugalidade, a parcimônia e a pobre belecido pelas constituições dos imperadores, leg. 1,
ff. de militari testamento: foi uma das formas de
za constituíam o caráter distintivo dos roma bajular os soldados. (N. do A.)
nos, como nos tempos em que seu luxo chegou 12 Este testamento não era escrito e era feito sem
ao excesso. formalidades, sine libra et tabulis, como diz Cícero,
liv. I do Orador. (N. do A.)
8 Dionísio de Halicarnasso prova, mediante uma 13 Instit., liv. II, tít. X, § 1; Aulo Gélio, liv. XV,
lei de Numa, que â lei que permitia que o pai ven cap. XXVII. Esta espécie de testamento chamava-se
desse o filho três vezes era uma lei de Rômulo, e per aes et libram. (N. do A.)
não dos decênviros. Liv. II. (N. do A.) 1 4 Ulpiano, tít. X, § 2. (N. do A.)
9 Vede Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.) 1 5 Teófilo, Inst., liv. II, tít. X. (N. do A.)
10 Os romanos não solicitavam uma nova “distri 1 6 Só passaram a possuí-la no tempo da guerra de
buição” de todas as terras, mas tão-somente a entra Pirro. Tito Lívio, falando do cerco de Veios, diz:
da no patrimônio comum e a partilha eqüitativa dos nondum argentum signatum erat, liv. IV. (N. do A.)
territórios conquistados. 1 7 Tít. XX, § 13. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 419
Já que os testamentos eram feitos na assem não restringiram bastante as riquezas das
bléia do povo, constituíam atos do direito polí mulheres, e deixaram, por isso, uma porta
tico mais que do direito civil, do direito pú aberta ao luxo, que é sempre inseparável des
blico mais que do direito privado; segue-se sas riquezas. Entre a Segunda e a Terceira
disso que o pai não podia consentir em que o Guerra Púnica, começou-se a sentir o mal; foi
filho, que estava sob seu poder, fizesse elaborada a lei Voconiana23. E como grandes
testamento. considerações levaram a fazê-la, como não nos
Entre a maioria dos povos, os testamentos restam senão poucos monumentos, e até agora
não estão sujeitos a maiores formalidades do só temos falado dela de maneira muito confu
que os contratos ordinários, porque uns e ou sa, passo a esclarecê-la.
tros não passam de expressões da vontade Cícero conservou-nos um fragmento dela,
daquele que contrata, as quais pertencem que proíbe instituir herdeira uma mulher, casa
igualmente ao direito privado. Entre os roma da ou não2 4.
nos, porém, onde os testamentos procediam do O Epítome de Tito Lívio, onde ele falou
direito público, cercaram-se de maiores for desta lei, nada mais acrescenta a isso2 5. Pare
malidades1 8 do que os outros atos; e isto sub ce, através de Cícero2 6 e de Santo Agosti
siste ainda hoje nas regiões da França que se nho2 7, que a filha, e mesmo a filha única, esta
regem pelo direito romano. va compreendida na proibição.
Sendo os testamentos, como disse, uma lei Catão, o Antigo, contribuiu com todo o seu
do povo, deviam ser elaborados com a força poder para que esta lei fosse adotada28. Aulo
da ordem, e pelas palavras que se chamaram Gélio cita um fragmento do discurso que fez
diretas e imperativas. Disso se formou uma nessa ocasião29. Impedindo as mulheres de
regra: não se podia transmitir a herança senão suceder, pretendeu prevenir as causas do luxo,
pelas palavras de ordem18 19; daí se segue que, como, ao defender a lei Ópia, pretendeu deter o
em certos casos, se podia fazer uma substitui próprio luxo.
ção20, e ordenar que a herança passasse a Nas Institutos de Justiniano30 e de Teófi-
outro herdeiro; mas jamais se podia fazer fidei- lo31, fala-se de um capítulo da lei Voconiana,
comissos21, isto é, encarregar alguém, em que limitava a faculdade de legar. Lendo esses
forma de rogo, de entregar a outro a herança, autores, não há ninguém que não pense que
ou uma parte da herança. este capítulo foi feito para evitar que a suces
Quando o pai não instituía o filho como her são não fosse de tal forma consumida por lega
deiro, nem o deserdava, o testamento era des dos, que o herdeiro recusasse aceitá-la. Não é
feito; mas era válido, embora não deserdasse a este, porém, o espírito da lei Voconiana.
filha, ou a instituísse herdeira. Entendo a razão Vimos há pouco que seu objetivo era impedir
disso. Quando não instituía o filho seu herdei que as mulheres recebessem alguma sucessão.
ro, nem o deserdava, causava prejuízo a seu O capítulo desta lei que determinava limites à
neto que teria sucedido ab intestato a seu pai; faculdade de legar participava de tal objetivo:
mas, não instituindo herdeira a filha, nem a pois, se se pudesse legar tanto quanto se qui
deserdando, não prejudicava de modo algum sesse, as mulheres podiam ter recebido, como
os filhos de sua filha, que não teriam sucedido
ab intestato à sua mãe22, porque não eram 23 Quinto Vocônio, tribuno do povo, foi quem a
herdeiros necessários nem agnatos. propôs, no ano 585 de Roma, 169 anos a. C. Vede
Cícero, Segundo Discurso contra Ferres. No Epí
Não tendo as leis dos romanos pensado em tome de Tito Lívio, liv. XLI, deve-se ler Vocônio,
seguir senão o espírito da partilha das terras, em vez de Volúmnio. (N. do A.)
2 4 Sanxit... ne quis haeredem virginem neve
18 Instit., liv. II, tít. X, § 1. (N. do A.) mulierem faceret. Cícero, Segundo Discurso contra
1 9 Tício, sê meu herdeiro. (N. do A.) Ferres, cap. CVII. (N. do A.)
20 A vulgar, a pupilar, a exemplar. (N. do A.) 2 5 Legem tulit, ne quis haeredem mulierem insti-
21 Augusto, por razoes particulares, começou a tueret, liv. XLI. (N. do A.)
autorizar os fideicomissos. Instit., liv. II, tít. XXIII, 2 6 Segundo Discurso contra Ferres. (N. do A.)
§ l.(N. do A.) 2 7 Liv. III da Cidade de Deus. (N. do A.)
22 Ad liberos matris intestatae haereditas, lege XII 2 8 Epítome, de Tito Lívio, liv. XLI. (N. do A.)
tabularum, non pertinebat, quia feminae suos haere- 2 9 Liv. XVII, cap. VI. (N. do A.)
des non habent. Ulp., Fragm., tít. XXVI, § 7. (N. do 30 Instit., liv. II, tít. XXII. (N. do A.)
A.) 31 Liv. II, tít. XXII. (N. do A.)
420 MONTESQUIEU
legados, o que não podiam obter como censo segundo o espírito das instituições de
herança. Sérvio Túlio.
A lei Voconiana foi feita para prevenir as Os que não se tinham inscrito nas cinco pri
riquezas demasiado grandes das mulheres. Foi, meiras classes, em que eram colocados de
portanto, mister privá-las das sucessões consi acordo com a proporção de seus bens38, não
deráveis, e não daquelas que não podiam man estavam no censo segundo o espírito da lei
ter o luxo. A lei fixava uma determinada quan Voconiana; os que não eram inscritos no nú
tia, que devia ser dada às mulheres que mero das seis classes, ou que não eram coloca
privasse da sucessão. Cícero32, que nos infor dos pelos censores no número dos chamados
ma deste fato, não nos diz qual era a somà; aerarii, não estavam no censo segundo as insti
mas Dion33 afirma que montava a cem mil tuições de Sérvio Túlio. Tal era a força da
sestércios. Natureza, que os pais, a fim de eludir a lei
A lei Voconiana era feita para regulamentar Voconiana, consentiam em sofrer a vergonha
as riquezas, e não para regulamentar a pobre de ser misturados na sexta classe com os prole
za; por isso, Cícero nos diz3 4 que ela estatuía tários e os que eram taxados por cabeça, ou
tão-somente sobre os que estavam inscritos-no talvez mesmo ser inscritos nas tábuas dos
censo. Ceritas39.
Isto fornece um pretexto para eludir a lei. Dissemos que a jurisprudência dos romanos
Sabe-se que os romanos eram extremamente não admitia os fideicomissos. A esperança de
formalistas; e dissemos acima que o espírito da eludir a lei Voconiana introduziu-os. Instituía-
república era seguir a letra da lei. Houve pais se um herdeiro capaz de receber pela lei e
que não se inscreveram no censo, a fim de rogava-se-lhe que devolvesse a herança a uma
poder deixar sua sucessão à filha; e os pretores pessoa que a lei excluira dela. Esta nova
julgaram que, assim, não se violava a lei, pois maneira de dispor teve efeitos bem diferentes.
não se estava violando a letra. Uns entregaram a herança; e a ação de Sexto
Um certo Ânio Aselo instituira herdeira sua Peduceu40 foi digna de n,ota. Deu-se-lhe uma
filha única. Podia fazê-lo, diz Cícero; a lei grande herança; não havia ninguém no mundo
Voconiana não o impedia, pois ele não estava além dele que soubesse que lhe fora rogado
no censo3 5; Verres, sendo pretor, privara a que a entregasse; ele procurou a viúva do tes-
filha da sucessão; Cícero afirma.que Verres tador e deu-lhe toda a fortuna do marido.
Outros guardaram para si a sucessão; e o
fora corrompido, poique, sem isso, não teria
exemplo de P. Sextílio Rufo também foi céle
intervertido uma ordem que os outros pretores
bre, pois Cícero utiliza-o em suas disputas
tinham seguido.
contra os epicuristas 41. “Em minha mocida
Que eram, portanto, estes cidadãos que não
de”, diz éle, “pediu-me Sextílio que o acompa
estavam no censo que compreendia todos os nhasse à casa de seus amigos, para saber deles
cidadãos? Mas, segundo a instituição de Sér-
se devia entregar a herança de Quinto Fábio
vio Túlio, relatada por Dionísio de Halicarnas-
Galo a Fádia, sua filha. Ele reunira vários
so3 6, todo cidadão que não se inscrevesse no
jovens, com severas personalidades; e nenhum
censo era feito escravo; o próprio Cícero diz
foi de parecer que ele desse a Fádia mais do
que tal homem perdia a liberdade3 7; Zonara
que o que ela devia ter pela lei Voconiana. Sex
diz a mesma coisa. Importava, pois, que hou
tílio teve com isso grande herança, da qual não
vesse diferença entre não estar no censo segun
teria ficado com nenhum sestércio, se tivesse
do o espírito da lei Voconiana e não estar no preferido o que era justo e honesto ao que era
útil.” “Acredito”, acrescenta Cícero, “que vós
32 Nemo censuit plus Fadiae dandum, quam pos- teríeis entregue a herança; acredito mesmo que
set ad eam lege Voconia pervenire. De finibus bon.
et mal., liv. II, cap. LV. (N. do A.)
33 Cum lege Voconia mulieribus prohiberetur ne 3 8 Essas cinco primeiras classes eram tão conside
qua majorem centum millibus rummum haeredi- ráveis, que, às vezes, os autores só mencionam as
tatem posset adire, liv. LVI. (N. do A.) cinco. (N. do A.)
3 4 Qui census esset. Segundo Discurso contra Ver 33 In Caeritum tabulas referri; aerarius fieri. (N.
res. (N. do A.) do A.)
3 5 Census nom erat. Ibid. (N. do A.) 40 Cícero, Definib. bon. et mal., liv. II, cap. LVIII.
3 6 Liv. IV. (N. do A.) (N. do A.)
3 7 In oratione pro Coecina. Ibid. (N. do A.) 41 Ibid. (N.doA.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 421
Epicuro a teria entregue; más nisso não esta aos desígnios da lei, as esperanças de suceder,
rieis seguindo vossos princípios.” Farei aqui e diminuí-las para os que a isso se recusavam;
algumas reflexões. e, como a lei Voconiana tornara as mulheres
Constitui uma desgraça da condição huma incapazes de suceder, em certos casos a lei
na o fato de os legisladores serem obrigados a Papiana anulou essa proibição.
fazer leis que combatem mesmo os senti As mulheres44, sobretudo as que tinham
mentos naturais: tal foi a lei Voconiana. É que filhos, foram capacitadas a receber em virtude
os legisladores preceituam mais sobre a socie do testamento de seus maridos; quando tinham
dade do que sobre o cidadão, e sobre o cidadão filhos puderam receber em virtude do testa
mais do que sobre o homem. A lei sacrificava mento dos estranhos: tudo isso contra a dispo
tanto o cidadão como o homem, e só pensava sição da lei Voconiana; e é digno de observa
na república. Um homem rogava a seu amigo ção que não se abandonou inteiramente o
que entregasse sua sucessão à sua filha: a lei espírito desta lei. Por exemplo, a lei Papiana4 5
desprezava no testador os sentimentos da permitia que um homem que tivesse um filho 4 6
Natureza; desdenhava na filha a piedade filial; recebesse toda a herança pelo testamento de
não tinha consideração alguma por aquele que um estranho; outorgava a mesma graça à mu
era encarregado de entregar a herança, o qual lher somente quando ela tinha três filhos4 7.
se via em terríveis circunstâncias. Se a entre É de notar que a lei Papiana não tornou as
gasse, era um mau cidadão; se a conservasse mulheres que tinham três filhos capazes de
consigo, era um homem desonesto. Somente as suceder, senão em virtude do testamento dos
pessoas de uma bondade natural pensariam em estranhos; e que, em relação à sucessão dos
eludir a lei; somente as pessoas honestas po parentes, manteve as antigas leis e a lei Voco
diam ser escolhidas para eludi-la; pois sempre niana48 em toda a sua força. Mas isso não
constitui um triunfo a obter sobre a avareza e durou.
as voluptuosidades; e só as pessoas honestas é Roma, arrumada pelas riquezas de todas as
que obtêm esses triunfos. Talvez mesmo hou nações, mudara os costumes; não houve mais
vesse rigor em considerá-los, por isso, maus a preocupação de deter o luxo das mulheres.
cidadãos. Não é impossível que o legislador Aulo Gélio, que vivia sob o reinado de Adria
tenha conseguido uma grande parte de seu no49, diz-nos que, em seu tempo, a lei Voco
objeto, quahdo sua lei era de tal sorte, que for niana estava quase aniquilada; foi abafada
çava somente as pessoas honestas a eludi-la. pela opulência da cidade. Por isso, encon
No tempo em que se fez a lei Voconiana, os tramos nas Sentenças de Paulo 50, que vivia no
costumes ainda haviam conservado algo de tempo de Nigério, e nos Fragmentos de Ulpia
sua antiga pureza. Interessou-se, às vezes, a no 51, que era do tempo de Alexandre Severo,
consciência pública em favor da lei, e fez-se que as irmãs do lado paterno podiam suceder,
que jurasse que a seguiría42; de sorte que a e que somente os parentes de um grau mais
probidade fazia guerra, por assim dizer, à pro afastado é que se incluíam no caso da proibi
bidade. Nos últimos tempos, porém, os costu ção da lei Voconiana.
mes se corromperam a ponto de os fideico-
missos deverem ter menos força para eludir a
4 4 Vede, sobre isso, os Fragm. de Ulpiano, tít. XV,
lei Voconiana, do que esta lei para se fazer §16. (N. do A.)
obedecida. 4 5 Encontra-se a mesma diferença nos vários
As guerras civis mataram um número infi dispositivos da lei Papiana. Vede os Fragm. de
nito de cidadãos. Roma, no tempo de Augusto, Ulpiano, §§ 4 e 5, último tít.; e o mesmo no mesmo
viu-se quase deserta; cumpria repovoá-la. título, § 6. (N. do A.)
4 6 Quod tibi filiolus, velfilia, nascitur, ex me. . .
Foram feitas as leis Papianas, em que nada se Juraparentis habes; propter me scriberis haeres.
omitiu do que podia encorajar o cidadão a Juvenal, Sát. IX, vv. 83, 87. (N. do A.)
casar-se e a ter filhos43. Um dos principais 4 7 Vede a lei 9, cód. Teod. de bonisproscriptorum;
meios foi aumentar, para os que se prestavam e Dion, liv. LV. Vede os Fragm. de Ulpiano, último
tít., § 6; e tít. XXIX, § 3. (N. do A.)
48 Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § 1; Sozom., liv. I,
42 Sextílio dizia que havia jurado observá-la. Cíce cap. XIX. (N. do A.)
ro, Definib. bon. et mal., liv. II, cap. LV. (N. do A.) 49 Liv. XX, cap. I. (N. do A.)
43 Vede o que disse a respeito no livro XXIII, cap. 50 Liv. IV, tít. VIII, § 3.(N. doA.)
XXL (N. do A.) 51 Tít. XXVI, § 6. (N. do A.)
LIVRO VIGÉSIMO OITAVO
DA ORIGEM E DAS REVOLUÇÕES
DAS LEIS CIVIS DOS FRANCESES
Capítulo I
Depois que os francos saíram de seu país, Há nas leis sálicas e ripuárias, nas dos ale
eles mandaram redigir5 7, pelos sábios de sua mães, dos bávaros, dos turíngios e dos frisões,
nação, as leis sálicas. A tribo dos francos uma simplicidade admirável; encontramos
ripuários havendo-se reunido, sob o reinado de nelas uma rudeza original e um espírito que
Clóvis 58, à tribo dos francos sálios, conservou não havia sido ainda enfraquecido por outro
seus usos; e Teodorico59, rei da Austrásia, os espírito. Elas pouco se modificaram, porque
mandou redigir. Ele compilou60 também os estes povos, com exceção dos francos, conser-
usos dos bávaros e dos alemães que estavam varam-se na Germânia. Os próprios francos
sob seu reinado. Porque, estando a Germânia fundaram ali uma grande parte de seu império:
enfraquecida pela saída de tantos povos, os deste modo, todas as suas leis foram germâni
francos, após haverem avançado na conquista, cas. O mesmo não aconteceu com as leis dos
haviam retrocedido um passo e levado o seu visigodos, dos lombardos e dos borguinhões;
domínio para as florestas de seus antepassa elas perderam muito de seu caráter, porque
dos. Parece que o código61 dos turíngios foi estes povos, que se fixaram em suas novas
outorgado pelo mesmo Teodorico, pois que os moradas, também perderam muito do seu.
turíngios eram também seus súditos. A lei62 O reino dos borguinhões não subsistiu o
dos frisões, que tinham sido dominados por tempo necessário para que as leis do povo ven
Carlos Martelo e por Pepino, não é anterior a cedor pudessem sofrer grandes modificações.
estes príncipes. Carlos Magno, que foi o pri Gondebaldo e Sigismundo, que recolheram
meiro a subjugar os saxões, outorgou-lhes a lei seus usos, foram quase os últimos de seus reis.
que ainda possuímos. Basta ler estes dois últi As leis dos lombardos receberam mais adita
mos códigos para ver que eles saem das mãos mentos do que modificações. As de Rotaris
de vencedores. Os visigodos, os borguinhões e foram seguidas pelas de Grimoaldo, de Luit-
os lombardos, tendo fundado reinos, manda prando, de Rachis, de Aistolfo; mas elas não
ram redigir suas leis, não para fazer com que adquiriram forma nova. O mesmo não se deu
seus usos fossem seguidos pelos povos venci com as leis dos visigodos 63; seus reis as refun-
dos, mas sim para que eles mesmos os diram e as fizeram refundir pelo.clero.
seguissem. Os reis da primeira raça eliminaram 6 4 das
leis sálicas e ripuárias o que não podia absolu
6 7 Vede o prólogo da lei sálica. Leibniz diz, em seu tamente concordar com o cristianismo; conser
tratado sobre a Origem dos Francos, que esta lei foi varam, porém, todo o seu fundamento. Isso
criada antes do reinado de Clóvis, mas ela não pode não se pode dizer das leis dos visigodos.
ter existido antes de os francos haverem saído da
Germânia: eles não compreendiam, então, a língua
latina. (N. do A.) 63 Eurico as outorgou, Leovigildo corrigiu-as.
5 8 Vede Gregório de Tours. (N. do A.) Vede a crônica de Isidoro. Chaindassuindo e Reces-
59 Vede o prólogo da leis dos bávaros e o da lei sá suindo as reformaram. Egiga mandou que fosse
lica. (N. do A.) feito o código que temos, e o incumbiu aos bispos;
60 Ibid. (N. do A.) foram conservadas, contudo, as leis de Chaindas
61 Lex Angliorum Werinorum, hoc est, Thuringo- suindo e Recessuindo, pelo que se nota no décimo
rum. (N. do A.) sexto concilio de Toledo. (N. do A.)
62 Eles não sabiam escrever. (N. do A.) 8 4 Vede o prólogo da lei dos bávaros. (N. do A.)
426 MONTESQUIEU
Capítulo II
É uma característica particular dessas leis rar-se. O terror que eles tiveram pelos romanos
dos bárbaros não haverem sido vinculadas a fez com que se reunissem; cada homem, nessas
um determinado território: o franco era julga nações mescladas, teve que ser julgado pelos
do pela lei dos francos, o alemão pela lei dos usos e costumes de sua própria nação. Todos
alemães, o borguinhão pela lei dos borgui esses povos eram, de per si, livres e indepen
nhões, o romano pela lei romana; e, bem longe dentes; e a independência foi conservada
de se cogitar, naqueles tempos, de tornar uni mesmo depois que eles se misturaram. A pátria
formes as leis dos povos conquistadores, não era comum e a república particular; o terri
se pensava nem mesmo em ser legislador do tório era o mesmo e as nações diversas. O espí
povo vencido. rito das leis pessoais existia então nesses povos
Encontro a origem disto nos costumes dos antes que eles partissem de suas terras de ori
povos germânicos. Suas nações estavam sepa gem, e eles levaram-no em suas conquistas.
radas por pântanos, lagos e florestas; sabemos Encontra-se este uso estabelecido nas fór
por César71 que esse povo gostava de sepa mulas72 de Marculfo, nos códigos das leis dos
71 De Bello Gallico, liv. VI. (N. do A.) 7 2 Liv. fórm. VIII. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 427
Capítulo III
Disse81 que a lei dos borguinhões e a dos assaltar um franco em sua casa e se ele era
visigodos eram imparciais; mas a lei sálica não morto, a lei sálica ordenava uma reparação de
o foi: estabeleceu entre os francos e os roma seiscentos soidos; mas, se se houvesse assal
nos as mais aflitivas distinções. Quando82 tado um romano ou um liberto88, não se paga
alguém matava um franco, um bárbaro, ou um va senão a metade da reparação. Pela mesma
homem que vivia sob a lei sálica, devia pagar lei89, se um romano aprisionava um franco,
aos seus parentes uma reparação de duzentos devia trinta soidos de reparação; mas, se um
soidos; pagavam-se apenas cem, quando se franco aprisionava um romano, ele não devia
havia morto um romano proprietário83, e senão uma de quinze. Um franco espoliado por
somente quarenta e cinco, quando se havia um romano tinha sessenta e dois soidos e meio
morto um romano tributário: a reparação por de reparação; e um romano espoliado por um
homicídio de um franco, vassalo8 4 do rei, era franco só recebia uma de trinta. Tudo isto
de seiscentos soidos; e por homicídio de um devia ser opressivo para os romanos.
romano conviva8 5 do rei8 6 não era senão de Entretanto, um autor célebre90 forma nm
trezentos. Ela estabelecia, então, uma dife sistema do Estabelecimento dos Francos nas
rença cruel entre o senhor franco e o senhor Gálias, no pressuposto de que eles eram os
melhores amigos dos romanos. Eram então os
romano, e entre o franco e o romano que eram
francos os melhores amigos dos romanos, eles
de condição medíocre.
que lhes causaram e que deles receberam91
E não é tudo: se se reunia8 7 gente para
males horríveis? Eram os francos amigos dos
romanos, eles que, após tê-los subjugado pelas
81 No cap. I deste livro. (N. do A.) armas, oprimiram-nos a sangue frio, com suas
82 Lei sálica, tít. XLIV, § 1. (N. do A.)
83 Qui res in pago ubi remanet próprias habet. Lei leis? Eles eram amigos dos romanos tal como
sálica, tít. XLIV, § 15; vede também o § 7. (N. do os tártaros que conquistaram a China eram
A.) amigos dos chineses.
8 4 Qui in truste dominica est, ibid., tít. XLIV, § 4. Se alguns bispos católicos quiseram servir-
(N. do A.)
8 5 Si romanus homo conviva regisfuerit. Ibid., § 6.
(N. do A.) 88 Lidus, cuja condição era melhor do que a de seu
8 6 Os romanos mais importantes ligavam-se à servo. Lei dos alemães, cap. XCV. (N. do A.)
corte, como se vê pela vida de muitos bispos que 89 Tít. XXXV, §§ 3 e 4. (N. do A.)
nela foram educados. Ali, apenas os romanos sa 90 O Abade Dubos. (N. do A.)
biam escrever. (N. do A.) 91 É o que testemunha a expedição de Arbogasto,
8 7 Lei sálica, tít. XLV. (N. do A.) em Gregório de Tours, História, liv. II. (N. do A.)
428 MONTESQUIEU
se dos francos para destruir os reis arianos, cos contaram com os romanos, menos eles os
deduz-se que eles tenham desejado viver sujei pouparam.
tos aos povos bárbaros? Pode-se concluir que Mas o Abade Dubos abeberou-se em más
os francos tivessem considerações especiais fontes para um historiador: os poetas e os ora
pelos romanos? Eu tiraria disso tudo conse dores: não é sobre obras de ostentação que se
quências bem diferentes: quanto mais os fran devem fundar os sistemas.
Capítulo IV
As coisas que eu disse elucidarão outras que somente pelos eclesiásticos9 7, porquanto esses
até agora estiveram plenas de obscuridade. não tiveram nenhum interesse em mudar. As
O país a que hoje chamam França foi gover diferenças das condições e das categorias não
nado, durante a sua primeira raça, pela lei ro consistiam senão na grandeza das reparações,
mana ou pelo código Teodosiano, e pelas como eu farei ver em outra parte. Ora, leis98
diversas leis dos bárbaros92 que ali habita particulares lhes deram reparações tão favorá
vam. veis quanto aquelas que tinham os francos:
eles conservaram, então, o direito romano.
No país de domínio dos francos, a lei sálica
Dele, eles não recebiam nenhum prejuízo; e ele
era estabelecida para os francos, e o código93
lhes convinha, além disso, porque era obra dos
Teodosiano para os romanos. Naquele de
imperadores cristãos.
domínio dos visigodos, uma compilação do có
De outro lado, no patrimônio dos visigodos,
digo Teodosiano, feita por ordem de Alari-
como a lei visigoda" não conferia nenhuma
co9 4, regulou as questões dos romanos; os cos
vantagem civil aos visigodos sobre os roma
tumes da nação, que Eurico9 5 mandou redigir, nos, estes não tiveram nenhuma razão para
decidiram as dos visigodos. Mas por que as deixar de viver sob a lei deles para viver sob
leis sálicas adquiriram uma autoridade quase uma outra: conservaram, portanto, suas leis e
geral no país dos francos? E por que o direito não adotaram as dos visigodos.
romano se perdeu ali, pouco a pouco, enquan Isso se confirma à medida que se avança. A
to, no domínio dos visigodos, o direito romano lei de Gondebaldo foi muito imparcial e não
estendeu-se e exerceu uma autoridade geral? foi mais favorável aos borguinhões do que aos
Digo que o direito romano perdeu o seu uso romanos. Parece, pelo prólogo desta lei, que
entre os francos, em virtude das grandes vanta ela foi feita pelos borguinhões e que foi elabo-
gens que havia em ser franco9 ®, bárbaro, ou
homem vivendo sob a lei sálica; todos foram 9 7 “Segundo a lei romana sob a qual a igreja vive ",
levados a abandonar o direito romano para ê dito na lei dos ripuários, tít. LVIII, § 1. Vede tam
viver sob a lei sálica. Ele foi conservado bém as inúmeras autoridades a esse respeito, relata
das por Ducange, no verbete Lex Romana. (N. do
A.)
92 Os francos, os visigodos e os borguinhões. (N. 98 Vede as capitulares acrescentadas à lei sálica
do A.) em Lindembroch, no fim dessa lei, e os diversos có
93 Terminado no ano de 438. (N. do A.) digos das leis bárbaras, sobre os privilégios dos
94 No vigésimo ano do reinado desse príncipe e eclesiásticos a esse respeito. Vede também a carta
publicada dois anos depois por Aniano, como se vê de Carlos Magno a Pepino, seu filho, rei da Itália,
no prefácio deste código. (N. do A.) no ano 807, na edição de Baluze, tomo I, pág. 462,
9 8 No ano de 504 da era da Espanhar Crônica de onde é dito que um eclesiástico deve receber uma
Isidoro. (N. do A.) reparação tríplice; e a Coletânea das Capitulares,
9 9 Francum, aut barbarum, aut hominem qui sali- liv.' V, art. 302, tomo I, ediçãq de Baluze. (N. do A.)
ca lege vivit. Lei Sálica, tít. XLV, § 1. (N. do A.) 9 9 Vede esta lei. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS 429
rada para regular as questões que poderíam Isto se prova pelo edito de Carlos, o Calvo,
nascer entre os romanos e os borguinhões; e, publicado em Pistes, no ano 864, o qual103
neste último caso, o tribunal foi bipartido. Isto distingue entre os países em que se julgava
era necessário por razões particulares, que pelo direito romano e aqueles em que isso não
decorreram do acordo100 político daqueles se dava.
tempos. O direito romano subsistiu na Borgo- O edito de Pistes prova duas coisas: uma,
nha. para regular as contendas que os romanos que havia países em que se julgava segundo a
poderíam ter entre si. Estes não tiveram razões lei romana e países em que não se julgava
para abandonar a própria lei, o que não acon segundo essa lei; outra, que esses países em
teceu no país dos francos; tanto mais que a lei que se julgava pela lei romana10 4 eram preci
sálica ainda não fora estabelecida na Borgo- samente aqueles em que ela é seguida ainda
nha, como parece, pela fàmosa carta que Ago- hoje, como se vê nesse mesmo edito. Assim a
bardo escreveu a Luís, o Bonacheirão. distinção entre países da França consuetudi-
Agobardo101 pedia que este príncipe esta nária e da França regida pelo direito escrito es
belecesse a lei sálica na Borgonha; portanto tava já estabelecida no tempo do edito de
ela não fora estabelecida ali. Assim o direito Pistes.
romano subsistiu e subsiste ainda em todas as Disse que, no início da monarquia, todas as
províncias que dependiam outrora deste reino. leis eram pessoais; assim, quando o edito de
O direito romano e a lei dos godos mantive Pistes distingue entre os países de direito ro
ram-se, do mesmo modo, no país de coloniza mano e os que não o eram, isto significa que,
ção dos godos: a lei sálica aí nunca foi recebi nos países que não eram de direito romano,
da. Quando Pepino e Carlos Martelo
tantas pessoas escolheram viver sob alguma
expulsaram os sarracenos de lá, as cidades e as
das leis dos povos bárbaros, que não havia
províncias que se submeteram a estes prínci
quase mais ninguém, nessas regiões, que esco
pes1 02 pediram que as suas leis fossem conser
lhesse viver sob a lei romana; e que, nos países
vadas, e o obtiveram: o que, apesar do uso
de lei romana, havia poucas pessoas que tives
daqueles tempos, em que todas as leis eram
sem escolhido viver sob as leis dos povos
pessoais, fez com que cedo o direito romano
bárbaros.
fosse olhado como uma lei real e territorial
Bem sei que digo aqui coisas novas; mas, se
nesses países:
elas são verdadeiras, são muito antigas. Que
importa, enfim, que seja eu, os Valois ou os
100 Falarei disto em outra parte, liv. XXX, caps. Bignons10 5 que as tenham dito?
VI, VII, VIII e IXJN. do A.)
101 Agobardo, Opera. (N. do A.)
102 Vede Gervásio de Tilburi, na coletânea de 103 In illa terra in qua judida secundum legem
Duchesne, tomo III, pág. 366: Fada padione cum romanam terminantur, secundum ipsam legem Judi-
Francis, quod illic Gothi patriis legibus, moribus cetur; et in illa terra in qua etc., art. 16. Vede tam
patemis vivant. Et sic Narbonensis provinda Pippi- bém o art. 20. (N. do A.)
no subjicitur. E uma crônica do ano 759, relatada 10 4 Vede os artigos 12 e 16 do edito de Pistes, in
por Catei, História do Languedoc. E o autor incerto Cavilono, in Narbona etc. (N. do A.)
da vida de Luís, o Bonacheirão, sobre o pedido feito 106 Adriano de Valois (1607-1697), autor das
pelos povos da Septimânia, na assembléia in Cari- Gesta Francorum (1646-1658); Jerônimo Bignon
síaco, na coletânea de Duchesne, tomo II, pág. 316. (1589-1656), autor da Excelência dos Reis do Rei
ÍN.do A.) nado da França.
Capítulo V
A lei de Gondebaldo subsistiu durante carta de Agobardo não deixa nenhuma dúvida
muito tempo entre os borguinhões, concomi a esse respeito. Do mesmo modo, embora o
tantemente com a lei romana; ela estava ainda edito de Pistes chame o país que havia sido
em uso aí no tempo de Luís, o Bonacheirão; a ocupado pelos visigodos de o país de lei roma
430 MONTESQUIEU
na, a lei dos visigodos subsistia sempre ali; o ram até em seus países, em consequência das
que se prova pelo sínodo de Troyes, reunido causas10 6 gerais que fizeram desaparecer, em
toda parte, as leis pessoais dos povos bárbaros.
sob Luís, o Gago, no ano de 878, isto é, cator
ze anos depois do edito de Pistes. 10 6 Vede a esse respeito os capítulos IX, X e XI.
Depois, as leis góticas e borguinhãs perece (N. do A.)
Capítulo VI
Tudo se curva aos meus princípios. A lei blicas não foram levados a adotar uma lei que
dos lombardos era imparcial, e os romanos estabelecia o uso da lide judiciária, e cujas
não tiveram nenhum interesse em deixar a pró instituições se prendiam muito aos costumes e
pria lei para adotar essa. O motivo que levou aos usos da cavalaria. Vivendo quase todo o
os romanos sob os francos a escolherem a lei clero, desde esse tempo tão poderoso na Itália,
sálica, não se apresentou na Itália; o direito ro sob a lei romana, o número dos que seguiam a
lei dos lombardos teve que ir diminuindo
mano ali se manteve ao lado das leis dos
sempre.
lombardos.
Não tinha, aliás, a lei dos lombardos essa
E aconteceu até que esta cedeu ao direito majestade do direito romano, que lembrava à
romano; ela deixou de ser a lei da nação domi Itália a idéia de seu domínio sobre toda a
nante; e, embora continuasse a ser a da nobre terra; ela não possuía essa extensão. A lei dos
za principal, a maioria das cidades se erigiu lombardos e a lei romana não podiam mais
em repúblicas, e esta nobreza caiu ou foi10 7 servir senão para suprir os estatutos das cida
exterminada. Os cidadãos das novas repú- des que se haviam erigido em repúblicas; ora,
quem podia melhor supri-los, a lei dos lombar
10 7 Vede o que diz Maquiavel da destruição da an dos, que só estatuía sobre alguns casos, ou a
tiga nobreza de Florença. (N. do A.) lei romana, que os abrangia a todos?
Capítulo VII
As coisas passaram-se de outro modo na tos entre os godos e os romanos. É claro que
Espanha. A lei dos visigodos triunfou e o direi essas duas leis tinham o mesmo espírito: este
to romano se perdeu. Chaindassuindo108 e rei queria suprimir as principais causas de
Recessuindo109 proscreveram as leis romanas, separação que havia entre os godos e os roma
e não permitiram nem sequer citá-las nos tri nos. Ora, pensava-se que nada os separava
bunais. Recessuindo foi ainda o autor da mais do que a proibição de contratar casa
lei110 que revogava a proibição dos casamen
mento entre si, e a permissão de viverem sob
leis diversas.
10 8 Começou a reinar em 642. (N. do A.)
109 Nós não queremos mais ser atormentados Mas, embora os reis dos visigodos tivessem
pelas leis estrangeiras, nem pelas romanas. Lei dos proscrito o direito romano, ele sempre subsis
visigodos, liv. II, tít. I, §§ 9 e 10. (N. do A.) tiu nos domínios que possuíam na Gália Meri
110 Ut tam Gotho Romanam quam Romano Go-
tham matrimônio liceat sociarit. Lei dos visigodos, dional. Essas regiões, afastadas do centro da
liv. III, tít. I. cap. I. (N. do A.) monarquia, viviam em uma grande indepen
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 431
dência111. Vê-se pela história de Vamba, o rantes contra os judeus; mas estes eram pode
qual ascendeu ao trono em 672, que os natu rosos na Gália Meridional. O autor da história
rais do país tinham levado112 vantagem: do Rei Vamba denomina essas províncias de
assim, a lei romana tinha ali mais autoridade e prostíbulo dos judeus. Quando os sarracenos
a lei gótica menos. As leis espanholas não con vieram para essas províncias, tinham sido cha
vinham nem aos seus hábitos nem à sua situa mados para ali: ora, quem os podia ter chama
ção atual: e o povo obstinou-se na lei romana do, senão os judeus ou os romanos? Os godos
talvez porque a ela ligou a idéia de sua liberda foram os primeiros oprimidos, porque eles
de. Há ainda mais: as leis de Chaindassuindo e eram a nação dominante. Vê-se em Procó-
de Recessuindo continham disposições apavo- pio113 que, em seus infortúnios, eles se retira
ram da Gália Narbonense para a Espanha.
Não há dúvida de que, no caso desse infortú
111 Vede, em Cassiodoro, as condescendências que
Teodorico, rei dos ostrogodos, o príncipe mais nio, eles se refugiaram nas regiões da Espanha,
considerado de seu tempo, teve com eles; liv. IV, que ainda se defendiam; e o número daqueles
cartas 19 e 26. (N. do A.) que, na Gália Meridional, viviam sob a lei dos
112 A revolta dessas províncias foi uma defecção visigodos tornou-se muito diminuto.
geral, como se vê pelo julgamento que está na conti
nuação da História. Paulo e seus partidários eram
romanos; eles foram mesmo favorecidos pelos bis 113 Gothi qui cladi superfuerant, ex Gallia cum
pos. Vamba não ousou executar os sediosos que uxoribus liberisque egressi, in Hispaniam ad Teu-
vencera. O autor da História denomina a Gália dim jam palam tyrannum se receperunt. De Bello
Narbonense de nutriz da traição. (N. do A.) Gothorum, liv. I, cap. XIII. (N. do A.)
Capítulo VIII
Falsa capitular
Este infeliz compilador, Benedito Levita, geral, como se tivesse querido exterminar o
não chegou a transformar esta lei visigoda, que direito romano em todo o universo.
proibia o uso do direito romano, em uma capi
tular1 1 4, que foi atribuída mais tarde a Carlos 11 4 Capitulares, edição de Baluze, liv. VI, cap.
Magno? Ele fez desta lei particular uma lei CCCXLIII, pág. 981. (N. do A.)
Capítulo IX
As leis sálicas, ripuárias, borguinhãs e visi- tas11 5 cartas em que os senhores fixavam mul
godas deixaram, pouco a pouco, de ser usadas tas, as quais deviam ser pagas em seus peque
entre os franceses: e eis como. nos tribunais. Assim, seguia-se o espírito da
Tendo-se os feudos tomado hereditários e lei, sem se seguir a própria lei.
tendo-se os subfeudos estendido, muitos usos Além do mais, achando-se a França divi
foram introduzidos, aos quais estas leis não dida numa infinidade de pequenos senhorios,
eram mais aplicáveis. Conservaram efetiva que mais reconheciam uma dependência feudal
do que uma dependência política, tornava-se
mente o seu espírito, que era o de regular a
maioria das causas pela aplicação de multas.
115 La Thaumassière [Anciennes Coutumes de
Mas tendo os valores, sem dúvida, mudado, as Berry\ recolheu muitas delas. Vede, por exemplo, os
multas mudaram também; e vêetn-se mui caps. LXI, LXVI e outros. (N. do A.)
432 MONTESQUIEU
bem difícil que uma só lei pudesse ser autori sas: as leis dos feudos estabeleceram-se, e
zada. Com efeito, não seria possível fazer com grande parte dos bens da Igreja foi governada
que ela fosse observada. Quase não havia mais pelas leis dos feudos; os eclesiásticos mais se
o uso de enviar oficiais11 8 extraordinários às separaram e negligenciaram11 7 as leis de
províncias, para que fiscalizassem a adminis reforma, nas quais não tinham sido eles os úni
tração da justiça e as disputas políticas. Por cos reformadores: recolheram-se118 os câno
essas cartas, parece mesmo que, quando os nes dos concílios e as decretais dos papas; e o
novos feudos se estabeleciam, os reis priva clero recebeu estas leis como provenientes de
vam-se do direito de para aí enviá-los. Assim, uma fonte mais pura. Desde a instituição dos
quando, pouco a pouco, tudo foi transformado grandes feudos, os reis não tiveram mais,
em feudo, estes oficiais não puderam mais ser como já disse, emissários nas províncias para
empregados; não houve mais lei comum por fazer com que as leis deles emanadas fossem
que não havia ninguém que pudesse fazer com observadas: assim, sob a terceira raça, não se
que ela fosse observada. ouviu mais falar.de capitulares.
As leis sálicas, borguinhãs e visigodas
foram então extremamente negligenciadas no 11 7 “Que os bispos”, diz Carlos, o Calvo, na capi
tular do ano de 844, art. 8, “sob pretexto de que têm
fim da segunda raça; e, no começo da terceira, autoridade de fazer cânones, não se oponham a esta
quase não se ouvia mais falar delas. constituição, nem a negligenciem.” Parece que ele já
Sob as duas primeiras raças frequentemente previa a sua decadência. (N. do A.)
118 Inseriu-se na coletânea dos cânones um núme
foi reunida a nação, isto é, os senhores e os bis ro infinito de decretais dos papas; destas havia
pos: não se tratava ainda das comunas. Procu- muito pouco na antiga coleção. Dionísio, o Peque
rou-se nestas assembléias regulamentar o no, incluiu muitas na sua; mas na de Isidoro Merca-
clero, o qual constituía um corpo que se for tor foram inseridas verdadeiras e falsas decretais. A
antiga coleção esteve em uso na França até Carlos
mava, por assim dizer, sob os conquistadores, Magno. Este príncipe recebeu das mãos do Papa
e que estabelecia as suas prerrogativas. As leis' Adriano I a coleção de Dionísio, o Pequeno, e fez
feitas nestas assembléias são o que nós chama com que ela fosse aceita. A coleção de Isidoro Mer-
mos as capitulares. Aconteceram quatro coi cator apareceu na França na época do reinado de
Carlos Magno: obstinaram-se nela; depois veio o
que se denomina o Corpo do direito canônico. (N.
11 6 Missi dominici. (N. do A.) do A.)
Capítulo X
Capítulo XI
Quando as nações germânicas conquis havia cidades florescentes e quase que o único
taram o império romano, elas ali encontraram comércio que se fazia então. A proximidade da
o uso da escrita; e, imitando os romanos, elas Itália fez com que o direito romano se conser
redigiram seus usos120 e deles fizeram códi vasse melhor nas regiões da Gália outrora sub
gos. Os infelizes reinados que seguiram o de metidas aos godos e aos borguinhões, tanto
Carlos Magno, as invasões dos normandos, as mais que este direito era ali uma lei territorial
e uma espécie de privilégio. Parece que foi o
guerras intestinas, nóvamente mergulharam as
desconhecimento da escrita que fez, na Espa
nações vitoriosas nas trevas de que tinham
nha, as leis visigodas decaírem. E, devido à
saído; não se soube mais ler nem escrever. Isto decadência de tantas leis, formaram-se, em
fez com que, na França e na Alemanha, fos toda parte, os costumes.
sem esquecidas as leis bárbaras escritas, o As leis pessoais caíram. As reparações e o
direito romano e as capitulares. O uso da escri que se denominava/ret/a121 foram regulamen
ta conservou-se melhor na Itália, em que reina tados mais pelos costumes do que pelo texto
vam os papas e os imperadores gregos e onde dessas leis. Assim, como no estabelecimento
da monarquia se havia passado dos usos dos
120 Isto está determinado expressamente em al germânicos às leis escritas, voltou-se, alguns
guns prólogos desses códigos. Vêem-se mesmo, nas séculos depois, das leis escritas aos usos não
leis dos saxões e dos frisões, disposições diferentes escritos.
conforme os diversos distritos. Acrescentaram-se a
esses usos algumas disposições particulares que as
circunstâncias exigiram; tais foram as duras leis 121 Falarei disso em outra parte*. (N. do A.)
contra os saxões. (N. do A.) * Montesquieu fala disso no liv. XXX, cap. 14.
Capítulo XII
Vê-se, através de diversos documentos, que direito romano. Provarei que isso não é possí
já havia costumes locais na época da primeira vel. O Rei Pepino1 2 6 ordenou que, em todo
e da segunda raça. Nesses documentos, fala-se lugar em que não houvesse nenhuma lei, o cos
do costume do lugar'22, do uso antigo'23, do tume seria seguido; mas que o costume não
costume'2 4, das leis'2 5 e dos costumes. Al seria preferido à lei. Ora, dizer que o direito ro
guns autores acreditaram que o que se denomi mano teve preferência sobre os códigos das leis
nava costumes eram as leis dos povos bárba dos bárbaros é inverter o que diziam os docu
ros, e que o que se denominava a lei era o12 * mentos antigos e sobretudo estes códigos das
leis dos bárbaros, que dizem perpetuamente o
12 2 Prefácio das fórmulas de Marculfo. Quae apud contrário.
mqjores nostros.juxta consuetudinem loci quo degi- Longe de as leis dos povos bárbaros serem
mus, didici, vel e sensu proprio cogitavi etc. (N. do estes costumes, foram essas mesmas leis que,
A.) como leis pessoais, os introduziram. A lei sáli-
123 Lei dos lombardos, liv. II, tít. LVIII, § 3. (N.
do A.)
12 * Ibid., liv. II, tít. XLI, § 6. (N. do A.) 12 8 Lei dos lombardos, liv. II, tít. XLI, § 6. (N. do
12 B Vida de São Ligério. (N. do A.) A.)
434 MONTESQUIEU
ca, por exemplo, era uma lei pessoal; mas nos mentos sempre são remédios que indicam um
lugares geralmente ou quase geralmente habi mal presente, pode-se crer que, no tempo de
tados pelos francos sálios a lei sálica, embora Pepino, já se começava a preferir os costumes
inteiramente pessoal, tornava-se, em relação a às leis.
estes francos sálios, uma lei territorial; e ela só O que disse explica como o direito romano
era pessoal para os francos que habitavam começou desde os primeiros tempos a tornar-
alhures. Ora, se em um lugar em que a lei sáli se uma lei territorial, como se vê no edito de
ca era territorial acontecia que vários borgui Pistes; e como a lei goda não deixou de estar
nhões, alemães, ou mesmos romanos, tivessem em uso ainda aí, como parece pelo sínodo de
tido questões com frequência, essas questões Troyes12 7 do qual falei. A lei romana se havia
teriam sido decididas pelas leis destes povos; e tornado a lei pessoal geral, e a lei goda a lei
um grande número de julgamentos ajustados pessoal particular; e, consequentemente, a lei
segundo algumas dessas leis deveria ter intro romana era a lei territorial. Mas de que forma
duzido no país novos usos. E isso explica a ignorância fez decair em toda parte as leis
muito bem a constituição de Pepino. Era natu pessoais dos povos bárbaros, enquanto o direi
ral que esses usos pudessem afetar os próprios to romano subsistiu como lei territorial nas
francos do lugar, nos casos que não eram de províncias visigodas e borguinhãs? Respondo
modo algum decididos pela lei sálica; mas não que a lei romana também teve mais ou menos
era natural que eles pudessem prevalecer sobre a sorte das outras leis pessoais; sem isso tería-
a lei sálica. mos ainda o código Teodosiano nas províncias
Assim, havia em cada lugar uma lei domi em que a lei romana era lei territorial, em lugar
nante e usos acolhidos que serviam como de aí termos as leis de Justiniano. Quase que
suplemento à lei dominante, desde que eles não só restou a essas províncias o nome de país de
se chocassem com ela. direito romano ou de direito escrito, e esse
Podia acontecer mesmo que eles servissem amor que os povos têm por sua lei, principal
de suplemento para uma lei que nem era terri mente quando a olham como um privilégio, e
torial; e, para seguir o mesmo exemplo, se num algumas disposições do ■direito romano retidas
lugar em que a lei sálica era territorial, um pela memória dos homens. Mas isso foi o bas
borguinhão era julgado pela lei dos borgui tante para produzir o efeito de, quando apare
nhões e seu caso não se encontrasse no texto ceu a compilação de Justiniano, ter sido rece
dessa lei, não é preciso duvidar que ele seria bida nas províncias do domínio dos godos e
julgado segundo o costume do lugar. dos borguinhões como lei escrita; enquanto
No tempo do Rei Pepino, os costumes que que, no antigo domínio dos francos, ela só o
se haviam formado tinham menos força que as foi como razão escrita.
leis; mas em pouco tempo os costumes
destruíram as leis e, como os novos regula 12 7 Vede a esse respeito o cap. V. (N. do A.)
Capítulo XIII
A lei sálica nunca admitia o uso de provas tentava com as provas negativas; e aquele con
negativas, o que quer dizer que, pela lei sálica, tra quem se formulava um pedido ou uma acu
quem fazia uma petição ou uma acusação sação podia, na maioria dos casos, justificar-se
devia prová-la, e que não bastava ao acusado jurando perante um certo número de testemu-
negá-la: o que está de acordo com as leis de
quase todas as nações do mundo. 128 Isto se relaciona com o que diz Tácito (De
A lei dos francos ripuários tinha um128 Mor. Germ., c. 28), que os povos germânicos pos
espírito completamente diferente; ela se con suíam usos comuns e usos particulares. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 435
nhas que ele não tinha feito nada daquilo que caso, não as admitia isoladas e sem o concurso
lhe imputavam. O número129 de testemunhas de provas positivas. O suplicante fazia132
que deviam jurar aumentava segundo a impor ouvir suas testemunhas para estabelecer o seu
tância da coisa; ele chegava algumas vezes a pedido; o defensor fazia ouvir as suas para
setenta e dois13 °. As leis dos alemães, dos bá justificar-se; e o juiz procurava a verdade nuns
varos, dos turíngios, dos frisões, dos lombar e noutros testemunhos133. Essa prática era
dos e dos borguinhões foram feitas sobre o bem diferente da das leis ripuárias e das outras
mesmo plano das dos ripuários. leis bárbaras, em que o acusado justificava-se
jurando que não era culpado e fazendo com
Acabei de dizer que a lei sálica nunca admi que- seus parentes jurassem que ele tinha dito a
tia as provas negativas. No entanto, havia um verdade. Essas leis só podiam convir a um
caso131 em que ela o fazia; mas, ainda nesse povo que possuía simplicidade e certa candura
natural. Ainda assim, foi necessário que os
129 Lèfdos Ripuários, títs. VI, VII, VIII e outros. legisladores previssem os abusos, conforme
(N. do A.) veremos logo a seguir.
130 Ibid., títs. XI, XII e XVII. (N. do A.)
131 Era aquele em que um antrustião, isto é, um
vassalo do rei, o qual se supunha ter uma franqueza 13 2 Vede o mesmo título LXXVI. (N. do A.)
maior, era o acusado. Vede o título LXXVI do Pac- 133 Como é praticado ainda hoje na Inglaterra. (N.
tus legis salicae. (N. do A.) do A.)
Capítulo XIV
Outra diferença
A lei sálica nunca permitia a prova pelo foram forçadas a estabelecer a prova do duelo.
duelo; a lei dos ripuários13 4 e quase13 5 todas Solicito que leiam as duas famosas13 9
as dos povos bárbaros aceitavam-na. Acho disposições de Gondebaldo, rei da Borgonha,
que a lei do duelo era uma consequência natu sobre esse assunto; verão que elas são extraí
ral, e o remédio da lei que estabelecia as pro das da natureza da coisa. Era preciso, pela lin
vas negativas. Quando se fazia um pedido e guagem das leis dos bárbaros, retirar o jura
via-se que ele ia ser falseado por um juramen mento das mãos de um homem que dele queria
to, que restava a um guerreiro13 B, que se via abusar.
Entre os lombardos, a lei de Rotaris admite
na contingência de ser confundido, senão exi
casos em que ela determinava que aquele que
gir justificação do dano que lhe faziam, e até
se houvesse defendido por um juramento não
mesmo denunciar o perjúrio? A lei sálica, que podia mais ser fatigado por um duelo. Esse uso
não admitia o uso das provas negativas, não estendeu-se1 40: veremos a seguir que males
precisava da prova do duelo e não a aceitava; disso resultaram, e como foi preciso voltar à
mas a lei dos ripuários13 7 e a dos outros antiga prática.
povos bárbaros138 que admitiam esse uso
139 Na lei dos borguinhões, tít. VIII, §§ 1 e 2, acer
1 3 4 Tít. XXXII; tít. I, LVII; § 2, § 4. (N. do A.) ca das questões criminais, e o tít. XLV, que trata
13 6 Vede nota abaixo. (N. do A.) ainda das questões civis. Vede também a lei dos
13 6 Este espírito transparece bem nas leis dos turíngios, tít. I, § 31; tít. VII, § 6 e tít. VIII; a lei dos
ripuários, tít. LIX, § 4, e tít. LXVII, § 5; e a capitu alemães, tít. LXXXIX; a lei dos bávaros, tít. VIII,
lar de Luís, o Bonacheirão, acrescentada à Lei dos cap. II, § 6, e cap. III, § 1; e tít. IX, cap. IV, § 4; a
Ripuários. (N. do A.) lei dos frisões, tít. II, § 3; e tít. XIV, § 4; a lei dos
13 7 Vede essa lei. (N. do A.) lombardos, liv. I, tít. XXXII, § 3; e tít. XXXV, § 1;
138 A lei dos frisões, dos lombardos, dos bávaros, e liv. II, tít. XXXV, § 2. (N. do A.)
dos saxões, dos turíngios e dos borguinhões. (N. do 1 40 Vede, abaixo, o cap. XVIII, na parte final. (N.
A.) do A.)
436 MONTESQUIEU
Capítulo XV
Reflexão
Não digo que, nas modificações que foram ram, no curso de vários séculos, levar a estabe
feitas no código das leis dos bárbaros, nas lecer certas leis particulares. Falo do espírito
disposições que a ele foram acrescentadas, e geral das leis dos germânicos, de sua natureza
no corpo das capitulares, não se possa encon
trar algum texto em que, de fato, a prova do e de sua origem; falo dos antigos usos desses
duelo não seja uma consequência da prova povos, indicados ou estabelecidos por essas
negativa. Circunstâncias particulares pude leis: e aqui não se trata senão disso.
Capítulo XVI
A lei sálica1 41 admitia o uso da prova pela a lei tolerava mas não ordenava. A lei dava
água fervente; e, como essa prova era muito certa compensação ao acusador que queria
cruel, a lei1 42 assumia novo caráter para sua permitir ao acusado a defesa pela prova nega
vizar seu rigor. Ela permitia àquele que tinha tiva: era franqueado ao acusador ater-se ao
sido citado para vir fazer a prova pela água juramento do acusado ou restabelecer a falsi
fervente que resgatasse sua mão, com consenti dade ou a injúria.
mento da outra parte. O acusador, mediante A lei1 43 determinava um critério, para que
certa soma que a lei fixava, podia contentar-se antes do julgamento as partes, uma no temor
com o juramento de algumas testemunhas, as de uma prova terrível, outra à vista de uma
quais declaravam que o acusado não havia pequena compensação presente, terminassem
cometido o crime: este era um caso particular suas contendas e pusessem fim aos seus ódios.
da lei sálica, no qual ela admitia a prova Percebe-se bem que, uma vez consumada essa
negativa. prova negativa, não era necessária outra, e que
Essa prova era uma coisa convencional, que assim a prática do duelo não podia ser uma
consequência dessa disposição particular da
141 E algumas outras leis dos bárbaros também. lei sálica.
(N. do A.)
1 42 Tít. LVI. De manu ab aeneo redimenda. (N. do
A.) 1 43 Ibid., tít. LVI. (N. do A.)
C apítulo XVII
Surpreende-nos ver que nossos antepassados Os germanos, que nunca haviam sido subju
fizessem assim depender a honra, a fortuna e a gados, gozavam de uma independência extre
vida dos cidadãos de coisas que eram menos ma1 44. As famílias combatiam pelos homicí-
da alçada da razão do que da do acaso; que
eles empregassem incessantemente provas que
nada provavam e que não estavam relacio 1 4 4 Isto se manifesta pelo que diz Tácito: Omnibus
nadas nem com a inocência nem com o crime. idem habitus (De Mor. Germ., cap. IV). (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 437
dios, pelos roubos, pelas injúrias1*4 5. Esse te toda a vida, exercitado nas coisas sem as
costume foi modificado submetendo essas quais não se pode obter a honra. E ainda, em
guerras a regras; elas passaram a ser travadas uma nação guerreira em que a força, a cora
por ordem e sob as vistas do magistrado1 4 6; o gem e a façanha representam a honra, os cri
que era preferível a uma licença geral de se mes verdadeiramente odiosos são os que nas
guerrearem. cem da trapaça, da malícia e da astúcia, isto é,
Como hoje os turcos, em suas guerras civis, da covardia.
olham a primeira vitória como um julgamento Quanto à prova pelo fogo, depois que o acu
de Deus que decide, assim os povos germanos, sado havia colocado a mão sobre um ferro
em suas questões particulares, consideravam o quente, ou na água fervente, envolvia-se a mão
acontecimento do combate como uma sen em um saco, que era lacrado: se, três dias
tença da Providência, sempre atenta para depois, não aparecesse marca de queimadura,
punir o criminoso ou o usurpador. ele era declarado inocente. Quem não vê que,
Tácito diz que, entre os romanos, quando num povo exercitado no manejo de armas, a
uma nação queria entrar em guerra com outra, pele rude e calosa não devia receber a impres
ela procurava conseguir algum prisioneiro que são do ferro quente ou da água fervente, a
pudesse combater com um dos seus; e que se ponto de aparecer três dias depois? E, se ela
julgava pela realização desse combate o êxito aparecesse, isso era uma marca de que aquele
da guerra. Povos que acreditavam que o duelo que fazia a prova era um efeminado. Nossos
regularia as questões públicas bem podiam camponeses, com suas mãos calosas, manejam
pensar que ele poderia também regular as con o ferro quente do modo que querem. E, quanto
tendas particulares. às mulheres, as mãos daquelas que trabalham
Gondebaldo1 4 7, rei da Borgonha, foi de podem resistir ao ferro quente. Às damas não
todos os reis o que mais autorizou o uso do faltavam campeões para defendê-las149, e,
duelo. Esse príncipe expressa a razão de sua lei em uma nação em que não havia luxo, quase
em sua própria lei: “É”, diz ele, “para que nos não havia classe média.
sos súditos não prestem mais juramento sobre Pela lei dos turíngios1 50, uma mulher acu
fatos obscuros e não cometam nunca perjúrio sada de adultério não era condenada à prova
sobre fatos certos”. Assim, enquanto os ecle pela água fervente, senão quando não se apre
siásticos1 48 declaravam ímpia a lei que permi sentava nenhum campeão para tomar seu
tia o duelo, a lei dos borguinhões encarava lugar; e a lei1 51 dos ripuários não admitia esta
como sacrílega a que estabelecia o juramento. prova senão quando não se encontravam teste
A prova pelo duelo tinha algum motivo munhas para se inocentar. Mas uma mulher a
baseado na experiência. Em uma nação unica quem nenhum dos parentes quisesse defender e
mente guerreira, a covardia supõe outros ví um homem que não pudesse alegar nenhum
cios; ela prova que se resistiu à educação que testemunho de sua probidade eram por isso
se recebeu, e que não se foi sensível à honra, mesmo já considerados culpados.
nem dirigido pelos princípios que governaram Digo, então, que, nas circunstâncias dos
os outros homens; ela demonstra que não se tempos em que a prova pelo duelo, a prova
teme o desprezo deles, e que não se considera a pelo ferro quente e pela água fervente estive
estima deles: por pouco que se seja bem nasci ram em uso, houve tal acordo dessas leis com
do, não se será, ordinariamente, carente da os costumes, que essas leis produziram menos
habilidade que deve estar aliada à força, nem injustiças do que poderíam por sua natureza;
da força que deve concorrer com a coragem; que os efeitos foram mais inocentes do que as
porque, se se dá valor à honra, ser-se-á, duran causas; que elas ferjram mais a equidade do
que violaram os direitos; que elas foram mais
desarrazoadas do que tirânicas.
1 4 B Veleio Patérculo, liv. II, cap. CXVIII, diz que
os germanos decidiam todas as questões pelo duelo.
(N. do A.) 1 49 Vede Beaumanoir, Coutume de Beauvoisis,
1 4 6 Vede os códigos das leis dos bárbaros; e, quan cap. LXI. Vede também a lei dos anglos, cap. XIV,
to aos tempos mais modernos, Beaumanoir, sobre o em que a prova pela água fervente é apenas subsi
Coutume de Beauvoisis. (N. do A.) diária. (N. do A.)
147 A lei dos borguinhões, cap. XLV. (N. do A.) 180 Tít. XIV. (N. do A.)
1 4 8 Vede as obras de Agobardo. (N. do A.) 1 51 Cap. XXXI, § 5. (N. do A.)
438 MONTESQUIEU
Capítulo XVIII
objetava que sua escritura era falsa, defendia- Magno1 6 6, Luís, o Bonacheirão, os Otos, fize
se por uma prova negativa, declarando sobre ram diversas constituições gerais, que se
os Evangelhos que ela não o era. Que se fez encontram inseridas nas leis dos lombardos. e
para corrigir o abuso de uma lei que tinha sido acrescentadas às leis sálicas, as quais estende
truncada? Restabeleceu-se o uso do duelo. ram o duelo de início às questões criminais e
Apressei-me em falar da constituição de Oto depois às civis. Não se sabia como fazer. A
II, a fim de dar uma idéia clara das disputas prova nçgativa pelo juramento tinha inconve
daquele tempo entre o clero e os leigos. Havia nientes; a do duelo também os tinha: trocava-
existido antes uma constituição1 61 de Lotário se de provas na medida em que se era atingido
I que, sobre as mesmas queixas e as mesmas mais por umas que por outras.
disputas, querendo assegurar a propriedade De um lado, os eclesiásticos se compraziam
dos bens, havia ordenado que o notário juraria em ver que, em todas as questões seculares,
que sua escritura não era falsa; e que, se ele recorria-se às igrejas1 6 7 e aos altares; e, de
tivesse morrido, far-se-ia jurarem as testemu outro, uma nobreza arrogante prezava manter
nhas que a tinham assinado: mas a dificuldade seus direitos pela sua espada.
permanecia sempre, foi preciso recorrer ao Não afirmo que tenha sido o clero que intro
remédio de que acabo de falar. duziu o uso de que a nobreza se queixava. Esse
costume derivava do espírito das leis dos bár
Penso que antes daquele tempo, nas assem
baros e do estabelecimento das provas negati
bléias gerais presididas por Carlos Magno, a
vas. Mas, tendo uma prática que podia acarre
nação lhe demonstrou que1 62, na situação
tar a impunidade para tantos criminosos feito
real, era muito difícil que o acusador ou o acu
pensar que era preciso se servir da santidade
sado não se contradissessem no juramento, e
das igrejas para assustar os culpados e fazer
que era melhor restabelecer o combate judiciá
empalidecer os perjuros, os eclesiásticos con
rio ; o que foi feito por ele.
servaram esse uso e a prática à qual ele estava
O uso do combate judiciário estendeu-se unido; porque além do mais eles eram contrá
entre os borguinhões, e o do juramento foi aí rios às provas negativas. Vemos em Beauma-
limitado. Teodorico, rei da Itália, aboliu o noir1 68 que essas provas nunca foram admiti
combate singular entre os ostrogodos1 63; as das nos tribunais eclesiásticos; o que muito
leis de Chaindassuindo e de Recessuindo pare contribuiu, sem dúvida, para fazê-las cair, e
cem ter querido extinguir até a sua idéia. Mas para enfraquecer a disposição dos códigos das
essas leis foram tão pouco acolhidas no leis dos bárbaros a esse respeito.
Narbonês1 64, que o duelo era lá considerado Isso fará, ainda, sentir bem a ligação entre o
como uma prerrogativa dos godos. uso das provas negativas e o do duelo judi
Os lombardos que conquistaram a Itália de ciário de que já falei tanto. Os tribunais leigos
pois da destruição dos ostrogodos pelos gregos admiravam ambas e os tribunais clericais rejei
para lá levaram o uso do duelo: mas suas pri tavam todas as duas.
meiras leis o restringiram1 6 5. Carlos Na escolha da prova pelo duelo, a nação se
guia seu gênio guerreiro; porque, enquanto se
’ ” Na lei dos lombardos, liv. II, tít. LV, § 33. No estabelecia o combate como um julgamento de
exemplar de que se serviu Muratori, ela é atribuída Deus, aboliam-se as provas pela cruz, pela
ao Imperador Guido. (N. do A.) água fria e pela água fervente, que tinham sido
1 62 Lei dos lombardos, liv. II, tít. IV, § 23. (N. do
A.)
1 63 Vede Cassiodoro, liv. III, cartas 23 e 24. (N. 6 6 Ibid., liv. II, tít. LV, § 23. (N. do A.)
do A.) 167 O juramento judiciário era feito então nas igre
1 6 * In palatio quoque Bera comes Barcinonensis, jas; e havia, ao tempo da primeira raça, nos palá
cum impeteretur a quodam vocato Sunila, et injide- cios dos reis, uma capela especial para as questões
litatis argueretur, cum eodem secundum legem pro- que fossem aí julgadas. Vede as fórmulas de Mar-
priam, utpote quia uterque Gothus erat, equestri culfo, livro I, cap. XXXVIII; as leis dos ripuários;
praelio congressus est et victus. O autor incerto da tít. LIV, § 4; tít. LXV, § 5; a história de Gregório de
vida de Luís, o Bonacheirão. (N. do A.) 1 Tours; a capitular do ano 803, acrescentada à lei sá
1 6 6 Vede, na lei dos lombardos, o livro I, tít. IV e lica. (N. do A.)
tít. IX, § 23; e liv. II, tít. XXXV, §§ 4 e 5; e tít. LV, 1 68 Cap. XXXIX, pág. 212. Os clérigos afirmam
§§ 1, 2 e 3; os regulamentos de Rotaris; e, no § 15, que a negativa nunca deve servir de prova, porque
o regulamento de Luitprando. (N. do A.) ela não pode ser provada. (N. do A.)
440 MONTESQUIEU
Capítulo XIX
Já expus as razões que fizeram com que as jurisprudência reduzia-se inteiramente a for
leis sálicas, as leis romanas e as capitulares malidades; tudo foi governado pelo ponto de
perdessem sua autoridade; acrescentarei que a honra. Se não se havia obedecido ao juiz, ele
grande difusão da prova pelo duelo foi a prin demandava sobre a injúria. Em Burges1 7 4, se
cipal causa disso. o preboste tinha notificado alguém, e ele não
As leis sálicas, que nunca admitiam esse comparecesse. “Eu mandei te procurar”, dizia
uso, tornaram-se de algum modo inúteis e ele, “e tu te negaste a vir; dá-me a razão deste
pereceram; as leis romanas, que também não o desprezo”; e combatia-se. Luís, o Grande,
admitiam, perderam-se igualmente. Não se reformou1 7 5 esse costume.
pensou mais senão em aperfeiçoar a lei do
O duelo judiciário estava em uso em
duelo e em fazer para ela uma boa jurispru
Orléans, em todas as demandas por dívi
dência. As disposições das capitulares não se
das1 7 ®. Luís, o Jovem, declarou que esse cos
tornaram menos inúteis. Assim, inúmeras leis
tume só seria aplicado quando a demanda
perderam sua autoridade sem que se possa
citar o momento em que isso ocorreu; foram excedesse cinco soidos. Essa ordenança era
esquecidas sem que se encontrem outras que uma lei local; porque, no tempo de São
tenham tomado seu lugar. Luís1 7 7, bastava que o valor fosse de mais de
Uma nação semelhante não tinha necessi doze dinheiros. Beaumanoir1 78 tinha ouvido
dade de leis escritas, e suas leis escritas po dizer por um homem de lei que havia outrora,
diam muito facilmente cair no esquecimento. na França, esse mau costume de se poder alu
Se havia alguma discussão entre duas par gar durante certo tempo um campeão para
tes, ordenava-se o duelo. Para isso, não era combater nas questões. Para tanto, era preciso
necessário muita suficiência. que o uso do duelo judiciário tivesse, naquele
Todas as ações civis e criminais reduziam- tempo, uma prodigiosa extensão.
se a fatos. É sobre esses fatos que se combatia;
e não é somente o fundo da questão que se jul 1 7 * Constituição de Luís, o Grande, do ano de
gava pelo combate, mas ainda os incidentes, e 1145, na Coletânea das Ordenações. (N. do A.)
os interlocutórios, como o diz Beaumanoir173, 1 7 s Ibid. (N. do A.)
que dá exemplos deles. 1 7 8 Constituição de Luís, o Jovem, do ano de
1168, na Coletânea das Ordenanças. (N. do A.)
Acho que no começo da terceira raça, a 1 7 7 Vede Beaum., cap. LXIII, pág. 325. (N. do A.)
1 78 Vede Coutume de Beauvoisis, cap. XXVIII,
173 Cap. LXI, págs. 309 e 310. (N. do A.) pág. 203. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 441
Capítulo XX
Encontram-se enigmas nos códigos das leis re a regra de que, quando um homem estava
dos bárbaros. A lei1*79 dos frisões não concede comprometido pela sua palavra, a honra não
senão meio soldo de reparação para aquele que lhe permitia mais que se retratasse.
recebeu golpes de bastão; e não há ferimento, Os gentis-homens18 6 batiam-se a cavalo e
por menor que seja, pelo qual ela não conceda com suas armas; e os vilões18 7*batiam-se a pé
mais. Pela lei sálica, se um ingênuo dava três e com o bastão. Daí decorreu que o bastão era
bastonadas em um ingênuo, pagava três soi o instrumento dos ultrajes188, porque um
dos; se fizera correr sangue, era punido como homem que tivesse sido batido com ele tinha
se tivesse ferido com o ferro e pagava quinze sido tratado como vilão.
soidos: a pena era medida pela importância Só os vilões combatiam com o rosto desco
dos ferimentos. A lei dos lombardos180 esta berto1 89; assim, só eles podiam receber golpes
beleceu diferentes reparações para uma basto- na face. Uma bofetada tornou-se uma injúria
nada, duas, três, quatro. Hoje, um só golpe que devia ser lavada com sangue, porque um
vale cem mil. homem que a tivesse recebido havia sido trata
A constituição de Carlos Magno, inserida do como vilão.
na lei dos lombardos181, manda que aqueles a Os fcovos germânicos não eram menos sen
quem permite o duelo combatam com o bas síveis que nós ao ponto de honra; eles eram até
tão. Talvez isso tenha sido uma deferência bem mais. Assim, os parentes mais afastados
para com o clero; talvez, posto que se estendia tomavam parte muito importante nas injúrias;
o uso dos duelos, quisessem torná-los menos e todos os seus códigos estão fundados neste
sanguinários. A capitular182 de Luís, o Bona ponto. A lei dos lombardos190 manda que
cheirão, concede a escolha de combater com o aquele que, acompanhado de sua família,
bastão ou com as armas. Daí por diante, ape espanca um homem que não está em guarda,
nas os servos é que combatiam com o para cobri-lo de vergonha e de ridículo, pague
bastão183. a metade da reparação que ele deveria pagar se
o tivesse matado; e que se, pelo mesmo moti
Já vejo nascerem e formarem-se os artigos
vo, ele o amarra, pague três quartos da mesma
particulares de nosso ponto de honra. O acusa
reparação191.
dor começava por declarar, diante do juiz, que
certa pessoa havia cometido uma determinada Podemos então dizer que nossos pais eram
ação; e esta respondia que estava mentin extremamente sensíveis às afrontas; mas as
do184; baseado nisso, o juiz ordenava o duelo. afrontas de uma espécie particular, como a de
receber golpes com certo instrumento sobre
Estava estabelecida a máxima de que, quando
uma certa parte do corpo, e dados de certa
se havia recebido um desmentido, era preciso
bater-se.
18 6 Vede, sobre as armas dos combatentes,
Quando um homem18 5 havia declarado que Beaum., cap. LXI, pág. 308, e cap. LXIV, pág. 328.
combatería, não podia mais voltar atrás; e se o (N. do A.)
fazia, era condenado a uma pena. Disso decor 18 7 Vede Beaum., cap. LXIV, pág. 328. Vede tam
bém as cartas de Santo Albino de Anjou, referidas
por Galland, pág. 263. (N. do A.)
1 7 9 Additio sapientum Wilemari, tít. V. (N. do A.) 188 Entre os romanos, as bastonadas nunca eram
180 Liv. I, tít. VI, § 3. (N. do A.) infamantes. L. Ictus fustium. De iis qui notantur
181 Liv. II, tít. V, § 23. (N. do A.) infamia. (N. do A.)
182 Acrescentada à lei sálica no ano de 819. (N. do 18 9 Eles não traziam nada além do escudo e do
A.) bastão. Beaumanoir, cap. LXIV, pág. 328. (N. do
183 Vede Beaum., cap. LXIV, pág. 328. (N. do A.) A.)
18 4* Ibid., pág. 329. (N. do A.) 190 Liv. I, tít. VI, § 1. (N. do A.)
18 6 Ibid., cap. III, págs. 25 e 329. (N. do A.) 191 Ibid., § 2. (N. do A.)
442 MONTESQUIEU
maneira, não lhes eram ainda conhecidas, espancado; e, neste caso, a intensidade dos
Tudo isso era compreendido na afronta de ser excessos marcava a importância dos ultrajes.
Capitulo XXI
“Entre os germanos”, diz Tácito192 “era Carlos Magno194, corrigindo a lei sálica,
uma grande infâmia o fato de ter abandonado estabeleceu para esse caso uma reparação de
o próprio escudo no combate; e muitos, depois apenas três soidos. Não se poderá suspeitar
desta desgraça,, suicidar am-se.”Também a anti que esse príncipe tenha querido enfraquecer a
disciplina militar: é claro que essa modificação
ga lei193 sálica concedia quinze soidos de
decorreu da mudança das armas: e é a essa
reparação àquele de quem se tinha dito, por modificação das armas que se deve a origem
injúria, que havia abandonado o escudo. de muitos usos.
192 De Morib. Germ., cap. VI. (N. do A.) 194 Nós temos a lei antiga e a que foi corrigida por
193 No Pactus legis salicae, cap. VI. (N. do A.) este príncipe. (N. do A.)
Capítulo XXII
ginaram homens extraordinários que, vendo a tidos. Certa idéia de tranquilidade nos campos
virtude unida à beleza e à fraqueza, foram da Grécia fez dar uma noção dos sentimentos
levados a se expor, por ela, aos perigos e a ser do amor197. A idéia de paladinos protetores
gentis nas ações triviais da vida. da virtude e da beleza das mulheres levou à
Nossos romances de cavalaria enalteceram noção de galanteria.
esse desejo de agradar e deram a uma parte da Esse espírito perpetuou-se pela prática dos
torneios, que, unindo ao mesmo tempo os
Europa esse espírito de galanteria, do qual se
direitos do valor e do amor, deram também à
pode dizer ter sido pouco conhecido pelos
galanteria uma grande importância.
antigos.
O luxo prodigioso dessa imensa cidade de 19 7 Podem-se examinar os romances gregos da
Roma incentivou a idéia dos prazeres dos sen Idade Média. (N. do A.)
Capítulo XXIII
Capítulo XXIV
Quando200 havia muitos acusadores, era Antes do combate, a justiça202 fazia publi
preciso que eles concordassem para que a car três proclamas. Por um, era ordenado aos
questão fosse demandada por um só; e, se não parentes das partes que se retirassem; por
se punham de acordo, aquele diante do qual se outro, avisavam o povo para guardar silêncio;
fazia a queixa nomeava um dentre eles, o qual pelo terceiro, era proibido dar socorro a uma
dava prosseguimento à querela. das partes, o que era castigado com graves
Quando201 um gentil-homem citava um penas, e mesmo com a morte, se graças a esse
vilão, ele devia apresentar-se a pé, com o escu socorro um dos combatentes houvesse sido
do e o bastão; e, se ele vinha a cavalo, com as vencido.
armas de um gentil-homem, despojavam-no do Os auxiliares da justiça guardavam a
cavalo e das armas; ele ficava de camisa e era liça203; e, no caso em que uma das partes hou
obrigado a combater nesse estado contra o vesse falado de paz, eles prestavam bastante
vilão. atenção ao estado em que as duas estavam
200 Beaum., cap. VI, pàgs. 40 e 41. (N. do A.) 202 Ibid., pág. 33O.(N. do A.)
2 01 Ibid., cap. LXIV, pág. 328. (N. do A.) 203 Ibid. (N. do A.)
444 MONTESQUIEU
naquele momento, para que elas fossem re tivesse o maior interesse em defender a parte
postas2 0 4 na mesma situação, se não fosse que representava, ele tinha o punho cortado se
completada a paz. fosse vencido20 7.
Quando eram recebidos penhores por crime Quando se fez passar, no século passado, as
ou por falso julgamento, a paz não podia ser leis capitais contra os duelos, bastaria talvez
concluída sem o consentimento do senhor; e, despojar um guerreiro dessa sua qualidade
quando uma das partes havia sido vencida, pela perda da mão, não havendo comumente
não podia mais haver paz senão pela aprova nada mais triste para os homens do que sobre
ção do conde20 5, o que tinha relação com as viver à perda de seu ofício.
nossas cartas de perdão. Quando, em um crime capital208, o comba
Mas, se o crime era capitai e o senhor, cor te era feito por campeões, colocavam as partes
rompido com presentes, consentisse na paz, ele em um lugar de onde elas não podiam ver a
pagava uma multa de sessenta libras, e o batalha: cada uma delas era cingida com a
direito20 6 que ele tinha de mandar punir o corda que devia servir para o seu suplício, se
malfeitor era devolvido ao conde. seu campeão fosse batido.
Havia muita gente que não estava em condi Quem sucumbia no combate nem sempre
ções nem de oferecer o duelo nem de recebê-lo. perdia a coisa contestada. Se, por exemplo209,
Permitia-se, com conhecimento de causa, que se combatia sobre uma interlocutória, perdia-
escolhessem um campeão, e, para que este se apenas a interlocutória21 °.
20 4 Ibid., cap. LXIV, pág. 330. (N. do A.) 20 7 Esse uso, que se encontra nas capitulares, sub
20 5 Os grandes vassalos tinham direitos particula sistiu até o tempo de Beaumanoir. Vede o cap. LXI,
res. (N. do A.) pág. 315. (N. do A.)
20 6 Beaum., cap. LXIV, pág. 330, diz: Ele perdia a 208 Beaum., cap. LXIV, pág. 330. (N. do A.)
sua justiça. Essas palavras, nos autores daquele 20 9 Beaum., cap. LXI, pág. 309. (N. do A.)
tempo, não têm uma significação geral, mas sim res 210 ... interlocutória, decisão judiciária que pres
trita à questão de que tratam. Défontaines, cap. creve medidas a tomar antes de decidir sobre o
XXI, art. 29. (N. do A.) fundamento.
Capítulo XXV
Quando os penhores de batalha tinham sido que os costumes não fossem modificados pelos
recebidos sobre uma questão civil de pouca diversos resultados dos combates.
importância, o senhor obrigava as partes a Não se podia requerer o combate senão
retirá-los. para213 si mesmo ou para alguém de sua
Se um fato era notório211: por exemplo, se linhagem, ou para seu senhor lígio.
um homem tinha sido assassinado em pleno ■ Quando um acusado era absolvido21 4,
mercado, não era ordenada nem a prova por outro parente não podia requerer o combate;
testemunhas nem a prova pelo combate; o juiz pois de outro modo as questões jamais teriam
pronunciava-se sobre a publicidade do fato. fim.
Quando, na corte do senhor, houvessem Se aquele de quem os parentes queriam vin
frequentemente julgado da mesma maneira e, gar a morte vinha a reaparecer, não havia mais
portanto, o uso estivesse conhecido212, o se motivo para combate: o mesmo acontecia21 5
nhor recusava o combate às partes, a fim de se, por uma ausência reconhecida por todos, o
combate se tornava impossível.
211 Beaum., cap. LXI, pág. 308. Ibid., cap. LXIII,
pág. 330. (N. do A.) 213 Beaum., cap. LXIII, pág. 322. (N. do A.)
2,2 Ibid., cap. LXI, pág. 314. Vede também 214 Ibid. (N. do A.)
Défontaines, cap. XXII, art. 24. (N. do A.) 21 5 Ibid., cap. LXIII, pág. 332. (N. do A.)
445
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI
Se um homem que tinha sido morto21 6 se decidiam por árbitros ou por cortes eclesiás
havia, antes de morrer, desculpado aquele que ticas; não havia igualmente quando se tratava
era acusado, e denunciado outro, nunca se pro dos dotes das mulheres.
cedia ao combate; mas, se não havia acusado Mulher, diz Beaumanoir, não pode comba
ninguém, considerava-se sua declaração ape ter. Se uma mulher citava alguém, sem nomear
nas como um perdão pela própria morte: a o seu campeão, não eram recebidos os seus
demanda tinha prosseguimento; e mesmo, penhores de batalha. Era preciso ainda que
entre gentis-homens, podia-se chegar à guerra. uma mulher fosse autorizada pelo seu
Quando havia uma guerra e um dos paren barão219, isto é, seu marido, para citar; mas
tes dava ou recebia os penhores de batalha, o sem essa autoridade ela podia ser citada.
direito da guerra cessava; pensava-se que as Se o apelante220 ou o apelado tinham
partes queriam seguir as vias normais da justi menos de quinze anos, não havia combate.
ça; e aquela que continuasse a guerra teria que Entretanto, ele podia ser ordenado para as
ser condenada a reparar os prejuízos. questões de pupilos, quando o tutor ou aquele
que tinha a jurisdição quisesse correr os riscos
Assim, a prática do duelo judiciário tinha a
desse processo.
seguinte vantagem: ela podia transformar uma
Parece-me que esses são os casos em que era
querela geral em uma querela particular,
permitido ao servo combater. Ele combatia
outorgar força aos tribunais e reconduzir ao
contra outro servo; ele combatia contra um
estado civil aqueles que não eram mais gover
liberto, e mesmo contra um gentil-homem, se
nados senão pelo direito das gentes.
ele fosse citado; mas, se era ele quem cita
Como há uma infinidade de coisas sábias va221, este lítimo podia recusar o combate; e
que são dirigidas de maneira muito insensata, o senhor do servo estava até mesmo no direito
há também loucuras que são conduzidas de de retirá-lo da corte. O servo podia, por con
maneira muito sábia. cessão escrita do senhor222, ou pelo uso, com
Quando um homem21 7 acusado de um bater contra todos os libertos: e a Igreja223
crime mostrava visivelmente que era o próprio exigia este mesmo direito para os seus servos,
acusador que o havia cometido, não havia como sinal de respeito a ela22 4.
mais penhores de batalha; porque nunca havia
culpado que não tivesse preferido um combate 219 Ibid. (N. do A.)
duvidoso a uma punição certa. 220 Ibid., pág. 323. Vede também o que eu disse no
Nunca havia21 8 combate nas questões que liv. XVIII, cap. XXVI. (N. do A.)
2 21 Beaum., cap. LXIII, pág. 327. (N. do A.)
222 Défont., cap. XXII, art. 7. (N. do A.)
21 6 Ibid., pág. 323. (N. do A.) 223 Habeant bellandi et testjficandi licentiam.
21 7 Beaum., cap. LXIII, pág. 324. (N. do A.) Carta de Luís, o Gordo, do ano de 1118. (N. do A.)
218 Ibid., cap. LXIH, pag. 325. (N. do A.) 22 4 Ibid. (N. do A.)
Capítulo XXVI
sido encerrada com o depoimento das duas Creio que isso era uma modificação do anti
testemunhas. Mas, impedindo a segunda, o go costume; e o que me faz pensar assim é que
depoimento da primeira tomava-se inútil. esse uso de citar testemunhas encontra-se esta
Tendo sido rejeitada a segunda testemunha, belecido na lei dos bávaros230 e na dos
a parte não podia fazer ouvir outras, e ela per borguinhões231, sem nenhuma restrição.
dia seu processo; mas, no caso em que não
Já falei da constituição de Gondebaldo, con
houvesse penhores de batalha22 7, podiam ser
tra a qual Agobardo232 e Santo Avito233
apresentadas outras testemunhas. tanto protestaram.
Beaumanoir diz2 2 8 que a testemunha podia
dizer à sua parte antes de depor: “Eu não abro “Quando o acusado”, diz este príncipe,
a boca para combater por vossa querela, nem “apresenta testemunhas para jurar que ele não
para pleitear pela minha; e se vós quiserdes cometeu o crime, o acusador poderá convocar
defender-me, direi minha verdade de bom para combate uma das testemunhas, porque é
grado”. A parte achava-se obrigada a comba justo que este que se ofereceu para jurar, e que
ter pela testemunha e, se ela era vencida, não declarou que sabia a verdade, não ponha difi
perdia sua liberdade229, mas a testemunha era culdade em combater para sustentá-la.” Esse
rejeitada. rei não deixava às testemunhas nenhum subter
fúgio para evitar o combate.
22 7 Beaum., cap. LXI, pág. 316. (N. do A.)
228 Beaum., cap. VI, pág. 40. (N. do A.) 230 Tít. XVI, § 2. (N. do A.)
229 Mas, se o combate tinha sido feito por cam 231 Tít. XLV. (N. do A.)
peões, o campeão vencido tinha o punho cortado. 232 Carta a Luís, o Bonacheirão. (N. do A).
(N. do A.) 233 Vida de Santo A vito. (N. do A.)
Capítulo XXVII
Sendo da natureza da decisão pelo duelo ter querela por escrito, que só foi conhecido mais
minar a questão para sempre, e não sendo tarde.
compatível23 4 com um novo julgamento e Assim, diz São Luís, em seus Estabeleci
novas demandas, a apelação, tal como é esta mentos23 6, que a apelação contém felonia e
belecida pelas leis romanas e pelas leis canôni iniquidade. Assim Beaumanoir nos diz que, se
cas, isto é, para um tribunal superior, a fim de um homem23 7 queria se queixar de algum
fazer reformar o julgamento de uma outra, era atentado cometido contra ele por seu senhor,
desconhecida na França. devia declarar a este que abandonava seu
Uma nação guerreira, governada unica feudo; depois do que, ele o citava diante de seu
mente pelo ponto de honra, não conhecia essa senhor suserano e oferecia os penhores de
forma de proceder; e, sempre segundo o batalha. Igualmente, o senhor renunciava à
mesmo espírito, ela tomava, contra os juizes, homenagem, se ele citava seu vassalo diante do
as vias23 5 que teria podido empregar contra as conde.
partes. Apelar contra o senhor, por falso julga
A apelação, nessa nação, era um desafio mento, era o mesmo que dizer que seu julga
para um combate com armas, que devia termi mento tinha sido falsa e maldosamente condu
nar pelo sangue; e não esse convite para uma zido; ora. enunciar tais palavras contra seu
senhor era cometer uma espécie de crime de
23 4 “Car en la cour ou l ’on va par la raison de felonia.
l 'appel pour les gages maintenir, se bataille est falte,
la querelle est venue à fin, si que il n’y a metier de
plus d’apiaux. "Beaum., cap. II, pág. 32. (N. do A.) 23 6 Liv. II, cap. XV. (N. do A.)
23 8 Ibid., cap. LXI, pág. 312, e cap. LXVII, pág. 23 7 Beaum., cap. LXI, págs. 310 e 311; e cap.
338. (N. do A.) LXVII, pág. 337. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 447
Assim, em vez de citar por falso julgamento Se aquele2 4 5 que apelava não provava que o
o senhor que estabelecia e regulava o tribunal, julgamento tinha sido mau, pagava ao senhor
citavam-se os pares que formavam o tribunal; uma multa de sessenta libras, a mesma
evitava-se desse modo o crime de felonia; não multa2 4 6 ao par contra quem apelara, e outro
se insultavam senão os pares, aos quais sempre tanto a cada um dos que tinham abertamente
se podia dar reparação do insulto. concordado com o julgamento.
Expunha-se muito quem238 falseava o jul Quando um homem, violentamente suspeito
gamento dos pares. Se se esperava que o julga de um crime que merecia a morte, havia sido
mento fosse feito e pronunciado, ficava-se preso e condenado, não podia apelar2 4 7 con
obrigado a combater239 com todos, quando tra um falso julgamento; pois teria sempre ape
eles se ofereciam para tornar válido o julga lado ou para prolongar sua vida ou para obter
mento. Se se apelava antes que todos os juizes a absolvição.
tivessem dado a sua opinião, era necessário Se alguém2 4 8 dizia que o julgamento era
combater contra todos os que tinham chegado falso e mau, e não se oferecia para prová-lo,
ao mesmo parecer2 40. Para evitar esse perigo, isto é, para combater, era condenado a dez soi
suplicava-se ao senhor241 que ordenasse .que dos de multa se fosse gentil-homem e a cinco
soidos se fosse servo, pelas palavras torpes que
cada par proclamasse bem alto seu parecer; e,
havia dito.
quando o primeiro já se tinha pronunciado e o
segundo ia fazer o mesmo, dizia-se-lhe que ele Os juizes2 49 ou pares que tinham sido ven
cidos não deviam perder nem a vida nem os
era falso, mau e caluniador; e então não era
membros; mas quem os citava era punido com
mais senão contra este que se deveria comba
a morte, quando a questão era capital2 50.
ter.
Essa maneira de citar os homens de feudo
Défontaines queria que, antes de declarar a
por falso julgamento visava evitar que fosse ci
falsidade2 42, se deixasse que três juizes se tado o próprio senhor. Mas2 51, se o senhor
pronunciassem; e ele não diz que era neces
não tinha nenhum pat ou não tinha o bastante,
sário combater contra os três, e ainda menos ele podia, às próprias custas, tomar empres
que havia casos em que era preciso combater tados2 52 pares de seu senhor suserano; mas
contra todos os que se tinham declarado de esses pares não eram obrigados a julgar, se
mesma opinião2 43. Essas divergências decor não o quisessem; podiam declarar que só ti
rem de que, naqueles tempos, não havia muitos nham vindo para dar o seu conselho; e, nesse
usos que fossem precisamente os mesmos. caso2 53 particular, era ao senhor que, jul
Beaumanoir prestava conta do que se passava gando e pronunciando, ele próprio, o julga
no condado de Clermont; Défontaines, do que mento, cabia sustentar a apelação, se se apela
se usava em Vermandois. va contra falso julgamento.
Quando2 4 4 um dos pares ou homem de Se o senhor2 5 4 fosse tão pobre que não esti
feudo houvesse declarado que sustentaria o vesse em situação de tomar emprestados pares
julgamento, o juiz mandava dar os penhores de
batalha, e além do mais tomava garantias para 2 4 5 Beaum., ibid.; Défont., cap. XXII, art. 9. (N.
que o apelante sustentasse seu apelo. Mas o do A.)
2 4 6 Défont., ibid. (N. do A.l
par que era apelado não dava nenhuma garan 2 4 7 Beaum., cap. LXI, pág. 316; e Défont., cap.
tia, porque ele era súdito do suserano, e devia XXII, art. 21.(N.do A.)
defender o apelo ou pagar ao senhor uma 2 4 8 Ibid., cap; LXI, pág. 314. (N. do A.)
multa de sessenta libras. 2 49 Défont., cap. XXII, art. 7. (N. do A.)
2 50 Vede Défont., cap. XXI, art. 11, 12 e seguin
tes, que distingue os casos em que o acusador de fal
238 Ibid., cap. LXI, pág. 313. (N. do A.) sidade perdia a vida, se a coisa fosse negada, ou
2 3 9 Ibid., pág. 314. (N. do A.) fosse apenas a interlocutória. (N. do A.)
2 40 Que estivessem de acordo com o julgamento. 251 Beaum., cap. LXII, pág. 322. Défont., cap.
(N. do A.) XXII, art. 3. (N. do A.)
2 41 Beaum., cap. LXI, pág. 314. (N. do A.) 2 52 O conde não era obrigado a emprestá-los.
2 42 Apelar contra falso julgamento. (N. do A.) Beaum., cap. LXVII, pág. 337. (N. do A.)
2 43 Ibid., cap. XXII, arts. 1, 10 e 11. Ele só diz que 2 53 Ninguém pode fazer julgamento em sua corte,
se pagava a cada um uma multa. (N. do A.) diz Beaum., cap. LXVII, págs. 336 e 337. (N. do A.)
2 4 4 Beaum., cap. LXI, pág. 314. (N. do A.) 2 5 4 Ibid., cap. LXII, pág. 322. (N. do A.)
448 MONTESQUIEU
de seu senhor suserano, ou negligenciasse em Um senhor2 59 que litigava em seu tribunal
fazer tal pedido, ou o suserano se recusasse a contra seu vassalo, e fosse condenado, podia
concedê-los, o senhor não podia então julgar citar um de seus homens, por falso julgamento.
só e ninguém era obrigado a litigar diante de Mas, por força do respeito que este devia a seu
um tribunal no qual o julgamento não podia senhor pela fé dada, e pela benevolência que o
ser feito, e a questão era levada à corte do se senhor devia a seu vassalo, pela fé recebida,
nhor suserano. fazia-se uma distinção: ou o senhor dizia, em
Creio que essa foi uma das grandes causas geral, que o julgamento2 60 era falso e mau; ou
da separação entre a justiça e o feudo, donde ele imputava a seu vassalo prevaricações2 61
se formou a regra dos jurisconsultos franceses: pessoais. No primeiro caso, ele ofendia seu
Uma coisa é o feudo, outra é a justiça. Porque, próprio tribunal, e, de algum modo, a si
havendo aí uma infinidade de homens de feudo mesmo, e nesse caso não podia ter penhores de
que não tinham pessoas sujeitas a eles, nunca batalha; mas, no segundo caso, os possuía,
se achavam em estado de manter o seu tribu porque atacava a honra de seu vassalo; e aque
nal; todas as questões eram levadas ao tribunal le dos dois que fosse vencido perdia a vida e os
de seu senhor suserano; perdiam o direito à bens, para manter a paz pública.
justiça, porque não tinham nem o poder nem a Esta distinção, necessária neste caso parti
vontade de reclamá-lo. cular, foi estendida. Beaumanoir diz que,
Todos os juizes2*5 5 que haviam participado quando aquele que apelava contra falso julga
do julgamento deviam estar presentes quando mento atacava um dos súditos com imputa-
este era realizado, a fim de que pudessem ções pessoais, havia batalha; mas que, se só
acompanhá-lo e dizer sim àquele que, que atacasse o julgamento2 62, aquele dentre os
rendo acusar de falsidade, lhes perguntava, se pares que era citado era livre de fazer julgar a
prosseguiríam; porque, diz Défontaines2 5 6, “é questão por batalha ou por direito. Mas, como
uma questão de cortesia e de lealdade, e não há o espírito que reinava no tempo de Beauma
aí possibilidade de fuga ou de dilação”. Creio noir era o de restringir o uso do duelo judiciá
que é dessa maneira de pensar que adveio o rio, e como essa liberdade concedida ao par
uso, seguido ainda hoje na Inglaterra, pelo citado, de defender o julgamento, por combate
qual todos os jurados devem estár de acordo ou não, era igualmente contrária às idéias da
para condenar à morte. honra estabelecidas naqueles tempos, e ao
Cumpria então declarar-se de acordo com a compromisso que se tinha para com o senhor,
maioria; e, se havia empate, pronunciava-se, de denfender seu tribunal, creio que essa distin
em caso de crime, pelo acusado; em caso de dí ção de Beaumanoir era uma jurisprudência
vidas, pelo devedor; em caso de herança, pelo nova entre os franceses.
demandado. Não digo que todas as apelações contra
Um dos pares, diz Défontaines2 5 7, não falso julgamento fossem decididas por batalha;
podia dizer que não julgaria se eles não fossem isto vale tanto para esta apelação como para
senão quatro2 58; ou se eles não estivessem todas as outras. Lembremo-nos das exceções
todos presentes, ou se os mais sábios não de que já falei no capítulo XXV. Aqui, era ao
comparecessem; é como se ele tivesse dito, no tribunal .suserano que competia ver se era pre
meio da confusão, que não socorrería seu se ciso tirar, ou não, os penhores de batalha.
nhor porque ele não tinha perto de si senão Não se podia imputar falsidade aos julga
uma parte de seus homens. Mas çra ao senhor mentos efetuados no tribunal do rei; porque,
que cabia fazer honra à sua corte e escolher os não tendo o rei quem lhe fosse igual, não havia
seus homens mais valentes e mais sábios. Cito ninguém que pudesse citá-lo; e, não tendo
isto para fazer sentir o dever dos vassalos, que
era o de combater e julgar; e esse dever era tal, 2 69 Vede Beaum., ibid. (N. do A.)
que julgar era o mesmo que combater. 2 60 Este julgamento é falso e mau. Ibid., cap.
LXVII, pág. 337. (N. do A.)
2 5 5 Défont., cap. XXI, arts. 27 e 28. (N. do A.) 261 Vós fizestes julgamento falso e mau, como
2 5 6 Ibid., art. 28. (N. do A.) mau vós sois, ou por dinheiro ou por conluio.
2 5 7 Cap. XXI, art. 37. (N. do A.) Beaum., cap. LXVII, pág. 337. (N. do A.)
2 58 Era preciso, pelo menos, este número. Défont., 2 62 Beaum., cap. LXVII, págs. 337 e 338. (N. do
cap. XXI, art. 36. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 449
superior, nào havia quem pudesse apelar con viou todo o seu conselho para julgar uma ques
tra o seu tribunal. tão no tribunal do Abade de Corbie.
Esta lei fundamental, necessária como lei
Mas, se o senhor não pudesse ter juizes do
política, diminuía ainda, como lei civil, os abu
sos da prática judiciária daqueles tempos. rei, ele podia incorporar seu tribunal ao do rei,
Quando um senhor temia2*63 que fosse atri se dependesse somente dele; e, se houvesse
buída falsidade ao seu tribunal, ou via que se senhores intermediários, ele se dirigia a seu se
apresentavam para atribuir falsidade a ele, se nhor suserano, indo de senhor em senhor até o
era para o bem da justiça que isso não aconte rei.
cesse, ele podia requerer homens da corte do Assim, embora não se tivesse naqueles tem
rei, cujo julgamento não se podia considerar pos nem a prática nem a idéia das apelações de
falso; e o Rei Filipe, diz Défontaines2 6 4, en-
hoje, tinham-se meios de recorrer ao rei, o qual
2 63 Défont., cap. XXII, art. 14. (N. do A.)
era sempre a fonte de onde partiam todos os
2 6 4 Ibid. (N.doA.) rios, e o mar a que eles voltavam.
Capítulo XXVIII
Chamava-se falta de direito ao fato de, no dente uma da outra2 68; toda a diferença2 69
tribunal de um senhor, diferir-se, evitar-se ou consistia em que o missus dava suas audiên
recusar-se a fazer justiça às partes. cias em quatro meses do ano, e o conde nos
Na segunda raça, embora o conde tivesse outros oito.
muitos oficiais subordinados a ele, a pessoa Se alguém2 70, condenado em um julgamen
desses estava subordinada, mas a jurisdição to2 71, solicitasse que o julgassem de novo, e
não o estava. Esses oficiais, em seus pleitos, fosse ainda condenado, pagava uma multa de
sessões ou audiências, julgavam, em última quinze soidos, ou recebia quinze bofetadas dos
instância, como se fossem o próprio conde. juizes que haviam decidido a questão.
Toda a diferença consistia na partilha da juris Quando os condes ou os enviados do rei não
dição; por exemplo, o conde2 6 5 podia conde se sentiam com bastante força para levar os
nar à morte, julgar sobre a liberdade e a resti poderosos à razão, faziam com que eles des
tuição dos bens, e o centurião não o podia. sem caução2 72 de que se apresentariam peran
Pela mesma razão havia causas maiores2 6 6 te o tribunal do rei: era para julgar a questão,
que estavam reservadas ao rei; eram aquelas e não para tornar a julgá-la. Encontro, na capi
que interessavam diretamente à ordem políti tular de Metz2 73, a apelação por falso julga
ca. Tais eram as discussões que existiam entre mento ao tribunal do rei estabelecida e todas
os bispos, os abades, os condes e outros pode as outras espécies de apelações proscritas e
rosos, que os reis julgavam junto com os gran punidas.
des vassalos2 6 7.
O que disseram alguns autores, que se ape 2 68 Vede a capitular de Carlos, o Calvo, acrescen
lava do conde ao enviado do rei, ou missus tada à lei dos lombardos, liv. II, art. 3. (N. do A.)
dominicus, não tem fundamento. O conde e o 2 69 Capitular III, do ano de 812, art. 8. (N. do A.)
missus tinham uma jurisdição igual e indepen 2 70 Capitular acrescentada à lei dos lombardos,
liv. II, tít. LIX. (N. do A.)
2 71 Placitum. (N. do A.)
2 6 5 Capitular III, do ano de 812, art. 3; edição de 2 72 Isto se depreende das fórmulas, das cartas e
Baluze, pág. 497, e a de Carlos, o Calvo, acrescen das capitulares. (N. do A.)
tada à lei dos lombardos, liv. 11, art. 3. (N. do A.) 2 73 Do ano de 757, edição de Baluze, pág. 180,
2 6 6 Capitular III, do ano de 812, art. 2; edição de arts. 9 e 10; e o sínodo Apud Vernas, do ano de 755,
Baluze, pág. 497. (N. do A.) art. 29, edição de Baluze, pág. 175. Estas duas capi
2 6 7 Cum fidelibus. Capitular de Luís, o Bonachei- tulares foram feitas sob o reinado de Pepino. (N. do
rão, edição de Baluze, pág. 667. (N. do A.) A.)
450 MONTESQUIEU
Se não se aquiescesse2 7 4 ao julgamento dos mentos ou de outros prazos: não havia julga
escabinos2 7 5 e não se reclamasse, era-se preso mento e so se falseava sobre um julgamento.
até que se tivesse aquiescido; e, se se recla Enfim, o delito dos pares ofendia tanto o se
masse, era-se conduzido sob uma guarda segu nhor quanto a parte: e era contra a ordem que
ra diante do rei, e a questão era discutida em houvesse um combate entre o senhor e seus
seu tribunal. pares.
Quase não se colocava a questão de apela Mas2 7 9 como diante do tribunal suserano se
ção por falta de direito porque, bem antes de, provava a culpa pelas testemunhas, estas po
naqueles tempos, existir o costume de queixar- diam ser chamadas para o combate; e com isso
se de que os condes e outras pessoas que ti não se ofendia nem o senhor nem seu tribunal.
nham o direito de manter sessões de tribunal 1. ° No caso em que a falta provinha da
criminal não estivessem certos em manter sua parte dos homens ou pares do senhor que ha
corte, queixava-se, ao contrário2 7 6, de que eles viam adiado a prestação da justiça, ou deixado
o eram muito; e há numerosas ordenações que de fazer o julgamento depois de passados os
proíbem aos condes e outros quaisquer oficiais prazos, era aos pares do senhor que se acusava
de justiça de realizarem mais do que três ses de falta de direito diante do suserano; e, se eles
sões por ano. Era menos necessário corrigir sucumbiam, pagavam uma multa ao seu
sua negligência do que sustar sua atividade. senhor274*280. Este não podia levar nenhum
Mas quando um incontável número de socorro aos seus homens; pelo contrário,
pequenos senhorios foi formado, e quando apreendia seu feudo até que cada um deles lhe
diferentes graus de vassalagem foram estabele tivesse pago uma multa de sessenta libras.
cidos, a negligência de certos vassalos em 2. ° Quando a falta provinha do senhor,
manter sua corte deu origem a essas espécies fato que ocorria quando não havia em sua
de apelação2 7 7 ; quanto mais que isso revertia corte número suficiente de homens para efe
para o senhor suserano em multas considerá tuar o julgamento, ou quando não havia reuni
veis. do seus homens, ou colocado alguém em seu
Difundindo-se cada vez mais o uso do duelo lugar para reuni-los, citava-se a falta diante do
judiciário, houve lugares, casos e momentos senhor suserano; mas, por causa do respeito
em que foi difícil reunir os pares, nos quais, devido ao senhor, fazia-se delongar a parte2 81
consequentemente, negligenciou-se a prestação e não o senhor.
da justiça. A apelação por falta de direito apa O senhor citava sua corte diante do tribunal
receu; e essas espécies de apelações foram suserano; e, se ganhava a causa, devolviam-lhe
amiúde pontos notáveis de nossa história, por a questão, e pagavam-lhe uma multa de ses
que a maioria das guerras daqueles tempos senta libras282; mas se a falta de direito era
tinha por motivo a violação do direito político, provada, sua pena283 era perder o julgamento
como nossas guerras de hoje têm comumente da coisa contestada; o fundamento era julgado
por causa, ou por pretexto, a violação do direi no tribunal suserano; com efeito, não se tinha
to das gentes. reclamado a falta senão para isso.
Afirma Beaumanoir2 7 8 que, no caso de 3. ° Se se pleiteava28 4 na corte de seu se
falta de direito, nunca havia batalha: eis aqui nhor contra ele, o que só ocorria para as ques
as razões disso. Não se podia chamar ao com tões concernentes ao feudo, após ter cedido
bate o próprio senhor, por causa do respeito
devido à sua pessoa: não se podia chamar os
pares do senhor, porque a coisa era clara e 2 79 Beaum., cap. LXI, pág. 315. (N. do A.)
280 Défont., cap. XXI, art. 24. (N. do A.)
nada restava senão contar os dias dos adia 2 81 Ibid., cap. XXI, art. 32. (N. do A.)
282 Beaum., cap. LXI, pág. 312. (N. do A.)
274 Capitular XI de Carlos Magno, do ano de 805, 2 83 Défont., cap. XXI, art. 29. (N. do A.)
edição de Baluze, pág. 423; e lei de Lotário, na lei 28 4 No reinado de Luís VIII, o Senhor de Nesle
dos lombardos, liv. II, tít. III, art. 23. (N. do A.) pleiteava contra Joana, Condessa de Flandres; inti
2 7 5 Oficiais sujeitos aò conde: scabini. (N. do A.) mou-a a mandar julgá-lo em quarenta dias, e citou-a
2 7 6 Vede a lei dos lombardos, liv. II, tít. III, art. em seguida no tribunal do rei, por falta de direito.
22. (N. do A.) Respondeu ela que o faria julgar por seus pares, em
2 7 7 Vêem-se apelações de falta de direito desde o Flandres. A corte do rei declarou que ele não seria
tempo de Filipe Augusto. (N. do A.) remetido, e que a condessa seria intimada. (N. do
2 78 Cap. LXI, pág. 315. (N. do A.) A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 451
todos os prazos, intimava-se o senhor285 sua corte. Descobriu-se que ele havia conce
mesmo diante dos homens bons e fazia-se com dido um prazo ainda menor do que o costume
que ele fosse intimado pelo suserano, de quem do país permitia. Os ganteses lhe foram remeti
se devia ter permissão. Nunca se intimava dos; ele mandou apreender seus bens até o
através dos pares, porque esses não podiam valor de sessenta mil libras. Eles retornaram à
citar seu senhor; mas podiam aprazar28 6 para corte do rei, para que essa multa fosse modera
o seu senhor. da; foi decidido que o conde podia aplicar essa
Algumas vezes28 7 a apelação de falta de multa, e até mais, se desejasse. Beaumanoir
direito era seguida de uma apelação de falso assistira a esses julgamentos.
julgamento, quando o senhor, apesar da falta, ° Nas questões que o senhor podia ter
4.
havia feito apresentar o julgamento. contra o vassalo por causa da pessoa ou da
O vassalo288 que acusasse injustamente seu honra deste, ou de bens que não eram do
senhor por falta de direito era condenado a feudo, não havia caso de apelação por falta de
pagar-lhe uma multa deixada a seu critério. direito, posto que nunca se julgava na corte do
Haviam os ganteses289 citado por falta de senhor, mas na de quem o defendia; os súditos,
direito o Conde de Flandres pelo fato de ele ter diz Défontaines290, não tinham o direito de
demorado em lhes conceder julgamento em julgar sobre a pessoa de seu senhor.
Esforcei-me para dar uma idéia clara dessas
coisas, as quais, nos autores daqueles tempos,
2 8 5 Défont., cap. XXI, art. 34. (N. do A.) são tão confusas e obscuras, que na verdade
2 8 6 Ibid., art. 9. (N. do A.)
28 7 Beaum., cap. LXI, pág. 311. (N. do A.) extraí-las do caos em que estão é o mesmo que
2 88 Beaumanoir, pág. 311. Mas quem não tinha descobri-las.
sido súdito nem cavaleiro do senhor pagava apenas
uma multa de sessenta libras. Ibid. (N. do A.)
2 89 Ibid., pág. 318. (N. do A.) 290 Cap. XXI, art. 35. (N. do A.)
Capítulo XXIX
São Luís aboliu o duelo judiciário nos tribu sar de falsidade os julgamentos emitidos nos
nais de seus domínios, como parece pela orde senhorios de seus domínios, porque se trataria
nação que fez a esse respeito291, e pelos de crime de felonia. Efetivamente, se era uma
Estabelecimentos2 9 2. modalidade de crime de felonia contra o
Mas não o suprimiu nas cortes de seus senhor, com mais forte razão ele o era contra o
barões293, exceto no caso de apelação de falso rei. Mas quis que dele pudesse ser solicitada a
julgamento. correção2 9 7 dos julgamentos concedidos em
Não se podia acusar de falsidade29 4 a corte suas cortes; não porque eles fossem falsa ou
de seu senhor, sem requerer o duelo judiciário maldosamente prolatados, mas sim porque
contra os juizes que haviam pronunciado o causavam algum dano298. Quis, pelo contrá
julgamento. Mas São Luís introduziu29 5 o uso rio, que se fosse obrigado a acusar de falsida
de acusar de falsidade sem combater: modifi de2 99 os julgamentos das cortes dos barões, se
cação que foi uma espécie de revolução. se quisesse fazer queixa contra eles.
Declarou29 6 ele que nunca se poderia acu Não se podia, segundo os Estabelecimentos,
acusar de falsidade os tribunais do domínio do
291 Em 1260. (N. do A.) rei, como acabamos de dizer. Cumpria solici
292 Liv. I, caps. II e VII; liv. II, caps. X e XI. (N. tar emenda diante do mesmo tribunal; e, no
do A.) caso em que o bailio não quisesse fazer a
293 Como aparece em vários pontos dos Estabele
cimentos; e Beaum., cap. LXI, pág. 309. (N. do A.)
29 4 Isto é, apelar por falso julgamento. (N. do A.) 2 9 7 Ibid., liv. I, cap. LXXVIII; e liv. II, cap. XV.
29 5 Estabelecimentos, liv. I, cap. VI; e liv. II, cap. (N. do A.)
XV. (N. do A.) 2 9 8 Ibid., liv. I, cap. LXXVIII. (N. do A.)
2 9 6 Ibid., liv. II, cap. XV. (N. do A.) ”9 9 Ibid., liv. II, cap. XV. (N. do A.)
452 MONTESQUIEU
emenda requerida, o rei permitia o apelo ao Isso não foi universalmente aceito nos tribu
tribunal300, ou antes, que eles, interpretando nais dos senhores. Escreve Beaumanoir30 6
eles próprios os Estabelecimentos, apresen- que, em seu tempo, havia duas maneiras de jul
tassem-lhe301 um requerimenro ou uma peti gar: uma segundo o Estabelecimento-do-rei, e
ção. outra segundo a prática antiga; que os senho
Com relação às cortes dos senhores, São res tinham o direito de seguir uma ou outra
Luís, ao permitir que se lhes acusasse de falsi dessas práticas; mas que numa questão, quan
dade, desejou que a questão fosse levada302 ao do se tinha escolhido uma, não se podia mais
tribunal do rei, ou do senhor suserano, não303 voltar, à outra. Acrescenta ele3 0 7 que o Conde
para aí ser decidida pelo combate, mas por de Clermont seguia a nova prática, enquanto
testemunhas, seguindo uma forma de proceder seus vassalos se atinham à antiga; mas que ele
da qual ele deu as regras30 4. poderia, quando desejasse, restabelecer a anti
Assim, quer se pudesse acusar de incompe ga, sem o que teria menos autoridade que seus
tência, como nos tribunais dos senhores, quer vassalos.
não se pudesse, como nos tribunais de seus Faz-se mister saber que a França estava,
domínios, estabeleceu ele que se poderia apelar então308, dividida em região do domínio do
sem correr o risco de um combate. rei e naquilo que se chamava região dos
Relata-nos Défontaines30 5 os dois primei barões, ou em baronias; e, para servir-me dos
ros exemplos que presenciou, em que se havia termos dos Estabelecimentos de São Luís, em
procedido sem duelo judiciário; um, numa região de obediência-ao-rei e em região fora da
questão julgada pelo tribunal de Saint- obediência-ao-rei. Quando os senhores faziam
Quentin, que pertencia ao domínio do rei; e ordenações para as regiões de seus domínios,
outro, no tribunal de Ponthieu, onde o conde, só utilizavam sua própria autoridade; mas,
que estava presente, objetou com a antiga quando as faziam considerando também a
jurisprudência; mas estas duas questões foram região de seus barões, eram feitas309 de acor
julgadas pelo direito. do com eles, firmadas ou subscritas por eles;
Perguntar-se-á, talvez, por que São Luís sem isso, os barões as recebiam ou não as rece
ordenou para os tribunais de seus barões uma biam, conforme lhes parecesse convir ou não
maneira de proceder diferente da que ele esta ao bem de seus senhorios. Os subvassalos
belecia nos tribunais de seus domínios. Eis a mantinham os mesmos termos com os grandes
razão: São Luís, estatuindo para os tribunais vassalos. Ora, os Estabelecimentos não foram
de seus domínios, nunca foi constrangido em dados com o consentimento dos senhores, em
seus pareceres; mas teve que ser deferente com bora estatuíssem sobre coisas que lhes eram de
os senhores que gozavam dessa antiga prerro grande importância: mas só foram acolhidos
gativa pela qual as questões nunca eram retira pelos que acreditaram que lhes era vantajoso
das de seus tribunais, a menos que não se esti acolhê-los. Roberto, filho de São Luís, admi-
vesse exposto ao perigo de ser acusado de tiu-os em seu condado de Clermont; e seus
falsidade. São Luís manteve esse costume de vassalos não acreditaram que lhe conviesse
acusar de falsidade, mas quis se fizesse isso fazê-los aplicar entre eles.
sem combater: isto é, para que a modificação
fosse menos sentida, suprimiu o fato, e deixou
subsistir os termos. 30 6 Cap. LXI, pág. 309. (N. do A.)
30 7 Ibid. (N.doA.)
308 Vede Beaumanoir, Défontaines e os Estabele
300 Ibid., liv. I, cap. LXXVIII. (N. do A.) cimentos, liv. II, caps. X, XI, XV e outros. (N. do
3 01 Ibid., liv. II, cap. XV. (N. do A.) A.)
302 Mas, se não se acusava de falsidade, e se se 309 Vede as Ordenações do começo da terceira
quisesse apelar, não se era recebido. Estabeleci raça, na coletânea de Laurière, principalmente a de
mentos, liv. II, cap. XV. Li sire en auroit le recort de Filipe Augusto sobre a jurisdição eclesiástica, e a de
sa cour, droitfaisant. (N. do A.) Luís VIII sobre os judeus; e as cartas referidas por
303 Ibid., liv. I, caps. VI e LXVII; e liv. II, cap. Brussel, sobretudo a de São Luís sobre o arrenda
XV; e Beaum., cap. XI, pág. 58. (N. do A.) mento e o resgate de terras, e a maioridade feudal
304 Ibid., liv. I, caps. I, II, III. (N. do A.) das moças, tomo II, liv. III, pág. 35; e ibid., a orde
30 5 Cap. XXII, arts. 16 e 17. (N. do A.) nação de Filipe Augusto, pág. 7. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 453
Capítulo XXX
Capítulo XXXI
Não podia o vilão acusar de falsidade o tri a ser abolida, e o uso das novas apelações a
bunal de seu senhor: informa-nos Défontai introduzir-se, julgou-se insensato que as pes
nes3 12; isto é confirmado pelos Estabeleci soas libertas tivessem um recurso contra a
mentos3 13. “Também”, diz ainda injustiça do tribunal de seu senhores, e que os
Défontaines31 4, “não há entre ti, senhor, e teu vilãos não o tivessem; e o parlamento acolheu
vilão, outro juiz além de Deus.” suas apelações como as das pessoas libertas.
Fora o uso do duelo judiciário que impedira
os vilãos de poderem acusar de falsidade o tri
312 Cap. XXI, arts. 21 e 22. (N. do A.)
buna) de seu senhor; e isso é tão verdadeiro, 313 Liv. I, cap. CXXXVI. (N. do A.)
que os vilãos que, por charta de permissão ou 31 4 Cap. II, art. 8. (N. do A.)
pelo uso31 5 tinham o direito de combater, pos 31 6 Défontaines, cap. XXII, art. 7. Este artigo e o
suíam igualmente o direito de acusar de falsi 21.° do cap. XXII do mesmo autor foram até aqui
pessimamente explicados. Défontaines não põe em
dade o tribunal do senhor, mesmo quando os oposição o julgamento do senhor e o do cavaleiro,
súditos que haviam julgado fossem cavalei pois era o mesmo; mas opõe o vilão comum ao que
ros31 6; e Défontaines31/ apresenta os expe tinha o privilégio de combater*. (N. do A.)
dientes para que esse escândalo do vilão que, * Por charta ou por uso, por direito escrito ou por
direito consuetudinário.
acusando de falsidade o julgamento, combatia 316 Os cavaleiros podem sempre ser do número
contra um cavaleiro não ocorresse. dos juizes. Défont., cap. XXI, art. 48. (N. do A.)
Começando a prática dos duelos judiciários 31 7 Cap. XXII, art. 14. (N. do A.)
Capítulo XXXII
casos particulares, pela introdução de todas as o senhor perdia apenas o direito de mandar jul
modalidades de apelação, pareceu extraordi gar a questão em seu tribunal. Mas, se o pró
nário que o senhor fosse obrigado a passar sua prio senhor era visado como3 2 2 parte — o que
vida em outros tribunais que não os seus, e por se tornou muito frequente323 —, pagava ao
questões que nãp as suas. Ordenou Filipe de rei, ou ao senhor suserano, devendo quem o
Valois319 que só os bailios seriam aprazados. havia provocado pagar uma multa de sessenta
E, quando o uso das apelações se tornou ainda libras. Daí originou-se o costume, quando as
mais frequente, coube às partes defender a ape apelações foram universalmente admitidas, de
lação; a causa do juiz tornou-se a causa da pagar a multa ao senhor quando se reformava
parte320. a sentença de seu juiz, uso que subsistiu por
Disse que321 na apelação de falta de direito muito tempo, foi confirmado pela ordenação
de Roussillon e prescreveu em virtude de seu
319 Em 1332. (N. do A.) absurdo.
320 Vede qual era o estado de coisas no tempo de
Boutillier, que vivia no ano de 1402. Somme Rura-
le, liv. I, págs. 19 e 20. (N. do A.) 322 Beaum., cap. LXI, págs. 312 e 318. (N. do A.)
3 21 Vede acima, cap. XXX. (N. do A.) 323 Ibid. (N. do A.)
Capítulo XXXIII
Na prática do duelo judiciário, o apelante a corte considera nula a apelação; a corte con
que acusara um dos juizes podia perder32 4, sidera nulos a apelação e o que foi apelado.
pelo combate, seu processo, e não podia Efetivamente, quando quem apelara de falso
ganhá-lo. Com efeito, a parte que tivesse um julgamento era vencido, a apelação ficava anu
julgamento a seu favor não devia ser despo lada; quando vencia, o julgamento era anulado
jada dele pela causa de outrem. Fazia-se mis e também a apelação: era preciso realizar novo
ter, então, que o apelante que tivesse vencido julgamento.
combatesse ainda contra a parte, não para Tanto isto é verdade que, quando a questão
saber se o julgamento era bom ou mau; não se era julgada por inquéritos, esta maneira de
tratava mais desse julgamento, pois que o pronunciar não ocorria. O Sr. de la Roche-
combate o tinha anulado, mas de decidir se a Flavin32 5 nos diz que a câmara dos inquéritos
queixa era legítima ou não; e é sobre este novo não podia usar esta forma nos primeiros tem
ponto que se combatia. Daí deve ter-se origi pos de sua criação.
nado nossa maneira de pronunciar os arestos:
32 5 Des Parlements de France, liv. I, cap. XVI. (N.
32 4 Défont., cap. XXI, art. 14. (N. do A.) do A.)
Capítulo XXXIV
rente dos julgamentos públicos dos romanos. nhas, o confronto^ as conclusões da parte pú
Isso se relacionava à ignorância da escrita, blica; e tal é o uso de hoje em dia. A primeira
comum naqueles tempos. O uso da escrita fixa forma de proceder convinha ao governo de
as idéias, e pode fazer estabelecer o segredo; então, como a nova era apropriada ao governo
mas, quando não se tem esse uso, só a publici que foi estabelecido depois.
dade do processo pode fixar essas mesmas O comentador de Boutillier fixa na ordena
idéias. ção de 1539330 a época dessa transformação.
E, como podia haver incerteza sobre o que Creio que isso aconteceu pouco a pouco, e que
havia sido julgado328 por homens, ou plei ela passou de senhoria a senhoria, à medida
teado diante dos homens, podia-se relembrá-lo que os senhores renunciaram à antiga prática
todas as vezes que se reunia o tribunal, razão de julgar, e que a extraída dos Estabeleci
pela qual se chamava processo por recorda mentos de São Luís veio a se aperfeiçoar. De
ção323, e, neste caso, não era permitido desa
fato, Beaumanoir331 diz que não era senão
fiar as testemunhas para combate porque as
nos casos em que se podia dar penhores de
questões nunca mais teriam fim.
Posteriormente, introduziu-se uma forma batalha que se ouvia publicamente as testemu
secreta de proceder. Tudo era público: tudo se nhas; nos outros, elas eram vistas em segredo,
tornou oculto; os interrogatórios, as informa e redigiam-se por escrito seus depoimentos. Os
ções, a leitura dos depoimentos às testemu- processos tornaram-se então secretos, quando
não houve mais penhores de batalha.
32 8 Como diz Beaum., cap. XXXIX, pág. 209. (N.
do A.) 330 É a ordenação de Villers-Cotterêts de Fran
329 Provava-se por testemunhas o que já se havia cisco I.
passado, dito ou ordenado em justiça. (N. do A.) 331 Cap. XXXIX, pág. 218. (N. do A.)
Capítulo XXXV
Das custas
Antigamente, na França, não havia conde esse número infinito de escrituras que se viu
nação de custas em tribunal leigo332. A parte depois, não era necessário obrigar que as par
que era derrotada era bastante punida pelas tes arcassem com as custas.
condenações de multa para com o senhor e É o uso das apelações que deve natural
seus pares. A maneira de proceder pelo duelo mente introduzir o de obrigar as custas. Desse
judiciário fazia com que, nos crimes, a parte modo, Défontaines333 diz que, quando se ape
que sucumbia, e que perdia a vida e os bens, lava por lei escrita, isto é, quando se seguiam
fosse punida tanto quanto podia sê-lo; e, nos as novas leis de São Luís, obrigava-se às
outros casos do duelo judiciário, havia multas custas; mas que, no uso comum, que não per
algumas vezes fixas, algumas vezes depen mitia citar sem acusar de falsidade, não havia
dentes da vontade do senhor, que faziam os custas: só se obtinha uma multa, e a posse por
processos bastante temidos. O mesmo aconte um ano e um dia da coisa contestada, se a
cia nas questões que só se decidiam pelo com questão era remetida ao senhor.
bate. Como era o senhor que tinha os proveitos Mas, quando as novas facilidades de apelar
principais, era ele também que fazia as princi aumentaram o número das apelações33 4;
pais despesas, quer para reunir os pares, quer quando, pelo frequente uso dessas apelações de
para aprontá-los para proceder ao julgamento. um tribunal a outro, as partes foram sem ces
De resto, as questões, acabando no próprio sar transportadas para fora do lugar de seu
lugar, e quase sempre imediatamente, e sem
333 Cap. XII, art. 8. (N. do A.)
332 Défont., em seu Conseil, cap. XXII, arts. 3 e 8; 33 4 Atualmente, que se está tão inclinado a apelar,
e Beaum., cap. XXXIII. Estabelecimentos, liv. I, diz Boutillier, Somme Rurale, liv. I, tít. III, Edição
cap. XC. (N. do A.) de Paris, 1621, pág. 16. (N. do A.)
456 MONTESQUIEU
domicílio; quando a nova arte do processo conceder justiça; quando a má fé encontrou
multiplicou e eternizou os processos; quando a conselhos onde não encontrou apoios; foi
ciência de evitar as questões mais justas foi-se extremamente necessário conter os pleiteantes,
refinando; quando um pleiteante soube fugir, pelo temor das custas. Eles tiveram que pagá-
unicamente para se fazer seguir; quando a soli las pela decisão e pelos meios que haviam
citação se tornou ruinosa, e a defesa tranquila; empregado para eludi-la. Carlos, o Formoso,
quando as razões se perderam nos volumes de fez a esse respeito uma ordenação geral33 5.
palavras e de escritos; quando tudo ficou
repleto de cúmplices da justiça que não deviam 33 5 Em 1324.
Capítulo XXXVI
Da parte pública
Como, pelas leis sálicas e ripuárias, e pelas dade de combater. Muratori colocou-a na
outras leis dos povos bárbaros, as penas para continuação da constituição de Henrique I33 7
os crimes eram pecuniárias, nunca havia para a qual foi feita. Diz-se, nessa constitui
então, como atualmente entre nós, parte pú ção, que, “se alguém matar seu pai, seu irmão,
blica que fosse encarregada da demanda judi seu sobrinho, ou algum outro de seus parentes,
cial criminal. Com efeito, tudo se reduzia a perderá sua sucessão, que passará para os ou
reparações de danos; toda demanda judicial tros parentes, e a sua própria pertencerá ao
era, de alguma maneira, civil, e cada particular fisco”. Ora, é para a demanda dessa sucessão
podia fazê-la. Por outro lado, o direito romano destinada ao fisco que o advogado da parte pú
tinha formas populares para a demanda judi blica, que lhe sustentava os direitos, tinha a
cial criminal, as quais não podiam estar de liberdade de combater: este caso fazia parte da
acordo com a mediação de uma parte pública. regra geral.
O uso dos duelos judiciários não repugnava Vemos nessas fórmulas o advogado da parte
menos a esta idéia; pois quem querería ser a pública agir contra quem havia prendido um
parte pública e tornar-se campeão de todos ladrão338 e não o tinha levado ao conde; con
contra todos? tra quem339 provocara uma sublevação ou
Encontro, em uma coletânea de fórmulas uma assembléia contra o conde; contra
que Muratori inseriu nas leis dos lombardos, quem3 40 havia salvado a vida de um homem
que havia, na segunda raça, um advogado da que o conde lhe dera para ser morto; contra o
parte pública33 6. Mas, se lemos a compilação advogado das igrejas341, a quem o conde
inteira dessas fórmulas, veremos que havia ordenara que lhe apresentasse um ladrão e que
uma diferença total entre esses oficiais e o que não havia obedecido; contra quem3 42 havia
chamamos hoje de parte pública, de procura- revelado o segredo do rei aos estranhos; contra
dores-gerais, de procuradores do rei ou dos quem3 43, a mão armada, perseguira o enviado
senhores. Os primeiros eram agentes do públi do imperador; contra quem3 4 4 menosprezara
co, antes para a manutenção política e domés
tica do que para a manutenção civil. Com efei 33 7 Vede esta constituição e esta fórmula no-
to, nunca se vê nessas fórmulas que eles segundo volume das Histórias da Itália, pág. 175.
fossem encarregados da demanda judicial cri (N. do A.)
338 Coletânea de Muratori, pág. 104, sobre a lei 88
minal e das questões que concerniam aos de Carlos Magno, liv. I, tít. XXVI, § 78. (N. do A.)
menores, às igrejas, ou ao estado das pessoas. 339 Outra fórmula, ibid., pág. 87. (N. do A.)
Disse que o estabelecimento de uma parte 3 40 Ibid., pág. 104. (N. do A.)
pública repugnava ao uso do duelo judiciário. 341 Ibid., pág. 95*. (N. do A.)
* . . .contra o advogado das igrejas. . . que teria
Encontrei, entretanto, em uma dessas fórmulas recusado soltar o ladrão refugiado na igreja, em vir
um advogado da parte pública que tem a liber tude do direito de asilo.
3 42 Ibid., pág. 88. (N. do A.)
3 43 Ibid., pág. 98. (N. do A.)
33 6 Advocatus de parte publica. 3 4 4 Ibid., pág. 132. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 457
as cartas do imperador, e era processado pelo cias; pela razão de que não houve mais lei
advogado do imperador, ou pelo próprio impe geral, nem fisco geral; e pela razão de que não
rador; contra quem3 4 5 não quisera receber a houve mais conde nas províncias para manter
moeda do príncipe; enfim, este advogado a audiência; e consequentemente não houve
requeria as coisas que a lei adjudicava ao mais essas espécies de oficiais, cuja principal
fisco3 4 6. função era manter a autoridade do conde.
Mas na perseguição dos crimes no processo O uso dos combates, tornado mais frequente
criminal não se via o advogado da parte públi na terceira raça, não permitiu o estabeleci
ca; mesmo quando utilizavam os duelos3 4 7; mento de uma parte pública. Igualmente,
mesmo quando se tratava de incêndio3 48; Boutillier, em sua Suma Rural, falando dos
mesmo quando o juiz era morto3 4 9 em seu tri oficiais de justiça, só cita os bailios, os vassa
bunal; mesmo quando se tratava do estado das los feudais e os sargentos. Vede os Estabele
pessoas3 50, da liberdade e da escravidão3 51. cimentos3 52 e Beaumanoir3 53 sobre a manei
Essas fórmulas são feitas não somente para ra como eram feitos os processos naqueles
a lei dos lombardos, mas também para as capi tempos.
tulares acrescentadas: destarte, não é preciso Encontro nas leis3 5 4 de Tiago I, rei de
duvidar que, sobre este assunto, não nos apre Maiorca, uma criação do emprego de procura
sentem elas a prática da segunda raça. dor do rei3 5 5, com as funções que têm hoje os
É claro que esses advogados da parte pú nossos. E óbvio que eles só surgiram depois
blica tiveram que extinguir-se com a segunda que a forma judiciária mudou entre nós.
raça, tal como os enviados do rei nas provín-
3 52 Liv. I, cap. I; e liv. II, caps. XI e XIII. (N. do
345 Fórmula, pág. 132. (N. do A.) A.)
346 Ibid., pág. 137. (N. do A.) 3 53 Cap. le cap. LXI. (N. do A.)
347 Ibid., pág. 147. (N. do A.) 3 5 4 Vede estas leis nas Vidas dos Santos, do mês
3 48 Ibid. (N. do A.) de junho, tomo III, pág. 26. (N. do A.)
3 49 Ibid., pág. 168. (N. do A.) 3 5 5 Qui continue nostram sacram curiam sequi
3 50 Ibid., pág. 134. (N. do A.) teneatur, instituatur qui facta et causas in ipsa curia
3 51 Ibid., pág. 107. (N. do A.) promoveat atqueprosequatur. (N. do A.)
Capítulo XXXVII
De como os Estabelecimentos de
Sâo Luís caíram no esquecimento
Este foi o destino dos Estabelecimentos: reino. Fazer um costume geral de todos os cos
nasceram, envelheceram e morreram em muito tumes particulares seria uma coisa imprudente,
pouco tempo. mesmo naqueles tempos em que os príncipes
Farei a seguir algumas reflexões. O código em toda parte só encontravam obediência3 5 6.
que temos sob o nome de Estabelecimentos de Pois, se é verdade que não é preciso modificar
São Luís nunca foi feito para servir de lei para quando os inconvenientes igualam as vanta
todo o reino, embora isto seja dito no prefácio gens, ainda é menos necessário modificar
desse código. Tal compilação é um código quando as vantagens são pequenas e os incon
geral que estatui sobre todas as questões civis, venientes imensos. Ora, se atentamos para o
as disposições de bens por testamento ou inter estado em que estava então o reino, em que
vivos, os dotes e os benefícios das mulheres, as cada um se inebriava com a idéia de sua sobe
vantagens e as prerrogativas dos feudos, as rania e de seu poderio, bem vemos que
causas de polícia, etc. Ora, numa época em empreender a modificação das leis e dos usos
que cada cidade, burgo ou vila tinha seu costu recebidos, em toda parte, era uma coisa que
me, dar um corpo geral de leis civis era querer
derrubar num momento todas as leis particu 3 5 6 Isso se tornava, contudo, uma das reformas da
lares sob as quais se vivia em cada lugar do Revolução.
458 MONTESQUIEU
não podia ocorrer aos espíritos dos que sua senhoria à execução de uma nova ordem
governavam. judiciária3 59.
O que acabo de dizer prova ainda que esse Digo, em terceiro lugar, que há grandes
código dos Estabelecimentos não foi confir indícios de que o código que temos seja algo
mado no parlamento pelos barões e súditos da diferente dos Estabelecimentos de São Luís
lei do reino, como é dito no manuscrito do sobre a ordem judiciária. Esse código cita os
palácio de Amiens, citado por Ducange3 5 7. Estabelecimentos: é, então, uma obra sobre os
Vê-se, nos outros manuscritos, que esse código
Estabelecimentos, e não os Estabelecimentos.
foi dado por São Luís no ano de 1270, antes de
sua partida para Túnis. Esse fato não é verda Além do mais, Beaumanoir, que cita amiúde
deiro; porque São Luís partiu em 1269, como os Estabelecimentos3 60 de São Luís, só cita os
observou Ducange; donde ele conclui que esse Estabelecimentos particulares desse príncipe, e
código fora publicado em sua ausência. Mas não essa compilação dos Estabelecimentos.
digo que isso não pode ser. Como São Luís Défontaines3 61, que escrevia sobre esse prínci
teria escolhido a época de sua ausência para pe, fala-nos das duas primeiras vezes que exe
fazer uma coisa que teria sido uma semente de cutaram seus Estabelecimentos sobre a ordem
perturbações, e que teria podido produzir não judiciária como uma coisa passada. Os Esta
modificações, mas revoluções? Tal empreendi belecimentos de São Luís eram portanto ante
mento, mais que outro, teria de ser acompa riores à compilação a que me refiro, a qual, a
nhado de perto, e não era a obra de uma regên rigor, e adotando os prólogos errados coloca
cia fraca, e até composta por senhores que dos por alguns ignorantes no início dessa obra,
tinham interesse que a coisa não fosse bem
só teria surgido no último ano da vida de São
sucedida. Eram eles: Mateus, Abade de São
Luís, ou mesmo depois da morte desse
Dionísio; Simão de Clermont, Conde de
príncipe.
Nesle; e, em caso de morte, Filipe, Bispo de
Évreux; e João, Conde de Ponthieu. Vimos
acima3 58 que o Conde de Ponthieu opôs-se em 3 59 É Défontaines quem relata este fato. (N. do A.)
3 60 A palavra “Estabelecimentos” é entendida, no
tempo de São Luís, no sentido de “Leis e
3 5 7 Prefácio sobre os Estabelecimentos. (N. do A.) ordenações”.
3 58 Vede mais acima o cap. XXIX. (N. do A.) 3 61 Vede acima o cap. XXIX. (N. do A.)
Capítulo XXXVIII
O que é então essa compilação que temos Beaumanoir3 62, que escrevia bem pouco
sob o nome de Estabelecimentos de São Luís? tempo depois da morte desse príncipe, diz que
O que é esse código obscuro, confuso e ambí a maneira de julgar estabelecida por São Luís
guo, em que se confunde incessantemente a era praticada em grande número de tribunais
jurisprudência francesa com a lei romana; em dos senhores.
que se fala como um legislador, e onde se vê Assim, esse príncipe alcançou seu objetivo,
um jurisconsulto; em que se encontra um embora seus regulamentos para os tribunais
corpo inteiro de jurisprudência sobre todos os dos senhores não tivessem sido feitos para
casos, sobre todos os pontos do direito civil? É serem lei geral do reino, mas exemplo que cada
preciso transportar-se para aqueles tempos. um poderia seguir, e que cada um teria até
Vendo São Luís os abusos da jurisprudência interesse em seguir. Ele suprimiu o mal acen
de seu tempo, procurou fazer com que os tuando o melhor. Quando viram em seus tribu
povos desgostassem dela; fez vários regula nais, quando viram nos tribunais dos seus
mentos para os tribunais de seus domínios, e
para os de seus barões; e teve um tal êxito, que 3 62 Cap. LXI, pág. 309. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 459
senhores, uma maneira de proceder mais natu viam penetrado nas cortes de baronia, o com
ral, mais razoável, mais conveniente à moral, à pilador teve alguma razão em dizer que sua
religião, à tranquilidade pública, à segurança obra3 6 4 concernia também às cortes de
da pessoa e dos bens, adotaram-na e abando baronia.
naram a outra. É claro que quem fez essa obra compilou os
Convidar, quando não cumpre coagir; con costumes da região com as leis e os Estabeleci
duzir, quando não cumpre comandar, é a habi mentos de São Luís. Essa obra é muito precio
lidade suprema. A razão tem um império natu sa, porque contém os antigos. costumes de
ral; ela tem mesmo um império tirânico: Anjou e os Estabelecimentos de São Luís, tais
resiste-se-lhe, mas essa resistência é seu triun como eram então praticados, e, enfim, o que aí
fo; mais um pouco de tempo e ser-se-á forçado se praticava da antiga jurisprudência francesa.
a voltar a ela. A diferença entre essa obra e as de Défon
São Luís, para fazer com que não se apre taines e de Beaumanoir é que aí se fala em ter
ciasse a jurisprudência francesa, mandou tra mos de mandamento, como fazem os legisla
duzir os livros do direito romano, para que fos dores; e isso assim podia ser, porque era uma
sem conhecidos pelos homens de lei daqueles compilação de costumes escritos e de leis.
tempos. Défontaines, que é o primeiro3 63 Havia um vício nessa compilação; formava
autor de praxe que temos, fez um grande uso ela um código anfíbio, onde se misturava a
dessas leis romanas; sua obra é, de alguma jurisprudência francesa com a lei romana;
maneira, resultado da antiga jurisprudência aproximavam-se coisas que não tinham rela
francesa, das leis ou Estabelecimentos de São ção, e que frequentemente eram contraditórias.
Luís, e da lei romana. Beaumanoir fez pouco Bem sei que os tribunais franceses, de vassa
uso da lei romana; mas conciliou a antiga los ou de pares, os julgamentos sem apelação
jurisprudência francesa com os regulamentos para um outro tribunal, a maneira de pronun
de São Luís. ciar por estas palavras: Condeno3 6 5 ou Absol
É no espírito dessas duas obras, e sobretudo vo, estavam em conformidade com os julga
na de Défontaines, que algum bailio, creio, fez mentos populares dos romanos. Mas se fez
a obra de jurisprudência que chamamos os pouco uso dessa antiga jurisprudência; utiliza
Estabelecimentos. Diz-se, no título dessa obra, ra-se mais da que foi posteriormente introdu
que ela é feita segundo o uso de Paris e de zida pelos imperadores, que se empregou em
Orléans, e das cortes de baron-ia; e, no prólogo, toda parte nessa compilação, para regulamen
que ele é um tratado dos usos de todo o reino, tar, limitar, corrigir, ampliar a jurisprudência
de Anjou e da corte de baronia. É claro que francesa.
essa obra foi feita para Paris, Orléans e Anjou,
tal como as obras de Beaumanoir e de Défon
taines foram feitas para os condados de Cler- 3 6 4 Não há nada de tão vago como o título e o pró
logo desses Estabelecimentos, que foram, sem dúvi
mont e de Vermandois: e, como se afigura, por da, acrescentados depois. Primeiro são os usos de
Beaumanoir, que muitas leis de São Luís ha Paris e de Orléans, e da corte de baronia; depois são
os usos de todas as cortes leigas do reino, e do pre-
3 63 Ele mesmo diz em seu prólogo: Nus n’enprit bostado da França; depois são os usos de todo o
onques devant moi cette chose dont jaie exemplaire. reino, de Anjou e da corte de baronia. (N. do A.)
(N. do A.) 3 6 5 Estabelecimentos, liv. II, cap. XV. (N. do A.)
Capítulo XXXIX
As formas judiciárias introduzidas por São meiro objetivo era fazer com que a antiga
Luís caíram em desuso. Esse príncipe tivera jurisprudência caísse em desagrado, e o segun
em vista menos a coisa em si, isto é, a melhor do, criar nova jurisprudência. Mas, tendo apa
maneira de julgar, do que a melhor maneira de recido os inconvenientes daquela, viu-se logo
substituir a antiga prática de julgar. O pri suceder outra.
460 MONTESQUIEU
Destarte, as leis de São Luís deram mais gava as3*6 6 que ocorriam entre duques, condes,
meios para modificar a jurisprudência francesa barões, bispos, abades, ou entre o rei e seus
do que a modificaram: abriram novos tribu vassalos3 6 7, mais na relação que elas tinham
nais, ou antes, vias para aí chegar; e, quando com a ordem pública do que com a ordem
se pôde chegar facilmente àquele que tinha civil. Com o tempo foi-se obrigado a tornar o
autoridade geral, os julgamentos que, anterior parlamento sedentário, e a mantê-lo sempre
mente, não cumpriam senão os usos de uma reunido; enfim criaram-se muitos deles para
senhoria particular, criaram uma jurispru que bastassem a todas as questões.
dência universal. Obtiveram-se, pela força dos Logo que o parlamento se tornou um corpo
Estabelecimentos, decisões gerais, que falta fixo, começou-se a compilar seus arestos. Jean
vam inteiramente no reino; quando o edifício de Monluc, no reinado de Filipe, o Belo, fez a
foi construído, deixou-se cair o andaime. compilação chamada atualmente de registros
Desse modo, as leis estabelecidas por São Olim3 6S.
Luís tiveram efeitos que não se deveríam ter 3 6 6 Vede Dutillet, sobre a corte dos pares. Vede
esperado da obra-prima da legislação. Algu também La Roche-Flavin, liv. I, cap. III; Budée e
mas vezes são necessários muitos séculos para Paul-Émile. (N. do A.)
preparar as modificações; os acontecimentos 3 6 7 As outras questões eram decididas pelos tribu
nais comuns. (N. do A.)
amadurecem e eis as revoluções. 3 6 8 Vede a excelente obra do Sr. Presidente Hé-
O parlamento julgou, em última instância, nault [Nouvel Abregé Chronologique de l’Histoire
quase todas as questões do reino. Antes só jul de France], do ano de 1313. (N. do A.)
Capítulo XL
Mas como, ao se abandonarem as formas os crimes cometidos pelos leigos nos casos em
judiciárias estabelecidas, adotaram-se de prefe que não ofendiam a religião. Porque3 72 se, em
rência as do direito canônico às do direito razão das convenções e dos contratos, era pre
romano? É que se tinham sempre diante dos ciso recorrer à justiça leiga, as partes podiam
olhos os tribunais eclesiásticos, os quais obe voluntariamente instaurar processo diante dos
deciam às formas do direito canônico, e não se tribunais eclesiásticos, os quais, não tendo o
conhecia nenhum tribunal que seguisse as do direito de obrigar a justiça leiga a mandar exe
direito romano. Além disso, os limites da juris cutar a sentença, obrigavam a obedecê-la por
dição eclesiástica e da secular eram, naqueles meio da excomunhão3 73. Nessas circunstân
tempos, bem pouco conhecidos: havia pes cias, quando, nos tribunais leigos, se quis
soas3 69 que litigavam indiferentemente nos mudar de prática, adotou-se a dos eclesiás
dois tribunais3 70; havia matérias pelas quais ticos, porque era conhecida; e não a do direito
se litigava da mesma maneira. Parece3 71 que a romano, porque não era conhecida, pois, em
jurisdição leiga só conservou para si, privati matéria de prática, não se sabe senão aquiio
vamente, o julgamento das matérias feudais e que se pratica.
3 69 Beaum., cap. XI, pág. 58. (N. do A.) 3 72 Os tribunais clericais, sob pretexto do jura
3 70 As mulheres viúvas, os cruzados, aqueles que mento, estavam mesmo embargados, como se vê
conservavam os bens da Igreja, em razão destes pelo famoso acordo feito entre Filipe Augusto, os
bens. Ibid. (N. do A.) clérigos e os barões, o qual se encontra nas Ordena
3 71 Vede todo o capítulo XI de Beaumanoir. (N. ções de Laurière. (N. do A.)
do A.) 3 73 Beaum., cap. XI, pág. 60. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 461
Capítulo XLI
Estando o poder civil nas mãos de uma infi para fixar o que o defunto deveria ter dado
nidade de senhores, fora fácil para a jurisdição caso tivesse feito testamento. Não se podia
eclesiástica ampliar-se cada dia mais: porém, dormir junto na primeira noite de núpcias, nem
como a jurisdição eclesiástica enfraquecia a mesmo nas duas seguintes, sem ter comprado a
jurisdição dos senhores e contribuiu, por isso, permissão para tal; eram exatamente essas três
para dar forças à jurisdição real, esta restrin noites que cumpria escolher, porque, para as
giu pouco a pouco a jurisdição eclesiástica, demais, não se teria dado muito dinheiro. O
que recuou diante da primeira. O parlamento, parlamento corrigiu tudo isso. Encontra-se, no
que admitira em sua forma de proceder tudo o Glossário3 7 5 do Direito Francês de Ragueau,
que havia de bom e de útil na dos tribunais o aresto que ele emitiu contra o bispo de
eclesiásticos, incialmente apenas viu seus abu Amiens3 7 6.
sos; e, fortificando-se a jurisdição real todos os Volto ao começo de meu capítulo. Quando,
dias, esteve cada vez mais em condição de cor em um século, ou em um governo, vemos os
rigir esses mesmos abusos. Esses eram, efetiva diversos corpos do Estado procurarem aumen
mente, intoleráveis; e, sem os enumerar, tar sua autoridade, lograrem, uns sobre os
remontarei a Beaumanoir3 74, a Boutillier, às outros, certas vantagens, enganar-nos-íamos
ordenações dos nossos reis. Só falarei dos que frequentemente se olhássemos seus empreendi
interessavam mais diretamente à riqueza públi mentos como uma marca certa de sua corrup
ca. Conhecemos esses abusos pelos arestos que ção. Por uma infelicidade relacionada com a
os reformaram. A ignorância crassa os havia condição humana, os grandes homens modera
introduzido; uma espécie de inteligência apare dos são raros; e, como é sempre mais fácil se
ceu, e eles não existiram mais. Pode-se consi guir sua força do que detê-la, talvez na classe
derar, pelo silêncio do clero, que ele próprio ia das pessoas superiores seja mais fácil encon
à frente da correção; o que. considerada a trar pessoas extremamente virtuosas, do que
natureza do espírito humano, merece louvores. homens extremamente sábios.
Todo homem que morria sem deixar uma parte A alma sente tantos prazeres em dominar as
de seus bens à Igreja, o que se chamava morrer outras almas; mesmo os que amam o bem
inconfesso, era privado da comunhão e da amam tão fortemente a si mesmos, que não há
sepultura. Se morria sem fazer testamento, era ninguém que não seja bastante infeliz para ter
preciso que os parentes obtivessem do bispo ainda que desconfiar de suas boas intenções: e,
que nomeasse, juntamente com eles, árbitros na verdade, nossas ações contêm tantas coisas,
que é mil vezes mais fácil fazer o bem do que
fazê-lo bem feito.
3 7 4 Vede Boutillier, Somme Rurale, tít. IX, Que
pessoas não podem demandar em corte leiga; e
Beaumanoir, cap. XI, pág. 56; e os regulamentos de
Filipe Augusto a esse respeito; e o estabelecimento 3 ' 5 No verbete Executores testamentários. (N. do
de Filipe Augusto feito entre os clérigos, o rei e os A.)
barões. (N. do A.) 3 7 6 De 19 de março de 1409. (N. do A.)
462 MONTESQUIEU
Capítulo XLII
Tendo sido o Digesto de Justiniano reencon pies, os quais era transmitidos por tradição.
trado mais ou menos no ano de 1137, o direito Havia, no tempo de Beaumanoir382, duas
romano pareceu rbceber um segundo nasci maneiras diferentes de fazer justiça. Em alguns
mento. Estabeleceram-se na Itália escolas onde lugares, julgava-se por pares383 ; em outros,
o ensinavam: já se tinham o Código Justiniano julgava-se por bailios. Quando se seguia a pri
e as Novelas. Já disse que este direito ganhou meira forma, os pares julgavam conforme o
aí tal acolhimento que fez eclipsar a lei dos uso de sua jurisdição3 8 4; na segunda, eram os
lombardos. virtuosos ou os velhos que indicavam ao bailio
Doutores italianos trouxeram o direito de o mesmo uso. Tudo isso não requeria nenhuma
Justiniano para a França, onde só se conhe instrução, nenhuma capacidade, nenhum estu
cera3 7 7 o Código Teodosiano, porque apenas do. Mas, quando o código obscuro dos Estabe
depois do estabelecimento dos bárbaros nas lecimentos e outras obras de jurisprudência
Gálias é que as leis de Justiniano foram fei apareceram; quando o direito romano foi tra
tas3 78. Esse direito sofreu algumas oposições; duzido; quando começou a ser ensinado nas
escolas; quando certa arte do processo e certa
mas se manteve, apesar das excomunhões dós
arte da jurisprudência começaram a formar-se;
papas, que protegiam seus cânones3 79. São
quando se viu nascerem praxistas e juriscon-
Luís procurou dar-lhe fé pelas traduções que
sultos, os pares e os homens virtuosos não se
mandou fazer das obras de Justiniano, as quais achavam mais em condição de julgar; os pares
ainda temos manuscritas em nossas bibliote começaram a retirar-se dos tribunais do
cas; e já disse que se fez um grande uso delas senhor; os senhores não se mostraram muito
nos Estabelecimentos. Filipe, o Belo380, man inclinados a reuni-los, quanto mais que os
dou ensinar as leis de Justiniano, somente julgamentos, em vez de serem uma ação bri
como razão escrita, nas regiões da França lhante, agradável à nobreza, interessante para
governadas pelos costumes; e foram elas ado os guerreiros, não passavam de uma prática
tadas como lei nas regiões em que o direito ro que eles não entendiam nem queriam entender.
mano era a lei. A prática de julgar por pares tornou-se de
Disse mais acima que a maneira de proceder pouco uso38 5* , a de julgar por bailios am-
pelo duelo judiciário exigia, nos que julgavam,
bem pouca suficiência381; decidiam-se as 382 Coutume de Beauvoisis, cap. I, Do ofício dos
questões em cada lugar, conforme o uso de bailios. (N. do A)
cada lugar, e segundo alguns costumes sim- 383 Na comuna, os burgueses eram julgados por
outros burgueses, como os vassalos de feudo julga
vam-se entre si. Vede la Thaumassière, cap. XIX.
3 7 7 Seguia-se, na Itália, o código de Justiniano. É (N. do A.)
por isso que o Papa João VIII, em sua constituição 38 4 Também todas as petições começavam por
dada após o sínodo de Troyes, fala desse código, estas palavras: “Senhor juiz, é de uso que em vossa
não porque esse fosse conhecido na França, mas jurisdição etc.”, como transparece na fórmula rela
porque ele mesmo o conhecia; e sua constituição tada em Boutillier, Somme Rurale, liv. I, tít. XXL
era geral. (N. do A.) (N. do A.)
3 78 O código deste imperador foi publicado mais 3 8 5 A modificação foi insensível. Encontram-se
ou menos no ano de 530. (N. do A.) ainda os pares empregados no tempo de Boutillier,
3 7 9 Decretais, liv. V, tít. De privilegiis, cap. 28, que vivia em 1402, data de seu testamento, o qual
super specula. (N. do A.). cita esta fórmula no liv. I, tít. XXI: “Senhor Juiz,
380 Por uma charta do ano de 1312, em favor da em minha justiça alta, média e baixa, que tenho em
Universidade de Orléans, citada por Dutillet. (N. do tal lugar, corte, audiência, bailio, vassalos feudais e
A.) sargentos”. Mas apenas as matérias feudais eram
381 ... suficiência... no sentido de capacidade? julgadas por pares. Ibid. liv. I, tít. I, pág. 16. (N. do
cap., A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 463
pliou-se. Os bailios não julgavam38 6: faziam a direito civil concorreram igualmente para abo
instrução e pronunciavam o julgamento dos lir os pares.
virtuosos; mas, não estando estes mais em con Assim se perdeu o uso, constantemente
dições de julgar, os próprios bailios é que observado na monarquia, segundo o qual um
julgaram. juiz nunca julgava só, como se vê pelas leis sá-
Isto se fez tão mais facilmente na medida licas, pelas capitulares, e pelos primeiros escri
em que se tinha diante dos olhos a prática dos tores de praxe da terceira raça38 7. O abuso
juizes da igreja: o direito canônico e o novo cohtrário, que só ocorre nas justiças locais, foi
moderado, e de alguma maneira corrigido,
pela introdução em muitos lugares de um
38 6 Como se depreende da fórmula das cartas que representante do juiz, a quem este último con
o senhor lhes dava, citada por Boutillier, Somme sulta e que representa os antigos virtuosos;
Rurale, liv. I, tít. XIV. O que se prova ainda por pela obrigação em que estava o juiz de servir-
Beaumanoir, Coutume de Beauvoisis, cap. I, Do ofí se de dois graduados nos casos que pudessem
cio dos bailios. Eles só faziam o processo. “Le bailli
est temu en la présence des hommes à penre les merecer uma pena aflitiva; e enfim esse abuso
paroles de chaux qui plaident, et doit demander as tornou-se nulo pela extrema facilidade das
parties se ils veulent oir droit selon les raisons que apelações.
ils ont dites; et se il dient, Sire, oil, le bailli doit
contraindre les hommes que ilsfacent le jugement. ’’
Vede também os Estabelecimentos de São Luís, liv. 3 8 7 Beaum., cap. LXVII, pág. 336; e cap. LXI,
I, cap. C V; e liv. II, cap. XV. “Lijuge, si ne doit pas págs. 315 e 316; os Estabelecimentos, liv. II, cap.
faire le jugement.” (N. do A.) XV. (N. do A.)
Capítulo XLIII
Deste modo, não foi uma lei que proibiu os criação; mas ela não diz senão o que diz. Além
senhores de manterem eles próprios suas cor do mais, fixa o que prescreve pelas razões que
tes; não foi uma lei que aboliu as funções que apresenta para isso. “É para que”, afirma-se,
seus pares aí desempenhavam; não houve lei “os bailios possam ser punidos por suas
que ordenasse criar os bailios; não foi por uma prevaricações3 89 que cumpre que sejam eles
lei que eles tiveram o direito de julgar. Tudo admitidos na ordem dos leigos.” Conhecemos
isso se fez pouco a pouco, e por força da coisa. os privilégios dos eclesiásticos naqueles tem
O conhecimento do direito romano, os arestos pos.
dos tribunais, as compilações dos costumes Não é preciso crer que os direitos que os
recentemente escritos, tudo demandava um es senhores usufruíam outrora, e que hoje não
tudo do qual os nobres e o povo iletrado não mais usufruem, lhes foram tirados como usur-
eram capazes. pações: muitos desses direitos foram perdidos
por negligência; e outros abandonados porque,
A única ordenação que temos sobre este tendo-se introduzido diversas modificações
assunto388 é a que obriga os senhores a esco nas cortes em müitos séculos, não podiam sub
lherem seus bailios na ordem dos leigos. É sistir com essas modificações.
erradamente que a olharam como a lei de sua
3 89 Ut, si ibi delinquant, superiores sui possint
3 88 Ela é do ano de 1287. (N. do A.) animadvertere in eosdem. (N. do A.)
464 MONTESQUIEU
Capítulo XLIV
Capítulo XLV
A França era regida, como disse, pelos cos ria dos anciãos; mas se formaram pouco a
tumes não escritos; e os usos particulares de pouco leis e costumes escritos.
cada senhoria formavam o direito civil. Cada 1. ° No começo da terceira raça3 9 4 outorga
senhorio tinha seu direito civil, como diz ram os reis chartas particulares, e mesmo algu
, e um direito tão particular,
Beaumafioir392393 mas gerais, da maneira como expliquei acima:
que este autor, que deve ser considerado à luz tais são os Estabelecimentos de Filipe Augusto
daqueles tempos, e uma grande luz, diz não e os que se devem a São Luís. Do mesmo
crer que em todo o reino houvesse dois senho modo, os grandes vassalos, de acordo com os
rios que fossem governados inteiramente pela senhores que deles dependiam, outorgaram,
mesma lei. nas assentadas de seus ducados ou condados,
Essa prodigiosa diversidade tinha uma pri certas chartas ou Estabelecimentos, conforme
meira origem e também uma segunda. Pela pri as circunstâncias; tais foram a assentada de
meira, pode-se lembrar o que afirmei acima, no Godofredo, conde da Bretanha, sobre a parti
capitulo dos costumes locais3 93 ; e, quanto à lha dos nobres; os costumes da Normandia,
segunda, encontramo-la nos diversos aconteci concedidos pelo Duque Raul; os costumes da
mentos dos duelos judiciários; devendo casos Champanha, outorgados pelo Rei Tibaldo; as
continuamente fortuitos introduzir natural leis de Simão, conde de Montfort, e outras.
mente novos usos. Isso produziu algumas leis escritas, e mais ge
Esses costumes eram conservados na memó rais mesmo do que as que existiam.
2. ° No começo da terceira raça, quase todo
392 Prólogo sobre o Coutume de Beauvoisis. (N.do
A.) 39 4 Vede a Recueil des Ordonnances, de Laurière.
393 Cap. XII. (N.do A.) (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 465
o baixo povo era servo. Muitas razões obriga costumes adquiriram três características:
ram os reis e os senhores a libertá-los. foram escritos, foram mais gerais, receberam o
Libertando seus servos, os senhores doa- selo da autoridade real.
vam-lhes certos bens; foi preciso dar-lhes leis Tendo sido novamente redigidos, muitos
civis para regulamentar a disposição destes desses costumes foram alvo de muitas modifi
bens. Libertando seus servos, os senhores cações, quer suprimindo tudo o que não era
privavam-se de seus bens; foi preciso então compatível com a jurisprudência atual, quer
regulamentar os direitos que os senhores se acrescentando muitas coisas extraídas dessa
reservavam para o equivalente de seus bens. jurisprudência.
Ambas as coisas foram regulamentadas pelas
Embora se considere, entre nós, que o direi
cartas de alforria; estas compuseram parte de
to consuetudinário contém uma espécie de
nossos costumes, que se encontra redigida por
oposição ao direito romano, de maneira que
escrito.
esses dois direitos dividem os territórios, é ver
° No reinado de São Luís e nos seguintes,
3.
dade, entretanto, que muitas disposições do
praxistas hábeis, tais como Défontaines, Beau
manoir e outros, redigiram por escrito os cos direito romano entraram em nossos costumes,
tumes de seus bailiatos. Seu objetivo era antes sobretudo quando se efetuaram novas reda
estabelecer uma praxe judiciária do que os ções, em tempos não muito longínquos dos
usos da época sobre a disposição dos bens. nossos, quando esse direito era o objeto dos
Mas aí se encontra de tudo; e, embora esses conhecimentos de todos os que se destinavam
autores particulares só tivessem autoridade aos empregos civis; em tempos em que nin
pela verdade e publicidade das coisas que guém se vangloriava de ignorar o que se deve
diziam, não se pode duvidar que tenham sido saber, e de saber o que se deve ignorar; quando
muito úteis para o renascimento do nosso a aptidão do espírito servia mais para aprender
direito francês. Tal era, naqueles tempos, a própria profissão do que para exercê-la; e
nosso direito consuetudinário escrito. quando os divertimentos contínuos nào eram
Eis a grande época. Carlos VII e seus suces sequer o atributo das mulheres.
sores mandaram redigir por escrito, em todo o Teria sido necessário que me estendesse
reino, os diversos costumes locais, e prescre ainda mais no final deste livro; e que, ao entrar
veram as formalidades que deviam ser obser em maiores pormenores, tivesse seguido todas
vadas em sua redação. Ora, como essa redação as modificações insensíveis que, desde a aber
foi feita por províncias, e como, de cada senho tura das apelações, formaram o grande corpo
rio, vinha-se depositar na assembléia geral da da jurisprudência francesa. Mas, assim, teria
província os usos escritos ou não escritos de inserido uma grande obra em outra grande
cada lugar, procurou-se tornar os costumes obra. Sou como aquele antiquário39 6 que par
mais gerais, tanto mais quanto isso pôde ser tiu de seu país, chegou ao Egito, lançou uma
feito sem ferir os interesses dos particulares, olhadela sobre as pirâmides e voltou.
que foram preservados3*9 5. Destarte, nossos
39 6 No Speclateur Anglais*. (N. do A.)*
3 9 5 isto se fez quando da redação dos costumes de * ... antiquário... no sentido em que se entendia
Berry e de Paris. Vede La Thaumassière, cap. III. então, de curioso de coisas antigas, de amador de
(N. do A.) antiguidades.
LIVRO VIGÉSIMO NONO
DA MANEIRA DE COMPOR AS LEIS
Capítulo I
Do espírito do legislador
Eu o digo, e parece-me que só faço esta obra cido: as questões não teriam fim; a proprie
para prová-lo: o espírito de moderação deve dade dos bens ficaria incerta; dar-se-ia, sem
ser o do legislador; o bem político, como o exame, a uma das partes o bem da outra ou se
bem moral, encontra-se sempre entre dois limi
arruinariam todas as duas de tanto examinar.
tes. Eis o exemplo disso.
As formalidades da justiça são necessárias Os cidadãos perderíam sua liberdade e segu
para a liberdade. Mas o número delas poderia rança; os acusadores não mais teriam meios
ser tão grande, que iria de encontro à finali para convencer, nem os acusados meios para
dade das mesmas leis que as teriam estabele justificar-se.
Capítulo II
Cecílio, em Aulo Gélio39 7, discorrendo res? O bem será a violência, e todas as rela
sobre a Lei das Doze Tábuas, que permitia ao ções entre as coisas serão destruídas?
credor esquartejar o devedor insolvente, justifi
ca-a por sua própria atrocidade, que398 impe 3 98 Afirma Cecílio que nunca viu nem leu que esta
dia tomar emprestado além das possibilidades. pena tenha sido aplicada; mas parece que nunca foi
As leis mais cruéis serão portanto as melho- estabelecida. A opinião de alguns jurisconsultos, de
que a Lei das Doze Tábuas só falava da divisão do
valor do devedor vendido, é muito verossímil. (N.
3 9 7 Liv. XX, cap. I. (N.do A.) do A.)
Capítulo III
A lei de Sólon, que declarava infames todos pusessem ao abrigo; e que por isso as coisas
os que, numa sedição, nenhum partido toma não fossem levadas ao extremo.
vam, pareceu bastante extraordinária: mas Nas sedições que ocorriam nesses pequenos
faz-se mister atentar para as circunstâncias em Estados, a maior parte da cidade participava
que a Grécia se encontrava então. Estava ela
dividida em três pequenos Estados: era de da querela, ou a provocava. Em nossas gran
temer que, numa república agitada pelas des monarquias, os partidos são formados por
dissensões civis, pessoas mais prudentes se poucas pessoas, e o povo desejaria viver na
470 MONTESQUIEU
inação. Nesse caso, é natural atrair os sedicio- que a fermentação de um licor pode ser detida
sos à maioria dos cidadãos e não a maioria por uma só gota de outro399.
dos cidadãos aos sediciosos; no outro, é preci
so fazer com que a minoria de pessoas pruden 3 99 Vê-se aqui com que sagacidade o moralista
tes e tranquilas adira aos sediciosos: é assim intervém na política pura.
Capítulo IV
Há leis que o legislador conheceu tão pouco, que são contrárias ao próprio objetivo que ele se
propôs. As que estabeleceram entre os franceses que, quando um dos dois pretendentes a um
benefício morre, o benefício fica para o sobrevivente, procuraram sem dúvida extinguir as ques
tões. Mas daí resulta um efeito contrário; vimos os eclesiásticos atacarem-se e baterem-se, como
dogues ingleses, até a morte.
Capítulo V
A lei a que me vou referir encontra-se no to das gentes, entre os gregos, cumpria acostu
juramento que nos foi conservado por Esqui má-los a pensar que era coisa atroz destruir
no400. “Juro que nunca destruirei uma cidade uma cidade grega: portanto, não deviam nem
dos Anfictiões401, e não desviarei de modo mesmo destruir os destruidores. A lei de Anfic
algum suas águas correntes: se algum povo tião era justa, mas não prudente. Isto se prova
ousar fazer alguma coisa de semelhante, decla- pelo próprio abuso que dela se fez. Filipe não
rar-lhe-ei guerra e destruirei suas cidade.” O se deu o poder de destruir as cidades, a pre
último artigo dessa lei, que parece confirmar o texto de que elas tinham violado as leis dos
primeiro, na realidade lhe é contrário. Anfic- gregos? Anfictião poderia infligir outras
tião quer que nunca se destruam as cidades penas: ordenar, por exemplo, que certo número
gregas, e sua lei abre a porta para a destruição de magistrados da cidade destruidora, ou os
dessas cidades. Para estabelecer um bom direi chefes do exército violador, fossem punidos
com a morte; que o povo destruidor cessasse,
por algum tempo, de gozar dos privilégios dos
400 Defalsa legatione. (N. do A.)
401 Sabe-se que se chama de anfictionia, do nome gregos; que pagasse uma multa até a restaura
legendário de Anfictião, filho de Deucalião, uma ção da cidade. A lei devia sobretudo versar
confederação de cidades ou de povos. sobre a reparação do dano.
Capítulo VI
que, obrigando 'os ricos a emprestar aos correspondia a um roubo praticado com
pobres, colocava esses em situação de satisfa violência. César fez sua lei para que o dinheiro
zer os ricos. Lei semelhante, estabelecida na circulasse entre o povo; o ministro da França
França, na época do Sistema403, foi muito fez a sua para que o dinheiro fosse depositado
funesta: é que a circunstância em que fora feita numa só mão. O primeiro deu em troca do
era terrível. Depois de suprimir todos os meios dinheiro bens fundiários ou hipotecas sobre
de empregar o dinheiro, suprimiu-se até o particulares; o segundo propôs, em troca do
recurso de guardá-lo na própria casa; o que dinheiro, títulos que não tinham nem poderíam
ter qualquer valor por sua natureza, já que a
403 . . .o Sistema. . . o “sistema” de Law. lei obrigava a aceitá-los.
C apítulo VII
Capítulo VIII
Aceitou-se, na França, a maioria das leis pelo direito dos pontífices. Isso fez com que os
dos romanos sobre as substituições; mas estas romanos considerassem desonra morrer sem
têm aqui motivo completamente diferente do herdeiro, tomassem seus escravos por herdei
que entre os romanos. Entre esses, a herança ros e inventassem as substituições. A substitui
estava ligada a certos40 6 sacrifícios que deve ção vulgar, que foi a primeira a ser inventada,
ríam ser feitos, pelo herdeiro, regulamentados que só ocorria nos casos em que o herdeiro
instituído não aceitasse a herança, é uma gran
de prova disso: nunca tinha por finalidade per
40 6 Quando a hereditariedade estava excessiva petuar a herança numa família do mesmo
mente carregada, eludia-se o direito dos pontífices
por meio de certas vendas: de onde veio a expressão nome, mas encontrar alguém que aceitasse a
sine sacris hereditas. (N. do A.) herança.
472 MONTESQUIEU
Capítulo IX
Um homem, diz Platão40 7, que matou quem No tempo dos primeiros imperadores, as
lhe está estreitamente ligado, isto é, ele pró grandes famílias de Roma foram incessante
prio, não por ordem do magistrado, nem para mente exterminadas por julgamentos. Introdu
evitar a ignomínia, mas por fraqueza, será ziu-se o costume de prevenir a condenação por
punido. A lei romana punia essa ação, quando morte voluntária. Achavam nisso grande van
ela não era praticada por fraqueza de alma, tagem. Obtinha-se408 a honra da sepultura, e
por tédio da vida, por incapacidade de sofrer a os testamentos eram executados; decorria isto
dor, mas pelo desespero por algum crime. A lei do fato de não haver lei civil em Roma contra
romana absolvia no caso em que a grega con os que se matavam a si mesmos. Mas, quando
denava, e condenava no caso em que a outra os imperadores se tornaram tão avaros quanto
absolvia. tinham sido cruéis, não deixaram mais àqueles
A lei de Platão estava baseada nas institui de que queriam desfazer-se o meio de conser
ções lacedemônias, em que as ordens do var seus bens, e declararam crime tirar a vida a
magistrado eram totalmente absolutas, em que si próprio pelos remorsos de outro crime.
a ignomínia era a maior das desgraças, e a fra O que afirmo dos motivos dos imperadores
queza o maior dos crimes. A lei romana aban é tão verdadeiro, que estes consentiram que os
donava todas essas belas idéias; não passava bens409 dos que se tinham suicidado não fos
de uma lei fiscal. sem confiscados, quando o crime pelo qual se
Na época da república, não havia lei em tinham suicidado não sujeitasse ao confisco.
Roma que punisse os que matavam a si pró
prios: esta ação, entre os historiadores, é sem 408 Eorum qui de se statuebant, humabantur cor-
pre bem considerada, e nunca se vê neles puni pora, manebant testamento, pretium festinandi. Tá
ção contra os que a cometeram. cito, Anais, liv. VI, cap. XXIX. (N. do A.)
409 Transcrito do Imperador Pio, na lei 3, §§ 1 e 2,
ff. De bonis eorum qui ante sententiam mortem sibi
40 7 Liv. IX, Das Leis. (N. do A.) consciverunt. (N. do A.)
Capítulo X
Capítulo XI
Na França, a pena contra as falsas testemu munhas; pelo contrário, a razão requer que as
nhas é capital; na Inglaterra, não o é. Para jul intimide: só escuta as testemunhas de uma
gar qual das duas leis é a melhor, faz-se mister das41 5 partes; são estas que apresentam a
acrescentar: na França, a questão de crimino parte pública; e o destino do acusado depende
sos é praticada; na Inglaterra não o é; e dizer de suas testemunhas. Mas, na Inglaterra, são
ainda: na França, o acusado não apresenta aceitas as testemunhas de ambas as partes, e a
suas testemunhas, e é raríssimo que se admita
o que chamam fatos justificativos; na Ingla questão é, por assim dizer, discutida entre elas.
terra, são aceitas as testemunhas de ambas as O falso testemunho pode, portanto, ser aí
partes. As três leis francesas formam um siste menos perigoso; o acusado tem um recurso
ma muito coeso e muito consequente; as três contra o falso testemunho, enquanto a lei fran
leis inglesas formam outro sistema que não o é cesa não o concede. Destarte, para julgar qual
menos. A lei da Inglaterra, que não conhece dessas leis é a mais conforme à razão, não
questão contra os criminosos, só pode alimen cumpre comparar cada uma dessas leis com as
tar pouca esperança de arrancar do acusado a outras; é preciso tomá-las todas em conjunto, e
confissão de seu crime; convoca, portanto, de
compará-las todas em conjunto 41 6.
todos os lados, testemunhas estranhas, e não
ousa desencorajá-las pelo temor de uma pena
capital. A lei francesa, que tem um recurso a 41 5 Pela antiga jurisprudência francesa, as teste
munhas eram ouvidas pelas duas partes. Assim se
*41 4, não receia intimidar tanto as teste
mais414 via, nos Estabelecimentos de São Luís, liv. I, cap.
VII, que a pena contra o falso testemunho em juízo
414 ... um recurso a mais... a tortura, esta ques era pecuniária. (N. do A.)
tão mesma. 41 6 Remontar ao cap. III do livro XVI.
Capítulo XII
As leis gregas e romanas puniam tanto o roubo pode muitas vezes recebê-lo inocente
receptador41 7 do roubo como o ladrão: a lei mente; o que rouba é sempre culpado: um im
francesa faz o mesmo. Aquelas eram razoá pede a convicção de um crime já cometido, o
veis, estas não o são. Entre os gregos e os outro comete esse crime; tudo é passivo em
romanos, sendo o ladrão condenado a uma um, há uma ação no outro; cumpre que o
pena pecuniária, era necessário punir o recep ladrão supere muitos obstáculos, e que sua
tador com a mesma pena; porque todo homem alma se obstine por mais tempo contra as leis.
que contribui, de alguma maneira, para que Os jurisconsultos foram mais longe: encara
haja um dano deve repará-lo. Mas, entre nós, ram o receptador como mais odioso que o
sendo capital a pena por roubo, não se pôde, ladrão418, porque sem eles41 9, dizem, o roubo
sem exagerar as coisas, punir o receptador da não poderia ser escondido por muito tempo.
mesma maneira que o ladrão. Quem recebe o
418 Lei I, ff. De receptatoribus. (N. do A.)
41 7 Lei I, ff. De receptatoribus. (N. do A.) 419 ... sem eles, os receptadores.
474 MONTESQUIEU
Isso, ainda uma vez, podia ser bom quando a ção de repará-lo; mas, tornada a pena capital,
pena era pecuniária; tratava-se de um dano, e seria necessário pautar-se por outros princí
o receptador comumente estava mais em situa pios.
Capítulo XIII
Quando o ladrão era surpreendido com a romanos, grande diferença entre o roubo mani
coisa roubada, antes que houvesse levado para festo e o roubo não manifesto422.
o lugar em que resolvera escondê-la, os roma Entre os romanos, o escravo que roubava
nos denominavam isso de roubo manifesto. era precipitado da rocha Tarpéia. No caso,
não se tratava das instituições lacedemônias;
Quando o ladrão só era descoberto posterior
as leis de Licurgo sobre o roubo não se desti
mente, tratava-se de roubo não manifesto.
navam aos escravos; segui-las era afastar-se
A Lei das Doze Tábuas ordenava que o delas nesse ponto.
ladrão manifesto fosse vergastado e reduzido à Em Roma, quando um impúbere era sur
servidão se era púbere; ou somente vergastado preendido no roubo, o pretor mandava vergas-
se era impúbere: condenava o ladrão não tá-lo a seu bel-prazer, como se fazia na Lace-
manifesto apenas ao pagamento do dobro da demônia. Tudo isso vinha de mais longe. Os
coisa roubada. lacedemônios haviam copiado esses usos dos
Quando a lei Pórcia aboliu a prática de ver cretenses; e Platão423, desejando provar que
gastar os cidadãos e de reduzi-los à servidão, o as instituições dos cretenses eram feitas para a
guerra, cita esta: “A faculdade de suportar a
ladrão manifesto foi condenado ao quádru dor nos duelos e nos furtos que obrigam a
plo420 e continuaram a punir com o dobro o
esconder-se”.
ladrão não manifesto.
Como as leis civis dependem das leis políti
Parece estranho que essas leis estabele cas, pois são feitas para uma sociedade, seria
cessem tal diferença na qualidade desses dois conveniente que, quando se quisesse trans
crimes, e na pena que infligiam; de fato: que o portar uma lei civil de uma nação para outra,
ladrão fosse surpreendido antes ou depois de se examinasse antes se ambas têm as mesmas
haver levado o roubo ao seu destino, essa instituições e o mesmo direito político.
circunstância em nada alterava a natureza do Assim, quando as leis sobre o roubo passa
crime. Parece-me indubitável que toda a teoria, ram dos cretenses para os lacedemônios, como
das leis romanas421 sobre o roubo foi extraída passaram juntamente com o governo e a pró
pria constituição, foram tão judiciosas num
das instituições lacedemônias. Licurgo, dese
jando dar a seus cidadãos habilidade, astúcia e
desses povos quanto o foram no outro. Mas
quando foram levadas da Lacedemônia para
atividade, quis que as crianças fossem exerci Roma, como não encontraram a mesma
tadas no furto, e que fossem rudemente chico- constituição, foram aí sempre estranhas, e não
teadas as que se deixassem surpreender: isso tiveram qualquer ligação com as outras leis
estabeleceu entre os gregos, e a seguir entre os civis dos romanos.
420 Vede o que diz Favorino sobre Aulo Gélio, liv. 422 Confrontai o que diz Plutarco, Vida de Licur
XX, cap. I. (N. do A.) go, com as leis do Digesto, no título Defurtis; e as
421 A erudição moderna não admite mais esta Institutas, liv. IV, tít. I, §§ 1, 2 e 3. (N. do A.)
certeza. 423 Das Leis, liv. I. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 475
Capítulo XIV
Uma lei de Atenas queria que, quando a ci As leis 42 5 romanas queriam que os médicos
dade estava sitiada, todas as pessoas inúteis pudessem ser punidos por negligência ou por
fossem mortas42*4. Era uma abominável lei imperícia. Neste caso, condenavam à deporta
política, consequente de um abominável direito ção o médico de condição algo elevada, e à
das gentes. Entre os gregos, os habitantes de morte o de condição mais baixa. Pelas nossas
uma cidade conquistada perdiam a liberdade leis isso se dá de outra forma. As leis de Roma
civil e eram vendidos como escravos; a toma não tinham sido feitas nas mesmas circuns
da de uma cidade acarretava sua inteira tâncias que as nossas; em Roma, ingeria-se o
destruição; e é a origem não somente dessas medicamento que se quisesse; mas, entre nós,
proibições obstinadas e dessas ações desnatu- os médicos são obrigados a fazer estudos e a
radas, mas ainda dessas leis atrozes que algu receber certos graus de profissão; eles são por
mas vezes foram feitas. tanto tidos» como conhecedores de sua arte.
42 4 Inutilis aetas occidatur, Sirian., em Hermog. 425 a lei Cornélia, De sicariis; Institutos, liv. IV,
(N. do A.) tít. III, De lege Aquilia, § 7. (N. do A.)
Capítulo XV
A Lei das Doze Tábuas permitia matar o inocência que, no momento da ação, chama
ladrão noturno42 6, tanto quanto o ladrão diur testemunhas, chama juizes. É preciso que o
no que, sendo perseguido, defendia-se; mas ela povo tome conhecimento da ação, e que tome
queria que aquele que matava o ladrão gritasse conhecimento dela no momento em que ela foi
e chamasse os cidadãos42 7; e isso é algo que
as leis que permitem fazer justiça com as pró executada; em um tempo em que tudo fala: o
prias mãos devem sempre exigir. É o grito da ar, o rosto, as paixões, o silêncio, e em que
cada palavra condena ou justifica. Uma lei que
42 6 Vede a lei 4, ff. ad leg. Aquil. (N. do A.) pode tornar-se tão contrária à segurança e à
42 7 Ibid. Vede o decreto de Tassilão, acrescentado liberdade dos cidadãos deve ser executada na
à lei dos bávaros; De copularibus legibus, art. 4. (N.
do A.) presença dos cidadãos.
Capítulo XVI
Os que têm um gênio suficientemente amplo devem tomar certas precauções sobre a manei-
para poder dar leis à sua nação ou a outra ra como formá-las.
476 MONTESQUIEU
O estilo deve ser conciso. As Leis das Doze palavras: “E aqueles que os juizes reais sempre
Tábuas são um modelo de precisão; as crian julgaram”; o que faz voltar ao arbitrário de
ças as aprendiam de cor428. As Novelas de que se acabava de sair.
Justiniano são tão difusas, que foi preciso Diz Carlos VII43 4 ter notícia de que as par
abreviá-las429. tes apelam três, quatro e seis meses depois do
O estilo das leis deve ser simples; a expres julgamento, contra o costume do reino em país
são direta é sempre melhor compreendida do consuetudinário: ordena que se apelará incon-
que a expressão meditada. Não há majestade tinenti, a menos que tenha havido fraude ou
nas leis do baixo império; nelas os príncipes dolo do procurador43 5, ou que haja grande e
falam como retores. Quando o estilo das leis é evidente causa para dispensar o apelante. O
empolado, olhamo-las apenas como -obra de fim desta lei destrói o começo; e ela o destrói
ostentação. tão bem, que depois disso apelaram durante
É essencial que as palavras das leis desper trinta anos43 6.
A lei dos lombardos não permite que uma
tem em todos os homens as mesmas idéias. O
mulher que haja tomado hábito de religiosa,
Cardeal de Richelieu concordava que se podia
acusar um ministro diante do rei430, mas que embora não seja ainda consagrada, possa
casar-se43 7; “porque”, diz ela, “se um esposo
ria que se punisse aquele que quisesse provar
coisas que não fossem consideráveis; o que
que se comprometeu com uma mulher somente
por um anel não pode, sem crime, desposar
devia impedir toda gente de dizer alguma ver
outra, com mais forte razão, a esposa de Deus
dade contra ele, pois uma coisa considerável é
ou da Santa Virgem...” Digo que, nas leis, é
inteiramente relativa, e o que é considerável
preciso raciocinar da realidade para a realida
para um não é para outro.
de, e não da realidade para a abstração, ou da
A lei de Honório punia com a morte aquele abstração para a realidade.
que comprava como servo um liberto, ou que
tivesse querido inquietá-lo 431. Não era preciso Uma lei de Constantino438 quer que só o
servir-se de uma expressão tão vaga: a inquie testemunho do bispo baste, sem ouvir outras
tude que se causa a um homem depende intei testemunhas. Este príncipe escolhia um carhi-
ramente do grau de sua sensibilidade. nho bem curto; julgava as questões pelas pes
Quando a lei deve estabelecer alguma coisa, soas, e as pessoas pelas dignidades.
é preciso, tanto quanto possível, evitar fazê-lo As leis não devem ser sutis; elas são feitas
a preço de dinheiro. Mil causas mudam.o valor para pessoas de entendimento medíocre: não
da moeda; e com a mesma denominação não são uma obra de lógica, mas a razão simples
se tem mais a mesma coisa. Sabe-se a história de um pai de família.
desse impertinente 4 3 2 de Roma que dava bofe Quando, numa lei, as exceções, limitações,
tadas em todas as pessoas que encontrava, e modificações não são necessárias, mais vale
lhes fazia apresentar os vinte e cinco soidos da não colocá-las. Semelhantes pormenores inspi
Lei das Doze Tábuas. ram novos pormenores.
Quando, numa lei, foram fixadas as idéias É preciso não fazer modificação numa lei
das coisas, não é preciso recorrer a expressões sem razão suficiente. Justiniano ordenou que
vagas. Na ordenação criminal de Luís um marido poderia ser repudiado, sem que a
XIV433, após ter feito a enumeração exata mulher perdesse seu dote, se durante dois anos
desses casos reais, são acrescentadas estas ele não conseguira consumar o casamento439.
Modificou sua lei, e deu três anos ao pobre
428 Ut carmen necessarium. Cícero, De legibus,
liv. II, cap. XXIII. (N. do A.) 43 4 Em sua ordenação de Montel-les-Tours, do
429 É a obra de Irnério. (N. do A.) ano de 1453. (N. do A.)
430 Testament Politique. (N. do A.) 43 6 Podia-se punir o procurador, sem que fosse
431 Aut qualibet manumissione donatum inquie- necessário perturbar a ordem pública^(N. do A.)
tare voluerit. Apêndice ao código Teodosiano, no 43 6 A ordenação de 1667 determinou os regula
tomo I das obras do Padre Sirmond, pág. 737. (N. mentos a esse respeito. (N. do A.)
do A.) 43 7 Liv. II, tít. XXXVII. (N. do A.)
432 Aulo Gélio, liv. XX, cap. I. (N. do A.)
433 (De 1670.) Encontram-se no processo verbal 438 No apêndice do Padre Sirmond ao código
desta ordenação os motivos que se tinham para isso. Teodosiano, tomo I. (N. do A.)
(N. do A.) 439 Lei I, código De repudiis. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 477
infeliz4 4°. Mas, em semelhante caso, dois anos infligia penas ao marido que conservava sua
valem três, e três não valem mais que dois. mulher depois do adultério, a menos que ele
Quando se esforça tanto para dar razão a não tivesse sido levado a isso pelo temor da
uma lei, é preciso que esta razão seja digna ocorrência de um processo, ou por negligência
dela. Uma lei romana decide que um cego não de sua própria vergonha; e é a presunção do
pode pleitear, porque não vê os ornatos da .homem. Era preciso que o juiz presumisse os
magistratura 4 41. Só propositadamente se po motivos pela conduta do marido, e que ele se
dería apresentar uma razão tão má, quando se decidisse por umá maneira de pensar muito
apresentavam tantas boas para isso. obscura. Quando o juiz presume, os julga
O jurisconsulto Paulo diz que a criança mentos se tornam arbitrários; quando a lei pre
nasce perfeita no sétimo mês, e que a razão dos sume, dá ao juiz uma regra fixa.
números de Pitágoras parece comprová-lo 4 42.
A lei de Platão4 4 7, como disse, queria que
É singular que se julguem essas coisas pela
se punisse aquele que se matava, não para evi
razão dos números de Pitágoras.
tar a ignomínia, mas por fraqueza. Esta lei era
Alguns jurisconsultos franceses disseram
viciosa, pois, sendo este o único caso em que
que, quando o rei adquiria alguma região, as
não se podia arrancar ao criminoso a confis
igrejas, aí, ficavam sujeitas ao direito de rega são do motivo que o levara a agir, queria que o
lia, porque a coroa do rei é redonda4 43. Não
juiz decidisse sobre estes motivos.
discutirei aqui os direitos do rei e se, neste
caso, a razão da lei civil ou eclesiástica deve Como as leis inúteis enfraquecem as leis
ceder à razão da lei políticá; mas direi que necessárias, as que podem ser eludidas enfra
direitos tão respeitáveis devem ser defendidos quecem a legislação. Uma lei deve ter seu efei
com sentenças graves. Quem nunca viu apoia- to, e é preciso não permitir que seja derrogada
rem-se, sobre a imagem do signo de uma digni por uma convenção particular.
dade, os direitos reais desta dignidade? A lei Falcídia ordenava, entre os romanos,
Dávila4 4 4 diz que Carlos IX foi declarado que o herdeiro tivesse sempre a quarta parte da
maior no parlamento de Ruão, mal entrara nos herança: outra lei4 48 permite ao testador proi
catorze anos, porque as leis querem que se bir o herdeiro de reter esta quarta parte: é se
conte o tempo momento por momento, quando divertir com as leis. A lei Falcídia tornava-se
se trata da restituição e da administração dos inúfil: porque, se o testador queria favorecer
bens do pupilo: enquanto que considera o ano seu herdeiro, este não precisava da lei Falcí
começado como completo, quando se trata de dia; e, se ele não queria favorecê-lo, proibia-o
adquirir honras. Não procuro censurar uma de usar a lei Falcídia.
disposição que não parece ter tido inconve É preciso atentar para que as leis sejam con
nientes até aqui; direi somente que a razão ale cebidas de maneira que não entrem em choque
gada pelo chanceler do Asilo4 4 5 não era a com a natureza das coisas. Na proscrição do
verdadeira: o governo dos povos está longe de Príncipe de Orange, Filipe II prometeu dar
ser apenas uma honra. àquele que o matasse, ou aos herdeiros desse,
Em caso de presunção, a da lei vale mais vinte e cinco mil escudos e título de nobreza; e
que a do homem. A lei francesa considera isto com palavra de rei e como servidor de
fraudulentos todos os atos praticados por um Deus. A nobreza prometida por uma tal ação 1
negociante nos dez dias que precederam sua Tal ação ordenada na qualidade de servidor de
falência: é a presunção da lei4 4 6. A lei romana Deus! Tudo isso confunde as idéias de honra,
de moral e de religião.
4 40 Vede a autêntica sed hodie, no código "De repu- É raro que seja necessário proibir uma coisa
diis. (N. do A.)
4 41 Lei I, ff. De postulando. (N. do A.) que não é má, sob pretexto de alguma perfei
4 42 Em suas Sentenças, liv. IV, tít. IX. (N. do A.) ção que se imagina4 49
4 43 Este péssimo jogo de palavras é atribuído a É preciso nas leis uma certa candura. Feitas
Harlay, arcebispo de Paris que teria sustentado para punir a maldade dos homens, elas mes-
“que o direito de regalia era vinculado à redondeza
da coroa fechada”.
4 44 Delia Guerra Civile di Francia, pág. 96. (N. do 4 4 7 Liv. IX, Das Leis. (N. do A.)
A.) 448 É a autêntica: Sed cum testator. (N. do A.)
4 4 5 O Chanceler do Asilo, Dávila, ibid. (N. do A.) 4 49 Quiseram ver aí uma alusão ao descrédito vin
4 4 6 É de 18 de novembro de 1702. (N. dó A.) culado às segundas núpcias.
478 MONTESQUIEU
mas devem ter a maior inocência. Pode-se ver porco, contanto que eles não comessem a pró
na lei4 50 dos visigodos essa petição ridícula pria carne de porco. Era uma grande cruelda
pela qual se obrigou os judeus a comerem de: eram submetidos a uma lei contrária à
todas as coisas preparadas com carne de deles; não se deixava que conservassem sua
própria lei, o que podia ser um sinal para
4 50 Liv. XII, tít. II, § 16. (N. do A.) serem reconhecidos.
Capítulo XVII
Os imperadores romanos manifestavam, todos esses rescritos4 52; não podia suportar
como nossos príncipes, suas vontades através que fossem consideradas leis as respostas de
de decretos e de editos; mas, coisa que nossos Cômodo, de Caracala e de todos esses outros
príncipes não fazem, eles permitiram que os príncipes cheios de imperícia. Justiniano pen
sou de maneira diferente, e encheu delas a sua
juizes ou os particulares, em suas desavenças, compilação.
os interrogassem por cartas; e suas respostas Eu queria que aqueles que lêem as leis
eram denominadas rescritos. As decretais dos romanas distinguissem bem estas espécies de
papas são, propriamente falando, rescritos. hipóteses dos senatus-consultos, dos plebisci
Percebe-se que é uma má espécie de legislação. tos, das constituições gerais dos imperadores, e
Os que assim pedem leis são maus guias para de todas as leis baseadas na natureza das coi
o legislador; os fatos são sempre mal expostos. sas, na fragilidade das mulheres, na fraqueza
Trajano, diz Júlio Capitolino4 51, recusou dos menores e na utilidade pública.
frequentemente fazer rescritos dessa espécie,
4 52 Ibid, cap. XIII. Fuit in jure non incallidus,
para que não se estendesse a todos os casos adeo ut statuisset omnia rescripta veterum princi-
uma só decisão, e frequentemente um favor pum tollere, ut jure, non rescriptis ageretur, nefas
particular. Macrino havia resolvido abolir esse dicens leges videri Commodi et Caracalli et
hominum imperitorum voluntates, quum Trajanus
nunquam libellis responderit, ne ad alias causas
4 51 Vede Júlio Capitolino, In Macrino, cap. XIII. facta praeferrentur, quae ad gratiam composita
(N. do A.) viderentur. (N. do A.)
Capítulo XVIII
Capitulo XIX
Dos legisladores
Aristóteles queria satisfazer ora a sua inveja blica da Ingalterra, enquanto uma multidão de
de Platão, ora a sua paixão por Alexandre. escritores encontrava a desordem em toda
Platão era revoltado contra a tirania do povo parte em que não via coroa. As leis defron
de Atenas. Maquiavel estava obcecado pelo tam-se sempre com as paixões e os precon
ceitos do legislador. Algumas vezes passam
seu ídolo, o Duque de Valentinois. Thomas
através deles e por eles são manchadas; outr-as,
More, que falava mais do que havia lido e do ficam entre eles e a eles se incorporam.
que havia pensado, queria governar todos os
Estados com a simplicidade de uma cidade 4 54 Em sua Utopia. (N: do A.)
grega4 5 4. Arrington4 5 5 não via senão a repú 4 5 5 É Harrington em seu Oceana.
LIVRO TRIGÉSIMO
TEORIA DAS LEIS FEUDAIS ENTRE OS FRANCOS
NA RELAÇÃO QUE TÊM COM
O ESTABELECIMENTO DA MONARQUIA
Capitulo I
Acredito que haveria uma imperfeição em tendência para a ordem e para a harmonia.
minha obra se deixasse em silêncio um aconte Isso exigiría uma obra especial; mas, consi
cimento ocorrido uma vez no mundo, e que derada a natureza desta, encontrar-se-ão nela
talvez não aconteça nunca mais; se não falasse mais essas leis como as considerei do que
dessas leis que vimos aparecer em determinado como as tratei.
momento em toda a Europa, sem que tivessem É um belo espetáculo o das leis feudais. Um
nada com aquelas que se conheceram até carvalho antigo ergue-se 4 5 6; os olhos vêem de
então; dessas leis que provocaram bens e longe sua folhagem; ele se aproxima, vê-se o
seu tronco; mas não se percebem suas raízes: é
males infinitos; que deixaram direitos quando
preciso cavar a terra para encontrá-las4 5 7.
seu domínio cedeu; que, ao dar a muitas pes
soas diversos tipos de senhorio sobre a mesma
4 5 6 ... Quantum vertice ad auras
coisa ou sobre as mesmas pessoas, diminuíram Aethereas, tantum radice ad Tartara tendit. (N. do
o peso do senhorio inteiro; que colocaram A.)
diversos limites nos impérios demasiado exten 4 5 7 Que se note, ao lado da naturalidade e da bre
vidade da expressão, o esforço de imparcialidade de
sos; que produziram a regra com uma inclina Montesquieu para apreciar uma legislação prescri
ção para a anarquia, e a anarquia com uma ta.
Capítulo II
Os povos que conquistaram o império ro costumes dos germanos. Essa obra é curta:
mano haviam saído da Germânia. Embora mas é a obra de Tácito, que abreviava tudo,
poucos autores antigos nos tenham descrito porque tudo via.
seus costumes, temos dois deles que são de Esses dois autores concordam de tal modo
grande importância. César, guerreando contra acerca dos códigos das leis dos povos bárbaros
os germanos, descreve os seus costumes4 58; e que possuímos, que ao ler César e Tácito
é sobre esses costumes que ele pautou algumas encontramos em toda parte esses códigos, e ao
de suas escaramuças4 59. Certas páginas de
ler esses códigos encontramos em toda parte
César sobre este assunto são volumes.
César e Tácito.
Tácito escreveu uma obra especial sobre os
De modo que, se na investigação das leis
4 58 Liv. IV. (N. do A.) feudais vejo-me em um labirinto obscuro,
4 59 Por exemplo, sua retirada da Alemanha (da cheio de caminhos e de voltas, creio que tenho
Germânia). Ibid. (N. do A.) a ponta do fio, e que posso caminhar.
484 MONTESQUIEU
Capítulo III
Da origem da vassaiagem
César4 60 diz “que os germanos não se inte gem de seus companheiros; recebem presentes;
ressavam pela agricultura; que a maioria vivia as legaçÕes vêm de todas as partes. Frequente
de leite, queijo e carne; que ninguém tinha ter mente a reputação decide a guerra. No comba
ras nem limites que lhe fossem próprios; que te, é vergonhoso para o príncipe ser inferior em
os príncipes e os magistrados de cada nação coragem; é vergonhoso para o bando não igua-
davam aos particulares a porção de terra que lar-se ao príncipe em virtude; é uma infâmia
bem queriam, e no lugar em que queriam, e os eterna sobreviver a ele. O compromisso mais
obrigavam no ano seguinte a passá-la adian sagrado é o de defendê-lo. Se uma cidade está
te”. Tácito diz 4 61 “que cada príncipe tinha um em paz, os príncipes vão para as que estão em
bando de pessoas qtie se ligavam a ele e o guerra; é por isso que conservam grande nú
seguiam”. Este autor que, em sua língua, lhes mero de amigos. Estes recebem deles o cavalo
dá um nome que tem relação com sua situa de combate e o terrível dardo. As refeições
ção, denomina-os companheiros4 62. Havia pouco delicadas, mas em quantidade, são uma
entre eles uma emulação4 63 singular para espécie de soldo para eles. O príncipe não
obter alguma distinção junto ao príncipe, e mantém suas dádivas senão pelas guerras e
uma mesma emulação entre os príncipes quan pelas rapinas. É mais difícil persuadi-los a la
to ao número e a bravura de seus companhei vrar a terra e esperar o outro ano 4 6 4 do que a
ros. “Ê”, acrescenta Tácito, “a dignidade, é o desafiar o inimigo e receber ferimentos; não
poder de estar sempre cercados por uma multi adquirirão pelo suor o que podem obter pelo
dão de jovens que se escolheram; é um adorno sangue.”
na paz, é um amparo na guerra. Tornam-se cé Assim, entre os germanos, havia vassalos, e
lebres em sua nação e entre os povos vizinhos, não feudos. Não havia feudos, porque os prín
se superam os outros pelo número e pela cora- cipes não tinham terras para dar; ou, antes, os
feudos eram os cavalos de batalha, as armas,
4 60 Liv. VI da Guerra das Gálias, cap. XXL Táci
as refeições. Havia vassalos porque havia ho
to acrescenta: Nulli domus, aut ager, aut aliqua mens fiéis que estavam empenhados por sua
cura; prout ad quem venere aluntur. (De Moribus palavra, que estavam engajados para a guerra,
Germ., cap. XXXI.) (N. do A.) e que prestavam mais ou menos o mesmo ser
4 61 De Morib. Germ., cap. XIII. (N. do A.) viço que fizeram depois para os feudos.
4 62 Comitês. (N. do A.)
4 63 De Moribus Germ., cap. XIII e XIV. (N. do
A.) 4 64 Isto é, colheita do ano.
Capítulo IV
César4 6 6 diz que, “quando um príncipe eram louvados pela multidão. Mas, se não
declarava à assembléia que fizera um projeto cumpriam seu compromisso, perdiam a con
de expedição, e pedia que o seguissem, aqueles fiança pública e eram considerados desertores
que aprovavam o chefe e o empreendimento e traidores”.
levantavam-se e ofereciam seu auxílio. Esses O que diz César e o que dissemos no capí
tulo precedente é, segundo Tácito, o germe da
4 6 5 De Bello Gallico, liv. VI, cap. XXII. (N. do história da primeira raça.
A.) Não se deve ficar admirado com o fato de os
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 485
reis terem tido sempre, em cada expedição, considerado necessário para a monarquia; e de
novos exércitos a refazer, outros bandos a per um rei4 6 7 não poder, mesmo para o dote de
suadir, novas pessoas a engajar; com o fato de suas filhas, dividir esse tesouro sem o consenti
ter sido necessário, para adquirir muito, des mento dos outros réis. O funcionamento da
pender muito; de terem adquirido sem cessar
pela partilha da terra e pelos saques, e dado monarquia dependia de molas que cumpria
sem cessar essas terras e esses saques; de seu sempre reajustar.
domínio ter aumentado continuamente e dimi
nuir sem cessar; com o fato de um pai, que 4 6 7 Vede Gregório de Tours, liv. VI, sobre o casa
dava a um de seus filhos um reino, juntar sem mento da filha de Chilperico. Childeberto enviou-
pre a ele um tesouro 4*6 6; de o tesouro do rei ser lhe embaixadores para lhe dizer que não devia dar
as cidades do reino de seu pai para a filha, nem seus
tesouros, nem os servos, nem os cavaleiros, nem as
4 6 6 Vede a Vida de Dagoberto. (N. do A.) atrelagens de bois, etc. (N. do A.)
C apítulo V
Não é verdade que os francos, entrando na que os bárbaros fizeram um regulamento geral
Gália, tenham ocupado todas as terras do país para estabelecer em toda parte a servidão da
para convertê-las em feudos. Algumas pes gleba, não é menos falsa que o princípio. Se,
soas4 68 assim pensaram, porque viram no fim numa época em que os feudos eram amovíveis,
da segunda raça quase todas as terras transfor todas as terras do reino tivessem sido feudos,
madas em feudos, em subfeudos, ou em depen ou dependências de feudos, e todos os homens
dências de um ou de outro; mas isso teve cau do reino tivessem sido vassalos ou servos deles
sas particulares que serão explicadas em dependentes, como aquele que tem os bens
seguida. sempre tem também o poder, o rei que hou
A consequência que se quis tirar disso, a de vesse continuaménte disposto dos feudos, isto
é, da única propriedade, teria tido um poder
4 68 ... algumas pessoas, por exemplo, Boulainvil- tão arbitrário quanto o do sultão da Turquia: o
liers, do qual falaremos mais abaixo, cap. X que subverte toda a história.
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
O que da idéia da grande usurpação das ter que a metade àqueles que viessem para o país.
ras dos romanos pelos bárbaros é encontrar-se, Todas as terras não haviam, portanto, a princí
nas leis dos visigodos e dos borguinhões, que pio, sido divididas entre os romanos e os
esses dois povos tiveram os dois terços das ter borguinhões.
ras; mas esses dois terços só foram tomados Encontram-se nos textos desses dois regula
em certos bairros, os quais foram destinados a mentos as mesmas expressões; explicam-se
eles.
Diz Gondebaldo4 7 6, na lei dos borguinhões. portanto um pelo outro. E, como não se pode
que seu povo, em seu estabelecimento, recebeu compreender o segundo como divisão univer
dois terços das terras; e é dito, no segundo sal de terras, não se pode também dar taí signi
suplemento dessa lei4 7 7, que não se daria mais ficação ao primeiro.
Os francos agiram com a mesma moderação
4 7 8 Licet eo tempore quo populus noster manci- que os borguinhões; não despojaram os roma
piorum tertiam et duas terrarum partes accepit, etc. nos em toda a extensão de suas conquistas.
Lei dos borguinhões, tít. LIV, § 1. (N. do A.) Que teriam feito de tantas terras? Apossaram-
4 7 7 Ut non amplius a Burgundionibus, qui infra
venerunt, requiratur, quam ad praesens necessitas se daquelas que lhes convinham, e deixaram o
fuerit, medietas terrae. Art. II. (N. do A.) resto.
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 487
Capítulo IX
É preciso considerar que essas divisões, não terras e de poucos servos; e o grande trabalho
foram feitas por um espírito tirânico, mas com da cultura das terras exigia que o romano
a idéia de prover às necessidades mútuas dos tivesse menos glebas, e maior número de ser
dois povos que deviam habitar o mesmo país. vos. Os bosques eram divididos pela metade,
A lei dos borguinhões estabelece que cada porque as necessidades a esse respeito eram as
borguinhão seja recebido como hóspede em mesmas.
casa de um romano. Isso está de acordo com Vê-se, no código dos borguinhões480, que
os costumes dos germânicos, que, pela narra cada bárbaro foi colocado na casa de cada
romano. A divisão não foi, portanto, geral,
tiva de Tácito4 78, eram o povo da terra que
mas o número de romanos que concederam a
mais amava o exercício da hospitalidade 4 79
divisão foi igual ao dos borguinhões que a
Estipula a lei que o borguinhão tenha os receberam. O romano foi lesado o menos
dois terços das terras, e o terço dos servos. Ela possível481. O borguinhão, guerreiro, caçador
seguia o gênio dos dois povos, e conformava- e pastor, não desdenhou aceitar terrenos incul
se à maneira pela qual eles procuravam a pró tos; o romano conservava as terras mais apro
pria subsistência. O borguinhão, que fazia pas priadas para a agricultura; os rebanhos do
borguinhão adubavam o campo do romano.
tar os rebanhos, tinha necessidade de muitas
480 E no dos visigodos. (N. do A.)
4 7 8 De Morib. Germ. cap. XXL (N. do A.) 481 Colocaram em dúvida esta consideração tão
4 79 “Com a diferença”, observa Laboulaye, “que a otimista; perguntou-se também onde Montesquieu
hospitalidade dos borguinhões era uma hospitali havia aprendido que os borguinhões eram um povo
dade forçada e despojava o dono da casa.” pastor.
Capítulo X
Das servidões
a lei dos borguinhões que, quando
Diz482483 particular para os romanos, nem a liberdade e
esses povos se estabeleceram nas Gálias, rece a nobreza uma coisa particular para os
beram os dois terços de terras e o terço de ser bárbaros.
vos. A servidão da gleba estava portanto esta Essa mesma lei diz que48 5* , se um liberto
belecida em toda parte da Gália antes da borguinhão não havia dado uma certa soma a
entrada dos borguinhões 4 8 3. seu dono, nem recebido uma terça porção de
A lei dos borguinhões, ao estatuir sobre as um romano, continuaria sendo considerado da
duas nações, distingue48 4 formalmente, em família de seu dono. O romano proprietário
uma e outra, os nobres, os ingênuos e os ser era, portanto, livre, pois não estava na família
vos. A servidão não era portanto uma coisa de outro; era livre, pois sua terça porção era
um sinal de liberdade.
482 Tít. LIV. (N. do A.) Basta abrir as leis sálicas e ripuárias, para
483 Isto é confirmado por todo o título do código ver que os romanos não viviam mais em servi
De agricolis et censitis et colonis. (N. do A.) dão nem entre os francos nem entre os outros
48 4 Si dentem optimati Burgundioni vel Romano conquistadores da Gália.
nobili excusserit, tít. XXVI, § 1; et si mediocribus
personis ingenuis, tam Burgundionibus quam Ro-
manis. Ibid., § 2. (N. do A.) 48 5 Tít. LVII. (N. do A.
488 MONTESQUIEU
O Conde de Boulainvilliers48 6 falhou no mais luzes do que saber; mas esse saber não
ponto capital de seu sistema; não provou que era desprezível, porque sabia muito bem as
os francos tenham feito um regulamento geral grandes coisas de nossa história e de nossas
que colocasse os romanos numa espécie de leis.
servidão. O Conde de Boulainvilliers e o Abade
Como sua obra foi escrita sem nenhuma Dubos fizeram, cada um, um sistema, dos
arte, e como, nela, ele fala com aquela simpli quais um parece ser uma conjuração contra o
cidade, com aquela franqueza, e com aquela Terceiro Estado, e o outro uma conjuração
contra a nobreza. Quando o Sol deu a Fae-
ingenuidade da antiga nobreza de que saiu,
tonte seu carro para conduzir, disse-lhe: “Se
todos são capazes de julgar não só das belas
você subir muito alto, queimará a morada
coisas que diz como também dos erros em que
celeste; se descer muito baixo, reduzirá a cin
incidiu. Por isso, não o examinarei. Direi ape
zas a terra. Não vá muito para a direita, cairá
nas que possuía mais espírito do que luzes,
na constelação da Serpente; não vá muito para-
a esquerda, irá para a de Ara: consérve-se
48 6 O Conde de Boulainvilliers, em suas Mémoires entre as duas”48 7.
Historiques sur 1’Ancien Gouvernement de la Fran-
ce, dizia, em sua vantagem, que os nobres franceses
descendiam dos francos, e os outros dos galo-roma- 48 7 São os versos de Ovídio: Metamorfoses, liv. II,
nos. Montesquieu parece partilhar essa opinião. v. 134 e seguintes.
Capítulo XI
O que deu a idéia de um regulamento geral, que o exército podia encarregar-se; tudo era
feito na época da conquista^ é ter-se visto na transportado em comum, e era dividido pelo
França um número prodigioso de servidões no exército489. Todo o corpo da história prova
começo da terceira raça; e, como não se aper que depois do primeiro estabelecimento, isto é,
ceberam da progressão contínua que se fez após as primeiras devastações, eles receberam
dessas servidões, imaginaram numa época obs os habitantes em capitulação, e lhes deixaram
cura uma lei geral que nunca existiu. todos os direitos políticos e civis. Era o direito
No começo da primeira raça, viu-se um nú das gentes daqueles tempos; arrebatava-se
mero infinito de homens livres, seja entre os tudo na guerra, concedia-se tudo na paz. Se
francos, seja entre os romanos; mas o número isso não tivesse sido assim, como encontra
de servos aumentou de tal modo, que, no co ríamos nós nas leis sálicas e borguinhãs tantas
meço da terceira, todos os trabalhadores e disposições contraditórias à servidão geral dos
quase todos os habitantes das cidades eram homens?
servos488; e, enquanto no começo da primeira Mas, o que a conquista não fez, o próprio
raça havia nas cidades quase a mesma direito das gentes490, que subsistiu à conquis
administração que entre os romanos, grupos ta, o fez. A resistência, a revolta, o saque das
da burguesia, um senado, os cursos de judica- cidades acarretavam a servidão dos habitantes.
tura, não se encontram mais, no começo da E como, além das guerras que as diferentes
terceira, senão um senhor e servos. nações conquistadoras fizeram entre si, houve
Quando os francos, os borguinhões e os aquela particular entre os francos, as diversas
godos realizavam suas invasões, apossavam-se divisões da monarquia fizeram nascer ininter
do ouro, do dinheiro, dos móveis, das vestes, ruptamente guerras civis entre os irmãos ou
dos homens, das mulheres, dos meninos, de sobrinhos, nas quais esse direito das gentes
488 Enquanto a Gália estava sob o domínio dos 489 Vede Gregório de Tours, liv. II, cap. XXVII;
romanos, eles formaram grupos particulares: eram Aimoin, liv. I, cap. XII. (N. do A.)
comumente libertos ou descendentes de libertos. (N. 490 Vede as Vidas dos Santos citadas abaixo. (N.
do A.) do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 489
continuou a ser praticado, as servidões torna Poderei citar inúmeras autoridades. E como,
ram-se mais gerais na França do que nos ou nessas desgraças, as entranhas da caridade se
tros países: e é, creio, uma das causas da dife comoveram; como muitos santos bispos,
rença que há entre nossas leis francesas e as da vendo os cativos presos dois a dois, emprega
Itália e da Espanha, sobre os direitos dos ram o dinheiro das igrejas, e até venderam os
senhores. vasos sagrados para comprar os que eles
A conquista foi só questão de momento; e o pudessem; corno santos monges empenharam-
direito das gentes que nela empregaram provo se nisso, é na vida dos santos que se encontram
cou algumas servidões. O uso do mesmo direi os maiores esclarecimentos sobre esse assun
to das gentes, durante muitos séculos, fez com to49 5. Embora se possa censurar aos autores
que as servidões se estendessem prodigiosa dessas vidas por terem sido algumas vezes um
mente. pouco crédulos demais sobre as coisas que
Teodorico491, crendo que os povos de Deus certamente fez, uma vez que estavam na
Auvergne não lhe eram fiéis, fala de sua parti ordem de seus desígnios, não se deixa de
lha aos francos: “Segui-me, eu vos levarei a extrair grandes luzes sobre os costumes e os
uma região onde tereis ouro, prata, escravos, usos daqueles tempos.
vestes, rebanhos em abundância; e transferireis Quando se lançam os olhos sobre os monu
todos os homens para o vosso país”. mentos de nossa história e de nossas leis, pare
Depois da paz 492 que se fez entre Gontrão e ce que tudo é mar, e que até as praias faltam
Chilperico, aqueles que sitiavam Burges, tendo ao mar49 6. Todos esses escritos frios, secos,
tido ordem de voltar, levaram consigo tanto insípidos e duros, é preciso lê-los; é preciso
saque, que não deixaram quase no país nem devorá-los, como a fábula diz que Saturno
homens nem rebanhos. devorava as pedras.
Teodorico, rei da Itália, cujo espírito e cuja Uma infinidade de terras a que os homens li
política eram sempre de distinguir-se dos ou vres davam valor49 7 transformaram-se em ter
tros reis bárbaros, ao enviar seu exército para ras de mão-morta. Quando um país se viu pri
a Gália, escreveu ao general493: “Quero que vado de homens livres que o habitavam, os que
sejam seguidas as leis romanas, e que vós tinham muitos servos tomaram grandes territó
entregueis os escravos fugitivos aos seus rios ou conseguiram sua cessão e aí cons
donos; o defensor da liberdade não deve favo truíram aldeias, como se vê em diversas char
recer o abandono da servidão. Que os outros tas. Por outro lado, os homens livres que
reis se divirtam com a pilhagem e a destruição cultivavam as artes498 viram-se convertidos
das cidades por eles tomadas: nós queremos em servos que deviam exercê-las; as servidões
vencer de maneira que nossos súditos se lasti restituíam às artes e à lavoura o que lhes ha
mem de ter adquirido tão tarde a sujeição”. É viam tirado.
claro que ele queria tornar odiosos os reis fran Tornou-se comum os proprietários de terras
cos e borguinhões, e que fazia alusão ao direito doarem-nas às igrejas para aforarem-nas eles
das gentes desses povos. próprios, acreditando participar assim, pela
Esse direito subsistiu na segunda raça. servidão, da santidade das igrejas.
Tendo o exército de Pepino entrado na Aquitâ-
nia, voltou para a França carregado de um nú 49 5 Vede as vidas de Santo Epifânio, de Santo
mero infinito de despojos e de servos, dizem os Eptádio, de São Cesário, de São Fidólio, de São
Anais de Metz49 4. Porciano, de São Trevério, de Santo Eusíquio e de
São Ligério; os milagres de São Juliano. (N. do A.).
49 6 . . .Deerant quoque littora ponto. Ovíd.,
4 91 Gregório de Tours, liv. III, cap. XI. (N. do A.) Metam., liv. I, v. 293. (N. do A.)
492 Ibid., liv. VI, cap. XXXI. (N. do A.) 49 7 Mesmo os colonos não eram todos servos:
493 Carta 43, liv. III, em Cassiodoro. (N. do A.) vede as leis 18 e 23, no código De agricolis et censi-
49 4 No ano de 763. Innumerabilibus spoliis et cap- tis et colonis, e a 20." do mesmo título. (N. do A.)
tivis totus ille exercitus ditatus in Franciam reversus 498 ... que cultivavam as artes, simplesmente:
est. (N. do A.). “que exerciam uma profissão”.
490 MONTESQUIEU
Capítulo XII
Os povos simples, pobres, livres, guerreiros, ingênuos. Baseando-se nisso, interpreta a pala
pastores, que viviam sem indústria, e que não vra latina ingenui por estas palavras: livres de
se ligavam às suas terras senão pelos casebres tributos; expressão de que nos podemos servir
de junco499 seguiam os chefes para conseguir no idioma francês, como se diz livre de preocu
despojos e não para pagar ou levantar tributos. pações, livre de penas; mas, na língua latina,
A arte da cobrança ilegal de impostos é sem ingenui a tributis, libertini a tributis, manu-
pre inventada tarde demais, e quando os ho missi tributorum seriam expressões monstruo
mens começam a desfrutar da felicidade das sas.
outras artes. Partênio, diz Gregório de Tours 50 5, pensou
O tributo 500 passageiro de um quarto de ser condenado à morte pelos francos por lhes
vinho por arpente, que foi uma das medidas haver imposto tributos. O Abade Dubos, pre
vexatórias de Chilperico e de Fredegondo, só mido por essa passagem, supõe friamente o
concerniu aos romanos. Com efeito, não foram que está em questão: era, diz ele, uma
os francos que destruíram listas dessas taxas, sobrecarga.
mas os eclesiásticos que, naqueles tempos, Vê-se, na lei dos visigodos50 6, que, quando
eram todos romanos501. Esse tributo afligiu um bárbaro ocupava a gleba de um romano, o
principalmente os habitantes das cidades 502 : juiz o obrigava a vendê-la, para que essa gleba
ora, quase todas as cidades eram habitadas por continuasse a ser tributária: portanto, os bár
romanos. baros não pagavam tributos sobre as ter
Gregório de Tours 503 conta que, após a ras50 7.
morte de Chilperico, certo juiz foi obrigado a O Abade Dubos 508, necessitando que os
refugiar-se em uma igreja, por ter, sob o reina visigodos pagassem tributos 509, abandona o
do desse príncipe, submetido a tributos certos sentido literal e espiritual da lei, e imagina,
francos que, no tempo de Childeberto, eram unicamente porque ele imagina, que houve
ingênuos: Muitos de Francis, qui, tempore entre o estabelecimento dos godos e esta lei um
Childeberti regis, ingenui fuerant, publico tri aumento de tributos, que só concernia aos
buto subegit. Portanto, os francos, que não romanos. Mas só é permitido ao Padre Har-
eram servos, não pagavam tributos.
50 5 Liv. III, pág. 514. (N. do A.)
Não há gramático que não empalideça ao 50 6 Judices atquepraepositi terras Romanorum ab
ver como essa passagem foi interpretada pelo illis qui ocupatas tenent, aufèrant, et Romanis sua
Abade Dubos50 4. Observa ele que, naqueles exatione sine aliqua dilatione restituant, ut nihil
tempos, os libertos eram chamados também fisco debeat deperire. Liv. X, tít. I, cap. XIV. (N. do
A-)
50 7 Os vândalos também não o pagavam na Áfri
499 Vede Gregório de Tours, liv. II. (N. do A.) ca. Procópio, Guerra dos Vândalos, liv. I e II; His
5 0 0 Ibid., liv. V, cap. XXVIII. (N. do A.) toria Miscella, liv. XVI, pág. 106. Note-se que os
501 Isto aparece em toda a História de Gregório de conquistadores da África eram um composto de
Tours. O mesmo Gregório pergunta a um certo Val- vândalos, alanos e francos. Historia Miscella, liv.
filiaco como pudera alcançar o clericato, ele que era XIV, pág. 94. (N. do A.)
lombardo de origem. Gregório de Tours, liv. VIII, 508 Etablissement des Francs dans les Gaules. Da
cap. XXXVI. (N. do A.) monarquia francesa, tomo III, cap. XIV, pág. 510.
502 Quae conditio universis urbibus per Galliam (N. do A.)
constitutis summopere est adhibita. Vida de Santo 509 Ele se apóia em uma outra lei dos visigodos,
Arídio. (N. do A.) liv. X, tít. I, art. II, que não prova absolutamente
503 Liv. VII. (N. do A.) nada: ela diz apenas que aquele que recebeu uma
50 4 Etablissement de la Monarchie Française, terra de um senhor, sob condição de renda anual,
tomo III, cap. XIV, pág. 515. (N. do A.) deve pagá-la. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 491
douin exercer assim, sobre os fatos, um poder cos; sao coisas que é preciso não confundir.
arbitrário 51 °. Mostrarei, algum dia, numa obra particular,
O Abade Dubos vai buscar 511 no código de que o plano da monarquia dos ostrogodos era
Justiniano 512 leis para provar que os privilé inteiramente diferente do plano de todas as que
gios militares entre os romanos eram sujeitos a foram fundadas naqueles tempos pelos outros
tributos: donde conclui que o mesmo acontecia povos bárbaros, e que, longe de se poder dizer
com os feudos ou com os benefícios entre os que uma coisa estava em uso entre os francos,
francos. Mas a opinião segundo a qual nossos porque ela o estava entre os ostrogodos, tem-
feudos deduzem sua origem desse estabeleci se, pelo contrário, um justo motivo para pen
mento dos romanos está hoje proscrita: ela só sar que uma coisa que se praticava entre os
teve crédito nos tempos em que se conhecia a ostrogodos não se praticava entre os francos.
história romana e bem pouco a nossa, e em O que mais custa àqueles cujo espírito flu
que nossos monumentos antigos estavam en tua numa vasta erudição é procurar suas pro
terrados na poeira. vas onde elas não são estranhas ao assunto, e
O Abade Dubos errou em citar Cassiodoro, encontrar, para falar como os astrônomos, o
e em empregar o que se passava na Itália e na lugar do sol.
parte da Gália submetida a Teodorico, para O Abade Dubos abusa tanto das capitulares
nos ensinar o que estava em uso entre os fran- como da história e das leis dos povos bárba
ros. Quando quer que os francos tenham pago
510 O Padre Hardouin, jesuíta, lembra-nos Labou- tributos, aplica a homens livres o que só pode
laye, viveu de 1646 a 1729 e fez “uma boa edição de ser compreendido para os servos513; quando
Plínio, o Antigo” e uma coleção de doze volumes de quer falar de sua milícia, aplica aos servos o
Concílios. . . “mas ele pretendia que a maioria das que só podia concernir aos homens livres 51 4.
obras que nos são legadas pela Grécia e por Roma
era de monges do século XIII” e “havia imaginado
principalmente que a Eneida era obra de um benedi 513 Etablissement de la Monarchie Française,
tino que quisera celebrar o triunfo da Igreja sobre a tomo III, cap. XIV, pág. 513, em que ele cita o arti
sinagoga”. go 28 da edição de Pistes. Vede mais abaixo o cap.
511 Tomo III, pág. 511. (N. do A.) XVIII. (N. do A.)
512 Lei 3, tít. LXXIV, liv. XI. (N. do A.) 51 4 Ibid., tomo III, cap. IV, pág. 298. (N. do A.).
Capítulo XIII
embaixadores que partissem de sua corte ou lá na caísse por si mesma na monarquia dos fran
fossem ter, cavalos e carretas para os carros; cos; era uma arte muito complicada que não
que fora disso não poderíam ser coagidos a penetrava nem nas idéias nem nos planos des
pagar outra quota de imposto, e que seriam ses povos simples. Se os tártaros inundassem
tratados como os outros homens livres. hoje a Europa, requerería muito trabalho fazê-
Não se pode dizer que esses fossem novos los compreender o que é, entre nós, um
usos introduzidos nos começos da segunda financeiro 52 3.
raça; isso devia pertencer pelo menos ao meio O autor desconhecido da Vida de Luís, o
ou ao fim da primeira. Uma capitular do 51 9 Bonacheirão 52 4, falando dos condes e dos ou
ano de 864 diz expressamente que era um cos tros oficiais do povo franco que Carlos Magno
tume antigo o de os homens livres fazerem o estabeleceu na Aquitânia, diz que lhes deu a
serviço militar, e pagarem ainda os cavalos e guarda da fronteira, o poder militar e a inten-
os carros de que falamos; tributos que lhes dência dos domínios que pertenciam à Coroa.
eram particulares, e dos quais os que possuíam Isso revela a situação dos rendimentos do prín
os feudos estavam isentos, como provarei em cipe na segunda raça. O príncipe conservara
seguida. domínios, que valorizava graças aos seus
E não é tudo; havia um regulamento 519
520 que escravos. Mas as convocações, a taxa indivi
nunca permitia submeter homens livres a tribu dual e outros impostos arrecadados no tempo
tos. Quem tinha quatro solares521 era sempre dos imperadores sobre a pessoa ou os bens dos
obrigado a ir para a guerra; quem só tinha três homens livres haviam sido trocados por uma
era juntado a um homem livre que só possuía obrigação de guardar a fronteira ou de ir para
um; este o custeava por um quarto, e ficava em a guerra.
casa dele. Reuniam-se do mesmo modo dois Vê-se, na mesma história 52 5, que'Luís, o
homens livres, os quais tinham cada um dois Bonacheirão, tendo ido encontrar seu pai na
solares; aquele dos dois que ia para a guerra Alemanha, perguntou-lhe como podia ser tão
era custeado da metade pelo que ficava. pobre, ele que era rei: e que Luís respondeu-lhe
E há mais; temos uma infinidade de chartas que era rei só de nome, e que os senhores
em que se concedem privilégios de feudo às retinham quase todos os seus domínios; que
terras ou distritos possuídos por homens livres, Carlos Magno, temendo que este jovem prín
e de que muito falarei522*em seguida. Isenta cipe perdesse a dedicação daqueles senhores,
ram-se essas terras de todos os tributos que se retomasse para si o que doara irrefletida-
sobre elas exigiam os condes e outros oficiais mente, enviou-lhe delegados para que restabe
do rei; e, como são particularmente enumera lecessem as coisas.
dos todos esses tributos, como não se trata, aí, Os bispos, escrevendo a Luís52 6, irmão de
de tributos, é evidente que não os arrecada Carlos, o Calvo, diziam-lhe: “Cuidai de vossas
vam. terras, para que não sejais obrigado a viajar
Era natural que a arrecadação ilegal roma incessantemente para as casas dos eclesiás
ticos, e a fatigar seus servos por causa dos car
ros”. “Fazei de modo”, diziam ainda, “que
519 Ut pagenses Franci, qui caballos habent, cum tenhais de que viver e onde receber embaixa
suis comitibus in hostem pergant. É proibido aos das.” É evidente que, nessa época, os rendi
condes privá-los de seus cavalos; ut hostem facere,
et débitos paraveredos secundum antiquam consue- mentos dos reis consistiam em seus domí
tudinem exsolverepossint. Edito de Pistes, em Balu nios 52 7.
ze, pág. 186. (N. do A.)
620 Capitular de Carlos Magno, do ano de 812,
cap. I; Edito de Pistes do ano de 864, art. 27. (N. do 523 ... um financeiro... no sentido de “contrata-
A.) dor-geral”.
521 Quatuor mansos. Parece-me que o que se cha 52 4 Em Duchesne, tomo II, pág. 287. (N. do A.)
mava mansus era uma certa porção de terra ligada a
uma herdade em que havia escravos; atesta a capi 52 5 Ibid., pág. 89. (N. do A.)
tular do ano de 853, apud Sylvacum, tít. XIV, con 52 6 Vede a capitular do ano de 858, art. 14. (N. do
tra aqueles que expulsavam os escravos de seu A.)
solar. (N. do A.) 52 7 Cobravam ainda alguns direitos sobre os rios,
522 Vede a esse respeito o cap. XX deste livro. (N. quando neles havia uma fonte ou uma passagem.
do A.) (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 493
Capítulo XIV
Capítulo XV
senhores, pelos regulamentos que Carlos pequena cabana: de maneira que não podia
Magno estabeleceu a esse respeito 63 4. mais ser pago pelo tributo; e foi ordenado que
Esses tributos eram chamados census: eram se restabelecessem as coisas ao seu primeiro
direitos econômicos e não fiscais; foros unica estado: o tributo era, pois, um tributo de
mente privados, e não tributos públicos. escravos.
Digo que o que denominavam census era Segue-se disso ainda que não havia tributo
um tributo arrecadado aos servos. Provo-o por geral na monarquia; e isso é claro por um
uma fórmula de Marculfo, que contém uma grande número de textos. Pois o que signifi
permissão do rei para tornar-se clérigo, con caria esta capitular 5 41: “Queremos que se
tanto que se fosse ingênuo 53 5 e que não se exija o tributo real em todos os lugares em que
fosse inscrito no registro de tributação. Provo- outrora o exigiam legitimamente 5 42”? O que
o ainda por uma incumbência que Carlos querería dizer aquela capitular 5 43 em que Car
Magno deu a um conde 53 6 que enviou às los Magno ordena aos seus enviados nas
regiões do Saxe; ela contém a isenção dos províncias que façam uma busca exata de
saxões porque esses tinham abraçado o cristia todos os tributos que tinham antigamente sido
nismo; e é propriamente uma charta de do domínio do rei 5 4 4, e a outra5 4 5 em que
ingenuidade53 7. Esse príncipe restabeleceu- prescreve os tributos pagos por aqueles de
lhes a primeira liberdade civil538 e isentou-os quem são exigidos 5 4 6? Que significação dar a
de pagar o tributo. Era portanto a mesma esta outra capitular 5 4 7 em que se lê: “Se
coisa ser servo e pagar tributo e ser livre e não alguém 5 48 adquiriu uma terra tributária da
pagá-lo. qual estávamos acostumados a arrecadar tri
Por uma espécie de carias-patentes do 539 buto”? E a esta outra enfim 5 49 em que Carlos,
mesmo príncipe em tavor dos espanhóis que o Calvo 5 50, fala das terras tributadas cujo
haviam sido recebidos na monarquia, foi proi censo havia pertencido ao rei desde a mais re
bido aos condes exigir deles algum tributo, e mota antiguidade?
tirar-lhes as terras. Sabe-se que os estranhos Notai que ha alguns textos que de início
que chegavam à França eram tratados como parecem contrários ao que eu disse, e que no
servos; e Carlos Magno, querendo que eles fos entanto o confirmam. Viram acima que os ho
sem considerados homens livres, pois queria mens livres na monarquia só eram obrigados a
que tivessem a propriedade de suas terras, fornecer certos carros. A capitular que acabo
proibiu que lhes exigissem o tributo. de citar denomina isto census, e opõe ao tribu
Uma capitular 5 40 de Carlos, o Calvo, feita to que era pago pelos servos 5 51
em favor dos mesmos espanhóis, quer que
esses sejam tratados como os outros francos, e 541 Capitular III, do ano de 805, art, 20 e 22, inse
proíbe que se exija deles o tributo; portanto os rida na coletânea de Anzegise, liv. III, art. 15. Isto
homens livres não o pagavam. coincide com aquela de Carlos, o Calvo, do ano de
O artigo 30 do edito de Pistes reforma o 854, apud Attiniacum, art. 6. (N. do A.)
842 Undecumque legitime exigebatur. Ibid. (N. do
abuso pelo qual muitos colonos do rei ou da A.)
Igreja vendiam as terras dependentes de seus 6 43 Do ano de 812, art. 10 e 11, edição de Baluze,
solares aos eclesiásticos ou às pessoas de sua tomo I, pág. 498. (N. do A.)
544 Undecumque antiquitus adpartem regis venire
condição, e não reservavam para si senão uma83 solebant. Capitular do ano de 812, art. 10 e 11. (N.
do A.)
83 • Liv. V das capitulares, cap. CCC11I. (N. do A.) 8 4 8 Do ano de 813, art. 6, edição de Baluze, tomo
83 8 Si ille de capite suo bene ingenuus sit, et in I, pág. 508. (N. do A.)
puletico publico censitus non est. Liv. I, fórmula 84 6 De illis unde censa exigunt. Capitular do ano
XIX. (N. do A.) de 813, art. 6. (N. do A.)
83 8 Do ano de 789, edição das capitulares de Balu- 5 4 7 Liv. IV das capitulares, art. 37, e inserido na
ze, tomo I, pág. 250. (N. do A.) lei dos lombardos. (N. do A.)
83 7 Et ut ista ingenuitatis pagina firma stabilisque 5 48 Si quis terram tributariam, unde census adpar
consistat. Ibid. (N. do A.) tem nostram exire solebat, susceperit: liv. IV das
838 Pristinaeque libertati donatos, et omni nobis capitulares, art. 37. (N. do A.)
debito censu solutos. Ibid. (N. do A.) 649 Do ano de 805, art. 8. (N. do A.)
839 Praeceptum pro Hispanis, do ano de 812, edi 8 80 Unde census adpartem regis exivit antiquitus.
ção de Baluze, tomo I, pág. 500. (N. do A.). Capitular do ano de 805, art. 8. (N. do A.)
840 Do ano de 844, edição de Baluze, tomo II, art. 8 81 Censibus vel paraveredis quos Franci homines
1 e 2, pág. 27. (N. do A.) ad regiam potestatem exsolvere debent. (N. do A.).
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 495
Além do mais, o edito de Pistes 5 52 fala des mas sim pagavam censum in capite, e é desse
ses homens francos que deviam pagar o tributo tipo de pessoas que se fala aqui.
É preciso então desfazer-se da idéia de um
real por cabeça e por cabana, e que se haviam
tributo geral e universal, derivado da fiscaliza
vendido durapte a fome 5 53. O rei quis que eles ção dos romanos, do qual supõe-se terem-se os
fossem resgatados. É 5 5 4 que aqueles que esta direitos dos senhores derivado igualmente, por
vam libertos por cartas do rei não adquiriam usurpações O que denominavam tributo na
comumente uma liberdade plena e inteira5 5 5 • monarquia francesa, independentemente do
abuso que se fez dessa palavra, era um direito
particular arrecadado dos servos pelos donos.
5 52 Do ano 864, art. 34, edição de Baluze, pág. Peço ao leitor que me perdoe o mortal abor
192. (N. do A.)
5 53 De illis Francis hominibus qui censum regium recimento que tantas citações devem-lhe dar:
de suo capite et de suis recellis debeant. Ibid. (N. do seria mais sucinto se não encontrasse sempre
A.) diante de mim o livro do Estabelecimento da
5 5 4 O artigo 28 do mesmo edito explica bem tudo Monarquia Francesa nas Gâlias, do Abade
isso. Faz mesmo uma distinção entre o liberto ro Dubos. Nada retarda mais o progresso dos
mano e o liberto franco e vê-se aí que o tributo não
era geral. É preciso lê-lo. (N. do A.) conhecimentos do que uma obra má de um
855 Como se conclui da capitular de Carlos autor célebre, porque cumpre, antes de ensinar,
Magno, do ano 813, já citada. (N. do A.) começar por dissipar o erro.
Capítulo XVI
Falei desses voluntários que, entre os ger mais pela lei política do que pela lei civil, e que
mânicos, seguiam os príncipes em seus cometi- eles eram a sorte 5 62 de um exército e não o
mentos. O mesmo uso foi conservado depois patrimônio de uma família.
da conquista. Tácito designa-os pelo nome de Os bens reservados para os leudos foram
companheiros5 5 6; a lei sálica pelo de homens denominados bens fiscais 5 63, benefícios, hon
que estão sob a fé do rei 5 5 7; as fórmulas de ras, feudos, nos diversos autores e nos diversos
Marculfo 5 58 pelo de antrustiões do rei 5 59; tempos.
nossos primeiros historiadores pelo de leudos, Não se pode duvidar que de início os feudos
de fiéis 5 60, e os seguintes pelo de vassalos e não eram amovíveis5 6 4. Vê-se, em Gregório de
senhores5 61
Tours 5 6 5, que tiraram de Sunegisilo e de Galo-
Encontra-se nas leis sálicas e ripuárias um
mão tudo o que eles retinham do fisco, e que
número infinito de disposições para os francos,
e somente algumas para os antrustiões. As não lhes deixaram senão o que eles tinham em
disposições sobre esses antrustiões são diferen propriedade. Gontrão, ao subir ao trono seu
tes daquelas feitas para os outros francos; sobrinho Childeberto, teve uma conferência
regulamentam aí os bens dos francos, e não secreta com ele, e indicou-lhe aqueles 5 6 6 a
dizem nada dos bens dos antrustiões: o que
decorre de que os bens destes regulamentam-se 5 62 ... a sorte. . . a parte.
5 63 Fiscalia. Vede a fórmula XIV de Marculfo, liv.
I. É dito na vida de São Mauro, dedit fiscum unum;
5 5 6 Comitês. (De Mor. Germ., cap. XIII.) (N. do e nos Anais de Metz, do ano de 747, dedit UH comi-
A.) tatus etfiscos plurimos. Os bens destinados à manu
6 5 7 Qui sunt in truste regis, tít. XLIV, art. 4. (N. tenção da família real eram denominados regalia.
do A.) (N. do A.)
6 5 8 Liv. I, fór. XVIII. (N. do A.) 584 Vede o livro I, tít. I, dos feudos; e Cujácio
5 59 Da palavra treu, que significa/Ie/ para os ale sobre este livro. (N. do A.)
mães, e para os ingleses true, verdadeiro. (N. do A.) 5 6 5 Liv. IX, cap. XXXVIII. (N. do A.)
5 80 Leudes.fideles. (N. do A.) 8 6 6 Quos honoraret muneribus, quos ab honore
5 61 Vassali, seniores. (N. do A.) repelleret. Ibid., liv. VII. ÍN. do A.)
496 MONTESQUIEU
quem ele devia dar feudos, e aqueles de quem ram o livro dos feudos 5 69 ensinam-nos que, de
devia tirá-los. Em uma fórmula de Marcul início, os senhores puderam roubá-los à vonta
fo5 6 7*, o rei dá em troca não somente benefí de c que, em seguida, eles lhes asseguraram
cios que seu fisco retinha, mas ainda aqueles por um ano 5 70, dando-lhes depois para toda a
que outro havia retido. A lei dos lombardos vida5 71.
opõe os benefícios à propriedade 5 68. Os histo
riadores, as fórmulas, os códigos dos diferentes 5 69 Feudorum, liv. I, tít. I. (N. do A.)
povos bárbaros, todos os monumentos que nos 5 70 Era uma espécie de feudo precário que o se
restam, são unânimes. Enfim, os que escreve- nhor renovava ou não renovava no ano seguinte,
como assinalou Cujácio. (N. do A.)
5 71 “O Liber Feudorum ”, diz Laboulaye, “é uma
5 6 7 Vel reliquis quibuscumque beneficiis, quod- autoridade pouco sólida para a história do direito
cumque ille, vel fiscus noster, in ipsis locis tenuisse feudal na França; foi escrito na Itália, tendo em
noscitur. Liv. I, fór. XXX. (N. do A.) vista os costumes lombardos, e é obra de dois juris
5 68 Liv. III, tít. VIII, § 3. (N. do A.) consultos historiadores mais do que medíocres.”
Capítulo XVII
rão 580, o rei distingue três espécies de vassa Magno quer dizer que quem não tivesse terra
los: os do rei, os dos bispos, os do conde. Os própria entrava na milícia do conde e que
vassalos de um leudo581 ou senhor não eram quem possuísse um benefício do senhor partia
levados para a guerra pelo conde, a não ser com ele.
quando algum emprego na casa do rei impe Contudo, o Abade Dubos 58 4 pretende que,
disse os leudos de conduzi-los eles mesmos. quando se fala, nas capitulares, dos homens
Mas quem levava os leudos à guerra? Não que dependiam de um senhor particular, trata-
se pode pensar que fosse o rei, o qual ficava se somente dos servos: e baseia-se na lei dos
sempre à testa de seus fiéis. É por isso que, na$ visigodos, e na prática desse povo. Seria prefe
capitulares, vê-se sempre uma oposição entre rível fundamentar-se nas próprias capitulares.
os vassalos do rei e os dos bispos 582. Nossos A que acabo de citar diz formalmente o
reis, corajosos, altivos e magnânimos, não contrário. O tratado entre Carlos, o Calvo, e
estavam no exército para poder manter-se à seus irmãos fala igualmente dos homens livres,
testa dessa milícia eclesiástica; não eram essas que podem escolher à vontade um senhor ou o
pessoas que eles escolhiam para vencer ou rei: e essa disposição está em conformidade
morrer com eles. com muitas outras.
Mas esses leudos levavam igualmente seus Pode-se dizer, pcrtanto, que havia três espé
vassalos e subvassalos; e isto bem se revela cies de milícias: a dos leudos ou fiéis do rei,
nessa capitular 583, onde Carlos Magno orde que tinham, por seu turno, outros fiéis sob sua
na que todo homem livre que possuir quatro dependência; a dos bispos ou outros eclesiás
solares, quer em sua propriedade, quer no ticos, com seus vassalos; e finalmente a do
benefício de alguém, dirija-se contra o inimigo, conde, que conduzia os homens livres.
ou siga seu senhor. É evidente que Carlos Não digo que os vassalos não pudessem ser
submetidos ao conde, como os que têm um
comando particular dependem de outro que
580 Capitulare quintum, anni 819, art. 27, edição tem um comando mais geral.
de Baluze, pág. 618. (N. do A.)
581 De Vassis dominicis qui adhuc intra casam Vê-se mesmo que o conde e os enviados do
serviunt, et tamen beneficia habere noscuntur, statu- rei podiam obrigá-los a pagar o bando, isto é,
tum est ut quicumque ex eis cum domino imperatore uma multa, quando não houvessem cumprido
domi remanserint, vassalos suos casatos secum nom os compromissos de seu feudo.
retineant; sed cum comitê, cujus pagenses sunt, ire
permittant. Capitular XI, do ano 812, art. 7, edição Da mesma maneira, se os vassalos do rei
de Baluze, tomo I, pág. 494. (N. do A.) praticavam rapinas58 5, eram submetidos à
582 Capitular I do ano 812, art. 5. De hominibus punição do conde, se não preferissem subme
nostris, et episcoporum et abbatum qui vel benefi ter-se à do rei.
cia, vel talia própria habent, etc. Edição de Baluze,
tomo I, pág. 490. (N. do A.)
583 Do ano 812, cap. I, edição de Baluze, pág. 490. 58 4 Tomo III, liv. VI, cap. IV, pág. 299. Etablis-
Ut omnis homo liber qui quatuor mansos vestitos de sement de la Monarchie Française. (N. do A.)
proprio suo, sive de alicujus beneficio, habet, ipse se 58 5 Capitular do ano 882, art. 11, apud Vernis
praeparet, et ipse in hostem pergat, sive cum seniore Palatium, edição de Baluze, tomo II, pág. 17. ÍN. do
suo. (N. do A.) A.)
Capítulo XVIII
Do duplo serviço
Era um princípio fundamental da monar Luís, o Bonacheirão, do ano 815, faz que
quia que os que estavam sob a autoridade mili andem pari passu o poder militar do conde e
tar de alguém estavam consequentemente sob sua jurisdição civil sobre os homens livres;
sua jurisdição civil; também a capitular 58 6 de
igualmente os pleitos 58 7 do conde, que condu
58 6 Art. 1 e 2; e o concilio In Verno Palatio, do
zia à guerra os homens livres, eram denomi-
ano 845, art. 8, edição de Baluze, tomo II, pág. 17.
(N. do A.) 58 7 Pleitos ou audiência. (N. do Á.)
498 MONTESQUIEU
nados pleitos dos homens livres 588, do que eram igualmente oficiais militares e civis59 4; a
resultou sem dúvida essa máxima segundo a única diferença é que o duque tinha sob sua
qual apenas nos pleitos do conde, e não nos de autoridade muitos condes, embora tenha havi
seus oficiais, é que se podia julgar as questões do condes que não estiveram submetidos a ne
sobre a liberdade. Também o conde não con nhum duque, tal como nos ensina Fredegá-
duzia à guerra os vassalos dos bispos ou aba rio 59 5.
des589, porque eles não estavam sob sua juris Julgar-se-á, talvez, que o governo dos fran
dição civil; do mesmo modo, não conduzia ele cos era então muito rígido, pois os mesmos ofi
os subvassalos dos leudos; por isso, o glossá ciais tinham, ao mesmo tempo, sobre os súdi
rio 5 9 0 das leis inglesas nos diz 5 91 que aqueles tos, a autoridade militar e a autoridade civil, e
que òs saxões denominavam copies foram cha mesmo a autoridade fiscal: coisa que disse, nos
mados pelos normandos de condes, compa livros precedentes, ser uma das marcas distin
nheiros, porque partilhavam com o rei as mul tivas do despotismo.
tas judiciárias: igualmente vemos, em todos os Mas não se deve deduzir daí que os condes
tempos, que a obrigação de todo vassalo para julgassem sozinhos, e fizessem justiça como os
com 592 seu senhor foi a de portar armas e a de paxás a fazem na Turquia59 6; reuniam, para
julgar seus pares em sua corte 593. julgar as questões, espécies de audiências ou
Uma das razões que vinculavam assim o sessões, para as quais eram convocados os
direito de justiça ao de conduzir à guerra era a notáveis 59 7.
de que aquele que levava à guerra fazia, ao Para que se possa bem entender o que con
mesmo tempo, pagar os direitos do fisco, que cerne aos julgamentos, nas fórmulas, nas leis
consistiam em obrigações de transporte devi dos bárbaros e nas capitulares, direi que as
das pelos homens livres, e, em geral, em certos funções do conde, do gravião e do centurião
direitos judiciários dos quais falarei a seguir. eram as mesmas 598; que os juizes, os rachim-
Os senhores tiveram o direito de fazer justi burgos e os escabinos eram, sob nomes dife
ça em seu feudo, pelo mesmo princípio que rentes, as mesmas pessoas. Eram adjuntos do
delegou aos condes o direito de administrar conde e comumente havia sete deles: e, como
justiça em seus condados; e, para bem dizer, os não era necessário menos de doze pessoas para
condados nas modificações ocorridas nos julgar599, o conde preenchia o número com os
diversos tempos seguiram sempre as modifica notáveis600.
ções sobrevindas nos feudos; uns e outros Mas quem quer que tivesse a jurisdição, o
eram governados no mesmo plano e com as rei, o conde, o gravião, o centurião, os senho
mesmas idéias. Em uma palavra, os condes em res, os eclesiásticos, nenhum deles julgava
seus condados eram leudos; os leudos em suas sozinho; e esse uso, que tinha sua origem nas
senhorias eram condes. florestas da Germânia, manteve-se ainda quan-
Não. tiveram idéias justas os que conside
raram os condes como oficiais de justiça, e os 59 4 Vede a fórmula VII de Marculfo, liv. I, que
duques como oficiais militares. Uns e outros contém as cartas concedidas a um duque, patrício
ou conde, e que lhes concedem a jurisdição civil e a
administração fiscal. (N. do A.)
588 Capitulares, liv. ÍV da coleção de Anzegise, 59 6 Crônica, cap. LXXVIII, do ano 636. (N. do
art. 57; e a capitular V de Luís, o Bonacheirão, do A.)
ano 819, art. 14, edição de Baluze, tomo I, pág. 615. 59 6 Vede Gregório de Tours, liv. V, ad annum 580.
ÇN.doA.) (N. do A.)
589 Vede a esse respeito, pág. 457, a nota 5; e pág. 59 7 Mallum. (N. do A.)
458, a nota 1. (N. do A.) 598 Acrescentai aqui o que eu disse no liv.
590 O qual se encontra na coletânea de Guilherme XXVIII, cap. XXVIII; e no liv. XXXI, cap. VIII.
Lambardo, De Priscis Anglorum Legibus. (N. do (N. do A.)
A.) 599 Vede principalmente as capitulares de Luís, o
591 Na palavra satrapia. (N. do A.) Bonacheirão, acrescentadas à lei sálica, art. 2; e a
592 As Cortes de Jerusalém, cap. CCXXI e CCX- fórmula dos julgamentos, outorgada por Ducange,
XII, explicam bem isto. (N. do A.) no verbete boni homines. (N. do A.)
593 Os advogados da Igreja (advocati) estavam 600 Per bonos homines. Algumas vezes, havia só
igualmente à frente de seus pleitos e de sua milícia. notáveis. Vede o Apêndice àsfórmulas de Marculfo,
(N. do A.) cap. LI. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 499
do os feudos adquiriram nova forma. tas ocasiões públicas 601; e, quanto aos direi
Quanto ao poder fiscal, ele era tal, que o tos judiciários, havia leis que preveniam as
malversações 60 2.
conde quase não podia abusar dele. Os direitos
do príncipe com relação aos homens livres 601 E algumas obrigações sobre os rios a que me
referi. (N. do A.)
eram tão simples, que não consistiam, como 602 Vede a lei dos ripuários, tít. LXXXIX; e a lei
disse, senão em certos carros exigidos em cer dos lombardos, liv. II, tít. LII, § 9. (N. do A.)
Capítulo XIX
feito o ferido, pudessem cessar as inimiza com tão pouco dinheiro, houve entre eles tan
des 608. Com efeito, tendo os lombardos, povo tas penas pecuniárias.
pobre, se enriquecido com a conquista da Itá Essas leis cogitaram de marcar com preci
lia, as composições antigas tomavam-se ínfi são a diferença dos prejuízos, das injúrias, dos
mas, e não mais se faziam as reconciliações. crimes, a fim de que cada um conhecesse ao
Não duvido que esta consideração tenha obri certo até que ponto era lesado ou ofendido;
gado os outros chefes das nações conquista- que soubesse exatamente a reparação que
doras a constituir os diversos códigos de leis devia receber e, sobretudo, que não devia rece
de que dispomos hoje. ber mais do que isso.
A principal composição era aquela que o
assassino devia pagar aos parentes do morto. Deste ponto de vista, concebe-se que aquele
A diferença de condições implicava uma dife que se vingasse após ter recebido a reparação
rença nas composições: assim, a composição cometia um crime. Esse crime não continha
pela morte de um adalingo 609, nas leis dos menos uma ofensa pública do que uma ofensa
anglos610, era de seiscentos soidos, de duzen particular; constituía um desprezo para com a
tos pela de um homem livre, de trinta pela de própria lei. E foi tal crime que os legislado
um servo. A importância da composição esta res61 5 não deixaram de punir.
belecida pela cabeça de um homem era, pois, Havia outro crime que foi, principalmente,
uma de suas grandes prerrogativas; pois, além considerado perigoso, quando esses povos per
da distinção que fazia de sua pessoa, determi deram no governo civil alguma coisa de seu
nava para ele, entre nações violentas, uma espírito de independência 61 6 e quando os reis
maior segurança. cogitaram de introduzir no Estado uma melhor
A lei dos bávaros faz-nos sentir isso 611: ela polícia; esse crime consistia em não querer de
dá o nome das famílias bávaras que recebiam nenhum modo dar ou não querer receber a
uma composição dobrada, porque eram as pri- satisfação. Em diversos códigos das leis dos
meiraç após os Agilolfingos612. Os Agilol- bárbaros vimos que os legisladores 61 7 obriga
fingos eram da raça ducal e o duque era esco vam a isso. Com efeito, quem se recusasse a
lhido entre eles; tinham uma composição receber a reparação desejava manter seu direi
quádrupla. A composição para o duque exce to de vingança; quem se recusasse a fazê-la
dia de um terço a que era fixada para os abandonava ao ofendido seu direito de vingan
Agilolfingos. “Porque é duque”, diz a lei, “ren- ça; e isso é que as pessoas prudentes haviam
de-se-lhe mais honra do que a seus parentes.” reformado nas instituições dos germanos, que
Todas essas composições eram estabele convidavam à reparação, mas não a obriga
cidas a dinheiro. Mas como esses povos, sobre vam.
tudo enquanto se mantiveram na Germânia, Falei de um texto da lei sálica, em que o
quase não dispunham de dinheiro, podia-se dar legislador deixava à liberdade do ofendido
gado, trigo, móveis, armas, cães, aves de caça, receber ou não a reparação; é essa lei que proi-
. Amiúde a lei fixava mesmo o
terras etc. 613*
valor dessas coisas 61 4; o que explica como, 81 s Vede a lei dos lombardos, liv. I, tít. XXV; §
21; ibid., liv. I, tít. IX, §§ 8 e 34; ibid., § 38; a capi
608 Liv. I, tít. VII, § 15. (N. do A.) tular de Carlos Magno, do ano 802, cap. XXXII,
609 Adalingo, nobre. contendo uma instrução dada àqueles que enviava
610 Vede a lei dos anglos, tít. I, §§ 1, 2,4; ibid., tít. às províncias. (N. do A.)
V, § 6; a lei dos bávaros, tít. I, cap. VIII e IX; e a lei 81 8 Vede em Gregório de Tours, liv. VII, cap.
dos frisios, tít. XV. (N. do A.) XLVII, o pormenor de. um processo, em que uma
811 Tít. II, cap. XX. (N. do A.) das partes perde a metade da reparação que fora
812 Hozidra, Ozza, Sagana, Habilingua, Aniena. atribuída, por ter feito justiça com as próprias
Ibid. (N. do-A.) mãos, em lugar de receber a reparação, ainda que
813 Assim, a lei de Ina estimava a vida numa certa sofresse alguns excessos depois. (N. do A.)
soma de dinheiro, ou numa certa porção de terra. 81 7 Vede a lei dos saxões, cap. III, § 4; a lei dos
Leges Inae regis, tít. De villico regio. De priscis lombardos, liv. I, tít. XXXVII, §§ 1 e 2; e a lei dos
Anglorum legibus. Cambridge, 1644. (N. do A.) alemães, tít. XLV, §§ 1 e 2. Esta última lei permitia
81 4 Vede a lei dos saxões, que faz mesmo esta fixa que se fizesse justiça com as próprias mãos imedia
ção para vários povos, cap. XVIII. Vede também a tamente e no primeiro impulso. Vede também as
lei dos ripuários, tít. XXXVI, § 11; a lei dos báva capitulares de Carlos Magno, do ano 779, cap.
ros, tít. I, §§ 10 e 11. Si aurum non habet, donet XXII; do ano 802, cap. XXXII; e a do mesmo, do
aliam pecuniam, mancipia, terram etc. (N. do A.) ano 805, cap. V. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 501
bia a quem despojara um cadáver o convívio punia os parentes que procurassem vingança
dos homens61 8, até que os parentes, aceitando por isso.
a reparação, consentissem que poderia viver Não é raro encontrar nos códigos das leis
entre os homens. O respeito pelas coisas santas dos bárbaros composições por ações involun
fez com que os que redigiram as leis sálicas tárias. A lei dos lombardos é quase sempre
não tocassem de modo algum no uso antigo. judiciosa; ordenava que 620, em tal caso, se
Teria sido contrário à justiça conceder uma fizesse a composição segundo a generosidade,
reparação aos parentes de um ladrão morto no e que os parentes não pudessem procurar
ato do roubo, ou aos de uma mulher que fora vingança.
despedida após uma separação por crime de
Clotário fez um decreto muito sábio; proi
adultério. A lei dos bávaros não estabelecia
biu que quem fosse roubado recebesse sua
composição para casos semelhantes619 e
composição em segredo621 e sem a ordem do
juiz. Logo veremos o motivo de tal lei.
618 Os compiladores das leis dos ripuários pare
cem ter modificado isso. Vede o tít. LXXXV de tais
leis. (N. do A.) 620 Liv. I, tít. IX, §4. (N. do A.)
619 Vede o decreto de Tassilon, De popularibus 621 Pactus pro tenore pacis inter Childebertum et
legibus, art. 3, 4, 10, 16, 19; a lei dos anglos, tít. Clotarium, anno 593; <: Decretio Clotarii II regis,
VII, § 4. (N. do A.) circa annum 595, cap. XI. (N. do A.).
Capítulo XX
nham usurpado os direitos dos príncipes? A mas como roubam entre si os juizes de aldeia e
história nos informa suficientemente que ou procuradores. Seria preciso dizer que tais guer
tros povos fizeram cometimentos contra seus reiros, em todas as províncias particulares do
soberanos; mas não se vê nascer o que se cha reino, e em tantos reinos, teriam elaborado um
mou as justiças dos senhores. Era, pois, no sistema geral de política. Loyseau fá-los racio
fundo dos usos e dos costumes dos germanos cinar como ele próprio raciocinava em seu
que importava buscar a sua origem. gabinete.
Peço verifiquem em Loyseau 63 6 qual a Direi mais: se a justiça não era uma depen
maneira que ele supõe que usaram os senhores dência do feudo, por que se vê em toda
para formar e usurpar suas diversas justiças. parte 63 7 que o serviço do feudo era servir ao
Seria necessário que tivessem sido eles as pes rei ou ao senhor, tanto nas suas cortes quanto
soas mais refinadas do mundo, e que houves em suas guerras?
sem roubado, não como pilham os guerreiros,
63 7 Vede Du Cange, na palavra hominium. (N. do
63 6 Traité des Justices de Village. (N. do A.) A.)
Capítulo XXI
petência entre os juizes das igrejas e seus ofi Reims, declararam que os vassalos das igrejas
ciais. A capitular de Carlos Magno, do ano estão incluídos em sua imunidade6 48. A capi
802, prescreve aos bispos e aos abades as qua tular de Carlos Magno, do ano 8066 49, ordena
lidades que devem possuir seus oficiais de jus que as igrejas tenham a justiça criminal e cível
tiça. Outra 6 4 6, do mesmo príncipe, proíbe aos
sobre todos os que habitam em seu território.
oficiais reais que exerçam qualquer jurisdição
sobre os que cultivam as terras eclesiásti Finalmente, a capitular de Carlos, o Calvo, faz
cas647, a não ser que tenham adquirido tal distinção entre as jurisdições do rei 6 50, as dos
condição por fraude e para se subtrair aos senhores e as das igrejas; e nada mais direi a
encargos públicos. Os bispos, reunidos em respeito.
6 4 6 Na lei dos lombardos, liv. II, tít. XLIV, cap. II, 6 49 Foi acrescentada à lei dos bávaros, art. 7; vede
ed. de Lindembrock. (N. do A.) também o art. 3 da.ed. de Lindembrock, pág. 444.
6 4 7 Servi aldiones, libellarii antiqui, vel alii noviter Imprimis omnium jubendum est ut habeant eccle-
facti. Ibid. (N. do A.) siae earum Justitias, et in vita illorum qui habitant in
6 48 Carta do ano 858, nas capitulares, pág. 108. ipsis ecclesiis et post, tam in pecuniis quam et in
Sicut illae res et facultates in quibus vivunt clerici, substantiis earum. (N. do A.)
ita et illae sub consecratione immunitatis sunt de 6 50 Do ano 857, In synodo apud Carisiacum, art.
quibus debent militare yassalli. (N. do A.) 4, ed. de Baluze, pág. 96. (N. do A.)
Capítulo XXII
lia, feita tanto para os francos quanto para os faz a distinção entre suas próprias senhorias e
lombardos, este príncipe, após ter imposto as dos particulares.
penas aos condes e a outros oficiais reais que Não se dispõe de concessões originárias dos
prevaricam no exercício da justiça, ou que feudos, porque foram estabelecidos pela parti
demoram em administrá-la, ordena que 6 5 7, se lha que se sabe ter sido feita entre os vencedo
ocorrer que um franco ou um lombardo que res. Portanto, não se pode provar, por contra
tenha um feudo não queira administrar a justi tos originários, que as justiças, inicialmente,
ça, o juiz, em cujo distrito ele estiver, suspen tenham sido inerentes aos feudos. Mas se, nas
derá o exercício de seu feudo; e que, nesse fórmulas das confirmações ou das translações
intervalo, o juiz ou seu enviado administrará a perpétuas desses feudos, encontra-se, como se
justiça. disse, que a justiça estava aí estabelecida, era
Uma capitular de Carlos Magno 6 58 prova preciso que esse direito de justiça fosse da
que os reis não arrecadavam em toda parte os natureza do feudo e uma de suas principais
freda. Outra6?9 do mesmo príncipe nos deixa prerrogativas.
ver as regras e o tribunal feudais já estabele Temos maior número de monumentos que
cidos. Outra, de Luís, o Bonacheirão, ordena fixam a justiça patrimonial das igrejas em seu
que, quando aquele que possui um feudo não território, do que o temos para provar a dos
administra justiça 6 60, ou impede que ela seja benefícios ou feudos dos leudos ou fiéis, por
dois motivos. Primeiro, porque a maior parte
administrada, se viva discretamente em sua
dos monumentos que nos restam foi conser
casa até que seja feita a justiça. Citarei ainda
vada ou recolhida pelos monges para a utili
duas capitulares de Carlos, o Calvo, uma de
dade de seus mosteiros. Segundo, porque,
861 6 61 em que se vêem jurisdições particu tendo sido formado o patrimônio das igrejas
lares estabelecidas, dos juizes e dos oficiais por concessões particulares, e uma espécie de
sobre eles; a outra6 62 do ano 864, em que se derrogação à ordem estabelecida, eram neces
sárias chartas para isso; ao passo que, sendo
6 5 7 Et siforsitan Francus aut Longobardus habens as concessões feitas aos leudos consequências
beneficium justitiam facere noluerit, ille judex in da ordem política, não se necessitava de ter, e
cujus ministério fuerit, contradicat UH beneficium
suum, ínterim, dum ipse aut missus ejus justitiam muitos menos de conservar, uma charta parti
faciat. Vede ainda a mesma lei dos lombardos, liv. cular. Frequentemente, mesmo os reis conten-
II, tít. III, § 2, que se relaciona com a capitular de tavam-se com fazer urna simples tradição pelo
Carlos Magno do ano 779, art. 21. (N. do A.) cetro, como se verifica pela vida de São
6 58 A terceira do ano 812, art. 10. (N. do A.)
6 59 A segunda capitular do ano 813, art. 14 e 20, Mauro.
pág. 509. (N. do A.) Mas a terceira fórmula de Marculfo 6 63 pro
6 60 Capitulare quintum anni 579,art. 23, ed. de va-nos sobejamente que o privilégio de imuni
Baluze, pág. 617. Ut ubicumque missi, aut episco- dade, e por conseguinte o da justiça, era
pum, aut abbatem, aut alium quemlibet honore
praeditum invenerint, qui Justitiam facere noluit vel comum aos eclesiásticos e aos seculares, pois é
prohibuit, de ipsius rebus vivant quandiu in eo loco feita tanto para uns como para os outros.
justitiasfacere debent. (N. do A.) Acontece o mesmo com a constituição de Clo-
6 61 Edictum in Carisiaco, em Baluze, tomo II, pág. tário II 6 6 4.
iSZ. Cfausquísque advocatus pro omnibus de sua
advocatione. . . in convenientia ut cum ministeria-
libus de sua advocatione quos invenerit contra hunc 6 63 Liv. I. Maximum regni nostri augere credimus
bannum nostrum fecisse. . . castigei. (N. do A.) monirnentum, si beneficia opportuna locis ecclesia-
6 62 Edictum Pistense, art. 18, ed. de Baluze, tomo rum, aut cui volueris dicere, benevola deliberatione
II, pág. 181. Si in fiscum nostrum, vel in quamcum- concedimus. (N. do A.)
que immunitatem, aut alicujus potentis potestatem 6 64 Citei-a no capítulo anterior: Episcopi vel
vel proprietatem confugerit etc. (N. do A.) potentes etc. (N. do A.)
506 MONTESQUIEU
Capítulo XXIII
É oportuno que, antes de terminar este livro, ocupar do principal. Aliás, tantas pesquisas
eu examine um pouco a obra do Sr. Abade não nos permitem imaginar que nada tenha
Dubos, porque minhas idéias estão em perpé mos encontrado: a extensão da viagem faz crer
tua oposição às suas; e porque, se ele encon que finalmçnte se chegou.
trou a verdade, eu não a encontrei. Mas, quando se examina bem, depara-se
Essa obra seduziu muita gente, porque é com um colosso imenso que tem pés de barro;
escrita com muita arte; porque se supõe aí e porque os pés são de barro é que o colosso é
eternamente o que se encontra em questão; imenso. Se o sistema do Sr. Abade Dubos
porque, quanto mais faltam provas, mais- se tivesse tido bom alicerce, ele não teria sido
multiplicam as probabilidades; porque uma obrigado a fazer três volumes mortais para
infinidade de conjecturas são apresentadas prová-lo; teria encontrado tudo em seu assun
como princípios e daí se tiram como conse to; e, sem ir procurar em todas as partes o que
quências outras conjecturas. O leitor esquece está muito longe dele, a própria razão ter-se-ia
que duvidou para começar a acreditar. E, encarregado de colocar esta verdade na cadeia
como se carrega com uma erudição sem fim, das outras verdades. A história e nossas leis
não no sistema, mas ao seu lado, o espírito é ter-lhe-iam dito: “Não tenhais tanto trabalho:
distraído por coisas acessórias e deixa de se prestaremos testemunho por vós”.
Capítulo XXIV
O Sr. Abade Dubos quer eliminar toda espé preferiram viver sob o domínio de Clóvis a
cie de idéia de que os francos tenham entrado viver sob a dominação dos romanos, ou sob
has Gálias como conquistadores; segundo ele, suas próprias leis. Ora, os romanos desta parte
nossos reis, convocados pelos povos, nada das Gálias que ainda não fora invadida pelos
mais fizeram que tomar o lugar e suceder aos bárbaros eram, de acordo com o Sr. Abade
direitos dos imperadores romanos. Dubos, de duas espécies: uns pertenciam à
Essa pretensão não se pode aplicar ao confederação armórica e haviam expulsado os
tempo em que Clóvis, entrando nas Gálias, oficiais do imperador, para se defenderem con
saqueou e tomou as cidades; não pode apli tra os bárbaros e se governarem por suas pró
car-se tampouco ao tempo em que derrotou prias leis; os outros obedeciam aos oficiais
Siágrio, oficial romano, e conquistou a região romanos. Ora, o Sr. Abade Dubos prova que
que este governava; só pode relacionar-se, os romanos, que ainda estavam sujeitos ao
pois, àquela época em que Clóvis, tornando-se império, tinham convocado Clóvis? De ne
senhor de grande parte das Gálias mediante a nhum modo. Prova que a república dos armó-
violência, teria sido designado pela escolha e ricos tenha convocado Clóvis, e feito mesmo
pelo amor dos povos à dominação do resto do alguns tratados com ele? De modo algum. Por
país. E não basta que Clóvis tenha sido recebi mais longe que possa nos dizer qual foi o desti
do, cumpre que tenha sido convocado; cumpre no dessa república, ele não poderia mostrar-lhe
que o Sr. Abade Dubos prove que os povos a existência; e, embora siga-a desde o tempo de
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 507
Honório até a conquista de Clóvis, embora re nega é igual à autoridade de quem o alega.
late com arte admirável todos os aconteci Tenho mesmo um motivo para tanto. Gregório
mentos daqueles tempos, ela permaneceu invi de Tours, que fala do consulado, nada diz
sível aos autores. Isso porque há muita acerca do proconsulado. Este proconsulado
diferença entre provar, por uma passagem de somente teria sido de, aproximadamente, seis
Zósimo 6 6 5, que, sob o império de Honório, a meses. Clóvis morreu um ano e meio após ter
região armórica e as outras províncias das Gá sido feito cônsul; não é possível transformar o
lias se revoltaram e formaram uma espécie de proconsulado num cargo hereditário. Enfim,
república 6 6 6 e fazer ver que, malgrado as quando o consulado e, se quiserem, o procon
diversas pacificações das Gálias, os armóricos sulado lhe foram outorgados, ele já era o se
sempre constituíram uma república particular, nhor da monarquia e todos os seus direitos
que subsistiu até a conquista de Clóvis. No estavam estabelecidos.
entanto, para estabelecer seu sistema, teria A segunda prova que o Sr. Abade Dubos
necessidade de provas bem fortes e precisas. alega é a cessão feita pelo Imperador Justi-
Pois, quando se vê um conquistador entrar niano aos filhos e aos netos de Clóvis de todos
num Estado e submeter uma grande parte pela os direitos do império sobre as Gálias. Teria
força e pela violência e se observa, algum muitas coisas para dizer acerca dessa cessão.
tempo depois, o Estado inteiro submisso, sem Pode-se julgar da importância que atribuíram
que a história diga como aconteceu, tem-se um a isso os reis dos francos pela maneira como
mui justo motivo para acreditar que a situação lhe executaram as condições. Aliás, os reis dos
terminou da forma como começou. francos eram senhores das Gálias; eram sobe
Uma vez falhado este ponto, é fácil ver que ranos pacíficos; Justiniano não possuía uma
todo o sistema do Sr. Abade Dubos desaba polegada de terra; o império do Ocidente fora
completamente; e .todas as vezes que ele tirar destruído havia muito tempo, e o imperador do
alguma consequência do princípio de que as Oriente somente tinha direitos sobre as Gálias
Gálias não foram conquistadas pelos francos, como representante do imperador do Ocidente;
mas que os francos foram chamados pelos eram direitos sobre direitos. A monarquia dos
romanos, sempre se poderá negá-la. francos já estava fundada; estava feito o regu
O Sr. Abade Dubos prova seu princípio lamento de seu estabelecimento; convencio
pelas dignidades romanas de que Clóvis foi nados, os direitos recíprocos das pessoas e das
investido; ele pretende que Clóvis tenha suóe- diversas nações que viviam na monarquia;
dido a Childerico, seu pai, no emprego de se dadas, as leis de cada nação e mesmo redigidas
nhor da milícia. Esses dois cargos, porém, são por escrito. Que fazia esta cessão estranha a
purámente de sua criação. A carta de São um estabelecimento já formado?
Que quer dizer o Sr. Abade Dubos com os
Remi a Clóvis, na qual ele se baseia6 6 7, não
discursos de todos esses bispos, que, na desor
passa de uma felicitação pelo advento à coroa.
dem, na confusão, na queda total do Estado,
Quando o objeto de um escrito é conhecido,
nas devastações da conquista, procuram lison-
por que atribuir-lhe um que não o é?
jear o vencedor? Que pressupõe a lisonja
Clóvis, no fim de seu reinado, foi feito côn senão a fraqueza daquele que é obrigado a
sul pelo Imperador Anastásio; mas que direito lisonjear? Que prova a retórica e a poesia,
podia outorgar-lhe uma autoridade simples senão o emprego mesmo dessas artes? Quem
mente anual? Há indícios, diz o Sr. Abade não ficaria admirado de ver Gregório de
Dubos, de que, no mesmo diploma, o Impera Tours, que, depois de ter falado dos assassí
dor Anastásio tenha feito Clóvis procônsul. E, nios de Clóvis, diz que, entretanto, Deus pros-
quanto a mim, direi que há possibilidade de ternava todos os dias seus inimigos, porque ele
que não o tenha feito. Sobre um fato que não é marchava em seus caminhos? Quem pode
fundado em nada, a autoridade de quem o duvidar de que o clero não tenha ficado con
tente com a conversão de Clóvis e disso tenha
6 5 5 História, liv. VI. (N. do A.) tirado mesmo grandes vantagens? Mas quem
6 6 8 Totusque tractus armoricus aliaeque Gallia- pode duvidar, ao mesmo tempo, de que os
rum provinciae. Ibid. (N. do A.)
6 6 7 Tomo II, liv. III, cap. XVIII, pág. 270. (N. do povos não tenham experimentado todas as des
A.) graças da conquista, e que o governo romano
508 MONTESQUIEU
não tenha cedido ao governo germânico? Os de Siágrio. Mas vede como o pontífice dos ju
francos não quiseram e mesmo não puderam deus vem ao seu encontro; escutai o oráculo de
mudar tudo; e mesmo poucos vencedores têm Júpiter Amon; lembrai-vos do que lhe fora
essa mania. Mas, para que todas as conse vaticinado em Górdio; vede como todas as
quências do Sr. Abade Dubos fossem verda cidades correm, por assim dizer, ao seu encon
deiras, teria sido necessário que não somente tro; como os sátrapas e os grandes acorrem em
não tivesse mudado nada entre os romanos, multidão. Ele se veste à maneira dos persas; é
como também que eles mesmos tivessem a toga consular de Clóvis. Não lhe ofereceu
mudado. Dario a metade de seu reino? Dario não foi
Seguindo o método do Sr. Abade Dubos, eu assassinado como um tirano? A mãe e a espo
me empenharia em provar da mesma forma sa de Dario não choraram a morte de Alexan
que os gregos não conquistaram a Pérsia. dre? Quinto Cúrcio, Arriano, Plutarco eram
Primeiramente, falaria dos tratados que algu contemporâneos de Alexandre? A impren
mas de suas cidades firmaram com os persas; sa 6 68 não nos deu as luzes que faltavam a tais
falaria dos gregos que estiveram assoldadados autores? Eis a história do Estabelecimento da
aos persas, como os francos o estiveram aos Monarquia Francesa nas Gálias.
romanos. Se Alexandre entrou no país dos per
sas, sitiou, tomou e destruiu a cidade de Tiro, 6 68 Vede o Discurso preliminar do Abade Dubos.
trata-se de uma questão particular, tal como a (N. do A.)
Capítulo XXV
Da nobreza francesa
O ST. Abade Dubos afirma que, nos primei via trezentos soidos de composição, do roma
ros tempos de nossa monarquia, havia uma no possuidor para quem prescrevia cem, e do
única ordem de cidadãos entre os francos. Esta romano tributário para quem prescrevia ape
afirmação injuriosa ao sangue de nossas pri nas quarenta e cinco. E, como a diferença das
meiras famílias não o seria menos às três gran composições constituía a principal distinção,
des casas que reinaram sucessivamente sobre conclui que, entre os francos, havia uma única
nós. Não iria a origem de sua grandeza per- ordem de cidadãos e que, entre os romanos,
der-se, portanto, no esquecimento, na noite e havia três.
no tempo? A história iluminaria os séculos em É surpreendente como seu próprio erro não
que teriam sido famílias comuns; e, para que o tenha feito descobrir seu erro. Com efeito,
Chilperico, Pepino e Hugo Capeto fossem era um caso extraordinário que os nobres
romanos que viviam sob a dominação dos
gentis-homens, cumpria ir buscar sua origem
entre os romanos ou entre os saxões, isto é, francos tivessem tido uma reparação maior e
fossem pessoas mais importantes que os mais
entre as nações subjugadas6 69?
ilustres francos e-seus maiores capitães. Que
O Sr. Abade Dubos fundamenta6 70 sua opi indício de que o povo vencedor tenha tido tão
nião na lei sálica. É claro, diz ele, por esta lei, pouco respeito para consigo mesmo e tenha
qvte não havia duas ordens de cidadãos entre tido tanto para com o povo vencido? Demais,
os francos. Prescrevia ela duzentos soidos de o Sr. Abade Dubos cita as leis das outras
composição para a morte de qualquer franco nações bárbaras, que provam que havia entre
que fosse671; mas distinguia, entre os roma elas diversas ordens de cidadãos. Seria muito
nos, o conviva do rei, para cuja morte prescre- extraordinário que esta regra geral tivesse
encontrado uma exceção precisamente entre os
699 V. supra, nota 486. francos. Isso tê-lo-ia feito pensar que entendia
6 70 Vede o Etablissement' de la Monarchie Fran-
çaise, tomo III, liv. IV, cap. IV, pág. 304. (N. do A.) mal, ou que aplicava mal os textos da lei sáli
6 71 Ele cita o título XLIV desta lei, e a lei dos ca; o que lhe aconteceu efetivamente.
ripuários, tít. VII e XXXVI. (N. do A.) Ao abrir esta lei, vê-se que a composição
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 509
para a morte de um antrustião 6 72, isto é, de É singular ver como ele foge às passagens
um fiel ou vassalo do rei, era de seiscentos soi que o pressionam de todos os lados 6 79. Fala-
dos, e que para a morte de um romano, convi se-lhe dos grandes, dos senhores, dos nobres?
va do rei, era tão-somente de trezentos 6 73. São, diz ele, simples distinções, e não distin
Vê-se 6 7 4 aí que a reparação para a morte de ções de ordem; são coisas de cortesia, e não
um simples franco era de duzentos soidos6 7 5, prerrogativas da lei; ou então, diz ele, as pes
que a para a morte de um romano 6 7 6, de con soas de que se fala pertenciam ao conselho do
dição ordinária, era apenas de cem. Pagava-se rei; podiam até ser romanos; mas sempre
ainda para a morte de um romano tributá havia uma única ordem de cidadãos entre os
rio677, espécie de servo ou de libgrto, uma francos. De outro lado, se falou de algum fran
composição de quarenta e cinco soidos; mas co de classe inferior 680, trata-se dos servos; é
não falarei mais disso, tampouco da reparação desta maneira que interpreta o decreto de Chil
para a morte do servo franco, ou do liberto deberto. Necessário se torna que me detenha
franco: não se trata aqui dessa terceira ordem neste decreto. O Abade Dubos tornou-o famo
de pessoas. so porque dele se serviu para provar duas coi
Que faz o Abade Dubos? Passa em silêncio sas: uma681, que todas as composições que se
a primeira ordem de pessoas entre os francos, encontram nas leis dos bárbaros eram apenas
isto é, o artigo que concerne aos antrustiões; e, interesses civis acrescidos às penas corporais,
em seguida, comparando o franco ordinário, o que subverte totalmente todos os antigos
para cuja morte se pagavam duzentos soidos monumentos; a outra, que todos os homens li
de composição, com o que chama as três or vres eram julgados direta e imediatamente pelo
dens entre os romanos, e para cuja morte paga rei682, o que é contestado por uma infinidade
vam-se reparações diferentes, acha ele que de passagens e de autoridades que nos dão a
havia somente uma ordem de cidadãos entre os conhecer a ordem judicial daqueles tempos 683.
francos, e que havia três entre os romanos. Diz esse decreto, feito numa assembléia da
Como, segundo ele, havia uma única ordem nação 68 4, que, se o juiz encontrar um ladrão
de pessoas entre os francos, seria conveniente famoso, mandá-lo-á arnarrar a fim de ser reme
que houvesse somente uma também entre os tido ao rei, se for um franco (Francus); mas, se
for uma pessoa mais fraca (debilior persona),
borguinhões, porque seu reino formou uma das
principais peças de nossa monarquia. Mas há será enforcado no local. Segundo o Abade
Dubos, Francus é um homem livre, debilior
em seus códigos três espécies de composi
ções678; uma para o nobre borguinhão ou persona é um servo. Desconhecerei por um
romano, outra para o borguinhão ou romano momento o que pode significar aqui a palavra
de condição medíocre, a terceira para os que Francus; e começarei examinando o que se
pode entender pelas palavras uma pessoa mais
pertenciam a uma condição inferior nas duas
fraca. Digo que, em qualquer que seja a língua,
nações. O Abade Dubos não citou esta lei.
todo comparativo supõe necessariamente três
termos, o maior, o menor e o mínimo. Se se
6 72 Qui in truste dominica est, tít. XLIV, §4;e tratasse aqui apenas dos homens livres e dos
isso relaciona se com a fórmula XIII de Marculfo,
De reges anírusíione. Vede também o tít. LXVI da
lei sálica, §§ 3 e 4; e o út. LXXIV; e a lei dos ripuá 3 79 Etablissement de la Monarchie Française,
rios, tít. XI; e a capitular de Carlos, o Calvo, Apud tomo III, liv. VI, cap. IV e V. (N. do A.)
Carisiacum, do ano 877, cap. XX. (N. do A.) 680 Ibid., cap. V, págs. 319 e 320. (N. do A.)
6 7 3 Lei sálica, tít. XLIV, § 6. (N. do A.) 681 Ibid., liv. VI, cap. IV, págs. 307 e 308. (N- do
6 7 4 Ibid., § 4. (N. do A.) A.)
6 7 5 Ibid., § l.(N. do A.) 682 Ibid., tomo III, cap. IV, pág. 309; e no cap.
6 7 6 Ibid., § 15. (N. do A.) seg., págs. 319 e 320. (N. do A.)
6 7 7 Ibid., § 7. (N. do A.) 683 Vede o livro XXVIII desta obra, cap. XXVIII.
6 78 Si quis, quolibet casu, dentem optimati Bur- e o livro XXXI, cap. VIII. (N. do A.)
gundioni vel Romano nobili excusserit, solidos 68 4 Itaque Colonia convenit et ita bannivimus, ut
viginti quinque cogatur exsolvere: de mediocribus unusquisque judex criminosum latronem ut audierit,
personis ingenuis, tam Burgundionibus quam Ro- ad casam suam ambulet et ipsum ligare faciat: ita
manis, si dens excussus fuerit, decem solidis compo- ut, si Francus fuerit, ad nostram praesentiam diriga-
natur; de inferioribuspersonis, quinque solidos. Art. tur; et, si debilior persona fuerit, in loco pendatur.
1, 2 e 3 do tít. XXVI da lei dos borguinhões. (N. do Capitular da ed. de Baluze, tomo I, pág. 19. (N. do
A.) A.)
510 MONTESQUIEU
servos, ter-se-ia dito um servo, e não um dade de nobres homens, uma passagem da vida
homem de menor poder. Assim, debilior perso- de Luís, o Bonacheirão, se aplicará a estas
na de nenhum modo significa um servo, mas espécies de gente! “Talvez também”, acres
uma pessoa abaixo da qual se encontra o centa ainda690, “que Hebon não tivesse sido
servo. Suposto isso, Francus não significará escravo na nação dos francos, mas na nação
um homem livre, e sim um homem poderoso: e saxônia, ou em outra nação germânica, em que
Francus é tomado aqui nesta acepção, porque, os cidadãos achavam-se divididos em várias
entre os francos, eram sempre aqueles que, no ordens.” Portanto, por causa do talvez do
Estado, dispunham de maior poder, e que era Abade Dubos, não terá havido nobreza na
mais difícil para o juiz ou para o conde corri nação dos francos. Mas não houve jamais um
gir. Esta explicação se coaduna com grande talvez mais mal aplicado. Vimos que Tega
número de capitulares68*5 que determinam os no691 distingue os bispos que se opuseram a
casos em que os criminosos podiam ser remeti Luís, o Bonacheirão, dos quais uns tinham
dos ao rei, e os que não o podiam. sido servos e os outros eram de uma nação
Encontra-se na vida de Luís, o Bonacheirão, bárbara. Hebon era dos primeiros, e não dos
escrita por Tegano68 6, que os bispos foram os segundos. Aliás, não sei como se pode dizer
principais autores da humilhação desse impe que um servo tal como Hebon teria sido saxão
rador, sobretudo os que tinham sido servos e ou germânico: um servo não tem família, nem,
os que haviam nascido entre os bárbaros. Te por conseguinte, nação. Luís, o Bonacheirão,
gano apostrofa assim Hebon, que este príncipe libertou Hebon; e, como os servos libertos
tirara da servidão e fizera arcebispo de Reims: tomavam a lei de seu senhor, Hebon tornou-se
“Que recompensa o imperador recebeu de tan franco, e não saxão ou germano.
tos benefícios 68 7 ! Ele te fez livre, e não nobre; Ataquei, cumpre que me defenda. Dir-me-ão
não podia fazer-te nobre após ter-te dado a que o corpo dos antrustiões formava efetiva
liberdade”. mente no Estado uma ordem distinta da dos
homens livres mas que, como os feudos foram
Esse discurso, que prova tão formalmente
a princípio amovíveis, e em seguida para toda
duas ordens de cidadãos, não embaraça o
a vida, isso não podia formar uma nobreza de
Abade Dubos. Ele responde desta maneira688:
origem, pois as prerrogativas não estavam
“Essa passagem não quer dizer que Luís, o
ligadas a um feudo hereditário. Foi esta obje
Bonacheirão, não tenha podido fazer que
ção sem dúvida que fez o Sr. de Valois pensar
Hebon entrasse na ordem dos nobres: Hebon,
que havia apenas uma ordem de cidadãos entre
como arcebispo de Reims, seria da primeira
ordem, superior à da nobreza”. Deixo ao leitor os francos: sentimento que o Abade Dubos
tirou dele, e que ele somente deturpou à força
decidir se essa passagem não o quer dizer; dei
de más provas. Como quer que seja, não teria
xo-lhe julgar se se trata aqui de uma prece
dência do clero sobre a nobreza. “Essa passa sido o Abade Dubos que poderia fazer esta
objeção. Pois, tendo dado três ordens de
gem prova tão-somente”, continua689 o Abade
nobreza romana, e a qualidade de conviva do
Dubos, “que os cidadãos nascidos livres eram
rei para a primeira, não teria podido dizer que
qualificados de homens nobres: no uso do
este título assinalasse mais uma nobreza de
mundo, nobre homem e homem nascido livre
por muito tempo queriam dizer a mesma origem do que o de antrustião. Mas é preciso
uma resposta direta. Os antrustiões ou fiéis
coisa.”
não eram tais porque tinham um feudo; mas
Como! pelo fato de, em nossos tempos dava-se-lhes um feudo, porque eram antrus
modernos, alguns burgueses tomarem a quali tiões ou fiéis. Lembre-se o que disse nos pri
meiros capítulos deste livro: não tinham,
68 5 Vede o livro XXVIII desta obra, cap. XXVIII, então, como tiveram depois, um feudo; mas se
e o livro XXXI, cap. VIII. (N. do A.)
68 6 Cap. XLIII e XLI V. (N.do A.)
68 7 O qualem remunerationem reddidisti ei! Fecit 690 Dubos, ibid. (N. do A.)
te liberum, nom nobilem, quod impossibile est post 691 “Omnes episcopi molestifuerunt Ludovico, et
libertatem. Ibid. Ibid. (N. do A.) maxime ii quos e servili conditione honoratos habe-
688 Etablissement de la Monarchie Française, bat, cum his qui ex barbaris nationibus ad hocfasti-
tomo III, liv. VI, cap. IV, pág. 316. (N. do A.) gium perducti sunt. ’’ De Gestis Ludovici Pii, cap.
689 Ibid., liv. VI, cap. IV, pág. 316. (N. do A.) XLIII e XLIV. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 511
tivessem aquele, não teriam outro, tanto por uma idéia do que er a a antiga nobreza france
que os feudos eram concedidos no nascimento, sa, nos dirá que jamais alguém se queixou na
como porque eram outorgados muitas vezes Turquia de que se tenham elevado às honrarias
nas assembléias da nação e, finalmente, por e às dignidades pessoas de baixo nascimento,
que, como era do interesse ter um, era também como havia quem se lamentasse nos reinados
do interesse do rei dar-lhes um. Essas famílias de Luís, o Bonacheirão, e de Carlos, o Calvo?
eram distinguidas por sua dignidade de fiéis e Não se queixavam no tempo de Carlos Magno,
pela prerrogativa de poder recomendar-se por porque este príncipe sempre distinguiu as anti
um feudo. Farei ver no livro seguinte692 como,
gas famílias das novas; o que Luís, o Bona
pelas circunstâncias dos tempos, houve ho
cheirão, e Carlos, o Calvo, não fizeram.
mens livres aos quais foi admitido fruir desta
grande prerrogativa e, por conseguinte, entrar O público não deve esquecer que deve ao
na ordem da nobreza. Tal não aconteceu no Abade Dubos várias composições excelentes.
tempo de Gontrão e de Childeberto, seu sobri É a partir dessas belas obras que se deve jul-
nho; aconteceu no tempo de Carlos Magno. gá-lo, e não a partir desta69 4. O Abade Dubos
Mas embora, desde o tempo desse príncipe, os incidiu em grandes erros, porque teve mais
homens livres não fossem capazes de possuir diante dos olhos o Conde de Boulainvilliers do
feudos, parece, pela passagem de Tegano, que o seu assunto. De todas as minhas críticas,
acima relatada, que os servos libertos eram extrairei apenas esta reflexão: Se este grande
excluídos disso absolutamente. O Abade homem errou, que não devo eu temer?
Dubos693, que vai à Turquia a fim de nos dar
69 4 A obra que assegurou o êxito do Abade
692 Cap. XXIII. (N. do A.) Dubos, as Réflexions Critiques sur la Poésie et la
693 Etablissement de la Monarchie Française, Peinture, de estilo agradável e com reflexões enge
tomo III, liv. VI, cap. IV, pág. 302. (N. do A.) nhosas, não faz dele um grande espírito.
LIVRO TRIGÉSIMO PRIMEIRO
TEORIA DAS LEIS FEUDAIS ENTRE OS FRANCOS,
NA RELAÇÃO QUE TÊM COM A REVOLUÇÃO
DE SUA MONARQUIA
Capítulo I
seja por insistir no mesmo plano, tornou-se crônicas, que sabiam tanto de história de seu
cada dia mais odiosa à nação 7 0 3. tempo como os aldeões sabem hoje da do
Clotário, ambicionando reinar sozinho, e nosso tempo, são muito estéreis. Contudo,
possuído da mais horrível vingança, certo de temos uma constituição de Clotário, outor
perecer se os filhos de Brunilda levassem van gada no concilio de Paris 70 5 para a reforma
tagem, participou de uma conjuração contra si dos abusos, que mostra que esse príncipe fez
próprio; e, quer por ter sido inábil, quer por ter cessar as queixas que a revolução 70 6 tinha ori
sido forçado pelas circunstâncias, tornou-se ginado. De um lado, confirma todos os donati
acusador de Brunilda, e mandou fazer dessa vos que haviam sido feitos ou confirmados
rainha um terrível exemplo. pelos reis, seus predecessores7 0 7, e ordena, de
Varnacário fora a alma da conjuração con outro lado, que tudo o que fora retirado de
tra Brunilda; foi feito prefeito do paço de Bor- seus leudos ou fiéis lhes fosse restituído 703
*708.
gonha; exigiu de Clotário que nunca durante
Essa não foi a única concessão que o rei fez
sua vida70 4 fosse substituído. Com isso o pre
nesse concilio. Quis que o que fora feito contra
feito do paço não mais pôde estar no caso em
os privilégios dos eclesiásticos fosse corrigi
que tinham estado os senhores franceses; e esta
do709; moderou a influência do tribunal nas
autoridade começou a tornar independente a
eleições dos bispados710. O rei reformou
autoridade real.
Fora a funesta regência de Brunilda que igualmente os assuntos fiscais; quis que todos
sobretudo enfurecera a nação. Enquanto as leis os novos censos fossem suprimidos711; que
subsistiram em sua força, ninguém pôde não se arrecadasse nenhum direito de passa
lamentar-se de que um feudo lhe tinha sido gem estabelecido depois da morte de Gontrão,
arrebatado, pois a lei não Iho outorgava para Sigiberto e Chiipericc712, ou seja: suprimia
sempre; mas, quando a avareza, as práticas tudo o que fora feito durante as regências de
perniciosas, a corrupção fizeram com que se Fredegunda e de Brunilda; proibiu que seus
concedessem feudos, lamentou-se de que se rebanhos fossem levados às florestas dos parti
fosse privado por meios reprováveis, desones culares 71 3; e veremos brevemente que a refor
tos, de coisas amiúde obtidas da mesma ma foi ainda mais geral e se estendeu aos negó
maneira. É possível que, se o bem público cios civis.
tivesse sido o motivo da revogação das dádi
vas, nada se tivesse dito; mas mostrava-se a 70 5 Algum tempo após o suplício de Brunilda, no
ordem sem esconder a corrupção; reclamava- ano 615. Vede a edição das Capitulares de Baluze,
se o direito do fisco a seu bel-prazer; as dádi pág. 21. (N. do A.)
79 6 Quae contra rationis ordinem acta vel ordinata
vas não mais foram a recompensa ou a espe sunt, ne in antea, quod averiat divinitas, contingant,
rança dos serviços. Brunilda, por um espírito disposuerimus, Christo proesule, per hujus edicti
corrompido, quis corrigir os abusos da corrup tenorem generaliter emendare. Ibid., art. 16. (N. do
ção antiga. Seus caprichos não eram os de um A.)
70 7 Ibid., art. ló.(N.do A.)
espírito fraco; os leudos e os grandes oficiais 708 Ibid., art. 17. (N. do A.)
se acreditaram perdidos; eles a perderam. 709 Et quodper têmpora ex hocpraetermissum est,
Falta muito para que conheçamos todos os vel dekinc, perpetualiter observetur. (N. do A.)
atos ocorridos nessa época; e os fazedores de 710 Ita ut episcopo decendete, in loco ipsius qui a
metropolitano ordinari debet cum provincialibus, a
clero et populo eligatur; et si persona condigna fue-
703 Ibid., cap. XLI, sobre o ano 613. Burgundiae rit, per ordinationem principis ordinetur; vel certe^si
farones, tam episcopi quam caeteri leudes, timentis palatio eligitur, per meritum personae et doctrinae
Brunichildem, et odium in eam habentes, consilium ordinetur. Ibid., art. I. (N. do A.)
inientes etc. (N. do A.) 711 Ut ubicumque census novus impie additus est,
70 4 Crônica de Fredegário, cap. XLII, sobre o ano ernendetur, art. 8. (N. do A.)
613. Sacramento Clotário accepto ne unquam vitae 712 Ibid., art. 9. (N. do A.)
suae temporibus degradaretur. (N. do A.) 713 Ibid., art. 21.ÍN. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 517
Capítulo II
Vira-se até aqui a nação dar sinais de impa porque eram tão vorazes e injustos quanto
ciência e de precipitação em relação à escolha eles. Havia muitas leis estabelecidas, mas os
ou à conduta de seus senhores; vira-se regula reis as tomavam inúteis com certas cartas,
mentar os litígios de seus senhores entre si, e denominadasprecepções11 4, que anulavam as
lhes impor a necessidade da paz. Porém, o que mesmas leis; era aproximadamente como os
ainda não fora visto, a nação o fez então: lan rescritos dos imperadores romanos, seja por
çou a vista sobre a situação atual, examinou que os reis tivessem imitado esse uso, seja por
suas leis com sangue-frio, proveu à sua insufi que o tivessem extraído do próprio âmago de
ciência, pôs fim às violências, regulamentou o sua natureza. Vê-se, em Gregório de Tours,
poder. que eles cometiam assassínios a sangue-frio e
As regências varonis, audaciosas e insolen mandaVam matar acusados que não haviam
tes de Fredegunda e de Brunilda tinham mais sequer sido ouvidos; outorgavam precepções
advertido esta nação do que assombrado. Fre para casamentos ilícitos71 5, para transferir
degunda defendera suas perversidades por suas heranças, para suprimir direitos dos parentes,
próprias perversidades; justificara o veneno e para desposar religiosas. Na verdade, não só
os assassínios pelo veneno e pelos assassínios; faziam leis por sua iniciativa, como também
conduzira-se de modo que seus atentados fos suspendiam a prática das que eram feitas.
sem ainda mais particulares que públicos. Fre O edito de Clotário reparou todos esses gra-
degunda causou mais males, Brunilda fez vames. Ninguém podia mais ser condenado
receá-los ainda mais. Nesta crise, a nação não sem ser ouvido71 6, os parentes deviam sempre
se contentou com colocar ordem no governo suceder segundo a ordem estabelecida pela
feudal; quis também assegurar seu governo lei717, todas as precepções para esposar
civil, pois este era também mais corrompido jovens, viúvas ou religiosas foram inúteis e se
do que o outro; e esta corrupção era tanto puniu severamente os que as obtiveram ou
mais perigosa quanto era mais antiga, e se deias fizeram uso71 8. Saberiamos talvez mais
relacionava, de algum modo, mais ao abuso exatamente o que estatuía sobre essas precep
dos costumes do que ao abuso das leis. ções se o artigo 13 desse decreto, e os dois
seguintes, não tivessem sido destruídos pelo
A história de Gregório de Tours e outros
tempo. Só possuímos as primeiras palavras do
monumentos mostram-nos, de um lado, uma
artigo 13 que ordenam que as precepções
nação feroz e bárbara; e, de outro, reis que não
o eram menos. Esses príncipes eram assassi sejam observadas; o que não se pode entender
com relação às que acabavam de ser abolidas
nos, injustos e cruéis porque toda a nação o
era. Se o cristianismo parece, algumas vezes, pela mesma lei. Possuímos outra constituição
abrandá-los, foi apenas pelo terror que o cris' do mesmo príncipe71 9 que se reporta a seu
tianismo inspirou aos culpados. As igrejas
defendefam-se contra eles pelos milagres e 71 4 Eram ordens que os reis enviavam aos juizes
para fazerem ou tolerarem certas coisas contra a lei.
pelos prodígios de seus santos. Os reis não (N. do A.)
eram sacrílegos porque temiam as penas dos 71 6 Vede Gregório de Tours, liv. IV, pág. 227. A
sacrilégios; mas cometeram, de outro lado, por história e as chartas estão repletas disso; e a exten
são desses abusos aparece sobretudo no edito de
cólera ou a sangue-frio, todas as espécies de Clotário II, do ano de 615, outorgado para refor
crimes e de injustiças, porque esses crimes e má-los. Vede as Capitulares, edição de Baluze,
essas injustiças não mostravam a mão da tomo I, pág. 22. (N. do A.)
divindade tão presente. Os francos, como afir 716 Art. 22. (N. do A.)
71 7 Ibid., art. 6. (N. do A.)
mei, suportaram os reis homicidas porque eles 718 Ibid., art. 18. (N.do A.)
próprios eram homicidas; não se impressio 719 Na edição das Capitulares de Baluze, tomo i,
naram com as injustiças e rapinas de seus reis pág. 7. (N. do A.)
518 MONTESQUIEU
edito, corrigindo, iguálmente, ponto por ponto, fraqueza do reinado de Gontrão, a crueldade
todos os abusos das precepções. do de Chilperico, e as detestáveis regências de
É verdade que o Sr. Baluze, encontrando Fredegunda e de Brunilda. Ora, como a nação
essa constituição sem data e sem o nome do teria podido suportar afrontas tão solenemente
lugar em que foi dada, atribuiu-a a Clotário I. proscritas, sem ter mlnca reclamado contra a
Pertence ela a Clotário II. Darei três razões: repetição contínua dessas afrontas? Como não
1. ° Declara-se aí que o rei conservará as teria ela> feito então o que fez quando, tendo
imunidades concedidas às igrejas por seu pai e Chilperico II721 retomado as antigas violên
seu avô 720. Que imunidades poderia conceder cias, ordenou-lhe que nos julgamentos se obe
às igrejas Childerico, avô de Clotário I, ele que decesse às leis e aos costumes, como se fazia
não era cristão e que vivia antes de a monar antigamente 7 2 2 ?
quia ter sido fundada? Mas, se atribuímos este ° Finalmente, esta constituição, feita para
3.
decreto a Clotário II, teremos como seu avô o reparar as afrontas, não pode concernir a Clo
próprio Clotário I, que efetuou enormes dona tário I, pois, sob seu reinado, não havia quei
tivos às igrejas a fim de expiar a morte de seu xas no reino a este respeito, e sua autoridade
filho Cramne, que ele mandara queimar junta era bastante sólida, sobretudo na época em que
mente com a esposa e os filhos. se situa esta constituição, ao passo que ela se
2. ° Os abusos que esta constituição corrige adapta muito bem aos acontecimentos que
subsistiram depois da morte de Clotário I, e ocorrerão no reinado de Clotário II, causando
foram mesmo levados a seu cúmulo durante a uma revolução no estado político do reino.
Cumpre esclarecer a história pelas leis e as leis
720 Falei, no livro precedente, cap. XXI, dessas pela história.
imunidades, que eram concessões de direitos de jus
tiça e que continham proibições aos juizes reais de
exercer qualquer função no território, e eram equi 721 Começou a reinar por volta do ano 670. (N. do
valentes à ereção ou sucessão de um feudo. (N. do A.)
A.) 722 Vede a Vida de São Ligério. (N. do A.)
Capitulo III
Dagoberto, como seu pai, reuniu toda a cio 732; restituíram todos os bens que Dago
monarquia: a nação apoiou-se nele e não lhe berto tomara733 e as queixas cessaram na
deu prefeito. Este príncipe sentiu-se em liber Nêustria e na Borgonha, como tinham cessado
dade; e garantido, aliás, por suas vitórias, reto na Austrásia.
mou o plano de Brunilda. Mas nisto saiu-se tão Após a morte de Egas, a rainha Nantilda
mal, que os leudos da Austrásia se deixaram incitou os senhores da Borgonha a escolher
derrotar pelos esclavões 72 9, retornaram a seu Floachato para seu prefeito 73 4. Este enviou
país e as fronteiras da Austrásia ficaram em aos bispos e aos principais senhores do reino
poder dos bárbaros. da Borgonha cartas nas quais lhes prometia
Preferiu ele propor aos austrasianos ceder a conservar para sempre, isto é, durante sua
Austrásia a seu filho Sigiberto, com um tesou vida, suas honras e suas dignidades 73 5. Con
ro, e colocar o governo do reino e do palácio
firmou sua palavra com um juramento. É aqui
nas mãos de Cuniberto, bispo de Colônia, e do que o- autor do Livro dos Prefeitos da Casa
Duque Adalgiso. Fredegário não entrou nas Real assinala o começo da administração do
minúcias das convenções que desde então reino pelos prefeitos do paço 73 6.
foram feitas; mas o rei as confirmou todas com
suas chartas e logo a Austrásia foi colocada Fredegário, que era borguinhão, entrou em
fora de perigo73°. maiores minudências no que concerne aos pre
Dagoberto, percebendo que ia morrer, reco feitos da Borgonha na época da revolução de
mendou sua mulher Nantilda e seu filho Clóvis que falamos, do que sobre os prefeitos da Aus
a Egas. Os leudos da Nêustria e da Borgonha trásia e da Nêustria; mas as convenções que
escolheram este jovem príncipe para seu foram feitas na Borgonha foram, pelos mes
rei731. Egas e Nantilda governaram o palá- mos motivos, feitas na Nêustria e na Austrá
sia.
72 8 “Eo anno, Clotarius cum proceribus et leudi- A nação acreditou que era mais seguro colo
bus Burgundiae Trecassinis conjungitur, cum eorum car o poder nas mãos de um prefeito que ela
esset sollicitus, si vellent jam, Warnachario disces- elegesse e a quem podia impor condições do
so, alium in ejus honoris gradum sublimare; sed que nas de um rei cujo poder era hereditário.
omnes unanimiter denegantes se nequaquam velle
Majorem domus eligere, regis gratiam obnixe peten-
tes, cum rege transegere. ” Crônica de Fredegário, 732 Ibid., (N. do A.)
cap. LIV, sobre o ano 626. (N. do A.) 733 Ibid., cap. LXXX, sobre o ano 639. (N. do A.)
729 “Istam victoriam, quam Vinidi contra Francos 73 4 Ibid., cap. LXXXIX, sobre o ano 641. (N. do
meruerunt, non tantum Sclavinorum fortitudo obti- A.)
nuit, quantum dementatio Austrasiorum, dum se 73 5 Ibid., Floachatus cunctis ducibus a regno
cernebant cum Dagoberto odium incurisse, et assi- Burgundiae, seu et pontificibus, per epistolam etiam
due expoliarentur." Crônica de Fredegário, cap. et sacramentis firmavit unicuique gradum honoris et
LXVIII, sobre o ano 630. (N. do A.) dignitatem, seu et amicitiam, pérpetuo conservare.
730 “Deinceps Autrasii eorum studio limitem et (N. do A.)
regnum Francorum contra Vinidos utiliter defen- 73 6 “Deinceps a temporibus Clodovei, quifuit fi-
sasse noscuntur." Crônica de Fredegário, cap. lius Dagoberti inclyti regis, pater vero Theodorici,
LXXXV. (N. do A.) regnum Francorum decidens per majores domus
731 Crônica de Fredegário, cap. LXXIX, sobre o coepit ordinari. ” De mqjor, domus regiae. (N. do
ano 638. (N. do A.) A.)
Capítulo IV
Um governo e uma nação que tinha rei, que Descendiam eles dos germanos, dos quais
elegesse quem deveria exercer o poder real, diz Tácito que, na escolha de seus reis, orienta
parecia bem extraordinário; mas, independen vam-se por sua nobreza 73 7 ; e na escolha de
temente das circunstâncias em qúe se encon
travam, creio que os francos extraíam, a este 73 7 “Reges ex nobilitate, duces ex virtude sumunt. ”
respeito, suas idéias de muito longe. De Morib. Germ., cap. VII. (N. do A.)
520 MONTESQUIEU
seus chefes, por sua virtude. Eis os reis de pri primeiros reis estiveram à frente dos tribunais
meira raça, e os prefeitos do paço; os primei e das assembléias e fizeram leis com o consen
ros eram hereditários, e os segundos eleti timento dessas assembléias; foi pela dignidade
vos733. do duque ou do chefe que eles empreenderam
Não podemos duvidar que estes príncipes suas expedições e comandaram seus exércitos.
que, na assembléia da nação, se levantavam e Para conhecer o gênio dos primeiros francos
se propunham para chefes de algum empreen a este respeito, basta lançar os olhos sobre a
dimento a todos que quisessem segui-los, não conduta de Arbogasto 7 3 9, franco de nacionali
reunissem, na maior parte, em sua pessoa, a dade, a quem Valentiniano entregara o coman
autoridade do rei e o poder do prefeito. Sua do do exército. Enclausurou o imperador no
nobreza lhes dera a realeza, e sua virtude, palácio, não permitiu a quem quer qué fosse
fazendo-os seguir por muitos voluntários que falar-lhe de qualquer negócio civil ou militar.
os escolhiam para chefe, lhes dava o poder do Arbogasto fez nessa época o que os Pepinos
prefeito. Foi pela dignidade real que nossos fariam depois.
73 8 È o que dizia Bouianviiliers no seu Gouverne- 739 Vede Suipicius Alexander, em Gregório de
ment de la France (t. I, pág. 28) (N. do A.) Tours, liv. II. (N. do A.)
Capitulo V
seram sozinhos7 4 6. Tiveram igualmente a e quem mais, além daquele que dispunha das
administração dos negócios da guerra e o graças, poderia ter esta autoridade? Nessa
comando dos exércitos; e essas duas funções se nação independente e guerreira, cumpria antes
encontraram necessariamente relacionadas convidar do que compelir; cumpria dar ou
com as duas outras. Naquela época, era mais
fazer esperar os feudos que vagavam com a
difícil reunir os exércitos do que comandá-los:
morte do possuidor, recompensar incessante
7 4 6 Vede o segundo suplemento à lei dos borgui
mente, fazer temer as preferências: quem tives
nhões, tít. XIII, e Gregório de Tours, liv. IX, cap. se a superintendência do palácio devia ser,
XXXVI. (N. do A.) portanto, o general do exército.
Capítulo VI
Desde o suplício de Brunilda, os prefeitos ti como numa espécie de prisão 7 50. Uma vez em
nham sido administradores do reino sob os cada ano eram mostrados ao povo. Ali baixa
reis; e, embora tivessem a direção da guerra, vam ordenanças, mas eram as do prefeito 7 51;
os reis, entretanto, estavam à frente dos exérci respondiam aos embaixadores, mas eram as
tos, e o prefeito e a nação combatiam sob suas respostas do prefeito. É dessa época que os
historiadores nos falam do domínio dos prefei
ordens. Mas a vitória do Duque Pepino sobre tos sobre os reis que lhes estavam submeti
Teodorico e seu prefeito 7 4 7 acabou de degra dos752.
dar os reis 7 48; a vitória obtida7 49 por Carlos O delírio da nação pela família de Pepino
Martelo sobre Chilperico e seu prefeito Rain- foi tão longe, que elegeu para prefeito um de
fredo confirmou essa degradação. A Austrásia seus netos que estava ainda na infância7 53;
manteve-o contra um certo Dagoberto, e colo
triunfou duas vezes sobre a Nêustria e a Bor cou um fantasma sobre outro fantasma.
gonha; e, estando o prefeito da Austrásia como
que ligado à família dos Pepinos, esta prefei 15 0 “Sedemque UH regalem sub sua ditione conces-
tura elevou-se acima de todas as demais, e esta sit. ”Anais de Metz sobre o ano 719. (N. do A.)
casa sobre todas as outras. Os vencedores 751 Ex Chronico Centulensi, liv. II. Ut responsa
quae erat edoctus, ve,' potius jussus, ex sua velut
temeram que algum homem acreditado se apo potestate redderet (N. do A.)
derasse da pessoa dos reis .para promover 7 52 Anais de Metz sobre o ano 691. Annoprinci-
perturbações. Mantiveram-nos numa casa real, patus Pippini super Theodericum. . . Anais de
Fulde ou de Laurisham (Loersch). Pippinus dux
Francorum obtinuit regnum Francorum per annos
7 4 7 Vede os Anais de Metz sobre o ano 687 e 688 27, cum regibus sibi subjectis. (N. do A.)
(N. do A.) 753 Posthaec Theudoaldus, filius ejus (Grimoaldi)
rt<s lílis quidem nomina regum imponens, ipse to- parvulus, in loco ipsius cum proedicto rege Dago
tius regni habens privilegium etc. Ibid., sobre o ano berto, majordomus palatíi ejjectus est. O conti-
695. (N. do A.) nuador anônimo de Fredegário, sobre o ano 714,
7 49 Ibid., sôbre o ano 719. (N. do A.) cap. CIV. (N. do A.)
522 MONTESQUIEU
Capítulo VII
Não tiveram os prefeitos do paço nenhum os reis dedicam à pessoa e aos herdeiros 7 5 7 : e,
cuidado em restabelecer a amovibilidade dos como as fórmulas são imagens das ações ordi
cargos e dos ofícios; só reinaram graças à pro nárias da vida, elas provam que, no fim da pri
teção que concediam, a este respeito, à nobre meira raça, uma parte dos feudos passava já
za: assim, os grandes ofícios continuaram a ser aos herdeiros. Muito faltava para que se tives
dados vitaliciamente e esta prática confirmou- se, naquela época, a idéia de um domínio
inalienável; isto é uma coisa muito moderna
se cada vez mais.
que, então, não era conhecida nem na teoria
Porém, tenho reflexões particulares a fazer
nem na prática.
sobre os feudos. Não posso duvidar que naque Ver-se-ão, logo mais, sobre isto, provas efe
le período a maior parte não tivesse sido torna tivas: e, se mostro uma época em que não se
da hereditária. encontram mais benefícios para o exército,
nem qualquer fundo para sua manutenção,
No tratado de Andely 7 5 4, Gontrão e seu
devemos convir que os antigos benefícios ti
sobrinho Childeberto obrigam-se a manter as nham sido alienados. Esse período foi o de
liberalidades outorgadas aos leudos e às igre Carlos Martelo, que fundou novos feudos, os
jas pelos reis seus predecessores; e é permitido quais devemos distinguir dos primeiros.
às rainhas, às jovens, às viúvas de reis, dispor, Quando os reis começaram a outorgar
por testamento, e para sempre, das coisas que vitaliciamente, seja pela corrupção que se
introduziu no governo, seja pela própria cons
recebiam do fisco 7 5 5.
tituição que fazia com que os reis estivessem
Marculfo escreveu suas fórmulas no tempo obrigados a recompensar incessantemente, era
dos prefeitos 7 5 6. Encontramos várias em que natural que começassem antes a dar perpetua
mente os feudos do que os condados. Privar-se
de algumas terras era pouca coisa; renunciar
7 5 4 Relatado por Gregório de Tours, liv. IX. Vede aos grandes ofícios era perder o próprio poder.
também o edito de Clotário II, do ano 615, art. 16.
(N. do A.)
7 5 5 Ut si quid agris fiscalibus vel speciebus atque 7 5 7 Vede a fórmula XIV do livro I, que se aplica
praesidio, pro arbitrii sui voluntate.facere, aut cui- igualmente a bens fiscais dados diretamente para
quam conferre voluerint, fixa stabilitate perpetuo sempre, ou dados inicialmente em benefício e,
conservetur. (N. do A.) depois, para sempre: Sicut ab i[lo, aut a fisco nos-
7 5 0 Vede a formula XXIV e a fórmula XXXIV do tro, fuit possessa. Vede também a fórmula XVII,
livro I. (N. do A.) ibid. (N. do A.)
Capítulo VIII
rogativas dessa nobreza que, há onze séculos, vinho por tanto tempo quanto tivesse faltado
está coberta de poeira, sangue e suor. ao serviço; mas o homem livre que não seguira
Os que possuíam feudos tinham imensas o conde 7 70 pagava uma reparação de seiscen
vantagens. A reparação pelos prejuízos que se tos soidos7 71 e era posto em servidão até que a
lhes fazia era mais forte que a dos homens tivesse pago.
livres. Parece, pelas fórmulas de Marculfo, que Portanto, é fácil pensar que os francos, que
era privilégio do vassalo do rei que quem o não eram vassalos do rei, e ainda mais os
matasse pagaria seiscentos soidos de repara romanos, procuraram vir a sê-lo; e que, a fim
ção. Esse privilégio fora estabelecido pela lei de não serem privados de seus domínios,
sálica 7*59 e pela dos ripuários 7 60; e, enquanto imaginou-se a prática de dar seu alódio ao rei,
essas duas leis ordenavam seiscentos soidos receber dele um feudo, de lhe designar seus
pela morte do vassalo do rei, elas só estipu herdeiros. Esse uso continuou sempre; e ocor
lavam duzentos pela morte de um ingênuo, reu sobretudo nas desordens da segunda raça,
franco, bárbaro, ou homem que vivesse sob a em que toda gente necessitava de um protetor e
lei sálica7 61; e cem pela de um romano. queria unir-se com outros senhores 7 72, e
Este não era o único privilégio que os vassa entrar, por assim dizer, na monarquia feudal,
los do rei possuíam. Faz-se mister saber que, porque não mais havia monarquia política.
quando um 7 62 homem era citado em julga Isto continuou na terceira raça, como se vê
mento, e não se apresentava, ou não obedecia por diversas chartas 7 73, seja dando seu alódio,
às ordenanças dos juizes, era chamado diante e recuperando-o pelo mesmo ato; seja decla-
do rei; e, se persistisse em sua contumácia, era rando-o alódio e reconhecendo-o como feudo.
colocado fora da proteção do rei 7 63 e ninguém Denominavam-se esses feudos feudos de reto
podia recebê-lo em casa, nem mesmo lhe dar mada.
pão: ora, se fosse ele de condição ordinária, Isto não significa que os que possuíam feu
seus bens eram confiscados 7 6 4, mas, se se tra dos os governassem como bons pais de famí
tasse de um vassalo do rei, eles não o eram 7 6 5. lia; e, embora os homens livres procurassem
O primeiro, por sua contumácia, era conside sempre possuir feudos, tratavam esse gênero
rado culpado do crime, mas não o segundo. de bens como se administram atualmente os
Aquele, nos menores crimes era submetido à usufrutos. Foi isso que levou Carlos Magno, o
prova da água fervente 7 6 6; este só era conde mais vigilante e atento príncipe que tivemos, a
nado em caso de homicídio 7 6 7. Finalmente, fazer muitos regulamentos para impedir que
um vassalo do rei não podia ser obrigado a não se degradassem os feudos em favor de suas
jurar em justiça contra outro vassalo 7 68. Estes propriedades 7 7 4. Isto prova somente que, em
privilégios aumentaram sempre; e a capitular sua época, a maior parte dos benefícios ainda
de Carlomano concede esta honra aos vassalos vigorava e que, consequentemente, se cuidasse
do rei de não se poder obrigá-los a jurar mais dos alódios que dos benefícios; mas isso
pessoalmente, mas apenas pela boca de seus não impede que não se preferisse ainda ser vas
próprios vassalos 7 69. Demais, quando o que salo do rei do que homem livre. Podia-se ter
tinha as honras não se apresentava no exército, motivos para dispor de certa porção particular
sua pena consistia em se abster da carne e do de um feudo, mas não se queria perder sua pró
pria dignidade.
7 5 9 Tít. XLIV. Vede também os títulos LXVI, § § 3 Bem sei, ainda, que Carlos Magno lamenta-
e 4, e o tít. LXXIV. (N. do A.) se, numa Capitular, que, em alguns lugares,
7 60 Tít. XI. (N. do A.)
7 61 Vede a lei dos ripuários, tít. VII; e a lei sálica,
tít. XLIV, art. 1 e 4. (N. do A.) 7 70 Capitular de Carlos Magno, que é a segunda
7 62 Lei sálica, tít. LIX e LXXVI. (N. do A.) do ano 812, art. 1 e 3. (N. do A.)
7 63 Extra sermonem regis. Lei sálica, tít. LIX e 7 71 Heribannum. (N. do A.)
LXXVI. (N. do A.) 7 72 Non infirmis reliquit hoeredibus, diz Larriberd
7 6 4 Ibid., tít. LIX, § 1. (N. do A.) d’Ardres, em du Cange na palavra alodis. (N. do A.)
7 6 5 Ibid., tít. LXXVI, § 1. (N. do A.) 7 73 Vede a que du Cange cita na palavra alodis; e
7 6 6 Ibid., tít. LVI e LIX. (N. do A.) as que cita Galland, Traité du Franc-aleu, pág. 14 e
7 6 7 Ibid., tít. LXXVI, § 1. (N. do A.) seguintes. (N. do A.)
7 68 Lei sálica, tít. LXXVf, § 2. (N. do A.) 7 7 4 Capitular II do ano 802, art. 10; e a Capitular
7 69 Apud Vernis Palatium, do ano 883, art. 4 e 11. VII do ano 803, art. 3; e a Capitular I, incerti anni,
(N. do A.) art. 49, e a Capitular do ano 806, art. 7. (N. do A.)
524 MONTESQUIEU
existiam pessoas que davam seus feudos como risse uma propriedade a um usufruto; afirmo
propriedade, e os resgatavam em seguida como somente que, quando se podia fazer de um aló-
propriedade 7 7 5. Mas não digo que se prefe- dio um feudo que passasse aos herdeiros, no
caso da fórmula a que me referi, obtinham-se
7 7 5 A quinta do ano 806, art. 8. (N. do A.) grandes vantagens.
Capítulo IX
Os bens fiscais não deveríam ter tido outro na Borgonha; e isto é bem evidente pelas nos
destino que o de servir aos donativos que os sas crônicas, onde os monges não podem dei
reis podiam fazer para convidar os francos a xar de admirar a devoção e a liberalidade dos
novos empreendimentos, os quais aumenta Pepinos 7 79. Eles próprios tinham ocupado os
vam, de outro lado, os bens fiscais; e isto era, primeiros lugares da Igreja. “Um corvo não
como tenho dito, o espírito da nação; mas os fura os olhos de outro”, como dizia Chilperico
donativos tomaram outro curso. Temos um aos bispos78°.
discurso de Chilperico, neto de Clóvis, que já Pepino submeteu a Nêustria e a Borgonha;
se queixa que seus bens tinham sido, quase mas tendo tomado, para destruir os prefeitos e
todos, dados às igrejas 7 7 6. os reis, o pretexto de opressão às igrejas, não
mais podia despojá-las sem contradizer seu tí
“Nosso fisco tornou-se pobre”, dizia ele; tulo, e mostrar que zombava da nação. Mas a
“nossas riquezas têm sido transportadas para conquista de dois grandes reinos e a destruição
as igrejas 7 7 7. Só os bispos dominam; eles do partido oposto forneceram-lhe muitos
estão na grandeza e nós não mais estamos.” meios de contentar seus capitães.
Isto fez com que os prefeitos, que não ousa Pepino tornou-se senhor da monarquia, pro
vam atacar os senhores', despojassem as igre tegendo o clero: Carlos Martelo, seu filho, só
jas; e um dos motivos que alegou Pepino para se pôde manter, oprimindo-o. Vendo este prín
entrar na Nêustria foi que tinha sido convi cipe que uma parte dos bens reais e dos bens
dado pelos eclesiásticos a fim de paralisar as fiscais foi dada vitaliciamente ou como pro
empresas dos reis, isto é, dos prefeitos, que pri priedade à nobreza e que, recebendo o clero
vavam a Igreja de todos os seus bens 7 7 8. das mãos dos ricos e dos pobres, adquirira
Os prefeitos da Austrásia, isto é, a casa dos grande parte dos próprios alodiais, despojou as
Pepinos, tinham tratado a Igreja com mais igrejas; e não mais subsistindo os feudos da
moderação do que se tinha feito na Nêustria e primeira partilha, ele, pela segunda vez, os for
mou781. Tomou para si e para seus capitães os
bens da Igreja e as próprias igrejas e pôs fim a
7 7 6 Em Gregório de Tours, liv. VI, cap. XLVI. (N.
do A.) um abuso que, diferentemente dos males
7 7 7 Isso fez com que ele anulasse os testamentos comüns, era tanto mais fácil de sanar quanto
feitos em favor das igrejas, e mesmo os donativos era extremo.
feitos por seu pai: Gontrão os restabeleceu e efetuou
mesmo novos donativos. Gregório de Tours, liv.
VII, cap. VIL (N. do A.) 7 79 Vede nos Anais de Metz. (N. do A.)
7 78 Vede os Anais de Metz sobre o ano 687. Exci- 780 Em Gregório de Tours. (N. do A.)
tor imprimis querelis sacerdotum et servorum dei, 7 81 “Karolus, plurima juri ecclesiastico detrahens
qui me saepius adierunt ut pro sublatis injustepatri- praedia fisco sociavit, ac deinde militibus disperti-
moniis etc. (N. do A.) vit. "Ex Chronico Centulensi, liv. II. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 525
Capítulo X
Riquezas do clero
O clero recebia tanto, que seria necessário, se tivessem sido bastante honestos 782. Mas, se
nas três raças, dar-lhe várias vezes todos os os eclesiásticos eram ambiciosos, os laicos
bens do reino. Mas se os reis, a nobreza e o também o eram: se o moribundo outorgava, o
povo encontraram meio de lhe dar todos os sucessor retomava. Viam-se apenas querelas
seus bens, não encontraram menos o de Ihos entre senhores e bispos, gentis-homens e aba
suprimir. A piedade acarretou a fundação de des; e cumpria perseguir vivamente os eclesiás
igrejas na primeira raça; porém, o espírito ticos, pois foram eles obrigados a se colocar
militar fê-las dar aos militares, que as parti sob a proteção de certos senhores que os defen
lharam com os filhos. Quantas terras não saí diam por um período e os oprimiam depois.
ram das rendas do clero! Os reis da segunda Desde esse momento, uma melhor polícia
raça abriram as mãos e fizeram ainda imensas que se estabelecia no decurso da terceira raça
liberalidades; os normandos chegam, pilham, permitia aos eclesiásticos aumentar seus bens.
devastam e perseguem, sobretudo os padres e Os calvinistas apareceram e mandaram cunhar
os monges, procuram as abadias, vêem onde moeda de tudo o que se encontrou de ouro e
encontrarão qualquer lugar religioso, pois atri prata nas igrejas. Como o clero poderia estar
buíam aos eclesiásticos a destruição de seus seguro de sua fortuna se não o estava de sua
ídolos e iodas as violências de Carlos Magno, vida? Tratava das matérias de controvérsia e
que os havia obrigado, uns após outros, a refu- seus arquivos eram queimados. De que servia
giar-se no Norte. Eram ódios que quarenta ou reclamar a uma nobreza sempre arruinada o
cinquenta anos não os tinham podido fazer que eia não mais tinha, ou o que hipotecara de
esquecer. Nesse estado de coisas, quantos bens mil maneiras? O clero sempre adquiriu, sem
o clero não perdeu! Mal havia eclesiásticos pre devolveu e adquire ainda.
para reclamá-los. Sobraram, portanto, à pieda
de da terceira raça muitas fundações a serem
criadas e terras a serem dadas: as opiniões, 787 Se livessem sido bastante honestos, isto é,
divulgadas e acreditadas naquela época, te- assaz escrupulosos para se conformarem às vonta
riam privado os leigos de todos os seus bens, des do testador.
Capítulo XI
Carlos Martelo, que procurou despojar o embaixada78 4 que Gregório III lhe enviou.
clero, encontrou-se nas circunstâncias mais Esses dois poderes estiveram unidos porque
felizes: era temido e amado pelos militares e não podiam passar um sem o outro: o papa
trabalhava para eles; tinha o pretexto de suas necessitava dos francos para sustentá-lo contra
guerras contra os sarracenos 783; apesar de
odiado pelo clero, dele não tinha nenhuma 78 4 Epistolam quoque, decreto romanorum princi-
pum, sibi praedictus praesul Gregorius miserat,
necessidade; o papa, a quem era necessário, quod sese populus Romanus, relicta imperatoris
estendia-lhe os braços; sabemos da célebre dominatione, ad suam defensionem et invictam cle-
mentiam convertere voluisset. Anais de Metz sobre
o ano 741... Eo pacto patrato, at a partibus impe
783 Vede os Anais de Metz. (N. do A.) ratoris recederet. Fredegário. (N. do A.)
526 MONTESQUIEU
os lombardos e contra os gregos; Carlos Mar tudo o que afirmam está escrito e que até mui
telo precisava do papa para humilhar os gre tos dentre eles o tinham ouvido contar a Luís,
gos, embaraçar os lombardos, tornar-se mais o Bonacheirão, pai de dois reis”.
respeitável em seu país, e acreditar os títulos O regulamento do Rei Pepino de que falam
que tinha e os que ele ou seus filhos poderíam os bispos foi feito no concilio realizado em
adquirir 78 5. Não podia, pois, falhar em sua Leptines789. Com isso a Igreja encontrava a
empresa. vantagem de que os que tinham recebido de
Santo Euquério, bispo de Orléans, teve uma seus bens só os mantinham de modo precário
visão que assombrou os príncipes. Sobre isso, e, além disso, ela ganhava seu dízimo e doze
preciso citar a carta 78 6 que os bispos reuni dinheiros por cada casa que lhe pertencera.
dos em Reims escreveram a Luís, o Germâ Mas tratava-se de um remédio paliativo, e o
nico, que entrara nas terras de Carlos, o mal sempre subsistia.
Calvo, porque ela serve muito bem para nos Mas até isso encontrou contradição, e Pepi
mostrar qual era, nessa época, o estado das no foi obrigado a fazer outra capitular 790, em
coisas e a situação dos espíritos. Dizem que obrigava os que recebiam destes benefícios
eles 78 7 que, “tendo Santo Euquério sido trans a pagar este dízimo e este foro, e até a manter
portado ao céu, viu Carlos Martelo atormen as casas do arcebispado ou do monastério, sob
tado no inferno inferior por ordem dos santos pena de perder os bens dados. Carlos Magno
que devem assistir, com Jesus Cristo, ao Juízo renovou os regulamentos de Pepino7 91.
Final; que fora condenado a esta pena antes do O que os bispos dizem na mesma carta, isto
tempo, por ter despojado as igrejas de seus é, que Carlos Magno prometeu, para si e seus
bens e de se ter, com isso, tornado culpado dos sucessores, não mais repartir os bens das igre
pecados de todos os que as haviam dotado; jas entre os soldados, é conforme à capitular
que o Rei Pepino mandou realizar, a este res desse príncipe, dada em Aix-la-Chapelle no
peito, um concilio; que restituiu às igrejas tudo ano 803, feita para acalmar os temores dos
o que pôde retirar dos bens eclesiásticos; que, eclesiásticos a esse respeito; mas as doações já
como não pôde reaver senão uma parte em feitas subsistiram sempre 792. Acrescentam os
consequência de suas desavenças com Vaifre, bispos, e com razão, que Luís, o Bonacheirão,
duque da Aquitânia, mandou fazer, em favor seguiu o procedimento de Carlos Magno, e não
das igrejas, cartas precárias do resto 788; e deu os bens da Igreja aos soldados.
regulamentou que os laicos pagariam um dízi Entretanto, os antigos abusos foram tão
mo dos bens que provinham das igrejas e doze longe, que, sob os filhos de Luís, o Bonachei
dinheiros por cada casa; que Carlos Magno rão, os leigos estabeleciam sacerdotes em suas
não deu os bens da Igreja, que fez, pelo contrá igrejas, ou os expulsavam, sem o consenti
rio, uma capitular pela qual se comprometia, mento dos bispos 793. As igrejas eram dividi
por si e seus sucessores, a nunca os dar; que das entre os herdeiros 79 4 e, quando eram man
tidas de maneira indecente, não tinham os
78 6 Podemos ver, nos autores dessa época, a
impressão que a autoridade de tantos papas deixou 789 Ano 743. Vede o livro V das Capitulares, art.
no espírito dos franceses. Embora o Rei Pepino já 3, ed. de Baluze, pág. 825. (N. do A.)
tivesse sido coroado pelo arcebispo de Mogúhcia, 790 A. de Metz, do ano 756, art. 4. (N. do A.)
ele considerou a unção que recebera do Papa Estê 791 Vede sua capitular do ano 803, dada em
vão como uma coisa que o confirmava em todos os Worms, edição de Baluze, pág. 411, em que se regu
seus direitos. (N. do A.) la o contrato precário; e a de Francforte, do ano
78 6 Anno 858, apud Carisiacum, edição de Baluze, 794, pág. 267, art. 24, sobre as reparações das
tomo II, pág. 101. (N. do A.) casas; e a do ano 800, pág. 330. (N. do A.)
78 7 Ibid., tomo II, art. 7, pág. 109. (N. do A.) 792 Como se vê pela nota precedente e pela capitu
788 Precaria, quod precibus utendum conceditur, lar de Pepino, rei da Itália, em que é declarado que
diz Cujácio, em suas notas sobre o livro I dos feu o rei daria os mosteiros como feudo aos que se reco
dos. Encontro num diploma do Rei Pepino, datado mendassem para feudos. É ela acrescentada à lei
do terceiro ano de seu reinado, que esse príncipe dos lombardos, liv. III, tít. I, § 30; e às leis sálicas,
não foi o primeiro a estabelecer essas cartas precá coleção das leis de Pepino, em Echard, pág. 195, tít.
rias; cita ele uma feita pelo prefeito Ebroíno e conti XXVI, art. 4. (N. do A.)
nuada depois. Vede o diploma desse rei, no tomo V 793 Vede a constituição de Lotário I, na lei dos
dos Historiens de France dos beneditinos, art. 6. (N. lombardos, liv. III. lei I, § 43. (N. do A.)
do A.) 794 Ibid., § 44. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 527
bispos outro recurso senão retirar suas relí belecimento dos mosteiros, escreveram797
quias79 5. esses a Carlos, o Calvo, que essa reprovação
A capitular de Compiègne estabeleceu que o não os atingira, já que não eram culpados, e
enviado do rei poderia fazer a visita de todos advertiram-no do que fora prometido, resol
os mosteiros com o bispo, com o parecer e em
vido e estatuído em tantas assembléias da
presença de quem o mantinha7 9 6; e essa regra
geral prova que o abuso era geral. nação 798. Efetivamente, citam nove delas.
Não é que faltassem leis para a restituição Disputava-se sempre. Os normandos chega
dos bens das igrejas. Tendo o papa reprovado ram e puseram todos de acordo.
os bispos por sua negligência acerca do resta-
79 7 Cum consilio et consensu ipsius qui locum reti-
79 5 Ibid., (N. do A.) net. (N. do A.)
79 6 Dada no ano 28.° do reinado de Carlos, o 798 Concilium apud Bonoilum, ano 16.° de Carlos,
Calvo, no ano 868, edição de Baluze, pág. 203. (N. o Calvo, no ano 856, edição de Baluze, pág. 78. (N.
do A.) do A.)
Capítulo XII
Os regulamentos feitos na época do Rei Pe somente- que não serão arrecadados certos
pino tinham dado à Igreja mais a esperança de dízimos802 sobre os bens da Igreja. Nessa
um alívio do que um alívio efetivo; e, como época toda a pretensão da Igreja, muito longe
Carlos Martelo encontrou todo o patrimônio de arrecadar os dízimos, era pretender ficar
público nas mãos dos eclesiásticos, Carlos isenta deles. O segundo concilio de Macon803,
Magno encontrou os bens dos eclesiásticos nas realizado no ano 585, que ordena que se
mãos dos guerreiros. Não se podia fazer com pagassem os dízimos, diz, na verdade, que ha
que estes restituíssem o que lhes fora dado; e viam sido pagos anteriormente; mas diz tam
as circunstâncias que então existiam tornavam bém que, em fcua época, não mais eram pagos.
a coisa ainda mais impraticável do que era por Quem duvida que antes de Carlos Magno
sua natureza. De outro lado, o cristianismo não se tivesse aberto a Bíblia e pregado as dá
não devia perecer por falta de ministros, tem divas e oferendas do Levítico? Mas afirmo que
plos e instruções 799. antes deste príncipe os dízimos podiam ser pre
Isto levou Carlos Magno a estabelecer os dí gados, mas não estavam estabelecidos.
zimos, novo gênero de bem, que teve para o Disse que os regulamentos baixados no
clero a vantagem de, sendo dado singular período do Rei Pepino tinham submetido ao
mente à Igreja, ser mais fácil, depois, reconhe pagamento dos dízimos e das reparações das
cer-lhes as usurpações800. igrejas os que possuíam como feudo os bens
Quís-se dar a esse estabelecimento datas eclesiásticos. Era muito obrigar, com uma lei
bem mais anteriores; mas as autoridades cita
das me parecem ser testemunhas contra os que
802 Agraria et pascuaria, vel décimas porcorum,
as alegam. A constituição de Clotário801 diz Ecclesiae concedimus; ita ut actor aut decimator in
rebus Ecclesiae nullus accedat. A capitular de Car
799 Nas guerras civis que surgiram no tempo de los Magno, do ano 800, ed. de Baluze, pág. 336,
Carlos Martelo, os bens da igreja de Reims foram explica muito bem o que era esta espécie de dízimo
doados aos laicos. Deixou o clero subsistir como da qual Clotário isenta a Igreja: era a décima parte
pudesse, como se diz na Vida de São Rémy. Súrio, dos porcos que se colocavam nas florestas do rei
tomo I, pág. 279. (N. do A.) . para engorda; e Carlos Magno quer que seus juizes
800 Leis dos lombardos, liv. III, tít. III, §§ 1 e 2. a paguem como os demais, a fim de dar exemplo.
(N. do A.) Vemos que se tratava de um direito senhorial ou
801 É desta que tanto falei no cap. IV, que se econômico. (N. do A.)
encontra na ed. das Capitulares de Baluze, tomo I, 803 Cânone V, ex tomo I, Conciliorum antiquorum
art. 2, pág. 9. (N. do A.) Galliae, opera Jacobi Sirmondi. (N. do A.)
528 MONTESQUIEU
cuja justiça não podia ser posta em dúvida, os dos808, a dificuldade encontrada para obter o
principais da nação a dar exemplo. recebimento dos dízimos pelas leis civis; pode
Carlos Magno fez mais. E vemos, pela capi mos apreciar, pelos diferentes cânones dos
tular De Villis30*, que obrigou seus próprios concílios, a encontrada para obter o recebi
fundos territoriais ao pagamento dos dízimos; mento pelas leis eclesiásticas.
tratava-se também de um grande exemplo. Finalmente, consentiu o povo em pagar os
dízimos, com a condição de poder resgatá-los.
Mas o baixo povo quase não é capaz de A constituição de Luís, o Bonacheirão809, e a
abandonar seus interesses por exemplos. O sí- do Imperador Lotário810, seu filho, não o
nodo de Francforte80 5 lhe apresentou um mo permitiram.
tivo mais constrangedor para pagar os dízi As leis de Carlos Magno sobre o estabeleci
mos. Fez aí uma capitular na qual se declara mento dos dízimos eram consequência da
que, na última fome, espigas de milho vazias necessidade; somente a religião tomou parte
foram encontradas80 6, que elas tinham sido nelas, e a superstição não tomou parte alguma.
devoradas por demônios e que se tinham ouvi A famosa divisão811 que ele fez dos dízimos
do suas vozes que exprobravam o fato de os dí em quatro partes, para a construção das igre
zimos não terem sido pagos; e, consequente jas, para os pobres, para o bispo, para o clero,
mente, foi ordenado a todos que possuíam prova muito bem que quis dar à Igreja essa
bens eclesiásticos que pagassem o dízimo; e, situação firme e permanente que ela perdera.
também consequentemente, isso foi ordenado a Seu testamento812 mostra que pretendeu
todos. acabar de reparar os males que Carlos Marte
lo, seu avô, cometera. Dividiu em três partes
O projeto de Carlos Magno não obteve êxito
iguais seus bens mobiliários: quis que duas
inicialmente; esse encargo pareceu esmaga
partes fossem divididas em vinte e uma, para
dor80 7. O pagamento dos dízimos entre os ju
as vinte e uma metrópoles de seu império; cada
deus entrara no plano de fundação de sua parte deveria ser subdividida entre a metrópole
república; mas aqui o pagamento dos dízimos e os bispados que dela dependiam. Dividiu o
era um encargo independente dos do estabele terço que restava em quatro partes: uma deu a
cimento da monarquia. Podemos ver, nas seus filhos e netos; outra foi acrescentada aos
disposições acrescentadas à lei dos lombar- dois terços já dados; as duas outras foram
empregadas em obras pias. Parecia que consi
80 4 Art. 6, ed. de Baluze, pág. 332. F(i dada no derava a dádiva que acabava de conceder às
ano 800. (N. do A.) igrejas menos como uma ação religiosa que
80 5 Realizado sob Carlos Magno, no ano 749. (N. como uma distribuição política.
do A.)
80 6 Experimento enim didicimus in anno quo illa 808 Entre outras, a de Lotário. liv. III, tít. III, cap.
valida fames irrepsit, ebullire vacuas annonas a dae- VI. (N. do A.)
monibus devoratas, et voces exprobrationis auditas 809 Do ano 829, art. 7, em Baluze, tomo I, pág.
etc./ed. de Baluze, pág. 267, art. 23. (N. do A.) 663. (N. do A.)
80 7 Vede, entre outras, a capitular de Luís, o Bona- 810 Lei dos lombardos, liv. III, tít. III, § 8. (N. do
cheirão, do ano 829, edição de Baluze, pág. 663, A.)
contra os que, com objetivo de não pagar os dízi 811 Lei dos lombardos. liv. III, tít. III, 4. (N. do
mos, não cultivam suas terras; e art. 5. Nonis qui- A.)
dem et decimis, unde et genitor noster et nosfre- 812 É uma espécie de codicilo citado por Eginhard,
quenter in diversis placitis admonitionem fecimus. diferente do próprio testamento que se encontra em
(N. do A.) Goldast e Baluze. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 529
Capítulo XIII
Tendo-se as igrejas tornado pobres, os reis compensação pelos bens que lhe tinham sido
abandonaram as eleições aos bispados e outros retirados.
benefícios aos eclesiásticos813. Os príncipes se E, se Luís, o Bonacheirão814, deixou ao
ocupavam menos em nomear os ministros e os povo romano o direito de eleger os papas, foi
competidores reclamaram menos sua autori esse um resultado do espírito geral da época:
dade. Assim, a Igreja recebia uma espécie de goveriíou-se em relação à sede de Roma como
se fazia com respeito a outras.
813 Vede a capitular de Carlos Magno, do ano
803, art. 2, ed. de Baluze, pág. 379, e o edito de 81 4 Isso foi dito no famoso cânone, Ego Ludovi-
Luís, o Bonacheirão, do ano 834, em Goldast, cus, que é visivelmente suposto. Encontra-se na edi
Constituições Imperiais, tomo I. (N. do A.) ção de Baluze, pág. 591, sobre o ano 817. (N.do A.)
Capítulo XIV
Não direi se, dando Carlos Martelo os bens por que Carlos Martelo concedeu tanto em
da Igreja como feudo, os deu vitalícia ou alódio como em feudo.
perpetuamente. Tudo o que sei é que, no tempo
81 5 Como aparece por sua capitular do ano 801,
de Carlos Magno81 5 e de Lotário I81 6, havia art. 17, em Baluze, tomo I, pág. 360. (N. do A.)
81 6 Vede sua constituição inserida no código dos
dessas espécies de bens que passavam aos her lombardos, liv. III, tít. I, § 44. (N. do A.)
deiros e se dividiam entre eles. 81 7 Vede a constituição acima e a capitular de
Carlos, o Calvo, do ano 846, cap. XX, In Villa
Acho, além disso, que uma parte81 7 foi Sparnaco, ed. de Baluze, tomo II, pág. 31, e a do
dada como alódio, e outra parte como feudo. ano 853, cap. III e V, no sínodo de Soissons, ed. de
Baluze, tomo III, pág. 54; e a do ano 854, Apud
Disse que os proprietários dos alódios eram Attiniacum, cap. X, ed. de Baluze, tomo II, pág. 70.
submetidos a serviço como os possuidores de Vede também a capitular primeira de Carlos
Magno, incerti anni, art. 49 e 56, ed. de Baluze,
feudos. Isso foi, sém dúvida, em parte, a causa tomo I, pág. 519. (N.do A.)
Capítulo XV
Cumpre observar que, tendo os feudos sido atribuídos à alta justiça preferivelmente ao que
transformados em bens da Igreja e os dela em hoje chamamos o feudo, segue-se que as justi
feudos, uns e outros adquiriram reciproca ças patrimoniais eram estabelecidas no mesmo
mente alguma coisa de sua natureza. Destarte, tempo desses direitos.
os bens da Igreja tiveram os privilégios dos
feudos, e os feudos tiveram os privilégios dos
bens da Igreja; tais foram os direitos818 hono 81 8 Vede as Capitulares, liv. V, art. 44, e o edito de
Pistes do ano 866, art. 8 e 9, em que se vêem os
ríficos nas igrejas que se viram nascer nessa direitos honoríficos dos senhores, estabelecidos tais
época. E, como esses direitos têm sido sempre como estão hoje. (N. do A.)
530 MONTESQUIEU
Capítulo XVI
Confusão da realeza e da
prefeitura. Segunda raça.
A ordem das matérias fez com que confun nho de todos os monumentos821, nega822 que
disse a ordem dos períodos; de sorte que falei o papa tenha autorizado essa grande modifica
de Carlos Magno antes de me referir a essa fa ção; uma de suas razões é que ele teria come
mosa época da passagem da coroa aos Carlo- tido uma injustiça. E é admirável ver um histo
víngios, efetuada na época do Rei Pepino: riador julgar o que os homens têm feito pelo
coisa que, diferentemente dos acontecimentos que deveríam fazer! Com esta maneira de
ordinários, é possivelmente mais notável hoje raciocinar não mais haveria história.
do que no próprio período em que ocorreu. De qualquer modo, é certo que, desde o
Os reis não tinham autoridade mas tinham momento da vitória do Duque Pepino, sua
um nome; o título de rei era.hereditário e o de família foi reinante, e que a dos Merovíngios
prefeito era eletivo. Embora os prefeitos, nos não mais o foi. Quando seu neto Pepino foi
últimos tempos, tivessem posto no trono dos coroado rei, tudo não passou de uma cerimô
Merovíngios a quem queriam, não tinham nia a mais e de um fantasma a menos; com
escolhido um rei em outra família; e a antiga isso adquiriu apenas os ornamentos reais; na
lei que dava a coroa a uma determinada famí nação nada se modificou.
lia ainda não constrangera o coração dos fran Recordei isso para fixar o momento da revo
cos. A pessoa do rei era quase desconhecida na lução, a fim de que não nos enganemos, consi
monarquia; mas a realeza não. Pepino, filho de derando como revolução o que não passava de
Carlos Martelo, acreditou que era oportuno uma consequência da revolução.
confundir esses dois títulos, confusão que sem Quando Hugo Capeto foi coroado rei, no
pre deixaria incerteza se a realeza era heredi início da terceira raça, houve grande modifica
tária ou não; e isso bastava a quem acrescen ção porque o Estado passou da anarquia para
tava à realeza grande poderio. Desde então, a um governo qualquer; porém, quando Pepino
autoridade do prefeito somou-se à autoridade assumiu a coroa, passou-se de um governo ao
real. Na confusão dessas duas autoridades, efe mesmo governo.
tuou ele uma espécie de conciliação. O prefeito Quando Pepino foi coroado rei, apenas tro
fora eletivo, o rei hereditário: a coroa, no iní cou de nome; mas quando Hugo Capeto foi
cio da segunda raça, seria eletiva, porque o coroado rei, a coisa mudou, porque um grande
povo a escolhería; e também hereditária por feudo, unido à coroa, fez cessar a anarquia.
que ele a escolhia sempre na mesma famí Quando Pepino foi, coroado rei, o título de
lia819. rei uniu-se ao maior ofício; quando Hugo Ca
O Padre Le Cointe820, apesar do testemu- peto foi coroado, o título de rei uniu-se ao
maior feudo.
81 9 Vede o testamento de Carlos Magno, e a parti
lha que Luís, o Bonacheirão, fez aos filhos na
assembléia dos Estados, realizada em Quierzy, rela 821 A anônima, sobre o ano 752; e Chron. Centul.,
tada por Goldast; Quem populus eligere velit, ut sobre o ano 754. (N. do A.)
patri suo succedat in regni haereditate. (N. do A.) 822 “Fabella quae post Pippini mortem excogitata
820 Padre Le Cointe. . . Escreveu ele em oito volu est, aequitati ac sanctitati Zachariae papae pluri-
mes (Paris, 1664-1683) os Annales Ecclesiastici mum adversatur. . . "Annales Ecclesiastici Franco
Francorum, indo de 417 a 485. rum, tomo II, pág. 319. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 531
Capítulo XVII
X
Vemos, na fórmula da consagração de Pepi onde, depois de ter formado sua partilha,
no823, que Carlos e Carlomano foram tam disse828 que “se um dos três irmãos tiver um
bém ungidos e abençoados; e que os senhores filho e o povo queira elegê-lo para que suceda
franceses se comprometeram, sob pena de ao reino de seu pai, seus tios nisso consenti
interdição e excomunhão, a nunca eleger pes rão”.
soa de outra raça82 4. Encontra-se essa mesma disposição na par
Parece, pelos testamentos de Carlos Magno tilha que Luís, o Bonacheirão, efetuou entre
e de Luís, o Bonacheirão, que os francos esco seus três filhos829,Pepino, Luís e Carlos, no
lhiam entre os filhos dos reis; o que se rela ano 837 na assembléia de Aix-la-Chapelle e
ciona muito bem com a cláusula acima. E, também. noutra partilha do mesmo impera
quando o império passou de uma casa a outra, dor830, feita vinte anos antes entre Lotário,
que não a de Carlos Magno, a faculdade de Pepino e Luís. Podemos ver também o jura
eleger, que era restrita e condicional, tornou-se mento que Luís, o Gago, fez em Compiègne,
pura e simples, e se afastou da antiga quando foi coroado. “Eu, Luís831, constituído
constituição. rei pela misericórdia de Deus e eleição do
Pepino, sentindo-se perto do fim, convocou povo, prometo. . .” O que eu disse é confir
os senhores eclesiásticos e laicos em Saint-De- mado pelas atas do concilio de Valência832
nis82 5, e dividiu seu reino entre seus dois fi realizado no ano 890 para a eleição de Luís,
lhos Carlos e Carlomano. Não possuímos as filho de Boson, ao reino de Aries. Elegeu-se aí
atas dessa assembléia; mas se encontra o que Luís e apresentaram como principais razões de
aí se passou no autor da antiga coleção histó sua eleição o fato de ele ser da família impe
rica publicada por Canísio82 6 e no dos Anais rial833, que Carlos, o Gordo83 4, lhe outorgara
de Metz, como o observou82 7 o Sr. Baluze. a dignidade de rei, e que o imperador Arnulfo
Vejo aí duas coisas de algum modo contrárias: o investira pelo cetro e pelo ministério de seus
que ele fez a partilha com consentimento dos embaixadores. O reino de Aries, como os
grandes; e, em seguida, que a fez por direito demais, desmembrados, ou dependentes do
paterno. Isso prova o que eu disse, que o direi império de Carlos Magno, era eletivo e
to do povo nessa raça era o de eleger dentro da hereditário.
família: era, falando mais propriamente, antes
um direito de excluir do que de eleger.
Essa espécie de direito de eleição encontra- 828 Na capitular I do ano 806, ed. de Baluze, pág.
se confirmada pelos monumentos da segunda 439, art. 5. (N. do A.)
829 Em Goldast, Constituições Imperiais, tomo II,
raça. Tal é essa capitular da divisão do impé pág. 19. (N. do A.)
rio que Carlos Magno fez entre seus três filhos, 830 Ed. de Baluze, pág. 574, art. 14. Si vero aliquis
illorum decedens, legítimos filios reliquerit, non
inter eos potestas ipsa dividatur; sedpotius populus,
823 Tomo V dos Historiens de Franee pelos padres pariter conveniens, unum ex eis, quem Dominus
beneditinos, pág. 9. (N. do A.) voluerit, eligat; et hunc sêniorfrater in loco fratris et
82 4 Ut nunquam de alterius lumbis regem in aevo filii suscipiat. (N. do A.)
praesumant eligere, sed ex ipsorum. Ibid., pág. 10. 831 Capitular do ano 877, ed. de Baluze, pág. 272.
(N. do A.) (N. do A.)
82 5 Ano 768. (N. do A.) 832 Em Dumont, Corps Diplomatique, tomo I, art.
82 6 Tomo II, Lectionis Antiquae. (N. do A.) 36. (N. do A.)
82 7 Ed. das Capitulares, tomo I, pág. 188. (N. do 833 Por mulheres. (N. do A.)
A.) 83 4 Carlos, o Gordo, Carolus Crassus.
532 MONTESQUIEU
Capítulo XVIII
Carlos Magno
Carlos Magno pensou em manter o poder da em toda parte, em toda parte ele os resolvia.
nobreza em seus limites, e em impedir a opres Nunca príncipe algum soube melhor do que ele
são do clero e dos homens livres. Colocou tal apontar os perigos; nunca príncipe algum
moderação nas ordens de Estado, que elas soube melhor evitá-los. Zombou de todos os
foram contrabalançadas, e ele continuou o perigos, e particularmente dos que sempre
senhor. Tudo foi unido pela força de seu gênio. experimentam os grandes conquistadores: refi
Levou continuamente a nobreza de expedição ro-me às conspirações. Esse príncipe prodi
em expedição; não lhe deixou tempo para for gioso era extremamente moderado; seu caráter
mar desígnio e ocupou-a inteiramente em se era meigo, suas maneiras simples; gostava de
guir os seus. O império se manteve pela gran viver com as pessoas de sua corte. Foi talvez
deza do chefe: o príncipe era grande, o homem, muito sensível ao prazer das mulheres; mas
maior. Os reis, seus filhos, foram seus primei um príncipe que governou sempre por si
ros súditos, instrumentos de seu poder e mode mesmo e que passou a vida nos trabalhos pode
los de obediência. Estabeleceu regulamentos merecer mais desculpas. Organizou admiravel
admiráveis; e mais, fê-los executar. Seu gênio mente suas despesas: fez valer seus domínios
expandiu-se sobre todas as partes do império. com sabedoria, atenção e economia; um pai de
Vemos, nas leis desse príncipe, um espírito família poderia aprender83 6 em suas leis a
previdente, que compreende tudo, e uma certa governar sua casa, Vemos, em suas Capitula
força que tudo arrasta. Os pretextos83 5 para res, a fonte pura e sagrada de onde extrai suas
eludir os deveres são suprimidos, as negligên riquezas. Não direi mais que uma palavra:
cias corrigidas, os abusos reformados ou ordenava que se vendessem ovos dos gali
prevenidos. Sabia punir; sabia ainda melhor nheiros de seus domínios, e as ervas inúteis de
perdoar. Grande em seus desígnios, simples na seus jardins83 7 ; e distribuira entre seus povos
execução, ninguém teve em mais alto grau a todas as riquezas dos lombardos e os imensos
arte de fazer as maiores coisas com facilidade tesouros desses hunos que tinham despojado o
e as difíceis com prontidão. Percorria, inces universo.
santemente, seu vasto império, impondo-se
onde quer que chegasse. Problemas renasciam
83 6 Vede a capitular De Villis do ano 800; sua
capitular II do ano 813, art. 6 e 19; e o livro V das
83 5 Vede sua capitular III do ano 811, pág. 486, Capitulares, art. 303. (N. do A.)
art. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8; e a capitular I, do ano 812, 83 7 Capitular De Villis, art. 39. Vede toda essa
pág. 490, art. I, e a capitular do mesmo ano, pág. capitular que é uma obra-prima de prudência, boa
494, art. 9 e 11; e outras. (N. do A.) administração e economia. (N. do A.)
Capítulo XIX
Carlos Magno e seus primeiros sucessores nha grande número de bispados838 e a esses
temeram que aqueles que haviam colocado em ligaram grandes feudos. Parece, por algumas
lugares afastados fossem levados à revolta;
acreditaram que encontrariam mais docilidade 838 Vede, entre outras, a fundação do arcebispado
de Bremen, na capitular de 789, ed. de Baluze, pág.
nos eclesiásticos: assim, erigiram na Alema 245. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 533
charlas, que as cláusulas que continham as modo, eram peças que eles avançavarfi à frente
prerrogativas desses feudos não eram diferen contra os saxões. O que não podiam espe
tes das que se colocavam ordinariamente nes
rar da indolência ou das negligências de um
sas concessões83 9, apesar de se verem atual
mente os principais eclesiásticos da Alemanha leudo, acreditavam que podiam esperar do zelo
revestidos do poder soberano. De qualquer e da ativa vigilância de um bispo; sem contar
que tal vassalo, bem longe de servir-se contra
839 Por exemplo, a proibição aos juizes reais de eles, de povos submetidos, teria, pelo contrá
entrar no território para exigir os freda e outros
direitos. Referi-me muito a isso no livro precedente, rio, necessidade deles para se sustentar contra
cap. XX, XXI, XXII. (N. do A.) seus povos.
Capítulo XX
Luís, o Bonacheirão
Estando Augusto no Egito, mandou abrir o aumentou ainda mais o número de seus inimi
túmulo de Alexandre8 40. Perguntaram-lhe se gos. Estas duas últimas ações lhe foram muito
queria que se abrissem os dos Ptolomeus; res criticadas8 42: não se deixou de dizer que havia
pondeu eie que quisera ver o rei e não os mor violado seu juramento e as promessas solenes
tos. Destarte, na história dessa segunda raça, que fizera a seu pai no dia de sua coroação8 43.
procurarn-se Pepino e Carlos Magno. Querer- Após a morte da Imperatriz Hermengarda,
se-ia ver os reis e não os mortos. de quem tinha três filhos, desposou Judite, de
Um príncipe, joguete de suas paixões e víti quem teve um filho; em breve, reunindo as
ma de suas próprias virtudes; um príncipe que complacências de um velho marido com todas
jamais conheceu sua força nem sua fraqueza; as fraquezas de um velho rei, introduziu tal
que não soube conciliar nem o medo nem o desordem na família, que acarretou a queda da
amor; que, com poucos vícios no coração, monarquia.
tinha toda sorte de defeitos no espírito, tomou Modificoú incessantemente as partilhas que
em mãos as rédeas do império que Carios fizera aos filhos. Entretanto, essas partilhas ti
Magno segurara. nham sido confirmadas sucessivamente por
No momento em que o universo está em lá seus juramentos, pelos de seus filhos e dos
grimas pela morte de seu pai, nesse instante de senhores. Era querer tentar a fidelidade dos sú
assombro em que todos clamam por Carlos e ditos; era procurar introduzir confusão, escrú
não o encontram mais; no momento em que pulos e equívocos na obediência; era confundir
ele apressa seus passos para ir ocupar seu os diversos direitos dos príncipes, sobretudo
lugar, envia na sua frente pessoas de confiança numa época em que, sendo raras as fortalezas,
para conter os que tinham contribuído para o o primeiro sustentáculo da autoridade era a fé
desregramento da conduta de suas irmãs. Isso empenhada e a recebida.
ocasionou sangrentas tragédias841: eram im Os filhos do imperador, para manter suas
prudências bem precipitadas. Começou a vin partilhas, atraíram o clero e lhe deram direitos
gar os crimes domésticos antes de ter chegado até então desconhecidos. Esses direitos eram
ao palácio e a revoltar os espíritos antes de ser especiais; fazia-se o clero intervir como penhor
senhor. de uma coisa que se tinha querido que ele auto
Mandou furar os olhos de Bernardo, rei da
Itália, seu sobrinho, que viera implorar sua cle rizasse. Agobardo8 4 4 representou a Luís, o
mência e que morreu alguns dias depois: isso
multiplicou seus inimigos. O temor que lhes 842 Vede o processo verbal de sua degradação, na
teve fe-lo tonsurar seus irmãos: com isso coletânea de Duchesne, tomo II, pág. 333. (N. do
A.)
8 43 Ordenou-lhe que tivesse para com suas irmãs,
8 40 Cf. Suetônio, Augusto (XVIII), e Dion (LI-16). irmãos e sobrinhos uma clemência ilimitada, indefi-
841 O autor incerto da Vie de Louis le Débonnaire, cientem misericordiam. Tegano, na coletânea de
na coletânea de Duchesne, tomo II, pág. 295. (N. do Duchesne, tomo II, pág. 276. (N. do A.)
A.) 84 4 Vede suas cartas. (N. do A.)
534 MONTESQUIEU
Bonacheirão, que ele enviara Lotário a Roma los Magno, pôde ter inimigos tão numero
para declará-lo imperador; que fizera partilhas sos8 4 5, tão violentos, tão irreconciliáveis, tão
a seus filhos, depois de ter consultado o céu sequiosos em ofender, tão insolentes em sua
por três dias de jejuns e preces. Que podia humilhação, tão determinados em arruiná-lo; e
fazer um príncipe supersticioso, atacado, aliás, o teriam perdido irremediavelmente duas
pela própria superstição? Sente-se que malo vezes, se seus filhos, no fundo pessoas mais
gro a soberana autoridade recebeu duas vezes, honestas do que eles, tivessem podido conti
pela prisão desse príncipe e sua penitência pú nuar um desígnio e concordar em alguma
blica. Tinha-se querido degradar o rei, degra coisa.
dou-se a realeza.
Inicialmente se têm dificuldades em com 8 4 5 Vede o processo verbal de sua degradação na
preender como um príncipe, que tinha muitas coletânea de Duchesne, tomo II, pág. 331. Vede
boas qualidades, a quem não faltavam conhe também sua vida, escrita por Tegano, Tanto enim
cimentos, que amava naturalmente o bem e, odio laborabat, ut toederet eos vita ipsius, diz o
autor incerto, em Duchesne, tomo II, pág. 307. (N.
finalmente para tudo dizer, era o filho de Car do A.)
Capítulo XXI
A força que Carlos Magno introduzira na namente. Os bispos, acostumados, nesses tem
nação subsistiu suficientemente sob Luís, o pos, a partir para a guerra contra os sarrace-
Bonacheirão, para que o Estado pudesse man nos e os saxões, estavam muito afastados do
ter-se em sua grandeza e ser respeitado pelos espírito monástico8 4 6. De outro lado, tendo
perdido toda sorte de confiança em sua nobre
estrangeiros. O príncipe tinha espírito fraco,
za, elevou pessoas sem nenhum valor8 4 7. Pri
mas a nação era aguerrida. A autoridade se vou-a de seus empregos8 48, afastou-a do palá
perdia internamente sem que seu poderio pare cio, chamou estrangeiros. Separado desses
cesse diminuir externamente. dois corpos, foi por eles abandonado.
Carlos Martelo, Pepino e Carlos Magno
governaram sucessivamente a monarquia. O
84 6 “Então os bispos e os eclesiásticos começaram
primeiro estimulou a avareza dos guerreiros; a abandonar os cintos e os boldriés de ouro, os
os demais, a do clero. Luís, o Bonacheirão, punhais enriquecidos de pedrarias neles pendura
descontentou a ambos. dos, as vestimentas de gosto requintado, as esporas
cuja riqueza pesava em seus calcanhares. Mas o ini
Na constituição francesa, o rei, a nobreza e migo do gênero humano não suportou tal devoção,
o clero tinham em suas mãos toda a força do que levantou contra si os eclesiásticos de todas as
Estado. Carlos Martelo, Pepino e Carlos ordens e guerreou contra si própria.” O autor incer
Magno se uniram, às vezes, com uma das duas to da Vie de Louis le Débonnaire, na coletânea de
Duchesne, tomo II, pág. 298. (N. do A.)
partes, a fim de conter a outra, e quase sempre
com ambas; mas Luís, o Bonacheirão, sepa- 8 4 7 Diz Tegano que o que se fazia muito rara
mente sob o reinado de Carlos Magno se fez comu-
rou-se desses dois corpos. Indispôs os bispos mente sob o de Luís. (N. do A.)
com regulamentos que lhes pareceram rígidos,
848 Querendo conter a nobreza, tomou por cama
porque ele ia mais longe do que eles próprios reiro certo Bernardo, que acabou por desesperá-la.
queriam ir. Há leis muito boas feitas inoportu (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 535
Capítulo XXII
Mas o que sobretudo enfraqueceu a monar Assim, fez em todo o império o que eu
quia foi o fato de esse príncipe ter-lhe dissi disse8 52 que fizeram na Aquitânia: coisa que
pado os domínios8 49. É aqui que Nitard, um Carlos Magno reparou, e que ninguém reparou
dos mais judiciosos historiadores que possuí mais.
mos, Nitard, neto de Carlos Magno, que era li Foi nesse esgotamento que Carlos Martelo
gado ao partido de Luís, o Bonacheirão, e que encontrou o Estado quando assumiu a prefei
escrevia a história por ordem de Carlos, o tura; e estava-se em circunstâncias tais, que
Calvo, deve ser escutado. não bastava mais um ato de autoridade para
Diz ele “que um tal Adelhard tivera, durante restabelecê-lo.
certo tempo, tal domínio sobre o espírito do O fisco estava tão pobre que, sob o reinado
imperador, que este príncipe seguia sua vonta de Carlos, q Calvo, não se mantinha ninguém
nas honras8 63, nào se concedia segurança a
de em todas as coisas, que, instigado por seu
ninguém, senão por dinheiro; quando podiam
favorito, dera os bens fiscais8 50 a-todos que os
destruir os normandos8 5 4, deixaram-nos esca
quiseram; e com isso destruira a república8 51.
par por dinheiro; e o primeiro conselho que
Hinçmar dâ a Luís, o Gago, é o de exigir numa
8 49 Villas regias, quae erant sui et avi et tritavi, assembléia com que sustentar as despesas de
fidelibus suis tradidit eas ins possessiones sempiter- sua casa.
nas: fecit enim hoc diu tempore. Tegano, De Gestis
Ludovici PU. (N. do A.)
8 80 Hinc Ubertates, hincpublica inpropriis usibus 8 52 Vede o livro XXX, cap. XIII. (N. do A.)
distribuere suasit. Nitard, liv. IV, no final. (N. do 8 53 Hincmar, carta a.Luís, o Gago. (N. do A.)
A.) 8 84 Vede o fragmento da Crônica do monastério
8 81 Republicam penitus annullavit. Ibid. (N. do de São Sérgio d’Angers, em Duchesne, tomo II, pág.
A.) 401. (N. do A.)-
Capítulo XXIII
O clero teve motivos para se arrepender da das que seguiram sua morte. Os três irmãos,
proteção que concedera aos filhos de Luís, o Lotário, Luís e Carlos, procuraram, cada um
Bonacheirão. Este príncipe, como afirmei, de seu lado, atrair os grandes para seu partido
nunca dera precepções dos bens da Igreja aos e conseguir seguidores. Deram aos que quise
laicos8 5 5, mas logo Lotário, na Itália, e Pepi ram segui-los precepções dos bens da Igreja; e,
no, na Aquitânia, abandonaram o plano de para atrair a nobreza, entregaram-lhe o clero.
Carlos Magno e adotaram o de Carlos Marte Vemos, nas Capitulares3 5 6, que esses prín
lo. Os eclesiásticos recorreram ao imperador cipes foram obrigados a ceder à importunidade
contra seus filhos; mas eles próprios tinham das demandas e que muitas vezes lhes foi
enfraquecido a autoridade que reclamavam.
Na Aquitânia, teve-se alguma condescen ase Vede o sínodo do ano 845. Apud Teudonis Vil
dência; na Itália não se obedeceu. lam, art. 3 e 4, que descreve muito bem o estado das
As guerras civis, que tinham perturbado a coisas, assim como o do mesmo ano realizado no
vida de Luís, o Bonacheirão, foram o germe palácio de Vernes, art. 12; e o sínodo de Beauvais,
também do mesmo ano, art. 3,4 e 6; e a capitular In
Villa Sparnaco, do ano 846, art. 20; e a carta que os
8 8 8 Vede o que dizem os bispos no sínodo do ano bispos reunidos em Reims escreveram, no ano 858,
845. Apud Teudonis Villam, art. 4. (N. do A.) a Luís, o Germânico, art. 8. (N. do A.)
536 MONTESQUIEU
arrancado o que eles não teriam querido ceder; cios causados na Igreja e no Estado8 60. Os
vemos aí que o clero se acreditava mais opri reis comprometiam-se a não suprimir aos leu
mido pela nobreza do que pelos reis. Parece dos seus homens livres e a não mais dar bens
também que Carlos, o Calvo8 5 7, foi quem eclesiásticos por precepções8 61; de sorte que o
mais atacou o patrimônio do clero, seja porque clero e a nobreza pareceram unir seus interes
fosse o mais irritado contra esse, já que, por ses.
sua causa, seu pai fora degradado por ele, seja As estranhas devastações dos normandos,
porque fosse o mais tímido. De qualquer
como afirmei, muito contribuíram para pôr
modo, vemos nas Capitulares3 5 8 contínuas
querelas entre o clero que exigia seus bens e a fim a essas disputas.
nobreza que recusava, eludia ou diferia restt- Os reis, cada dia menos acreditados pelas
tuí-los; e os reis entre os dois. causas que já apontei e pelas que apontarei,
É um espetáculo digno de piedade ver o es acreditaram não ter outra coisa a fazer senão
tado das coisas nessa época. Enquanto Luís, o colocar-se nas mãos dos eclesiásticos. Mas o
Bonacheirão, fazia às igrejas imensos donati clero enfraquecera os reis, e os reis haviam
vos de seus domínios, seus filhos distribuíam enfraquecido o clero.
os bens do clero aos laicos. Frequentemente a
Em vão Carlos, o Calvo, e seus sucessores
mesma mão que fundava novas abadias despo
java as antigas. O clero não se encontrava apelaram ao clero8 62 para apbiar o Estado e
numa situação estável. Despojavam-no; recu impedir sua queda; em vão serviram-se do res
perava; mas a coroa sempre perdia. peito que os povos tinham para com. esse
Pelo fim do reinado de Carlos, o Calvo, e corpo8 63 para manter o que se devia ter por
desde esse reinado, quase não se tratou mais eles; em vão procuraram conferir autoridade a
das divergências do clero e dos laicos sobre a suas leis através da autoridade dos câno
restituição dos bens da Igreja. Os bispos bem nes8 64;em vão acrescentaram as penas ecle
que soltaram ainda alguns suspiros em suas siásticas às penas civis8 6 5; em vão, para
exortações a Carlos, o Calvo, que se encon
tram na capitular do ano 856, e na carta859
8 68 Vede a capitular do ano 851, art. 6 e 7. (N. do
que escreveram a Luís, o Germânico, no ano A.)
858; mas propunham coisas e reclamavam ‘8 ei Declarou Carlos, o Calvo, no sínodo de Sois-
promessas tantas vezes iludidas que vemos que sons, que prometera aos bispos não mais dar
não alimentavam nenhuma esperança de "obtê- precepções dos bens da Igreja. Capitular do ano
las. 853, art. 11, ed. de Baluze, tomo III, pág. 56. (N. do
Só se tratou de reparar em geral os malefí A.)
8 82 Vede, em Nitard, liv. IV, como, após a fuga de
Lotário, os reis Luís e Carlos consultaram os bispos
8 5 7 Vede a capitular In Villa Sparnaco, do ano para saber se poderíam tomar e partilhar o reino
846. A nobreza tinha irritado o rei coqtra os bispos, que Lotário abandonara. Com efeito, como os bis
de sorte que ele os expulsou da assembléia: escolhe pos formavam entre si um corpo mais unido que os
ram-se alguns cânones dos sínodos, e declarou-se leudos, convinha a estes príncipes assegurar seus
que eles seriam os únicos a serem observados; só direitos por uma resolução dos bispos, que pode
lhes foi concedido o que era impossível negar-lhes. ríam levar todos os demais senhores a segui-los. (N.
Vede os art. 20, 21 e 22. Vede também a cárta que do A.)
os bispos reunidos em assembléia escreveram a 8 63 Vede a capitular de Carlos, o Calvo, Apud
Luís, o Germânico, no ano 858, art. 8; e o edito de Saponarias, do ano 859, art. 3. “Venilão, que eu
Pistes, no ano 864, art. 5. (N. do A.) tinha feito arcebispo de Sens, sagrou-me, e eu não
8 58 Vede a mesma capitular do ano 846, In Villa devia ser expulso do reino por ninguém, saltem sine
Sparnaco. Vede igualmente a capitular da assem audientia et judicio episcoporum, quorum ministé
bléia efetuada Apud Marsnam, do ano 847, art. 4, rio in regem sum consecratus, et qui throni Dei sunt
na qual o clero se limitou a exigir que fosse reem- dicti, in quibus Deus sedet, et per quos sua decernit
possado de tudo que possuía sob o reinado de Luís,
o Bonacheirão. Vede também a capitular do ano judicia; quorum paternis correctionibus et castiga-
851; Apud Marsnam, art. 6 e 7, que mantém a toriis judiciis me subdere fui paratus, et in praesenti
nobreza e o clero em suas posses, e a._Apud Bonoi- sum subditus. ”(N. do A.)
lum, do .ano 856, que é uma exortação dos bispos ao 8 64 Vede a capitular de Carlos, o Calvo, De Cari-
rei considerando que os males, após tantas leis, não siaco, do ano 857, ed. de Baluze, tomo II, pág. 88,
foram reparados: e, finalmente, a carta que os bis art. 1.2, 3.4 e 7. (N.do A.)
pos, em assembléia realizada em Reims, escreveram sés Vede o sínodo de Pistes, do ano 862, art. 4; e a
a Luís, o Germânico, no ano 858, art. 8. (N. do A.) capitular de Carlomano e de Luís II, Apud Vernis
8 59 Art. 8. (N. do A.) Palatium, do ano 883, art. 4 e 5. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 537
contrabalançar a autoridade do conde, deram a cada bispo a qualidade de seu enviado nas
províncias8 6 6: foi impossível ao clero reparar
8 8 8 Capitular do ano 876, sob o reinado de Carlos, o mal que tinham causado; e uma estranha
o Calvo, In Synodo Pontigonensi; ed. de Baluze, desgraça, de que logo mais falarei, fez a coroa
art. 12. (N. do A.) cair por terra.
Capítulo XXIV
Capítulo XXV
Carlos Magno regulamentou, na partilha de sua morte os homens de cada rei receberíam
que falei no capítulo precedente8 70, que após benefícios no reino de seu rei, e não no reino de
outro8 71, ao passo que conservariam seus aló-
8 70 Do ano 806, entre Carlos, Pepino e Luís. É 8 71 Art. 9, pág. 443. O que é conforme ao tratado
relatada por Goldast, e por Baluze, tomo I, pág. de Andely, em Gregório de Tours. liv. IX. (N. do
439. (N. do A.) A.)
538 MONTESQUIEU
dios em qualquer que fosse o reino. Mas acres res8 78. Antes desse tratado, o homem livre
centa ele que todo homem livre poderia, após a podia recomendar-se para .um feudo, mas seu
morte de seu senhor, se recomendar para um alódio permanecia sempre sob o poder ime
feudo nos três reinos a quem quisesse, do diato do rei, isto é, sob a jurisdição do conde;
mesmo modo como o que nunca tivera e não dependia do senhor ao qual estava reco
senhor8 72. Encontramos as mesmas disposi mendado em razão do feudo que dele obtivera.
ções na partilha que Luís, o Bonacheirão, fez Desde esse tratado, todo homem livre pôde
aos filhos, no ano 8178 73. submeter seu alódio ao rei ou a outro senhor, à
Mas, embora os homens livres se recomen sua escolha. Não se trata aqui dos que trans
dassem para um feudo, a milícia do conde não formavam seu alódio em feudo, e saíam, por
era por isso enfraquecida: sempre era neces assim dizer, da jurisdição civil para entrar no
sário que o homem livre contribuísse para seu poder do rei ou do senhor que desejavam
alódio, e preparasse pessoas que fizessem seu escolher.
Assim, os que estavam outrora claramente
serviço, à razão de um homem por quatro sola
sob o poder do rei, na qualidade de homens li
res; ou então, que preparasse um homem que
servisse o feudo em seu lugar; e, tendo alguns vres sob o do conde, tornaram-se, insensivel
abusos se introduzido a esse respeito, foram mente, vassalos uns dos outros, pois cada
eles corrigidos, como parece pelas constitui homem livre podia escolher por senhor a quem
desejasse, quer o rei, quer os outros senhores.
ções8 7 4 de Carlos Magno e pela^de Pepino, rei 2? Pois, transformando um homem em
da Itália8 7 5, que se explicam mutuamente. feudo uma terra que possuía perpetuamente,
O que os historiadores disseram, que a bata esses novos feudos não podiam mais ser vitalí
lha de Fontenay ocasionou a ruína da monar cios. Desse modo, vemos, posteriormente, uma
quia, é muito verdadeiro; mas que me seja per lei geral para dar os feudos aos filhos do pos
mitido passar uma vista d’olhos sobre as suidor; é ela de Carlos, o Calvo, um dos três
príncipes que contrataram8 79.
funestas consequências dessa jornada.
O que eu disse da liberdade que tiveram
Algum tempo depois dessa batalha, os três todos os homens da monarquia, desde o trata
irmãos, Lotário, Luís e Carlos, fizeram um tra do dos três irmãos, de escolher para senhor a
tado no qual encontro cláusulas que deveram quem bem desejassem, o rei ou outros senho
ter modificado todo o estado político entre os res, confirma-se pelos atos lavrados desde essa
franceses8 7 6. época.
Na proclamação8 7 7 que Carlos fez ao povo No tempo de Carlos Magno, quando um
da parte desse tratado que lhe concernia, diz vassalo tinha recebido do senhor uma coisa,
que todo homem livre poderia escolher por se mesmo que não valesse mais que um soldo,
nhor quem desejasse, rei ou outros senho
8 78 Ut unusquisque liber homo in nostro regno
8 72 Art. 10. No tratado de Andely não se fala seniorem quem voluerit, in nobis et in nostris fideli
disso. (N. do A.) bus, accipiat. Art. 2 da proclamação de Carlos. (N.
8 73 Em Baluze, tomo I, pág. 174, Licentiam habeat do A.)
unusquisque liber homo qui seniorem non habuerit, 8 79 Capitular do ano 877, tít. LIII, art. 9 e 10.
cuicumque ex bis tribus fratribus voluerit, se Apud Carisiacum Similiter et de nostri svassallis
commendandi, art. 9. Vede também a partilha que faciendum est etc. Essa capitular se reporta a outra
fez o mesmo imperador, no ano 837, art. 6, ed. de do mesmo ano e do mesmo lugar, art. 3. (N. do A.)
Baluze, pág. 686. (N. do A.) 880 Capitular de Aix-la-Chapelle, do ano 813, art.
8 7 4 Do ano 811, ed. de Baluze, tomo I, pág. 486, 16. Quod nullus seniorem suum dimittat, postquam
art. 7 e 8, e a do ano 812, ibid., pág. 490, art. 1. Ut ab eo acceperit valente solidum unum. . . E a capi
omnis liber homo qui quatuor mansos vestitos de tular de Pepino, do ano 783, art. 5. (N. do A.)
proprio suo, sive de alicujus beneficio habet ipse se 861 Vede a capitular de Carisiaco, do ano 856, art.
praeparet, et ipse in hostem pergat, sive cum seniore 10 e 13, ed. de Baluze, tomo II, pág. 83, na qual o
suo etc. Vede a capitular do ano 807, ed. de Baluze, rei e os senhores eclesiásticos e laicos convieram
tomo I, pág. 458. (N. do A.) nisso: Et si aliquis de vobis talis est cui suus senio-
8 7 5 Do ano 793, inserida na lei dos lombardos. liv. ratus non placet, et illi simulai ut ad alium seniorem
III, tít. IX, cap. IX. (N. do A.) melius quam ad illum acaptare possit, veniat ad
8 7 6 No ano 847, relatado por Aubert le Mire e illum, et ipse tranquille et pacifico animo donet illi
Baluze, tomo II, pág. 42, Conventus apud Mars- commeatum. . . et quod Deus illi cupierit, et ad
nam. (N. do A.) alium seniorem acaptare potuerit, paclfice habeat.
8 7 7 Adnunciatio. (N. do A.) (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 539
não mais podia deixá-lo880. Porém, sob o rei convidá-los a fruir dessa liberdade do que a
nado de Carlos, o Calvo, os vassalos puderam, contê-los881. Na época de Carlos Magno, os
impunemente, seguir seus interesses ou seu benefícios eram mais pessoais do que reais;
capricho; e esse príncipe se expressa tão vigo posteriormente, tornaram-se mais reais do que
rosamente a esse respeito que parece mais pessoais.
Capítulo XXVI
Capítulo XXVII
Na época de Carlos Magno88 7, era-se obri- gado, sob grandes penas, a se apresentar à
convocação para qualquer guerra que fosse;
88 7 Capitular do ano 802, art. 7, ed. de Baluze, não se aceitavam desculpas; e o próprio conde
pág. 365. (N. do A.) que aceitasse escusas seria punido. Porém, o
540 MONTESQUIEU
tratado dos três irmãos introduziu nisso uma o outro; coisa que os dois príncipes juraram e
restrição888 que tirou, por assim dizer, a que obrigaram os dois exércitos a jurar890.
nobreza das mãos do rei889: só se era obri A morte de cem mil franceses na batalha de
gado a acompanhar o rei na guerra quando Fontenay levou o que ainda restava da
esta fosse defensiva. Era-se livre, nos outros nobreza891 a ponderar que, pelas querelas
casos, para seguir seu senhor ou ocupar-se de particulares de seus reis sobre sua partilha, ela
seria exterminada, e que a ambição e a inveja
seus negócios. Esse tratado relaciona-se a
dos mesmos fariam verter tudo o que ainda
outro, feito cinco anos antes, entre os dois
existia de sangue a derramar. Decretou-se,
irmãos, Carlos, o Calvo, e Luís, rei da Germâ então, a lei pela qual a nobreza não seria cons
nia, pelo qual os dois irmãos dispensaram seus trangida a acompanhar os príncipes na guerra
vassalos de segui-los na guerra, no caso de senão quando se tratasse de defender o Estado
fazerem qualquer empreendimento um contra contra uma invasão estrangeira. Essa lei esteve
em vigor durante vários séculos892.
Capítulo XXVIII
Parecia que tudo contraía um vício particu dados aos filhos do conde, e quis que esse
lar e ao mesmo tempo se corrompia. Disse eu regulamento fosse válido também para os
que, nos primeiros tempos, vários feudos se feudos39 4.
encontravam perpetuamente alienados; mas Ver-se-á logo mais que esse regulamento
eram casos particulares, e os feudos, em geral, recebeu mais extensão; de sorte que os grandes
conservavam sempre sua própria natureza; e, ofícios e os feudos passaram a parentes mais
se a coroa perdera feudos substituíra-os por afastados. Disso decorreu que a maioria dos
outros. Disse também que a coroa nunca tinha senhores que dependiam imediatamente da
alienado os grandes ofícios perpetuamente393. coroa dela passasse a depender só mediata-
Porém, Carlos, o Calvo, estabeleceu um mente. Esses condes, que distribuíam outrora a
regulamento geral que afetou igualmente os justiça nos tribunais do rei; esses condes, que
conduziam os homens livres à guerra, se
grandes ofícios e os feudos; estabeleceu ele nas
suas Capitulares que os condados seriam893 * encontraram entre o rei e seus homens livres; e
o poder recuou de um grau.
Há mais: parece, pelas capitulares, que os
893 Outros autores disseram que o condado de condes tinham benefícios relacionados com
Toulouse fora dado por Carlos Martelo, e passou de
herdeiro em herdeiro até o último Raimundo; mas,
se isso foi assim, o foi em consequência de algumas 89 4 Vede sua capitular do ano 877, LIII, art. 9 e
circunstâncias que puderam levar a escolher os con 10, Apud Carisiacum. Essa capitular se relaciona a
des de Toulouse entre os filhos do último possuidor. outra do mesmo ano e do mesmo lugar, art. 3. (N.
(N. do A.) do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 541
seu condado e vassalos sob sua autoridade39 5. gênitos tinham dado porções a seus caçulas,
Quando os condados tornaram-se hereditários, estes prestassem homenagem ao primogêni
esses vassalos do conde não mais foram vassa to99 6, de modo que o senhor dominante ape
los imediatos do rei, os benefícios relacionados nas os mantinha como subfeudo. Filipe Augus
com os condados não mais foram benefícios to, duque da Borgonha, os condes de Nevers,
do rei; os condes tornaram-se mais poderosos de Bolonha, de São Paulo, de Dampierre, e ou
porque os vassalos que já possuíam os coloca tros senhores, declararam que, daqui por dian
ram em situação de procurar outros. te, o todo dependería sempre do mesmo
Para perceber bem o enfraquecimento que senhor, sem nenhum senhor intermediário" 7.
resultou no fim da segunda raça, basta ver. o Essa ordenança geralmente não foi obedecida,
que ocorreu, no começo da terceira, em que a pois, como afirmei anteriormente, era impos
multiplicação dos subfeudos colocou os gran sível fazer, nessa época, ordenanças gerais;
des vassalos em desespero. porém muitos de nossos costumes se regula
Era costume do reino que, quando os primo- mentam por ela.
89 5 Capitular III do ano 812, art. 7; e a do ano 89 6 Como parece por Othon de Frissinge, Das
815, art. 6, sobre os espanhóis; coletânea das Capi Gestas de Frederico, liv. II, cap. XXIX. (N. do A.)
tulares, liv. V, art. 288; e a capitular do ano 869, 89 7 Vede a ordenança de Filipe Augusto, do ano
art. 2; e a do ano 877, art. 13, ed. de Baluze. (N. do 1209, na nova coletânea (das Ordenanças de
A.) Laurière). (N. do A.)
Capítulo XXIX
Disse eu que Carlos, o Calvo, quis que, hereditária porque se tomavam sempre os reis
quando o possuidor de um grande ofício ou de nesta raça; era-o também porque os filhos
um feudo deixasse, ao morrer, um filho, lhe sucediam; era eletiva porque o povo escolhia
fosse dado o oficio ou o feudo. Seria difícil entre os filhos. Como as coisas marcham sem
acompanhar o progresso dos abusos que disso pre paulatinamente, e uma lei política sempre
resultaram, e a extensão que se deu a essa lei tem relação com outra, obedeceu-se, para a
em cada país. Encontro nos livros Dos Feu sucessão dos feudos, ao mesmo espírito que
dos399 que, no início do reinado do Imperador pautara a sucessão da coroa900. Destarte, os
Conrado II, os feudos, nos países de sua domi feudos passaram aos filhos, por direito de
nação, não passavam aos netos; passavam sucessão e por direito de eleição; e cada feudo
somente àquele dos filhos do último possuidor foi, como a coroa, eletivo e hereditário.
que o senhor tinha escolhido8"; assim, os feu Esse direito de eleição, na pessoa do senhor,
dos foram concedidos por uma espécie de elei não subsistia901 no tempo dos autores dos li
ção que o senhor fez entre seus filhos. vros Dos Feudos902, isto é, no reinado do
Expliquei, no capítulo XVII deste livro, Imperador Frederico I903.
como, na segunda raça, a coroa era eletiva em
certos respeitos e, em outros, hereditária. Era898
899
900 Pelo menos na Itália e na Alemanha. (N. do
A.)
901 Quod hodie ita stabilitum est, ut ad omnes
898 Liv. I, tít. I. (N. do A.) aequaliter veniat. Liv. I, Dos Feudos, tít. I. (N. do
899 Sic progressum est, ut ad filios deveniret in A.)
quem dominus hoc vellet beneficium confirmare. 902 Gerardus Niger e Aubertus de Orto. (N. do A.)
Ibid. (N. do A.) 903 Barba-Roxa (1122-1190).
542 MONTESQUIEU
Capítulo XXX
Está escrito, no livro Dos Feudos30 4, que, putar a uma casa estrangeira seus direitos
quando o Imperador Conrado partiu para incontestáveis ao império, e, finalmente, no
Roma, os fiéis que estavam a seu serviço lhe tempo de Hugo Capeto, a casa reinante, despo
solicitaram o estabelecimento de uma lei para jada de todos os seus domínios, nem mesmo
que os feudos que passavam aos filhos passas pôde sustentar a coroa.
sem também aos netos; e aquele cujo irmão A fraqueza de espírito de Carlos, o Calvo,
morresse sem deixar herdeiros legítimos pudes introduziu na França igual fraqueza de Esta
se suceder aos feudos que pertenceram ao pai do. Mas seu irmão, Luís, o Germânico, e al
comum: isto foi concedido. guns dos que lhe sucederam, possuíram as
Acrescente-se aí — e deve-se lembrar que os maiores qualidades, a força de seu Estado
que falam viviam na época do Imperador Fre manteve-se mais longamente.
derico I90 5 — “que os antigos jurisconsultos Que digo? Talvez o espírito fleumático e, se
sempre tinham sustentado que a sucessão dos ouso dizer, a imutabilidade do espírito da
feudos em linha colateral não passava além nação alemã tenha resistido por mais tempo do
dos irmãos germanos, embora nos tempos que o da nação francesa a essa disposição das
modernos ela tenha chegado até o sétimo grau, coisas que fazia com que os feudos, como que
como, pelo novo direito, fora levada em linha por uma tendência natural, se perpetuassem
reta até o infinito”90 6. Foi assim que a lei de nas famílias.
Conrado foi pouco a pouco ampliada. Acrescento que o reino da Alemanha não
Supostas todas essas coisas, a simples leitu foi devastado e, por assim dizer, aniquilado,
ra da história da França mostrará que a perpe- como o foi o da França, por esse gênero parti
tuidade dós feudos se estabeleceu mais cedo na cular de guerra que lhe moveram os norman-
França do que na Alemanha. Quando o Impe dos e os sarracenos. Havia menos riqueza na
rador Conrado II começou a reinar, em 1024, Alemanha, menos cidades a saquear, menos
as coisas ainda se encontravam, na Alemanha, costas a percorrer, mais pântanos a atravessar,
tal como estavam na França sob o reinado de mais florestas a penetrar. Os príncipes, que
Carlos, o Calvo, morto em 877. Mas na Fran não viram a cada instante o Estado prestes a
ça, desde o reinado de Carlos, o Calvo, sobre cair, tiveram menos necessidade de seus vassa
vieram tantas modificações, que Carlos, o los, isto é, dependeram menos deles. Parece
Simples, não se encontrou em posição de dis- que se os imperadores da Alemanha não tives
sem sido obrigados a ir a Roma se fazer
90 4 Liv. I, Dos Feudos, tít. I. (N. do A.) coroar, e empreender contínuas expedições à
90 5 Cujácio o demonstrou muito bem. (N. do A.) Itália, os feudos teriam conservado, nesse país,
90 6 Livro I, Dos Feudos, tít. I. (N. do A.) por mais tempo, sua natureza primitiva.
Capítulo XXXI
O império que, em prejuízo do ramo de Car duque de Francônia, no ano 912. O ramo que
los, o Calvo, já fora entregue aos bastardos do reinava na França, e que mal podia disputar as
de Luís, o Germânico90 7, passou ainda para vilas, estava ainda menos em condições de dis
uma casa estrangeira, pela eleição de Conrado, putar o império. Temos um acordo feito entre
Carlos, o Simples, e o Imperador Henrique I,
90 7 Arnoul e seu filho Luís IV. (N. do A.) que sucedera a Conrado. É chamado Pacto de
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 543
Capítulo XXXII
A hereditariedade dos feudos e o estabeleci diam avançar nem pelo Sena nem pelo Loire.
mento geral dos subfeudos destruíram o gover Hugo Capeto, que possuía essas duas cidades,
no político e formaram o governo feudal. Em tinha em suas mãos as duas chaves dos infeli
lugar dessa multidão inumerável de vassalos zes restos do reino; foi-lhe conferida uma
que os reis tiveram, somente possuíram alguns
de quem os outros dependeram. Os reis quase coroa que só ele podia defender. Foi assim que
não tiveram mais autoridade direta: um poder depois se deu o império à casa que mantém
que devia passar por tantos outros poderes, e imóveis as fronteiras dos turcos911.
por poderes tão grandes, deteve-se ou se per O império saíra da casa de Carlos Magno
deu antes de chegar a seu termo. Vassalos
no tempo em que a hereditariedade dos feudos
muito poderosos não mais obedeceram; e
inclusive se serviram de seus subfeudos para apenas se estabelecia como uma condescen
não mais obedecer. Os reis, privados de seus dência. Estabeleceu-se inclusive mais tardia
domínios, reduzidos às cidades de Reims e de mente entre os alemães do que entre os france
Laon, ficaram à sua mercê. A árvore estendeu ses912; isso fez com que o império,
muito seus ramos e a cabeça secou. O reino
considerado como feudo, fosse eletivo. Ao
encontrou-se sem domínio, como se encontra
contrário, quando a coroa de França saiu da
atualmente o império909. Entregou-se a coroa
a um dos vassalos mais poderosos. casa de Carlos Magno, os feudos eram real
Os romanos devastavam o reino; chegavam mente hereditários nesse reino: a coroa, como
em espécies de jangadas ou pequenas embarca um grande feudo, também o foi.
ções, entravam pelas embocaduras dos rios, Todavia, cometeu-se grande erro em atribuir
subiam-nos e devastavam a região de ambos ao momento dessa revolução todas as transfor
os lados. As cidades de Orléans e de Paris mações que ocorreram ou que ocorreríam
paralisaram esses salteadores91 0 e eles não po depois. Tudo se reduziu a dois aconteci
mentos: a família reinante mudou e a coroa foi
909 O império. . . a Alemanha. unida a um grande feudo.
910 Vede a capitular de Carlos, o Calvo, do ano
877. Apud Carisiacum, sobre a importância, nessa
época, de Paris, de Saint-Denis e dos castelos do 911 A casa da Áustria.
Loire. (N. do A.) 912 Vede acima o cap. XXX. (N. do A.)
544' MONTESQUIEU
Capítulo XXXIII
Resultou da perpetuidade dos feudos que o serviço, cumpria que o possuidor estivesse em
morgadio ou direito de primogenitura se esta condições de o executar. Estabeleceu-se um
belecesse entre os franceses. Não era conhe direito de primogenitura; e a razão da lei feu
cido na primeira raça913* ; a coroa era parti dal forçou a da lei política e civil.
lhada entre os irmãos, os alódios também e os Passando os feudos aos filhos do possuidor,
feudos, amovíveis ou vitalícios, não sendo ob os senhores perdiam a liberdade de dispor
jeto de sucessão, não podiam ser objeto de deles; e, para se compensarem, estâbeleceram
partilha. um direito que se chamou direito de resgate, de
Na segunda raça, o título de imperador que que falam nossos costumes, que se pagou
Luís, o Bonacheirão, possuía, e com o qual inicialmente em linha direta e que, pelo uso,
honrou Lotário, seu filho primogênito, fê-lo não se pagou mais do que em linha colateral.
pensar em conferir a este príncipe uma espécie Em breve, os feudos puderam ser transfe
de primazia sobre seus irmãos mais novos. Os ridos aos estrangeiros, como um bem patrimo
dois reis deviam ir encontrar o imperador cada nial. Isso fez surgir o direito de laudêmio e de
ano, levar-lhe presentes91 4 e dele receber ou vendas, estabelecido em quase todo o reino.
tros maiores; deviam conferenciar com ele Inicialmente, esses direitos foram arbitrários;
sobre negócios comuns. Foi o que deu a Lotâ- mas, quando a prática de conceder essas
rio essas pretensões que lhe custaram tão caro. permissões generalizou-se, foram fixados em
Quando Agobardo escreveu para este prínci cada região.
pe91 5, alegou a disposição do próprio impera
O direito de resgate deveria ser pago quando
dor, que associara Lotário, depois de, por três
de cada mutação de herdeiro e inicialmente foi
dias de jejuns e celebração dos santos sacrifí
pago mesmo em linha direta91 6. O costume
cios, por orações e esmolas, ter sido Deus
mais generalizado fixara-o em um ano de
consultado; que a nação lhe prestara jura
renda. Isso era oneroso e incômodo ao vassalo
mento e que não podia ela perjurar; que envia
e afetava, por assim dizer, o feudo. Obteve,
ra Lotário a Roma, para ser confirmado pelo
amiúde, no ato de homenagem que o senhor
papa. Pondera ele sobre tudo isso e não sobre
não exigisse para o resgate senão uma pequena
o direito de primogenitura. Diz bem que o
quantia de dinheiro91 7, a qual, pelas modifica
imperador designara uma partilha aos caçulas
ções havidas nas moedas, tornou-se de mínima
e dera preferência ao primogênito; mas, dizer
importância: assim, o direito de resgate encon
que preferira o mais velho era dizer ao mesmo
tra-se atualmente quase reduzido a nada,
tempo que teria podido preferir os mais moços.
enquanto o de laudêmio e de vendas subsistiu
Porém, quando os feudos se tornaram em toda a sua extensão. Não concernindo esse
hereditários, o direito de primogenitura estabe direito nem aos vassalos nem aos herdeiros,
leceu-se na sucessão dos feudos, e, pela mesma mas sendo um caso fortuito que não se devia
razão, no da coroa, que era o grande feudo. A prever ou esperar, não se fizeram essas espé
antiga lei, que instituiu partilhas, não mais cies de estipulações e se continuou a pagar
subsistiu: sendo os feudos encarregados de um certa porção do preço.
Quando os feudos eram vitalícios, não se
913 Vede a lei sálica e a lei dos ripuários, no título
dos alódios. (N. do A.)
91 4 Vede a capitular do ano 817, que contém a pri 91 8 Vede a ordenança de Filipe Augusto do ano
meira partilha que Luís, o Bonacheirão, fez entre 1209, sobre os feudos. (N. do A.)
seus filhos. (N. do A.) 91 7 Encontramos, nas chartas, muitas dessas con
91 8 Vede suas duas cartas a este respeito, da qual venções, como na capitular de Vendôme e na abadia
uma tem como título De divisione imperii. (N. do de São Cipriano, em Poitou, de que Galland, pág.
A.) 55, apresenta extratos. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 545
podia dar uma parte do feudo, para o manter enfim922, que, além dos limites da Alemanha,
para sempre como subfeudo; era absurdo que e em tempos assaz modernos, renasceram, de
um simples usufrutuário dispusesse da proprie algum modo, pelo estabelecimento do cristia
dade da coisa. Porém, quando se tornaram nismo.
perpétuos, isso foi permitido918, com certas Quando eram os feudos amovíveis, eram
restrições que os costumes impuseram919: o dados a pesssoas que estavam em condições de
que se chamou fruir de seu feudo. servi-los e não se cogitava dos menores.
Tendo a perpetuidade dos feudos feito esta Porém, quando foram perpétuos, os senhores
belecer o direito de resgate, as filhas puderam tomaram o feudo até a maioridade, seja para
suceder a um feudo, na ausência de sucessores aumentar seus proveitos, seja para educar o
masculinos. Pois, dando o senhor o feudo à pupilo no exercício das armas923. É a isso que
filha, multiplicava os casos de seu direito de nossos costumes chamam de guarda-nobre,
resgate, porque o marido devia pagâ-lo como a baseada em princípios diferentes dos da tutela
mulher920. Essa disposição não era válida e deles inteiramente diferentes.
para a coroa, uma vez que, não dependendo de Quando os feudos eram vitalícios, recomen
ninguém, não poderia haver direito de resgate dava-se para um feudo; e a tradição real, que
sobre ela. se fazia pelo cetro, confirmava o feudo, como
faz hoje a homenagem. Não nos consta que os
A filha de Guilherme V, conde de Toulouse,
condes, ou mesmo os enviados do rei, recebes
não sucedeu ao condado. Posteriormente,
sem as homenagens nas províncias; e esta fun
Eleonora sucedeu na Aquitânia, e Matilde na
ção não se encontra nas comissões desses ofi
Normandia; e o direito de sucessão das filhas
parece, nessa época, tão bem estabelecido que
ciais, que nos foram conservadas nas
capitulares. Algumas vezes, efetivamente, fa
Luís, o Jovem, após a dissolução de seu casa
ziam que todos os súditos92 4 prestassem jura
mento com Eleonora, não opôs nenhuma difi
mento de fidelidade, mas esse juramento era
culdade em lhe restituir a Guiena. Como esses
tampouco uma homenagem da natureza dás
dois últimos exemplos seguem de muito perto
que se estabeleceram depois, que, nessas últi
o primeiro, cumpre que a lei geral, que chama mas, o juramento de fidelidade era uma ação
va as mulheres à sucessão dos feudos, se tenha
anexa à homenagem, que ora a seguia ora a
introduzido mais tarde no condado de Tou precedia, que não se efetuava em todas as
louse do que nas outras províncias do homenagens, que foi menos solene que a home
reino921. nagem e dela era inteiramente distinta92 5.
A constituição dos diversos reinos da Euro
pa seguiu o estado em que estavam os feudos
922 Os Estados escandinavos e a Rússia (Moscó-
na época em que esses reinos foram consti via).
tuídos. As mulheres não sucederam nem à 923 Vemos na capitular do ano 877, Apud Carisia-
coroa da França nem à do império, porque, no cum, art. 3, ed. de Baluze, tomo II, pág. 269, o
estabelecimento dessas duas monarquias, as momento em que os reis fizeram administrar os feu
dos para os conservar aos menores: exemplo que foi
mulheres não podiam suceder aos feudos, mas seguido pelos senhores, e deu origem ao que chama
sucederam nos reinos cujo estabelecimento se mos a guarda-nobre. (N. do A.)
guiu o da perpetuidade dos feudos, tais como 92 4 Encontramos a fórmula na capitular II do ano
802. Vede também a do ano 854, art. 13, e outras.
os que foram fundados pelas conquistas dos (N. do A.)
normandos, os que foram fundados pelas con 92 5 O Sr. du Cange na palavra Hominium, pág.
quistas feitas sobre os mouros; outros, 1 163, e na palavra Fidelitas, pág. 474, cita as char-
tas das antigas homenagens, onde essas diferenças
se encontram, e grande número de autoridades que
918 Mas não se podia suprimir o feudo, isto é, podemos consultar. Na homenagem, o vassalo colo
suprimir-lhe uma porção. (N. do A.) cava sua mão na do senhor, e jurava: o juramento
919 Fixaram elas a parcela que se podia fruir. (N. de fidelidade se fazia, jurando-se sobre os Evange
do A.) lhos. A homenagem se fazia de joelhos, o juramento
920 Ê por isso que o senhor constrangia a viúva a de fidelidade, de pé. Só o senhor podia receber a
casar. (N. do A.) homenagem, mas seus oficiais podiam receber o
921 A maior parte das casas tinha suas leis de juramento de fidelidade. Vede Littleton, sec. XCI e
sucessão particulares. Vede o que nos diz Thaumas- XCII. Fé e homenagem é fidelidade e homenagem.
sière sobre as casas do Berri. (N. do A.) (N. do A.)
546 MONTESQUIEU
Os condes e os enviados do rei mandavam fazer com que fossem lembrados os deveres
ainda, em certas ocasiões, dar aos vassalos, recíprocos do senhor e do vassalo, em todas as
cuja fidelidade era susoeita, uma garantia que épocas.
se chamavafirmitas32 6, mas essa garantia não Poderia acreditar que as homenagens come
podia ser uma homenagem, pois os reis a çaram a ser estabelecidas na época do Rei
davam entre si92 7. Pepino, época em que disse que vários benefí
Pois, se o Abade Suger fala de uma cadeira cios foram dados perpetuamente: mas acredi
de Dagoberto onde, segundo a relação da anti tá-lo-ia com precaução e apenas na suposição
guidade, os reis da França tinham o costume de que os autores dos antigos Anais dos fran
de receber a homenagem dos senhores928, é cos não eram ignorantes, que, descrevendo as
claro que ele emprega aqui as idéias e a lingua cerimônias do ato de fidelidade que Tassillon,
gem de sua época. duque da Baviera, fez a Pepino929, tenham fa
Quando os feudos passaram aos herdeiros, o lado segundo os usos que viam ser praticados
reconhecimento do vassalo, que nos primeiros em sua época930.
tempos era apenas coisa ocasional, tornou-se
ação regulamentada: foi feito de modo mais 928 Suger, liv. De administratione sua. (N. do A.)
brilhante, repleto de formalidade, porque devia 929 Anno 757, cap. XVII. (N. do A.)
930 Tassillo venit in vassatico se commendans, per
manus sacramenta iuravit multa et innumerabilia,
92 6 Capitular de Carlos, o Calvo, do ano 860,post reliquiis sanctorum manus imponens, et fidelitatem
reditum a Confluentibus, art. 3, ed. de Baluze, pág. promisit Pippino. Parecería haver, aí, uma homena
145. (N. do A.) gem e um juramento de fidelidade. Vede, na pág. 90,
92 7 Ibid., art. I. (N. do A.) a nota 3. (N. do A.)
Capítulo XXXIV
Quando os feudos eram amovíveis ou vitalí mas um avô, um tio-avô tériam sido maus vas
cios, quase que só diziam respeito às leis políti salos para dar ao senhor: destarte, essa regra
cas; é por isso que, nas leis civis dessas épocas, só foi válida para os feudos, como nos informa
faz-se tão pouca menção às leis dos feudos. Boutillier933.
Porém, quando eles se tornaram hereditários, Tendo-se os feudos tornado hereditários, os
quando puderam ser dados, vendidos ou lega senhores, que deviam velar para que o feudo
dos, disseram respeito às leis políticas e às leis fosse servido, exigiram que as filhas, que de
civis. O feudo, considerado como uma obriga viam suceder no feudo93 4 e, creio, algumas
ção ao serviço militar, relacionava-se ao direi vezes os varões, não pudessem casar sem seu
to político; considerado como um gênero de consentimento; de sorte que os contratos de
bem que estava no comércio, dependia do casamento se tornaram para os nobres uma
direito civil. Isso originou as leis civis sobre os disposição feudal e uma disposição civil. Num
feudos. ato semelhante, feito sob os olhos do senhor,
Tendo se os feudos tornado hereditários, as estabeleceram-se disposições para a sucessão
leis concernentes à ordem das sucessões tive futura, de modo que o feudo pudesse ser servi-
ram que ser relativas à perpetuidade dos feu
dos. Assim se estabeleceu, apesar da disposi 933 Somme Rurale, liv. 1, tít. LXXVI, pág. 447.
ção do direito romano e da lei sálica931932 , ésta (N. do A.)
regra do direito francês: Propres ne remontent 93 4 Segundo uma ordenança de São Luís, do ano
point332. Cumpria que o feudo fosse servido; 1246, para comprovar os costumes de Anjou e do
Maine, os que tiveram o arrendamento de uma filha
herdeira de um feudo, darão garantia ao senhor que
931 No título dos alódios. (N. do A.) ela só se casará com o seu consentimento. (N. do
932 Liv. IV, Defundis, tít. LIX. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 547
PRIMEIRA PARTE
LIVRO PRIMEIRO — Das leis em geral
Cap. V — Em que casos as leis suntuárias são úteis numa monarquia ... 110
Cap. VI — Do luxo na China ..................................................................... 110
Cap. VII — Fatal consequência do luxo na China .................................... 111
Cap. VIII — Da continência pública .......................................................... 111
Cap. IX — Da condição das mulheres nos diferentes governos ................ 112
Cap. X—Do tribunal doméstico entre os romanos ................................. 112
Cap. XI — Como as instituições, em Roma, transformaram-se com o
governo ..................................................................................... 113
Cap. XII — Da tutela das mulheres entre os romanos ............................. 114
Cap. XIII — Das penas estabelecidas pelos imperadores contra a devassi
dão das mulheres ........................................................................ 114
Cap. XIV — Leis suntuárias entre os romanos .......................................... 115
Cap. XV — Dos dotes e das vantagens nupciais nas diversas constitui
ções ........................................................................................... 116
Cap. XVI — Belo costume dos samnitas ................................................... 116
Cap. XVII — Da administração das mulheres .......................................... 117
SEGUNDA PARTE
LIVRO NONO — Das leis, em sua relação com a força defensiva
ÍNDICE 553
TERCEIRA PARTE
LIVRO DÉCIMO QUARTO — Das leis, na relação
que elas têm com a natureza do clima
556 ÍNDICE
QUARTA PARTE
LIVRO VIGÉSIMO — Das leis, na relação que têm com o comércio considerado em sua
natureza e em suas distinções
QUINTA PARTE
Cap. III — Das leis civis que são contrárias à lei natural ......................... 400
Cap. IV — Continuação do mesmo assunto ............................................... 400
Cap. V — Caso em que se pode julgar pelos princípios do direito civil
modificando os princípios do direito natural ........................... 401
Cap. VI — De como a ordem das sucessões depende dos princípios do
direito político ou civil, e não dos princípios do direito natural .... 401
Cap. VII — De como não se deve decidir pelos preceitos da religião quan
do se trata dos da lei natural .................................................... 403
Cap. VIII — De como não se deve regulamentar pelos princípios do direi
to que se chama canônico as coisas reguladas pelos princípios do
direito civil ................................................................................ 403
Cap. IX — De como as coisas que devem ser reguladas pelos princípios
do direito civil raramente podem sê-lo pelos princípios das leis da
religião ....................................................................................... 404
Cap. X — Em que caso se deve seguir a lei civil que permite, e não a lei
da religião que proíbe ............................................................... 405
Cap. XI — De como não se deve regulamentar os tribunais humanos
pelas máximas dos tribunais que concernem à outra vida ...... 405
Cap. XII — Continuação do mesmo assunto ............................................ 405
Cap. XIII — Em que caso deve-se seguir, em relação aos casamentos, as
leis da religião e em que caso deve-se seguir as leis civis ........ 406
Cap. XIV — Em que casos, nos casamentos entre parentes, deve-se regu
lamentar pelas leis da natureza; em que casos deve-se regulamentar
pelas leis civis ............................................................................ 407
Cap. XV — De como não se deve regulamentar pelos princípios do direito
político as coisas que dependem dos princípios do direito civil .... 409
Cap. XVI — De como não se pode resolver pelas regras do direito civil,
quando se trata de resolver pelas do direito político .............. 410
Cap. XVII — Continuação do mesmo assunto .......................................... 410
Cap. XVIII — De como se deve examinar se as leis que parecem contradi
zer-se são da mesma ordem ...................................................... 411
Cap. XIX — De como não se deve decidir pelas leis civis as coisas que
devem sê-lo pelas leis domésticas ............................................. 411
Cap. XX — De como não se deve decidir pelos princípios das leis civis as
coisas que pertencem ao direito das gentes ...................... . . . 412
Cap. XXI — De como não se deve decidir pelas leis políticas as coisas
que pertencem ao direito das gentes ..................................... . 412
Cap. XXII — Destino infeliz do inca Ataualpa ........................................ 412
Cap. XXIII — De como, quando, por alguma circunstância, a lei política
destrói o Estado, deve-se decidir pela lei política que o conserva, que
se torna às vezes um direito das gentes .................................... 413
Cap. XXIV — De como os regulamentos de polícia são de ordem dife
rente dos de outras leis civis ...................................................... 413
Cap. XXV — De como não se deve seguir as disposições gerais do direito
ÍNDICF 565
SEXTA PARTE
C ap. I — Do caráter diferente das leis dos povos germânicos .................. 425
Cap. II — De como todas as leis dos bárbaros foram pessoais ............... 426
Cap. III — Diferença capital entre as leis sálicas e as leis dos visigodos e
dos borguinhões ........................................................................ 427
Cap. IV — De como o direito romano se perdeu no país de domínio dos
francos e se conservou no país de domínio dos godos e dos borgui
nhões ........................................................ 428
Cap. V — Continuação do mesmo assunto .............................................. 429
Cap. VI — Como o direito romano se conservou no domínio dos lombar
dos .............................................................................................. 430
C ap. VII — Como o direito romano se perdeu na Espanha ...................... 430
C ap. VIII—Falsa capitular ............................. :....................................... 431
Cap. IX — De como os códigos das leis dos bárbaros e as capitulares
decaíram ..................................................................................... 431
Cap. X — Continuação do mesmo assunto .............................................. 432
Cap. XI — Das outras causas da decadência dos códigos das leis dos bár
baros, do direito romano e das capitulares .............................. 433
Cap. XII — Dos costumes locais; revolução das leis dos povos bárbaros
e do direito romano ................................................................... 433
Cap. XIII — Diferença entre a lei sálica ou dos francos sálios e a dos
francos ripuários e dos outros povos bárbaros ....................... 434
Cap. XIV — Outra diferença .............................................. 435
Cap. XV — Reflexão .................................................................................. 436
Cap. XVI — Da prova pela água fervente estabelecida pela lei sálica . . . 436
Cap. XVII — Maneira de pensar de nossos antepassados ........................ 436
Cap. XVIII — Como a prova pelo duelo difundiu-se ............................... 438
C ap. XIX — Nova razão do esquecimento das leis sálicas, das leis roma
nas e das capitulares ................................................................. 440
C ap. XX — Origem do ponto de honra ..................................................... 441
Cap. XXI — Nova reflexão sobre o ponto de honra entre os romanos . . . 442
Cap. XXII — Dos costumes relativos aos combates ............................... 442
566 ÍNDICE