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OS BSNSÂDORES

XXI
MONTESQUIEU

DO ESPÍRITO
DAS LEIS

EDITOR: VICTOR CIVITA


Título original:

De 1’Esprit des lois, ou du rapport que les lois doivent avoir avec la constitution de chaque
gouvernement, les moeurs, le climat, la religion, le commerce, etc. (l.a edição, 1748)

l.a edição — março 1973

© — Copyright desta edição, 1973,


Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Tradução publicada sob licença de
Difusão Européia do Livro, São Paulo.
Sumário

Introdução ................................................................................................. 9
Prefácio ........................................................................................................ 27
Advertência do Autor .......................... 29
Primeira Parte ............................................................................................. 33
Segunda Parte ............................................... •.......................................... 135
Terceira Parte ........................................................................................... 209
Quarta Parte ............................................................................................. 291
Quinta Parte ............................................................................................... 373
Sexta Parte ................................................................................................. 417
INTRODUÇÃO
MONTESQUIEU E O ESPÍRITO DAS LEIS
MONTESQUIEU

I. A vida. — II. O homem. — III. O pensador e o escritor.


IV. A influência e a glória.

I. — Charles-Louis de Secondat, Barão de La Brède e de Montesquieu,


nasceu no castelo de La Brède, que ainda existe cerca de cinco léguas de Bor­
déus, no dia 18 de janeiro de 1689. Embora o pai fosse militar na guarda do
corpo do rei, a magistratura dominava em sua família e seu avô e tio paterno
ocuparam, no Parlamento de Bordéus, a função de presidente com barrete, onde
ele os sucedeu sem entusiasmo. Foi educado com os Oratorianos de Juilly e fez,
nessa célebre instituição, estudos nos quais adquiriu sobretudo o gosto pela His­
tória. O pai, aliás, seguia-o atentamente em seu trabalho e não o desencorajava
em suas tendências. O jovem La Brède foi recebido como Conselheiro do Parla­
mento de Bordéus um ano depois da morte do pai, ocorrida em 1713; em 1716,
herdava o cargo de seu tio Jean-Baptiste e recebia o nome de Montesquieu. Cum­
priu honradamente suas funções sem apaixonar-se por elas e ele próprio declara­
va, honestamente, nada entender de processos. Na verdade, entediou-se, logo
aborreceu-se e, assim que possível, demitiu-se do que se lhe tornava um trabalho
penoso.
Outras preocupações solicitavam-no mais, tornando-lhe mais pesada aque­
la: a paixão pela antiguidade, estudos históricos pelos quais estava mais estimu­
lado desde o colégio. Essa paixão explica o fato de ter entrado de tão boa vonta­
de e voluntariamente numa Academia provinciana que acabava de se formar em
Bordéus e que ele contribuiu com sua atividade para desenvolver e transformar.
Aí, lia duas semanas depois de sua admissão, em abril de 1716, sua Dissertation
sur la Politique des Romains dans la Religion; enveredou em seguida para as
ciências puras, fundou um prêmio de anatomia, fazendo ele próprio comunica­
ções sobre certas doenças, sobre o eco, sobre a função das glândulas renais e
pretendendo escrever uma “História Física da Terra Antiga e Moderna”. Essas
preocupações, das quais foi felizmente afastado por outras, permanecem
significativas.
Vendeu seu cargo em 1726. Alguns anos antes, em 1721, haviam aparecido,
com o êxito que conhecemos, as Lettres Persanes. Pudera até essa época repre­
sentar o papel de grande homem de província. Logo Paris o adotou e o festejou.
Foi recebido na casa do Abade Alary no “Club de TEntresol”' eparticipou com
arrojo das discussões e dos estudos políticos com que essa assembléia se deleita­
va. Teria lido, em 1722, o Discours de Sylla et d’Eucrate, mostrando o que se
poderia esperar dele em assuntos sérios. Entretanto, explorava ainda o caminho

1 É possível, como pretende Vian, que nomeadamente não fez parte dele; mas é difícil acreditar que não o
tivesse frequentado.
10 INTRODUÇÃO

que conseguira abrir com as Lettres, publicando, em 1725, Le Temple de Gnide.


Pretendia assim agradar aos familiares da irmã do Duque de Bourbon, Srta.
Clermont, entre os quais encontrava uma sociedade mais frívola.
Sua recepção na Academia Francesa foi um pequeno drama. Fora esco­
lhido desde 1725, mas o rei, baseando-se no relatório do Cardeal Fleury, recu­
sara sua aprovação. Discutiu-se, esforçou-se, exerceram-se felizes influências,
notadamente a da Srta. de Lambert. Pretende-se que foifeita uma edição especial
das Lettres Persanes, com emendas ou supressões, de modo que pudesse ser mos­
trada ao ministro, mas trata-se de uma lenda. Simplesmente Fleury ouviu o autor
desculpar-se por ter publicado anonimamente um livro que sua qualidade de
magistrado o impediría de assinar, recebeu garantias e, enfim, cessou o ostra­
cismo. Montesquieu entrou para a Academia no dia 24 de janeiro de 1728, onde,
aliás, apareceu muito pouco.
Nesse mesmo ano, empreendeu longas viagens que foram, sobretudo, via­
gens de estudo. Passou por Viena, atravessou a Hungria, deteve-se em Veneza,
onde encontrou duas personalidades ilustres e singulares: Law, o homem do “sis­
tema”, e o Conde de Bonneval, que, oficial francês, depois general austríaco,
completava sua carreira fazendo-se muçulmano e tornando-se paxá de dois
rabos. Depois visitou Milão, Turim, Florença; em 1729, Roma, Nápoles, o Tirol,
a Baviera e as margens do Reno até os Países-Baixos, voltando daípara Londres,
em fins de outubro, no iate do Lorde Chesterfield.
A Inglaterra era seu objetivo principal e aí permanecería dois anos. Tal
como outros viajantes antes dele — Voltaire, por exemplo —, ficou surpreendido
e depois seduzido. Entretanto, não perdeu o discernimento. Surpreendia-se que,
nessa nação, se pudesse criticar livremente o governo e que este subsistisse.
Comprazia-se pelo fato de não haver Bastilha. Todavia, não deixou de observar
e de notar os excessos a que pode levar a luta entre partidos. . . e entre homens.
Mas a impressão, no conjunto, foi tão favorável quanto profunda e podemos ver
a que ponto o Espírito das Leis sofreu sua influência.
Foi recebido da maneira mais lisonjeira. Tornou-se membro da Academia
Real de Londres, travou conhecimentos com Walpole, Swift, Pope. Encantava-se
com o que via e com o que os novos costumes políticos lhe permitiam descobrir.
Retomando à França, em 1731, retira-se para La Brède, organizando suas
informações e meditando sobre elas. Quase não sai durante três anos. Lê, na
Academia de Bordéus, duas memórias, uma, Sur les Intempéries de la Campagne
de Rome, e outra, Sur la Sobriété des Habitants de Rome Comparée à
1’Intempérance des Anciens Romains. Esses títulos dizem de suas preocupações
e sua atividade intelectual. O resultado foi, em 1734, as Considérations sur les
Causes de la Grandeur des Romains et leur Décadence.
Esse livro não teve a mesma repercussão das Lettres Persanes e mesmo só
obteve êxito relativo. Mas conferiu ao autor uma reputação de seriedade e fez
com que muito se esperasse da grande obra que se sabia estar sendo preparada.
Esse trabalho, ao qual nos referiremos adiante mais amplamente, apareceu em
1748.
Entretanto, Montesquieu continuava a viver em La Brède e dispensava espe­
ciais cuidados a esse domínio a que amava, melhorava, e onde cultivava vinhas,
cujo produto vendia bem. No entanto, esse provinciano estava longe de desprezar
ou negligenciar Paris, para onde viqjava amiúde, tomando contato com a socie­
INTRODUÇÃO 11

dade. Possuía admiradores e amigos. Frequentava os salões mais célebres, os da


Sra. Geojfrin, da Sra. du Tencin e da Sra. du Dejfand, e mantinha suas relações
no difícil mundo das Letras. Se Voltaire tinha-lhe pouca estima — certas glórias
dificilmente suportam outras —, dArgenson, o protetor de Voltaire, dedicava-
lhe muita afeição. Na Europa, onde já era bem conhecido, após a publicação do
Espírito das Leis, sua reputação aumentava. Foi nomeado, em 1746, membro da
Academia Real de Ciências de Berlim.
Sua vida, entretanto, decorria sem grandes tribulações e sem outros aconte­
cimentos além dos espirituais. A velhice poupava-o, com exceção de sua vista
que se enfraquecera muito. Morria em Paris, durante uma de suas viagens, após
curta doença, a 10 defevereiro de 1755, com sessenta e seis anos.
Esposara, em 1715, Jeanne de Lartigue, filha de um tenente-coronel, que lhe
dera um filho e duasfilhas.
II. — “Sempre inclinado à brandura e à humanidade, receava mudanças
das quais os maiores gênios nem sempre podem prever as consequências. Esse
espírito de moderação com o qual via as coisas na calma de seu gabinete, aplica­
va-o a tudo e conservava-o no tumulto da sociedade e no ardor das conversações.
Encontrava-se sempre o mesmo homem com todos os tons. Parecia, então, ainda
mais maravilhoso do que em suas obras: simples, profundo, sublime, encantava,
instruía e nunca ofendia. Tive a felicidade de viver nas mesmas rodas que ele. Vi,
partilhei a impaciência com que era sempre esperado, a alegria com que o viam
chegar.
“Sua figura modesta e desembaraçada assemelhava-se à sua conversa; seu
porte era bem proporcionado. Embora tivesse perdido quase inteiramente uma
vista e a outra tivesse sido sempre muito fraca, nada se percebia; sua fisionomia
reunia a doçura e a sublimidade.
“Foi muito negligente em seus hábitos e desprezou tudo o que estava além
do asseio. Só vestia os tecidos mais simples e nunca lhes acrescentava ouro e
prata. A mesma simplicidade encontrava-se em sua mesa e em todo o resto de
sua economia; apesar das despesas advindas de suas viagens, de sua vida na alta
sociedade, da debilidade de sua vista e da impressão de suas obras, não consu­
miu absolutamente a medíocre herança de seus pais e desdenhou aumentá-la,
malgrado todas as ocasiões que se lhe apresentavam num país e num século em
que tantas vias para afortuna estavam abertas ao menor mérito. ”
Assim se exprime Maupertuis no elogio fúnebre a Montesquieu, pronun­
ciado em 5 de junho de 1755, na assembléia pública da Academia Real de Ciên­
cias de Berlim2. Empenhamo-nos em citar todo o trecho porque ele nos parece,
com justeza e moderação, expressar a verdade. Qualquer que seja a opinião que
'examinarmos acerca das idéias ou da arte do autor do Espírito das Leis, não lhe
podemos recusar a homenagem devida à dignidade, à perfeita perseverança, à
bondade que uma grande reserva nas maneiras nem sempre logrou dissimular, e
aos escrúpulos extremos e muito louváveis nos exercícios da inteligência.
Considerando o conjunto desse caráter, vemos que o que aí dominou foi
essa inteligência mesma. Montesquieu viveu sobretudo pelo espírito. Foi real­
mente um homem honesto, bom pai, provavelmente bom esposo, generoso, pron­
to a se dedicar ao bem público e, de outro lado, homem de pensamento, apli­

2 Encontrá-lo-emos na edição Laboulaye, 1.1, págs. 1 a 26.


12 INTRODUÇÃO

cando sua inteligência nas diversas circunstâncias da vida: sua obra inicialmente
o solicita, o dirige e permanece sua principal preocupação.
Não que nesse jogo de inteligência ele se despoje da sensibilidade ou mesmo
de uma certa vivacidade de impressões. Ele é essencialmente bom, embora de sin­
gular pudor ou de singular prudência na sua bondade; gosta de ficar anônimo na
prática da virtude e contaram-nos que, para se subtrair ao reconhecimento, recu­
sava confessar-se autor de um benefício3* . Muito abertamente declara-se a favor
de uma justiça estreita ou contra os abusos, e vemo-lo escrever à Marquesa de •
Pompadour em favor de Piron que um poder muito circunspecto afasta da Aca­
demia. Agradável e benevolente na sociedade, por outro lado, aí se coloca em seu
lugar e não se proíbe a necessidade de uma malícia bastante picante. Tem plena1
consciência de seu valor e talvez não tenha agido de forma mais direta do que
pelos escritos por falta de ocasião. Numa época, por exemplo, desejou “ser
empregado numa corte estrangeira”. “As razões pelas quais se dá atenção a
mim ”, escreve ao Abade d’Olivet*, “devem-se ao fato de que não sou mais idiota
que os outros, de que tenho minha fortuna feita e de que trabalho pela honra e
não para viver, e porque sou sociável e bastante curioso para ser instruído em
qualquer país em que esteja. ” E, tendo o Padre Toumemine o amofinado a pro­
pósito das Lettres Persanes, vingou-se desse jesuíta ávido de popularidade, repe­
tindo na sociedade com um jeito friamente escarnecedor: “Quem é esse Padre
Toumemine? Nunca ouvifalar dele”.
Devemos dizer agora, para uma apreciação correta nesta visão moral de
Montesquieu, que foi ele um homem feliz e de um otimismo inacreditável nesta
vida cujos fundamentos tão bem discernia. Se pôde dizer, numafrase célebre, que
a leitura o consolou de toda mágoa, é porque, evidentemente, nunca conheceu
mágoas. E estas linhas espantosas de seu “diário ”o confirmam:
“Parece-me que a Natureza trabalhou para os ingratos: somos felizes e nos­
sos discursos são tais que parece que não o suspeitamos. Entretanto, encon­
tramos prazeres em toda parte; estão ligados a nosso ser e as penas não são
senão acidentes. Em toda parte, os objetos parecem preparados para nossos pra­
zeres: quando o sono nos chama, as trevas agradam-nos, e quando despertamos,
a luz do dia encanta-nos. A Natureza é enfeitada de mil cores; os sons agradam
nossos ouvidos; as iguarias têm gostos agradáveis, e, como se não bastasse a feli­
cidade da existência, cumpre ainda que nossa máquina necessite ser reparada
para nossos prazeres ”5.
Por essa euforia, comprazer-se-ia em saudar um contemporâneo de Rous-
seau. Entretanto, pelo tom da sensibilidade, como pela feição de espírito,
Montesquieu permanece na primeira parte do século. Por mais distinta, por mais
decente, pode-se dizer, que seja sua libertinagem, ela existiu, e se ele teve algumas
observações corretas sobre o amor, se tão elegantemente notou, de passagem, o
frescor de seu nascimento 6, sentimos bem que não teve história amorosa. Tam­
bém aqui, o espírito é que o conduziu.
3 Uma comprovação disso é a opinião de Brunetière, muito insuficientemente matizada mas que não se
subtrai completamente à verdade: “Ele [Montesquieu] era de uma amabilidade seca e de uma beneficência
magnânima. Até nas fórmulas de sua polidez colocava não sei que de irônico; existe algo de enigmático e
desdenhoso até em sua arte de agradar”. (Études Critiques sur 1’Histoire de la Littérature Française, 1."
série, pág. 251.)
* 10 de maio de 1728.
5 Cahiers, ed. Grasset, pág. 20.
6 Vede também Cahiers, pág. 39.
INTRODUÇÃO 13

Qual era, pois, a natureza desse espírito? Em sua estrutura — e qualquer


que tenha sido sua originalidade — ele permaneceu um homem de sua época.
Montesquieu — se alguma vez pertenceu a alguma seita, se nunca se encerrou
muito estreitamente em algum sistema — mesmo o seu — tem todas as tendên­
cias, as inclinações, as prevenções e, ousemos dizer, as insuficiências de um “filó­
sofo ”, no sentido em que esta palavra é entendida na história do século. Em polí­
tica, orientou-se pelo horror ao despotismo; em religião, pelo horror ao
fanatismo. E cumpre observar que ele deixa transparecer que, desse despotismo,
vê alguns exemplos na história ainda muito recente do último reinado, e que,
desse fanatismo, vê traços sensíveis e presentes na Igreja. Disso não tirará todas
as consequências e não desejará qualquer revolução, e, se prepara uma, quase
não teria suspeitado nem de sua extensão nem, talvez, de sua possibilidade; não
podemos dizer que tenha sido abertamente racionalista, mas evita elevar-se \
acima da razão. E, em seu combate, com moderação e decência, encontra-se com
os enciclopedistas; estes, de fato, o reconhecem, e Voltaire escreve com alegria,
satisfazendo ao mesmo tempo sua malícia e sua paixão: “Montesquieu, em rela­
ção aos sábios, esteve sempre errado, porque ele não o era; mas sempre teve
razão contra osfanáticos e os promotores da escravidão ”78.
Esta maneira de pensar não deixou de marcar sua maneira de ser; certa con­
cepção do mundo e certa concepção do homem o influenciam reciprocamente.
Afirmemo-lo claramente: Montesquieu não possui sentimento religioso e não pa­
rece supor a possibilidade da ação do sobrenatural na economia do universo,
opondo-se assim a Bossuet, do qual não se aproxima sem imprudência. Tem uma
alta concepção do homem e lhe impõe um belo destino: não lhe permite ultra­
passar o homem. Se se refere às coisas da metafísica, a Deus, à alma, à imortali­
dade, inclina-se e as considera como dados úteis, mas cuja utilidade não implica
necessariamente a existência. Sainte-Beuve, chocado com o fato, disso extraiu
um julgamento decisivo.
“Há nessas palavras ”, escreve ele depois de ter citado o texto, “a medida da
crença de Montesquieu e de seu nobre desejo; até na expressão desse desejo intro­
duz-se sempre a suposição de que, mesmo quando a coisa não existe, seria me­
lhor crer nela. Não lamento esta homenagem rendida, em todo caso, à elevação
e à idealização da natureza humana, mas não me posso impedir de observar que
isso significa tomar e aceitar as idéias de justiça e de religião antes pelo aspecto
político e social do que virtualmente e nelas próprias. Montesquieu, à medida que
se despoja da ironia das Lettres Persanes, penetrará cada vez mais nesta via
respeitosa, pelos objetos da consciência e da veneração humana; não creio que
ele tenha entrado por este caminho mais intimamente. Que resulta disso? É que,
no meio de suas partes majestosas, uma espécie de aridez penetrará. Ele tem
idéias mas não tem, já se observou, sentimentos políticos. Falta uma espécie de
vida, um liame, e sentimos mais um cérebro poderoso do que um coração. Res­
salto, se não o lado débil de um grande homem, pelo menos o lado frio ”B.
III. — São justamente estes os limites de Montesquieu. Talvez fosse
conveniente acentuá-los de modo menos sensível; talvez os escrúpulos do pensa­
dor e do artista tenham levado o homem a ocultar parcialmente sua generosidade
7 Dictionnaire Philosophique, Lois (Esprit des).
8 Les Grands Écrtvams Français, por Sainte-Beuve (ed. Àllem, séc. XVIII. “Phiiosophes et Savants”, tomo
I, págs. 39-40).
14 INTRODUÇÃO

ou sua profundeza. Montesquieu dirige-se a seu objeto que é uma demonstração.


Pretende-se experimental e permanece sobretudo dogmático. Parte de princípios
e, embora eu não (firme que estes princípios sejam seus humores, deles muitas
vezes se ressentem, como é o caso de seu duplo ódio contra o despotismo e o
fanatismo, que desempenha um importante papel. Cita vários exemplos mas nem
sempre parte deles, frequentemente os arruma. É preciso que o clima disponha as
coisas de uma certa maneira — e eis que elas assim se encontram dispostas. A
natureza pôde querê-lo, e pode ocorrer também que a inteligência aí descubra
mais do que ela colocou e pague, de um lado, sua engenhosidade. Daí a impres­
são que nos fica — principalmente da leitura do Espírito das Leis — de uma
filosofia política amiúde polêmica, mais do que de uma verdadeira filosofia da
história. Mas levado assim por seu temperamento, sua paixão, sua paixão de
espírito, Montesquieu não deixa de dominar sua matéria, atendo-se apenas a seus
objetivos, mantendo-se dentro dos limites da tradição clássica, não pondo seu
pensamento a serviço de interesses ou de ódios. Nós o aproximamos dos enciclo­
pedistas, mas cuidaremos de não o confundir com estes; ele adotaria, segundo
sua necessidade, algumas de suas conclusões. Não há nisso máfé. Partidos pode­
rão reclamar tê-lo consigo, sem que ele possa alguma vez ser acusado de partidá­
rio. O que ele procura, tanto quanto é capaz, sem prevenção e sem medo das
consequências, é a verdade; exerce sua inteligência com a única preocupação de
satisfazê-la. Apenas isso o colocaria muito alto.
Censuram-se-lhe os erros de documentação mas permaneceremos indul­
gentes se considerarmos que a lenda, por vezes, ilustra melhor a verdade do que
a História a ilustraria e que um mau exemplo pode provar algo tão bem quanto
um bom exemplo. Soube Montesquieu esboçar, do mundo ou das partes do
mundo que examinou, uma construção engenhosa e soube deslindar, com uma
ciência muito perspicaz, as molas da política. Estas análises que, no século ante­
rior, haviam sido bem desenvolvidas, a fim de descrever a vida moral, ele as apli­
ca às coisas da sociedade, às leis, aos acontecimentos da História e nisso reside
seu papel específico e sua novidade.
Foi dito e rédito — com razão — que a frase clássica, harmoniosa e em
períodos dividiu-se na época seguinte, e que a escrita viva e aguda substituiu a
eloquência grave. Algo de análogo ocorreu no que diz respeito ao conteúdo e ao
pensamento. Renunciou-se às grandes considerações e às máximas universais
para examinar a minúcia e o puro jogo das forças naturais. Na História, por
exemplo, acompanharam-se mais pormenorizadamente os acontecimentos e real­
çaram-se os traços da malícia humana mais do que a Providência Divina. Se isso
não foi completamente benéfico, não deixou de ter sua utilidade. Também aqui
podemos ver em Montesquieu um homem e um grande homem de sua época. Se
sua frase cortada e cortante não possui o brilho maravilhoso da de Voltaire, per­
manece ela suficientemente fina, sóbria, penetrante, incisiva e perfeitamente ade­
quada à espécie de dialética em que ele a emprega; sua meditação igualmente
segue o ritmo dos novos movimentos. Montesquieu não mais examina nos desti­
nos do homem os desígnios de Deus; o homem, ele só o procura em si mesmo,
em sua natureza, em seus apetites, em seu gênio. Porém, a essa tarefa mais come­
dida, acrescenta uma grande perspicácia e abre o caminho — ou pelo menos
perspectivas novas — aos brilhantes pugilos de historiadores ou de filósofos que
mais tarde o seguiríam.
INTRODUÇÃO 15

IV. — Montesquieu foi devidamente apreciado por seus contemporâneos;


sua glória cresceu com ele e desenvolveu-se na medida em que se desenvolviam
as consequências de sua doutrina. Nada mais natural que a Revolução a adotas­
se, e ela o fez com essa espécie de estrépito que insere em todas as coisas. Marat,
coisa que o teria envaidecido pouco, concorreu para seu louvor. Um decreto,
aliás sem efeito, concedeu-lhe o Panteon. Um funcionário das duanas compôs
um poema de vinte e seis cantos para o celebrar e os livreiros regozijavam-se
com as reedições anuais de suas obras. Os legisladores das novas legislações
aplicavam seus princípios e, se Montesquieu deveria sofrer um eclipse esperado
durante o Império, readquiriu seu lugar nos debates parlamentares da Restaura­
ção. Sabemos o que a Constituição republicana francesa lhe deve com seus três
poderes e suas ilusórias separações dos poderes.
Pensador, político, para nós ele permanece sobretudo um literato. Vimos já
a apreciação justa que dele fazia Sainte-Beuve. Taine, retomando-o nesse terreno
da arte, assim escreve:
“Pelo tom e pelas maneiras, Montesquieu é soberano. Não há escritor que
seja mais senhor de si, mais calmo exteriormente, mais seguro de sua palavra.
Nunca sua voz é tumultuosa; diz comensuradamente as coisas mais fortes. Nada
de gestos; exclamações, arrebatamentos de estro, tudo o que seria contrário ao
decoro repugna a seu tato, à sua reserva, a seu orgulho. Parece que ele fala sem­
pre diante de um pequeno círculo escolhido de pessoas muito finas e de maneira
a lhe dar, em cada momento, ocasião de sentir a sua fineza. Nenhuma lisonja
mais delicada; sentimo-nos gratos por nos tomar contentes de nosso espírito. E
é necessário possuí-lo para o ler, pois, propositadamente, ele abrevia os desenvol­
vimentos, omite as transições; cabe a nós suplementá-los, entender seus suben­
tendidos. Nele, a ordem é rigorosa, mas está oculta e suas frases descontínuas des­
filam, separadamente, como caixas ou cofres, ora simples e sem ornamentos, ora
magntficamente decoradas e cinzeladas, mas sempre cheias. Abra-as: em cada
uma há um tesouro ”9.
Há efetivamente, nesse trecho um pouco carregado, o que Montesquieu
também nos faz sentir. Confessemo-lo, ele é lido talvez um pouco menos — e
sem razão — em suas partes sérias, e demoramo-nos mais nas Lettres Persanes
do que no Espírito das Leis. Mas conserva seu prestígio e seu êxito. De fato,
vemos isso atualmente quando o Sr. Bemard Grasset publicou uma engenhosa
seleção de seus Cahiers onde o filósofo de Brède anotava seus pensamentos, seus
projetos ou já preparava seu texto. E, efetivamente, revelava-se aí, num primeiro
impulso e na exteriorização imediata do pensamento, uma espontaneidade parti­
cular. E com essa recrudescência de popularidade o público lucrou tanto quanto
a memória do próprio escritor.
Os descendentes de Montesquieu haviam entregue, tardia e muito discreta­
mente, para uma tiragem limitada, em 1889, uma edição desses Cahiers. E a
obra de seu ilustre antepassado é aumentada em edições sucessivas, cuja mais
completa era a de Laboulaye, publicada de 1875 a 1879, e com as Mélanges do
Barão de Montesquieu, aparecidas em 1892, em diversas partes. Foi assim que se
tornaram conhecidas, em 1783, a “história oriental” Arsace et Isménie, com­
posta desde 1754, e, em 1757, o Essai sur le Goüt dans les Choses de la Nature

Origines de la France Contemporaine, 1.1.


16 INTRODUÇÃO

et de l’Art. E muitas coisas obscuramente contidas nessas Mélanges — como, •


por exemplo, uma curiosíssima Histoire Véritable — mereceríam ser mais bem
conhecidas. Esperamos poder apresentá-las a um público mais amplo.

Do Espírito das Leis


I. Sua composição. — II. Seu conteúdo. — III. Sua publicação.
IV. Seu alcance.

I. — Apenas escrevemos um livro em nossa vida ou reescrevemos várias


vezes o mesmo livro. O de Montesquieu foi o Espírito das Leis, no qual pensava
desde sua juventude, para o qual recolhia elementos durante sua carreira de estu­
dioso, o qual confrontava antecipadamente, em suas viagens, com a realidade.
Nesse livro Montesquieu expressa todo o seu pensamento, se é que seu pensa­
mento tinha aflorado em mais de um ponto em suas obras anteriores. Magis­
trado, enfim, e filósofo, fora levado por sua função e por sua fineza de espírito a
elevar este monumento à legislação e a mostrar, em a explicando, de que maneira
se poderia pensar em aperfeiçoá-la.
“O Espírito das Leis”, escreve Vian' °, foi vislumbrado nos bancos da es­
cola de direito de Bordéus, esboçado nas Lettres fecundado nas viagens
de seu autor, e paralisado na época da Grandeur des Romains. Entretanto, supo­
nho que Montesquieu, para a composição de sua grande obra, muito aproveitou
de suas relações. ” Compreendamos que ele se documenta em tudo que pode; não
podemos duvidar disso que já transparece em suas notas. Utilizou tanto as fontes
' orais como as escritas, sem as controlar sempre com rigor, e delas retirando
complacentemente o que o podia melhor servir. É assim que, entre muitos outros,
consultou o erudito Barbot, um de seus antigos condiscípulos, presidente da
Cour des Aides10 11 de Bordéus, e utilizou as pesquisas efetuadas pelo seu secre­
tário dArcet.
Sabemos o momento em que essa longa preparação terminou. Em l.° de
agosto de 1744, Montesquieu escreve de Bordéus ao Padre- Guasco: “. . . Consul-
tar-vos-ei sobretudo a respeito de minha grande obra que progride a passos de
gigante desde que não mais sou distraído pelos jantares e ceias de Paris”. De
fato, por essa época, ele se retirara para Brède para trabalhar continuadamente.
Em 12 de fevereiro de 1745, efetuava uma leitura de conjunto para seu filho e
para o padre, em casa do presidente Barbot. Em 1747, podia pensar na impres­
são, fazendo a última revisão nos derradeiros capítulos, com um ardor que o
esgotava.
“Várias vezes comecei e várias vezes abandonei esta obra”, escreve ele em
seu prefácio, “mil vezes abandonei ao vento as folhas que escrevera; sentia todos

10 Obra citada na nota bibliográfica.


11 No regime feudal francês, as aides (do latim, auxilium) constituíam prestações pecuniárias que os vassa­
los deveríam pagar ao soberano em casos excepcionais (quando este partia para cruzada, quando casava seu
filho ou filha primogênita etc.). Em meados do século XIV as aides passaram a ser arrecadadas regular­
mente em favor da monarquia. As Cours des Aides, instituídas no começo do século XV, eram tribunais que
deveríam julgar a respeito de todas as “ajudas” e também das gabelas, talhas etc. (N. do T.)
INTRODUÇÃO 17

os dias as mãos paternais tombarem; seguia meu objetivo sem formar desíg­
nio . . . ” Devemos ver aqui os tateamentos, as perturbações e as dúvidas da ges­
tação, e também um certo método de trabalho que possui seus inconvenientes:
propositadamente Montesquieu procede por partes separadas. Desde 1736
dArgenson tivera, assim, conhecimento de uma parte da obra. Talvez isso expli­
que melhor, então, certa incerteza no plano, essa acumulação fatigante dos capí­
tulos, reduzidos, por vezes, a algumas linhas, o que dispersa um pouco a atenção.
Mas o procedimento não é apenas um procedimento; ele tem sua razão pro­
funda e relaciona-se com a própria constituição da inteligência que dele faz uso.
Montesquieu ainda no-lo ensina. “Porém, quando descobri meus princípios”,
escreve ele ainda na mesma passagem, “tudo quanto procurava a mim me veio e,
no curso de vinte anos, vi minha obra começar, crescer, progredir e termi­
nar. . . ” Veremos o que são esses “princípios”, o que eles valem e aonde condu­
zem na concepção; esperando, veremos o que eles fazem e qual o seu papel na
execução; representam eles algumas opiniões gerais do espírito em torno das
quais as observações, as noções e os conhecimentos ordenam-se à medida que
este espírito progride na diversidade das coisas. E é assim que aparece todo um
sistema claro e múltiplo de deduções onde os fatos particulares vêm confirmar as
idéias gerais e onde as idéias gerais dão uma coerência por vezes muito rigorosa
aos fatos particulares. E tal é a armadura — de onde o Espírito das Leis extrai
uma força e um aspecto de regularidade — que algo de arbitrário quase não
pode deixar de passar.
II. — Os dez primeiros livros do Espírito das Leis, depois de terem defi­
nido a natureza das leis próprias ao homem, as consideram em relação à forma
do governo; sabe-se que Montesquieu distinguiu três formas de governo: a tira­
nia, a monarquia e a democracia, com seus fundamentos, respectivamente, no
medo, na honra e na virtude, com a condição de serem estas palavras entendidas
num sentido político, sendo a “virtude ”, a virtude cívica. A partir do livro VIII
considera Montesquieu a corrupção dos princípios dos três governos e a maneira
pela qual esses governos se conservam. Os livros XI, XII e XIII examinam as
condições da liberdade política e o capítulo VI do livro XI é a exposição apolo-
gética da Constituição inglesa; do livro XIV ao XX temos a famosa teoria do
“clima ” e suas consequências. Os livros XX a XXIII relacionam-se às circuns­
tâncias ou aos efeitos mais exteriores da indústria, do comércio e da demografia;
os livros XXVI e XXIX são uma conclusão geral; encontram-se ligados aos li­
vros XXVII e XXVIII, sobre as revoluções das leis em Roma e em França; os
livros XXX e XXXI — teorias das leis feudais — constituem tratados especiais
em forma de apêndice. E esses quatro livros, na afirmação do autor, são efetiva­
mente adições. Eles dão a esse fim uma aparência de desordem que prejudicou o
plano de Montesquieu, mas quando se considera o conjunto da obra vê-se que, se
ela está excessivamente parcelada, não deixa de se delinear em linhas assaz
nítidas.
Por que meios e com que intenção é tratada esta vasta matéria? É aqui que
retomamos a esses “princípios ” que esclareceram o caminho do autor desde que
ele os concebeu, e basta também tomar emprestado suas próprias palavras. Veja­
mos o capítulo III do primeiro livro. “A lei, em geral, dizemos, é a razão huma­
na, na medida em que governa todos os povos da terra, e as leis políticas e oivis
de cada nação devem ser apenas os casos particulares em que se aplica essa
18 INTRODUÇÃO

razão humana. ” Elas serão, portanto, relativas à geografia, à geologia do país, a


seu clima, à raça, aos costumes, às crenças, às “inclinações ”, aos recursos dos
habitantes. Elas possuem, enfim, relações entre si e quanto a sua origem e seu
destino. “É preciso considerá-las em todos esses aspectos”, acrescenta o escri­
tor. ” “É isso que pretendo realizar nesta obra. Examinarei todas essas relações;
formam elas, no seu conjunto, o que chamamos de Espírito das Leis. ”
É o que denominaríamos uma filosofia da jurisprudência. Trata-se, com
efeito, de examinar a disposição doméstica, política, social, que reclama a natu­
reza das coisas, de ver se a realidade está conforme a essa disposição e justificar
sua necessidade pelo êxito ou pelo malogro. Eis por que a exposição teórica se
duplica e se apóia num conteúdo histórico tão extenso quanto possível e numa
pesquisa de legislação comparada. Há, pois, no Espírito das Leis um quadro
ideológico e um conteúdo documentário. Um e outro podem ter envelhecido ou
podem parecer, o primeiro muito sistemático e o outro insuficientemente crítico.
A novidade consistia em procurar o laço que os unia e em indagar suas razões
em códigos arbitrários ou contraditórios, para descobrir como um código ideal
podería concordar com a razão.
III. — Depois de ter hesitado entre Basiléia, Soleure e Genebra, Montes­
quieu decidiu-se a escolher esta última cidade para a publicação de sua obra.
Confiou os cuidados de revisão das provas ao ministro Jacob Vernet que as exa­
minou escrupulosamente, apresentando suas objeções ou reservas. Assim é que
achou deslocada a “Invocação às Musas ”, colocada à frente do XX livro, obten­
do de seu amigo a supressão. Ele o encorajou, por outro lado, a manter um capí­
tulo sobre as ordens régias que Montesquieu não desejava, e nisso não obteve
ganho de causa. Enfim, Montesquieu não temia tomar-se de responsabilidade,
durante a impressão, das correções de pormenores sobre as quais foi necessário
retomar nas edições ulteriores. No último momento, acrescentou os dois livros
de adições, aos quais já nos referimos. O livro apareceu em novembro de 1748
em dois in-4.° sob o seguinte título: Do espírito das leis ou das relações que as
leis devem ter com a constituição de cada governo, com os costumes, o clima, a
religião, o comércio etc. Ao que o autor acrescentou pesquisas novas sobre as
leis romanas referentes às sucessões, sobre as leis francesas e sobre as leis
feudais.
Quanto ao êxito da obra, Montesquieu permaneceu cético. “Se me épermi­
tido predizer a fortuna de meu trabalho”, escrevia então em seus Cahiers, “ele
será mais aprovado do que lido: semelhantes leituras podem ser um prazer mas
nunca serão um divertimento. ”Era bem sutil, mas se enganava: foi mais lido do
que aprovado, ou pelo menos uma aprovação retumbante encontrava contradi­
ções. Vinha a Genebra onde era necessário quase imediatamente reimprimir.
Houve vinte e duas edições em menos de dois anos e traduções em quase todos
os países. A obra não era tampouco menosprezada pelos conhecedores, apesar
de seus amigos lamentarem que eles não a tivessem acolhido com a reverência
que a gravidade do assunto comportava e que gracejassem a respeito dela. E é
verdade que a frase da Sra. du Dejfand dizendo que o Espírito das Leis era “o
espírito sobre as leis ” era sobretudo dito espirituoso. Mas Voltaire, suscitando
reservas muito interessadas, colocava a coroa sobre a cabeça do triunfador. “O
gênero humano”, proclamava ele, “perdera seus títulos: Montesquieu Ihos
restituiu. ”
INTRODUÇÃO 19

Houve, pois, em torno desse acontecimento literário o tipo de repercussão


que deveria ser esperado, tagarelices, falatórios, palavreados. Um magistrado
ridículo deplorava que o livro fosse chão e que ele próprio tivesse sido plagiado.
Uma oposição mais perigosa surgiu por outro lado. Montesquieu tivera que tocar
na religião e em certas ordens religiosas; não nos devemos espantar que tivesse
resposta. Os jesuítas foram decentes e as Mémoires de Trévoux, em 1749, pela
pena do Padre Berthier, exprimiam-se em termos moderados; criticou-se princi­
palmente ao filósofo ter reduzido demasiadamente o homem a si mesmo e tê-lo
privado dos auxílios de Deus. Os jansenistasforam mais violentos. O Padre de la
Roche, em Nouvelles Ecclésiastiques, de 9 e 16 de outubro, acusou Montesquieu
de impiedade, de ateísmo e de espinozismo, denunciou sua obra como escanda­
losa e pretendeu ver nela o fruto da Constituição Unigenitus. Outros foram mais
longe na invectiva e um Padre Bonnaire, em 1751, no Esprit des Lois Quintes-
sencié par une Suite de Lettres Analytiques, tratava Montesquieu de “homem de
quimeras que brinca com a razão, com os costumes e com a religião, de político
que desarrazoa, de retórico sofista, de pensador volúvel, de Dom Quixote e de
Cupido...” Vian lembra que, por volta do mesmo período, outro jansenista, o
Padre Gautier, em suas Lettres Persanes Convaincues dTmpiété, simplesmente
chamava Montesquieu de “porco ”e de “alma lodosa. . . ”
Mais didático, o Padre Delaporte, 1750, publicava uma coletânea de artigos
sob o título: Observations sur 1’Esprit des Lois ou l’Art de Lire ce Livre, de
1’Entendre et d’en Juger. O Padre Castel, no Homme Moral (1756), acusava
Montesquieu de ser anglicano. O contratador-geral Claude Dupin, genro de Sa­
muel Bernard, apresentava as Réflexions sur Quelques Parties d’un Livre Intitu­
le: De 1’Esprit des Lois, cuja oportunidade se explica quando se pensa na livre
maneira em que asforças do dinheiro são consideradas no Espírito das Leis.
Finalmente as autoridades foram despertadas. Mas foram benignas. Uma
censura de Roma, muito discreta, em 1752, passou discretamente; a Sorbonne,
após o inquérito, não parece ter-se pronunciado.
Montesquieu, pelos conselhos insistentes do Padre Guasco, decidiu-se a res­
ponder às objeções mais graves que lhe eram dirigidas, isto é, as que diziam res­
peito à religião, e publicou, também em Genebra, em 1750, uma Défense de
1’Esprit des Lois anônima. Era uma resposta demasiado longa, pormenorizada,
em que ele procede principalmente opondo seus próprios textos a seus acusado­
res. Procura desfazer-se inicialmente das grosseiras críticas de ateísmo ou de
espinozismo que lhe acumularam. E delineia nitidamente sua atitude a respeito
de umafé que reivindica. “São passagens formais ", escreve ele, depois de ter cita­
do a si próprio, “onde vemos um escritor que não somente crê na religião cristã
mas a ama. ” Uma declaração tão manifesta deve ser conservada. Se nos atemos
simplesmente ao tom, eis aqui algumas linhas onde encontramos o melhor da
veia e do espírito do escritor. Trata-se de Bayle, do qual o acusaram de louvá-lo
muito.
“É verdade que o autor chamou Bayle de grande homem; mas censurou
suas opiniões; se as censurou, é porque não as aceita. E, uma vez que as comba­
teu, não o chama de grande homem por causa de suas opiniões. Todos sabem que
Bayle tinha um grande espírito, do qual abusou; mas esse espírito, do qual abu­
sou, ele o possuía. O autor combateu seus sojismas e lamenta seu desregramento.
Não aprecio as pessoas que derrubam as leis de sua pátria; mas dificilmente
20 INTRODUÇÃO

acreditaria que César e Cromwell fossem espíritos medíocres; não aprecio os


conquistadores, mas dificilmente poderia persuadir-me que Alexandre e Gêngis-
Cã tenham sido gênios comuns. Não teria sido necessário muito espírito ao autor
para dizer que Bayle era um homem abominável, mas ele parece não gostar de
injuriar, seja porque tem esta disposição por natureza, seja porque a recebeu pela
educação. ”
Montesquieu dividira sua “defesa ” em três partes. “Na primeira ”, escreve,
“respondeu-se às críticas gerais endereçadas ao autor de L’Esprit des Lois. Na
segunda, respondeu-se às críticas particulares. A última contém reflexões sobre
a maneira pela qual o criticaram. . . ” Apresentamos, como apêndice, esta última
parte que, ultrapassando as particularidades do assunto, permite completar
nosso conhecimento da doutrina, do método e do próprio espírito do escritor.
Os adversários, mesmo após a condenação pelo índex, em 1752, retoma­
vam à carga. Tomavam como pretexto uma Suite de la Défense de 1’Esprit des
Lois, surgida em Berlim em 1751, atribuída a Montesquieu e obra do plagiador
La Baumelle, que não tratava menos engenhosamente o Presidente do que o teria
feito a Sra. de Maintenon, da qual falsificara a correspondência, e alguns outros.
Surgiu também, em resposta às Observations do Padre Delaporte, que já assina­
lamos, uma Apologie de 1’Esprit des Lois, de Boulanger de Rivery, e uma Ré-
ponse aux Observations sur 1’Esprit des Lois, de Risteau, negociante em Bordéus,
de menor valor. La Baumelle, desta feita mais abertamente, publicava, em 1752,
cinco cartas apologéticas sobre o Espírito das Leis, que são também uma apolo­
gia da monarquia, tal como existia na Dinamarca onde ele então vivia. E teremos
que redizer algumas palavras do comentário de Voltaire que utilizava o livro
refundido, e consideravelmente aumentado, do contratador-geral Dupin.
IV. — Logo que apareceu, e apesar de todo este movimento, o Espírito das
Leis entrou para o nosso patrimônio de obras-primas. Foi discutido, mas teve
prestígio. Foi posto em prática, ou, mais ou menos diretamente, ins­
pirou diversas legislações que sucederam sua publicação. Alguns de seus princí­
pios, ou os princípios dele derivados — a classificação dos regimes, por exem­
plo, e suas características, e distinção dos poderes —, tornaram-se clássicos. As
discussões, ou as reticências, quando prosseguiram ou reapareceram, adquiriram
maior amplitude ou revestiram-se de maior serenidade.
Elas eram ainda vivas logo após a morte de Montesquieu, com Crévier, pro­
fessor de retórica no colégio de Beauvais que, em 1764, nas Observations sur le
Livre de 1’Esprit des Lois, retomava a argumentação, senão o tom, das Nouvelles
Ecclésiastiques, com o protestante Elie Luzac que, no mesmo ano, anotava uma
edição da obra. Voltaire era mais amável mas, levado por seu gênio ou por seu
humor, parecia na verdade não ter compreendido a obra. Julgado por ele quando
vivo, Montesquieu o havia, por sua vez, julgado. “Quanto a Voltaire ”, escrevia
ao Padre Guasco, em 1752, “ele é muito espirituoso para me compreender.
Todos os livros que lê, ele os constrói, depois do que aprova ou critica o que
constrói. . . ” Efetivamente, após o magnífico elogio relatado mais acima, Vol­
taire declara em seu artigo Lois (Esprit des) do Dictionnaire Philosophique^ “Já
se disse que a letra matava e que o espírito vivificava, mas no livro de Montes­
quieu o espírito confunde e a letra nada ensina ”. E, ocupando-se do pormenor,
esmiuça com tão pouca piedade quanto possível. Retomou ao assunto em seus
INTRODUÇÃO 21

Dialogues de l’A.B.C. e, depois, num Commentsãre, publicado em 1778, e em


seguida, cansado ou distraído, abandonou a presa.
Não passaremos em revista todos os julgamentos da posteridade. Retere­
mos apenas o do melhor juiz e, aqui como em outras questões, um soberano ree-
xame. Sainte-Beuve, depois de ter salientado certos excessos da documentação
ou do parcelamento, concepção do quadro muito ampla para não permanecer um
pouco ambiciosa, depois de ter dito que, nesse quadro, uma parte suficiente tal­
vez não tenha sido concedida à malícia humana e que as opiniões políticas profe­
ridas aí eram apresentadas de maneira muito vantajosa, acrescenta:
“Tomemos o Espírito das Leis pelo que é, por uma obra de pensamento e
civilização. O que há de belo em Montesquieu é o homem atrás do livro. Não
cumpre pedir a esse livro mais método, mais consequências, mais precisão e mais
certeza no pormenor, mais sobriedade na erudição e imaginação, mais conselhos
práticos do que existe realmente; faz-se mister ver em sua obra o caráter de
moderação, de patriotismo e de humanidade que o autor inseriu em todas as
belas partes, e que revestiu de muitas palavras magnânimas. Há muitas dessas
palavras que, transportadas alhures, ilustram a matéria. É justamente nesse senti­
do que ele tem razão de referir-se à majestade de seu assunto e acrescentar: ‘Não
creio que o gênio me tenha faltado totalmente’. Em todas essas belas passagens,
tão frequentemente citadas, sentimos o homem que deseja a verdadeira liberdade,
a verdadeira virtude do cidadão, todas as coisas das quais ele em parte alguma
via a imagem perfeita entre os modernos e das quais acabava de formar a idéia
no estudo de gabinete e diante de bustos dos antigos ”12.
Consideramos, todavia, que é necessário conceder um pouco mais ao Espí­
rito das Leis. Trata-se de uma “filosofia ” das leis, ou seja — e é precisamente
esta a intenção do autor —, uma “explicação “das leis consideradas em seu prin­
cípio e em sua origem. Semelhantes empreendimentos conservam sua utilidade,
mas têm também um inconveniente no qual quase sempre incidem. Eles esclare­
cem mas algumas vezes falseiam. Orientado por seu sistema, o filósofo quer inte­
grar nele todas as coisas e, se elas resistem, não teme forçá-las. .. e falseá-las. É
assim que se estabelecem tantas conveniências notáveis, tantas relações espera­
das, e assim que tudo se justifica perfeitamente e que se chega a esta teleologia,
a esse finalismo de Bernardin de Saint-Pierre que diz que os melões têm fatias
para que possam ser cortados mais facilmente e comidos em família. Montes­
quieu não chega a isso. Porém, mais de uma vez, acontece-lhe, levado por suas
deduções, tomar esse ou aquele regime político responsável por excessos que
ocorrem sob todos os regimes por uma disposição natural do homem, ou atribuir
a determinados climas fenômenos morais ou sociais que são encontrados em
todas as latitudes.
Salientamos também a parte dafilosofia da época que entra em suafilosofia
e também os abusos a que ela o leva, ou a insuficiência em que ela o deixa. Seus
contraditores eclesiásticos criticavam-lhe não se ter dado conta de certos dados
da religião e ele defendia-se respondendo que não fora sua intenção escrever um
tratado de teologia. Mas a teologia leva a verdades ou a perspectivas das quais
não nos privamos sem prejuízo; penetra o fundo pecaminoso da natureza huma­

12 Les Grands Écrivains Français, de Sainte-Beuve (ed. Aliem, séc. XVIII. “Philosophes et Savants”, tomo
I, pág. 65).
22 INTRODUÇÃO

na e postula que ela não é tudo e que outra natureza pode agir sobre ela. Montes­
quieu não quer levar em conta nem o pecado original, nem qualquer transcen­
dência, nem mesmo o mistério que envolve nossa natureza e nosso destino.
Também racionalista e historiador, devia e deve aceitar os limites assaz estreitos
desta condição intelectual.
Só consegue safar-se por seu gênio próprio, e quando este gênio se exerce
sobre as coisas em sua medida. Se é filósofo, é também moralista e, desde que o
moralista deve bastar à tarefa, ele mostra-se de uma saborosa penetração. Deixe-
mo-lo errar sobre o clima, dizer que o frio favorece a indústria ou a coragem e o
calor favorece a indolência, e esquecer, como lhe censura Voltaire, que os árabes,
que não vinham, entretanto, do setentrião, “conquistaram em oitenta anos mais
países que o Império Romano possuía”. Admiremos antes que, depois de terfixa­
do à democracia condições tais que toda democracia surge quase como impossí­
vel, ele aparente não perceber isso; salientemos numerosas observações sagazes
sobre os costumes; saboreemos, por exemplo, no capítulo III do livro XXIX,
esta mordaz interpretação da lei de Sólon que obrigava à tomada de posição nas
querelas públicas: “Nas sedições que ocorriam nestes pequenos Estados, o gros­
so da cidade participava da querela ou a fazia. Nas nossas grandes monarquias,
os partidos são formados por poucas pessoas e o povo desejaria viver na inação.
Neste caso, é natural atrair os sediciosos ao grosso da população e não o grosso
dos cidadãos aos sediciosos; no outro, cumprefazer entrar o pequeno número de
pessoas prudentes e tranquilas entre os sediciosos: é assim que a fermentação de
um licor pode ser paralisada por apenas uma gota de outro ”.
Em semelhantes trechos encontramos Montesquieu. No restante, sua obra
conserva um valor de fundo como de circunstância. Pretendeu-se que ele teve
predecessores através da história e remontou-se até Buda e Confúcio, passando
por Jean Bodin, Hotman, Thomas More, Pufendorf, Maquiavel, Cícero, Platão.
Esta impressionante série não impede sua originalidade. Efetivamente, ele fez, à
sua maneira, uma coisa única e decisiva: separou a legislação do arbitrário do
capricho dos homens, do acaso das circunstâncias, e a relacionou, tanto pela
moral como pela psicologia e pela história, ao tronco comum da natureza huma­
na. Pode ser incompleto, inexato, tendencioso: em sua concepção como em sua
execução, o Espírito das Leis não deixa de permanecer um monumento da arte e
do pensamento.

Gonzague Truc
DO ESPÍRITO
DAS LEIS

As primeiras edições trazem este título, que é uma espécie de título-programa: Do espírito das leis ou das
relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo, com os costumes, o clima, a religião,
o comércio etc. Ao que o autor acrescentou pesquisas novas sobre as leis romanas referentes às suces­
sões, sobre as leisfrancesas e sobre as leis feudais.
Prefácio

Se, no número infinito de coisas contidas neste livro, houver uma que,
contra minha vontade, possa ofender, não há, pelo menos, uma só que tenha
sido escrita com má intenção. Não tenho naturalmente o espírito desaprova-
dor. Platão agradecia ao céu por ter nascido no tempo de Sócrates; e eu rendo-
lhe graças por me ter feito nascer no Governo em que vivo e por ter querido
que eu obedecesse aos que mefez amar.
Peço uma graça que receio não me seja concedida: de não julgar, pela lei­
tura de um momento, um trabalho de vinte anos, de aprovar ou condenar o
livro inteiro e não algumas frases. Se se quiser descobrir a intenção do autor,
só a poderemos descobrir na intenção da obra.
Examinei, de início, os homens e julguei que, nesta infinita diversidade de
leis e costumes, não eram eles orientados unicamente por seus caprichos.
Coloquei princípios e vi os casos particulares submeterem-se a eles como
por si mesmos, as histórias de todas as nações serem apenas sequências e cada
lei particular ligada a outra lei, ou depender de outra mais geral.
Quando remontei à Antiguidade, esforcei-me por captar seu espírito a fim
de não tomar, como semelhantes, casos realmente diferentes e não omitir as
diferenças dos que se mostrassem semelhantes.
Não extraí meus princípios de meus preconceitos mas da natureza das
coisas.
Aqui, muitas verdades só se farão sentir depois que se tenha visto a cadeia
que as liga a outras. Quanto mais refletirmos sobre os pormenores, mais senti­
remos a validade dos princípios. Esses próprios pormenores, não os apresentei
todos, pois quem poderia apresentá-los todos sem um tédio mortal?
Não encontraremos aqui os traços marcantes que parecem caracterizar as
obras atuais. Por pouco que se observem as coisas de uma perspectiva mais
ampla, esses traços marcantes desaparecem; geralmente, eles apenas surgem
porque os espíritos voltam-se só para um lado, abandonando todos os demais2.
Não escrevo para censurar o que está estabelecido em qualquer país.
Cada nação encontrará nesta obra as razões de suas máximas; e extrair-se-á
naturalmente esta conclusão: que só cumpre propor mudanças aos que são
assaz afortunadamente nascidos para apreender, num rasgo de gênio, toda a
constituição de um Estado.
Não é indiferente que o povo seja esclarecido. Os preconceitos dos magis­
trados começaram por ser os da nação. Numa época de ignorância, não temos
qualquer dúvida, mesmo quando se cometem os piores males; numa época de

2 Aproximou-se justamente essa passagem às opiniões expressas por Buffon num Discours sur le Style.
28 PREFACIO

luzes, trememos ainda quando são perpetrados os maiores bens. Sentimos os


antigos abusos, vemos a sua correção, porém vemos também os abusos da pró­
pria correção. Deixamos o mal, se tememos o pior; deixamos o bem, se duvida­
mos do melhor. Só olhamos as partes para julgar o todo reunido; examinamos
todas as causas para ver todos os resultados.
Se pudesse fazer com que todos tivessem novas razões para apreciar seus
deveres, seu príncipe, sua pátria, suas leis; que pudessem melhor sentir suafeli­
cidade em cada país, em cada governo, em cada posto em que nos encontra­
mos, acreditar-me-ia o mais feliz dos mortais.
Se pudesse fazer çom que os que comandam aumentassem seu conheci­
mento sobre o que devem prescrever e os que obedecem encontrassem um novo
prazer em obedecer, acreditar-me-ia o mais feliz dos mortais.
Acreditar-me-ia o mais feliz dos mortais se pudesse fazer com que os ho­
mens se pudessem curar de seus preconceitos. Entendo por preconceito, não o
que faz com que ignoremos certas coisas mas o que faz com que ignoremos a
nós próprios.
Procurando instruir os homens é que poderemos praticar esta virtude
geral que compreende o amor de todos. O homem, este ser flexível, dobrando-
se na sociedade aos pensamentos e impressões de outrem, é igualmente capaz
de conhecer sua natureza própria, quando lha mostram, e de perder até o senti­
mento, qUando Iho roubam.
Várias vezes comecei e várias vezes abandonei esta obra; mil vezes aban­
donei ao vento as folhas que escrevera3*; sentia todos os dias as mãos paternais
tombarem*; seguia meu objetivo sem formar desígnio; não conhecia regras
nem exceções; só encontrava a verdade para tomar a perdê-la; porém, quando
descobri meus princípios, tudo quanto procurava a mim me veio e, no curso de
vinte anos, vi minha obra começar, crescer, progredir e terminar.
Se este trabalho obtiver êxito, muito deverei à grandiosidade do assunto;
entretanto, não creio que o gênio me tenha faltado. Quando vi o que tantos
grandes homens, na França, na Inglaterra e na Alemanha, escreveram antes de
mim, fiquei admirado mas não perdi a coragem. “E eu também sou pintor”,
disse, com Corrégiô 5.

3 Ludibria ventis. (N. do A.)


* Bis patriae cecidere manus. (N. do A.)
8 Ed io anche son pittore. (N. do A.)*
* Atribuem-se essas palavras a Corrégio, descobrindo sua vocação diante de um quadro de Rafael.
Advertência do Autor1

Para compreensão dos quatro primeiros livros desta obra, é preciso obser­
var que o que chamo virtude na república é o amor à pátria, isto é, o amor à
igualdade. Não é absolutamente virtude moral, nem virtude cristã, é virtude polí­
tica; e essa é a mola que faz mover o governo republicano, como a honra é a
mola que faz mover a monarquia. Chamei portanto de virtude política o amor à
pátria e à igualdade. Concebí novas idéias; foi necessário encontrar novas pala­
vras ou dar às antigas novas acepções. Os que não compreenderam isso fizeram-
me dizer coisas absurdas e que seriam revoltantes em todos os países do mundo;
pois, em todos os países do mundo, exige-se moral.
2.° Cumpre notar que há grande diferença entre dizer que certa qualidade,
modificação da alma, ou virtude, não é a mola que faz agir o governo e dizer que
ela não existe absolutamente nesse governo. Se eu dissesse: esta roda, este carrete
não são a mola que faz mover este relógio, disso deveriamos concluir que eles
não existem no relógio? Pouco importa que as virtudes morais e cristãs estejam
excluídas da monarquia e que a própria virtude política não o esteja. Numa pala­
vra, a honra existe na república, embora a virtude política seja sua mola; a virtu­
de política existe na monarquia, embora a honra seja sua mola.
Enfim, o homem de bem ao qual nos referimos no livro III, capítulo V, não
é o homem de bem cristão mas o homem de bem político, que possui a virtude
política à qual me referi. É o homem que ama as leis de seu país e que age pelo
amor às leis de seu país. Lancei uma nova luz em todas essas coisas nesta edição,
precisando ainda melhor as idéias; e, na maior parte das passagens em que me
servi da palavra virtude coloquei virtude política.

1 Essa “Advertência”, observa a edição Laboulaye, “não existe nas primeiras edições. Foi escrita para res­
ponder às críticas da época, que consideraram um insulto ao governo e quase um crime de lesa-majestade,
que um francês do século XVIII não fizesse da virtude o princípio da monarquia”. Aliás, Montesquieu —
ele próprio o assinala no final dessas linhas preliminares — confere a essas palavras, virtude, honra, um
sentido bem delimitado, quase técnico.
PRIMEIRA PARTE

LIVRO PRIMEIRO
DAS LEIS EM GERAL

1 As primeiras edições não comportam essa divisão em seis partes que aparece numa edição de 1750, reco­
nhecida por Montesquieu, numa carta a Grosley, como a mais exata.
Capítulo I

Das leis em suas relações com os diversos seres


As leis, no seu sentido mais amplo, são rela­ deste, ou ele teria regras constantes ou seria
ções necessárias que derivam da natureza das destruído.
coisas2 e, nesse sentido, todos os seres têm Assim, a criação, que parece ser um ato
suas leis; a divindade3 possui suas leis; o arbitrário, supõe regras tão invariáveis quanto
mundo material possui suas leis; as inteli­ a fatalidade dos ateus. Absurdo seria dizer que
gências superiores ao homem possuem suas o criador, sem essas regras, pudesse governar o
leis; os animais possuem suas leis; o homem mundo, pois o mundo não subsistiría sem elas.
possui suas leis. Essas regras são uma relação estabelecida
constantemente. Entre dois corpos em movi­
Os que afirmaram que uma fatalidade cega
mento, é de acordo com as relações da massa e
produziu todos os efeitos que vemos no mundo
da velocidade que todos os movimentos são
disseram um grande absurdo, pois que maior
recebidos, aumentados, diminuídos, perdidos;
absurdo do que uma fatalidade cega ter produ­
cada diversidade é uniformidade, cada mudan­
zido seres inteligentes?
ça é constância.
Existe, portanto, uma razão primeira e as Os seres particulares inteligentes podem
leis são as relações que se encontram entre ela possuir leis feitas por eles mas possuem tam­
e os diferentes seres, e as relações desses diver­ bém as que não fizeram. Antes da existência de
sos seres entre si. seres inteligentes, esses eram possíveis; ti­
Deus possui relações com o universo, como nham, portanto, relações possíveis e, conse­
criador e como conservador; as leis, segundo quentemente, leis possíveis. Antes de haver leis
as quais criou, são as mesmas pelas quais con­ feitas, existiam relações de justiça possíveis.
serva. Age segundo essas regras porque as Dizer que não há nada de justo nem de injusto
conhece; conhece-as porque as fez; fê-las por­ senão o que as leis positivas ordenam ou proí­
que elas se relacionam com sua sabedoria e bem, é dizer que antes de ser traçado o círculo
seu poder. todos os seus raios não eram iguais.
Considerando que vemos o mundo, formado É preciso, portanto, reconhecer relações de
pelo movimento da matéria e destituído de equidade anteriores à lei positiva que as esta­
inteligência, subsistir sempre, é preciso que belece 4; como, por exemplo, para se supor que
seus movimentos tenham leis invariáveis e, se existiram sociedades de homens, seria justo
pudéssemos imaginar outro mundo diferente conformar-se às suas leis; como, se existiram
seres inteligentes que tivessem recebido algum
2 Défense de ITsprit des Lois observa: “O autor benefício de outro ser, eles deveríam ser-lhe
tem em mira atacar o sistema de Hobbes, sistema gratos por isso; como, se um ser inteligente
terrível que, fazendo depender todas as virtudes e os criou outro ser inteligente, a criatura deveria
vícios do estabelecimento de leis que os homens
fizeram para si, e querendo provar que os humanos permanecer na dependência existente desde
nascem todos em estado de guerra, e que a primeira sua origem; como, se um ser inteligente causou
lei natural é a guerra de todos contra todos, derru­ um mal a outro ser inteligente, merece receber
ba, como Spinoza, não só toda religião como toda ô mesmo mal, e assim por diante.
moral”. Mas falta muito para que o mundo inteli­
3 “A lei”, diz Plutarco, “é a rainha de todos os gente seja tão bem governado quanto o mundo
mortais e imortais.” No tratado: O que É Neces­
sário para que um Príncipe Seja Sábio. >(N. do A.) 4 Que as estabelece. . . que as fixa pela legislação.
34 MONTESQUIEU

físico, pois ainda que o mundo inteligente pos­ nas quais não encontramos nem conhecí
sua também leis que por sua natureza são mento, nem sentimento, seguem-nas melhor.
invariáveis, não as segue constantemente, Os animais não possuem as supremas van­
como o mundo físico segue as suas. A razão tagens que nós possuímos; possuem outras que
disso reside no fato de estarem os seres parti­ não possuímos. Não têm as nossas esperanças
culares inteligentes limitados por sua natureza mas também não têm os nossos temores; estão,
e, consequentemente, sujeitos a erro; e, por como nós, sujeitos à morte, mas sem conhecê-
la; a maioria conserva-se mesmo melhor do
outro lado, é próprio de sua natureza agirem
por si mesmos. Não seguem, pois, constante­ que nós e não faz tão mau uso de suas paixões.
O homem, como ser físico, é, tal como os
mente suas leis primitivas e, mesmo as que eles
outros corpos, governado por leis invariáveis.
próprios criam, nem sempre as seguem.
Como ser inteligente, viola incessantemente as
Não se sabe se os animais são governados leis que Deus estabeleceu e modifica as que ele
pelas leis gerais do movimento ou por uma próprio estabeleceu. Cumpre que ele se oriente
moção particular. De qualquer forma, não e, entretanto, é um ser limitado; está sujeito,
mantêm com Deus relações mais íntimas do como todas as inteligências finitas, à igno­
que o resto do mundo material, e o sentimento rância e ao erro, e perde ainda os frágeis
só lhes serve nas relações que mantêm entre si conhecimentos que possui; torna-se, como
ou com outros seres particulares, ou consigo criatura sensível, sujeito a mil paixões. Tal ser
mesmos. poderia, a todo instante, esquecer seu criador
Pela atração dó prazer, os animais conser­ — Deus, pelas leis da religião, chamou-o a si;
vam seu ser particular; e, pela mesma atração, um tal ser poderia, a todo instante, esquecer-se
conservam sua espécie. Possuem leis naturais de si mesmo — os filósofos advertiram-no
porque estão unidos pelo sentimento; não pos­ pelas leis da moral. Feito para viver em socie­
suem leis positivas porque não estão unidos dade, poderia esquecer os outros — os legisla­
pelo conhecimento. Contudo, não seguem dores devolveram-no a seus deveres pelaç leis
invariavelmente suas leis naturais: as plantas, políticas e civis.

Capítulo II

Das leis da natureza

Antes de todas essas leis, existem as da semos necessidade da experiência para com­
natureza, assim chamadas porque decorrem provar isso, encontraram-se, nas florestas, ho­
unicamente da constituição de nosso ser. Para mens selvagens6: tudo os faz tremer, tudo os
conhecê-las bem, é preciso considerar o faz fugir.
homem antes do estabelecimento das socieda­ Nesse estado, todos se sentem inferiores e
des. As leis da natureza seriam as que elé rece­ dificilmente alguém se sente igual. Ninguém
bería em tal caso. procuraria, portanto, atacar e a paz seria a pri­
Essa lei, que, inculcando-nos a idéia de um meira lei natural.
criador, leva-nos a ele, é, por sua importância, Não é razoável o desejo que Hobbes atribui
mas não pela ordem das leis, a primeira das aos homens de subjugarem-se mutuamente. A
leis naturais. O homem em estado natural teria idéia de supremacia e de dominação é tão
de preferência a faculdade de conhecer a ter complexa e dependente dê tantas outras que
conhecimentos. É evidente que suas primeiras não seria ela a primeira idéia que o homem
teria.
idéias não seriam especulativas5; procuraria
Hobbes indaga7: “Por que os homens,
conservar seu ser antes de procurar sua ori­
gem. Tal homem sentiría, antes de tudo; sua
fraqueza e seu medo seria grande; e, se tivés­ 6 Disso é testemunho o selvagem encontrado nas
florestas de Hanôver, visto na Inglaterra durante o
reinado de Jorge I. (N. do A.)
5 Isto é, não filosofaria. 7 In praef.-lib. de Cive.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 35

mesmo quando não estão naturalmente em prazer que sente um animal à aproximação de
guerra, estão sempre armados? E por que utili­ outro da mesma espécie. Demais, este encanto
zam chaves para cerrar suas casas?” Mas não que os dois sexos, pela sua diferença, inspi­
percebe que atribuímos aos homens, antes do ram-se mutuamente aumentaria esse prazer, e
estabelecimento de sociedades, o que só pode­ o pedido natural que sempre fazem um ao
ría acontecer-lhes após esse estabelecimento, outro seria uma terceira lei.
fato que os leva a descobrir motivos para ata­ Além do sentimento que os homens inicial­
car e defender-se mutuamente. mente possuem, conseguem eles também ter
Ao sentimento de sua fraqueza, o homem conhecimentos; assim, possuem um segundo
acrescentaria o sentimento de suas necessida­ liame que os outros animais não têm. Existe,
des. Assim, outra lei natural seria a que o inci­ portanto, um novo motivo para se unirem, e o
taria a procurar alimentos. desejo de viver em sociedade constitui a quarta
Disse que o medo levaria os homens a afas­ lei natural8.
tarem-se uns dos outros, mas a comprovação
de um medo recíproco levá-los-ia logo a se
aproximarem. Aliás, eles seriam levados pelo 8 Aristóteles, Política, liv. I, cap. I.

Capítulo III

Das leis positivas

Logo que os nomens estão em sociedade, possível e, na guerra, o mínimo de mal possí­
perdem o sentimento de suas fraquezas; a vel, sem prejudicar seus verdadeiros interesses.
igualdade que existia entre eles desaparece, e o O objetivo da guerra é a vitória; o da vitó­
estado de guerra começa. ria, a conquista; o da conquista, a conserva­
Cada sociedade particular passa a sentir sua ção. Desse princípio e do precedente devem
força; isso gera um estado de guerra de nação derivar todas as leis que formam o direito das
para nação. Os indivíduos, em cada sociedade, gentes.
começam a sentir sua força: procuram reverter Todas as nações têm um direito das gentes,
em seu favor as principais vantagens da socie­ e os próprios iroqueses10, que devoram seus
dade; isso cria, entre eles, um estado de guerra.,
prisioneiros, possuem um. Enviam e recebem
Essas duas espécies de estado de guerra
embaixadas, conhecem o direito da guerra e da
acarretam o estabelecimento de leis entre os
paz; o mal é que este direito das gentes não se
homens. Considerados como habitantes de um
planeta tão grande, a ponto de ser necessária a baseia em princípios verdadeiros.
existência de diferentes povos, existem leis nas Fora o direito das gentes, que diz respeito a
relações que esses povos mantêm entre si; é o todas as sociedades, existe um direito político
Direito das Gentes9. Considerados como vi­ para cada uma. Sem um governo, nenhuma
vendo numa sociedade que deve ser mantida, sociedade poderia subsistir. A reunião de todas
possuem leis nas relações entre os que gover­ as forças individuais, diz muito corretamente
nam e os que são governados; e é o Direito
Gravina1 \ forma o que denominamos Estado
Político. Possuem-nas ainda nas relações que
Político.
todos os cidadãos mantêm entre si: é o Direito
Civil. A força geral pode ser colocada nas mãos
O direito das gentes está naturalmente de apenas um ou nas mãos de muitos.
baseado neste princípio: as diversas nações
devem fazer-se, na paz, tanto bem quanto for 10 Os iroqueses, tribo guerreira, então muito beli­
cosa, depois degenerada, que habitava o Norte dos
Estados.Unidos e o Sul tio Canadá.
9 Direito das gentes, direito das nações (no sentido 11 Gravina, jurista, nascido em Rogliano (Calá­
usado em latim, gentes, nações). bria), 1664-1718.
36 MONTESQUIEU

Alguns12 pensargm que, tendo a Natureza pretende estabelecer, quer elas o formem,
estabelecido o poder paterno, o governo de um como as leis políticas, quer elas o mantenham,
só estaria mais de acordo com a Natureza. como fazem as leis civis.
Porém, o exemplo do poder paterno nada Devem as leis ser relativas ao físico do país,
prova, pois, se o poder do pai está relacionado ao clima frio, quente ou temperado; à quali­
com o governo de um só, depois da morte do dade do solo, à sua situação, ao seu tamanho;
pai, o poder dos irmãos ou, depois da morte ao gênero de vida dos povos, agricultores,
dos irmãos, o dos primos coirmãos está rela­ caçadores ou pastores; devem relacionar-se
cionado com o governo de muitos. O poder com o grau de liberdade que a constituição
político implica, necessariamente, a união de pode permitir; com a religião dos habitantes,
muitas famílias. suas inclinações, riquezas, número, comércio,
É melhor dizer que o governo mais de acor­ costumes, maneiras. Possuem elas, enfim, rela­
do com a Natureza é aquele cuja disposição- ções entre si e com sua origem, com os desíg­
partícular melhor se relaciona com as disposi­ nios do legislador e com a ordem das coisas
ções do povo para o qual foi estabelecido. sobre as quais são elas estabelecidas. É preciso
As forças individuais não se podem reunir considerá-las em todos esses aspectos.
sem que todas as vontades se reúnam. À reu­ É isso que pretendo realizar nesta obra.
nião dessas vontades, diz Gravina ainda muito Examinarei todas essas relações; formam elas,
corretamente, é o que denominamos Estado no conjunto, o que chamamos de Espírito das
Civil. Leis.
A lei, em geral, é a razão humana, na medi­ Não separei de modo algum as leis políticas
da em que governa todos os povos da terra, e das civis, pois, como absolutamente não trato
as leis políticas e civis de cada nação devem de leis mas do espírito das leis e como esse
ser apenas os casos particulares em que se espírito consiste nas diferentes relações que as
aplica essa razão humana. •leis podem ter com diversas coisas, devo seguir
Devem ser elas tão adequadas ao povo para menos a ordem natural das leis que a dessas
o qual foram feitas que, somente por um gran­ relações e dessas coisas.
de acaso, as leis de uma nação podem convir a Examinarei, primeiramente, as relações que
outra. as leis possuem com a natureza e com o princí­
Cumpre que se relacionem à natureza e ao pio de cada governo e, como esse princípio
princípio do governo estabelecido ou que se possui sobre as leis uma suprema influência,
aplicar-me-ei em bem conhecê-lo e, uma vez
12 Filmer, por exemplo, escritor político inglês, que consiga estabelecê-lo, dele ver-se-á fluírem
nascido no Condado de Kent e autor dos Patriarcha as leis. Passarei, em seguida, às outras relações
(1604-1688). que parecem ser mais particulares.
LIVRO SEGUNDO
DAS LEIS QUE DERIVAM DiRETAMENTE
DA NATUREZA DO GOVERNO
Capítulo I

Da natureza de três diferentes governos

Existem três espécies de governo: o Republi­ que o povo, como um todo, ou somente uma
cano, o Monárquico e o Despótico13. Para parcela do povo, possui o poder soberano; a
descobrir-lhes a natureza, é suficiente a idéia monarquia é aquele em que um só governa,
que deles têm os homens menos instruídos. mas de acordo com leis fixas e estabelecidas,
Suponho três definições, ou antes, três fatos: enquanto, no governo despótico, uma só pes­
um que o “governo republicano é aquele em soa, sem obedecer a leis e regras, realiza tudo
por sua vontade e seus caprichos”.
13 Lembrou-se, a respeito dessa divisão, a de Aris­ Eis aí o que denomino a natureza de cada
tóteles, distinguindo a monarquia, a aristocracia e a governo. É preciso conhecer quais são as leis
república (Política, liv. III, cap. V, 2 e 3). Para Vol- que derivam diretamente dessa rtatureza e que,
taire,icomentando Do Espírito das Leis,monarquia e
despotismo se assemelham a ponto de se confundi­ consequentemente, são as primeiras leis funda­
rem. mentais.

Capítulo II

Do governo republicano e das


leis relativas à democracia

Quando, numa república, o povo como um Libânio1 4 afirma que em Atenas um estran­
todo possui o poder soberano, trata-se de uma geiro que se imiscuísse na assembléia do povo
Democracia. Quando o poder soberano está era punido com a morte. É que esse homem
nas mãos de uma parte do povo, trata-se de usurpava o direito de soberania.
uma Aristocracia. O povo, na democracia, é, É essencial fixar o número de cidadãos que
sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o devem compor as assembléias; sem isso,
súdito. poder-se-ia ignorar se o povo, ou somente uma
O povo só pode ser monarca pelos sufrá­ parte dele, opinou. Na Lacedemônia, eram
gios, que constituem suas vontades. A vontade necessários dez mil cidadãos. Em Roma, que
do soberano é o próprio soberano. As leis que nasceu pequena para tornar-se poderosa; em
estabelecem o direito de sufrágio são, portanto, Roma, feita para experimentar todas as vicissi-
tudes da fortuna; em Roma, que tinha, ora
fundamentais nesse governo. Com efeito, aqui
quase todos os seus cidadãos fora de suas
é tão importante regulamentar como, por
muralhas, ora toda a Itália e uma parte da
quem, a quem, sobre o que os sufrágios devem
ser atribuídos, quanto o é, numa monarquia,
1 4 Declamações, 17 e 18. (N. do A.) *
saber quem é o monarca e de que maneira deve * Libânio, sofista grego (314-390), muito acredi­
governar. tado junto a Juliano, o Apóstata.
40 MONTESQUIEU

terra no interior de suas muralhas, não se espe­ cargos, não se decidiu a elegê-los18 e apesar
cificara esse número1*5, sendo essa uma das de, em Atenas, poder-se, pela lei de Aristides,
principais causas de sua ruína. extrair magistrados de todas as classes, relata
O povo que possuí o poder soberano deve Xenofonte19 que nunca aconteceu de o baixo
fazer por si mesmo tudo o que pode realizar povo escolher os que pudessem defender sua
corretamente e, aquilo que não pode realizar segurança e sua glória.
corretamente, cumpre que o faça por inter­ Tal como a maioria dos cidadãos que pos­
médio de seus ministros. suem suficiente capacidade para eleger mas
Seus ministros só lhe pertencem se ele os não a possuem para ser eleitos, igualmènte o
nomeia; é, pois, uma máxima fundamental povo, que possui suficiente capacidade para
deste governo que o povo nomeie seus minis­ julgar da gestão dos outros, não está apto para
tros, isto é, seus magistrados; governar por si próprio.
Tal como os monarcas e mesmo mais' do
É necessário que os negócios se desen­
que eles, o povo necessita ser conduzido por
volvam e que se desenvolvam num certo ritmo,
um conselho ou senado1 6. Mas, para que haja
nem muito lento nem muito rápido. Mas o
confiança nesse, é necessário que eleja seus
povo sempre tem, ou muita, ou pouca ação.
membros, seja escolhendo-os diretamente,
Algumas vezes, com cem mil braços, tudo
como em Atenas, seja através de magistrados
transforma; outras, com cem mil pés, só cami­
que tenha escolhido para os eleger, como se
nha como os insetos.
fazia em Roma, em algumas ocasiões.
No Estado popular, divide-se o povo em cer­
O povo é admirável para escolher aqueles a
tas classes. É na maneira de realizar essa divi­
quem deve confiar parte de sua autoridade1 7.
Só pode decidir-se por coisas que não pode
são que os grandes legisladores se revelam e é
ignorar e por fatos que estão ao alcamce de disso que sempre dependeu a continuidade da
democracia e sua prosperidade.
seus sentidos. Sabe muito bem que determi­
Sérvio Túlio acompanhou, na composição
nado homem esteve muitas vezes em guerra e
de suas classes, o espírito da aristocracia.
que obteve tais e tais êxitos; é, então, capaz de
eleger um general. Sabe que um juiz é assíduo, Vemos, em Tito Lívio20 e em Dionísio de
Halicarnasso21, como ele coloca o direito de
que muita gente sai de seu tribunal satisfeita
com ele, que não se pode corrompê-lo: isso é sufrágio nas mãos dos principais cidadãos.
suficiente para que eleja um pretor. Se está Dividiu Sérvio Túlio o povo de Roma em 193
impressionado com a magnificência ou com as centúrias, formando seis classes. E colocando
riquezas de um cidadão, isso é suficiente para os ricos, mas em menor número, nas primeiras
que possa escolher um edil. Todas essas coisas centúrias, os menos ricos, mas em maior nú­
são fatos que o povo aprende melhor na praça mero, nas seguintes, lançou toda a multidão
pública do que um monarca em seu palácio. dos indigentes na última; e cada centúria tendo
Entretanto, saberá o povo dirigir um negócio, somente um voto22, eram os meios e as rique­
conhecer os lugares, as ocasiões, os momentos zas, mais do que as pessoas, que votavam.
e aproveitá-los? Não: não saberá. Sólon dividiu o povo de Atenas em quatro
Se pudéssemos duvidar da capacidade natu­ classes. Levado pelo espírito da democracia,
ral que o povo possui para discernir o mérito, não o fez para estipular os que teriam direito a
bastaria atentar para esta série contínua de votar mas os que poderíam ser eleitos e, dei­
escolhas espantosas que fizeram os atenienses xando a cada cidadão o direito de voto, quis
e os romanos, fato que, indubitavelmente, não
pode ser atribuído ao acaso. 18 Maquiavel,Discurso sobre Tito Lívio, liv. I, cap.
Sabe-se que em Roma, apesar de o povo se XLVII. Considérations sur les Causes de la Gran­
ter arrogado o direito de alçar plebeus para os deur des Romàins et de leur Décadence, cap.VIIL
18 Págs. 691 e 692, edição de Wechelius, do ano de
1596. (N. do A.)
1 5 Vede as Considérations sur les Causes de la 20 Liv. I. (N. do A.)
Grandeur des Romains et de leur Décadence, cap. 21 Liv. IV, art. 15 e segs. (N. do A.).
IX. (N. do A.) 22 Vede nas Considérations sur les Causes de la
1 6 Aristóteles, Política, liv. VI, cap. II. Grandeur des Romains et de leur Décadence, cap.
1 7 A experiência parece ter justificado pouco esse IX, como esse espírito de Sérvio Túlio se conserva
otimismo. na república. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 41

que23, em cada uma dessas quatro classes, se ou secretos. Cícero28 escreveu que as leis29
pudesse eleger juizes. Entretanto, foi apenas que tornaram secretos os sufrágios no último
nas três primeiras, onde se localizavam os período da república romana constituíram
cidadãos de fortuna, que se pôde extrair os uma das causas principais de sua queda.
magistrados2 4. Como isso se pratica de diferentes maneiras
Como a divisão dos que têm direito a voto é, nas diversas repúblicas, eis, creio, algo em que
na república, uma lei fundamental, a maneira é necessário pensar.
de o dar é outra lei fundamental. Está fora de dúvida que, quando o povo
O sufrágio pelo sorteio é da natureza da vota, seus votos devem ser públicos30, e isso
deve ser considerado como uma lei funda­
democracia25; o sufrágio pela escolha, é da mental da democracia. É preciso que a plebe
natureza da aristocracia. seja esclarecida pelos principais e contida pela
O sorteio é uma maneira de eleger que a nin­ seriedade de certos personagens. Assim, na
guém aflige: deixa a cada cidadão uma espe­ república romana, estabelecendo-se o sufrágio
rança razoável de servir à sua pátria. secreto, destruiu-se tudo, não sendo mais pos­
Entretanto, como essa maneira é em si defei­ sível esclarecer um populacho que se corrom­
tuosa, foi na sua regulamentação e correção pia. Mas quando, numa aristocracia, o corpo
que os grandes legisladores se esmeraram. de nobres vota31 ou, numa democracia, vota o
Sólon estabeleceu, em Atenas, que se no­ senado32, e sendo apenas uma questão de pre­
mearia através da escolha para todos os cargos venir os conluios, os sufrágios não poderíam
militares e que os senadores e juizes seriam ser muito secretos.
O conluio é perigoso num senado e também
escolhidos por sorteio.
entre o corpo dos nobres; não o é, porém, entre
Quis ele que se atribuíssem através da esco­
o povo, cuja natureza é agir pela paixão. Nos
lha as magistraturas civis, que exigiam uma
Estados em que não participa do governo, o
grande despesa, e que as demais fossem atri­ povo entusiasmar-se-ia por um ator, assim
buídas pelo sorteio. como o faria pelos negócios. A desgraça de
Entretanto, para corrigir a sorte, estipulou- uma república advém quando não há mais
se que só se poderia eleger entre aqueles que se conluios e isso acontece quando se corrompe o
apresentassem; o que tivesse sido eleito seria povo pelo dinheiro: ele torna-se indiferente e
examinado pelos juizes2 6 e cada um poderia afeiçoa-se ao dinheiro, porém não mais se afei-
çoa aos negócios: sem se preocupar com o
acusá-lo de ser indigno2 7. Isso se relacionava
governo e com o que nele se propõe, espera
tanto ao sorteio como à escolha. Ao término tranquilamente seu salário.
da magistratura era necessário submeter-se a É ainda uma lei fundamental da democracia
outro julgamento sobre a maneira pela qual as que só o povo institua leis. Há, contudo, mil
pessoas se haviam comportado. As pessoas' ocasiões em que o senado deve estatuí-las; é
sem capacidade deviam sentir muita repug­ mesmo frequente experimentar oportunamente
nância em apresentar seu nome para serem uma lei antes de estabelecê-la. A constituição
sorteadas. de Roma e a de Atenas eram muito sábias. Os
decretos do senado33 tinham força de lei
A lei que determina a maneira de conceder durante um ano e as leis só se tornavam perpé­
as cédulas de sufrágio é ainda na democracia tuas pela vontade do povo.
uma lei fundamental. Constitui um sério pro­
blema saber se os sufrágios devem ser públicos 2 8 Liv. I e III das Leis. (N. do A.)
29 Chamavam-se leis tabulares (leis tabelarias).
Davam-se a cada cidadão duas tábuas (tabuletas)
23 Dionísio de Halicarnasso, Elogio de Isócrates, ou boletins: a primeira assinalada com um A, para
pág. 92, tomo II, edição de Wechelius, Pollux, liv. significar antiquo; a outra assinalada com um U e
VIII, cap. X, art. 130. (N. do A.) com um R, uti rogas. (N. do A.)
2 4 Aristóteles, Política, liv. II, cap. XII. 30 Em Atenas, levantavam-se as mãos. (N. do A.)
2 5 Id„ ibid., liv. IV, cap. IX. 31 Como em Veneza. (N. do A.)
2 8 Vede o discurso de Demóstenes, De Falsa 32 Os trinta tiranos ae Atenas quiseram que os
Legat., e o discurso contra Timarco. (N. do A.) sufrágios dos areopagitas fossem públicos, a fim de
2 7 Tiravam-se mesmo duas cédulas para cada os dirigir a seu bel-prazer. Lísias, Orat. contra Ago-
lugar: uma determinava o lugar, outra indicava rat, cap. VIII. (N. do A.)
quem deveria suceder, caso o primeiro fosse rejeita­ 33 Vede Dionísio de Halicarnasso. liv. IV e IX. (N.
do. (N. do A.) do A.)
42 MONTESQUIEU

Capítulo III

Das leis relativas à natureza da aristocracia

Na aristocracia3 4 o poder soberano encon­ mita o poder do monarca mas, numa república
tra-se em mãos de um número certo de pes­ em que um cidadão se faz atribuir3 7 um
soas. São elas que estipulam as leis e as fazem poder exorbitante, o abuso desse poder é
executar. O resto do povo está, em relação a maior, pois as leis que não o proveram nada
elas, simplesmente como numa monarquia os fizeram para limitá-lo.
súditos estão em relação ao monarca. Ocorre uma exceção a essa regra quando a
Nesta forma de governo não deve existir o constituição do Estado é tal que ele necessita
sufrágio pelo sorteio pois dele só existiríam os de uma magistratura que tenha um poder exor­
inconvenientes. Com efeito, num governo que bitante. Assim era Roma com seus ditadores,
assim é Veneza com seus inquisidores de Esta­
estabeleceu as distinções mais opressivas, não
do; essas são magistraturas terríveis que con­
se será menos odiado quando se for escolhido
duzem, violentamente, o Estado à liberdade.
pela sorte: ao nobre é que se inveja e não ao
Mas por que essas magistraturas se mostram
magistrado.
tão diferentes nessas duas repúblicas? É que
Quando os nobres são muito numerosos é Roma defendia, contra o povo, os restos de sua
necessário um senado que regulamente os aristocracia, enquanto Veneza se .serve de seus
negócios que o corpo de nobres não poderia inquisidores de Estado para manter sua aristo­
resolver e que prepare os que ele resolve. Neste cracia contra os nobres. Resulta daí que, em
caso, podemos dizer que a aristocracia existe, Roma, a ditadura só deveria durar por pouco
de alguma forma, no senado, a democracia no tempo porque o povo agia guiado por sua
corpo de nobres e que o povo nada é. impetuosidade e não por seus desígnios. Cum­
Numa aristocracia seria algo muito bom se, pria que essa magistratura fosse exercida com
por algum meio indireto, tirássemos o povo de brilho pois se tratava de intimidar o povo e
sua prostração; assim, em Gênova, o Banco de não de puni-lo; cumpria que o ditador só fosse
São Jorge, administrado em grande parte pelos criado para uma única função e só tivesse
principais do povo3 5, confere a este certa autoridade ilimitada em razão dessa função,
influência sobre o governo, o que faz toda a uma vez que era ele sempre criado para um
sua prosperidade. caso imprevisto. Em Veneza, pelo contrário,
Os senadores não devem ter o direito de era necessário magistratura permanente; é aí
substituir os que faltam ao senado, pois nada que os planos podem ser iniciados, continua­
perpetuaria tanto os abusos. Em Roma, que foi dos, suspensos, retomados; que a ambição de
nos primeiros tempos uma espécie de aristo­ um só se torna a de uma família, e a ambição
cracia, o senado não se completava por si de uma família, a de muitos. Necessita-se de
uma magistratura oculta porque os crimes que
mesmo: os novos senadores eram nomea­
ela pune, sempre profundos, formam-se no
dos3 6 pelos censores.
segredo e no silêncio. Essa magistratura deve
A autoridade exorbitante conferida subita­
ter uma inquisição geral, pois deve não apenas
mente a um cidadão, numa república, constitui
extinguir os males conhecidos como também
uma monarquia ou mais que uma monarquia.
prevenir os males desconhecidos. Finalmente,
Nessas, as leis proveram a constituição ou a
essa última é estabelecida para vingar os cri­
ela se acomodaram; o princípio de governo li­
mes de que ela suspeita; e a primeira utilizava
mais as ameaças do que as. punições para os
3 4 Aqui, e no que segue, Montesquieu pensa princi­
palmente em Veneza.
3 5 Vede Adisson, Viagens na Itália, pág. 16. (N. do 3 7 Foi isso que derrubou a república romana. Vede
A.) as Considérations sur les Causes de la Grandeur des
3 6 De início, eles o foram pelos cônsules. (N. do Romains et de leur Décadence, cap. XIV e XVI. (N.
A.) do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I
43

crimes, mesmo os confessados por seus auto­ poder é tão pequena e tão pobre que a parte
res. dominante não tem qualquer interesse em opri-
É mister compensar, em toda magistratura, mi-la. Assim, quando Antipater41 estabele­
a grandeza de seu poder pela brevidade de sua ceu, em Atenas, que os que não possuíssem
duração38. Um ano é o prazo que a maioria dois mil dracmas perderíam o direito de voto,
dos legisladores determinou; um prazo mais formou a melhor aristocracia possível, pois
longo seria perigoso, um mais curto seria con­ este censo era tão baixo que só excluiría pou­
trário à natureza das coisas. Quem desejaria cas pessoas e nunca uma pessoa que possuísse
governar assim seus interesses particulares? alguma consideração na cidade.
Em Ragusa39 muda-se o chefe da república Portanto, as famílias aristocráticas, na me­
todos os meses, os outros oficiais todas as dida do possível, devem fazer parte do povo.
semanas e o gove‘rnador do castelo todos os Quanto mais uma aristocracia aproximar-se
dias. Isso só pode ocorrer numa república da democracia, tanto mais perfeita será ela;
pequena40, cercada de potências formidáveis tornar-se-á menos perfeita à medida que se
que corromperíam facilmente os pequenos aproximar da monarquia.
magistrados. A mais imperfeita de todas é aquela em que
a parte do povo que obedece permanece na
A melhor forma de aristocracia é aquela em escravidão civil dos que comandam, como na
que a parte do povo que não participa do
aristocracia da Polônia, em que os camponeses
são escravos da nobreza.
3 8 Aristóteles, Política, liv. V, cap. VIII.
3 9 Voyages, de Toumefort. (N. do A.)
40 A duração da magistratura, em Luca, é de ape­ 41 Diodoro, liv. XVIII, pág. 601, edição de Rhodo-
nas dois meses (N. do A.) man. ( N. do A.)

Capítulo IV

Das leis em sua relação com


a natureza do governo monárquico 42
sem nobreza não há monarca43. Mas há um
Os poderes intermediários, subordinados e déspota.
dependentes, constituem a natureza do gover­ Há pessoas que imaginaram, na Europa, em
no monárquico, isto é, daquele em que uma só alguns Estados, abolir toda justiça dos senho­
pessoa governa baseada em leis fundamentais. res. Não percebiam que pretendiam fazer o que
Dissemos os poderes intermediários, subordi­ fez o parlamento inglês. Aboli numa monar­
nados e dependentes; com efeito, na monar­ quia as prerrogativas dos senhores, do clero,
quia o príncipe é a fonte de todo poder político da nobreza e das cidades e tereis um Estado
e civil. Essas leis fundamentais supõem neces­ popular ou um Estado despótico. Os tribunais
sariamente canais médios por onde o poder se de um grande Estado europeu44 golpeiam
manifesta, pois se no Estado apenas existe a incessantemente, há muitos séculos, a jurisdi­
vontade momentânea e arbitrária de uma só ção patrimonial dos senhores e a eclesiástica.
pessoa, nada pode ser fixo. Consequentemente, Não desejamos censurar tão sábios magis­
também não o poderá ser nenhuma lei funda­ trados mas deixamos ainda para ser decidido
mental. até que ponto a constituição, nesse caso, pode
O poder intermediário subordinado mais ser mudada.
natural é o da nobreza. De certo modo, ela faz Não me dirijo contra os privilégios eclesiás­
parte da essência da monarquia, cuja máxima ticos mas desejaria que definitivamente se
fundamental é: sem monarca não há nobreza,
43 Isso lembra a máxima de Carlos I, da Ingla­
42 Para o governo monárquico é a França que terra: Sem bispo não há coroa: No cross, no crown.
serve de modelo a Montesquieu. 4 4 A França, naturalmente.
44
MONTESQUIEU

fixasse bem sua jurisdição. Não se trata de os corpos políticos: dissolvia4 5 a monarquia
saber se há motivos para estabelecê-la mas sim por seus reembolsamentos quiméricos e pare­
se ela está estabelecida, se faz parte das leis do cia querer comprar a própria constituição.
país, se é relativa em toda parte, se entre dois Numa monarquia não é suticiente a exis­
poderes reconhecidos como independentes as tência de posições intermediárias; é necessário
condições não devem ser recíprocas e se não é ainda um repositório de leis. Esse repositório
a mesma coisa para um bom súdito defender a só pode existir nos corpos políticos que anun­
justiçá do príncipe ou os limites que ela, em ciam as leis, quando são feitas, e relembram-
todos os tempos, se prescreveu. nas, quando são esquecidas46. A ignorância
Assim como, numa república, o poder db natural da nobreza, sua desatenção, seu des­
clero é perigoso, ele é conveniente numa prezo pelo governo civil, exigem que haja um
monarquia, sobretudo nas que caminham para órgão que incessantemente faça sair as leis da
o despotismo. Onde estariam a Espanha e Por­ poeira onde estariam enterradas. O Conselho
tugal, desde a perda de suas leis, sem esse do príncipe não é um repositório conveniente.
poder que, sozinho, contém o poder arbitrário? É, por sua natureza, o repositório da vontade
Barreira sempre útil quando não existem momentânea do príncipe que executa e não o
outras, pois, como o despotismo causa à natu­ repositório das leis fundamentais. Além disso,
reza humana males horríveis, o próprio mal o Conselho do monarca modifica-se constante­
que o limita é um bem. mente; não é de modo algum permanente; não
Como o mar que parece cobrir toda a terra poderia ser numeroso; não tem, em alto grau, a
e contido pelas ervas e pequenos seixos que se confiança do povo; não está, pois, em condi­
encontram sobre a praia, também os monarcas ções de esclarecê-lo nos momentos difíceis,
cujo poder parece ilimitado são barrados pelos nem de chamá-lo à obediência.
Nos Estados despóticos, onde não há leis
menores obstáculos e submetem sua altivez
fundamentais, não há também repositório das
natural às lamentações e aos rogos.
leis. Disso decorre que, nesses países, comu-
Os ingleses, para favorecer a liberdade,
mente a religião possui grande poder, pois
suprimiram todos os poderes intermediários
constitui uma espécie de repositório e• de
que compunham sua monarquia. Têm muita
permanência; e, se não é a religião, são os cos­
razão em conservar essa liberdade; se a per­
tumes que aí se veneram em lugar das leis.
dessem seriam um dos povos mais escravi­
zados da terra.
4 ? Fernando, rei de Aragão, fez-se grão-mestre das
Law, por ignorar tanto a constituição repu­ orderis e somente isso alterou a constituição. (N. dp
blicana como a monarquia, foi um dos maiores
promotores do despotismo já vistos na Europa. 4 6 Alusão aos parlamentos, com seu direito de assen­
Além das transformações que promoveu, tão to e de admõestação*.
* Em francês, remontrance: trata-se dos discursos
bruscas, inusitadas e espantosas, pretendia dirigidos aos reis pelos antigos parlamentos, expon­
suprimir as posições intermediárias e dissolver do os inconvenientes de um edito etc. (N. do T.)

Capítulo V

Das leis relativas à natureza


do Estado despótico
Da natureza do poder despótico resulta que fiasse a diversos homens, haveria disputas
o único homem que o exerce, o faça também entre eles; intrigar-se-ia para ser o primeiro
exercer por um só. Um homem cujos cinco escravo; o príncipe seria obrigado a cuidar da
sentidos dizem incessantemente que ele é tudo administração. Será portanto mais simples que
ele o entregue a um vizir4 7 que teria, inicial-
e os outros nada são, é naturalmente pregui­
çoso, ignorante e voluptuoso. Abandona então
4 7 Os reis do Oriente sempre possuem vizires, afir­
os negócios públicos. Entretanto, se os con­ ma Chardin. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 45

mente, o mesmo poder que ele. O estabeleci­ atordoados. Entretanto, depois de escolherem
mento de um vizir é, nesse Estado, uma lei um vizir e depois de, em seus haréns, se terem
fundamental. entregado às mais brutais paixões e depois de,
Conta-se que um papa, em sua eleição, numa corte corrompida, terem cumprido todos
compenetrado de sua incapacidade, apresen­ os seus caprichos, jamais teriam pensado que
tou, de início, dificuldades infinitas. Aceitou isso fosse tão fácil.
por fim e entregou a seu sobrinho todos os
negócios. E dizia, admirado: “Nunca pensei Quanto mais o império cresce, mais o harém
que isso fosse tão simples”. O mesmo ocorre aumenta e, conseqüentemente, mais o príncipe
com os príncipes do Oriente. Quando os tiram está embriagado de prazeres. Assim, nesses
dessa prisão — onde os eunucos lhes enfraque­ Estados, quanto mais súditos o príncipe possui
ceram o coração e o espírito, e onde, amiúde, para governar, menos pensa no governo; quan­
os deixaram ignorar sua própria condição — to mais se avolumam os negócios, menos se
para colocá-los no trono, ficam inicialmente delibera sobre eles.
LIVRO TERCEIRO
DOS PRINCÍPIOS DOS TRÊS GOVERNOS
Capítulo I

Diferença entre a natureza do governo


e seu princípio
Depois de ter examinado quais são as leis ser como é, e seu princípio é o que o faz agir.
relativas à natureza de cada governo, cumpre A primeira constitui sua estrutura particular e,
ver quais são relativas a esse princípio. a segunda, as paixões humanas que o movi­
Entre a natureza do governo e seu princípio, mentam.
há esta diferença48: sua natureza é o que o faz
Ora, as leis não devem ser menos relativas
ao princípio de cada governo do que à sua
48 Esta distinção é muito importante e dela extrai­
remos muitas consequências, pois é a chave de uma natureza. É mister, portanto, procurar qual é o
infinidade de leis. (N. do A.) princípio. É o que faremos neste livro.

Capítulo II

Do princípio dos diversos governos


Dissemos que é da natureza do governo despótico que um só governe, segundo suas
republicano que todo o povo, ou certas famí­ vontades e caprichos. Nada mais me é neces­
lias, possuam o poder soberano: da natureza sário para encontrar os três princípios desses
do governo monárquico que o príncipe possua governos, pois eles daí derivam naturalmente.
o poder soberano mas que o exerça de acordo Começaremos pelo governo republicano, tra­
com leis estabelecidas; da natureza do governo tando inicialmente do governo democrático.

Capítulo III

Do princípio da democracia

Para que o governo monárquico ou despó­ Isso é confirmado por toda a História e está
tico se mantenha ou se sustente não é neces­ muito de acordo com a natureza das coisas.
sária muita probidade. A força da lei, no pri­ Pois é claro que numa monarquia, onde quem
meiro, o braço do príncipe sempre levantado, manda executar as leis se julga acima das leis,
no segundo, tudo regulamenta ou contém. tem-se rfecessidade de menos virtude do que
Mas, num Estado popular, é preciso uma força ' num governo popular, onde quem manda exe­
a mais: a Virtude49.
cutar as leis sente que ele próprio a élas está
submetido e que delas sofrerá o peso.
49 Devemos entender, pela palavra “virtude”, a É claro ainda que o monarca que por maus
virtude do cidadão que Aristóteles já acrescentava
às de homem honesto, mesmo as distinguindo. Polí­ conselhos ou negligência deixa de mandar exe­
tica, cap. III, 2. cutar as leis pode facilmente reparar o mal:
50 MONTESQUIEU

basta modificar o Conselho ou se corrigir sua força não é mais-do que o poder de alguns
dessa negligência. Entretanto, quando num cidadãos e a licença de todos.
governo popular as leis não mais são executa­ Atenas possuiu em seu seio as mesmas for­
das, e como isso só pode ser consequência da ças enquanto dominou com tanta glória e
corrupção da república, o Estado já está enquanto humilhou-se com tanto opróbrio.
perdido 50. Possuía vinte mil cidadãos 53 quando defendeu
Foi um belo espetáculo observar, no século os gregos contra os persas, quando disputou o
passado, os esforços impotentes dos ingleses império à Lacedemônia e quando atacou a
para implantar, entre eles, a democracia. Sicília. Atenas possuía vinte mil quando
Como os que participavam dos negócios não Demétrio de Faleros os enumerou 5 4, tal como,
tinham virtude, como sua ambição irritava-se num mercado, se enumeram os escravos.
com o êxito do que era mais ousado51, como o Quando Filipe ousou submeter a Grécia, quan­
espírito de uma facção só era contido pelo do ele apareceu nas portas de Atenas55, de
espírito de outra, o governo mudava incessan­ perdido esta só tinha o tempo. Podemos verifi­
temente; perplexo, o povo procurava a demo­
car, em Demóstenes, quanto esforço foi neces­
cracia e não a encontrava em parte alguma.
sário para despertá-la: temia-se Filipe não
Enfim, após muitos movimentos, choques e
como o inimigo da liberdade mas como o ini­
abalos, foi necessário confiar no próprio
migo dos prazeres5 6. Esta cidade, que resistira
governo que se proscrevera.
a tantos reveses, que vimos renascer após as
Quando Sila quis devolver a Roma sua
destruições, foi derrotada em Queronéia e para
liberdade, essa não pôde mais recebê-la, pois
não possuía mais do que um tênue resquício de sempre. Não importa que Filipe devolva todos
virtude e, como a possuía cada vez menos, em os prisioneiros, pois não devolve homens. Era
vez de despertar após César, Tibério, Caio, sempre tão fácil vencer as forças de Atenas
Cláudio, Nero, Domiciano, tornou-se cada vez como difícil vencer sua virtude.
mais escrava; todos os golpes foram dirigidos Como Cartago poderia manter-se? Quando
contra os tiranos mas nenhum contra a tirania. Aníbal, que se tornara pretor, quis impedir os
Os políticos gregos, que viviam no governo magistrados de pilhar a república, não foram
popular, só reconheciam uma força capaz de eles acusá-lo aos romanos? Infelizes, queriam
mantê-los: a força da virtude52. Os políticos ser cidadãos sem que existisse a cidade e man­
atuais só nos falam de manufaturas, de comér­ ter suas riquezas graças ao poderio de seus
cio, de finanças, de riquezas e até de luxo. destruidores! Cedo Roma exigiu-lhes como
Quando esta virtude desaparece, a ambição reféns trezentos de seus principais cidadãos,
penetra o coração dos que podem acolhê-la e a fez com que se lhe entregassem suas armas e
avareza apodera-se de todos. Os desejos navios e depois lhes declarou guerra. Pelas coi­
mudam de objeto: não mais se ama aos que se sas que o desespero fez na Cartago desarma­
amava; era-se livre com as leis, quer-se ser da5 7, podemos imaginar o que ela teria feito
livre contra elas; cada cidadão é como um com sua virtude, quando ainda possuía suas
escravo que fugiu da casa de seu senhor; cha­ forças.
ma-se rigor o que era máxima; chama-se impo­
sição o que era regra; chama-se temor o que
5 3 Plutarco, in Péricles; Platão in Crítias. (N. do
era respeito. A frugalidade agora é avareza c A.)
não desejo de possuir. Outrora, os bens dos 5 4 Encontraram-se, em Atenas, vinte e um mil
particulares constituíam o tesouro público cidadãos, dez mil estrangeiros e quatrocentos mil
mas, então, o tesouro torna-se patrimônio dos escravos. Vede Ateneu, liv. VI. (N. do A.)
particulares. A república é um despojo mas 5 6 Possuía ela vinte mil cidadãos. Vede Demóste­
nes, in Aristog. (N. do Á.)
6 6 Eles tinham estabelecido uma lei para punir
50 Aristóteles, Política, liv. V, cap. VIII. com a morte quem propusesse utilizar para a guerra
61 Cromwell. (N. do A.) o dinheiro destinado aos teatros. (N. do A.)
52 Id., ibid., liv. II, cap. II. 5 7 Esta guerra durou três anos. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS 1 51

Capítulo IV

Do princípio da aristocracia
A virtude é tão necessária no governo popu­ si próprio58. Á natureza dessa constituição é
lar quanto na aristocracia. É verdade que aqui tal que parece colocar as mesmas pessoas sob
ela não é tão absolutamente requerida. a força das leis e dela as retirar.
O povo, que é para os nobres o que os súdi­ Ora, um corpo semelhante apenas pode
tos são para o monarca, é coibido por suas reprimir-se de duas maneiras: ou por uma
leis. Aqui o povo tem menos necessidade de grande virtude que faz com que os nobres se
virtude do que na democracia. Porém, como se achem de algum modo iguais a seu povo, coisa
coibirão os nobres? Os que devem mandar que pode formar uma grande república; ou por
executar as leis contra seus colegas sentem uma virtude menor, isto é, certa moderação
imediatamente que agem contra eles próprios. que torna os nobres, pelo menos, iguais entre
Cumpre portanto que, neste corpo, haja virtu­ si, o que faz a sua conservação.
de, pela natureza da constituição. A moderação é portanto a alma desses
O governo aristocrático possui, por si governos. Refiro-me à que se baseia sobre a
mesmo, uma certa força que a democracia não virtude e não à que decorre de uma covardia e
possui. Os nobres formam um corpo que, por preguiça da alma.
sua prerrogativa e interesse particular, reprime
o povo: basta que existam leis para que, a esse
58 Os crimes públicos aí poderão ser punidos pois
respeito, sejam executadas. constituem um assunto coletivo; os crimes particu­
Porém, assim como é fácil para essè corpo lares não serão punidos porque o interesse de todos
reprimir os demais, é difícil que ele reprima a é não puni-los. (N. do A.)

Capítulo V

De como a virtude não é o princípio


do governo monárquico

Nas monarquias, a política manda fazer as Embora, por sua natureza, todos os crimes
grandes coisas com o mínimo de virtude possí­ sejam públicos, distinguimos os crimes verda­
vel, da mesma maneira como, nas máquinas deiramente públicos dos crimes particulares,
mais perfeitas, a arte emprega o menor número assim chamados porque atingem mais uma
possível de movimentos, forças e rodas. pessoa do que toda a sociedade.
O Estado subsiste independentemente de
Ora, nas repúblicas, os crimes particulares
amor pela pátria, do desejo da verdadeira gló­
são os mais públicos, isto é, atentam mais con­
ria, da renúncia a si mesmo, do sacrifício aos
tra a constituição do Estado do que os -indiví­
interesses mais caros e de todas estas virtudes
duos; e, nas monarquias, os crimes públicos
heróicas que encontramos nos Antigos e das
são mais particulares, isto é, atingem mais as
quais apenas ouvimos falar.
fortunas particulares do que a constituição do
As leis ocupam o lugar de todas essas virtu­
próprio Estado.
des, das quais não se tem qualquer necessi­
dade, pois o Estado delas vos dispensa: uma Peço que não se ofendam com o que acabei
ação que se faz silenciosamente e que é, de de dizer pois refiro-me a todas as histórias. Sei
certo modo, sem consequências. muito bem que não raro existem príncipes vir­
52 MONTESQUIEU

tuosos mas digo que, numa monarquia, é mam, creio, o caráter da maioria dos corte­
muito difícil que o povo o seja6 9. sãos, observados em todos os lugares e em
Leia-se o que disseram os historiadores de todos os tempos. Ora, é muito lamentável que
todas as épocas sobre a corte dos monarcas; a maioria dos principais de um Estado sejam
recordem-se as narrativas dos homens de todos pessoas desonestas e que seus inferiores sejam
os países sobre o caráter vil dos cortesãos: não pessoas de bem; que aqueles sejam mentirosos
se trata de coisas de especulação60 mas de e estes só aceitam ser tolos.
uma triste experiência. Porque, se entre o povo encontramos algum
A ambição na ociosidade, a baixeza no infeliz homem honesto61, o Cardeal de Riche-
orgulho, o desejo de enriquecer sem trabalhar, lieu insinua, em seu testamento político62, que
a aversão pela verdade, a lisonja, a traição, a um monarca deve evitar servir-se dele 63, de tal
perfídia, o abandono de todos os compromis­ modo é verdadeiro que a virtude não é a mola
sos, o desprezo pelos deveres do cidadão, o desse governo! Certamente a virtude aí não
medo pela virtude do príncipe, a esperança em está totalmente excluída; mas ela não constitui
suas fraquezas e, mais do que tudo isso, o per­ a sua mola.
pétuo ridículo lançado sobre a virtude, for-
61 Entendei isso no sentido da nota precedente. (N.
59 Refiro-me aqui à Virtude política, que é a virtu­ do A.)
de moral, no sentido de que ela se orienta para o 62 Lembramos que Montesquieu aqui insere como
bem geral; falo muito pouco das virtudes morais nota, nas primeiras edições: “Este livro foi prepa­
particulares e nada dessa virtude que se relaciona rado sçb os olhos e sobre as memórias do Cardeal
com as verdades reveladas. Ver-se-á bem isso no liv. de Richelieu, pelos Srs. de Bourseis e . . . que lhe
V, cap. II. (N. do A.) * eram ligados”.
63 Não é necessário, está dito aí, servir-se das pes­
* Vede a nota de Montesquieu e a nota 49. soas de baixa extração: elas são muito austeras e
60 Coisas de especulação, deduções dos filósofos. muito difíceis (Testament, cap. IV). (N. do A.)

Capítulo VI

Como se supre a virtude no governo


monárquico

Apresso-me e caminho a passos largos a fim tadas, todos serão quase bons cidadãos mas
de que não se creia que faço uma sátira do raramente encontrar-se-á alguém que seja
governo monárquico. Não, se a ele falta uma homem de bem, pois para ser homem de
mola, possui outra: a Honra, isto é, o precon­ bem 6 4 é necessário ter a intenção de sê-lo 6 5 e
ceito de cada pessoa e de cada condição,
amar o Estado mais em si mesmo do que em
ocupa o lugar da virtude política à qual já me
referi e a representa em toda parte. Pode ela interesse próprio.
inspirar as mais belas ações; pode, ligada à
64 Esta palavra, homem de bem, só é entendida
força das leis, levar o governo aos seus objeti­ aqui num sentido político. (N. do A.)
vos como a própria virtude. 6 5 Vede a nota I da página 129 da antiga edição.
Assim, nas monarquias bem regulamen­ (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 53

Capítulo VII

Do princípio da monarquia
O governo monárquico supõe, como disse­ os reconduz. A honra movimenta todas as par­
mos, preeminências, categorias e mesmo uma tes do corpo político; liga-as por sua própria
nobreza de origem. A natureza da honra é exi­ ação, fazendo com que cada uma caminhe
gir preferências e distinções; ela está, portanto, para o bem comum acreditando ir em direção
pela própria coisa, situada neste governo. de seus interesses particulares.
A ambição é perniciosa numa república mas É verdade que, filosoficamente falando, é
acarreta bons resultados na monarquia: dá uma falsa honra que dirige todas as partes do
vida a esse governo com a vantagem de não ser Estado. Porém, esta falsa honra é tão útil ao
perigosa porque pode aí ser incessantemente público como o seria a verdadeira honra para
reprimida. os indivíduos que pudessem tê-la.
Direis que isso se assemelha ao sistema do E já não basta obrigar os homens a cumprir
universo, em que há uma força que afasta todas as ações difíceis que requerem força, sem
incessantemente todos os corpos do centro do outra recompensa que a repercussão dessas
sistema, e uma força de gravidade que para aí ações?

Capítulo VIII

De como a honra não é o princípio dos Estados despóticos

A honra não constitui o princípio dos Esta­ só é poderoso porque pode suprimi-la. Como
dos despóticos; sendo todos os homens iguais, poderia ela tolerar o déspota? Tem regras
não se pode antepor uns aos outros; sendo determinadas e caprichos obstinados; o dés­
todos os homens escravos, ninguém pode ante- pota não observa regulamento algum e seus
por-se a coisa alguma.
caprichos destroem todos os demais.
Demais, como a honra possui suas leis e
regulamentos, não poderia transigir; como A honra — desconhecida nos Estados
depende muito de seu próprio capricho e não despóticos onde amiúde não existe mesmo
do de outra coisa, só pode ser encontrada nos uma palavra para expressá-la 66 — reina nas
Estados em que a constituição é fixa e que pos­ monarquias, dando vida a todo o corpo políti­
suem leis certas. co, às leis e às próprias virtudes.
Como seria ela suportada pelo déspota? Ela
vangloria-se de menosprezar a vida e o déspota 6 8 Vede Perry, pâg. 447. (N. do A.)

Capítulo IX

Do princípio do governo despótico

Tal como a virtude é necessária numa repú­ Aqui, o imenso poder do príncipe passa
blica e a honra necessária numa monarquia, >o inteiramente àqueles a quem ele o confia, e
Medo é necessário num governo despótico; pessoas capazes de cuidar muito de si mesmas
nesse governo, a virtude é totalmente desneces­ seriam capazes de promover revoluções. Cum­
sária, e a honra, perigosa. pre, portanto, que o medo aniquile todas as
54 MONTESQUIEU

coragens e extinga até o menor sentimento de O povo deve ser julgado de acordo com leis
ambição. e os poderosos pelo arbítrio do príncipe; a ca­
Um governo moderado pode, se o quiser, e beça do súdito mais inferior deve estar em
sem se arriscar, distender suas molas, pois se segurança e a dos paxás sempre ameaçada.
mantém por suas leis e por sua própria força. Não se pode falar sem estremecer desses
Mas quando, num governo despótico, o prín­ governos monstruosos. O sufi da Pérsia,
cipe deixa, por um instante, de levantar o destronado, em nossos dias, por Mirivéis, viu o
braço e quando não pode destruir imediata­ governo perecer antes da conquista porque não
mente os que ocupam os postos mais impor­ fez verter bastante sangue 69.
tantes 6 7 tudo está perdido, pois não mais exis­ A História conta-nos como as horríveis
tindo a mola do governo, que é o medo, o povo crueldades de Domiciano aterrorizaram os
não mais possui protetor. governadores, de tal modo que o povo pôde
É provavelmente nesse sentido que os cádis refazer-se um pouco sob seu reinado70. É deste
afirmaram que o grão-senhor não era absoluta­ modo que uma torrente que, numa margem, •
mente obrigado a manter sua palavra ou seu tudo devasta, deixa, na outra, campos onde o
juramento quando isso implicava uma limita­ olhar percebe, de longe, alguns prados.
ção de sua autoridade 68.
69 Vede a história dessa revolução pelo Padre du
6 7 Como constantemente acontece na aristocracia Cerceau. (N. do A.)
militar. (N. do A.) 70 Suet., Domit., cap. VIII. Seu governo era mili­
68 Ricaut, De lÍEmpire Ottoman, liv. I, cap. II. (N. tar, o que constitui um dos tipos de governo despó­
do A.) tico. (N. do A.)

Capítulo X

De como a obediência é diferente nos governos


moderados e nos governos despóticos

A natureza do governo, nos Estados despó­ dão. Se ele estava bêbado ou fora de si, a sen­
ticos, exige uma extrema obediência, e a vonta­ tença deve ser executada do mesmo modo71;
de do príncipe, uma vez conhecida, deve ter sem isso, ele se contradiría e a lei não pode
tão infalivelmente seu efeito quanto uma bola contradizer-se. Esse modo de pensar existiu
atirada contra outra deve ter o seu. sempre nesse país: não podendo ser revogada a
Não há temperamento, modificação, acor­ ordem que Assuero deu de exterminar os
dos, termos, equivalentes, conferências, ad- judeus, preferiu-se dar a eles permissão para se
moestações; não há nada igual ou melhor a ser defenderem.
proposto; o homem é uma criatura que obede­ Há, porém, uma coisa que pode às vezes ser
ce a outra criatura que manda. oposta à vontade do príncipe72: a religião.
Não mais pode expressar seus temores por Pode-se abandonar e mesmo matar o pai, se o
uTn acontecimento futuro, nem atribuir seus príncipe assim o ordenar, mas não se beberá
malogros aos caprichos do acaso. O quinhão vinho, ainda que ele assim queira e ordene. As
dos homens, tal como o dos animais, é o ins­ leis da religião são de preceito superior porque
tinto, a obediência, o castigo. recaem tanto sobre o príncipe como sobre seus
De nada vale colocar obstáculos tais como súditos. Entretanto, não sucede o mesmo com
os sentimentos naturais, o respeito paterno, a o direito natural: supõe-se que o príncipe não
ternura pelos filhos e pelas mulheres, as leis da mais é homem.
honra, o estado de saúde: recebeu-se ordem e Nos Estados monárquicos e moderados, o
isso basta. poder é limitado pelo que constitui seus funda-
Na Pérsia, quando o rei condena alguém, 71 Vede Chardin. (N. do A.)
não mais se pode falar-lhe, nem suplicar per­ 72 Vede Chardin. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 55

mentos; refiro-me à honra que reina como um rente a maneira de obedecer, o poder é, apesar
monarca sobre o príncipe e sobre o povo. Nin­ disso, o mesmo. Para qualquer lado que o
guém lhe alegará as leis da religião; um corte­ monarca se volte, ele decide e precipita a
são acreditar-se-á ridículo: ser-lhe-ão alegadas
balança, e é obedecido. Toda diferença reside
as da honra. Daí resultam modificações neces­
sárias na obediência; a honra está natural­ no fato de que, na monarquia, o príncipe é
mente sujeita a singularidades, e a obediência esclarecido e os ministros são infinitamente
cumprirá todas. mais hábeis e mais versados nos negócios pú­
Nesses dois governos, apesar de ser dife­ blicos do que no Estado despótico.

Capítulo XI

Reflexão sobre tudo isso

Tais são os princípios dos três governos, o monarquia, a honra reine e que, num dado Es­
que não significa que, em determinada repú­ tado despótico, o medo vigore; mas sim que a
blica, se seja virtuoso, mas sim que se deveria honra e o medo deveríam existir, sem o que o
sê-lo. Isso também não prova que, numa certa governo seria imperfeito.
LIVRO QUARTO
DE COMO AS LEIS DEVEM SER RELATIVAS
AOS PRINCÍPIOS DO GOVERNO
Capítulo I

Das leis da educação

As leis da educação são as primeiras que Se o povo em geral possui um princípio, as


recebemos. E, como elas nos preparam para partes que o compõem, isto é, as famílias, tam­
sermos cidadãos, cada família particular deve bém o terão. Portanto, em cada tipo de gover­
ser governada de acordo com o plano da gran­ no as leis da educação serão diferentes. Nas
de família que abrange todas73. monarquias, terão por objeto a honra; nas
7 3 Aristóteles, Política, liv. V, cap. IX. repúblicas, a virtude; no despotismo, o medo.

Capítulo II

Da educação nas monarquias

Nas monarquias, não é nas escolas públicas qual os costumes nunca são tão puros nas
que se instrui a infância, que se recebe a princi­ monarquias como nos governos republicanos.
pal educação: a educação começa de alguma Permite a astúcia quando está unida à idéia
maneira quando se participa da vida. E aqui da grandeza do espírito ou da grandeza da
está a escola do que chamamos honra, esta questão, como, por exemplo, na política, cujas
preceptora universal que deve, em toda parte, sutilezas não a ofendem.
nos orientar. A honra só coíbe a adulação quando esta
Lá é que sempre vemos e ouvimos dizer três está isolada da idéia de uma grande fortuna e
coisas: “Nas virtudes devemos inserir certa quando só se associa ao sentimento de sua pró­
nobreza; nos costumes, certa franqueza; nas pria baixeza. Afirmei, a respeito dos costumes,
maneiras, certa polidez”. que a educação das monarquias deve neles
As virtudes que ali nos são mostradas são introduzir uma certa franqueza. Pretende-se,
sempre menos o que devemos aos outros do portanto, que a verdade exista nas palavras.
que o que devemos a nós próprios; não são Mas será que isso é por amor a ela? De modo
tanto o que nos aproxima de nossos concida­ algum. Desejamo-la porque um homem acos­
dãos mas o que deles nos diferencia. tumado a proclamá-la parece ser audacioso e
Não se julga a ação dos homens como boas livre. Com efeito, tal homem parece depender
mas como belas, não como justas mas como apenas das coisas e não das maneiras pelas
grandiosas, não como razoáveis mas como quais outro as recebe.
extraordinárias. Isso faz com que, tanto como recomen­
Desde que a honra, nas monarquias, pode damos esta espécie de franqueza, desprezemos
encontrar alguma coisa nobre, ela é o juiz que a do povo, que só possui como objetivo a ver­
as torna legítimas ou o sofista que as justifica. dade e a simplicidade.
Permite a galanteria quando está associada Finalmente, a educação, nas monarquias,
à idéia dos sentimentos dó coração, ou à idéia requer uma certa polidez nas maneiras. Os
de conquista, e é este o verdadeiro motivo pelo homens, nascidos para viver em sociedade,
60 MONTESQUIEU

nasceram também para se agradar mutua­ Nas monarquias, não há nada que prescreva
mente, e quem não observasse as conveniên­ tanta obediência às vontades do príncipe como
cias* ofendendo todos com quem convivesse, as leis, a religião e a honra. Porém, esta honra
desacreditar-se-ia a ponto de se tornar incapaz nos afirma que o príncipe nunca nos deve pres­
de praticar qualquer bem. crever uma ação que nos desonre, pois ela
Porém não é de tão pura fonte que a polidez tornar-nos-ia incapazes de servi-lo.
costuma extrair sua origem. Nasce ela do dese­ Crillon recusou-se a assassinar o Duque de
jo de se distinguir. Ê pelo orgulho que somos Guise mas se ofereceu a Henrique III para
delicados: sentimo-nos lisonjeados de possuir bater-se contra ele. Depois da noite de São
boas maneiras que provam que não perten­ Bartolomeu, tendo Carlos IX determinado a
cemos às camadas baixas e que não convive­ todos os governadores que exterminassem os
mos com éste tipo de gente que, em todas as huguenotes, o Visconde d’Orte, que governava
épocas, se desdenhou. na Bayonne, escreveu ao rei74: “Sire, encon­
Nas monarquias, é na corte que a polidez trei entre os habitantes e militares apenas bons
está implantada. Um homem excessivamente cidadãos e valentes soldados e nenhum carras­
grande torna pequenos todos os demais. co; assim, eu e eles suplicamos a Vossa Majes­
Decorre daí o respeito que devemos a todos; tade empregar nossos braços e nossas vidas em
daí nasce a polidez que lisonjeia tanto os que coisas factíveis”. Essa grande e generosa cora­
são polidos como aqueles com quem o somos, gem considerava uma covardia como algo
porque a polidez faz com que se compreenda impossível.
que somos da corte ou que somos dignos de Não há nada que a honra prescreva mais à
sê-lo. nobreza do que servir ao príncipe na guerra.
O vezo da corte consiste em substituir sua Com efeito, é a profissão distinguida porque
grandeza própria por uma grandeza empres­ seus acasos, seus sucessos e mesmo seus reve­
tada. Essa lisonjeia mais um cortesão do que a ses conduzem à grandeza. Mas a honra, ao
sua própria. Ela confere uma certa modéstia impor esta lei, dela quer ser o árbitro e, se se
desdenhosa que se propala ao longe mas cujo julgar violada, exige ou permite que nos retire­
orgulho diminui insensivelmente na proporção mos do país.
da distância em que se está da fonte dessa Pretende a honra que possamos indiferente­
grandeza. mente aspirar aos empregos ou recusá-los e
mantém esta liberdade acima da própria
Encontramos na corte uma delicadeza de
fortuna.
gosto em todas as coisas que decorre de um
Possui a honra, portanto, suas regras supre­
uso contínuo das superfluidades de uma gran­
mas e a educação é obrigada a se conformar a
de fortuna, da variedade e sobretudo do tédio
elas7 5. As principais são: é-nos permitido atri­
dos prazeres, da multiplicidade, da própria
buir importância à nossa fortuna porém nos é
confusão das fantasias que, quando são agra­
soberanamente vedado atribuir qualquer im­
dáveis, são sempre bem recebidas.
portância à nossa vida7 6.
A educação baseia-se sobre todas essas coi­
A segunda estipula que, quando tenhamos
sas para constituir o que chamamos homem de
por uma vez ocupado uma posição, não deve­
bem, senhor de todas as qualidades e virtudes
mos fazer, nem tolerar nada que revele que
exigidas nesse tipo de governo.
somos inferiores a esta mesma posição.
Aqui a honra, imiscuindo-se em tudo, pene­
tra em todos os modos de pensar e em todas as
7 4 Vede a Histoire de d’Aubigné. (N. do A.)
maneiras de sentir, orientando até mesmo os 7 5 Dizemos aqui o que é e não o que deveria ser: a
princípios. honra é um preconceito que a religião trabalha, ora
Essa honra extravagante faz com que as vir­ para destruir, ora para regulamentar. (N. do A.)
7 6 Lemos em Bossuet (Discours sur l'Histoire
tudes não sejam o que ela deseja e como ela as Universelle, 3.“ parte, cap. VI): “Que torna nossa
deseja: introduz, por sua própria conta, regula­ nobreza tão altiva nos combates e tão ousada nos
mentos em tudo o que nos é prescrito; amplia empreendimentos? É a opinião recebida desde a
ou limita, a seu bel-prazer, nossos deveres, infância e estabelecida pelo sentimento unânime da
nação, que um gentil-homem sem coração [sem
quer esses se originem da religião, da política coragem] degrada a si próprio e não é digno de vir
ou da moral. ao mundo”.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 61

A terceira diz que as coisas que a honra que aquelas que a honra exige são mais forte­
proíbe são mais rigorosamente proibidas quan­ mente exigidas quando as leis não as reqües-
do as leis não contribuem para proscrevê-las e tam.

Capítulo III

Da educação no governo despótico

Como nas monarquias a educação não se ples de religião. O saber aí será perigoso, a
aplica senão em enobrecer os sentimentos, nos emulação, funesta; e, no que se refere às virtu­
Estados despóticos ela procura apenas aviltá- des, Aristóteles não pode acreditar que exista
los. Cumpre que a educação, nesses Estados, alguma própria aos escravos7 7, fato que muito
seja servil. Será uma vantagem ter tido seme­ limitaria a educação nesses governos.
lhante educação, mesmo no comando, pois aí Portanto a educação, nessas formas de
ninguém será tirano sem ser ao mesmo tempo governo, é de alguma maneira nula. Precisa
escravo. tirar tudo a fim de dar algo e, para formar um
bom escravo, começa por formar um mau
A extrema obediência supõe ignorância em
súdito.
quem obedece; supÕe-na mesmo em quem
Ah! Por que se esmeraria a educação em
comanda; este nada tem a deliberar, a duvidar,
formar um bom cidadão que participasse da
nem a raciocinar; basta querer.
desgraça pública? Se ele amasse o Estado seria
Nos Estados despóticos, cada casa é um tentado a solapar os fundamentos do governo:
império separado. A educação, que consiste se não o lograsse, perder-se-ia; se o conse­
principalmente em viver com os outros, é por­ guisse, correría o risco de se perder, ele, o prín­
tanto muito limitada; reduz-se a introduzir o cipe e o império.
medo no coração e a conferir ao espírito o
conhecimento de alguns princípios muito sim­ 7 7 Política, liv. I, cap. III. (N. do A.)

Capítulo IV

Dos diferentes efeitos da educação


entre os Antigos e nós

A maioria dos povos antigos vivia em Hoje, recebemos três educações diferentes
governos cujo princípio era a virtude; e, desde ou contrárias: a de nossos pais, a de nossos
que esta estava no auge de seu vigor, faziam-se
coisas que hoje não mais vemos e que assom­ mestres e a da sociedade. O que nos é dito na
bram nossas frágeis almas. última destrói todas as idéias das primeiras.
Sua educação possuía outra vantagem sobre Isso decorre, em parte, do contraste existente
a nossa: nunca era desmentida. Epaminondas, em nosso meio entre os compromissos da reli­
no derradeiro ano de sua vida, dizia, escutava,
via e fazia as mesmas coisas que na idade em gião e os da sociedade, fato que os Antigos
que começara a ser instruído. desconheciam.
62 MONTESQUIEU

Capítulo V

Da educação no governo republicano

É no governo republicano que se tem neces­ Este amor é singularmente característico


sidade de toda a força da educação. O temor das democracias. Somente nelas o governo é
dos governos despóticos nasce de si mesmo, confiado a cada cidadão. Ora, o governo é
entre as ameaças e castigos; a honra das como todas as coisas do mundo: para conser­
monarquias é favorecida pelas paixões e favo- vá-lo é necessário amá-lo.
rece-as por sua vez. Mas a virtude política é Nunca ouvimos dizer que os reis não amas­
uma renúncia a si próprio, que é sempre algo sem a monarquia e que os déspotas odiassem o
muito penoso. despotismo.
Podemos definir esta virtude como o amor Tudo depende, portanto, de implantar na
pelas leis e pela pátria78. Este amor, exigindo república esse amor, e é para inspirá-lo que a
sempre a supremacia do interesse público educação deve estar atenta. Mas para que as
sobre o interesse particular, produz todas as crianças possam tê-lo há um meio seguro: é
virtudes individuais; elas nada mais são do que que os próprios pais o possuam.
esta supremacia. Somos geralmente senhores para incutir em
nossos filhos nossos conhecimentos; somo-lo
7 8 “A essência de um romano era o amor por sua
liberdade e por sua pátria. Uma dessas coisas o ainda mais para incutir neles nossas paixões.
fazia amar a outra porque, como amava sua liber­ Se isso não acontece é porque o que foi feito
dade, amava também sua pátria como uma mãe que na casa paterna é destruído pelas impressões
o nutria nos sentimentos igualmente generosos e externas.
livres. Sob o nome de liberdade, os romanos imagi­
navam, tal como os gregos, um Estado em que Não é a nova geração que se degenera; essa
todos só fossem súditos da lei, e em que a lei fosse só se perde quando os homens maduros já
mais poderosa que os homens.” (Bossuet, ibid.) estão corrompidos.

Capítulo VI

De algumas instituições dos gregos

Os antigos gregos, compenetrados da neces­ todos os hábitos recebidos, ao confundirem


sidade de que os povos que viviam sob um todas as virtudes, mostrariam ao universo sua
governo popular fossem educados na virtude, sabedoria. Licurgo, associando o furto ao espí­
criaram, para inspirá-la, instituições singula­ rito de justiça, a mais severa escravidão à
res. Quando vedes, na vida de Licurgo, as leis extrema liberdade, os sentimentos mais atrozes
que ele deu aos lacedemônios, julgais ler a his­
à maior moderação, deu estabilidade à sua
tória dos sevarambes79. As leis de Creta eram
cidade. Pareceu suprimir-lhe todos os recursos,
o original das da Lacedemônia, e as de Platão,
as artes, o comérdio, o dinheiro, as muralhas:
sua correção.
Peço que se atente um pouco para a gran­ tinha-se ambição sem esperança de progredir;
deza de gênio que foi necessária a esses legisla­ possuíam-se os sentimentos naturais mas não
dores a fim de que se veja que, ao contrariarem se era nem criança, nem marido, nem pai; até a
castidade estava destituída de pudor. Por esses
79 A Histoire des Sévarambes é um romance apa­ caminhos Esparta foi levada à grandeza e à
recido por volta de 1671, de autoria de Vairasse
d’Allais. Era uma imitação vulgar da Utopia de glória; mas ã infalibilidade de suas instituições
Thomas Morus. era tal que nada se obteria contra ela vencendo
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 63

batalhas, se não se conseguisse suprimir sua mostrou, nessas regiões, a idéia da religião
polícia80. unida à da humanidade. Reparando as devas­
Creta e a Lacônia foram governadas por tações dos espanhóis, começou por sanar uma
essas leis. A Lacedemônia foi a última a capi­ das grandes pragas que o gênero humano ja­
tular perante os macedônios e Creta81 foi a mais recebeu.
derradeira presa dos romanos. Os samnitas Um sentimento raro que essa sociedade tem
possuíram essas mesmas instituições e elas por tudo o que se denomina honra, seu zelo
foram para esses romanos o motivo de vinte e por uma religião que humilha muito mais os
quatro triunfos82. que escutam do que os que a pregam, fizeram-
Esta singularidade que encontramos nas na empreender grandes coisas; e ela obteve
instituições da Grécia, vimo-la na escória e na êxito. Retirou das florestas povos dispersos;
corrupção dos tempos modernos83. Um legis­ garantiu-lhes uma subsistência; vestiu-os. E
lador honesto formou um povo no qual a pro­ mesmo que com isso nada mais tivesse feito do
bidade parecia tão natural quanto a bravura que aumentar a indústria entre os homens,
entre os espartanos. Penn8 4 é um verdadeiro teria feito muito8 7.
Licurgo e, apesar de o primeiro ter tido a paz Os que quiserem criar instituições seme­
por objetivo como o outro teve a guerra, lhantes devem estabelecer a comunidade de
ambos se assemelham pelo caminho singular bens da República de Platão, o respeito que
pelo qual conduziram seu povo, na ascen­ esse exigia para com os deuses, a separação
dência que tiveram sobre homens livres, nos dos estrangeiros para a conservação dos costu­
preconceitos que venceram, nas paixões que mes, cabendo o comércio à cidade e não aos
dominaram. cidadãos; implantarão nossas artes sem nosso
O Paraguai pode oferecer-nos outro exem­ luxo e nossas necessidades sem nossos desejos.
plo. Quiseram imputar à Companhia* 5, como Deverão proscrever o dinheiro, cujo efeito é
um crime, o fato de ela ter considerado o pra­ aumentar a fortuna para além dos limites que a
zer de comandar como o único bem da vida; natureza estabeleceu; ensinar a conservar
porém será sempre belo governar os homens inutilmente o que se acumulara do mesmo
tornando-os mais felizes8 6. modo; multiplicar ao infinito os desejos e su­
É glorioso para ela ter sido a primeira que prir a natureza que nos dera meios muito limi­
tados de estimular nossas paixões e de nos cor­
80 Filopêmen obrigou os lacedemônios a abando­ romper mutuamente.
narem a maneira de alimentar seus filhos, sabendo “Os epidamnianos88*, vendo seus costumes
bem que, sem isso, teriam sempre uma alma grande corromperem-se por causa de seu contato com
e o coração elevado. Plutarco, Vida de Filopêmen. os bárbaros, elegeram um magistrado para efe­
Vede Tito Lívio, liv. XXXVIII. (N. do A.)
81 Defendeu, durante três anos, suas leis e sua tuar todas as transações em nome da cidade e
liberdade. Vede os livros XCVIII, XCIX e C de para a cidade.” Assim, o comércio não cor­
Tito Lívio, no Epítome de Floro. Ofereceu mais rompe a constituição e a constituição não
resistência que os grandes reis. (N. do A.) priva a sociedade das vantagens do comércio.
82 Floro, liv. I, cap. XVI. (N. do A.)
83 In Fece Romuli, Cícero, Cartas a Ático, II, I.
(N. do A.) 8 7 Os jansenistas reprovaram todo esse trecho por
8 4 William Penn, legislador da Pensilvânia. ser muito favorável aos jesuítas, os quais, por seu
8 5 Jesuítas. lado, não o consideraram suficientemente respei­
8 6 Os índios do Paraguai não dependem de um se­ toso. (Cf. Montesquieu, Lettre à M. de Stainville, 27
nhor particular; pagam apenas um quinto dos tribu­ de maio de 1750.)
tos e possuem armas de fogo para se defender. (N. 88 Plutarco, Questões Gregas, cap. XXIX. (N. do
do A.) A.)
64 MONTESQUIEU

CAPÍTULO VII

Em que caso essas instituições singulares


podem ser boas

Estas espécies de instituições podem convir supõem uma atenção especial de todos os cida­
às repúblicas porque a virtude política é seu dãos uns para com os outros. Isso não pode ser
princípio. Entretanto, nas monarquias, para assegurado na confusão, nas negligências, na
chegar à honra, ou nos Estados despóticos, extensão dos interesses de um grande povo.
para inspirar o temor, não são necessários tan­ Cumpre, como se disse, abolir, nessas insti­
tos cuidados. tuições, o dinheiro. Porém, nas grandes socie­
Aliás, elas só podem ocorrer num pequeno dades, o número, a variedade, os obstáculos, a
Estado89, onde se pode dar uma educação importância dos negócios, a facilidade das
geral e educar como uma família todo um aquisições, a lentidão das trocas, exigem uma
povo. medida comum. Para exercer seu poder ou
As leis de Minos, de Licurgo e de Platão defendê-lo por toda parte, é mister possuir
aquilo a que, em toda parte, os homens asso­
89 Como eram as cidades da Grécia. (N. do A.) ciaram o poder.

Capítulo VIII

Explicação de um paradoxo dos Antigos


com relação aos costumes

Políbio, o judicioso Políbio, conta-nos90 Assim elaboraram as leis: assim queriam que
que a música era necessária para suavizar os se governassem as cidades.
costumes dos arcádios que habitavam uma Creio que poderia explicar isso. Deve-se ter
região onde o clima era triste e frio; que os de em mente que, nas cidades gregas, especial­
Cineta, que negligenciaram a música, excede­ mente as que tinham a guerra por finalidade
ram em crueldade todos os gregos e que não há principal, todos os trabalhos e todas as profis­
cidade em que se tenham visto tantos crimes. sões que poderíam acarretar lucro monetário
Platão91 não receia dizer que não se pode eram considerados indignos de um homem
fazer alteração na música sem que haja outra livre. “A maioria dos ofícios”, diz Xenofon-
na constituição do Estado. Aristóteles, que pa­ te9 5, “corrompe o corpo dos que os exercem;
eles obrigam a sentar-se à sombra ou perto do
rece só ter escrito sua Política para opor seus
fogo; não se tem tempo nem para os amigos
sentimentos aos de Platão, está, -contudo, de
nem para a república.” Foi somente quando da
acordo com ele quanto à influência da música corrupção de algumas democracias que os
sobre os costumes92. Teofrasto, Plutarco93, artesãos chegaram a ser cidadãos. É o que nos
Estrabão94, todos os Antigos pensaram do ensina Aristóteles9 6; afirma ele que uma boa
mesmo modo. Não é uma opinião lançada sem república nunca lhes dará o direito de cidada­
reflexão: é um dos princípios de sua política. nia9 7.
90 História, liv. IV, cap. XX, XXI. 9 5 Liv. V, Sentenças Memoráveis. (Econômica, cap.
91 Da República, liv. IV. Incluíam-se na “música” a IV.) (N. do A.)
Eloquência, a Poesia e a História. 9 6 Política, liv. III, cap. IV. (N. do A.)
92 Política, liv. VIII, cap. V. 9 7 Diofanto, afirma Aristóteles, Política, liv. II, cap.
93 Vida de Pelópidas. (N. do A.) VII, determinou outrora, em Atenas, que os arte­
9 4 Liv. I. (N. do A.) sãos seriam escravos do público. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 65

Era também a agricultura uma profissão tavam ser moderados por outros que pudessem
servil, sendo geralmente algum povo vencido amenizar os costumes. A música, que se trans­
que a exercia: os hilotas, entre os lacedemô- mite ao espírito pelos órgãos do corpo, era
nios; os periecos, entre os cretenses; os penes- muito adequada para isso. Constitui um meio-
tos, entre os tessálios; outros98 povos escra­ termo entre os exercícios do corpo que fazem
vos, em outras repúblicas. os homens duros e as ciências de especulação
Enfim, todo o baixo comércio99 era degra­ que os tornam selvagens. Não podemos dizer
dante entre os gregos. Para exercê-lo teria sido que a música inspirasse virtude; isso seria
necessário que um cidadão prestasse serviços a inconcebível. Entretanto, impedia o efeito da
um escravo, a um arrendatário, a um estran­ brutalidade da instituição e fazia com que a
geiro; tal idéia contrariava o espífito da liber­ alma tivesse na educação uma parte que não
dade grega. Desta maneira, Platão1 °°, em suas teria tido.
Imagino que houvesse entre nós um grupo
leis, pretende que se castigue o cidadão que
de pessoas tão apaixonadas pela caça que só se
pratique o comércio.
ocupassem dela; indubitavelmente adquiriríam
Ficava-se, portanto, extremamente confuso certa rudeza. Se essas mesmas pessoas passas­
nas repúblicas gregas. Não se desejava que os sem a apreciar a música, veriamos logo uma
cidadãos trabalhassem no comércio, na agri­ diferença nas suas maneiras e nos seus costu­
cultura, nem nos ofícios, e também não se mes. Finalmente, os exercícios dos gregos esti­
desejava que fossem ociosos101. Encontravam mulavam apenas um gênero de paixões: a
eles ocupação nos exercícios que dependiam rudeza, a cólera, a crueldade. A música esti­
da ginástica e nos que se relacionavam com a mula todas elas, e pode fazer com que a alma
guerra102. A instituição não lhes oferecia sinta a doçura, a piedade, a ternura, o prazer
outras. Portanto, deve-se considerar os gregos suave. Nossos autores moralistas que, entre
como uma sociedade de atletas e de guerreiros. nós, proscrevem tão energicamente os teatros
Ora, esses exercícios, tão adequados para tor­ fazem-nos sentir claramente o poder que a mú­
nar os homens duros e selvagens103, necessi­ sica possui sobre nossos espíritos.
Se déssemos ao grupo a que me referi músi­
98 Destarte, Platão e Aristóteles querem que os ca suave em vez de apenas tambores e árias de
escravos cultivem as terras, Leis, liv. VII; Política,
liv. VII, cap. X. É verdade que a agricultura não era trombeta não é verdade que alcançaríamos
exercida em toda parte pelos escravos; ao contrário, melhor nosso objetivo? Portanto, os Antigos
como diz Aristóteles (Pol., liv. VI, cap. IV), as tinham razão quando, em certas circunstân­
melhores repúblicas eram aquelas cujos cidadãos a
ela se dedicavam. Porém, isso só ocorreu com a cor­ cias, preferiam, para os costumes, uma modali­
rupção dos antigos governos que se tomaram dade à outra.
democráticos, pois, nos primeiros tempos, as cida­ Mas, dir-se-á, por que dar preferência à mú­
des da Grécia viviam na aristocracia. (N. do A.) sica? É que, de todos os prazeres dos sentidos,
99 Cauponatio. (N. do A.)
100 Liv. II. (N. do A.) não há nenhum que corrompa menos a alma.
101 Aristóteles, Política, liv. X. (N. do A.) Enrubescemos ao lermos em Plutarco104 que
102 A rs corporum exercendorum, gymnastica; va- os tebanos, para suavizar os costumes de seus
riis certaminibus terendorum, poedotribica. Aristó­ jovens, estabeleceram, por meio de leis, um
teles, Política, liv. VIII, cap. III. (N. do A.) amor que deveria ser proscrito por todas as
103 Aristóteles diz que as crianças lacedemônias,
que começavam esses exercícios desde a mais tenra nações do mundo.
idade, adquiriam muita ferocidade. Política, liv.
VIII, cap. IV. (N. do A.) 10 4 Vida de Pelópidas, cap. X. (N. do A.)
LIVRO QUINTO
DE COMO AS LEIS DECRETADAS PELO LEGISLADOR
DEVEM SER RELATIVAS AOS PRINCÍPIOS DO GOVERNO
Capítulo I

Idéia deste livro

Acabamos de verificar que as leis da educa­ be daí, por sua vez, uma nova força. É assim
ção devem relacionar-se com o princípio de que, nos movimentos físicos, a ação é sempre
cada governo, assim como as que o legislador seguida de uma reação.
promulga para toda a sociedade. Esta relação Examinaremos essa relação em cada gover­
das leis com este princípio fortalece todos os no; começaremos pelo Estado republicano que
fundamentos do governo e esse princípio rece­ tem a virtude como princípio.

Capítulo II

O que é a virtude no Estado político

A virtude, numa república, é algo muito costumes, e a pureza dos costumes acarreta o
simples; é o amor pela república, é um senti­ amor pela pátria. Quanto menos podemos
mento e não uma série de conhecimentos; satisfazer nossas paixões individuais, tanto
tanto o último dos homens do Estado quanto o mais nos entregamos às gerais. Por que os
primeiro podem possuir esse sentimento. O monges amam tanto sua ordem? Exatamente
povo, uma vez que tem boas máximas, a elas pelo que ela tem de insuportável. Seu regula­
se atém por mais tempo que as chamadas pes­ mento os priva de todas as coisas em que se
soas de bem. Raramente a corrupção começa apoiam as paixões comuns; resta, pois, essa
por ele. Frequentemente extrai da mediocri­ paixão pelo próprio regulamento que os morti-
dade de seus conhecimentos um apego mais fica. Quanto mais austero for ele, isto é, quan­
forte pelo que está estabelecido. to mais restringir-lhes as inclinações, .tanto
O amor pela pátria acarreta a pureza dos mais força dará às que lhes deixa.

Capítulo III

O que é o amor pela república na democracia

O amor pela república, numa democracia, é lentar as mesmas esperanças, coisa que só se
o amor pela democracia; o amor pela demo­ pode esperar da frugalidade geral.
cracia é o amor pela igualdade. O amor pela igualdade, numa democracia,
O amor pela democracia é também o amor limita a ambição unicamente ao desejo, è "eli-
pela frugalidade. Nesse regime, devendo todos cidade de prestar à sua pátria serviços maiores
gozar da mesma felicidade e das mesmas rega­ que os outros cidadãos. Todos não podem
lias, devem fruir dos mesmos prazeres e aca­ prestar-lhe serviços iguais; mas todos devem
70 MONTESQUIEU

igualmente prestar-lhos. Ao nascer contraímos Atenas e em Roma. Nessa época, a magnifi­


para com ela uma imensa dívida da qual nunca cência e a abundância nasciam do seio da pró­
podemos desobrigar-nos. pria frugalidade. E, assim como a religião
Assim, nas democracias, as distinções nas­ exige que se tenham as mãos puras para pres­
cem do princípio da igualdade, mesmo quando tar oferendas aos deuses, as leis exigiam costu­
essa parece destruída por serviços excepcio­ mes frugais para que se pudesse ofertar à
nais ou por talentos superiores. pátria.
O amor pela frugalidade limita o desejo de O bom senso e a felicidade dos indivíduos
possuir à atenção exigida pelo necessário para consiste muito na mediocridade10 5 de seus
a família e até pelo supérfluo para a pátria. As talentos e de suas fortunas. Uma república
riquezas oferecem um poderio de que um cida­ onde as leis tenham formado muitas pessoas
dão não pode beneficiar-se sob pena de preju­ medíocres, orientada por pessoas sábias, go-
dicar a igualdade: proporcionam delícias de vernar-se-á sabiamente; orientada por pessoas
que tampouco deve fruir porque, do mesmo felizes, será felicíssima.
modo, seriam contrárias à igualdade.
Destarte, as boas democracias, estabele­ 105 A mediocridade. Devemos afastar todo sentido
pejorativo desta palavra se não quisermos que ela se
cendo a frugalidade doméstica, abriram a volte terrivelmente contra tudo o que Montesquieu
porta às despesas públicas, como se fez em parece querer elogiar.

Capítulo IV

Como se inspira o amor pela


igualdade e pela frugalidade

O amor pela igualdade e o pela frugalidade corrompidos pelo deleite não apreciarão a vida
são extremamente estimulados pela própria frugal e, se isso fosse natural ou comum, Alci-
igualdade e frugalidade, quando se vive numa bíades não teria provocado a admiração do
sociedade onde as leis estabeleceram uma e universo. Não serão também os que invejam
outra. ou admiram o luxo dos outros que apreciarão
Nas monarquias e nos Estados despóticos, a frugalidade; indivíduos que só têm diante dos
ninguém aspira à igualdade; isso nem ocorre olhos homens ricos ou miseráveis como eles
aos espíritos; cada um almeja a superioridade. odeiam sua misé ia sem amar ou conhecer o
As pessoas das mais baixas condições delas que extermina a miséria.
desejam sair apenas para serem senhoras de Logo, é bem verdadeira a seguinte máxima:
outras. numa república, para que se ame a igualdade e
O mesmo ocorre com a frugalidade; para a frugalidade, é mister que as leis as tenham
amá-la é necessário exercê-la. Os que são estabelecido.

Capítulo V

Como as leis estabelecem


a igualdade na democracia

Alguns legisladores antigos, como Licurgo e estava tão corrompida e os espíritos numa tal
Rômulo, dividiram igualmente as terras. Isso disposição que os pobres se consideravam
só poderia ter acontecido na fundação de uma obrigados a procurar semelhante solução e os
república nova ou, então, quando a lei antiga ricos a ela resignar-se.
DO ESPIRITO DAS LEIS I 71

Se, quando o legislador realiza tal partilha, coubessem a uma mesma pessoa. Quando um
não elabora leis para assegurá-la, cria apenas homem desposava a irmã do ramo paterno, só
uma constituição efêmera: a desigualdade podia ter uma herança, que era a de seu pai;
infiltrar-se-á pelo lado em que as leis não a te­ porém, quando desposava a irmã uterina,
nham obstado, e a república estará perdida. podia ocorrer que o pai desta irmã, não tendo
Cumpre, portanto, neste caso, que se regula­ filhos varões, lhe deixasse a sucessão e, por
mentem os dotes das mulheres, as doações, as consequência, seu irmão que a desposava teria
heranças, os testamentos, enfim, todas as for­ duas.
mas de contrato, pois, se fosse permitido doar Não se me objete o que diz Filon111 que,
os bens como e a quem se entendesse, cada embora em Atenas se desposasse a irmã
vontade particular perturbaria a disposição da consangüínea e não a uterina, podia-se, na
lei fundamental. Lacedemônia, desposar a irmã uterina e não a
Sólon, que permitia, em. Atenas, que se consangüínea, pois encontro em Estrabão112
legassem os bens por testamento a quem se que, na Lacedemônia, quando uma irmã des­
entendesse, desde que não se tivessem fi­ posava o irmão, recebia por dote a metade da
lhos1 0 6, contrariava as leis antigas, as quais parte dele. É patente que esta segunda lei tinha
ordenavam que os bens permanecessem na sido estabelecida para evitar as conseqüências
família do testador10 7. Contradizia suas pró­ negativas da primeira. A fim de se impedir que
prias leis porque, ao abolir as dívidas, procu­ os bens da família da irmã passassem à do
rara a igualdade. irmão, dava-se como dote para a irmã a meta­
Era uma boa lei para a democracia a que de dos bens do irmão.
Sêneca113, referindo-se a Siíano, que despo-
interditava a posse de duas heranças108. Ela
sara a irmã, conta que em Atenas a permissão
originara-se na divisão eqüitativa das terras e
era restrita e que, em Alexandria, era geral11 4.
dos lotes outorgados a cada cidadão. A lei não
No governo único quase não era necessário
pretendera que um só homem possuísse vários
manter a partilha dos bens.
lotes. Para assegurar, na democracia, essa divisão
A lei que ordenava que o parente mais pró­ das terras, era boa a lei que estipulava que o
ximo desposasse a herdeira tinha uma origem pai de muitos filhos escolhesse um para herdar
semelhante. Era aplicada entre os judeus após a sua parte11 5 e desse os outros em adoção a
tal partilha. Platão109, que fundamentou suas alguém que não tivesse filhos, a fim de que o
leis nessa partilha, igualmente a instituiu: e era número dos cidadãos fosse sempre igual ao
uma lei ateniense. das partilhas.
Existia em Atenas uma lei cujo espírito não Faleas da Calcedônia11 6 imaginara um
sei se alguém compreendeu. Era permitido des- modo de igualar as fortunas numa república
posar a irmã consangüínea mas não a irmã em que elas não eram iguais. Desejava que os
uterina1»10. Esse costume originara-se nas ricos não recebessem e oferecessem dotes aos
repúblicas, cujo espírito era evitar que duas pobres e que os pobres recebessem dinheiro
glebas, e consequentemente duas heranças, pelas suas filhas e não o dessem. Porém, que
eu saiba, não há república que se tenha confor­
I 0 6 Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.) mado com tal regulamento. Ele coloca os cida­
'0 7 Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.) dãos, cujas diferenças são tão flagrantes, sob
108 Filolau de Corinto estabeleceu em Atenas
[lede: em Tebas] que o número dos lotes de terra e condições tais que eles odiariam esta própria
das heranças seria sempre o mesmo. (Aristóteles,
Política, liv. II, cap. XII.) (N. do A.) 111 De Specialibus Legibus quae Pertinent ad
109 República, liv. VIII. (N. do A.) Praecepta Decalogi. (N. do A.)
II 0 Cornélio Nepos, in praefat. (Neque enim Ci- 11 2 Liv. X. (N. do A.)
monifuit turpe, Atheniensium summo viro, sororem 11 3 Athenis dimidium licet, Alexandriae totum. Sê­
germanam habere in matrimônio, quippe quum eive neca, De Morte Claudii. (N. do A.)
ejus eodem uterentur instituto. At id quidem nostris 11 4 Sêneca deixa simplesmente entender uma sus­
moribus nefas habetur.) Este era o uso dos primei­ peita de incesto. Oficialmente, semelhante casa­
ros tempos. Assim, diz Abraão a Sara: Ela é minha mento nunca teria sido tolerado em Roma.
irmã, filha de meu pai e não de minha mãe. (Gênese, 11 5 Platão fez uma lei semelhante, liv. III das Leis.
cap. XX.) As mesmas razões ocasionaram o estabe­ (N. do A.)
lecimento de uma mesma lei entre diferentes povos. 11 6 Aristóteles, Política, liv. II. cap. VII. (N. do
(N. do A.) A.)
72 MONTESQUIEU

igualdade que se tenta introduzir. Cumpre, Toda desigualdade numa democracia deve
algumas vezes, que as leis não pareçam ir tão ter sua origem na natureza da democracia e no
diretamente ao fim que se propõem. próprio princípio da igualdade. Por exemplo,
Embora na democracia a igualdade real seja pode-se temer que pessoas que, para viver, têm
a alma do Estado, ela é tão difícil de ser esta­ necessidade de um trabalho contínuo fiquem
belecida que um rigor exagerado a esse res­
peito nem sempre é conveniente. Basta que se muito empobrecidas por uma magistratura ou
estabeleça um censo11 7 reduzindo as diferen­ negligenciem suas funções; que os artesãos se
ças a um certo ponto; em seguida, cabe às leis tornem orgulhosos; que os escravos forros se
particulares nivelar, por assim dizer, as desi­ tornem mais poderosos que os próprios anti­
gualdades, através dos encargos que impõem gos cidadãos. Nesses casos a igualdade entre
aos ricos e do alívio que concedem aos pobres. os cidadãos11 8 deve ser suprimida na demo­
Só as riquezas medíocres podem dar ou supor­ cracia para o bem da democracia. Entretanto,
tar estas espécies de compensações, pois, para suprime-se apenas uma igualdade aparente
as fortunas imoderadas, tudo o que não lhes porque um homem arruinado por uma magis­
concede poder e honra é encarado como uma tratura estaria numa situação pior que a dos
ofensa.
outros cidadãos e esse mesmo homem que
11 7 Sólon estabeleceu quatro classes: a primeira, seria obrigado a negligenciar as funções colo­
dos que possuíam quinhentas minas de rendimento, caria os demais cidadãos numa condição pior
em grãos ou em frutos líquidos; a segunda, dos que do que a sua; e assim por diante.
possuíam trezentas e podiam manter um cavalo; a
terceira, dos que só possuíam duzentas; a quarta, de
todos os que viviam de seu trabalho. Plutarco, Vida 11 8 Sólon exclui dos impostos todos os que per­
de Sólon. (N. do A.) tencem ao quarto censo. (N. do A.)

Capítulo VI

Como as leis devem manter a frugalidade


na democracia
Numa boa democracia, não basta que as espírito de comércio traz consigo o de frugali­
glebas sejam iguais; é preciso que sejam dade, de economia, de moderação, de trabalho,
pequenas, como entre os romanos. “Não per­ de prudência, de tranquilidade, de ordem e de
mita Deus”, dizia Cúrio a seus soldados11 9, método. Assim, enquanto esse espírito subsis­
“que um cidadão julgue insuficiente a terra que te, as riquezas que produz não acarretam ne­
é suficiente para nutrir um homem.” nhum efeito pernicioso. O mal surge quando o
Tal como a igualdade das riquezas mantém excesso de riquezas destrói este espírito de
a frugalidade, a frugalidade mantém a igual­ comércio; vê-se subitamente surgirem as de­
dade das riquezas. Essas coisas, embora dife­ sordens da desigualdade, que ainda não se ti­
rentes, são tais que não pode subsistir uma sem nham feito sentir.
a outra; cada uma delas é causa e efeito; se Para conservar o espírito de comércio, cum­
uma desaparece da democracia, a outra sem­ pre que os principais cidadãos o pratiquem;
pre a acompanha. que esse espírito seja o único a reinar e que
É verdade que, quando a democracia ba­ não seja contrariado por nenhum outro; que
seia-se no comércio, pode muito bem aconte­ todas as leis o favoreçam; que essas mesmas
cer que os indivíduos sejam muito ricos e que leis, por seus dispositivos, dividindo as fortu­
os costumes não sejam corrompidos. É que o nas à medida que o comércio as aumenta, pro­
piciem a cada cidadão pobre um certo bem-es­
119 Eles exigiam uma parcela maior da terra tar para que ele possa trabalhar como os
conquistada. Plutarco, Obras Morais, Sentenças outros, e a cada cidadão rico uma situação
Notáveis dos Antigos Reis e Capitães. (N. do A.) medíocre, a fim de que ele tenha necessidade
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 73

de seu trabalho para conservar ou para Na Grécia, existiam dois tipos de repúbli­
adquirir. cas: umas eram militares, como a Lacedemô-
Numa república comerciante, é muito boa a nia; outras eram comerciantes, como Atenas.
lei que dá a todos os filhos uma parte igual na Nas primeiras, desejava-se que os cidadãos
herança dos pais. Decorre daí que, seja qual fossem ociosos; nas segundas, procurava-se
for a fortuna que o pai tenha acumulado, os
inculcar o amor pelo trabalho. Sólon fez da
filhos, sempre menos ricos que ele, serão leva­
dos a fugir do luxo e a trabalhar como o pai. ociosidade um crime e pretendeu que todos os
Só me refiro às repúblicas comerciantes, pois, cidadãos prestassem contas da maneira pela
para as que não o são, o legislador terá muitos qual ganhavam a vida. Com efeito, numa ver­
outros regulamentos a prescrever12°. dadeira democracia, em que só se deve gastar
para o necessário, cada um deve tê-lo, pois de
120 Deve-se aí limitar bastante os dotes das mulhe­
res. (N. do A.) quem o recebería?

Capítulo VII

Outros meios de favorecer o princípio


da democracia

Não se pode estabelecer em todas as demo­ Além disso, se alguma revolução ocorreu
cracias uma divisão igual da terra. Há circuns­ dando ao Estado uma nova forma, isso geral­
tâncias em que tal medida seria impraticável, mente só pôde ser feito com sofrimentos e tra­
perigosa, atentando mesmo contra a constitui­ balhos infinitos e raramente com ociosidade e
ção. Nem sempre se é obrigado a adotar os costumes corrompidos. Os mesmos que fize­
métodos extremados. Se se verifica que, numa ram a revolução a quiseram experimentar e,
democracia, esta partilha, que deve servir para em geral, só o conseguiram através de boas
manter os costumes, não é conveniente, cum­ leis. Portanto, as instituições antigas são,
pre recorrèr a outros meios. comumente, correções, e as novas, abusos.
Se se estabelece um corpo permanente que Durante um longo governo, chega-se ao mal
por si mesmo seja o regulamento dos costu­ por um declive imperceptível e só se retorna ao
mes, um senado em que a idade, a virtude, a bem por um esforço.
circunspecção, os serviços permitem o acesso, Não se sabe exatamente se os membros aos
os senadores, expostos à vista do povo como quais nos referimos devem ser vitalícios ou
os simulacros dos deuses, inspirarão senti­ escolhidos por um certo prazo. É fora de dúvi­
mentos que atingirão o seio de todas as da que devem ser vitalícios, tal como se fazia
famílias. em Roma121, na Lacedemônia122 e na pró­
É necessário, sobretudo, que esse senado pria Atenas, pois não devemos confundir o
cuide das instituições antigas e proceda de que, em Atenas, se denominava senado, que
modo que o povo e os magistrados delas nunca era um corpo que se modificava de três em três
se afastem. meses, com o Areópago, cujos membros eram
No que diz respeito aos costumes, há muito vitalícios, como modelos perpétuos.
que lucrar na preservação dos antigos. Como Máxima geral: num senado escolhido para
os povos corrompidos raramente realizam
121 Os magistrados eram escolhidos por um ano e
grandes coisas, como quase não haviam esta­ os senadores eram vitalícios. (N. do A.)
belecido sociedades, fundado cidades, criado 122 Licurgo, narra Xenofonte, De Republ. Lace-
leis, e como, ao contrário, os que possuíam daem., cap. X, §§ 1 e 2, pretendia “que se elegessem
costumes simples e austeros criaram a maioria os senadores entre os anciãos, para que, mesmo no
fim da vida, eles não se negligenciassem; e, fazen­
das instituições, lembrar aos homens as máxi­ do-os juizes da coragem dos jovens, tornava a velhi­
mas antigas significa, geralmente, reconduzi- ce dos primeiros mais honrada que a força dos últi­
los à virtude. mos”. (N. do A.)
74 MONTESQUIEU

ser o exemplo e, por assim dizer, o repositório conta Xenofonte12 6, consiste basicamente no
dos costumes, os senadores devem ser vitalí­ fato de essa ter feito com que os cidadãos
cios. Num senado feito para preparar os negó­ obedecessem às leis; eles acorrem quando o
cios, os senadores podem ser substituídos. magistrado os solicita. Entretanto, em Atenas,
O espírito, diz Aristóteles123, tal como o um homem rico desesperar-se-ia de receio de
corpo, envelhece. Esta reflexão só é válida no que se pensasse que ele dependia de um
que diz respeito a um único magistrado e não magistrado.”
pode ser aplicada a uma assembléia de A autoridade paterna é ainda muito eficaz
senadores. na manutenção dos costumes. Já afirmamos
Além do Areópago, existiam em Atenas que, numa república, não há uma força tão
guardiães dos costumes e guardiães das repressora como nos outros governos. É mis­
leis124. Na Lacedemônia, todos os anciãos ter, portanto, que as leis procurem supri-la:
eram censores. Em Roma, dois magistrados conseguem-no pela autoridade paterna.
particulares ocupavam-se da censura. Consi­ Em Roma, os pais tinham direito de vida e
derando-se que o senado vela pelo povo, cum­ de morte sobre os filhos1 2 7. Na Lacedemônia,
pre que os censores vigiem o povo e o senado. todo pai tinha direito de punir o filho de outro.
É necessário que eles restabeleçam na repú­ O poder paterno, em Roma, desapareceu
blica tudo o que foi corrompido, que apontem com a república. Nas monarquias, em que não
a indolência, julguem as negligências e corri­ é necessário estabelecer costumes tão puros,
jam os erros, do mesmo modo como as leis pretende-se que todos vivam sob o poder dos
punem os crimes. magistrados.
A lei romana, que desejava que a acusação As leis de Roma, que habituaram os jovens
de adultério fosse pública125, era admirável à dependência, estabeleceram uma longa mino-
porque mantinha a integridade dos costumes; ridade. Talvez caiamos num erro ao adotar
intimidava as mulheres e também os que de­ esse costume: uma monarquia não requer
viam zelar por elas. tanta imposição.
Coisa alguma mantém mais os costumes do Numa república, essa mesma subordinação
que uma extrema subordinação dos jovens aos poderia exigir que o pai permanecesse, durante
anciãos. Ambos moderar-se-ão: os primeiros sua vida, como proprietário dos bens de seus
pelo respeito que sentirão pelos velhos e os filhos, tal como foi estabelecido em Roma.
segundos pelo respeito que sentirão por si Mas isso não é do espírito da monarquia.
próprios.
Coisa alguma dá mais força às leis do que a 12 6 República de Lacedemônia, cap. VIII. (N. do
extrema subordinação dos cidadãos aos magis­ A.)
trados. “A grande diferença que Licurgo colo­ 1 2 7 Podemos observar na história romana com que
cou entre a Lacedemônia e as demais cidades”, vantagem para a república utilizaram-se desse
poder. Refiro-me apenas ao período da maior
123 Política, liv. II, cap. IX. corrupção. Aulo Fúlvio se tinha posto em marcha
124 O próprio Areópago estava submetido a censu­ para ir encontrar Catilina; o pai chamou-o e man­
ra. (N. do A.) dou matá-lo. Salústio, De Bello Catil., cap.
1 2 5 Pública, isto é, de modo a poder ser feita por XXXIX. Muitos outros cidadãos fizeram o mesmo.
qualquer um. Dion, liv. XXXVII, cap. XXXVI. (N. do A.)

Capítulo VIII

Como as leis devem relacionar-se com o princípio


do governo na aristocracia

Se, na aristocracia, o povo é virtuoso, homens são tão desiguais haja muita virtude, é
desfrutar-se-á quase da felicidade do governo necessário que as leis tendam a dar, tanto
popular e o Estado tornar-se-á poderoso. quanto possam, espírito de moderação e pro­
Porém, como é raro que onde as fortunas dos curem restabelecer essa igualdade que a consti­
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 75

tuição do Estado necessariamente suprime. isentarem130; quando os reclamam, para si,


O espírito de moderação chama-se virtude sob pretexto de retribuições ou honorários
na aristocracia e substitui o espírito de igual­ pelos empregos que exercem; finalmente,
dade no Estado popular. quando tornam o povo tributário e repartem
Se o fausto e o esplendor que envolvem os entre si os impostos que dele retiram. Esse últi­
reis constituem seu poderio, a modéstia e a mo caso é raro; uma aristocracia, em caso
simplicidade das maneiras fazem a força dos semelhante, é o mais rigoroso de todos os
nobres aristocráticos128. Quando não aparen­ governos.
tam qualquer distinção, quando se vestem Enquanto inclinou-se para a aristocracia,
como ele, quando o fazem compartilhar de Roma evitou perfeitamente esses inconve­
todos os seus prazeres, o povo esquece sua nientes. Nunca usufruíram os magistrados lu­
fraqueza. cros pela magistratura. Os principais da Repú­
Cada governo tem sua natureza e seu princí­ blica foram taxados da mesma maneira que os
pio. Não é, pois, preciso que a aristocracia demais; e, às vezes, o foram ainda mais, quan­
adquira a natureza e o princípio da monarquia, do não foram os únicos taxados. Enfim, longe
fato que aconteceria se os nobres tivessem de partilharem das rendas do Estado, tudo o
algumas prerrogativas pessoais e partifculares que puderam retirar do tesouro público, tudo o
diferentes das de seus corpos. Os privilégios que a fortuna lhes enviou de riquezas, eles
devem ser reservados para o senado, e o sim­ distribuíram ao povo, a fim de que suas honra­
ples respeito, para os senadores. rias fossem perdoadas131.
E uma máxima fundamental que os resulta­
Nos Estados aristocráticos há duas fontes dos das distribuições feitas ao povo são tão
principais de desordem: a extrema desigual­ prejudiciais, na democracia, quanto úteis no
dade entre governantes e governados, e a governo aristocrático. As primeiras fazem per­
mesma desigualdade entre os diversos mem­ der o espírito do cidadão, as segundas, a ele
bros do corpo que governa. Dessas duas desi­ conduzem.
gualdades originam-se ódios e invejas que as Se as rendas não são distribuídas ao povo, é
leis devem prevenir ou deter.
necessário fazê-lo ver-que são bem adminis­
Encontra-se a primeira desigualdade princi­ tradas; mostrá-las significa, de algum modo,
palmente quando os privilégios dos principais permitir ao povo participar delas. A cadeia de
só são honrosos porque vergonhosos para o ouro estendida em Veneza, as riquezas que se
povo. Assim foi, em Roma, a lei que proibia carregavam nos triunfos, em Roma, os tesou­
aos patrícios unirem-se pelo casamento aos ros guardados no templo de Saturno eram
plebeus129, fato que não teve outro efeito verdadeiras riquezas do povo.
senão tornar, de um lado, os patrícios mais E sobretudo essencial na aristocracia que os
soberbos, e, de outro, mais odiosos. É de ver as nobres não arrecadem tributos. A primeira
vantagens que disso tiraram os tribunos em ordem do Estado, em Roma, neles não se imis­
suas arengas. cuía; encarregava-se deles a segunda, mas
Essa desigualdade encontra-se ainda, se a mesmo isso ocasionou, posteriormente, gran­
condição dos cidadãos é diferente, com relação des inconvenientes. Numa aristocracia onde os
aos subsídios. Isto acontece de quatro modos: nobres arrecadassem tributos, todos os parti­
quando os nobres se arrogam o direito de não culares estariam à mercê dos homens de negó­
pagá-los; quando cometem fraudes para se12 cios. Não haveria qualquer tribunal superior
que os corrigisse. Aqueles dentre eles que fos­
12 8 Em nossos dias os venezianos que, com rela­ sem encarregados de suprimir os abusos prefe­
ção a várias questões, se conduziram muito sabia­ riríam antes aproveitá-los. Os nobres seriam
mente, decidiram, numa disputa entre um nobre
veneziano e um gentil-homem do continente, por como os príncipes dos Estados despóticos que
uma precedência numa igreja, que, fora de Veneza, confiscam os bens de quem desejam.
um nobre veneziano não possuía qualquer preemi-
nência sobre outro cidadão. (N. do A.) 130 Como em algumas aristocracias atuais. Nada
1 2 9 Foi redigida pelos decènviros nas últimas duas enfraquece tanto o Estado. (N. do A.)
tábuas. Consulte-se Dionísio de Halicarnasso, liv. 1 31 Vede, em Estrabão, liv. XIV, como os ródios
X. (N. do A.) procederam a este respeito. (N. do A.)
76 MONTESQUIEU

Rapidamente os lucros que daí auferiríam os magistrados13 4 as razoes de seu procedi­


seriam considerados como um patrimônio que mento, exceto aos censores13 5.
a avareza ampliaria à vontade. Far-se-iam cair Na aristocracia, duas coisas são pernicio­
os arrendamentos, reduz ir-se-iam a nada as sas: a pobreza extrema dos nobres e suas
rendas públicas. É por isso que alguns Esta­ riquezas exorbitantes. Para evitar sua pobreza
dos, mesmo sem terem sofrido reveses que pos­ cumpre, sobretudo, obrigá-los a pagar, desde o
início. Para moderar suas riquezas, disposi­
sam ser notados, enfraquecem-se, surpreen­
ções sábias e insensíveis são necessárias; não
dendo os vizinhos e espantando os próprios
confiscos, nem leis agrárias ou abolição de dí­
cidadãos.
vidas, que ocasionam males infinitos.
Cumpre que as leis também lhes proíbam o As leis devem abolir o direito de primogeni-
comércio: comerciantes muito conceituados tura entre os nobres13 6, a fim de que, pela
fariam toda classe de monopólios. O comércio divisão contínua das sucessões, as fortunas
é a profissão das pessoas iguais; e, entre os permaneçam sempre iguais.
Estados despóticos, os mais miseráveis são De modo algum são necessárias substitui­
aqueles em que o príncipe é comerciante. ções, retraits lignagers'3 1, morgadios, ado­
As leis de Veneza132 proibiam aos nobres o
ções. Todos os meios inventados para perpe­
comércio que lhes poderia proporcionar, tuar a grandeza das famílias nos Estados
mesmo honestamente, riquezas exorbitantes. monárquicos não poderíam ser utilizados na
aristocracia13 8.
As leis devem utilizar os meios mais efica­ Quando as leis tiverem igualado as famílias,
zes a fim de que os nobres façam justiça ao resta-lhes manter a união entre elas. As desa­
povo. Se não estabeleceram um tribuno, é pre­ venças dos nobres devem ser rapidamente
ciso que elas próprias o sejam. resolvidas; sem isto, as contestações entre pes­
Todo tipo de asilo contra a execução das soas transformar-se-ão em contestações entre
leis arruina a aristocracia e a tirania está famílias. Árbitros podem obstar os processos
próxima. ou impedi-los de surgir.
Elas devem combater, em todas as épocas, o Enfim, não devem as leis favorecer as distin­
orgulho da dominação. É mister que haja, ções que a vaidade desenvolve entre as famí­
temporariamente ou sempre, um magistrado lias, sob pretexto de serem elas mais nobres ou
que faça tremer os nobres, como os éforos na mais antigas. Isto deve ser classificado como
Lacedemônia, e os inquisidores de Estado, mesquinharias dos particulares.
magistraturas que não estão submetidas a Basta uma vista d’olhos sobre a Lacedemô­
quaisquer formalidades. Esse governo neces­ nia. Ver-se-á como os éforos souberam mortifi-
sita de regulamentos violentos. Uma boca de car as fraquezas dos reis, dos poderosos e do
pedra133 abre-se, em Veneza, para todo dela­ povo.
tor. Dirieis que é a da tirania.
13 4 Veja-se Tito Líviò, liv. XLIX. Um censor não
Na aristocracia, essas magistraturas tirâni­ podia mesmo ser influenciado por outro. Cada um
cas relacionam-se com a censura da democra­ tomava sua nota sem conhecer a opinião de seu co­
cia que, por sua natureza, não é menos inde­ lega e quando procedia de modo diferente á censura
era, por assim dizer, anulada. (N. do A.)
pendente. Com efeito, os censores não devem 13 6 Em Atenas, os “logistas”*, que faziam todos
ser perseguidos pelas coisas que fizeram os magistrados prestarem contas, não as prestavam
durante sua censura. É necessário infundir-lhes eles próprios. (N. do A.)
* Membros de uma comissão composta de dez
confiança e nunca desânimo. Os romanos cidadãos, escolhidos anualmente por sorteio, encar­
eram admiráveis; podia-se reclamar de todos regados de verificar as contas dos magistrados após
o término de seu cargo. (Do grego logistes, de logos,
132 Amelot de la Houssaye, Du Gouvernement de conta.) (N. dos T.)
Venise, parte III. A Lei Cláudia proibia aos senado­ 13 6 Assim está estabelecido em Veneza. Amelot de
res terem no mar qualquer navio que possuísse mais la Houssaye, págs. 30 e 31. (N. do A.)
de quarenta moios (Tito Lívio, liv. XXI, cap. 13 7 Não há, para essa expressão, correspondente
LXIII). (N. do A.) em português. Vede a explicação dada na nota 139.
13 3 Lugar onde os delatores depositam suas (N. dos T.)
denúncias. (N. do A.) * 138 O objetivo de certas aristocracias é, ao que
* Vê-se ainda um aparelho desse gênero no Palácio parece, menos manter o Estado do que o que cha­
dos Doges. mam sua “nobreza”. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 77

Capítulo IX

Como as leis são relativas a seu princípio


na monarquia

Sendo a honra o princípio deste governo, as cessos necessários; e todos os fundos vendidos
leis devem relacionar-se com ela. do reino permanecem, de certo modo, sem
É necessário que atuem para sustentar esta dono, pelo menos durante um ano1 40. Prerro­
nobreza, cuja honra é, por assim dizer, a filha gativas associadas a feudos outorgam um
e a mãe. poder repleto de responsabilidades para os que
Elas devem torná-la hereditária, não por ser as suportam. São inconvenientes específicos à
o limite entre o poder do príncipe e a fraqueza nobreza, que desaparecem diante da utilidade
do povo, mas por ser o liame de ambos. geral que ela proporciona, mas quando esten­
As substituições, que conservam os oens no didos ao povo, todos os princípios são inutil­
seio das famílias, serão utilíssimas nesse mente abalados.
governo, apesar de não o serem em outros. Nas monarquias pode permitir-se legar a
Os retraits lignagersy 3 9 restituirão às famí­ maior parte dos bens a um dos filhos, mas só
lias nobres as terras que a prodigalidade de um nelas esta permissão é boa.
parente tenha alienado. E necessário que as leis favoreçam todo o
Tal como as pessoas, as terras nobres terão comércio1 41 que a constituição desse governo
privilégios. Não se pode separar a dignidade pode conceder, a fim de que os súditos possam,
do monarca da do reino; do mesmo modo, sem perecerem, satisfazer as necessidades sem­
quase não se pode separar a dignidade do pre renascentes do príncipe e de sua corte.
nobre da do seu feudo. E mister que coloquem certa ordem na
maneira de arrecadar os tributos a fim de que
Todas estas prerrogativas serão específicas
não sejam mais pesados do que os próprios
da nobreza e, de modo algum, passarão ao
encargos.
povo, a menos que se queira contrariai o prin­
O peso dos encargos produz primeiro o tra­
cípio do governo, a menos que se queira dimi­
balho; o trabalho, o esgotamento; o esgota­
nuir a força da nobreza e a do povo.
mento, o espírito de preguiça.
As substituições constrangem o comércio; o
retrait lignager provoca uma infinidade de pro-13 1 40 Tinha-se esse prazo determinado, um ano e um
dia, para exercer o retrait lignager.
13 9 “Ação pela qual um parente do lado do vende­ 1 41 Ela o permite apenas ao povo. Veja a lei tercei­
dor poderia retomar, num prazo fixo, e sem reem­ ra, no Código, De comm. et mercatoribus, repleta
bolso, a herança vendida.” (Littré) de bom senso. (N. do A.)

Capítulo X

Da presteza da execução na monarquia

O governo monárquico tem uma grande favorecer a natureza de cada constituição, mas
vantagem sobre o republicano: sendo os negó­ ainda remediar os abusos que poderíam resul­
cios públicos conduzidos por um só, há mais tar dessa mesma natureza.
presteza na execução. Mas, como esta poderia O Cardeal de Richelieu1 42 quer que se evi-
degenerar em rapidez, as leis aí introduzirão
certa morosidade. Elas não devem somente 1 42 Testament politique. (N. do A.)
78 MONTESQUIEU

tem, nas monarquias, os inconvenientes das do mundo1 44 se os magistrados, por sua


companhias, que tudo dificultam. Ainda que morosidade, lamentos e súplicas, não obstas-
esse homem não tivesse tido o despotismo no sem o curso das próprias virtudes de seus reis,
coração, tê-lo-ia na cabeça. quando estes monarcas, consultando apenas
Os corpos depositários das leis nunca obe­ suas grandes almas, quisessem recompensar,
decem melhor que quando se desenvolvem len­ desmesuradamente, serviços prestados com
tamente e quando trazem para os negócios do coragem e fidelidade também desmesuradas?
príncipe essa reflexão que quase não se pode
esperar da falta de compreensão da corte com 1 43 Barbaris cunctatio servilis; statim exequi re-
gium videtur. Tácito, Anais, liv. V, cap. XXXII. (N.
relação às leis do Estado, nem da precipitação do A.)
de seus Conselhos1*43. 144 A monarquia francesa. É ela ainda que vai ser­
Que sucedería com a mais bela monarquia vir de exemplo ao capítulo seguinte.

Capítulo XI

Da excelência do governo monárquico

O governo monárquico tem uma grande medo de ser abandonados; os poderes interme­
vantagem sobre o despótico. Como é próprio diários dependentes1 4 7 não querem que o
de sua natureza existirem, sob a dependência povo levante muito a cabeça. Ê raro que as or­
do príncipe, várias ordens que se relacionam dens de Estado sejam inteiramente corrompi­
com a constituição, o Estado é mais estável, a das. O príncipe depende dessas ordens e os
constituição mais sólida, a pessoa dos que sediciosos, que não têm nem vontade nem
governam mais garantida. esperança de derrubar o Estado, não podem
Cícero1 4 5 acredita que o estabelecimento nem querem derrubar o príncipe.
dos tribunos de Roma foi a salvação da repú­ Nessas circunstâncias, pessoas prudentes e
blica. “De fato”, diz ele, “a força do povo que que dispõem de autoridade intervém; re­
não tem chefe é mais terrível. Um chefe sente freiam-se os ânimos, concilia-se, corrige-se; as
sua responsabilidade e reflete sobre isso; mas o leis recuperam seu vigor e se fazem ouvir.
povo, em sua impetuosidade, não conhece o Assim, todas as nossas histórias estão reple­
perigo em que se lança.” Pode aplicar-se essa tas de guerras civis sem revoluções; as dos
reflexão a um Estado despótico, que é um povo Estados despóticos estão repletas de revolu­
sem tribunos; e a uma monarquia, em que o ções sem guerras civis.
povo tem, de algum modo, tribunos1 4 6. Os que têm escrito a história das guerras-
civis de alguns Estados e mesmo os que as têm
De fato, vê-se por toda parte que, nos movi­
fomentado provam muito bem como a autori­
mentos do governo despótico, o povo, guiado
dade que os príncipes deixam a certas ordens
por si próprio, leva sempre as coisas tão longe
para o serviço deles deve serlhes pouco sus­
quanto podem ir: todas as desordens que co­
peita, pois, na própria confusão, eles apenas
mete são extremas, ao passo que, nas monar­
aspiravam às leis e a seu dever, e retardavam a
quias, as coisas são rarissimamente levadas ao
fogosidade e a impetuosidade dos faccio­
excesso. Os chefes temem por si mesmos; têm
sos1 48, mais do que poderíam servi-la.
O Cardeal de Richelieu, pensando talvez
1 4 5 Liv. III, das Leis, cap. X. Nimia potestas est
tribunorum plebis? Quis negat? Sed vis populi que aviltara muito as ordens do Estado, recor­
multo saevior multoque vehementior, quae ducem reu, para sustentá-lo, às virtudes do príncipe e
quod habet, interdum lenior est quam si nullum
haberet. Dux enim suo se periculo progredí cogitat; 1 4 7 Vede, acima, a nota 45 — liv. II, cap. IV. (N.
populi impetus periculi notionem sui non habet. (N. do A.)
do A.) 1 48 Mémoires do Cardeal de Retz, e outras histó­
1 4 6 Alusão aos parlamentos franceses. rias. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 79

de seus ministros1 49; e deles exigiu tais coisas Como os povos que vivem sob um bom regi­
que, na verdade, só um anjo poderia ter tanta me são mais felizes que os que, sem lei e sem
solicitude, tanto saber, tanta segurança, tantos chefes, vagam nas florestas, também os monar­
conhecimentos; e, quando muito, podemos nos cas que vivem sob as leis fundamentais de seu
vangloriar se daqui à dissolução das monar­
Estado são mais felizes que os príncipes despó­
quias houver um príncipe e ministros seme­
ticos, desprovidos de tudo que possa regular
lhantes.
tanto seus próprios corações como os de seus
1 49 Testament Politique. (N. do A.) povos.

Capítulo XII
Continuação do mesmo assunto

Que não se procure magnanimidade nos príncipe, os súditos receberem sua influência;,é
Estados despóticos; o príncipe de modo algum ali que cada um, ocupando, por assim dizer,
oferecería uma grandeza que não possui. Nele
maior espaço, pode exercer essas virtudes que
não existe glória.
É nas monarquias que se verá, em torno do dão à alma, não independência, mas grandeza.

Capítulo XIII

Idéia do despotismo

Quando os selvagens da Luisiana querem apanham-na1 50. Eis o governo despótico.


colher uma fruta, cortam a árvore embaixo e 1 50 Lettres Édifiantes, coleção II. pág. 315. (N. do
A.)

Capítulo XIV

Como as leis são relativas ao


princípio do governo despótico

O governo despótico tem por princípio o mãos1 51 Portanto, raramente participa pes­
medo. Mas, para povos tímidos, ignorantes, soalmente da guerra e quase não ousa fazê-lo
decaídos, não são necessárias muitas leis. através de seus lugar-tenentes.
Tudo, ali, deve girar em torno de duas ou Semelhante príncipe, acostumado a não
três idéias; as idéias novas não são, portanto, encontrar, em seu palácio, resistência alguma,
necessárias. Quando ensinais um animal, cui­ indigna-se com a que lhe é feita a mão armada;
dai de não lhe substituir o dono, as lições e as deixa-se, portanto, ordinariamente, levar pela
andaduras; impressionai seu cérebro com dois cólera ou pela vingança. Aliás, não pode ter
ou três movimentos e nada mais. idéia da verdadeira glória. As guerras devem,
Quando o príncipe vive fechado, não pode pois, fazer-se neste caso em todo seu furor
sair desse estado de voluptuosidade sem afligir natural e o direito das pessoas deve, no gover-
todos os que ali o retêm. Esses não poclem tole­
rar que sua pessoa e seu poder passem a outras 1 51 Cf. Chardin, Voyage en Perse.
80 MONTESQUIEU

No governo despótico, ser mais reduzido que cidades que o inimigo está prestes a ocupar.
alhures. Não estando a força no Estado mas no exér­
Tal príncipe possui tantos defeitos qüe deve­ cito que o fundou, seria necessário, para defen­
ria temer expor publicamente sua estupidez der o Estado, conservar este exército. Porém
natural. Esconde-se e o estado em que se ele é temível para o príncipe. Como, então,
encontra fica ignorado. Felizmente, os homens conciliar a segurança do Estado com a segu­
são de tal modo nesse país que necessitam ape­ rança da pessoa?
nas um nome que os governe. Vede, peço-vos, com que expedientes o
Estando Carlos XII em Bender1*52 e encon­ governo moscovita procura sair do despotismo
trando alguma resistência no senado da Sué­ que lhe é mais pesado do que aos seus próprios
cia, escreveu que lhes enviaria uma de suas povos. Destituíram-se os grandes corpos de
botas para governar. Esta bota teria coman­ guarda1 55; diminuíram-se as penas dos cri­
dado como um rei despótico. mes; estabeleceram-se tribunais; começou-se a
Se o príncipe está prisioneiro, é classificado conhecer as leis; instruíram-se os povos. Mas
como morto e outro sobe ao trono. Os tratados há causas particulares que o reconduzirão, tal­
feitos pelo prisioneiro são nulos; seu sucessor vez, à infelicidade da qual queria escapar.
não os ratificaria. Com efeito, como ele é a lei, Nesses Estados, a religião tem mais in­
o Estado e o príncipe, desde que deixa de ser fluência do que em qualquer outro; é um temor
príncipe, nada mais é, e, se não fosse dado adicionado ao temor. Nos impérios maometa-
como morto, o Estado estaria destruído. nos, é da religião que os povos extraem, em
Uma das coisas que mais obrigaram os tur­ parte, o extraordinário respeito que têm por
cos a fazer a paz em separado com Pedro I foi seu príncipe.
o fato de os moscovitas dizerem ao vizir que É a religião que corrige, um pouco, a consti­
havia, na Suécia, outro rei no trono1 53. tuição turca. Os súditos, que não estão ligados
A conservação do Estado nada mais é do à glória e à grandeza do Estado pela honra, o
que a conservação do príncipe, ou antes, do estão pela força e pelo princípio da religião.
palácio em que está encerrado. Tudo o que não De todos os governos despóticos não existe
ameaça diretamente este palácio ou a cidade um que arruine tanto a si próprio como aquele
capital absolutamente não impressiona os espí­ em que o príncipe declara-se proprietário de
ritos ignorantes, orgulhosos e prevenidos. E, todos os bens fundiários e herdeiro de todos os
quanto ao encadeamento dos acontecimentos, seus súditos. Isso sempre ocasiona o abandono
eles não podem segui-lo, prevê-lo e nem pensar do cultivo das terras e se, demais, o príncipe é
nisso. A política, seus fundamentos e suas leis mercador, toda espécie de indústria arruína-se.
devem ser limitados e o governo político é tão Nesses Estados, nada se repara, nada se
simples como o civil1 5 4. melhora1 5 6. Constroem-se casas apenas para
Tudo se reduz a conciliar o governo político uma'vida; não se planta árvore alguma; não se
e civil com o governo doméstico e os oficiais cavam fossos. Retira-se tudo da terra e nada se
do Estado com os do serralho. lhe restitui, tudo permanece abandonado e
Tal Estado estará em melhor situação quan­ deserto.
do puder considerar-se único no mundo, quan­ Pensais que as leis que anulam a proprie­
do estiver cercado de desertos e separado dos dade das terras e a sucessão dos bens diminui­
povos, aos quais chamará de bárbaros. Não rão a avareza e a cupidez dos poderosos? Não:
podendo confiar na milícia, será bom que des­ elas exasperarão esta cupidez e esta avareza.
trua uma parte de si mesmo. Ser-se-á levado a cometer mil vexames porque
Como o princípio do governo despótico é o não se acreditará ter de seu senão o ouro ou a
medo, o objetivo é a tranquilidade; mas isto prata que se poderá roubar ou esconder.
não é absolutamente uma paz: é o silêncio das Para que tudo não se perca é conveniente
que a avidez do príncipe seja moderada por
1 52 Observemos que não era em Bender, mas em
Demótica. algum costume. Assim, na Turquia, o príncipe
1 53 Série de Pufíendorf, História Universal, no tra­
tado da Suécia, cap. X. (N. do A.) 1 5 5 Alusão aos Streltsy.
1 5 4 Segundo Chardin, absolutamente não existe 1 5 6 Vede Ricaut, État de 1’Empire Ottoman (ed. de
Conselho de Estado na Pérsia. (N. do A.) 1678, in-12), pág. 196. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 81

se contenta com tomar três por cento das sas mais importantes a de ser conhecida pelo
heranças1*5*7 das pessoas do povo. povo, a melhor é a que impressiona mais os
Mas como o grão-senhor dá a maior parte olhos, como o nascimento e uma certa ordem
das terras à sua milícia e delas dispõe a seu de nascimento. Uma disposição de tal tipo faz
bel-prazer, como se apodera de todas as suces­ cessar as conspirações, reprime a ambição;
sões dos oficiais do império; como, quando um não se cativa mais o espírito de um príncipe
homem morre sem deixar filhos varões, ao fraco e não se faz os moribundos falarem.
grão-senhor pertence a propriedade, e como as Quando a sucessão é estabelecida por uma
filhas possuem apenas o usufruto, acontece lei fundamental, apenas um príncipe herda, e
que a maior parte dos bens do Estado é pos­ seus irmãos não têm nenhum direito real ou
suída de maneira precária. aparente de disputar-lhe a coroa. Não se pode
Pela lei de Bantam1 58, o rei adquire a suces­
presumir ou fazer valer uma vontade particu­
lar do pai. Portanto, não é mais necessário
são e inclusive a mulher, os filhos e as
prender ou mandar matar o irmão do rei,
casas1 59. É-se obrigado, para eludir a disposi­
assim como qualquer outro súdito, seja quem
ção mais cruel desta lei, a casar as crianças
for.
aos oito, nove ou dez anos, e algumas vezes
Mas, nos Estados despóticos em que os
mais jovens, a fim de que não sejam transfor­
madas numa parte infeliz da sucessão do pai. irmãos do príncipe são igualmente seus escra­
vos e rivais, manda a prudência que se se
Nos Estados em que não há leis fundamen­ garanta contra suas pessoas, sobretudo nos
tais, a sucessão do império não poderia ser países maometanos, em que a religião consi­
fixa. A coroa é eletiva pelo príncipe, em sua dera a vitória ou o êxito como julgamento de
família ou fora dela. Em vão seria estabelecido Deus; de modo que ninguém ali é soberano de
que o primogênito sucedería; o príncipe sem­ direito mas somente de fato.
pre poderia escolher outro. O sucessor é decla­ A ambição é bem mais exasperada nos Esta­
rado pelo próprio príncipe, por seus ministros dos em que príncipes de sangue vêem que, se
ou por uma guerra civil. Assim, esse Estado não sobem ao trono, serão encarcerados ou
possui uma razão a mais de dissolução do que levados à morte, do que entre nós, onde os
uma monarquia. príncipes de sangue gozam de uma situação
Tendo cada príncipe da família real igual que, se à ambição não é tão satisfatória, o é,
capacidade para ser eleito, acontece que quem talvez, aos desejos moderados.
sobe ao trono manda, em primeiro lugar, Os príncipes dos Estados despóticos sempre
estrangular seus irmãos, como na Turquia, ou abusaram do casamento. Tomam geralmente
manda cegá-los, como na Pérsia, ou torna-os várias mulheres, sobretudo na parte do mundo
loucos, como na Mongólia, ou, se não toma onde o despotismo está, por assim dizer, natu­
essas precauções, como no Marrocos, cada ralizado, que é a Ásia. Têm tantos filhos que
vaga do trono é seguida de atroz guerra civil. quase não podem ter afeição por eles, nem
esses por seus irmãos.
Pela constituição de Moscóvia1 60, o czar
A família reinante assemelha-se ao Estado:
pode escolher quem quiser para seu sucessor,
é muito fraca e seu chefe muito forte; parece
em sua família ou fora dela. Tal sistema de
grande mas se reduz a nada. Artaxerxes1 61
sucessão acarreta mil revoluções e torna o
trono tão oscilante quanto arbitrária a suces­ mandou matar todos os seus filhos por terem
conspirado contra ele1 62. Não é verossímil
são. Sendo a ordem de sucessão uma das coi­
que cinquenta filhos conspirem contra o pai e
1 5 7 Vede, sobre as heranças dos turcos, Lacédé- ainda menos que conspirem porque este não
mone Ancienne et Nouvelle, e também Ricaut, De quis ceder sua concubina ao filho mais velho.
l 'Empire Ottoman. (N. do A.) É mais simples acreditar que aí exista alguma
1 58 Bantam: Reino da ilha de Java. intriga desses serralhos do Oriente, desses
1 59 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
l Établissement de la Compagnie des Index, t. I. A lugares em que a astúcia, a malevolência, a
lei de Pegu é menos cruel; se se têm filhos, o rei
herda apenas dois terços. Ibid., t. III, pág. 1. (N. do 1 61 Vede Justino. (N. do A.)
A.) 1 62 Diz-se que Artaxerxes tinha cento e quinze
1 60 Vede as diferentes constituições, sobretudo a filhos. Somente cinquenta conspiraram contra ele e
de 1722. (N. do A.) foram condenados à morte.
82 MONTESQUIEU

intriga reinam no silêncio e se ocultam numa poderes, regulamentá-los, moderá-los e fazê-


espessa noite; onde um velho príncipe, que los agir; oferecer, por assim dizer, um lastro a
cada dia se torna mais imbecil, é o primeiro um para colocá-lo em condição de resistir a
prisioneiro do palácio. outro; é uma obra-prima de legislação que o
Depois de tudo que acabamos de dizer,
acaso raramente produz e que também rara­
parecería que a natureza humana erguer-se-ia
mente deixa-se à prudência fazer. Um governo
incessantemente contra o governo despótico.
Mas apesar do amor dos homens pela liberda­ despótico, pelo contrário, salta, por assim
de, apesar de seu ódio contra a violência, a dizer, aos olhos; é uniforme em toda parte;
maioria dos homens está submetida a ela. como apenas paixões são necessárias para
Compreende-se isso facilmente. Para formar estabelecê-lo, todas as pessoas são úteis para
um governo moderado, é mister combinar os isso.

Capítulo XV

Continuação do mesmo assunto

Nos climas quentes, onde reina geralmente o dias civis, nem se teria experimentado o perigo
despotismo, as paixões revelam-se mais cedo, e dos males, nem os riscos dos remédios.
mais cedo são também amortecidas1*63; o espí­ A pobreza e a insegurança das fortunas, nos
rito é aí mais desenvolvido; os perigos da dissi- Estados despóticos, naturalizam a usura, au­
pação dos bens são menores; há menos facili­ mentando cada um o preço de seu dinheiro à
dades de se sobressair, menos comércio entre proporção do perigo que há em emprestá-lo.
os jovens encerrados em suas casas; casam-se Portanto, a miséria vem de todas as partes nes­
mais cedo; podem, portanto, tornar-se adultos tes países infelizes: tudo aí é negado, até o
mais cedo que nos climas da Europa. Na Tur­ recurso a empréstimos.
quia, a maioridade inicia-se aos quinze Sucede daí que um negociante não poderia
anos1 6 4*. fazer grande comércio; ocupa-se apenas com o
Neste caso, a cessão dos bens não pode
dia-a-dia; se comprasse muitas mercadorias, o
realizar-se. Num governo em que ninguém tem
lucro que obtivesse com sua venda não
fortuna assegurada, empresta-se mais à pessoa
compensaria os juros que teria que pagar para
do que aos bens.
sua compra. Assim, as leis que regulamentam
Ela entra, naturalmente, nos governos mo­
o comércio quase não têm razão de ser: redu­
derados1 65, e principalmente nas repúblicas,
zem-se a simples vigilância.
por causa da maior confiança que se deve ter
na probidade dos cidadãos e da doçura que O governo não poderia ser injusto sem ter
deve inspirar uma forma de governo em que mãos que exerçam suas injustiças. Ora, é
cada um parece se ter dado. impossível que essas mãos não operem em seu
Se na república romana os legisladores próprio interesse. Portanto, é natural o pecu­
tivessem estabelecido a cessão dos bens1 6 6, lato nos Estados despóticos.
n.ão se teria caído em tantas sedições e discór­ Sendo esse crime comum, os confiscos são
inúteis. Com isso se consola o povo; o dinheiro
1 63 Vede o livro XIV das Leis, Da Relação com a que daí é retirado é um tributo considerável
Natureza do Clima. (N. do A.) que o príncipe dificilmente cobraria dos súdi­
164 La Guilletière, Lacédémone Ancienne et Nou- tos arruinados. Não há mesmo, nesses países,
velle, pág. 463. (N. do A.)
165 A mesma coisa acontece com as moratórias nenhuma família que queira conservá-lo.
nas bancarrotas de boa fé. (N. do A.) Nos Estados moderados tudo é diferente. As
166 Só foi estabelecida pela Lei Julia, De Cessione confiscações tornariam a propriedade dos bens
Bonorum. Evitava-se a prisão, e a cessão de bens
não era ignominiosa. Cod., liv. II, tít. XII. (N. do incerta; espoliariam inocentes crianças; des­
A.) truiríam uma família quando apenas bastaria
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 83

punir um culpado. Nas repúblicas, ocasiona­ fisque apenas no caso de crime de lesa-ma-
riam o mal de suprimir a igualdade que lhes jestade em primeiro grau. Muitas vezes seria
constitui a alma, privando um cidadão de suas prudente seguir o espírito desta lei, e limitar o
necessidades materiais1 6 7. confisco a certos crimes. Numa região onde
Uma lei romana1 68 determina que se con- um costume local dispôs dos bens de raiz,
1 6 7 Parece-me que os confiscos eram mais aprecia­
Bodin1 69 afirma corretamente que seria sufi­
dos na república de Atenas. (N. do A.). ciente confiscar os bens adquiridos.
1 68 Autêntico, Bonna Damnatorum. Cod. De bon.
proscript. seu damn. (N. do A.) 169 Dela République, liv. V, cap. III, (N. do A.)

Capítulo XVI

Da comunicação do poder

No governo despótico, o poder passa inte­ los, haveria no Estado, por si mesmo, grandes
gralmente às mãos daquele a quem é confiado. homens; fato que chocaria a natureza desse
O vizir é o próprio déspota, e cada oficial par­ governo.
ticular é o vizir. No governo monárquico, apli­ Pois, se o governador de uma cidade fosse
ca-se o poder menos imediatamente; outorgan- independente do paxá, todos os dias seriam
do-o, o monarca o modera1 70. Faz tal necessárias concessões mútuas para os acomo­
distribuição de sua autoridade que só concede dar, coisa absurda num governo despótico. E,
uma parte dela quando retém uma maicr. além disso, o governador particular podendo
Assim, nos Estados monárquicos, os gover­ não obedecer, como poderia o outro responder
nos particulares das cidades não são tão pela província sob seu governo?
dependentes do governo da província, o qual Nesse governo, a autoridade não pode ser
depende ainda menos do príncipe; e os oficiais posta em dúvida; a do magistrado mais subal­
particulares dependem ainda menos do prín­ terno não o é mais do que a do déspota. Nos
cipe do que do general. países moderados, a lei é sábia em toda parte,
Na maior parte dos Estados monárquicos, conhecida em todos os lugares e mesmo os
estabeleceu-se sabiamente que os que dispõem menores magistrados podem segui-la. Mas no
de um comando um pouco amplo não sejam despotismo, em que a lei é apenas a vontade do
ligados a qualquer corpo de milícia; de sorte príncipe, quando este fosse sábio, como o
que, dispondo do comando apenas pela vonta­ magistrado poderia obedecer a uma vontade
de particular do príncipe, podendo ser empre­ que desconhece? É preciso seguir a sua.
gados ou não, estão, de algum modo, no servi­ Além disso, sendo a lei apenas a vontade do
ço e, de outro, fora dele. príncipe, podendo este querer apenas o que
Isso é incompatível com o governo despó­ conhece, é muito necessário que exista uma
tico, pois, se os que atualmente não têm empre­ infinidade de pessoas que queiram as mesmas
go tivessem, pelo menos, prerrogativas e títu- coisas por ele e como ele..
Enfim, sendo a lei a vontade momentânea
170 Ut esse Phoebi dulcius lumen solei
Jamjam cadentis. . . ( N. do A.) * do príncipe, é necessário que os que querem
* Sêneca, As Troianas, versos 1 140-1 141. por ele, queiram subitamente como ele.
84 MONTESQUIEU

Capítulo XVII

Dos presentes

É costume, nos países despóticos, que só se despótico, em que não existe honra nem virtu­
se dirija a quem estâ acima de si oferecendo- de, pode-se, apenas, ser levado a agir pela
lhe um presente, inclusive aos reis. O impera­ esperança de facilidades de vida.
dor dos mongóis1*71 apenas recebe petições Nas idéias da república, Platão1 72 queria
dos súditos que lhe tenham oferecido alguma que os que recebem presentes para cumprir seu
coisa. Estes príncipes chegam mesmo a cor­ dever fossem punidos com a morte. “Não se
romper seus próprios favores.
deve recebê-los”, dizia ele, “nem pelas coisas
Deve ser assim num governo em que nin­ boas, nem pelas más.”
guém é cidadão, num governo imbuído da
idéia de que o superior nada deve ao inferior, Era má a lei romana1 73 que permitia aos
num governo em que os homens se acreditem magistrados aceitarem pequenos presentes1 7 4,
ligados apenas pelos castigos que uns infligem conquanto não ultrapassassem cem escudos
aos outros, num governo onde há poucos negó­ por ano. Aqueles a quem nada se dá, nada
cios, sendo rara a necessidade de se apresentar desejam; aqueles a quem se dá um pouco, logo
diante de um poderoso, fazer-lhe petições e, desejam um pouco mais e, em seguida, muito.
ainda menos, queixas. Aliás, é mais fácil convencer quem, nada
Numa república, os presentes são coisa devendo receber, recebe alguma coisa, do que
odiosa, porque a virtude não tem necessidade quem recebe mais quando deveria receber
deles. Numa monarquia, a honra é motivo menos, e que, por isso, sempre encontra pretex­
mais forte que os presentes. Mas no Estado tos, desculpas, motivos e razões plausíveis.

1 71 Recueil des Voyages qui Ont Servi à 1 72 Liv. XII das Leis. (N. do A.)
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, 1.1, pág. 173 L. 6, § 2, Dig. ad Leg. Jul. Repet. (N. do A.)
80. (N. do A.) 1 7 4 Munuscula. (Das Espécies.) (N. do A.)

Capítulo XVIII

Das recompensas que o soberano oferece

Nos governos despóticos, em que, como É regra geral que, numa monarquia e numa
dissemos, é-se apenas levado a agir pela espe­ república, as grandes recompensas são um
rança de facilidades de vida, o príncipe que sinal de sua decadência, pois provam que os
recompensa possui apenas dinheiro para ofere­ príncipes estão corrompidos, que a idéia de
cer. Numa monarquia, onde apenas reina a honra, de um lado, não tem mais tanta força e
honra, as distinções seriam as únicas recom­ que a qualidade do cidadão, de outro lado,
pensas oferecidas pelo príncipe, se as distin­ enfraqueceu-se.
ções que a honra estabelece não estivessem Os piores imperadores romanos foram os
unidas a um luxo que, necessariamente, cria que mais ofereceram recompensas. Por exem­
plo, Calígula, Cláudio, Nero, Otão, Vitélio,
necessidades. O príncipe recompensa, portan­ Cômodo, Heliogábalo e Caracala. Os melho­
to, com honrarias que levam à fortuna. Porém, res, como Augusto, Vespasiano, Antonino Pio,
numa república em que a virtude reina, motivo Marco Aurélio e Pertinax, foram comedidos.
suficiente em si mesmo, e que exclui todos os Sob a direção dos bons imperadores, o Estado
demais, o Estado só recompensa com testemu­ recuperava seus princípios: o tesouro da honra
nhos dessa virtude. supria os demais.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 85

Capítulo XIX

Novas consequências dos princípios


dos três governos

Não posso resolver-me a terminar este livro quias, faz-se indiferentemente de um príncipe
sem efetuar, ainda, algumas aplicações de um criado e de um criado um príncipe.
meus três princípios. Terceira Questão. Colocar-se-ão sob a
Primeira Questão. Devem as leis forçar os responsabilidade de uma mesma pessoa em­
cidadãos a aceitar empregos públicos? Res­ pregos civis e militares? É mister uni-los na
pondo que o devem num governo republicano república e separá-los na monarquia. Nas
e não num monárquico. No primeiro, as repúblicas, seria muito perigoso fazer da pro­
magistraturas são testemunhos de virtude, fissão das armas um estado particular, dife­
depósitos que a pátria confia a um cidadão,
rente do das funções civis; e, nas monarquias,
que só deve viver, agir e pensar por ela; não
não haveria menos perigo em outorgar as duas
pode, portanto, recusá-los1 7 5. No segundo, as
funções à mesma pessoa.
magistraturas são testemunhos de honrarias;
ora, as singularidades das honrarias são tais, Na república, não se tomam armas a não ser
que se se compraz a aceitar algumas somente na qualidade de defensor das leis e da pátria;
quando e da maneira como se quer. porque somos cidadãos é que, por algum
tempo, fazemo-nos soldados. Se houvesse dois
O falecido rei da Sardenha1 7 6 punia os que
estados diferentes, far-se-ia sentir ao que, no
recusavam as dignidades e empregos de seu
exército, se acredita cidadão, que ele é apenas
Estado; sem sabê-lo1 7 7, seguia idéias republi­
soldado.
canas. Sua maneira de governar, aliás, prova
muito bem que essa não era sua intenção. Nas monarquias, os militares têm apenas
Segunda Questão. É boa máxima que um como finalidade a glória, ou, pelo menos, a
cidadão possa ser obrigado a aceitar, no exér­ honra ou a fortuna. Deve-se evitar completa­
cito, um posto inferior ao que ocupou? Entre mente oferecer empregos civis a tais homens;
os romanos, via-se frequentemente o capitão cumpre, pelo contrário, que sejam contidos
servir, no ano seguinte, sob as ordens de seu pelos magistrados civis e que as mesmas pes­
tenente1 78. É que, nas repúblicas, a virtude soas não tenham, ao mesmo tempo, a con­
exige que se faça ao Estado sacrifício contínuo fiança do povo e força para dele abusar1 7 9.
de si mesmo e de suas repugnâncias. Mas, nas Vede, numa nação em que a república se
monarquias, a honra — verdadeira ou falsa — esconde sob a forma de monarquia180, quanto
não pode sofrer o que chamamos degradação. se teme um estado particular de militares e
Nos governos despóticos, onde se abusa, como o guerreiro continua sempre cidadão ou
igualmente, da honra, dos postos e das hierar­ mesmo magistrado, a fim de que suas qualida­
des sejam um penhor para a pátria e que ele
1 7 5 Platão, em sua República, liv. VIII, inclui nunca seja esquecido.
essas recusas no número dos indícios da corrupção I
da república. Em suas Leis, liv. VI, quer que as Essa divisão das magistraturas em civis e
punam com uma multa. Em Veneza, são punidas militares, feita pelos romanos após a perda da
com o exílio. (N. do A.) república, não foi coisa arbitrária. Foi conti­
1 7 6 Vítor Amadeu. (N. do A.) nuação da reforma da constituição de Roma;
1 7 7 Vítor Amadeu foi o primeiro rei da Sicília e da
Sardenha (1666-1732). ela era da natureza do governo monárquico e o
1 78 Tendo alguns centuriões apelado ao povo que
solicitasse o emprego que eles tinham tido: “É justo, 179 Ne imperium ad optimos nobilium transfer-
meus companheiros”, diz um centurião, “que vós retur, senatum militia vetuit Gallienus; etiam adire
considereis honrosos todos os postos nos quais exercitum. Aurélio Victor, De Caesaribus. (N. do
defendereis a república.” Tito Lívio, liv. XLII, cap. A.)
XXXIV. (N. do A.) 180 Trata-se da Inglaterra.
86 MONTESQUIEU

que só foi começado na época de Augusto1 81 não se vendem através de um acerto de contas
os imperadores seguintes1 82 foram obrigados público, a indigência e a avidez dos cortesãos
a concluir, para moderar o governo militar. vendê-los-iam da mesma maneira, o acaso
Assim, Procópio, concorrente de Valente ao dará melhores súditos do que a escolha do
império, nada disso sabia quando, dando a príncipe. Enfim, a maneira de progredir pelas
Hormisdas, príncipe de sangue real da Pérsia, riquezas inspira e sustenta a indústria18 6,
a dignidade de procônsul1 83, restitui o coman­ coisa muito necessária nesta espécie de gover­
do dos exércitos à magistratura que outrora o no187.
possuía, a menos que tivesse razões particula­ Quinta Questão. Em que tipo de governo
res. Um homem que aspira à soberania procu­ são necessários censores? Eles são necessários
ra menos o que é útil ao Estado do que o que é numa república em que o princípio do governo
útil à sua causa. é a virtude. Não são apenas os crimes que des-
Quarta Questão. Convém que os cargos troem a virtude, mas também as negligências,
sejam venais? Não devem sê-lo nos Estados os erros, uma certa tibieza no amor à pátria,
despóticos, onde é necessário que os súditos exemplos perigosos, sementes de corrupção,
sejam colocados e substituídos instantanea­ tudo que não contraria as leis mas as elude; o
mente pelo príncipe. que não as destrói mas as enfraquece: tudo
Esta venalidade é boa nos Estados monár­ isso deve ser corrigido pelos censores.
quicos, porque obriga a fazer, como um ofício Surpreendemo-nós com a punição desse
de família, o que não se querería empreender areopagita que matara um pardal que, perse­
pela virtude, porque, a cada um, destina seu guido por um gavião, se refugiara em seu colo.
dever e torna as ordens de Estado mais perma­ Pasmamo-nos que o Areópago tenha mandado
nentes. Suídas1 8 4 diz corretamente que Anas­ ipatar uma criança que furou os olhos de seu
tácio fizera do império uma espécie de aristo­ pássaro. Observe-se que, absolutamente, fião
cracia, vendendo todas as magistraturas. se trata aqui de uma condenação por crime
Platão1 8 5 não pode admitir esta venalidade. mas de um julgamento de costumes numa
“É”, diz ele, “como se, num navio, tornás­ república baseada nos costumes.
semos alguém piloto ou marinheiro a troco de Nas monarquias não são necessários censo­
dinheiro. Seria concebível que a regra fosse má res; elas são baseadas na honra e a natureza da
para qualquer outro emprego existente, e boa honra é ter por censor todo o universo. Todo
somente para conduzir uma república?” Mas homem que falta com a honra é alvo das repro­
Platão refere-se a uma república baseada na vações até mesmo dos que não a têm.
virtude e nós falamos de uma monarquia. Ora, Nas monarquias, os censores seriam cor­
numq monarquia em que, quando os cargos rompidos por aqueles mesmos que deveríam
181 Augusto retirou, aos senadores, procônsules e corrigir. Não seriarh úteis contra a corrupção
governadores, o direito de portar armas. Dion., liv. numa monarquia, pois a corrupção de uma
XXXIII. (N. do A.)
182 Constantino. Vede Zósimo, liv. II. (N. do A.) ■monarquia seria muito forte contra eles.
183 Amiano Marcelino, liv. XXXVI. Et civilia, Percebe-se facilmente que não são necessá­
more veterum, et bella recturo. (N. do A.) rios censores nos governos despóticos. O
184 “É um trecho de João de Antioquia, que foi exemplo da China parece derrogar esta regra,
conservado igualmente no Extrato das Virtudes e mas veremos no desenvolvimento desta obra
dos Vícios, de Constantino Porfirogêneto, mas com
uma mudança no texto que lhe faz dizer, mais as razões específicas desta verificação.
exatamente, que Anastácio perverteu tudo o que 18 6 Nota tomada, observa ainda Laboulaye, do
havia de bom no governo. Tomo essa observação de Testament Politique de Richelieu.
Crévier.” Por nossa vez tomamo-la de Laboulaye. 18 7 Indolência da Espanha, onde todos os empre­
18 5 República, liv. VIII. (N. do A.) gos são dados. (N. do A.)
LIVRO SEXTO
CONSEQUÊNCIAS DOS PRINCÍPIOS DOS DIVERSOS
GOVERNOS EM RELAÇÃO A SIMPLICIDADE DAS LEIS CMS
E CRIMINAIS, A FORMA DOS JULGAMENTOS
E AO ESTABELECIMENTO DAS PENAS
Capítulo I

Da simplicidade das leis civis


nos diversos governos

O governo monárquico não comporta leis cabe observá-las para deles dispor, o que
tão simples como o despótico. São necessários suprime ainda mais a simplicidade.
tribunais. Estes tribunais lavram as decisões Em nossos governos, os feudos tornaram-se
que devem ser conservadas, aprendidas para hereditários. Foi preciso que a nobreza pos­
que se julgue hoje como se julgou ontem e para suísse determinados bens, quer dizer, que o
que a propriedade e a vida dos cidadãos sejam feudo tivesse certa consistência, a fim de que o
asseguradas e garantidas como a própria cons­ proprietário feudal estivesse em condição de
tituição do Estado. servir o príncipe. Isso acarretou muitas varie­
Numa monarquia, a administração de uma dades: por exemplo, existiram regiões onde os
justiça que não decide somente da vida e dos feudos não puderam ser repartidos entre os
bens mas também da honra exige investigações irmãos; em outras, os irmãos mais novos pude­
cuidadosas. O escrúpulo do juiz aumenta à ram dispor de um pouco mais para sua
medida que ele tem maior responsabilidade e subsistência.
julga sobre grandes interesses. O monarca, que conhece cada uma de suas
Portanto, não nos devemos espantar ao províncias, pode estabelecer diversas leis ou
encontrarmos nas leis desses Estados tantas submeter-se a diferentes costumes. Porém, o
regulamentações, restrições, extensões, que déspota nada conhece e por nada tem conside­
multiplicam os casos particulares e parecem ração; é-lhe necessário um procedimento
fazer, da própria razão, uma arte. geral; governa de um modo intransigente que é
A diferença de posição social, de origem, de o mesmo em todos os lugares; tudo se aplaina
condição, estabelecida no governo monár­ sob seus pés.
quico, acarreta, muitas vezes, distinções na A medida que os julgamentos dos tribunais
natureza dos bens; e leis relativas à constitui­ multiplicam-se nas monarquias, a jurispru­
ção deste Estado podem aumentar o número dência encarrega-se das decisões que, algumas
dessas distinções. Assim, entre nós, os bens vezes, se contradizem, seja porque os juizes,
são próprios, adquiridos ou conquistados188; que se sucedem, pensam diferentemente, seja
dotais, parafernais189; paternos ou maternos, porque os mesmos processos são ora bem, ora
móveis de vários tipos; livres, substituídos; de mal defendidos, ou, enfim, em consequência de
linhagem ou não; nobres em terras alodiais190 uma infinidade de abusos que se insinuam em
ou de origem plebéia; rendas latifundiárias ou tudo que passa pelas mãos dos homens. É um
constituídas em dinheiro. Cada espécie de bens mal necessário que o legislador corrige de
está submetida a regulamentações específicas; quando em quando, como contrário até ao
espírito dos governos moderados. Porque,
1 88 Em francês, conquèt: o que não é adquirido e quando se é obrigado a recorrer aos tribunais,
não vem por sucessão. é mister que isso decorra da natureza da cons­
189 Em francês, paraphernaux: bens da mulher tituição e não das contradições e incertezas
cuja administração ela conserva.
1 90 Em francês, franc-aleu: bem hereditário isento das leis.
de qualquer direito senhorial (Littré). Nos governos em que, necessariamente, há
90 MONTESQUIEU

distinções entre as pessoas, privilégios são marido, do senhor, são por estes regulamen­
necessários. Isto diminui ainda mais a simpli­ tadas e não por intermédio de magistrados.
cidade e cria mil exceções. Esquecia de dizer que o que chamamos
Um dos privilégios menos pesados à socie­ honra, sendo mal conhecido nesses Estados,
dade e, sobretudo, a quem o confere, é o de todas as questões a ela relacionadas, capítulo
pleitear perante um tribunal, de preferência a tão importante entre nós, neles não encontram
outro. Eis aí novas, questões, isto é, saber lugar. O despotismo basta a si mesmo; tudo é
perante qual tribunal se deve pleitear. vazio em torno dele. Destarte, quando os via­
Os povos dos Estados despóticos encon- jantes nos descrevem as regiões onde ele impe­
tram-se em situação bem diferente. Não sei ra, raramente falam-nos de leis civis1 91.
sobre o que o legislador poderia estatuir ou o Portanto, todas as possibilidades de disputa
magistrado julgar nessas regiões. Como as ter­ e de processo aí desaparecem. É o que, parcial­
ras pertecem ao príncipe, não há quase leis ci­ mente, faz com que se maltrate tanto aos liti­
vis sobre a propriedade dasterras. Do direito que gantes: a injustiça de sua demanda surge aber­
o soberano tem de suceder resulta que também tamente, não sendo escondida, diminuída ou
não há leis sobre as sucessões. A exclusividade protegida por uma infinidade de leis.
dos negócios que exerce em certas regiões
torna inútil toda espécie de leis sobre o comér­ 191 No Masulipatão não se conseguiu descobrir se
existiu lei escrita. Vede Recueil desVoyages qui Ont
cio. Os casamentos que aí são contratados S.ervi à l Établissement de la Compagnie des Indes,
com escravas determinam que quase não exis­ t. IV, parte I, pág. 391. Nos julgamentos, os hindus
tam leis civis sobre os dotes e direitos das apenas se baseiam em certos costumes. Os Vedam
(lede os Vedas) e outros livros semelhantes não con­
mulheres. Resulta ainda dessa prodigiosa mul­ têm leis civis mas preceitos religiosos. Vede Lettres
tidão de escravos quase não existirem pessoas Édifiantes, coletânea quadragésima quarta. (N. do
que possuam vontade própria e que, conse­ A.)*
quentemente, possam responder por sua con­ * Já observamos que Montesquieu é, aqui, precipi­
tado e que, entre os árabes, por exemplo, existe,
duta perante um juiz. A maioria das ações derivada da lei religiosa, uma lei civil, e juriscon-
morais, que são apenas vontade do pai, do sultos muito sutis.

Capítulo II

Da simplicidade das leis criminais


nos diversos governos

Incessantemente, ouve-se dizer que se deve­ Na Turquia, em que se atribui muito pouca
ria administrar a justiça por toda parte, como atenção à fortuna, à vida, à honra dos súditos,
na Turquia. Entretanto, será que apenas o terminam-se prontamente, de uma maneira ou
mais atrasado de todos os povos viu claro na de outra, todas as disputas. A maneira de aca­
coisa mais importante do mundo para os ho­ bá-las é indiferente, desde que sejam termina­
mens saberem? das. O paxá, logo informado, manda distribuir,
Se examinardes as formalidades da justiça a seu capricho, bastonadas nas plantas dos pés
em relação ao esforço que um cidadão tem que dos litigantes e os manda embora.
empregar para obter a restituição de seus bens, Seria muito perigoso ter, ali, as paixões dos
ou para obter satisfação por algum ultraje, litigantes: elas supõem um ardente desejo de
indubitavelmente encontrareis muitas delas. Se obter justiça, um ódio, uma ação no espírito,
as considerardes na relação que têm com a uma constância em perseguir. Tudo isso deve
liberdade e a segurança dos cidadãos, encon­ ser evitado num governo em que se deve ter o
trareis, amiúde, muito poucas e vereis que os medo como único sentimento, e em que tudo
esforços, as despesas, as dilações, os próprios conduz, repentinamente, e sem que se possa
perigos da justiça são o preço que cada cida­ prever, a revoluções. Cada um deve saber que
dão paga por sua liberdade. não é necessário que o magistrado ouça falar
DO ESPIRITO DAS LEIS I 91

dele, e que apenas conserva sua segurança por atribuir mais importância aos inconvenientes
sua obscuridade. particulares do que à liberdade dos súditos,
Mas, nos Estados moderados, onde a cabeça para os quais não se concede qualquer
do mais humilde cidadão é considerada, não se importância.
lhe retiram a honra e os bens senão após um Vê-se que, nas repúblicas, são necessárias
longo exame, não se lhe tira a vida senão quan­ pelo menos tantas formalidades quanto nas
do a própria pátria o ataca e ela só ataca quan­ monarquias.
do lhe possibilita todos os meios de defesa. Num e noutro governo, elas aumentam em
Assim, quando um homem se torna mais razão da importância que se atribui à honra, à
absoluto192, imagina, antes de mais nada, fortuna, à vida e à liberdade dos cidadãos.
simplificar as leis. Começa-se, nesse Estado, a Todos os homens são iguais no governo
republicano; são também iguais no governo
1 92 César, Cromwell e tantos outros. (N. do despótico: no primeiro, por serem tudo; no
A.) segundo, por serem nada.

Capítulo III

Em que governos e em que casos se deve julgar


segundo os termos precisos da lei

Quanto mais o governo se aproxima da literalmente a lei. Não existe um cidadão con­
república, tanto mais rígida se torna a maneira tra o qual se possa interpretar uma lei quando
de julgar. Era um vício da república da Lace- se trata de seus bens, de sua honra ou de sua
demônia o fato de os éforos julgarem arbitra­ vida193.
riamente sem que houvesse leis para orientá- Em Roma, os juizes apenas decidiam se o
los. Em Roma, os primeiros cônsules julgaram acusado era culpado de um certo crime e a
como os éforos: sentiram-se os inconvenientes pena encontrava-se na lei, como percebemos
e fizeram-se leis exatas. em diversas leis que foram feitas. Da mesma
maneira, na Inglaterra, os jurados decidem se
Nos Estados despóticos, não existe lei: a
o acusado é culpado ou não do fato que o trou­
regra é o próprio juiz. Nos Estados monárqui­
xe perante eles; se é declarado culpado, o juiz
cos, existe uma lei e, onde esta é exata, o juiz a
pronuncia a pena que a lei inflige para esse
observa; onde não existe, ele procura-lhe o fato e, para isto, bastam-lhe olhos.
espírito. Nos governos republicanos é da natu­
reza da constituição que os juizes observem 193 Beccaria, Dos Delitos e das Penas, cap. IV.

Capítulo IV

Da maneira de formar os julgamentos


Disso resultam as diferentes maneiras de cavam entre si; cada qual dava seu voto por
formular a sentença. Nas monarquias, os jui­ uma dessas três maneiras: absolvo, condeno,
zes adotam a maneira dos árbitros; deliberam não me parece claro' 9 4: é que o povo julgava
em conjunto, comunicam seus pensamentos, ou esperava-se que o fizesse. Mas o povo não é
conciliam-se; modificam sua opinião para tor­ jurisconsulto; todas essas modificações e mo­
ná-la conforme à de outro; os pareceres menos derações de árbitros não são para ele; é neces­
numerosos são reduzidos aos dois maiores. sário apresentar-se-lhe um só objeto, um e um
Isso não é da natureza da república. Em Roma
e nas cidades gregas, os juizes não se comuni­ 1 9 4 Non liquet. (N. do A.)
92 MONTESQUIEU

só fato, e que ele precise apenas decidir se deve Decorria daí que os juizes, entre os roma­
condenar, absolver ou procrastinar o julga­ nos, só aceitavam uma demanda específica,
mento. sem nada aumentar, diminuir ou modificar.
Os romanos, a exemplo dos gregos, introdu­
Mas os pretores imaginaram outras fórmulas
ziram fórmulas de ação1 9 5 e estabeleceram a
de ações que se chamaram de boa féy 9 6, em
necessidade de conduzir cada demanda pela
ação que lhe era própria. Isto era necessário que a maneira de pronunciar estava mais à
em consequência da sua maneira de julgar: disposição do juiz. Isso estava mais de acordo
cumpria fixar o estado da questão, para que o com o espírito da monarquia. Por isso os juris-
povo o tivesse sempre diante dos olhos. De consultos franceses dizem: “Em França, todas
outro modo, no curso de um grande litígio, o as ações são de boa fé1 9 7”.
estado da questão transformar-se-ia continua­
mente e não seria mais reconhecido. 1 9 6 Nas quais empregavam-se estas palavras: ex
bona fide. (N. do A.)
1 9 5 Quas actiones, ne populus, prout vellet, insti- 1 9 7 Condena-se, aí, às custas daquele a quem se re­
tueret, certas solemnesque esse voluerunt. L. 2, § 6, quer mais do que deve, se não ofereceu e não con­
Digest., De Orig. Jur. (N. do A.) signou o que deve. (N. do A.)

Capítulo V

Em que governos pode o soberano ser juiz

Maquiavel198 atribui a perda da liberdade julgamentos de crimes: quis que o Areópago


de Florença ao fato de o povo não julgar em revisse o processo, pois, se este acreditava que
corpo, como em Roma, dos crimes de lesa-ma- o acusado havia sido injustamente absolvi­
jestade cometidos contra ele. Para isso havia do201, acusava-o novamente diante do povo;
oito juizes estabelecidos: “Mas”, diz Maquia­ se acreditava que o acusado havia sido injusta­
vel, “poucos são corrompidos por pouco”. mente condenado202, suspendia a execução e
Adotaria de bom grado a máxima desse gran­ o fazia rejulgar a questão; lei admirável, que
de homem, mas como neste caso o interesse submetia o povo à censura da magistratura
político força, por assim dizer, o interesse civil que mais respeitava, e à sua própria.
(porque é sempre um inconveniente que o pró­ Será útil retardar um pouco o processo em
prio povo julgue suas ofensas), cumpre, para tais casos, sobretudo quando o acusado estiver
remediar isso, que as leis provejam, tanto preso, a fim de que o povo possa acalmar-se e
quanto possam, a segurança dos cidadãos. julgar com sangue-frio.
Com esse espírito, os legisladores de Roma Nos Estados despóticos, o próprio príncipe
fizeram duas coisas: permitiram aos acusados pode julgar. Não o pode nas monarquias: a
exilarem-se199 antes do julgamento200 e constituição seria destruída, os poderes inter­
determinaram que os bens dos exilados fossem mediários dependentes, aniquilados: ver-se-ia
consagrados para que o povo não tivesse o cessarem todas as formalidades dos julgamen­
confisco. Ver-se-ão, no livro XI, as demais tos; o medo apossar-se-ia de todos os espíritos;
limitações que foram impostas ao poder que o ver-se-ia a palidez em todas as faces; não mais
povo tinha de julgar. haveria confiança, honra, amor, segurança,
Sólon soube muito bem prevenir o abuso monarquia.
que o povo poderia fazer de seu poder nos19
Eis aqui outras reflexões. Nos Estados
19 8 Discurso sobre a Primeira Década de Tito
monárquicos, o príncipe é a parte que acusa
Lívio, liv. I, cap. VII. (N. do A.) réus e os pune ou os absolve; se ele próprio jul-
1 99 Isto é bem explicado na oração de Cícero, Pro
Caecina, no fim, cap. C. (N. do A.) 201 Demóstenes, Sobre a Coroa, pág. 494, ed. de
200 Era uma lei de Atenas, como se percebe por Frankfurt, do ano 1604. (N. do A.)
Demóstenes. Sócrates recusou servir-se dela. (N. do 202 Vede Filóstrato, Vida dos Sofistas, liv. I, Vida
A.) de Ésquines. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 93

gasse, seria, concomitantemente, juiz e parte. riam uma fonte inesgotável de injustiças e abu­
Nestes mesmos Estados, o príncipe frequen­ sos; os cortesãos, com sua impertinência,
temente possui os confiscos: se julgasse os cri­ extorquiriam seus julgamentos. Alguns impe­
mes, seria, ainda, juiz e parte. radores romanos tiveram a fúria de julgar; rei­
Além disso, perdería o atributo mais nobre nado algum alarmou tanto o universo por suas
de sua soberania que é de conceder graça203 ; injustiças.
seria insensato que fizesse e desfizesse seus “Cláudio”, diz Tácito20 6, “tendo tomado a
julgamentos; não gostaria de estar em contra­ seu cargo o julgamento dos negócios públicos
dição consigo mesmo. Além de que isso e funções dos magistrados, permitiu toda sorte
confundiría todas as idéias, não se sabería se de rapinas.” Por isso Nero, assumindo a dire­
um homem seria absolvido ou se recebería sua ção do império depois de Cláudio e querendo
graça. apaziguar os espíritos, declarou: “Que evitaria
Quando Luís XIII quis ser juiz no processo ser o juiz de todos os casos, para que acusado­
do Duque de la Valette20 4 e com esta intenção res e acusados, nos muros dos palácios, não
chamou ao seu gabinete alguns oficiais do par­ fossem expostos ao iníquo poder de alguns
lamento e alguns conselheiros do Estado, libertos2 0 7”.
tendo o rei os forçado a opinar sobre o decreto “No reinado de Arcádio”, narra Zósimo2 0 8,
de prisão, o presidente de Bellièvre declarou: “a nação dos caluniadores expandiu-se, envol­
veu a corte e a infectou. Quando um homem
“Que via neste caso uma coisa estranha, um
morria, supunha-se que não tivesse deixado
príncipe opinar no processo de um de seus sú­
filhos209; seus bens eram dados por um rescri-
ditos; que aos reis apenas as graças eram
to. Pois, sendo o príncipe estranhamente estú­
reservadas e que eles remetiam as condenações
pido e a imperatriz excessivamente empreende­
para seus oficiais. E Vossa Majestade desejaria
dora, ela favorecia a avareza insaciável de seus
ver, no banco dos réus diante de si, um homem
domésticos e confidentes; de maneira que para
que, por seu julgamento, em uma hora seria le­
as pessoas moderadas nada havia de mais
vado à morte? Que a face do príncipe, que traz
desejável do que a morte.”
as graças, não pode sustentar isso; que apenas
“Havia outrora”, conta Procópio210* ,
seu olhar suspendería os interditos das igrejas; “muito poucas pessoas na corte; mas, na
que apenas s.e deveria sair contente da pre­ época de Justiniano, como os juizes não mais
sença do príncipe”. Quando se julgou dos possuíssem liberdade de administrar justiça,
fundamentos da questão, o mesmo presidente seus tribunais permaneciam desertos, enquanto
disse no seu parecer: “Este é um julgamento o palácio do príncipe ressoava com os clamo
sem exemplo, até mesmo contra todos os res das partes que aí solicitavam seus casos.”
exemplos do passado até hoje, que um rei de Todos sabem como aí se vendiam os julga­
França na qualidade de juiz e por seu voto mentos e, inclusive, leis.
tenha condenado um gentil-homem à As leis são os olhos do príncipe; vê por elas
morte”20 5. o que, sem elas, não poderia ver. Quer ele assu­
Os julgamentos proferidos pelo príncipe se­ mir as funções dos tribunais? Com isso traba­
lha não para si, mas para seus sedutores, con­
203 Platão Carta VIII] não acredita que os reis
que são, diz ele, sacerdotes possam assistir ao julga­ tra si mesmo.
mento em que se condena à morte, ao exílio e à pri­
são. (N. do A.) 20 6 Anais, liv. XI, cap. V. (N. do A.)
20 4 Vede a relação do processo feito ao Duque de 2 0 7 Tácito, Anais, liv. XIII, cap. IV. (N. do A.)
la Valette. Está impressa nas Mémoires de Montré- 20 8 Hist., liv. V. (N. do A.)
sor, t. II, pág. 62. (N. do A.) 209 A mesma desordem no reinado de Teodósio, o
20 5 Isso foi modificado posteriormente. Vede a Jovem. (N. do A.)
mesma relação, t. II, pág. 236. (N. do A.) 21 0 História Secreta. (N. do A.)
94 MONTESQUIEU

Capítulo VI

De como, na monarquia, os ministros


não devem julgar
Nas monarquias, é ainda um grande incon­ seus tribunais. O Conselho dos reis deve ser
veniente que os próprios ministros do príncipe composto de poucas pessoas e os tribunais de
julguem os casos contenciosos. Ainda hoje judicatura exigem muitas.
vemos Estados 1 onde há inúmeros juizes A razão disso é que, no primeiro, se deve
para decidir os casos fiscais onde os ministros receber os casos com uma certa paixão e
— quem o acreditaria! — ainda querem segui-los da mesma maneira, o que quase não
julgá-los. As reflexões jorram em borbotões: se pode pretender de quatro ou cinco homens
farei apenas esta.
que disso fazem seu ofício. Requerem-se, pelo
Há, pela natureza das coisas, uma espécie
contrário, tribunais de judicatura de sangue-
de contradição entre o Conselho do monarca e
frio para o qual todas as demandas sejam, de
211 Ainda a França. alguma maneira, indiferentes.

Capítulo VII

Do magistrado único

Tal magistrado só pode existir no governo nia como escrava; os pais de Virgínia lhe soli­
despótico. Vê-se, na história romana, a que citaram que, em virtude de sua lei, ela lhes
ponto um único juiz pode abusar de seu poder. fosse confiada até o julgamento definitivo.
Como não teria Ápio, em seu tribunal, despre­ Declarou ele que sua lei apenas fora feita em
zado as leis, já que violou mesmo as que favor do pai e que, estando Virgínia ausente,
fez212? Tito Lívio informa-nos sobre a iníqua não poderia ter aplicação21 3.
distinção do decênviro. Ele tinha subornado
um homem que, diante dele, reclamava Virgí­ 213 Quod pater puellae abesset, locutn injuriae esse
ratus. Tito Lívio, Década Primeira, liv. III, cap.
21 2 Vede a lei 2, § 24, De Orig. Jur. (N. do A.) XLIV. (N. do A.)

Capítulo VIII

Das acusações nos diversos governos

Em Roma214, permitia-se a um cidadão nero de homens funestos, uma turba de delato­


acusar outro. Isto era estabelecido segundo o res. Quem quer que tivesse muitos vícios e
espírito da república, em que cada cidadão talentos, uma alma vil e espírito ambicioso,
deveria ter um zelo ilimitado pelo bem público, procurava um criminoso cuja condenação
em que cada cidadão é reputado como tendo pudesse agradar ao príncipe: era o caminho
todos os direitos da pátria nas mãos. Cumpri- para as honrarias e a fortuna21 5, coisa que
ram-se, na época dos imperadores, as máximas absolutamente não vemos entre nós.
da república e, a princípio, viu-se surgir um gê­ 21 5 Vede, em Tácito, as recompensas concedidas a
esses delatores. Anais, liv. IV, cap. XXX. (N. do
214 E em muitas outras cidades. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 95

Temos atualmente uma lei admirável: a que de seu ministério, obrigá-lo-iam a nomear seu
determina que o príncipe, estabelecido para denunciador.
fazer executar as leis, designe um represen­ Nas leis de Platão21 7, os que negligenciam
tante2 1 6 em cada tribunal, para processar, em de advertir os magistrados ou de prestar-lhes
seu nome, todos os crimes. Assim, a função
auxílio devem ser punidos. Hoje, isso não seria
dos delatores é desconhecida entre nós e, se
este vingador público fosse suspeito de abusar conveniente. A parte pública vela por seus
cidadãos; ela atua e eles estão tranquilos.
21 6 Trata-se também do ofício do procurador-
geral; era o do procurador do rei. 217 Livro IX. (N. do A.)

Capítulo IX

Da severidade das penas nos diversos governos

A severidade das penas convém melhor ao da vida; aí os suplícios devem ser, portanto,
governo despótico, cujo princípio é o terror, do mais rigorosos. Nos Estados moderados, te­
que à monarquia ou à república, quç têm por me-se mais perder a vida do que se receia a
mola a honra e a virtude. morte em si mesma; os suplícios que simples­
Nos Estados moderados, o amor à pátria, a mente tiram a vida são aí, portanto, suficien­
vergonha e o receio da censura são motivos tes.
coercitivos que podem deter muitos crimes. O Os homens extremamente felizes e os extre­
maior castigo para uma má ação será o mamente infelizes tornam-se igualmente insen­
reconhecimento dessa. Nos Estados modera­ síveis: atestam-nos os monges e os conquista­
dos, portanto, as leis corrigirão mais facil­ dores. Apenas a mediocridade e a mistura da
mente e não necessitarão de tanta energia. boa e má sorte produzem a doçura e a piedade.
Nesses Estados, um bom legislador encarre- O que particularmente se vê nos homens, se
gar-se-á menos de punir os crimes do que de encontra nas diversas nações. Entre os povos
preveni-los; aplicar-se-á mais a fortalecer os selvagens que levam uma vida muito dura e
costumes do que a infligir suplícios. entre os povos dos governos despóticos em que
É uma perpétua observação dos autores há apenas um homem exorbitantemente favo­
chineses21 8 que, quanto mais se via aumentar recido pela fortuna, enquanto os demais são
os suplícios em seu império, mais próxima es­ ultrajados, é-se igualmente cruel. A brandura
tava a revolução. É que se aumentavam os reina nos governos moderados.
suplícios à medida que os costumes desapare­ Quando nas histórias encontramos exem­
ciam. plos da atroz justiça dos sultões, sentimos os
males da natureza humana com uma espécie
Seria fácil provar que, em todos ou quase de amargura.
todos os Estados da Europa, os castigos dimi­ Nos Estados moderados, para um bom
nuíram ou aumentaram à medida que se apro­ legislador, tudo pode servir para constituir cas­
ximou ou se afastou da liberdade. tigos. Não é extraordinário que em Esparta um
Nos países despóticos é-se tão infeliz, que se dos castigos principais fosse não poder em­
teme a morte mais do que se lastima a perda prestar a esposa a outro, nem receber a do
outro e nunca permanecer em sua casa a não
218 Farei ver, em seguida, que a China, nesse
aspecto, está no caso de uma república ou de uma ser com virgens? Numa palavra, tudo que a lei
monarquia. (N. do A.) chama castigo, é efetivamente castigo.
96 MONTESQUIEU

Capítulo X

Das antigas leis francesas

É precisamente nas antigas leis francesas não-nobres são menos punidos que os no­
que se encontra o espírito da monarquia. Nos bres21 9. Nos casos de crimes, acontece justa­
casos relacionados a penas pecuniárias, os mente o contrário220: o nobre perde a honra e
é levado diante de um tribunal, enquanto o
219 “Assim, no caso de os não-nobres deverem vilão, que não tem honra, é punido em seu
pagar uma multa de quarenta soidos para se livra­
rem de um mandado de prisão, os nobres devem corpo.
pagar sessenta libras.” Sotnme Rurale, liv. II, pág.
198, ed. got. do ano 15 12; e Beaumanoir, cap. LXI, 220 Vede o Conseil de Pierre Desfontaines, cap.
pág. 309. (N. do A.) XIII, principalmente o artigo 22. (N. do A.)

Capítulo XI

De como, quando um povo é virtuoso,


bastam poucas penas

O povo romano tinha probidade. Esta probi­ toda violência contra um cidadão que tivesse
dade possuía tanta força, que muitas vezes apelado ao povo, somente afligia a quem a
bastava o legislador indicar o bem, para que contraviesse, com a pena de ser reputado
este fosse seguido. Parecia que, em vez de perverso.
ordenanças, bastavam conselhos.
Quase todos os castigos prescritos pelas leis 221 Foi estabelecida por Valério Publícola, logo
régias e pela das Doze Tábuas foram abolidas após a expulsão dos reis; foi renovada duas vezes,
na república, quer em consequência da lei sempre pelos magistrados da mesma família, como
Valéria221, quer em consequência da lei Pór- diz Tito Lívio, liv. X, cap. IX. Não era necessário
cia222. Não se notou que por isso a república dar-lhe mais força mas aperfeiçoar-lhe as disposi­
ções. Diligentius sanctam, diz Tito Lívio, ibid. (N.
ficasse mal regulamentada e que a ordem tives­ do A.)
se sido prejudicada. 222 Lex Porciapro tergo civium lata. Foi estabele­
Essa lei Valéria, proibindo aos magistrados cida no ano 454 da fundação de Roma. (N. do A.)

Capítulo XII

Do poder das penas

A experiência tem mostrado que nos países gi-lo subitamente e, em vez de procurar execu­
onde as penas são leves o espírito do cidadão é tar as antigas leis, estabelece-se uma pena
atingido por elas como o é alhures pelas leis cruel que detém o mal imediatamente. Porém
severas. desgastam-se as bases do governo: a imagina­
Quando algum inconveniente se faz sentir ção acostuma-se com esta grande pena como
num Estado, um governo violento quer corri­ se tinha acostumado com a menor e, como
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 97

diminui o temor por esta, logo é-se forçado a nas suplícios cruéis contêm os homens, consi­
utilizar a outra para todos os casos. Os assal­ derai que isto é, em grande parte, devido à vio­
tos nas estradas eram comuns em alguns Esta­ lência do governo que utilizou esses suplícios
dos223, quiseram terminá-los; inventaram o para punir pequenas faltas.
suplício da roda que os paralisou durante Amiúde um legislador que quer corrigir um
algum tempo. Mas, depois disto, os assaltos mal pensa apenas nesta correção; seus olhos
nas estradas continuaram tal como antes. estão abertos para este objetivo e fechados
A deserção foi em nossos dias muito para os inconvenientes. Quando o mal for cor­
frequente; estabeleceu-se a pena de morte con­ rigido, repara-se apenas na severidade do legis­
tra os desertores mas ela não diminuiu. A lador mas subsiste um vício no Estado, produ­
explicação é muito simples: um soldado acos­ zido por esta severidade: os espíritos estão
tumado diariamente a expor sua vida despreza corrompidos, acostumados ao despotismo.
ou gaba-se de desprezar o perigo. Mas ele foi Tendo Lisandro2 2 5 sido vitorioso contra os
diariamente educado para temer a desonra: atenienses, foram julgados os prisioneiros; os
bastava, portanto, estabelecer uma pena224 atenienses foram acusados de ter lançado ao
que o estigmatizasse durante toda a vida. mar todos os cativos de duas galeras e resol­
Pretenderam aumentar a pena mas, na realida­ veu-se, em plena assembléia, decepar o punho
de, diminuíram-na. de todos os prisioneiros que capturassem.
Os homens não precisam, absolutamente, Foram todos degolados, exceto. Adimanto que
ser levados pelos caminhos extremos; deve-se se opusera a este decreto. Antes de mandar
procurar os meios que a natureza nos oferece matá-lo, Lisandro exprobrou Fílocles de ter
para os conduzir. Que se examine a causa dos depravado os espíritos e ter dado lições de
relaxamentos: ver-se-á que eles se originam da crueldade a toda a Grécia.
impunidade dos crimes e não da moderação “Tendo os argienses”, conta Plutarco22 6,
das penas. “mandado matar mil e quinhentos de seus
Imitemos a Natureza que deu aos homens a cidadãos, os atenienses fizeram sacrifícios de
vergonha como seu flagelo e a infâmia de expiação, a fim de que os deuses desviassem
sofrê-la como o maior castigo. do coração dos atenienses tão cruel pensamen­
Se há países em que a honra não é uma to.”
continuação do suplício, isto se deve à tirania Há dois gêneros de corrupção: um quando o
que infligiu os mesmos castigos aos celerados povo não observa as leis e outro quando é cor­
e às pessoas de bem. rompido por elas; mal incurável porque reside
E, se encontrardes outros países em que ape­ no próprio remédio.

223 Montesquieu considera ainda a França, como 2 2 5 Xenofonte. História, liv. II, cap. II, §§ 20-22.
se verá mais abaixo, cap. XVI. (N. do A.)
22 4 Fendia-se o nariz, cortavam-se as orelhas. (N. 22 6 Obras Morais. “Dos que Manipulam os Negó­
do A.) cios do Estado”, cap. XIV. (N. do A.)

Capítulo XIII

Impotência das leis japonesas

As penas excessivas podem corromper o Não se trata de corrigir o culpado mas de


próprio despotismo. Vejamos o Japão. vingar o príncipe. Estas idéias são extraídas da
Nesse país pune-se com a morte quase todos
servidão e provêm sobretudo de que. sendo o
os crimes22 7, pois a desobediência a um impe­
rador tão poderoso, como o do Japão, é um imperador proprietário de todos os bens, todos
crime horrível. os crimes atingem diretamente seus interesses.
2 2 7 Vede Kempfer. (N. do A.) Punem-se com a morte todas as mentiras
98 MONTESQUIEU

pronunciadas diante dos magistrados228, No Japão, fez um esforço e excedeu a si pró­


coisa contrária à defesa natural. prio em crueldade.
O que não tem aparência de crime é severa­ As almas, por toda parte espavoridas e tor­
mente punido: por exemplo, um homem que nadas mais atrozes, apenas podem ser orienta­
arrisca dinheiro no jogo é punido com a morte. das por uma atrocidade ainda maior.
É verdade que o singular caráter desse povo Eis a origem, eis o espírito das leis do Japão.
obstinado, caprichoso, disposto, extravagante, Entretanto, possuem mais furor que força.
e que arrosta todos os perigos e todos os infor­ Conseguiram destruir o cristianismo mas seus
túnios, parece, à primeira vista, absolver seus esforços tão inauditos confirmam sua impotên­
legisladores da atrocidade das leis. Porém, pes­ cia. Quiseram impor uma severa disciplina e
soas que naturalmente desprezam a morte e sua fraqueza revelou-se ainda mais.
que frequentemente rasgam o ventre pelo E importante ler a relação da entrevista do
capricho mais insignificanté serão corrigidas imperador e do dairo230 em Meaco231. Foi
ou constrangidas pela visão contínua dos incrível o número dos que.foram sufocados ou
suplícios? Será que não se familiarizam com mortos por vagabundos; raptaram moças e
eles? rapazes que eram reencontrados, todos os dias,
A respeito da educação dos japoneses as expostos em lugares públicos, em horas impró­
Relações informam que c necessário tratar as prias, inteiramente nus, cosidos em sacos de
crianças com doçura, pois elas se tornam obs­ pano, a fim de que não descobrissem os luga­
tinadas diante uos castigos, que os escravos res por onde tinham passado; roubava-se o que
não devem ser tratados com demasiada rude­ bem se pretendia; para desmontar os cavalei­
za, pois eles logo se preparam para resistir. ros, abriam-se ventres de cavalos; tombaram-
Pelo espírito que deve reinar no governo se carruagens para despojar as damas. Os
doméstico não se teria podido julgar o que holandeses, a quem disseram que não podiam
existiría no governo político e civil? passar a noite em tablados sem que fossem
Um legislador arguto teria procurado con- assassinados, deles desceram, etc.
graçar os espíritos através de uma moderação Passarei rapidamente a outro fato. O impe­
justa das penas e das recompensas, de máxi­ rador, entregue a prazeres infames, não se
mas de filosofia, moral e religião, adequadas a casava: corria o risco de morrer sem sucessor.
esses caracteres pela aplicação justa das regras O dairo enviou-lhe duas moças belíssimas:
da honra, pelo suplício da vergonha, pelo gozo desposou uma em sinal de respeito mas não
de uma felicidade duradoura e de uma doce teve nenhuma relação com ela. Sua ama man­
tranquilidade. Mas, se ele tivesse temido que dou buscar.as mulheres mais belas do império:
os espíritos acostumados a serem refreados tudo era inútil; a filha de um armeiro impres­
unicamente através de uma pena cruel não sionou232 seu gosto: decidiu-se, e dela teve um
pudessem mais sê-lo por uma mais suave, teria filho. As damas da corte sufocaram a criança,
agido22 9 de maneira surda e insensível; teria, indignadas por terem sido preteridas por uma
nos casos particularmente mais perdoáveis, pessoa de tão baixa condição social. Este
moderado a pena do crime, até que pudesse crime não foi revelado ao imperador, pois este
chegar a modificá-la em todos os casos. teria feito verter uma torrente de sangue. Por­
Mas o despotismo não conhece tais impul­ tanto, a atrocidade das leis impede sua execu­
sos e não procura tais caminhos. Pode abusar ção. Quando a lei é desmedida, frequentemente
de si mas isto é a única coisa que pode-fazer.22 se é obrigado a optar pela impunidade.

22 8 Recueil des Voyages qui Ont Servi à 230 Imperador espiritual do Japão antigo. (N. dos
lÉtablissement des Compagnies des Indes. Tomo T.)
II, parte II, pág. 428. (N. do A.) 23J Recueil des Voyages qui Ont Servi à
2 2 9 Notai bem isso como uma máxima de prática 1’Eiablissement des Compagnies des Indes, t. V,
nos casos em que os espíritos foram estragados por pág. 2. (N. do A.)
penas muito rigorosas. (N. do A.) 2 3 2 Ibid. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 99

Capítulo XIV

Do espírito do senado de Roma

No consulado de Acílio Glábrio e de Pisão, Cornélio tinha resolvido estabelecer penas ter­
para acabar com as conjurações, fez-se a lei ríveis contra este crime, para o qual o povo era
Acília233. Dion23 2*4 afirma que o senado obri­ fortemente impelido. O senado acreditava que
gou os cônsules a propô-la, pois o tribuno C.
as penas desmedidas lançariam o terror nos
233 A condenação dos culpados era uma multa: espíritos mas teriam o efeito de não se encon­
eles não podiam ser admitidos na ordem dos sena­ trar mais ninguém para acusar nem para con­
dores e nomeados para qualquer magistratura.
Dion, liv. XXXVI, cap. XXI. (N. do A.) denar, ao passo que, propondo penas leves,
23 4 Ibid. (N. do A.) apareceríam juizes e acusadores.

Capítulo XV

Das leis romanas em relação às penas

Sinto-me seguro em minhas máximas quan­ Mas as pessoas que queriam destruir a liber­
do me ocupo dos romanos e creio que os casti­ dade temiam os escritos que podiam reanimar
gos dependem da natureza do governo quando o espírito da liberdade23 7.
vejo esse grande povo modificar, a esse respei­ Após a exclusão dos decênviros, quase
to, as leis civis, à medida que alterava as leis todas as leis que tinham estabelecido as penas
políticas. foram revogadas. Não foram ab-rogadas ex­
Foram muito severas as leis reais feitas para pressamente, mas elas não tiveram aplicação,
um povo composto de fugitivos, de escravos e pois a lei Pórcia proibiu a condenação à morte
de ladrões. O espírito da república requeria de um cidadão romano.
que os decênviros não inserissem estas leis nas Eis aí a época em que se pode aplicar o que
suas Doze Tábuas. Porém, pessoas que aspira­ Tito Lívio23 8 disse dos romanos: nunca povo
vam à tirania não possuíam a preocupação de algum amou mais a moderação das penas.
seguir o espírito da república. Acrescentando-se à suavidade das penas o
Tito Lívio23 5 diz, referindo-se ao suplício direito que o acusado possuía de refugiar-se
de Mécio Sufécio, ditador de Alba, condenado antes do julgamento, ver-se-á claramente que
por Túlio Hostílio a ser arrastado por dois car­ os romanos seguiram o espírito que eu disse
ros, que esse foi o primeiro e último suplício ser natural à república.
em que se testemunha uma perda de respeito Sila, que confundiu a tirania, a anarquia e a
pela humanidade. Ele se engana: as Leis das liberdade, foi o responsável pelas leis cornelia-
Doze Tábuas estão repletas de disposições nas. Parecia que seus regulamentos só eram
muito cruéis23 6. feitos para estabelecer crimes. Assim, qualifi­
A pena capital pronunciada contra os auto­ cando uma infinidade de ações como assassí­
res de libelos e os poetas é a que melhor revela nios, encontrou por toda parte assassinos. E,
o propósito dos decênviros. Isto quase não é por uma prática logo imitada, preparou arma­
próprio do espírito da república, em que o dilhas, semeou espinhos, abriu abismos no
povo gosta de ver os poderosos humilhados. caminho de todos os cidadãos.

2 3 5 Liv. I, cap. XXVIII. (N. do A.) 2 3 7 Sila, animado do mesmo espírito que os decên­
23 6 Nelas, encontra-se o suplício do fogo, penas viros, aumentou, com eles, as penas contra os escri­
quase sempre capitais, o roubo punido com a morte tores satíricos. (N. do A.)
etc. (N. do A.) 23 8 Liv. I, cap. XXXVIII. (N. do A.)
100 MONTESQUIEU

Quase todas as leis de Sila só continham a baixa condição social2 43, que foram as penas
interdição da água e do fogo. A isso César mais rigorosas.
acrescentou o confisco dos bens239, pois os O feroz e insensato Maximino irritou, por
ricos, conservando no exílio seu patrimônio, assim dizer, o governo militar, que ele deveria
eram mais audaciosos para cometer crimes.
ter acalmado. O senado era informado, diz
Tendo os imperadores estabelecido um
Capitolino2 4 4, de que uns tinham sido crucifi­
governo militar, logo perceberam que este era
menos terrível para seus súditos do que para cados, outros lançados às feras, ou embru­
eles. Assim, procuraram moderá-lo. Julgaram lhados em peles de animais recentemente mor­
que as dignidades e o respeito que antes goza­ tos, sem nenhuma consideração por suas
vam eram necessários. dignidades. Ele parecia querer exercer a disci­
Aproximaram-se um pouco da monarquia e plina militar do mesmo modo como pretendia
dividiram as penas em três classes2*40: as que administrar os negócios civis.
se relacionavam com as principais persona­ Encontrar-se-á, nas Considerações sobre a
gens do Estado2 41 e que eram assaz suaves; as Grandeza dos Romanos e Sua Decadência2 4 5,
que eram infligidas às pessoas de categoria
como Constantino transformou o despotismo
inferior2 42 e que eram mais severas; final­
militar num despotismo militar e civil, aproxi­
mente, as que diziam respeito às pessoas de
mando-se da monarquia. Pode-se acompanhar
239 Paenas facinorum auxit, cum locupletes eo as diversas revoluções desse Estado e ver
facilius scelere se obligarent, quod integris patrimo- como se passou do rigor à indolência e da
niis exularent. Suetônio, in Julio Caesare, cap.
LXII. (N. do A.) indolência à impunidade.
2 40 Vede a lei 3, § legis, ad legem Cornei, de sica-
riis, e um grande número de outras, no Digesto e no 2 43 ínfimos. L. 3, § legis, ad leg. Cornei, de sica-
Código. (N. do A.) riis. (N. do A.)
2 41 Sublímiores. (N. do A.) 2 4 4 Jul. Cap., MaximiniDuo, cap. VIII. (N. do A.)
2 42 Médios. (N. do A.) 2 4 5 Cap. XVII. (N. do A.)

Capítulo XVI

Da justa proporção das penas com o crime

É essencial que as penas estejam harmonio­ lá. “Sire”, responderam-lhe, “é porque ele lan­
samente relacionadas entre si, pois é mais çou alguns libelos contra vossos ministros.”
importante evitar antes um grande crime do “Grande tolo!”, retorquiu o rei, “por que não
que um menor, aquilo que ataca a sociedade os lançou contra mim? Nada lhe teria aconte­
antes daquilo que a prejudica menos. cido.”
“Um impostor2 4 6, que se apresentara como “Setenta pessoas conspiraram contra o
Constantino Ducas, suscitou grande subleva- Imperador Basílio2 4 7, que determinou que elas
ção em Constantinopla. Foi preso e condenado fossem açoitadas; queimaram-lhes os cabelos e
ao açoite; mas, como acusasse pessoas impor­ o pêlo. Tendo um cervo lhe prendido o cinto
tantes, foi condenado a ser queimado como com sua galharia, alguém do séquito tomou da
caluniador.” É singular assim que se tivessem espada, cortou o cinto e o libertou. O impera­
colocado em proporção as penas entre o crime dor mandou decepar-lhe a cabeça, pois, como
de lesa-majestade e o de calúnia.
explicou, usara da espada contra ele.” Quem
Este fato nos relembra uma frase de Carlos
poderia pensar que no governo do mesmo prín­
II, rei da Inglaterra. Viu, ao passar, um homem
cipe estes dois julgamentos pudessem ser
no pelourinho e perguntou por que ele estava
proferidos?
2 4 6 História, de Nicéforo, patriarca7 de Constanti­ É, entre nós, um grande erro aplicar o
nopla. (N. do A.)* mesmo castigo ao que assalta estradas e ao
*Perry (John), viajante inglês, engenheiro de Pedro,
o Grande (1670-1732). 2 4 7 História, de Nicéforo. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 101

que rouba e assassina. É evidente, para a segu­ Quando não há diferença na pena, é neces­
rança pública, que se deveria estabelecer algu­ sário colocá-la na esperança do perdão. Na
ma diferença na pena. Inglaterra, não se assassina porque os ladrões
Na China, os ladrões cruéis são esquarteja­
podem esperar ser transportados para as colô­
dos2 48, os outros não; essa diferença faz com
nias, mas os assassinos não.
que se roube mas que não se assassine.
Na Moscóvia, onde a pena para ladrões e Outro grande apoio para os governos mode­
assassinos é a mesma, sempre se assassina2 49. rados são as cartas de perdão. Esse poder que
Os mortos, dizem, nada revelam. o príncipe tem de perdoar, executado com
sabedoria, pode ter efeitos admiráveis. O prin­
2 4 8 P. du Halde, 1.1, pág. 6. (N. do A.)
2 49 O Estado Atual da Grande Rússia, por Perry. cípio do governo despótico, que não perdoa e
(N. do A.) não perdoará nunca, priva-o destas vantagens.

Capítulo XVII

Da tortura ou da questão2 50 contra


os criminosos

Já que os homens são perversos, a lei é obri­ que o medo inspira participa dos fundamentos
gada a supô-los melhores do que são. Assim, o do governo. Ia dizer que os escravos, entre os
depoimento de duas testemunhas é suficiente gregos e os romanos. . . Mas ouço a voz da
para a punição de todos os crimes. A lei crê natureza que grita contra mim.
nelas como se falassem pela boca da verdade.
Julga-se, deste modo, que toda criança conce­ 2 50 “Questão”, aqui, com o sentido de interroga­
bida durante o casamento é legítima. A lei con­ tório, seguido de suplícios. (N. dos T.)
fia na mãe como se ela fosse a própria pudicí- 251 A nação inglesa. (N. do A.)
cia. Mas a questão contra os criminosos não se 2 62 Os cidadãos de Atenas não podiam ser subme­
inclui em casos extremos como esse. Vemos tidos às questões (Lísias, Orat. in Argorat.), exceto
por crime de lesa-majestade. As questões eram apli­
atualmente uma nação251 muito civilizada cadas trinta dias após a condenação (Cúrio Fortu-
rejeitá-la sem qualquer inconveniente. Portan­ nato, Rhetor., Scol., liv. II). Não existia questão
to, ela não é naturalmente necessária2 52. preparatória. Quanto aos romanos, a lei 3 e 4 ad
Tantas pessoas notáveis e tantos gênios leg. Jul. mqj. fez ver que o nascimento, a dignidade,
a profissão de milícia isentavam da questão, se não
escreveram contra esta prática que não ouso se tratasse de crime de lesa-majestade. Vede as sá­
falar depois deles. Ia dizer que elas poderíam bias restrições que a lei dos visigodos colocava con­
convir aos governos despóticos, onde tudo o tra esta prática. (N. do A.)

Capítulo XVIII

Das penas pecuniárias e das penas corporais

Os germanos, nossos antepassados, apenas burlariam as punições. Mas não receiam os


admitiam castigos pecuniários. Esses homens ricos perder seus bens? Não podem as penas
belicosos e livres consideravam que seu sangue pecuniárias ser proporcionais às fortunas? E,
apenas podia ser vertido em combate. Inversa­ finalmente, não pode a infâmia ser somada a
mente, os japoneses2 53 rejeitavam tais espé­ estas penas?
cies de castigos sob pretexto de que os ricos253 Um bom legislador adota justo meio-termo:
nem sempre ordena penas pecuniárias, nem
253 Vede Kempfer. (N. do A.) sempre aplica penas corporais.
102 MONTESQUIEU

Capítulo XIX

Da lei de talião
Os Estados despóticos, que apreciam as leis só condenava à pena de talião quando não
simples, utilizam amiúde a lei de talião2*5 4. Os podia apaziguar o suplicante2 5 5. Podia-se,
Estados moderados aceitam-na algumas vezes. após a condenação, pagar danos e perdas2 5 6,
Entretanto, existe esta diferença: os primeiros convertendo a pena corporal em pecuniá­
a exercem rigorosamente, e os segundos a utili­ ria2 5 7.
zam moderadamente.
2 5 5 Si membrum rupit, ni cum eo pacit, talio esto.
A Lei das Doze Tábuas admitia duas delas: Aulo Gélio, liv. XX, cap. I. (N. do A.)
2 5 6 Ibid. (N. do A.)
2 5 4 É estabelecida no Alcorão. Vede o capítulo Da 2 5 7 Vede também a lei dos visigodos, livro VI, tit.
Vaca. (N. do A.) IV, §§ 3 e 5. (N. do A.)

Capitulo XX

Da punição dos pais em lugar dos filhos

Na China, punem-se os pais pelas faltas dos leis. Isto sempre supõe que não há honra entre
filhos. Isso era costume no Peru2 58. Tal proce­ os chineses. Entre nós, os pais cujos filhos são
dimento também é inspirado por idéias despó­ condenados ao suplício e os filhos2 59 cujos
ticas. pais sofreram a mesma sorte são punidos pela
Diz-se comumente que, na China, se pune o desonra, fato que corresponde à perda da vida
pai por não utilizar o poder paternal estabele­ na China.
cido pela Natureza e aumentado pelas próprias
2 59 Em lugar de puni-los, dizia Platão, deve-se
2 58 Vede Garcilaso, História das Guerras Civis elogiá-los por não se assemelharem a seus pais (liv.
dos Espanhóis. (N. do A.) IX das Leis). (N. do A.)

Capítulo XXI

Da clemência do príncipe

A clemência é a qualidade distintiva dos Os poderosos são tão severamente punidos


monarcas. Ela é menos necessária na república pelo desvalimento, pela perda — muitas vezes
cujo princípio é a virtude. No Estado despó­ imaginária — de sua fortuna, dc seu crédito,
tico, em que predomina o temor, é menos utili­ de seus hábitos, de seus prazeres, que o rigor
zada, pois é preciso conter os grandes do Esta­ em relação a eles é inútil: só serve para extin-
do com exemplos de severidade. Nas guir o amor dos súditos pelo príncipe e o res­
monarquias, em que se é governado pela peito que deveríam ter pelas hierarquias.
honra, que exige frequentemente o que a lei Como a instabilidade dos poderosos é da
proíbe, ela é mais necessária. A desgraça equi­ natureza do governo despótico, sua segurança
vale, nas monarquias, ao castigo, e as próprias faz parte da natureza da monarquia.
formalidades dos julgamentos são aí punições: Os monarcas lucrarão tanto com a clemên­
a vergonha surge de todos os lados para for­ cia, ela é seguida de tanto amor, dela tiram
mar gêneros particulares de penas. tanta glória, que quase sempre é uma felici­
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 103

dade para eles terem ocasião de exercê-la; e o príncipe ao desprezo e até à impotência de
eles quase sempre podem exercê-la em nossos punir.
países. O Imperador Maurício resolveu nunca ver­
ter o sangue de seus súditos. Anastácio2 60 não
Ser-lhe-á disputada, talvez, alguma parcela punia os crimes. Isaac, o Anjo, jurou que não
da autoridade, mas quase nunca toda a autori­ mandaria matar pessoa alguma em seu reina­
dade e, se algumas vezes combatem pela do. Os imperadores gregos esqueceram que
coroa, de forma alguma combatem pela vida. não era em vão que usavam espada.
Mas, dir-se-á, quando se deve punir? Quan­ 2 6o Fragmentos dos suídas [que se encontramj em
do se deve perdoar? É uma coisa que é melhor Constantino Porfirogêneto. (N. do A.)*
sentir do que prescrever. Quando há perigos na * “O sentido do original”, diz Crévier, “é que
Anastácio dava os cargos a súditos indignos. A an­
clemência, eles são muito visíveis; distingue-se tiga versão latina dos suídas enganou Montes­
facilmente a clemência dessa fraqueza que leva quieu.’,’
LIVRO SÉTIMO
CONSEQUÊNCIAS DOS DIFERENTES PRINCÍPIOS
DOS TRES GOVERNOS EM RELAÇÃO ÀS LEIS SUNTUÃRIAS,
AO LUXO E Ã CONDIÇÃO DAS MULHERES
Capítulo I

Do luxo

O luxo sempre é proporcional à desigual­ desigualdade de riquezas dos diversos Estados.


dade das fortunas. Se, num Estado, as riquezas Na Polônia, por exemplo, as fortunas são
são distribuídas proporcionalmente não haverá extremamente desiguais mas a pobreza do con­
luxo, pois ele é baseado somente sobre os junto impede que haja tanto luxo quanto num
haveres obtidos pelo trabalho alheio. Estado mais rico.
Para que as riquezas continuem igualmente O luxo é ainda proporcional à grandeza das
divididas, cumpre que a lei apenas outorgue a cidades e sobretudo da capital; de maneira que
cada um o necessário material. Se se obtiver está na razão composta das riquezas do Esta­
mais do que isso, uns gastarão, outros adquiri­ do, da desigualdade da fortuna dos particu­
rão e a desigualdade estabelecer-se-á. lares e do número de homens que se aglome­
Supondo o necessário físico igual a uma ram cm determinados lugares.
soma dada, o luxo dos que apenas terão o Quanto mais houver homens reunidos, tanto
necessário será igual a zero; o que tiver o mais esses serão fúteis e sentirão nascer neles o
dobro possuirá um luxo igual a um; o que pos­ desejo de se notabilizar por pequenas coi­
suir o dobro dos bens deste último terá um sas2 62. Se estão em número tão grande que a
luxo igual a três; quando se tenha ainda o maioria se desconheça entre si, o desejo de se
dobro, ter-se-á um luxo igual a sete; de manei­ distinguir redobra, porque há mais esperança
ra que os bens do indivíduo imediatamente de êxito. O luxo confere esta esperança; cada
superior, e sempre considerados o dobro dos um utiliza os atributos da condição que prece­
do precedente, o luxo aumentará do dobro de a sua. Mas, à força de querer se distinguir,
mais a unidade, nesta progressão; 0, 1, 3, 7, todos se tornam iguais e ninguém mais se nota­
15,31,63. 127. biliza; como todos querem atrair a atenção
Na república de Platão2 61, o luxo poderia para si, não se nota pessoa alguma.
ser calculado exatamente. Havia quatro espé­ Resulta de tudo isso um transtorno geral. Os
cies de censo estabelecidas. O primeiro era que se notabilizam numa profissão estipulam
precisamente o termo onde a pobreza termina­ para seu ofício o preço que bem entendem; os
va; o segundo era o dobro, o terceiro o triplo, talentos menores seguem esse exemplo e não
o quarto o quádruplo do primeiro. No pri­ há mais harmonia entre as necessidades e os
meiro censo, o luxo era igual a zero, no segun­ recursos. Quando sou forçado a litigar, é
do, igual a um, a dois no terceiro, a três no necessário que possa pagar um advogado;
quarto; e ele seguia, assim, a proporção quando estou doente, é necessário que possa
aritmética. chamar um médico.
Considerando o luxo dos diversos povos, Pensaram alguns que, reunindo tantas pes­
uns em relação aos outros, ele se revela em soas numa capital, diminuir-se-ia o comércio
cada Estado na razão composta da desigual­
dade das fortunas que há entre os cidadãos e a 2 62 Numa grande cidade, diz Mandeville, autor da
Fable des Abeilles, t. 1, pág. 133, veste-se acima de
2 61 O primeiro censo era a condição hereditária de sua qualidade para ser mais estimado pela multi­
terras c Platão não queria que se pudesse ter comò dão. É um prazer para um espírito fraco, quase tão
outros bens mais do triplo da condição hereditária. grande como o prazer da realização de seus desejos.
Vede suas Leis, liv. IV. (N. do A.) (N. do A.)
108 MONTESQUIEU

porque os homens não mais estão distanciados mais necessidade, mais capricho quando se
uns dos outros. Não creio; há mais desejo, está reunido.

Capítulo II

Das leis suntuárias na democracia

Acabo de dizer que nas repúblicas em que república, o espírito volta-se para o interesse
as riquezas são distribuídas igualmente não particular, Para as pessoas a quem o neces­
pode existir luxo e, como se viu no livro V2 63 sário é suficiente, só resta desejar a glória da
que esta igualdade na distribuição fazia a exce­ pátria e a sua própria. Porém, uma alma cor­
lência de uma república, conclui-se que quanto rompida pelo luxo possui muitos outros dese­
menos luxo haja numa república, tanto mais jos: cedo se torna inimiga das leis que a cons­
perfeita será ela. Não havia luxo entre os pri­ trangem. O luxo que a guarnição de Régio
meiros romanos como também entre os lacede- começou a conhecer arruinou os seus habitan­
mônios e, nas repúblicas em que a igualdade tes.
não está completamente perdida, o espírito de Logo que os romanos se corromperam, seus
comércio, de trabalho e de virtude faz com que desejos tornaram-se imensos. Isso pode ser jul­
todos possam e todos queiram viver de acordo gado pelo preço que deram às coisas. Um cân­
com suas posses e que, consequentemente, taro de vinho de Falerno2 6 4 era vendido por
exista pouco luxo. cem denários romanos; um barril de carne sal­
As leis da nova partilha dos campos, recla­
gada do Ponto custava quatrocentos; um bom
mada insistentemente em algumas repúblicas,
eram naturalmente salutares. Elas apenas são cozinheiro, quatro talentos; os jovens não ti­
perigosas como ação súbita. Suprimindo re­ nham preço. Quando por uma impetuosida­
pentinamente as riquezas de uns e aumentando de2 6 5 geral todos se entregavam à voluptuosi-
do mesmo modo as dos outros, produzem em dade, em que se transformava a virtude?
cada família uma revolução e devem produzir
2 6 4 Fragmento do livro XXXVI de Diodoro, cita­
outra, geral, no Estado. do por Constantino Porfirogêneto, Extrato das Vir­
A medida que o luxo se estabelece numa tudes e dos Vícios. (N. do A.)
2 6 5 Cum maximus omnium impetus ad luxuriam
2 63 Caps. III e IV. (N. do A.) esset. Ibid. (N. do A.)

Capítulo III

Das leis suntuárias na aristocracia

A aristocracia mal constituída possui esta tirar-lhes dinheiro. Utiliza-se este meio para
desgraça: os nobres são ricos e, entretanto, não apoiar a indústria: mulheres mais desprezíveis
devem gastar; o luxo contrário ao espírito de gastam sem perigo, enquanto seus tributários
moderação deve ser banido. Só há, portanto, levam a vida mais obscura do mundo.
As boas repúblicas gregas tinham, a este
pobres que não podem receber e ricos que não
respeito, instituições admiráveis. Os ricos
podem gastar. empregavam dinheiro em festas, em coros de
Em Veneza, as leis obrigam os nobres à música, carros, cavalos de corrida, magistra­
modéstia. Acostumaram-se de tal modo a turas onerosas. As riquezas eram tão pesadas
economizar, que apenas as cortesãs podiam como a pobreza.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 109

Capítulo IV

Das leis suntuárias nas monarquias

“Os suiãos, povo germânico, rendem home­ senado, o restabelecimento das antigas leis
nagem às riquezas”, diz Tácito2*6 6, “o que faz suntuárias2 68. Este príncipe erudito opôs-se.
com que vivam sob ò governo de um só.” Isto “O Estado não poderia subsistir”, dizia ele,
significa que o luxo é singularmente caracte­ “no atual estado de coisas. Como poderia
rístico das monarquias e que nelas não se Roma viver? Como as províncias poderíam
necessita de leis suntuárias. viver? Tínhamos a frugalidade quando éramos
Como, pela constituição das monarquias, as cidadãos de uma única cidade; hojé consumi­
riquezas são distribuídas de maneira desigual, mos a riqueza de todo o universo; fazemos
é realmente necessário que exista luxo. Se os senhores e escravos trabalharem para nós.”
ricos não despendem muito, os pobres morre­ Ele via bem que não mais se necessitava de leis
rão de fome. É mesmo indispensável que os suntuárias.
ricos gastem proporcionalmente à desigual­ Quando, no reinado do mesmo imperador,
dade das fortunas e, como dissemos, que o propôs-se ao senado proibir os governadores
luxo aumente na mesma proporção. As rique­ de levarem suas mulheres para as províncias
zas particulares só aumentam porque suprimi­ por causa dos desregramentos que aí introdu­
ram a uma parcela dos cidadãos o necessário ziam, esta proposta foi rejeitada. Diz-se “que
físico; cumpre, portanto, que este lhe seja os exemplos da inflexibilidade dos antigos ti­
devolvido. nham sido modificados em favor de um modo
Assim, para que o Estado monárquico se de vida mais agradável”2 69. Sentiu-se que
sustente, o luxo deve ir aumentando, do lavra­ havia necessidade de outros costumes.
dor ao artesão, ao negociante, aos nobres, aos O luxo é, portanto, necessário nos Estados
magistrados, aos grandes senhores, aos contra- monárquicos e também nos Estados despóti­
tadores principais, aos príncipes, sem o que cos. Nos primeiros, é um uso que se faz do
tudo se perdería. grau de liberdade possuída; nos outros, é um
abuso feito das vantagens de sua servidão.
No senado de Roma, composto de graves
magistrados, de jurisconsultos e de homens
Quando um senhor, inseguro quanto ao futuro
de sua fortuna de cada dia, escolhe um escravo
imbuídos da idéia dos primeiros tempos,
para tiranizar os outros escravos, a única feli­
propos-se, na época de Augusto, a correção
cidade que possui é saciar o orgulho, os dese­
dos costumes e do luxo das mulheres. É curio­
jos e as volúpias diárias.
so ver em Dion2 6 7 com que arte ele eludiu as
Tudo isso conduz a uma reflexão. As repú­
demandas importunas desses senadores. É que blicas morrem pelo luxo e as monarquias, pela
ele fundava uma monarquia e dissolvia uma pobreza2 70.
república.
Na época de Tibério os edis propuseram, no 2 88 Tácito, Anais, liv. III, cap. XXXIV. (N. do A.)
289 Múlta duritiei veterum melius et laetius muta-
2 8 8 De Moribus Germanorum, cap. XLIV. (N. do ta. Tácito, Anais, liv. III, cap. XXXIV. (N. do A.)
A.) 2 70 Opulentia paritura mox egestatem. Floro, liv
2 8 7 Dion Cássio, liv. LIV, cap. XVI. (N. do A.) III, cap. XII. (N. do A.)
110 MONTESQUIEU

Capitulo V

Em que casos as leis suntuárias


são úteis numa monarquia

Foi no espírito da república, ou em alguns Estado, verificando que mercadorias estran­


casos particulares, que, em meados do século geiras de preço muito elevado exigiriam uma
XIII, se estabeleceram leis suntuárias em Ara- tal exportação de suas próprias que ele se pri­
gão. Jaime I ordenou que tanto o rei como seus varia dessas mais do que se satisfaria com
súditos não poderíam comer mais de duas aquelas, proíbe terminantemente a entrada das
espécies de carne em cada refeição e que cada mercadorias vindas de fora. Este é o espírito
uma seria preparada apenas de uma maneira, a das leis feitas atualmente na Suécia2 72. São as
menos que fosse da caça que a própria pessoa únicas leis suntuárias que convêm às monar­
tivesse matado2*71. quias.
Na Suécia, em nossos dias, fazem-se tam­ Em geral, quanto mais pobre é um Estado,
bém leis suntuárias, mas elas possuem um tanto mais é arruinado por seu luxo relativo e
objetivo diferente das de Aragão. tanto mais, consequentemente, necessita de leis
Um Estado pode estabelecer leis suntuárias suntuárias relativas. Quanto mais um Estado é
objetivando uma frugalidade absolu.ta; é o rico, tanto mais seu luxo relativo o enriquece e,
espírito das leis suntuárias nas repúblicas; e a nesse caso, é muito necessário evitar leis
natureza da coisa revela que esta foi a finali­ suntuárias relativas. Explicaremos melhor esta
dade das leis de Aragão. questão no livro sobre o comércio2 73. Trata­
As leis suntuárias também podem ter uma mos aqui apenas do luxo absoluto.
frugalidade relativa como objetivo, quando um
2 72 Interditaram-se os vinhos requintados e as ou­
tras mercadorias preciosas. (N. do A.)
2 71 Constituição de Jaime I, do ano de 1234, art. 2 73 Lettres Persanes, C VI. Vede infra, liv. XX, cap.
6, na Marca Hispânica, pág. 1 429. (N. do A.) XX. (N. do A.)

Capítulo VI

Do luxo na China

Razões particulares reclamam leis suntuá­ França, há trigo em quantidade suficiente para
rias em alguns Estados. Pela força do clima, o nutrir os lavradores e os empregados de manu­
povo pode tornar-se tão numeroso e de outro faturas. Além disso, o comércio com os estran­
lado os meios de subsistência tão precários, geiros pode obter com coisas frívolas tantas
que é conveniente aplicá-lo integralmente à coisas necessárias, que quase não se deve
cultura da terra. Nesses Estados, o luxo é peri- temer o luxo.
e. as leis suntuárias devem ser rigorosas. Na China, pelo contrário, as mulheres são
Assim, para saber se é necessário encorajar ou tão fecundas e a espécie humana multiplica-se
proscrever o luxo, primeiramente se deve a tal ponto, que as terras, por mais cultivadas
observar a relação entre o número de habitan­ que sejam, mal chegam para a alimentação dos
tes e a facilidade de obtenção dos meios de habitantes. O luxo é, portanto, pernicioso e o
fazê-los viver. Na Inglaterra, o solo produz
espírito de trabalho e de economia é tão neces­
muito mais cereais do que é necessário para
sário como em qualquer outra república2 7 4. E
nutrir os que cultivam as terras e os que procu
ram vestimentas. Portanto, podem-se aí cultivar
artes frívolas e, consequentemente, o luxo. Na 2 7 4 O luxo foi sempre detido. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 111

mister que se dediquem aos ofícios necessários ciosas achadas numa mina, não querendo que
e que se afastem da voluptuosidade. seu povo se fatigasse trabalhando por uma
Eis aqui o espírito das belas ordenanças dos coisa que não o poderia nutrir nem vestir,
imperadores chineses: “Nossos antepassados”, mandou fechar a mina.
diz um imperador da família dos Tang2 7 5, “ti­ “Nosso luxo é tão grande”, diz Kiayven-
nham por máxima que, existindo um homem ti2 7 7, “que o povo orna com bordados as san­
que não lavrasse a terra, uma mulher que não
fiasse, alguém sofreria frio ou fome no impé­ dálias dos mancebos e donzelas, que é obri­
gado a vender.” Havendo tantos homens
rio.. . ” E, baseado neste princípio, mandou
arrasar uma infinidade de monastérios de ocupados em fazer roupas para um único,
bonzos. como não haver muitas pessoas sem roupas?
Um terceiro imperador da vigésima pri­ Há dez homens que usufruem a renda das ter­
meira dinastia2 7 6, a quem levaram pedras pre- ras para um lavrador: como não haver carên­
cia de alimentos para muitas pessoas?
2 7 5 Numa ordenança citada pelo Padre du Halde,
tomo II, pág. 497. (N. do A.)
2 7 6 Histoire de la Chine, vigésima primeira dinas­ 2 7 7 Num discurso citado pelo Padre du Halde, t.
tia, na obra do Padre du Halde, 1.1. (N. do A.) II, pág. 418. (N. do A.)

Capítulo VII

Fatal consequência do luxo na China

Na história da China vê-se que ela possuiu verificado ser tão úteis e temessem as volúpias
vinte e duas dinastias sucessivas; quer dizer, que tinham verificado ser tão funestas. Porém,
ela experimentou vinte e duas revoluções após esses três ou quatro primeiros príncipes, a
gerais, sem contar uma infinidade de revolu­ corrupção, o luxo, o ócio, as delícias apodera­
ções menores. As três primeiras dinastias ram-se de seus sucessores; encerravam-se em
duraram muito tempo, pois foram sabiamente seus palácios, seu espírito enfraquecia-se, sua
governadas e o império era menos extenso do
vida encurtava, a família declinava; os podero­
que o foi mais tarde. Mas, de um modo geral,
sos fortalecem-se, os eunucos adquirem repu­
pode-se dizer que todas essas dinastias come­
çaram muito bem. Na China, a virtude, a vigi­ tação e apenas crianças sobem ao trono; o
lância, a atenção são necessárias. Elas existi­ palácio torna-se inimigo do império; um povo
ram no início das dinastias e faltaram no final. ocioso que o habita arruina os que trabalham,
De fato, era natural que os imperadores, edu­ o imperador é morto ou destruído por um
cados nas fadigas da guerra, conseguissem usurpador que estabelece uma dinastia, cujo
destronar uma família mergulhada numa vida terceiro ou quarto herdeiro ainda se encerrará
cômoda, conservassem as virtudes que tinham no mesmo palácio.

Capítulo VIII

Da continência pública2 7 8

Há tantas imperfeições relacionadas à perda ma das desgraças e a certeza de uma reforma


da virtude nas mulheres, toda a sua alma é tão na constituição.
fortemente degradada por esta perda e, supri­ Destarte, os bons legisladores exigem das
mindo este ponto capital, faz-se cair tantos mulheres certa severidade de costumes. Pros-
outros, que se pode considerar, num Estado
popular, a incontinência pública como a últi­ 2 7 8 Ver o assunto retomado no liv. XVI, cap. XII.
112 MONTESQUIEU

creveram da república não somente o vício corrompidas, que dá um preço a todas as insig­
como também sua própria aparência. Baniram nificâncias e rebaixa o que é importante, fazen­
até mesmo esse comércio de galanteria que do com que as pessoas se orientem apenas
produz a ociosidade, que faz com que as pelas máximas do ridículo que as mulheres jul­
mulheres corrompam antes mesmo de serem gam tão necessário estabelecer.

Capítulo IX

Da condição das mulheres nos diferentes governos

As mulheres têm pouco recato nas monar­ possuem várias mulheres e mil considerações
quias, pois as distinções sociais, çhamando-as obrigam-nos a conservá-las isoladas.
à corte onde o espírito de liberdade é quase o Nas repúblicas, as mulheres são livres pelas
único tolerado, por ele tomarão gosto. Todos leis e prisioneiras pelos costumes; o luxo é ba­
nido delas, levando consigo a corrupção e os
se servem de seus prazeres e de suas paixões
vícios.
para aumentar a fortuna; e, como sua fraqueza
Nas cidades gregas, em que não se vivia sob
não lhes permite o orgulho mas a vaidade, o esta religião que estabelece que a pureza dos
luxo sempre impera com ela. costumes, mesmo entre os homens, é uma par­
Nos Estados despóticos, as mulheres não cela da virtude; nas cidades gregas, em que o
introduzem o luxo, pois elas próprias são um vício cego reinava desenfreadamente, em que o
objeto de luxo e devem ser completamente amor possuía apenas uma forma que não ouso
escravizadas. Cada um acompanha o espírito dizer qual seja, enquanto só a amizade refugia-
ra-se no casamento2 7 9; a virtude, a castidade,
do governo e leva para casa o que vê estabele­ a simplicidade das mulheres eram tais, que
cido alhures. Como as leis são severas e de dificilmente se encontrou povo que tivesse tido
imediata execução, teme-se que a liberdade das a esse respeito melhores costumes280.
mulheres crie problemas. Suas tolices, suas
indiscrições, suas repugnâncias, suas tendên­ 2 79 “Quanto ao verdadeiro amor”, diz Plutarco*,
cias, seus ciúmes, suas implicâncias, esta arte “as mulheres não o possuem em parte alguma.”
Obras Morais, tratado Do Amor, pág. 600. Ele fala­
que os espíritos insignificantes possuem de va como seu século. Vede Xenofonte no diálogo
predispor-se contra os grandes, não poderíam intitulado Hieron. (N. do A.)
deixar de ter consequências. * Ou pelo menos um dos personagens de Plutarco.
2 80 Em Atenas existia um magistrado particular
Além disso, como nesses Estados os prínci­ que velava pelo comportamento das mulheres. (N.
pes divertem-se com a natureza humana, eles do A.)

Capítulo X

Do tribunal doméstico entre os romanos

Os romanos não possuíam, como os gregos, magistradura estabelecida entre os gregos2 82.
magistrados particulares que inspecionassem o O marido convocava os pais da mulher e a
procedimento das mulheres. Os censores ape­
nas as vigiavam como o resto da república. A
instituição do tribunal doméstico281* supriu a 2 82 Vede, em Tito Lívio, liv. XXXIX,.o uso que se
fez desse tribunal quando da conjuração das baca
nais: as assembléias, em que se corrompiam os cos
281 Segundo Dionísio de Halicarnasso, liv. II, pág. tumes das mulheres e dos jovens, eram chamadas
96, Rômulo instituiu esse tribunal. (N. do A.) conjurações contra a república. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 113

julgava diante deles283. Este tribunal manti­ mentos da modéstia, quase não pode ser
nha os costumes na república, mas esses mes­ abrangido num código de leis. É fácil regula­
mos costumes mantinham esse tribunal que mentar com leis o que se deve aos outros; é
devia julgar não somente da violação das leis difícil abranger nas leis tudo que se deve a si
como também da dos costumes. Ora, para jul­ mesmo.
gar da violação dos costumes é preciso tê-los. O tribunal doméstico regulamentava o com­
As penas desse tribunal deviam ser arbitrá­ portamento geral das mulheres. Porém havia
rias, e efetivamente o eram, pois tudo que se um crime que, além da animadversão desse tri­
relaciona com os costumes, com os manda- bunal, era ainda submetido a uma acusação
pública: era o adultério; seja porque, numa
283 Segundo Dionísio de Halicarnasso, liv. II, pela
república, tão grande violação dos costumes
instituição de Rômulo o marido, em casos ordiná­ interessasse ao governo, seja porque o desre-
rios, julgava sozinho diante dos pais da esposa e. gramento da esposa levantasse suspeita sobre
nos grandes crimes, julgava com cinco dentre eles. o do marido; seja, enfim, porque se temesse
Assim Ulpiano, no título VI, 9, 12 e 13, distingue que as próprias pessoas honestas preferissem
nos julgamentos dos costumes os que chama graves'
dos que o eram menos: mores graviores, mores ocultar esse crime a puni-lo, ignorá-lo a
leviores. (N. do A.) vingá-lo.

Capítulo XI

Como as instituições, em Roma,


transformaram-se com o governo

Como o tribunal doméstico supunha a exis­ mais para o término da acusação pública.
tência de costumes, a acusação pública tam­ Temia-se que um cidadão desonesto, ofendido
bém o supunha; e isto fez com que estas duas pelo desprezo de uma mulher, indignado com
coisas caíssem com os costumes e desapare­ suas recusas e mesmo exasperado com sua vir­
cessem com a república2 8 4. tude, resolvesse planejar sua perda. A lei Júlia
O estabelecimento das questões perpétuas, ordenava que só se poderia acusar uma mulher
isto é, da divisão da jurisdição entre os preto- de adultério depois de ter acusado seu marido
res, e o costume, cada vez mais generalizado, de favorecer seus desregramentos; isso muito
de que esses próprios pretores julgassem todas restringiu esta acusação e, por assim dizer,
as questões2 8 5 enfraqueceram a prática do tri­ anulou-a2 8 6.
bunal doméstico, fato que se revela pela sur­ Sisto V pareceu querer renovar a acusação
presa dos historiadores que olhavam os julga­ pública2 8 7. Mas basta refletir um pouco para
mentos que Tibério mandou proferir por esse ver que esta lei, numa monarquia tal como a
tribunal como acontecimentos singulares e sua, era ainda mais imprópria que em qualquer
como renovação da antiga prática. outra.
O estabelecimento da monarquia e as trans­
formações dos costumes contribuíram ainda284 28 6 Costantino suprimiu-a inteiramente. “È uma
coisa indigna”, dizia ele, “que casamentos felizes
sejam perturbados pela audácia de estranhos.” (N.
284 Judicio de moribus (quod antea quidem in anti- do A.)
quis legibus positum erat, non autem frequenta- 2 8 7 Sisto V ordenou que um marido que não fosse
baiur) penitus abolito. Liv. II, § 2. Cod. De Repud. lamentar-se da devassidão da esposa seria punido
(N. do A.) com a morte. Vede Leti, Vida de Sisto V. (N. do A.)
2 8 5 jUÍ]icia extraordinária. (N. do A.)
114 MONTESQUIEU

Capítulo XII

Da tutela das mulheres entre os romanos

As instituições dos romanos colocavam as Pelos diversos códigos das leis dos bárbaros
mulheres sob uma tutela perpétua, a menos percebe-se que, entre os primeiros germanos,
que estivessem sob a autoridade do marido288 as mulheres também estavam sob tutela perpé­
Esta tutela era outorgada ao parente mascu­ tua291. Este costume passou para as monar­
lino mais próximo e parece, por uma expressão quias que eles fundaram, mas não subsistiu.
vulgar2 89, que elas ficavam muito constran­
gidas. Isto era conveniente na república e
desnecessário na monarquia2 90. 2 90 A lei papiana ordenou, na época de Augusto,
que as mulheres que tivessem três filhos ficariam li­
vres dessa tutela. (N. do A.)
2 88 Nisi convenissent in manum viri. (N. do A.) 291 Esta tutela denominava-se entre os germanos,
2 89 Ne sis mihipatruus oro. (N. do A.) Mundeburdium. (N. do A.)

Capítulo XIII

Das penas estabelecidas pelos imperadores


contra a devassidão das mulheres

A lei Júlia estabeleceu uma pena contra o Nos historiadores encontram-se relatos de
adultério. Mas muito longe de ser esta lei, e as severos julgamentos proferidos, na época de
que depois foram calcadas sobre ela, sinal de Augusto e de Tibério, contra a impudicícia de
retidão dos costumes, foram, pelo contrário, algumas senhoras romanas; mas, ao nos faze­
uma marca de sua depravação. rem conhecer o espírito desses reinados, permi-
Na monarquia, todo sistema político rela­ tem-nos também conhecer o espírito desses
tivo às mulheres transformou-se. Não se trata­ julgamentos.
va mais de estabelecer a pureza dos costumes,
Augusto e Tibério pensaram principalmente
entre elas, mas de punir esses crimes porque
em punir as devassidões de seus familiares.
não mais se puniam as violações, que não
eram absolutamente esses crimes.
292 Como lhe tivessem levado um jovem que des-
A espantosa dissolução dos costumes obri­ posarâ uma mulher com quem tivera anteriormente
gava muitos imperadores a estabelecer leis relações ilícitas, hesitou muito tempo, não ousando
para deter, até certo ponto, a impudicícia, mas nem aprovar nem punir essas coisas. Finalmente,
sua intenção não foi corrigir os costumes em tomando consciência, disse: “As sedições têm sido
geral. Fatos positivos, relatados por historia­ a causa de grandes males: esqueçamo-las”. (Dion,
dores, provam isso mais do que todas essas leis liv. LIX, cap. XVI.) Tendo os senadores lhe pedido
poderíam provar o contrário. Pode-se ver em regulamentos sobre os costumes das mulheres,
subtraiu-se a esta exigência dizendo-lhes que corri­
Dion o procedimento de Augusto a este res­
gissem suas mulheres como ele corrigia a sua. Dian­
peito e como ele se subtraiu, tanto em sua pre- te dessa resposta, os senadores rogaram-lhe que dis­
tura como em sua censura, aos pedidos que lhe sesse como ele procedia com sua mulher (pergunta,
foram feitos232. parece-me, muito indiscreta). (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 115

Não puniam o desregramento dos costumes pena aplicada pela lei Júlia, restabelecia contra
mas um certo crime de impiedade ou de lesa- ela o tribunal doméstico2 9 6.
majestade293 que tinham inventado, útil para Estas disposições concernentes às mulheres
o respeito, útil para sua vingança. Por isso os apenas diziam respeito às famílias dos senado­
autores romanos protestaram tão ardente­ res e não às do povo. Procuravam-se pretextos
mente contra esta tirania. para acusações contra os poderosos e o mau
A pena da lei Júlia era muito leve29 4. Os comportamento das mulheres podia fornecer
imperadores quiseram que, nos julgamentos, se inúmeros.
aumentasse a pena da lei que haviam feito. Isto
Disse eu, finalmente, que a bondade dos
foi objeto das invectivas dos historiadores.
costumes não é o princípio do governo de uma
Eles não examinavam^se as mulheres mere­
ciam ser punidas, mas se para puni-las a lei só pessoa, fato que nunca se verificou tão bem
tinha sido violada. como na época desses primeiros imperadores;
Uma das principais tiranias de Tibério295 e, se existisse dúvida quanto a isso, bastaria ler
foi o abuso que fez das antigas leis. Quando Tácito, Suetônio, Juvenal e Marcial.
queria punir alguma senhora romana, além da
priscis verbis obtegere*. Tácito, Anais, liv. IV, cap.
2 93 Culpam inter viros et feminas vulgatam gravi XIX. (N. do A.)
nomine laesarum religionum ac violatae majestatis * “Era um aspecto característico de Tibério ocultar
appellando, clementiam majorum suasque ipse leges sob termos antigos crimes recentes.”
egrediebatur*. Tácito, Anais, liv. III, cap. XXIV. 2 9 6 Adulterii graviorem poenam deprecatus, ut,
(N. do A.) exemplo majorum, propinquis suis ultra ducente-
* “Atribuindo a uma falta que se tornou tão simum lapidem removeretur suasit. Adultero Man-
comum entre os homens e as mulheres essas desig­ lio Italia atque África interdictum est*. Tácito,
nações agravantes do sacrilégio e lesa-majestade, Anais, liv. II, cap. L. (N. do A.)
ele ultrapassava os limites fixados pela clemência de * “Ele fez baixar em seu favor (de Varilla) as penas
nossos antepassados e suas própriàs leis.” do adultério e foi de opinião que, segundo o uso dos
2 9 4 Esta lei é citada no Digesto mas não foi aplica­ antepassados, a família a deportasse a duzentas mi­
da. Julga-se que ela era apenas de relegação, pois a lhas de Roma, Mânlio, seu cúmplice, viu-se proi­
de incesto só era de deportação. L. Si quis viduam, bido de penetrar na Itália e na África.” Observou-se
ff. De quest. (N. do A.) que se tratava de um abrandamento e não de um
2 9 5 Proprium id Tiberio fuit, scelera nuper reperta agravamento da pena que Tibério exigia.

Capítulo XIV

Leis suntuárias entre os romanos

Falamos da incontinência pública porque quando elas exigiram a revogação da lei Ôpia.
ela caminha com o luxo, o qual sempre a Valério Máximo atribui a época de luxo entre
seguiu, e sempre por ela é seguido. Se deixar­ os romanos à ab-rogação dessa lei.
des em liberdade os movimentos do coração,
como podereis conter as fraquezas do espírito? 2 9 7 “Em parte alguma se diz que essas três leis te­
nham sido levadas à solicitação ou requisição dos
Em Roma, além das instituições gerais, os censores. Os cônsules e tribunos que as levaram
censores mandaram fazer, pelos magistrados, cumpriram sua obrigação, sem que houvesse neces­
sidade de serem estimulados pela intervenção dos
várias leis especiais para conservar as mulhe­ censores. As leis Fânia e Licínia não diziam res­
res na frugalidade. As leis Fânia, Licínia e peito especialmente às mulheres. Regulamentavam
e moderavam a despesa da mesa.” (Nota de Crévier
Ópia tiveram esse objetivo2 9 7. É necessário retomada por Laboulaye.)
ver em Tito Lívio298 como o senado agitou-se 2 9 8 Década IV, liv. IV. (N. do A.)
116 MONTESQUIEU

Capítulo XV

Dos dotes e das vantagens nupciais


nas diversas constituições

Os dotes devem ser consideráveis nas domésticos e as atrai, mesmo contra vontade,
monarquias a fim de que os maridos possam aos cuidados de suas casas. A comunidade dos
conservar sua posição social e o luxo estabele­ bens não é menos conveniente na república,
cido. Devem ser medíocres nas repúblicas em onde as mulheres são mais virtuosas; mas ela
que o luxo não deve vigorar2 99. Devem ser seria absurda nos Estados despóticos onde,
quase nulos nos Estados despóticos, em que as quase sempre, as próprias mulheres são uma
mulheres são, de alguma maneira, escravas. parte da propriedade do senhor.
A comunidade dos bens, introduzida pelas Como as mulheres, por seu estado, são
leis francesas entre o marido e a esposa, é deveras propensas ao casamento, os ganhos
muito conveniente no governo monárquico
que a lei lhes confere sobre os bens de seus
porque interessa as mulheres nos assuntos
maridos são inúteis. Porém isso seria muito
pernicioso numa república porque suas rique­
2 99 Marselha foi a república mais sábia de sua zas particulares produzem o luxo. Nos Estados
época. Os dotes não podiam ultrapassar cem escu­
dos em dinheiro, e cinco em vestuários, diz Estra- despóticos, os dotes de núpcias devem consti-
bão, liv. IV. (N. do A.) tuir-se da sua subsistência e nada mais.

Capítulo XVI

Belo costume dos samnitas3 0 0

Os samnitas tinham um costume que devia dos jovens apenas as belas qualidades e os ser­
produzir efeitos admiráveis numa pequena viços prestados à pátria. O que possuísse em
república e sobretudo na situação em que se maior grau estas espécies de bens escolhia uma
encontrava a deles. Todos os jovens eram reu­ jovem em toda a nação. O amor, a beleza, a
nidos e julgados. O que fosse declarado melhor castidade, a virtude, o nascimento, as próprias
de todos, tomava para esposa a jovem que riquezas, tudo isto, por assim dizer, era o dote
desejasse; o que tivesse mais votos, depois da virtude. Seria difícil imaginar uma recom­
pensa mais nobre, maior, menos onerosa para
dele, escolhería a seguir, e assim por dian­ um pequeno Estado, mais capaz de atuar sobre
301. Era admirável considerar entre os bens
te300 ambos os sexos.
Os samnitas descendiam dos lacedemônios,
300 “O autor”, observou Dupin, “tomou aqui os e Platão, cujas instituições nada mais são do
sunitas, povo da Sarmácia, por samnitas, povo da que o aperfeiçoamento das leis de Licurgo,
Itália. Stobes chama-os Sunilae. ” (Nota retomada criou uma lei quase semelhante302.
por Laboulaye.)
301 Fragmento de Nicolau de Damasco, extraído
de Stobes, na Coletânea, de Constantino Porfirogê- 302 Permite-lhes mesmo verem-se mais frequente­
neto. (N. do A.) mente. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 117

Capítulo XVII

Da administração das mulheres

É contra a razão e contra a natureza que as não descendem de mãe do mesmo sangue, as
mulheres sejam senhoras na casa, como se filhas que possuem mae de sangue real suce­
estabeleceu entre os egípcios303, mas não o é dem304. Confere-se-lhes um certo número de
que governem um império. No primeiro caso, pessoas para ajudá-las a suportar o peso do
o estado de fraqueza em que se encontram não
lhes permite a preeminência; no segundo, sua governo. Na África, segundo Smith30 5, tam­
própria fraqueza lhes dá mais suavidade e bém se encaram com naturalidade governos de
moderação, virtudes que, mais do que a intran­ mulheres. Se acrescentarmos a isso o exemplo
sigência e a ferocidade, podem permitir um da Moscóvia e da Inglaterra, veremos que elas
bom governo. obtiveram igualmente êxito, tanto no governo
Nas índias, acha-se muito natural o governo moderado como no despótico.
das mulheres e estabeleceu-se que, se os varões
30 4 Lettres Edifiantes, 14.a coleção. (N. do A.)
303 Ver a XXXVIII das Lettres Persanes e o canto 30 5 Viagem a Guiné, segunda parte, sobre o reino
III do Temple de Cnide. de Angola, na Costa do Ouro. (N. do A.)
LIVRO OITAVO
DA CORRUPÇÃO DOS PRINCÍPIOS
NOS TRÊS GOVERNOS
Capítulo I

Idéia geral deste livro

A corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos princípios.

Capítulo II

Da corrupção do princípio da democracia

Corrompe-se o espírito da democracia não go”, diz Cármides, “por causa de minha
somente quando se perde o espírito de igualda­ pobreza. Quando era rico, era obrigado a pres­
de, mas ainda quando se quer levar o espírito tar homenagens aos caluniadores, sabendo
de igualdade ao extremo, procurando cada um muito bem que estava mais em condição de ser
ser igual àquele que escolheu para comandá-lo. prejudicado por eles do que prejudicá-los: a
Então o povo, não podendo suportar o próprio república exigia-me sempre alguma nova con­
poder que escolheu, quer fazer tudo por si só: tribuição; não podia ausentar-me. Desde que
deliberar pelo senado, executar pelos magis­ sou pobre, adquiri autoridade; ninguém me
trados e destituir todos os juizes. ameaça mas eu ameaço os outros; posso partir
Não pode mais haver virtude na república. ou permanecer. Os ricos já se levantam de seus
O povo quer exercer as funções dos magis­ lugares e me cedem a prioridade. Sou um rei,
trados que não são, portanto, mais respeitados. era escravo; pagava um tributo à república,
As deliberações do senado não têm mais força, hoje ela me sustenta; não receio mais perder,
não havendo, assim, mais consideração pelos espero adquirir.”
senadores e consequentemente pelos anciãos. O povo cai nessa desgraça quando aqueles
E, se não mais se respeita aos anciãos, também em quem confia, procurando ocultar sua pró­
não se respeitará aos pais, e os maridos não pria corrupção, buscam corrompê-lo. Para que
merecerão, igualmente, mais deferências, nem sua ambição não seja vista pelo povo, eles ape­
os patrões tampouco merecerão submissão; nas falam da grandeza do povo; para que não
todos passarão a apreciar essa libertinagem; a se perceba sua avareza, elogiam incessante­
pressão do comando fatigará tanto como a da mente a do povo.
obediência. As mulheres, as crianças, os escra­ A corrupção aumentará entre os corruptores
vos não se submeterão a pessoa alguma. Os e também entre os que já estão corrompidos. O
costumes, o amor pela ordem desaparecerão. povo distribuirá entre si toda a fazenda pública
Enfim, não mais existirá a virtude. e, como terá unido a gestão dos negócios à sua
Vê-se no Banquete de Xenofonte30 6 uma preguiça, desejará reunir à sua pobreza os
pintura muito ingênua de uma república em divertimentos do luxo. Mas, com sua preguiça
que o povo abusou da igualdade. Explica cada e seu luxo, terá como objetivo apenas o tesou­
conviva, por sua vez, a razão por que está con­ ro público.
tente consigo mesmo. “Estou contente comi­ Ninguém deverá se espantar se votos forem
comprados a dinheiro. Não se pode dar muito
30 6 No cap. IV; cf. Platão, República, liv. VIII. ao povo sem retirar dele ainda mais; porém
122 MONTESQUIEU
para retirar dele é necessário subverter o Esta­ mencionado em sua história, experimentou
do. Quanto mais o povo pensa aproveitar de desgraças que a simples corrupção não pro­
sua liberdade, mais se aproximará do momen­ duz. Essa cidade, sempre na licença3 0 9 ou na
to em que deve perdê-la. Cria pequenos tiranos opressão, igualmente trabalhada por sua liber­
que possuem todos os vícios de um só. Em dade e por sua servidão, recebendo sempre a
breve, o que resta da liberdade torna-se uma e a outra como a uma tempestade, e, ape­
insuportável: surge um único tirano; o povo sar de seu poderio no exterior, sempre condu­
perde tudo, até mesmo as vantagens de sua zida a uma revolução pela mais fraca força
corrupção. estrangeira, tinha em seu seio um povo imenso,
A democracia deve, portanto, evitar dois ao qual só restava essa cruel alternativa de se
excessos: o espírito de desigualdade, que a entregar a um tirano ou de sê-lo ele
conduz à aristocracia ou ao governo de um só; mesmo3 ■ °.
e o espírito de igualdade extrema, que a con­
duz ao despotismo de um só, assim como o
3 0 7 Vede Plutarco, nas Vidas de Timoleão e de
despotismo de um só acaba pela conquista. Dion. (N. do A.)
É verdade que aqueles que corromperam as 308 É o dos seiscentos, de que fala Diodoro, liv.
repúblicas gregas nem sempre se tornaram XIX, cap. V. (N. do A.)
tiranos. É que eles eram mais afeiçoados à 309 Tendo expulsado os tiranos, fizeram cidadãos
eloquência do que à arte militar, além de exis­ os estrangeiros e os soldados mercenários, o que
acarretou guerras civis. Aristóteles, Política, liv. V,
tir no coração de todos os gregos um ódio cap. III. Tendo o povo sido a causa da vitória sobre
implacável contra os que derrubavam o gover­ os atenienses, a república foi transformada, ibid.,
no republicano. Isso fez com que a anarquia cap. IV. A paixão de dois jovens magistrados, um
degenerasse em aniquilamento, ao invés de se dos quais roubou ao outro um mancebo, tendo esse
seduzido sua mulher, modificou a forma dessa repú­
transformar em tirania. blica, ibid., liv. VII, cap. IV. (N. do A.)
Mas Siracusa, que se encontrou situada em
310 Aqui Montesquieu inspira-se em Cícero, De
meio de um grande número de pequenas Rep., liv. I, cap. XLIII-XL1V, e em Platão, Repú­
oligarquias transformadas em tiranias30 7 ; Si­ blica, liv. VIII. As vezes segue este último ao pé da
racusa, que tinha um senado30 8 quase nunca letra.

Capítulo III

Do espírito de igualdade extrema

Assim como o céu está afastado da terra, o percam e apenas retornam à igualdade pelas
verdadeiro espírito de igualdade o está do espí­ leis.
rito de igualdade extrema. O primeiro não con­ Tal é a diferença entre a democracia regula­
siste em fazer de maneira que todos comandem mentada e a que não o é, que, na primeira, é-se
ou ninguém seja governado; mas em obedecer
igual apenas como cidadão, e na outra ainda
e comandar seus iguais. Não procura não ter
se é igual como magistrado, senador, juiz, pai,
senhores, mas apenas ter seus iguais por
marido e senhor.
senhores.
No seu estado natural, os homens nascem O lugar natural da virtude é junto à liberda­
numa verdadeira igualdade, mas não podem de; mas ela não se encontra mais perto da
permanecer nela. A sociedade faz com que a liberdade extrema do que da servidão.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 123

Capítulo IV

Causa particular da corrupção do povo

Os grandes êxitos, sobretudo aqueles para maneira que a derrota dós atenienses arruinou
os quais o povo contribui muito, lhe dão um a república de Siracusa312.
tal orgulho, que não é mais possível conduzi- A de Marselha nunca experimentou estas
lo. Sua inveja dos magistrados transforma-se grandes transições da decadência à grandeza:
destarte, ela governou-se sempre com sabedo­
em inveja da magistratura; inimigo dos que
ria; assim, ela conservou seus princípios.
governam, logo o é da constituição. Foi assim
que a vitória de Salamina sobre os persas cor­ 311 Aristóteles, Política, liv. V, cap. IV. (N. do A.)
rompeu a república de Atenas311 e foi dessa 312 Ibid. (N. do A.)

Capítulo V

Da corrupção do princípio da aristocracia

A aristocracia corrompe-se quando o poder hereditária torna, pois, o governo menos vio­
dos nobres torna-se arbitrário: não mais pode lento; mas, como existe pouca virtude, cair-se-
haver virtude nos que governam nem nos que á num espírito de negligência, de preguiça e de
são governados. abandono, o que faz com que o Estado não
Quando as famílias reinantes observam as tenha mais força nem iniciativa31 4.
leis, trata-se de uma monarquia que possui vá­ Uma aristocracia pode manter a força de
rios monarcas e que é excelente por sua nature­ seu princípio se as leis são tais que façam sen­
za; quase todos esses monarcas estão ligados tir aos nobres mais os perigos e as fadigas do
pelas leis. Mas quando elas não são observa­ comando que suas delícias; e se o Estado está
das, trata-se de um Estado despótico que pos­ numa tal situação que tenha algo a temer; e
sui vários déspotas. que a segurança venha de dentro e a incerteza,
Nesse caso, a república só subsiste em rela­ de fora.
ção aos nobres e somente entre eles. Ela está Como uma certa confiança faz a glória e a
no corpo que governa e o Estado despótico segurança de uma monarquia, é mister, ao
está no corpo que é governado. Isso é o que faz contrário, que uma república tema alguma
com que eles sejam os dois corpos mais desu­ coisa31 5. O temor aos persas mantém a lei
nidos do mundo. entre os gregos. Cartago e Roma intimida­
Extrema corrupção existe quando os nobres ram se mutuamente e consolidaram-se. Coisa
tornam-se hereditários3 1 3 e quase não podem singular! Quanto mais segurança esses Esta­
ter moderação. Se são em pequeno número, dos possuem, mais, como as águas muito tran­
seu poder é maior mas sua segurança diminui; quilas, eles estão sujeitos a se corromper.
se são em maior número, seu poder é menor, e
sua segurança, maior: de maneira que seu 31 4 Veneza é uma das repúblicas que mais bem
poder vai crescendo e a segurança diminuindo, corrigiram, por suas leis, os inconvenientes da aris­
até o déspota, em cuja cabeça está o excesso tocracia hereditária. (N. do A.)
do poder e do perigo. 31 5 Justino atribui à morte de Epaminondas a
O grande número de nobres na aristocracia313 extinção da virtude em Atenas. Não mais existindo
emulação, despenderam suas rendas em festas,
frequentius caenam quam castra visentes. Então, os
313 A aristocracia transforma-se em oligarquia. macedônios saíram da obscuridade. Liv. VI, cap.
(N. do A.) IX. (N. do A.)
124 MONTESQUIEU

Capítulo VI

Da corrupção do princípio da monarquia

Assim como as democracias se arruinam A monarquia arruína-se quando um prín­


quando o povo despoja de suas funções o sena­ cipe crê que mostra mais seu poderio transfor­
do, os magistrados e os juizes, as monarquias mando a ordem das coisas do que a seguindo,
corrompem-se quando se suprimem pouco a quando suprime as funções naturais de uns
pouco as prerrogativas dos corpos ou os privi­
légios das cidades. No primeiro caso, cami­ para outorgá-las arbitrariamente a outros, e
nha-se para o despotismo de todos; no segun­ quando aprecia mais seus caprichos que suas
do, para o despotismo de um só. vontades.
“O que arruinou as dinastias de Tsin e de A monarquia arruína-se quando o príncipe,
Suei, diz um autor chinês, foi o fato de os prín­ relacionando tudo unicamente a si, chama Es­
cipes, ao invés de se limitarem, como os anti­ tado à sua capital, capital à sua corte, e corte à
gos, a uma inspeção geral, a única digna do sua única pessoa31 7.
soberano, terem querido governar imediata­ Enfim, ela se arruina quando um príncipe
mente por si mesmo31 6”. O autor chinês nos desconhece sua autoridade, sua situação, o
dá aqui a causa da corrupção de quase todas
amor de seus súditos, e quando não percebe
as monarquias.
que o monarca deve julgar-se em segurança,
como um déspota deve crer-se em perigo.
31 6 Compilação das Obras Feitas na Época dos
Ming, citadas pelo Padre du Halde. Description de
la Chine, t. II, pág. 648. (N. do A.) 31 7 Alusão muito evidente a Luís XIV.

Capítulo VII

Continuação do mesmo assunto


O princípio da monarquia corrompe-se Corrompe-se quando o príncipe troca sua
quando as primeiras dignidades são os indícios justiça pela severidade; quando põe, como os
da primeira servidão, quando se suprime aos imperadores romanos, uma cabeça de Medusa
poderosos o respeito dos súditos, e quando os em seu peito320; quando toma esse aspecto
torna vis instrumentos do poder arbitrário. ameaçador e terrível que Cômodo mandava
Ele se corrompe ainda mais quando a honra dar às suas estátuas321.
é colocada em contradição com as honrarias, O princípio da monarquia corrompe-se
quando se pode estar ao mesmo tempo coberto quando almas singularmente lassas se envaide­
de infâmia31 8 e de dignidades31 9. cem da grandeza que possa ter sua servidão, e
julgam que o que faz com que se deva tudo ao
príncipe faz com que não se deva nada à
31 8 Sob o reinado de Tibério, erigiram-se estátuas pátria.
e deram-se ornamentos triunfais aos delatores: o Mas se é verdade (o que se viu em todos os
que aviltou de tal modo estas honrárias, que aqueles
que as haviam merecido, desdenharam-nas. Frag­ tempos) que, à medida que o poder do monar­
mentos de Dion, liv. LVIII, cap. XIV, tirado do ca se torna imenso, sua segurança diminui,
Extrato das Virtudes e dos Vícios, de Constantino corromper esse poder até fazê-lo mudar de
Porfirogêneto. Vede, em Tácito, como Nero, na des­ natureza não é um crime de lesa-majestade
coberta e punição de uma pretensa conjuração, deu contra ele322?
a Petrônio Turpiliano, a Nerva, a Tigelino, os orna­
mentos triunfais. Anais, liv. XIV, cap. LXXII. Vede
também como os generais desdenharam guerrear, 320 Neste Estado, o príncipe sabia bem qual era o
porque desprezavam as suas honrarias. Pervulgatis princípio de seu governo. (N. do A.)
triumphi insignibus. Tácito, Anais, liv. XIII, cap. 3 21 Herodiano. (N. do A.)
LIII. (N. do A.) 322 Laboulaye lembra que Benjamin Constant “re­
319 Montesquieu pensa aqui, como disseram, no tomou e sustentou” essa idéia no seu Cours de Droit
Cardeal Dubois? Constituiionnel, t. II, pág. 244.
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 125

Capítulo VIII

Perigo da corrupção do princípio


do governo monárquico

O inconveniente não surge quando o Estado governada pelos costumes. Porém, se por um
passa de um governo moderado a outro gover­ longo abuso do poder, se por uma grande con­
no moderado, como da república à monarquia, quista, o despotismo se estabelecesse até um
ou da monarquia à república, mas quando cai certo ponto, não haveria costumes nem clima
que o contivessem; e nesta bela parte do
e se precipita do governo moderado ao mundo a natureza humana sofreria, ao menos
despotismo. por algum tempo, os insultos que lhe são feitos
A maior parte dos povos da Europa é ainda nas outras três.

Capítulo IX

Até que ponto a nobreza


é levada a defender o trono

A nobreza inglesa amortalhou-se com Car­ Quando tantos príncipes dividiam entre si seus
los I sob os destroços do trono; e, antes disso, Estados, todas as peças de sua monarquia,
quando Filipe II fez chegar aos ouvidos dos imóveis e sem ação, caíam, por assim dizer,
franceses a palavra de liberdade, a coroa foi umas sobre as outras. Só havia vida nessa
sempre sustentada por esta nobreza que se
nobreza que se indignou, esqueceu tudo para
atém à honra de obedecer a um rei, mas que
combater e acreditou que lhe era glorioso pere­
considera suprema infâmia partilhar o poder
cer e perdc ar3 2 3.
com o povo.
Viu-se a casa de Áustria trabalhar sem tré­
gua para oprimir a nobreza húngara. Ignorava 323 Evidentemente, Montesquieu considera aqui a
de que valor ela lhe seria um dia. Procurava, atitude dos nobres húngaros na guerra da sucessão
da Áustria de 1741 a 1748 e no Moriamur pro rege
entre essas populações, dinheiro que aí não nostro Maria-Theresa: morramos por nosso rei
existia. Não via os homens que lá estavam. Maria Teresa.

Capítulo X

Da corrupção do princípio do governo despótico

O princípio do governo despótico corrom- do circunstâncias provenientes do clima, da


pe-se sem cessar, porque é corrompido por sua religião, da situação ou do temperamento do
natureza. Os outros governos perecem porque povo forçam-no a seguir alguma ordem e a
acidentes particulares violam seu princípio: submeter-se a alguma regra. Essas coisas for­
este perece por seu vício interior, quando cau­ çam sua natureza sem mudá-la; sua ferocidade
sas acidentais não impedem seu princípio de se permanece; essa está, por algum tempo, doma­
corromper. Ele só se mantém, portanto, quan­ da.
126 MONTESQUIEU

Capítulo XI

Efeitos naturais da bondade


e da corrupção dos princípios

Quando os princípios do governo são cado. O pudor alarmou-se a princípio; mas


corrompidos uma vez, as melhores leis tor- cedeu à utilidade pública.”
nam-se más, e voltam-se contra o Estado; Ao tempo de Platão, essas instituições eram
quando seus princípios são sadios, as más têm admiráveis32 8 e relacionavam-se com um
o efeito das boas; a força do princípio arrasta grande desígnio, que era a arte militar. Mas,
tudo. quando os gregos deixaram de ter virtude, elas
Os. cretenses, para manterem os primeiros destruíram a própria arte militar: não se descia
magistrados na dependência das leis, emprega­ mais à arena para se educar, mas para se
vam um meio muito singular: era o da insurrei­ corromper32 9.
ção. Parte dos cidadãos revoltava-se, afugen­ Relata-nos Plutarco3 30 que, no seu tempo,
tava os magistrados, e obrigava-os a voltar à os romanos julgavam que esses jogos foram a
vida privada. Considerava-se isso feito em causa principal da servidão em que os gregos
consequência da lei. Uma tal instituição, que tinham caído. Entretanto, ocorrera o contrá­
estabelecia a revolta para impedir o abuso do
rio: fora a servidão dos gregos que corrompera
poder, parecia dever arruinar qualquer repú­
esses exercícios. Na época de Plutarco331, as
blica, fosse qual fosse; ela não destruiu a de
Creta. Eis por que32 4: praças onde se combatia nu e os exercícios de
luta tornavam covardes os jovens, induziam-
Quando os antigos queriam falar de um
nos a um amor degradante, só formando
povo que mais amor tinha pela pátria, citavam
os cretenses. “A pátria”, dizia Platão32 5, dançarinos; porém, na época de Epaminondas,
‘‘nome tão doce aos cretenses. ”Chamavam-na a prática da luta permitiu aos tebanos vencer a
com um nome que exprime o amor de uma batalha de Leuctra332.
mãe por seus filhos3 2 6. Ora, o amor pela pá­ Poucas são as leis que não sejam boas quan­
tria corrige tudo. do o Estado não perdeu seus princípios; e,
As leis da Polônia têm também sua insurrei­ como dizia Epicuro, referindo-se às riquezas:
ção. Mas os inconvenientes que dela resultam “Não é o licor que está estragado: é o vaso”.
fazem ver que, na realidade, apenas o povo de
Creta esteve em condições de empregar com
32 8 Dividia-se a ginástica em duas partes: a dança
êxito tal remédio. e a luta. Em Creta, conhecem-se as danças armadas
Os exercícios da ginástica estabelecidos dos Curetas; na Lacedemônia, as de Castor e
entre os gregos não dependeram menos da Pólux; em Atenas, as danças armadas de Palas,
muito adequadas para os que não estão ainda na
bondade do princípio do governo. “Foram os idade de ir para a guerra. A luta é a imagem da
lacedemônios e os cretenses”, diz Platão32 7, guerra, diz Platão, As Leis, liv. VII. Ele louva e elo­
“que abriram essas academias famosas, que as gia a Antiguidade por não ter estabelecido mais que
fizeram ocupar no mundo um lugar tão desta­ duas danças: a pacífica e a pírrica. Vede como essa
última aplicava-se à arte militar: Platão, ibid. (N.
do A.)
32 4 Uniam-se sempre primeiro contra o inimigo de 32 9 . . . Aut libidinosae
fora, o que se chamava sincretismo. Plutarco, Obras Ledaeas Lacedemonispalestras.
Morais, pág. 88. (N. do A.) (Marcial, liv. IV, epíg. 55.) (N. do A.)
32 5 República, liv. IX (N. do A.) 330 Obras Morais, no tratado: Das Demandas das
3 2 6 Plutarco, Obras Morais, no tratado: Se o Coisas Romanas, Questões XL. (N. do A.)
Homem de Idade Deve Envolver-se em Negócios 331 Plutarco, ibid. (N. do A.)
Públicos. (N. do A.) 332 Plutarco, Obras Morais: Ditos de Mesa, liv. II,
32 7 República, liv. V. (N. do A.) questão V. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 127

Capítulo XII

Continuação do mesmo assunto

Em Roma, escolhiam-se os juizes na ordem três em conjunto, ou a outro corpo qualquer


dos senadores. Os Gracos transferiram essa —, o mal sempre persistia. Os cavaleiros não
prerrogativa aos cavaleiros. Druso outorgou-a possuíam mais virtude que os senadores, os
aos cavaleiros e aos senadores; Sila, apenas tesoureiros do Erário mais que os cavaleiros e
aos senadores; Cota, aos senadores, aos cava­ estes tão pouca quanto os centuriões.
leiros e aos tesoureiros do Erário. César Quando o povo de Roma obteve o direito de
excluiu esses últimos; Antônio criou decúrias participar das magistraturas patrícias, era
de senadores, de cavaleiros e de centuriões.
natural pensar que os aduladores seriam os ár­
Quando uma república se corrompe, só se
bitros do governo. Não: vimos esse povo, que
pode remediar alguns de seus males nascentes
suprimindo a corrupção e estimulando os prin­ conseguia a eleição de plebeus para as magis­
cípios: qualquer outra correção é inútil ou um traturas comuns, eleger sempre patrícios. Por
novo mal. Enquanto Roma conservou seus ser virtuoso, era magnânimo; por ser livre, des­
princípios, os julgamentos puderam permane­ denhava o poder. Entretanto, quando esse
cer sem abusos nas mãos dos senadores, mas, povo perdeu seus princípios, quando possuiu
quando ela se corrompeu, qualquer que fosse o mais poder, menos contemplação teve; até que,
corpo ao qual se transferissem os julgamentos por fim, tornado seu próprio tirano e seu pró­
— aos senadores, aos cavaleiros, aos tesou­ prio escravo, perdeu a força da liberdade para
reiros do Erário, a dois desses corpos ou aos tombar na fraqueza de desregramento.

Capítulo XIII

Efeito do juramento num povo virtuoso

Não houve povo, diz Tito Lívio333, em que Inutilmente os tribunos proclamaram que nin­
a devassidão se tenha introduzido tão tardia­ guém estava mais submetido a esse juramento,
mente e a moderação e a pobreza tenham sido que quando o tinham feito Quíncio não era um
tão longamente honradas como entre os homem público: o povo foi mais religioso do
romanos. que os que pretenderam orientá-lo; não deu
O juramento teve tanta força entre esse povo ouvidos nem às distinções nem às interpreta­
que nada o ligou mais às leis. Muitas vezes, ele ções dos tribunos.
fez, para cumpri-lo, coisas que nunca teria Quando o mesmo povo quis retirar-se para
feito pela glória ou pela pátria. o Monte Sagrado, sentiu-se preso ao juramento
Quíncío Cíncinato, cônsul, desejando levan­ que havia feito aos cônsules de segui-los na
tar, na cidade, um exército contra os équos e guerra33 5; fez planos de matá-los; fizeram-lhe
volscos, chocou-se contra a oposição dos tri­ compreender" que o juramento ainda subsistia.
bunos. “Muito bem”, exclamou ele, “que todos Podemos avaliar, pelo crime que pretendia
os que prestaram juramento ao cônsul do ano cometer, a idéia que esse povo tinha da viola­
precedente marchem sob minha bandeira33 4.” ção do juramento.
Depois da batalha de Canes, o povo aterro­
333 Liv. I. Inpraefat. (N. do A.) rizado quis refugiar-se na Sicília33 6. Cipião
33 4 Tito Lívio, liv. III, cap. XX*. (N. do A.) obrigou-o a jurar que permanecería em Roma;
* Trata-se, na realidade, manda observar Crévier,
não do cônsul do ano precedente — os soldados te-
riam sido desobrigados de seu juramento —, mas 33 5 Tito Lívio, liv. II, cap. XXXII. (N. do A.)
do cônsul do ano em curso, que fora morto e substi­ 33 6 Não o povo, mas somente alguns militares
tuído por Cincinato. derrotistas. Cf. Tito Lívio, XXII-53.
128 MONTESQUIEU
o temor de violar o juramento superou qual- por duas âncoras no meio da tempestade: a
quer outro temor. Roma era um barco seguro religião e os costumes.

Capítulo XIV

Como a menor modificação na constituição


acarreta a ruína dos princípios

Aristóteles33 7 fala-nos da república de Car- Conhecemos os prodígios da censura entre


tago como de uma república muito bem os romanos. Houve época, porém, em que ela
regulamentada. Políbio diz-nos que, por oca­ se tornou molesta mas foi mantida porque
sião da Segunda Guerra Púnica33 3, existia em existia mais luxo do que corrupção. Cláudio
Cartago este inconveniente: o senado perdera afrouxou-a e, com esse afrouxamento, a cor­
quase toda a autoridade. Tito Lívio338 ensi­
na-nos que, quando Aníbal retornou a Carta­ rupção tornou-se ainda maior que o luxo; e a
go, descobriu que os magistrados e os princi­ censura3 40 aboliu, por assim dizer, a si
pais cidadãos desviavam em seu benefício a mesma. Perturbada, exigida, retomada, aban­
renda pública e exorbitavam seus poderes. A donada, a censura foi totalmente interrompida
virtude dos magistrados decaiu, portanto, com
até a época em que se tornou inútil, isto é, no
a autoridade do senado; tudo decorreu do
reinado de Augusto e de Cláudio.
mesmo princípio.

33 7 Política, liv. II, cap. XI. 3 40 Vede Dion, liv. XXXVIII; vida de Cícero em
3 3 8 Aproximadamente cem anos depois. (N. do A.) Plutarco; Cícero a Ático, liv. IV, cartas X e XV;
33 9 Tito Lívio, XXIII-46. Ascónio sobre Cícero, De Divinatione. (N. do A.)

Capítulo XV

Meios muito eficazes para a


conservação dos três princípios

Só me poderei fazer entender quando os quatro capítulos seguintes forem lidos.

Capítulo XVI

Propriedades distintivas da república

É da natureza de uma república que seu Numa grande república, o bem comum ê
território seja pequeno; sem isso, ela dificil­ sacrificado a mil considerações, é subordinado
mente pode subsistir. Numa grande república às exceções, depende dos acidentes. Numa
há grandes fortunas e, consequentemente, república pequena, o bem comum é mais bem
pouca moderação nos espíritos; há enormes percebido, mais bem conhecido, mais próximo
depósitos a se colocar nas mãos de um cida­ de cada cidadão; os abusos são menos amplos
dão; os interesses individualizam se; um e, consequentemente, menos protegidos.
homem sente, em primeiro lugar, que poderá O que fez a Lacedemônia subsistir tanto
ser feliz, poderoso, sem sua pátria; e, logo, que tempo foi que, após todas as suas guerras, ela
só poderá ser poderoso sobre as ruínas da continuou sempre com seu território. O único
pátria. objetivo da Lacedemônia era a liberdade; a
DO ESPÍRITO DAS LEIS I 129

única vantagem de sua liberdade era a glória. que qualquer outro governp que não fosse o
Foi próprio do espírito das repúblicas gre­ republicano pudesse subsistir em apenas uma
gas contentar-se com suas terras e com suas cidade. Um príncipe de um Estado tão peque­
leis. Atenas tornou-se ambiciosa e influenciou no procuraria, naturalmente, oprimir, porque
a Lacedemônia: mas isso foi mais para dirigir disporia de um grande poder e de poucos
povos livres do que para governar escravos; meios para fruí-lo ou para fazê-lo respeitar:
mais para ser a cabeça da união do que para tripudiaria, portanto, sobre muitos de seus
rompê-la. Tudo se perdeu quando uma monar­ povos. Por outro lado, tal príncipe seria facil­
quia, governo cujo espírito está mais voltado mente oprimido por uma força estrangeira ou
para o engrandecimento, surgiu. mesmo por uma força interna; o povo poderia,
Sem circunstâncias específicas3 41 é difícil a qualquer momento, coligar-se e reunir-se
contra ele. Ora, quando um príncipe de uma
341 Como quando um pequeno soberano se man­ cidade é expulso dela, o processo terminou; se
tém entre dois grandes Estados graças à inveja ele possui várias cidades, o processo está ape­
mútua deles; porém, só existe precariamente. (N. do
A.) nas começando.

Capítulo XVII

Propriedades distintivas da monarquia

Um Estado monárquico deve ser de tama­ dividir o império em diversos reinados.


nho medíocre. Se fosse pequeno, transformar- Depois da morte de Alexandre, seu império
se-ia em república; se fosse muito extenso, os foi dividido. Como os poderosos da Grécia e
principais do Estado, poderosos por si mes­ da Macedônia, livres ou pelo menos chefes de
mos, não estando sob as vistas do príncipe, conquistadores, espalhados nessa vasta con­
tendo suas cortes fora da corte do príncipe, quista, teriam podido obedecer?
protegidos, aliás, pelas leis e pelos costumes Depois da morte de Átila, seu império
contra as execuções rápidas, poderíam deixar dissolveu-se: tantos reis que não eram mais
de obedecer: não temeríam uma punição muito refreados não podiam retomar as rédeas.
lenta e muito longínqua. O rápido estabelecimento do poder ilimi­
Assim, Carlos Magno, nem bem tendo aca­ tado é o único remédio que, nesses casos, pode
bado de fundar seu império, foi obrigado a evitar o desmembramento: novo flagelo depois
dividi-lo, seja porque os governadores das do do engrandecimento 1
províncias não obedeciam, seja porque, para Os rios correm pára se juntar aos mares: as
obrigá-los a obedecer melhor, fosse necessário monarquias perdem-se no despotismo.

Capitulo XVIII

De como a monarquia espanhola


era um caso particular

Que não se cite o exemplo da Espanha, pois logo que o abandonou suas dificuldades
ele prova antes o que eu disse. Para conservar aumentaram. Por um lado, os valões não qui­
a América, ela fez o que o despotismo nunca seram ser governados pelos espanhóis e, por
fizera: aniquilou os habitantes. Fora preciso, outro lado, os soldados espanhóis não quise­
para conservar sua colônia, mantê-la na ram obedecer aos oficiais valões3 42.
dependência de sua própria subsistência.
A monarquia espanhola experimentou im­ 3 42 Vede a Histoire des Provinces-Unies, por Le
plantar o despotismo nos Países-Baixos, mas Cierc. (N. do A.)
130 MONTESQUIEU

Ela só se manteve, na Itália, à força de enri- querido desfazer-se do rei da Espanha não
quecê-la e de se arruinar, pois os que tivessem estariam dispostos a renunciar a seu dinheiro.

Capítulo XIX

Propriedades distintivas do governo despótico

Um grande império supõe uma autoridade magistrado distante; que a lei seja ditada por
despótica naquele que governa. Cumpre que a apenas uma pessoa e que ela seja incessante­
presteza nas resoluções supra a distância dos mente substituída, tal como os acidentes que se
lugares para onde são enviadas; que o temor multiplicam sempre no Estado, na proporção
impeça a negligência do governador ou do de sua grandeza.

Capítulo XX

Consequência dos capítulos precedentes

Sendo a propriedade natural dos pequenos que para manter os princípios do governo esta­
Estados serem governados como república, a belecido é necessário manter o Estado na gran­
dos Estados de tamanho medíocre serem sub­ deza que já tinha; e que esse Estado mude de
metidos a um monarca, a dos grandes impérios espírito à medida que seus limites forem redu­
serem dominados por um déspota, segue-se zidos ou ampliados.

Capítulo XXI

Do império da China
Antes de terminar este livro, responderei a Demais, nossos comerciantes estão longe de
uma objeção que se poderá fazer sobre tudo o nos darem a idéia desta virtude de que nos
que disse até aqui. falam os missionários: podemos consultá-los a
Nossos missionários falam-nos do vasto respeito das pilhagens dos mandarins3 4 4.
império da China como sendo um governo Recorro ainda ao testemunho do notável
admirável que inclui ao mesmo tempo em seu Milorde Anson.
espírito o temor, a honra e a virtude. Terei Aliás, as cartas do Padre Parennin sobre o
estabelecido, portanto, uma diferenciação inú­ processo que o imperador moveu aos príncipes
til quando coloquei os princípios dos três de sangue neófitos3 4 5, que lhe tinham desagra­
governos. dado, permitem-nos perceber um plano cons­
Ignoro o que seja essa honra de que se fala tantemente seguido, e injúrias metodicamente
entre povo que nada fazem senão a golpes de feitas à natureza humana, isto é, a sangue frio.
bastão3 43. Temos ainda as cartas do Senhor de Mairan
e do já citado Padre Parennin sobre o governo
da China. Após perguntas e respostas muito
3 43 É o bastão que governa a China, afirma o judiciosas, o maravilhoso dissipa-se.
Padre du Halde. Disc, de la Chine, t. II, pág. 134*.
(N. do A.)
* Parece aqui que a idéia que os “filósofos” tinham 3 4 4 Vede, entre outros autores, a relação de Lange.
da China e das bases da civilização chinesa era, (N. do A.)
pelo menos, tão superficial como a que dela ofere­ 3 4 5 Da mesma família de Surniama, Lettres Edi-
ciam os missionários. fiarites, 18.a coleção. (N. do A.-)
DO ESPIRITO DAS LEIS I 131

Não poderia acontecer que os missionários exterminados. Porém, com um número de


tivessem sido iludidos por uma aparência de províncias tão grandes e tão afastadas, pode
ordem, que se tivessem impressionado com acontecer que algum grupo obtenha êxito. Ele
essa aplicação contínua da vontade de uma manter-se-á, fortificar-se-á, transformar-se-á
única pessoa, pela qual eles são governados e em exército e marchará diretamente para a
que tanto gostam de encontrar nas cortes dos capital e o chefe ascenderá ao trono.
reis da índia? Porque, lá indo apenas para rea­ A natureza da coisa é tal, que o mau gover­
lizar grandes reformas, lhes é mais cômodo no será o primeiro a ser punido. A desordem
convencer os príncipes de que podem fazer nascerá repentinamente porque esse povo pro­
tudo, do que persuadir os povos que eles digioso carece de meios de subsistência. O que
podem suportar tudo3 4*6. faz com que, em outros países, se corrijam tão
Enfim, há frequentemente algo de verdade dificilmente os abusos é que eles não têm efei­
nos próprios erros. Circunstâncias específicas tos sensíveis; o príncipe não é informado de
podem fazer com que o governo da China não um modo tão rápido e repentino como na
seja tão corrompido como deveria sê-lo. Cau­ China.
sas originadas, na maioria das vezes, do físico Ele não sentirá, como nossos príncipes, que,
do clima, puderam forçar as causas morais se governar mal, será menos feliz na outra
neste país e fazer espécies de prodígios. vida, menos poderoso e menos rico nesta aqui,
O clima da China é de tal ordem que favo­ e saberá que, se seu governo não for bom, per­
rece prodigiosamente a propagação da espécie derá o império e a vida.
humana. As mulheres são de uma fecundidade Como, apesar do abandono dos filhos, a
tão grande, que não encontramos, no mundo, população, na China, continua aumentan­
nenhum exemplo semelhante. A mais cruel do348, é necessário um trabalho infatigável
tirania não paralisa o progresso da propaga­ para conseguir que a terra produza o que
ção. O príncipe não pode dizer, como um comer: isso exige uma grande atenção por
faraó: “Oprimamo-los com prudência”. Seria parte do governo. Ele está sempre interessado
antes reduzido a formular a aspiração de em que todos possam trabalhar sem medo de
Nero: que o gênero humano só possuísse uma serem frustrados em seus esforços. Deve ser
cabeça. Apesar da tirania, a China, graças ao menos um governo civil do que um governo
clima, povoar-se-á sempre e triunfará sobre a doméstico.
tirania. Eis o que produz a ordem de que tanto
A China, como todos os países onde cresce falam. Pretendeu-se aplicar as leis com despo­
o arroz3 4 7, está sujeita a fomes constantes. tismo mas o que está associado ao despotismo
Quando o povo morre de fome, ele se dispersa não mais possui força. Em vão esse despo­
para procurar de que viver; em toda parte, for­ tismo, acossado por suas desgraças, quis se
mam-se bandos de três, quatro ou cinco assal­ encadear; arma-se com suas cadeias e torna-se
tantes. A maioria é logo exterminada; os de­ ainda mais terrível.
mais avolumam-se mas também são A China é, portanto, um Estado despótico,
cujo princípio é o temor. É possível que, nas
3 4 6 Vede, no Padre du Halde, como os missioná­ primeiras dinastias, não sendo o império tão
rios serviam-se da autoridade de Can-hi para silen­ extenso, o governo afrouxasse um pouco esse
ciar os mandarins, os quais sempre afirmaram que, espírito. Hoje, porém, isso não acontece.
pelas leis do país, um culto estrangeiro não podia
estabelecer-se no império. (N. do A.)
3 4 7 Vede, mais adiante, liv. XXIII, cap. XIV. (N. 3 48 Vede as memórias de um Song-tu, para que se
do A.) entenda; Lettres Edifiani es, 21.a coleção. (N. do A.)
SEGUNDA PARTE

LIVRO NONO
DAS LEIS EM SUA RELAÇÃO
COM A FORÇA DEFENSIVA
Capítulo I

Como as repúblicas garantem sua segurança

Se uma república é pequena, ela é destruída mais necessárias do que atualmente. Uma ci­
por uma força estrangeira; se é grande, dade débil corria os maiores perigos. A con­
destrói-se por um vício interno. quista fazia-lhe perder não somente o poder
Esse duplo inconveniente contamina igual­ executivo e legislativo, tal como acontece hoje,
mente as democracias e as aristocracias, sejam como ainda tudo o que há de propriedade entre
elas boas ou más. O mal está na própria coisa: os homens2*.
nada há que o possa remediar. Esse tipo de república, capaz de resistir à
Assim, há grandes indícios de que os ho­ força exterior, pode manter-se em sua gran­
mens teriam sido obrigados a viver sempre sob deza sem que o interior se corrompa: a forma
o governo de um só, se não tivessem imagi­ dessa sociedade previne todos os inconve­
nado um tipo de constituição que possui todas nientes.
as vantagens internas do governo republicano
Quem pretendesse usurpar dificilmente po­
e a força externa da monarquia. Refiro-me à
dería ser acreditado em todos os Estados
república federativa.
confederados. Se se tornasse muito poderoso
Esta forma de governo é uma convenção
em um, alarmaria todos os demais; se subju­
pela qual vários corpos políticos consentem
gasse uma parte, a que ainda estivesse livre
em tornar-se cidadãos de um Estado maior que
poderia resistir com forças independentes das
querem formar. É uma sociedade de socieda­
que estariam usurpadís e vencê-lo antes que
des, que dela fazem uma nova, que pode ser
tivesse acabado de estabelecer-se.
aumentada pela união de novos associados.
Foram essas associações que, durante tanto Se qualquer sedição ocorresse em um dos
tempo, fizeram florescer o corpo da Grécia. membros confederados, os outros poderíam
Através delas os romanos atacaram o univer­ apaziguá-lo. Se abusos se introduzissem em al­
so, e somente através delas o universo defen­ guma parte, seriam corrigidos pelas outras
deu-se contra eles; e, quando Roma atingiu o partes sadias. Este Estado poderia perecer
ápice do poderio, foi por associações do outro numa das partes sem que as demais também
lado do Danúbio e do Reno, associações que o perecessem; a confederação poderia ser dissol­
terror construíra, que os bárbaros puderam vida permanecendo os confederados sobera­
resistir. nos.
E graças a tais associações que a Holanda1, Composta de pequenas repúblicas, gozaria
a Alemanha e as Ligas Suíças são encaradas, da benignidade do governo interno de cada
na Europa, como repúblicas eternas. uma e, no que diz respeito ao exterior, teria,
As associações das cidades, outrora, eram pela força da associação, todas as vantagens
das grandes monarquias.
1 Ela é composta de' aproximadamente cinquenta
repúblicas, todas diferentes uma das outras. Etat 2 Liberdade civil, bens, mulheres, crianças, tem­
des Provinces-Unies, por Janisson. (N. do A.) plos e a própria sepultura. (N. do A.)
136 MONTESQUIEU

Capítulo II

De como a constituição federal deve ser


composta de Estados da mesma natureza,
sobretudo de Estados republicanos

Os cananeus foram destruídos porque cons­ que, quando os véios escolheram um rei, todas
tituíam pequenas monarquias que não estavam as pequenas repúblicas da Toscana3 os aban­
confederadas e que não se defenderam conjun­ donaram. Na Grécia, tudo malogrou quando
tamente. É que a confederação não é da natu­ os reis da Macedônia obtiveram um lugar
reza das pequenas monarquias. entre os anfictiões4.
A república federativa da Alemanha com-
A república federativa da Alemanha, com­
põe-se de cidades livres e de pequenos Estados
posta de príncipes e cidades livres, subsiste
submetidos a príncipes. A experiência demons­
porque possui um chefe5 que é, por assim
tra que ela é mais imperfeita do que a da
Holanda e a da Suíça. dizer, o magistrado da união e, por assim
O espírito da monarquia é a guerra e o dizer, o monarca.
engrandecimento; o espírito da república é a
paz e a moderação. Esses dois tipos de gover­ 3 Da Toscana: Montesquieu entende sempre, por
nos só podem subsistir numa república federa­ Toscana, a Etrúria.
4 Deputados dos Estados gregos confederados,
tiva de modo anormal. membros das ligas anfictiônicas. (N. dos T.)
Desta maneira, vemos na história romana 5 Este chefe era o imperador.

Capítulo III

Outras coisas necessárias na república federativa

Na república da Holanda, uma província três votos; as medíocres, dois votos; e as


não pode estabelecer uma aliança sem o pequenas, um. A república da Holanda está
consentimento das demais6. Essa é uma lei formada por sete províncias, grandes ou
muito boa e mesmo necessária na república pequenas, possuindo, cada província, um voto.
federativa. Ela não existe na constituição As cidades da Lícia8 pagavam tributos de
germânica, onde preveniría as desgraças que acordo com os sufrágios. As províncias holan­
podem ocorrer a todos os membros pela desas não podem estabelecer esta proporção; é
imprudência, pela ambição ou pela avareza de necessário que estabeleçam de acordo com seu
cada um. A república que se une a uma confe­ poderio.
deração política, entrega-se inteiramente e Na Lícia9, os juizes e os magistrados das
nada mais tem a entregar. cidades eram eleitos para o conselho comum
É difícil que os Estados que se associam na proporção que acabamos de dizer. Na repú­
possuam a mesma grandeza e um poderio blica da Holanda, eles não são eleitos para o
igual. A república dos lícios7 era uma associa­ conselho comum e cada cidade nomeia seus
ção composta de vinte e três cidades; as maio­ magistrados. Se fosse preciso apresentar um
res possuíam, no conselho comum, direito a modelo de uma bela república federativa, ofe­
recería o da república da Lícia.
8 Luzac contestou esse ponto, apontando as Ques­
tiones Juris Publici de Bynkershoeck. 8 Ibid. (N. do A.)
7 Estrabão, liv. XIV. (N. do A.) 9 Ibid. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 137

Capítulo IV

Como os Estados despóticos garantem sua segurança

Da mesma maneira como as repúblicas Esse Estado comete contra ele próprio todo
garantem sua segurança, unindo-se, os Estados o mal que poderia cometer um inimigo cruel,
despóticos garantem-na, separando-se e man­ mas um inimigo que não se poderia deter.
tendo-se, por assim dizer, isolados. Sacrificam O Estado despótico se mantém por outra
uma parte do país, devastam as fronteiras e espécie de separação, que é feita colocando-se
tornam-nas desertas; o corpo do império tor­ as províncias afastadas nas mãos de um prín­
na-se inacessível.
Admite-se, em geometria, que, quanto mais cipe que fica como seu feudatário. A Mongó­
os corpos se estendem, mais sua circunferência lia, a Pérsia, os imperadores da China pos­
torna-se relativamente pequena. Esta prática suem seu feudatário; e os turcos ficaram muito
de devastar as fronteiras é, portanto, mais tole­ satisfeitos por terem colocado, entre seus ini­
rável nos grandes Estados do que nos medío­ migos e eles, os tártaros, os moldavos, os valá
cres. quios e, outrora, os transilvanos.

Capítulo V

Como a monarquia garante sua segurança

A monarquia não se destrói a si mesma coragem, perseverança. Os Estados despóticos


como o Estado despótico. Entretanto, um Es­ invadem-se entre si; só as monarquias fazem a
tado de tamanho medíocre poderia ser inva­ guerra.
dido facilmente. Ele possui, portanto, praças As praças fortes pertencem às monarquias;
fortes que defendem suas fronteiras, e exércitos os Estados despóticos temem possuí-las. Não
para proteger essas praças fortes. A menor se atrevem a confiá-las a ninguém, pois nin­
porção de território é defendida com arte, guém ama o Estado e o príncipe.

Capítulo VI

Da força defensiva dos Estados em geral

Para que um Estado esteja em pleno pode­ tamanho requerido. As forças comunicam-se
rio, cumpre que sua grandeza seja tal, que exis­ tão bem, que se transportam no primeiro
ta uma relação entre a rapidez com a qual se momento para onde se pretende; os exércitos
pode executar contra ele qualquer ataque e a reúnem-se e passam rapidamente de uma fron­
prontidão que ele pode empregar para neutrali- teira a outra e não se teme nenhuma das coisas
zá-lo. Como o agressor pode atacar em qual­ que precisam ser executadas num certo prazo.
quer parte, é necessário que os defensores tam­ Na França, por admirável felicidade, a capi­
bém possam defender-se em qualquer parte e, tal encontra-se mais perto das diferentes fron­
consequentemente, que o Estado seja de tama­ teiras, justamente na proporção da fraqueza
nho medíocre a fim de que seja proporcional delas, e o príncipe vê melhor cada parte de seu
ao grau de rapidez que a natureza ofereceu aos país, na medida em que está mais exposta1 °.
homens para se transportarem de um lugar a
outro. 10 Isso não deixa de ter os inconvenientes que
A França e a Espanha são precisamente do vimos.
138 MONTESQUIEU

Porém, quando um vasto Estado, tal como a da: trabalham por seus interesses particulares.
Pérsia, é atacado, são necessários vários meses O império dissolve-se, a capital é conquistada
para que as tropas dispersas possam reunir-se e o conquistador disputa as províncias aos
e não se pode forçar sua marcha durante tanto governadores.
tempo como se faz durante quinze dias. Se o O verdadeiro poder de um príncipe não con­
exército que guarnece as fronteiras é derrota­ siste tanto na sua facilidade de conquistar mas
do, certamente ele dispersar-se-á porque suas na dificuldade que há em atacá-lo c, se assim
retiradas não podem ser curtas. O exército ouso falar, na imutabilidade de sua condição.
vitorioso, que não encontra resistência, avança Mas o engrandecimento dos Estados lhes reve­
rapidamente, surge diante da capital e estabe­ la novos lados por onde podem ser conquista­
lece o sítio, quando os governadores das dos.
províncias mal puderam ser avisados para en­ Desta forma, como os monarcas devem agir
viar socorro. Os que julgam estar próxima a com sabedoria para aumentar seu poder, não
revolução apressam-na não obedecendo mais, devem ter menos prudência a fim de limitá-lo.
pois os súditos, fiéis unicamente porque a Fazendo cessar os inconvenientes da peque­
punição está próxima, não mais o serão a par­ nez, é mister que tenham em mente os inconve­
tir do momento em que a punição está afasta­ nientes da grandeza.

Capítulo VII

Reflexões

Os inimigos de um grande príncipe, que rei­ Seu povo, que, nos países estrangeiros, só se
nou durante longo período11 , acusaram-no mil comove por aquilo que abandonou; que, sain­
vezes, antes, creio, pelos temores que alimenta­ do de sua casa, considera a glória como o
vam do que por suas razões, de ter formado e supremo bem e, nos países distantes, como um
levado adiante o projeto da monarquia univer­ obstáculo a seu retorno; que descontenta por
sal. Se ele tivesse obtido êxito, nada teria sido suas próprias boas qualidades, porque a elas
mais funesto à Europa, a seus antigos súditos, parece acrescentar o desprezo; que pode
a ele, à sua família. O céu, que conhece as suportar os ferimentos, os perigos e as fadigas,
verdadeiras vantagens, serviu-o melhor pelas mas não a perda de seus prazeres; que nada
derrotas do que o teria feito pelas vitórias. Em aprecia tanto como sua alegria, e se consola de
lugar de torná-lo o único rei da Europa, favo- uma batalha perdida louvando o general,
receu-o mais, tornando-o o mais poderoso de nunca teria chegado até o fim de uma empresa,
todos. que não pode falhar num país sem falhar em
todos os demais, nem falhar um momento sem
11 Luís XIV. falhar para sempre.

Capitulo VIII

Caso em que a força defensiva de um


Estado é inferior a sua força ofensiva
Disse o Senhor de Coucy ao Rei Carlos1 2 É o que se dizia dos romanos; foi o que os
“que os ingleses nunca foram tão fracos nem cartagineses experimentaram fazer; é o que
tão fáceis de ser vencidos como em seu país”. sucederá a toda potência que enviar exércitos
para longe a fim de reunir, pela força da disci­
12 No fim do seu reinado (1364-1380), Carlos V
conseguira a quase completa expulsão dos ingleses plina e do poder militar, os que estão divididos
do território francês. (N. doE.) entre si por interesses políticos ou civis. O Es­
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 139

tado acha-se enfraquecido por causa do mal ção à regra geral, que ensina que não se
que subsiste sempre, e é ainda enfraquecido empreendam guerras longínquas, e esta exce­
pelo remédio. ção confirma bem a regra, visto que só se apli­
A máxima do Senhor de Coucy é uma exce­ ca àqueles mesmos que a violaram.

Capítulo IX

Da força relativa dos Estados

Toda grandeza, toda força, todo poderio é os grandes monarcas que posteriormente pos­
relativo. É mister tomar cuidado para que, ao suiu. A Itália estava no mesmo caso. A Escó­
se procurar aumentar a grandeza real, não se cia e a Inglaterra não formavam um corpo de
monarquia. Aragão não estava unido a Caste-
diminua a grandeza relativa.
la; as partes separadas da Espanha estavam
Pelos meados do reinado de Luís XIV, a enfraquecidas por isso e enfraqueciam-na. A
França atingiu o ponto mais alto de sua gran­ Moscóvia não era mais conhecida na Europa
deza relativa. A Alemanha não possuía ainda do que na Criméia.

Capítulo X

Da fraqueza dos Estados vizinhos

Quando se tem por vizinho um Estado que mais cômodo para um príncipe que estar junto
se encontra em decadência1*3, deve-se abster de de outro que receba por ele todos os golpes e
apressar sua ruína, porque se está, a este res­
todos os ultrajes da fortuna. É raro que, pela
peito, na mais feliz situação, nada havendo de
conquista de tal Estado, se aumente tanto em
1 3 Supôs-se que Montesquieu estivesse aqui refe- poder efetivo quanto se perdeu em poder
rindo-se à Espanha. relativo.
LIVRO DÉCIMO
DAS LEIS EM SUA RELAÇÃO
COM A FORÇA OFENSIVA
Capítulo I

Da força ofensiva

A Torça ofensiva é regulada pelo direito das gentes, que é a lei política das nações, considera­
das na relação que possuem entre si.

Capítulo II

Da guerra

A vida dos Estados é como a dos homens; destruí-lo, e que o ataque é, neste caso, o único
estes têm direito de matar em caso de defesa meio de impedir esta destruição.
natural; aqueles têm direito de fazer a guerra Disso resulta que as pequenas sociedades
para a sua própria conservação. têm mais amiúde o.direito de guerrear do que
No caso de defesa natural, tenho direito de as grandes, porque estão mais constantemente
matar porque minha vida me pertence, como a no caso de temer ser destruídas.
vida do que me ataca lhe pertence; do mesmo O direito de guerra decorre, portanto, da
modo, um Estado faz a guerra porque sua necessidade e do justo exato. Se os que dirigem
conservação é justa como qualquer outra a consciência ou os conselhos dos príncipes
conservação. não se atêm a isso, tudo está perdido; e, quan­
Entre cidadãos, o direito de defesa natural do nos baseamos em princípios arbitrários de
não se relaciona com a necessidade de ataque. glória, conveniência, utilidade, ondas de san­
Em lugar de atacar, basta recorrer aos tribu­ gue inundarão a terra.
nais. Só podem, portanto, exercer o direito Sobretudo, que não se fale da glória do prín­
desta defesa em casos momentâneos em que se cipe: sua glória seria seu orgulho; é uma pai­
estaria perdido se se esperasse o auxílio das xão e não um direito legítimo.
leis. Mas, entre sociedades, o direito de defesa Verdade é que a reputação de seu poder
natural acarreta, algumas vezes, a necessidade poderia aumentar as forças de seu Estado» mas
de atacar, quando um povo vê que uma paz a reputação de sua justiça também as aumen­
mais longa poria o outro em condição de taria.

Capítulo III

Do direito de conquista’

Do direito da guerra decorre o da conquista, quatro gêneros de leis: a lei da Natureza, que
que lhe é consequente; deve, portanto, seguir- determina que tudo tenda para a conservação
lhe o espírito. das espécies; a lei do saber natural, que deter­
Quando um povo é conquistado, o direito mina que façamos aos outros o que queremos
que o conquistador tem sobre ele obedece a que nos façam; a lei que forma as sociedades
144 MONTESQUIEU

políticas, que são de tal ordem que a Natureza Do direito de matar na conquista, os políti­
não lhes limitou a duração; finalmente, a lei cos inferiram o de reduzir à escravidão, mas a
extraída da própria coisa. A conquista é uma consequência é tão mal fundamentada quanto
aquisição; o espírito de aquisição traz consigo o princípio.
o de conservação e de usufruto, e não o de Não se tem o direito de reduzir à servidão, a
destruição. não ser quando isso é necessário para a
Um Estado que conquistou outro trata-o de conservação da conquista. O objetivo da con­
uma das quatro maneiras seguintes: continua a quista é a conservação; a servidão nunca é o
governá-lo segundo suas leis e só toma para si objetivo da conquista, mas pode acontecer que
o exercício do governo político e civil; ou lhe seja um meio necessário para a conservação.
dá novo governo político e civil; ou destrói a Neste caso, é contrário à natureza da coisa
sociedade e a dispersa em outra; ou, enfim, que esta servidão seja eterna. É necessário que
extermina todos os cidadãos. o povo escravizado possa tornar-se súdito. A
O primeiro modo é conforme o direito das escravidão na conquista é coisa acidental.
gentes que observamos atualmente; o quarto é Quando, depois de certo tempo, todas as par­
mais conforme ao direito das gentes dos roma­ tes do Estado conquistador ligaram-se às do
nos1*4, no que deixo para julgar até que ponto Estado conquistado, por costumes, casamen­
nos tornamos melhores. É necessário, aqui, tos, leis, associações e certa conformidade de
render homenagem a nossos tempos modernos, espírito, a servidão deve cessar, pois os direitos
à razão presente, à religião de hoje, à nossa do conquistador só estão baseados no que
filosofia, a nossos costumes. aquelas coisas não são, e há tal distância entre
Os autores de nosso direito público, basea­ as duas nações que uma não pode ter con­
dos nas histórias antigas, tendo saído dos fiança na outra.
casos rígidos, incidiram em grandes erros. Assim, o conquistador que reduz o povo à
Opinaram arbitrariamente; presumiram nos servidão deve sempre reservar-se meios (e
conquistadores um direito, não sei qual, de esses meios são inumeráveis) para fazê-lo sair
matar; o que lhes fez inferir consequências dela.
terríveis, como o princípio de estabelecer má­ Não afirmo aqui coisas vagas. Nossos ante­
ximas que os próprios conquistadores, quando passados que conquistaram o império romano
tiveram um mínimo de juízo, jamais seguiram. assim agiram. As leis que fizeram no fogo, na
É evidente que, uma vez consumada a conquis­ ação, na impetuosidade, no orgulho da vitória,
ta, o conquistador perde o direito de matar, já eles as amenizaram: suas leis eram duras, eles
que não se trata mais de defesa natural e de tornaram-nas imparciais. Os borguinhões, os
sua própria conservação. godos e os lombardos queriam sempre que os
O que os fez pensar desse modo foi terem romanos fossem o povo vencido: as leis de
acreditado que o conquistador tinha direito de Eurico, de Dondovaldo e de Rotáris fizeram
destruir a sociedade; de onde concluíram que do bárbaro e do romano concidadãos1 5. Car­
tinha o de destruir os homens que a compõem, los Magno, para domar os saxões, tirou-lhes a
o que é consequência falsamente deduzida de condição de ingênuos e a propriedade dos
um princípio falaz; pois, pelo fato de ser ani­ bens. Luís, o Bonachão, libertou-os1 6. Nada
quilada a sociedade, não decorre que os ho­ fez de melhor em todo o seu reinado. O tempo
mens que a formam devam também ser aniqui­ e a servidão tinham abrandado seus costumes:
lados. A sociedade é a união dos homens e não
foram-lhe sempre fiéis.
os homeiis; o cidadão pode desaparecer, e o
homem subsistir.
1 5 Vede o Código das Leis dos Bárbaros e o liv.
XXVIII, ad-ante. (N. do A.)
1 4 Há aqui uma sistematização muito bem feita 1 6 Vede o autor duvidoso da vida de Luís, o Bona­
para legitimar o sistema; os romanos não extermi­ chão, na coleção Duchesne, tomo II, pág. 296. (N.
naram tudo nos lugares que conquistaram. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 145

Capítulo IV

Algumas vantagens do povo conquistado

Em vez de extraírem do direito de conquista pelos contratadores serem aliviados pelo con­
consequências tão fatais, os políticos teriam quistador, que não tinha nem os compro­
feito melhor se tivessem falado das vantagens missos nem as necessidades que tinha o prín­
que este direito pode, algumas vezes, trazer ao cipe legítimo. Os abusos eram corrigidos
povo .vencido. Tê-las-iam sentido melhor se mesmo sem que o conquistador os corrigisse.
nosso direito das gentes fosse exatamente
Algumas vezes, a frugalidade da nação
seguido e estabelecido em toda a terra.
conquistadora coloca-a em condição de deixar
Os Estados conquistados não estão, geral­
aos vencidos o necessário que lhes era negado
mente, no vigor de sua instituição; a corrupção
sob o reinado do príncipe legítimo.
neles se introduziu; as leis deixaram de ser
executadas; o governo tornou-se opressor. Uma conquista pode destruir os precon­
Quem pode duvidar que semelhante Estado ceitos nocivos e colocar, se ouso assim falar,
não aproveitasse e não tirasse algumas vanta­ um povo sob um melhor governo.
gens da própria conquista, se esta não fosse Que benefícios os espanhóis podiam prestar
destrutiva! Um governo que chegou ao ponto aos mexicanos? Tinham para dar-lhes uma
em que não pode mais reformar a si mesmo, religião amena: levaram-lhes uma superstição
que perdería em ser refundido? Um conquis­ furiosa. Teriam podido tornar livres Os escra­
tador que invadiu um país em que, por meio de vos, e tornaram os homens livres escravos. Po­
mil astúcias e de mil artifícios, o rico utilizou- diam esclarecê-los sobre o abuso dos sacrifí­
se, insensivelmente, de uma infinidade de cios humanos; em vez disso, exterminaram-
meios de usurpar, em que o infeliz que geme, nos. Não acabaria nunca se quisesse relatar
vendo o que julgava abusos transformar-se em todos os benefícios que não fizeram e todos os
leis, vivendo sob a opressão, e julgando não ter males que fizeram.
razão de suportá-la, um conquistador, repito,
Cabe a um conquistador reparar parte dos
pode transformar tudo, e a tirania surda é a
males que causou. Defino da seguinte maneira
primeira coisa que sofre1 7 a violência.
o direito de conquista: um direito necessário,
Vimos, por exemplo, Estados oprimidos legítimo e negativo, que deixa sempre imensa
dívida a ser paga, a fim de ficar quites com a
1 7 Que sofre, que legitima. natureza humana.

Capítulo V

Gelon, rei de Siracusa

O mais belo tratado de paz de que nos fala a para esses últimos; ou, antes, estipulava a
História foi, creio, o que Gelon estabeleceu favor do gênero humano.
com os cartagineses. Quis que abolissem o Os bactrianos faziam com que os seus ve­
costume de imolar seus filhos1 8. Coisa admi­
lhos pais fossem comidos por grandes cães:
rável ! Após ter derrotado trezentos mil carta­
gineses, exigia uma condição que só era útil Alexandre proibiu-lhes esta prática1 9; e foi um
triunfo que ele alcançou sobre a superstição.
18 Vede a Recueil de Barbeyrac (Histoire des
Anciens Traités, 1739), art. 112.(N. do A.) 1 9 Estralião, liv. XI.
146 MONTESQUIEU

Capítulo VI

Da república que conquista

É contra a natureza das coisas que, numa Hanon nunca teria podido persuadir o sena­
constituição federativa, um Estado confede­ do a não enviar auxílio a Aníbal, se não tivesse
rado subjugue outro, como vimos em nossos feito apenas a sua inveja falar. Este senado,
dias entre os suíços20. Nas repúblicas federa­ que Aristóteles nos conta ter sido sábio (coisa
tivas mistas, em que a associação se realiza que a prosperidade dessa república tão bem
entre pequenas repúblicas e pequenas monar­ nos prova), só poderia ser determinado por
quias, isso é menos chocante. motivos sensatos. Teria sido necessário ser
É ainda contra a natureza da coisa que uma muito estúpido para não perceber que um exér­
república democrática conquiste cidades que cito a trezentas léguas de distância necessaria­
se recusaram a participar da esfera da demo­ mente sofria perdas que deveríam ser repara­
cracia. Cumpre que o povo conquistado possa das.
fruir dos privilégios da soberania, tal como os O partido de Hanon queria que se entre­
romanos estabeleceram inicialmente. Deve-se gasse Aníbal aos romanos22. Se no momento
limitar a conquista ao número de cidadãos que não se podia temer os romanos, temia-se
se fixará para a democracia. Aníbal.
Se uma democracia conquista um povo para Não se podia acreditar, dizem, nos êxitos de
governá-lo como súdito, ela arriscará sua pró­ Aníbal; mas como duvidar deles: os cartagine­
pria liberdade porque confiará um poder muito ses, disseminados por toda a terra, ignoravam
grande aos magistrados que enviará ao Estado o que se passava na Itália? Foi por não o igno­
conquistado. rarem que não se quis enviar reforços a
Em que perigo cairia a república de Cartago Aníbal.
se Aníbal se tivesse apoderado de Roma? Que Hanon tornou-se mais obstinado depois de
não teria feito à sua cidade, depois da vitória, Trébia, depois de Trasimeno, depois de Canes:
ele que ocasionou tantas revoluções após sua não foi sua incredulidade que aumentou; foi
derrota21? seu temor.

20 Para o Tockemburgo*. (N. do A.)


* No Tockemburgo, ou Toggenburg, vale suíço no 22 Hanon pretendia entregar Aníbal aos romanos,
cantão de Saint-Gall. tal como Catão queria entregar César aos gauleses.
21 Ele estava à frente de uma facção. (N. do A.) (N. do A.)

Capítulo VII

Continuação do mesmo assunto

As conquistas feitas pelas democracias Os povos conquistados encontram-se numa


acarretam ainda um inconveniente. Seu gover­ lamentável condição; não usufruem nem das
no é sempre odioso para os Estados subjuga­ vantagens da república, nem das da monar­
dos. É monárquico por ficção mas, na verdade,
é mais duro do que o monárquico, como no-lo quia.
demonstra a experiência de todos os tempos e O que disse do Estado popular pode-se apli­
de todos os países. car à aristocracia.
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 147

Capítulo VIII

Continuação do mesmo assunto

Deste modo, quando uma república mantém governador informado23. Vimos frequente­
algum povo sob sua dependência, é necessário mente povos exigirem privilégios: aqui o sobe­
que procure reparar os inconvenientes surgidos rano concede o direito de todas as nações.
da natureza da coisa, outorgando-lhe um bom
23 De 18 de outubro de 1738, impresso em Gêno­
direito político e boas leis civis. va, pelo editor Franchelli. Vietamo al nostro general
Uma república da Itália mantinha insulares governatore in detta isola, di condannare in avenire
solcmente ex informata conscientia persona alcuna
sob sua obediência. Entretanto, o direito polí­ naztonale in pena ajflittiva. Potrà ben si far arres-
tico e civil que lhes oferecia era corrompido. tare ed incarcerare le persone che gli saranno sos-
petie; salvo di renderne poi a noi conto sollecita-
Lembramo-nos deste ato de anistia estipulando mente, art. VI. Vede também a Gazette de
que só se condene a penas aflitivas estando o Amsterdam, de 23 de dezembro de 1738. (N. do A.)

Capítulo IX

Da monarquia que conquista em tomo de si

Se uma monarquia pode agir durante longo seu antigo domínio serão normalmente sobre­
tempo antes que o engrandecimento a tenha carregadas de exações. Elas devem suportar os
enfraquecido, ela se tornará temível e sua força novos e antigos abusos e, amiúde, uma vasta
perdurará por todo o tempo em que estiver capital, que tudo absorve, as despovoa. Ora,
pressionada por monarquias circunvizinhas. se, após ter conquistado em torno desse domí­
Portanto, ela não deve conquistar senão nio, tratasse os povos vencidos como se trata
enquanto permanecer nos limites naturais de os antigos súditos, o Estado estaria perdido; o
seu governo. A prudência manda que pare tão que as províncias conquistadas enviassem de
logo ultrapasse esses limites. tributo à capital não mais lhes retornaria; as
É mister nesse gênero de conquista deixar as fronteiras seriam arruinadas e, consequente­
coisas tal como foram encontradas: os mes­ mente, mais fracas, os povos seriam menos
mos tribunais, as mesmas leis, os mesmos cos­ dedicados; a subsistência dos exércitos que
tumes, os mesmos privilégios. Somente o exér­ devem aí permanecer e atuar seria mais
cito e o nome do soberano devem ser precária.
modificados. Tal é a situação necessária de uma monar­
Quando a monarquia, pela conquista de quia conquistadora: luxo desenfreado na capi­
algumas províncias vizinhas, ampliou seus tal, miséria nas províncias que dela se afastam,
limites, cumpre que ela as trate com grande abundância nas extremidades. É o que acon­
brandura. tece com nosso planeta: o fogo está no centro,
Numa monarquia que durante muito tempo a vegetação na superfície; entre os dois, uma
se esforçou para conquistar, as províncias de terra árida, fria e estéril.
148 MONTESQUIEU

Capítulo X

De uma monarquia que conquista outra monarquia

Ocorre, algumas vezes, uma monarquia conquistar outra. Quanto mais esta última for
pequena, mais facilmente será contida por fortalezas; quanto maior for, mais facilmente será con­
servada pelas colônias 2 4. 2 4 Maquiavel, O Príncipe, cap. III.

Capítulo XI

Dos costumes do povo vencido

Nas conquistas, não basta permitir que a Dizem os historiadores2 5 que os franceses
nação vencida conserve suas leis; possivel­ foram expulsos nove vezes da Itália por causa
mente será mais necessário conservar seus cos­ da sua insolência com relação às mulheres e às
tumes, porque um povo sempre conhece, ama e moças. É demais para uma nação ter de supor­
defende mais seus costumes do que suas leis. tar o orgulho do vencedor, sua incontinência e
também sua indiscrição, indubitavelmente
2 5 Lede a História do Universo, de Puffendorff. (N. mais desagradável porque multiplica infinita­
do A.) mente os ultrajes.

Capítulo XII

De uma lei de Ciro

Não considero boa a lei que Ciro estabe­ debilitar a coragem da juventude. Quis que os
leceu para que os lídios só pudessem exercer jovens deixassem crescer os cabelos, como
profissões vis, ou profissões infames. Vai-se às moças, que os ornassem com flores e usassem
coisas mais urgentes; pensa-se nas revoltas e vestidos de diferentes cores até o calcanhar;
não nas invasões. Porém essas logo virão; os quis ele que, quando fossem à casa de seus
dois povos unem-se e corromper-se-ão mutua­ professores de dança e de música, mulheres
mente. Eu preferiría antes manter pelas leis a lhes trouxessem pára-sóis, perfumes e leques;
rudeza do povo vencedor do que sustentar com que, durante o banho, lhes trouxessem pentes e
elas a indolência do povo vencido. espelhos. Esta educação deveria durar até a
Aristodemo, tirano de Cumes2 6, procurou idade de vinte anos. Isso só poderia convir a
um pequeno tirano que arrisca sua soberania
2 6 Dionísio de Halicarnasso, liv. VII. (N. do A.) para defender a vida.

Capítulo XIII

Carlos XII
Este príncipe, que não fez uso senão de suas dos através de uma longa guerra que o reino
próprias forças, determinou sua queda ao for­ não poderia sustentar.
mular desígnios que só poderíam ser executa­ Não foi um Estado decadente que ele procu­
DO ESPIRITO DAS LEIS II 149

rou derrubar mas um império nascente. Os gregos, as conquistas de Agesilau e a retirada


moscovitas serviram-se da guerra que ele lhes dos Dez Mil permitiram que se conhecesse
movia como uma escola. A cada derrota, mais com exatidão a superioridade grega na manei­
aproximavam-se da vitória e, sendo derrotados ra de combater e no tipo de suas armas; e
no exterior, aprendiam a defender-se interna­ sabia-se bem que os persas eram muito pode­
mente. rosos para se corrigirem.
Carlos acreditava-se senhor do mundo nos Eles não podiam enfraquecer a Grécia divi­
desertos da Polônia, onde errava, e onde a Sué­ dindo-a, pois ela estava, então, reunida sob um
cia estava como espalhada, enquanto seu prin­ chefe, o que não teria encontrado melhor meio
cipal inimigo se fortificava contra ele, cerca­ para ocultar a servidão dos gregos do que
va-o, estabelecia-se no mar Báltico, destruía e deslumbrando-os pela destruição de seus ini­
apoderava-se da Livônia. migos eternos e pela esperança da conquista
A Suécia assemelhava-se a um rio cujas da Ásia.
águas eram interceptadas na nascente e desvia­ Um império cultivado pelo povo mais indus-
das em seu curso. trioso do mundo e que, pelo princípio da reli­
Não foi Poltavá que arruinou Carlos, pois gião, lavrava a terra, fértil e abundante em
se este não fosse derrotado neste lugar o seria todas as coisas, oferecia a um inimigo todo
em outro. Os acidentes do acaso são facil­ tipo de facilidades para aí subsistir.
mente reparáveis, mas não se podem conter Poder-se-ia julgar, pelo orgulho de seus reis,
acontecimentos que afloram continuamente da sempre vãmente mortificados pelas derrotas,
natureza das coisas. que eles precipitariam sua queda, oferecendo-
lhes sempre combate, e que a lisonja nunca
Porém a natureza e o acaso nunca foram permitiría que pudessem duvidar de sua gran­
mais poderosos contra Carlos XII do que ele deza.
próprio.
E não somente o projeto era sábio como foi
Ele não se orientava pela disposição atual
sabiamente executado. Alexandre, na rapidezde
das coisas mas sobre certo modelo que toma­ suas ações, no ardor de suas próprias paixões,
ra; e também o seguia muito mal. Não era Ale­
possuía, se ouso me utilizar desse termo, um
xandre mas teria sido o melhor soldado de impulso de razão que o conduzia e que os que
Alexandre.
pretenderam fazer de sua história um romance
O projeto de Alexandre só foi bem sucedido e que tinham um espírito mais corrompido do
porque este era sensato. Os malogros dos per­ que ele não puderam nos extorquir. Falemos
sas nas invasões que empreenderam contra os dele com toda liberdade.

Capítulo XIV

Alexandre

Ele só partiu depois de ter garantido a No início de sua empresa, isto é, no momen­
Macedônia contra os povos bárbaros vizinhos to em que uma derrota poderia derrubá-lo, dei­
e de ter acabado de submeter os gregos; só uti­ xou pouca coisa ao acaso; quando o êxito o
lizou essa vitória para assegurar a execução de colocou acima dos acontecimentos, a temeri­
sua empresa; tornou impotente a inveja dos dade, algumas vezes, foi um de seus meios.
lacedemônios; atacou as províncias marítimas; Quando, antes de sua partida, marchou contra
fez com que seu exército bordejasse as costas os tribalianos e os ilírios, assistimos a uma
para não ficar separado de sua frota; utilizou- guerra2 7 semelhante à que César travou poste­
se admiravelmente bem da disciplina contra o riormente contra os gauleses. Quando retomou
número; não faltaram abastecimentos e, se é à Grécia28, foi como que contra sua vontade
verdade que a vitória lhe deu tudo, ele também
envidou todos os esforços para alcançar a 2 7 Vede Arriano, De Exped. Alex., liv. I. (N. do A.)
vitória. 28 Ibid. (N. do A.)
150 MONTESQUIEU

que tomou e destruiu Tebas: acampando perto que qualquer outro conquistador possa vanglo­
dessa cidade, esperou que os tebanos viessem riar-se.
estabelecer a paz; mas eles próprios precipi­ Nada consolida tanto uma conquista como
taram sua ruína. Quando se tratou de comba­ a união feita entre dois povos pelos casamen­
ter29 as forças marítimas da Pérsia, foi antes tos. Alexandre tomou por esposas mulheres
Parmênio que teve a audácia mas foi Alexan­ das nações que submetera: quis que os de sua
dre que teve a sabedoria. Sua arte foi isolar os corte32 também as tomassem: os outros mace-
persas das costas marítimas e obrigar a que dônios seguiram seu exemplo. Os francos e os
eles mesmos abandonassem sua marinha, no borguinhões3 3 permitiram esse tipo de casa­
que eram superiores. Tiro era, por princípio, li­ mento; os visigodos, na Espanha, proibiram-
gado aos persas, não podendo prescindir de no3 4 mas logo o permitiram; os lombardos
seu comércio e de sua marinha; Alexandre não somente o permitiram como o favorece­
destruiu-a. Conquistou o Egito que Dario dei­ ram3 5. Quando os romanos pretenderam en­
xara desguarnecido de tropas, enquanto mobi­ fraquecer a Macedônia, estipularam que não se
lizava enormes exércitos em outro universo. poderíam realizar uniões pelo casamento entre
A passagem de Granico fez com que Ale­ os povos das províncias.
xandre se tornasse senhor das colônias gregas; Alexandre, que procurava unir os dois
a batalha de Isso lhe deu Tiro e o Egito; a povos, pensou em criar, na Pérsia, numerosas
batalha de Arbelas lhe deu toda a terra. colônias gregas. Construiu uma infinidade de
Depois da batalha de Isso, deixou que Dario cidades e cimentou tão bem todas as partes
escapasse, ocupando-se unicamente em garan­ deste novo império, que, depois de sua morte,
tir e organizar suas conquistas; depois da bata­ na perturbação e confusão das mais horroro­
lha de Arbelas, perseguiu-o tão de perto30, que sas guerras civis, depois que os gregos, por
não lhe deixou nenhum refúgio em seu impé­ assim dizer, aniquilaram a eles próprios,
rio. Dario só entrava em suas cidades para tor­ nenhuma província persa se revoltou.
nar a sair: as marchas de Alexandre foram tão Para não esgotar a Grécia e a Macedônia,
rápidas, que acreditaríamos ver o império do enviou a Alexandria uma colônia de judeus3 6:
universo antes como prêmio da corrida, como não lhe importavam os costumes desses povos,
nos jogos gregos, do que como prêmio da desde que lhe fossem fiéis.
vitória. Não apenas deixou aos povos vencidos seus
Se assim obteve suas conquistas, vejamos costumes, como ainda lhes conservou suas leis
como as conservou. e governadores que encontrara. Colocou os
Resistiu aos que pretendiam que ele tratas­ macedônios3 7 à frente das tropas e os habitan­
se31 os gregos como senhores e os persas tes do país na direção do governo; preferia
como escravos; só pensou em unir as duas arriscar-se a alguma infidelidade particular (o
nações e em extinguir as diferenças entre povo que algumas vezes lhe aconteceu) do que a
conquistador e povo vencido. Abandonou, uma revolta geral. Respeitou as antigas tradi­
após a vitória, todos os preconceitos que lhe ti­ ções e todos os movimentos da glória ou da
nham proporcionado. Adotou os costumes dos vaidade dos povos. Os reis da Pérsia tinham
persas para não afligi-los, fazendo-os adotar os
costumes gregos. Isso é que fez com que mos­
32 Vede Arriano, De Exped. Alex., liv. VII (N. do
trasse tanto respeito pela esposa e pela mãe de A.)
Dario e que revelasse tanta continência. Quem 33 Vede a lei dos borguinhões. Tit. XII, art. V. (N.
é esse conquistador cuja morte foi lamentada do A.)
por todos os povos que dominou? Quem é esse 3 * Vede a lei dos visigodos, liv. III, tit. I, § 1, que
usurpador, a cuja morte a família que destro­ ab-roga a lei antiga, que tinha mais consideração,
dizia-se, pela diferença das nações do que pelas
nou verteu tantas lágrimas? É um traço de sua condições. (N. do A.)
vida, do qual os historiadores não nos contam 3 B Vede a lei dos lombardos, liv. II, tit. VII, §§ 1 e
2. (N. do A.)
3 6 Os reis da Síria, abandonando os planos dos
29 Ibid. (N. do AÓ fundadores do império, quiseram obrigar os judeus
3° Vede Arriano, De Exped. Alex., liv. III. (N. do a adotar os costumes dos gregos, fato que acarretou
A.) ao Estado terríveis abalos. (N. do A.)
31 Era o conselho de Aristóteles. Plutarco, Obras 3 7 Vede Arriano, De Exped. Alex., liv. III e outros.
Morais: Da Fortuna de Alexandre. (N. do A.) (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS II 151

destruído os templos dos gregos, dos babilô­ dados, partilhar com os gregos sua conquista,
nios e dos egípcios; ele restabeleceu-os38; pou­ fazer a fortuna de cada homem de seu exército,
cas foram as nações que se lhe submeteram, ele era Alexandre.
em cujos altares não fez sacrifícios. Parecia Cometeu duas más ações: queimou Persé-
que só tinha conquistado para ser o monarca polis e assassinou Clito. Tornou-os célebres
particular de cada nação e o primeiro cidadão por seu arrependimento, de modo que esquece­
de cada cidade. Os romanos conquistaram mos suas ações criminosas para lembrarmo-
tudo para tudo destruir39; ele quis tudo con­
nos de seu respeito pela virtude; assim, foram
quistar para tudo conservar e, qualquer que elas consideradas antes como desgraça do que
fosse o país que percorresse, suas primeiras
idéias, seus primeiros desígnios, foram sempre como coisas que lhe eram próprias; assim, a
fazer alguma coisa que pudesse aumentar sua posteridade encontra a beleza de sua alma
prosperidade e poder. Na grandeza de seu quase ao lado de seus arrebatametitos e de
gênio, encontrou os primeiros meios; os segun­ suas fraquezas; assim, foi possível lamentá-lo
dos, em sua frugalidade e em sua economia mas não foi possível odiá-lo.
particular40, os terceiros, em sua imensa Compará-lo-ei a César. Quando César quis
prodigalidade pelas grandes coisas. Sua mão imitar os reis da Ásia, atormentou os romanos,
se fechava para as despesas privadas e só se por uma coisa de pura ostentação; quando
abria para as despesas públicas. Se era neces­ Alexandre quis imitar os reis da Ásia, fez uma
sário organizar sua casa, ele era um macedô- coisa que entrava no plano de sua conquista41.
nio; se era necessário pagar os soidos dos sol-
41 Deve-se observar que Montesquieu foi um dos
3 8 Vede Arriano, De Exped. A lex. (N. do A.) primeiros, entre os modernos, a fazer justiça a Ale­
3 9 Ver acima a nota 14, pág. 144. xandre por esta apologia. A História será, talvez,
40 Ibid., liv. VII. (N. do A.) mais prudente.

Capítulo XV

Novos meios de conservar a conquista

Quando um monarca conquista um grande dever. Também os tribunais eram compostos


Estado, há um costume admirável, igualmente metade de chineses, metade de tártaros. Isso
capaz de moderar o despotismo e conservar a produziu vários efeitos positivos: l.°, as duas
conquista; os conquistadores da China utiliza­ nações se contêm mutuamente; 2.°, ambas
ram-no.
conservam o poderio militar e uivil e uma não
Para não desesperar o povo vencido e para
destrói a outra; 3.°, a nação conquistadora
não ensoberbecer o vencedor, para impedir que
o governo se torne militar e para manter os pode expandir-se por toda parte sem se enfra­
dois povos no dever, a família tártara, que quecer e se arruinar, tornando-se capaz de
atualmente reina na China, estabeleceu que resistir às guerras civis e estrangeiras. Trata-se
cada corpo de tropas, nas províncias, seria de uma instituição muito sensata, e a ausência
composto metade de chineses e metade de tár­ de solução semelhante perdeu quase todos que
taros, a fim de que a inveja se contivesse no conquistaram a terra.

Capítulo XVI

De um Estado despótico que conquista


Quando a conquista é imensa, ela acarreta o Cumpre que sempre exista em torno do prín­
despotismo, pois, nestas condições, o exército cipe um corpo particular de absoluta confian­
espalhado nas províncias não é suficiente. ça, sempre pronto a lançar-se sobre a parte do
152 MONTESQUIEU

império que possa agitar-se. Esta milícia deve guarda a soldo do príncipe42, independen­
conter as demais e aterrorizar todos os que, no temente da que é mantida pela renda das ter­
império, foram obrigados a perder certa auto­ ras43. Essas forças particulares mantêm o res­
peito das gerais.
ridade. Há, em torno do imperador da China,
um poderoso corpo de tártaros sempre prepa­
42 Os janízaros, na Turquia.
rados para qualquer eventualidade. Entre os 43 Também na Turquia, os “spahis” e os “timario-
mongóis, entre os turcos, no Japão, há uma tas”.

Capítulo XVII

Continuação do mesmo assunto

Dissemos que os Estados conquistados pelo Estado conquistado, os governadores que en­
monarca despótico devem ser feudatários. Os viar não poderão conter os súditos, nem ele
historiadores esgotam-se em elogios sobre as próprio seus governadores. Será obrigado a
generosidades dos conquistadores que resti- desguarnecer de tropas seu antigo patrimônio
tuíram a coroa aos príncipes que derrotaram. para garantir o novo. Todas as desgraças dos
Os romanos eram, portanto, muito generosos, dois Estados serão comuns: a guerra civil de
pois em toda parte criavam reis, a fim de pos­ um será a guerra civil de outro. Mas se, ao
suir instrumento de servidão4 4. Tal ação é um contrário, o conquistador devolve o trono ao
ato necessário. Se o conquistador conserva o príncipe legítimo, terá um aliado necessário
que, com forças que lhe serão próprias, aumen­
tará as suas. Acabamos de ver Xá-Nadir con­
4 4 Tac., Agrícola, cap. XIV. Vetere ac jam pridem
recepta populi romani consuetudine, ut haberent quistar os tesouros do Mogol e deixar-lhe o
instrumenta servitutis et reges. (N. do A.) Hindustão.
LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO
DAS LEIS QUE FORMAM A LIBERDADE POLÍTICA
EM SUA RELAÇÃO COM A CONSTITUIÇÃO
Capítulo I

Idéia geral

Distingo as leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição, das
leis que a formam em sua relação com o cidadão. As primeiras serão o assunto deste livro;
tratarei das segundas no livro seguinte.

Capítulo II

Diversas significações dadas à palavra liberdade

Não há palavra que tenha recebido as mais haviam experimentado o governo republicano
diferentes significações e que, de tantas manei­ situaram-na neste governo; os que haviam go­
ras, tenha impressionado os espíritos como a zado do governo monárquico situaram-na na
palavra liberdade. Uns tomaram-na pela facili­ monarquia47. Enfim, cada um chamou liber­
dade em depor aquele a quem outorgaram um dade ao governo que se adequava aos seus cos­
poder tirânico; outros, pela faculdade de eleger tumes ou às suas inclinações; e como, numa
aquele a quem deveríam obedecer; outros, pelo república, nem sempre temos diante dos olhos
direito de se armar, e de exercer a violência; e de forma tão presente os instrumentos dos
estes, pelo privilégio de só serem governados males de que nos queixamos e, mesmo, como,
por um homem de sua nação, ou por suas pró­ nesta forma de governo, as leis parecem falar
prias leis4 5. Certo povo considerou, por muito mais e os executores da lei menos, ela é colo­
tempo, como liberdade o hábito de usar barbas cada geralmente nas repúblicas e excluída das
compridas4 6. Estes ligaram esse nome a uma monarquias. Finalmente, como nas democra­
forma de governo, excluindo as demais. Os que cias o povo parece quase fazer o que deseja,
ligou-se a liberdade a essas formas de governo
4 5 “Copiei”, diz Cícero, “o edito de Cévola que e confundiu-se o poder do povo com sua
permite aos gregos resolverem entre si suas diver­ liberdade.
gências, de acordo com suas leis; o que faz com que
eles se considerem povos livres.” (N. do A.)
4 6 Os moscovitas não podiam tolerar que o Czar 4 7 Os capadócios recusaram o Estado republicano
Pedro os obrigasse a cortá-la. (N. do A.) que os romanos lhes ofereceram. (N. do A.)

Capítulo III

O que é a liberdade

É verdade que nas democracias o povo pare- não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa
ce fazer o que quer; mas a liberdade política sociedade em que há leis, a liberdade não pode
156 MONTESQUIEU
consistir senão em poder fazer o que se deve mitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que
querer e em não ser constrangido a fazer o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque
não se deve desejar 4 8. os outros também teriam tal poder.
Deve-se ter sempre em mente o que é
independência e o que é liberdade. A liberda­
49 Se Montesquieu cede, por vezes, a seus precon­
de4 9 é o direito de fazer tudo o que as leis per- ceitos “filosóficos”, devemos reconhecer que apre­
senta aqui a definição de “liberdade” mais justa.
48 Cf. as Considerações, cap. IV (in fine). Mas que ideal ele apresenta!

Capítulo IV

Continuação do mesmo assunto

A democracia e a aristocracia, por sua natu­ encontra limites. Quem o diría! A própria vir­
reza, não são Estados livres. Encontra-se a tude tem necessidade de limites.
liberdade política unicamente nos governos Para que não se possa abusar do poder é
moderados. Porém, ela nem sempre existe nos preciso que, pela disposição das coisas, o
Estados moderados: só existe nesses últimos poder freie o poder. Uma constituição pode ser
quando não se abusa do poder: mas a expe­ de tal modo, que ninguém será constrangido a
riência eterna mostra que todo homem que tem fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer
poder é tentado a abusar dele; vai até onde as que a lei permite.

Capítulo V

Do objetivo dos diversos Estados

Apesar de todos os Estados possuírem, em despóticos; sua glória e a do Estado, o das


geral, um mesmo objetivo, que é manter-se, monarquias; a independência de cada indiví­
cada Estado possui, entretanto, um que lhe é duo é o objetivo das leis da Polônia, e o que
particular. A expansão era o objetivo de disso resulta é a opressão de todos51.
Há também uma nação no mundo que tem
Roma; a guerra, o da Lacedemônia; a religião,
por objetivo direto de sua constituição a liber­
o das leis judaicas; o comércio, o de Marselha; dade política. Examinaremos os princípios
a tranquilidade pública, o das leis da China50; sobre os quais ela a baseia. Se são bons, a
a navegação, o das leis dos ródios; a liberdade liberdade aparecerá como num espelho.
natural é o objetivo do modo de vida dos selva­ Para descobrir a liberdade política na
gens; as delícias dos príncipes, o dos Estados constituição, não é necessário tanto esforço. Se
essa pode ser vista onde se acha, se já foi
encontrada, por que procurá-la?
50 Objetivo natural de um Estado que não está
rodeado de inimigos ou que julga tê-los contidos por
barreiras. (N. do A.) 51 Inconveniente do Liberum veto. (N. do A.)

Capítulo VI
Da constituição da Inglaterra 52
Há, em cada Estado, três espécies de pode­ Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz
res: o poder legislativo, o poder executivo das 52 Observemos também que os princípios que
coisas que dependem do direito das gentes, e o Montesquieu apresentará encontram-se no Tratado
do Governo Civil de Locke, no cap. XII. Na origem
executivo das que dependem do direito civil. encontramos Aristóteles (Política, VI, XI-I).
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 157

leis por certo tempo ou para sempre e corrige Vede qual poderá ser a situação de um cida­
ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, dão nessas repúblicas. O mesmo corpo de
faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embai­ magistratura tem, como executor das leis, todo
xadas, estabelece a segurança, previne as inva­ o poder que, como legislador, ele se atribuiu.
sões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as Pode devastar o Estado com suas vontades ge­
querelas dos indivíduos. Chamaremos este úl­ rais e, como possui também o poder de julgar,
timo o poder de julgar e, o outro, simplesmente pode destruir cada cidadão por suas vontades
o poder executivo do Estado. particulares.
A liberdade política, num cidadão, é esta Todo poder, nessas repúblicas, é uno; e, ape­
tranquilidade de espírito que provém da opi­ sar de não haver pompa exterior que denuncie
nião que cada um possui de sua segurança; e, um príncipe despótico, percebemo-lo a cada
para que se tenha esta liberdade 53, cumpre que instante.
o governo seja de tal modo, que um cidadão
Desta maneira, os príncipes que quiseram
não possa temer outro cidadão.
tornar-se despóticos começaram sempre reu­
Quando na mesma pessoa ou no mesmo
nindo em sua pessoa todas as magistraturas; e
corpo de magistratura o poder legislativo está
vários reis da Europa, todos os grandes cargos
reunido ao poder executivo, não existe liberda­
de seu Estado.
de, pois pode-se temer que o mesmo monarca
ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis Creio, efetivamente, que a pura aristocracia
tirânicas para executá-las tiranicamente. hereditária das repúblicas da Itália não corres­
Não haverá também liberdade se o poder de ponde exatamente ao despotismo da Ásia. A
julgar não estiver separado do poder legisla­ multidão de magistrados algumas vezes suavi­
tivo e do executivo. Se estivesse ligado ao za a magistratura; nem sempre todos os nobres
poder legislativo, o poder sobre a vida e a concorrem para os mesmos desígnios; for-
liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o mam-se diversos tribunais que se moderam.
juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Assim, em Veneza, ao Grande Conselho cabe
poder executivo, o juiz poderia ter a força de a legislação; aos pregadi, a execução; aos
um opressor. quaranties, o poder de julgar5 5. Mas o mal é
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou que esses tribunais diferentes são formados por
o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, magistrados do mesmo corpo, o que quase faz
ou do povo, exercesse esses três poderes: o de com que componham um mesmo poder.
fazer leis, o de executar as resoluções públicas O poder de julgar não deve ser outorgado a
e o de julgar os crimes ou as divergências dos um senado permanente mas exercido por pes­
indivíduos. soas extraídas do corpo do povo5 6 num certo
Na maior parte dos reinos da Europa, o período do ano, de modo prescrito pela lei,
governo é moderado, porque o príncipe, que para formar um tribunal que dure apenas o
tem os dois primeiros poderes, deixa a seus sú­ tempo necessário.
ditos o exercício do terceiro. Entre os turcos, Desta maneira, o poder de julgar, tão terrí­
onde esses três poderes estão reunidos na pes­ vel entre os homens, não estando ligado nem a
soa do sultão, reina um despotismo horroroso. uma certa situação nem a uma certa profissão,
Nas repúblicas da Itália, onde esses três torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. Não
poderes estão reunidos, há menos liberdade do se têm constantemente juizes diante dos olhos
que em nossas monarquias. Por isso, o gover­ e teme-se a magistratura mas não os magistra­
no necessita, para manter-se, de meios tão vio­ dos.
lentos quanto o governo dos turcos; provam- Cumpre mesmo que, nos grandes processos,
no os inquisidores de Estado 5 4, e o tronco em o criminoso, juntamente com a lei, escolha os
que todo delator pode, a qualquer momento, juizes, ou que, pelo menos, possa recusar tão
jogar um bilhete com sua acusação.
5 5 O Grande Conselho era constituído pelo corpo
53 Na Inglaterra, se um homem possuísse tantos dos nobres, até o número de 1 500; escolhiam-se os
inimigos quantos são os cabelos de sua cabeça, pregadi, que eram em número de 120; os quaranties
nada lhe aconteceria; é muito, porque a saúde da eram 40 membros, como seu nome indica. Existiam
alma é tão necessária como a do corpo. (Notes sur três tipos, cada um com sua especialidade, do crimi­
1’Angleterre.) (N. do A.) nal ao civil.
5 * Em Veneza. (N. do A.) 5 8 Como em Atenas. (N. do A.)
158 MONTESQUIEU

grande número deles que os que sobrarem tantes, faça tudo o que não pode fazer por si
sejam tidos como de sua escolha. mesmo.
Os outros dois poderes poderíam, preferivel­ Conhecemos muito melhor as necessidades
mente, ser outorgados a magistrados ou a cor­ de nossa cidade do que as das outras e julga­
pos permanentes, porque não se exercem sobre mos melhor da capacidade de nossos vizinhos
nenhum indivíduo, sendo um somente a vonta­ do que das capacidades de nossos outros
de geral do Estado e outro somente a execução compatriotas. Não é necessário, portanto, que
dessa vontade geral. os membros do corpo legislativo sejam esco­
Porém, se os tribunais não devem ser fixos, lhidos geralmente do corpo da nação; mas
os julgamentos devem sê-lo a tal ponto, que convém que, em cada localidade principal, os
nunca sejam mais do que um texto exato da lei. habitantes elejam entre-si um representante.
Se fossem uma opinião particular do juiz, A grande vantagem dos representantes é que
viver-se-ia na sociedade sem saber precisa­ são capazes de discutir os negócios públicos.
mente os compromissos que nela são assumi­ O povo não é, de modo algum, capaz disso,
dos. fato que constitui um dos graves inconve­
É mister inclusive que os juizes sejam da nientes da democracia.
condição do acusado ou seus pares, para que Não é necessário que os representantes, que
ele não possa persuadir-se de que caiu em receberam dos que os elegeram uma instrução
mãos de pessoas inclinadas a lhe praticarem geral, recebam outra particular para cada
violências. questão, tal como se procede nas dietas da
Se o poder legislativo deixa ao executivo o Alemanha. É verdade que deste modo a pala­
direito de prender cidadãos que podem dar vra dos deputados expressaria melhor a voz do
caução de seu procedimento, não há mais povo; mas isso ocasionaria infinitas delongas,
liberdade, a não ser que sejam detidos para tornaria cada deputado senhor de todos os de­
responderem, sem prazo, a uma acusação que mais e, nas ocasiões mais urgentes, um capri­
a lei tornou capital, caso em que são realmente cho paralisaria toda a força da nação.
livres, visto que só são submetidos ao poder da
Quando os deputados, diz muito correta­
lei.
mente Sidney 58, representam uma camada do
Porém, se o poder legislativo se julgasse em
povo, como na Holanda, devem prestar contas
perigo, em virtude de alguma conjuração
aos que os elegeram; a situação é diferente
secreta contra o Estado ou algum acordo com
quando se trata de deputados eleitos pelos bur­
os inimigos externos, poderia, por um prazo
gos, como na Inglaterra.
curto e limitado, permitir ao poder executivo
mandar prender os cidadãos suspeitos, que só Todos os cidadãos, nos diversos distritos,
perderíam momentaneamente a liberdade, a devem ter direito a dar seu voto para escolher
fim de poder conservá-la para sempre 5*7. o representante, exceto os que estão em tal es­
E o único meio concorde com a razão é tado de baixeza, que são considerados sem
vontade própria.
substituir a tirânica magistratura dos éforos e
dos inquisidores de Estado de Veneza, igual­ Havia um grande vício na maior parte das
mente despóticos. antigas repúblicas, pois que nelas o povo tinha
Já que, num Estado livre, todo homem que direito de tomar resoluções ativas que exigem
supõe ter uma alma livre deve governar a si certa execução, coisa de que é inteiramente
próprio, é necessário que o povo, no seu con- incapaz. Ele só deve participar do governo
yciYito, possua o poder legislativo. Mas como para escolher seus representantes, procedi­
isso é impossível nos grandes Estados, e sendo mento para o qual é bastante capaz. Portanto,
sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, se há poucos indivíduos que conhecem o grau
é preciso que o povo, através de seus represen­ exato da capacidade dos homens, cada um,
contudo, é capaz de saber, em geral, se quem
5 7 Tratar-se-ia da suspensão do habeas corpus que,
desde 1679, proibia, na Inglaterra, deter por mais de 58 Algernon Sidney (1617-1683), chefe da oposi­
vinte e quatro horas um prisioneiro, sem que um ção contra o Duque de York, autor do Discurso
juiz se pronunciasse sobre a detenção. Somente o sobre o Governo, escrito contra as teorias de Filmer
Parlamento podia decidir dessa suspensão. e traduzido para o francês em 1702, por Samson.
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 159

escolheu é mais lúcido do que a maioria dos poder dos tribunos de Roma59. E, embora
outros. quem tenha a faculdade de impedir possa ter
O corpo representante também não deve ser também o direito de aprovar, esta aprovação,
escolhido para tomar qualquer resolução ativa, entretanto, não é mais do que uma declaração
coisa que não executaria bem, mas, sim, para de que não utilizará sua faculdade de impedir;
fazer leis ou para ver se as que fez são bem e, portanto, a faculdade de aprovar deriva da
executadas, coisa que pode realizar muito bem, de impedir.
e que ninguém pode fazer melhor do que ele. O poder executivo deve permanecer nas
Num Estado, há sempre pessoas dignifi­ mãos de um monarca porque esta parte do
cadas pelo nascimento, pelas riquezas ou pelas governo, que quase sempre tem necessidade de
honrarias; mas, se se confundissem com o uma ação momentânea60, é mais bem admi­
povo e só tivessem, como os outros, um voto, a nistrada por um do que por muitos; ao passo
liberdade comum seria sua escravidão e não que o que depende do poder legislativo é,
teriam nenhum interesse em defendê-la, porque amiúde, mais bem ordenado por muitos do que
a maioria das resoluções seria contra elas. A por um só.
participação que tomam na legislação deve Porque, se não houvesse monarca, e se o
ser, portanto, proporcional às outras vanta­ poder executivo fosse confiado a certo número
gens que têm no Estado, o que acontecerá se de pessoas extraídas do corpo legislativo, não
formarem um corpo que tenha o direito de sus­ haveria mais liberdade, pois os dois poderes
tar as iniciativas do povo, tal como o povo tem estariam unidos, neles tomando parte, algumas
o direito de sustar as deles. vezes ou sempre, as mesmas pessoas.
Se o corpo legislativo ficasse durante muito
Deste modo, o poder legislativo será con­
tempo sem se reunir, não haveria mais liberda­
fiado tanto à nobreza como ao corpo escolhido
de, pois, de duas coisas, uma aconteceria: ou
para representar o povo, cada qual com suas
não haveria mais resolução legislativa, e o Es­
assembléias e deliberações à parte e objetivos e
tado mergulharia na anarquia, ou estas resolu­
interesses separados.
ções seriam tomadas pelo poder executivo e ele
Dos três poderes dos quais falamos, o de jul­ tornar-se-ia absoluto.
gar é, de algum modo, nulo. Restam apenas Seria inútil que o corpo legislativo estivesse
dois e, como esses poderes têm necessidade de sempre reunido. Isto seria incômodo para os
um poder regulador para moderá-los, a parte representantes e além disso ocuparia muito o
do corpo legislativo que é composta de nobres poder executivo, que não pensaria em executar
é bastante capaz de produzir esse efeito. mas em defender suas prerrogativas e seu direi­
O corpo dos nobres deve ser hereditário. Ele to de executar.
o é primeiramente por sua natureza e, além Demais, se o corpo legislativo estivesse
disso, cumpre que tenha interesse muito forte continuamente reunido, poderia acontecer que
para conservar suas prerrogativas, odiosas por apenas se ocupasse em suprir com novos depu­
si mesmas, e que, num Estado livre, devem tados o lugar dos que morressem e, neste caso,
estar sempre ameaçadas. se o corpo legislativo fosse uma vez corrom­
Porém, como um poder hereditário poderia pido, o mal seria irremediável. Quando diver­
ser induzido a seguir seus interesses particu­ sos corpos legislativos se sucedem mutua­
lares e a esquecer os do povo, é necessário que mente, o povo, que tem má opinião do corpo
nas coisas em que se tem supremo interesse em legislativo atual, transfere, com razão, suas
corrompê-lo, como nas leis referentes à arreca­ esperanças para o que virá depois. Mas,
dação de dinheiro, ele só tome parte na legisla­ tratando-se sempre do mesmo corpo, o povo,
ção por sua faculdade de impedir e não por sua vendo-o uma vez corrompido, nada mais espe­
faculdade de estatuir. raria de suas leis: tornar-se-ia furioso ou cairia
Chamo faculdade de estatuir o direito de na indolência.
1 ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi O corpo legislativo não deve convocar a si
ordenado por outrem. Chamo faculdade de
impedir o direito de anular uma resolução to­ 5 9 Trata-se do direito de veto.
mada por qualquer outro, o que constitui o 60 Momentânea, no sentido de “instantânea”.
160 MONTESQUIEU
próprio, pois um corpo só é considerado como monarquia mas uma república não livre. Mas,
tendo vontade quando está reunido. E, se ele como quem executa não pode executar mal
não se convocasse por unanimidade, não se sem ter maus conselheiros, que, como minis­
poderia dizer que parte representaria verdadei- tros, odeiam as leis, apesar de favorecê-las
ramente o corpo legislativo: a que se reuniu ou como homens, estes últimos podem ser perse­
a que não se reuniu. Pois se tivesse direito a guidos e punidos. E esta é a vantagem de tal
prorrogar a si próprio, poderia acontecer que governo sobre ode Cnido, em que a lei não per­
ele nunca se prorrogasse, o que seria perigoso mite levar a julgamento os amimonas63 não
no caso em que se pretendesse atentar contra o podendo o povo, mesmo após a sua adminis­
poder executivo. Aliás, alguns períodos são tração64, obter reparação pelas injustiças
mais convenientes do que outros para a assem­ cometidas contra si.
bléia do corpo legislativo; é necessário, portan­ Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo
to, que seja o poder executivo quem regula­ tempo clarividente e cega, fosse em certos
mente o momento da convocação e da duração casos muito rigorosa. Porém, os juizes de uma
dessas assembléias, com relação às circuns­ nação não são, como dissemos, mais que a
tâncias que ele conhece. boca que pronuncia as sentenças da lei, seres
Se o poder executivo não tem o direito de inanimados que não podem moderar nem sua
vetar os empreendimentos do corpo legislativo, força nem seu rigor. Ê, portanto, a parte do
este último seria despótico porque, como pode corpo legislativo que noutra ocasião dissemos
atribuir a si próprio todo o poder que possa ser um tribunal necessário, que aqui também é
imaginar, destruiría todos os demais poderes. necessária; cabe à sua autoridade suprema
Mas não é preciso que o corpo legislativo moderar a lei em favor dela própria, pronun-
tenha reciprocamente a faculdade de paralisar ciando-a menos rigorosamente do que ela.
o poder executivo porque, tendo a execução Apesar de que, em geral, o poder de julgar
limites por sua natureza, é inútil limitá-la, não deva estar ligado a nenhuma parte do
considerando-se também que o poder execu­ legislativo, isso está sujeito a três exceções,
tivo se exerce sempre sobre coisas momentâ­ baseadas no interesse particular de quem deve
neas: o poder dos tribunos de Roma era perni­ ser julgado.
cioso porque vetava não apenas a legislação, Os poderosos estão sempre expostos à inve­
como também a execução, fato que acarretava ja e se fossem julgados pelo povo não fruiriam
grandes males. do privilégio que, num Estado livre, o mais
Porém, se num Estado livre o poder legisla­ humilde cidadão possui de ser julgado pelos
tivo não deve ter o direito de sustar o poder seus pares. Cumpre, portanto, que os nobres
executivo, tem o direito e deve ter a faculdade sejam levados, não diante dos tribunais ordiná­
de examinar de que maneira as leis que pro­ rios da nação, mas diante da parte do corpo
mulga devem ser executadas. Esta é a vanta­ legislativo composta de nobres.
gem que este governo possui sobre o de Creta Poderia ainda ocorrer que algum cidadão,
e o da Lacedemônia, onde os cosmos61 e os nos negócios públicos, violasse os direitos do
éforos não prestam contas de sua administra­ povo, cometendo crimes que os magistrados
ção 62. estabelecidos não saberíam ou não poderíam
Entretanto, qualquer que seja esse exame, o punir. Porém, em geral, o poder legislativo não
corpo legislativo não deve ter o direito de jul­ pode julgar e o pode ainda menos neste caso
gar a pessoa e, por conseguinte, a conduta de específico, em que representa a parte interes­
quem executa. Sua pessoa deve ser sagrada sada que é o povo. Assim, o poder legislativo
porque, sendo necessária ao Estado a fim de só pode ser acusador. Mas diante de que ele
que o corpo legislativo não se torne tirânico, acusaria? Rebaixar-se-ia diante dos tribunais
desde o momento em que for acusada ou julga­ da lei que lhe são inferiores e compostos, além
da, a liberdade desaparecería.
Em tais casos, o Estado não seria uma
63 Trata-se de magistrados que, todos os anos, o
povo elegia. Vede Estêvão de Bizâncio. (N. do A.)
81 Nome dos principais magistrados nas cidades 6 4 Podia-se acusar os magistrados romanos depois
de Creta, correspondentes mais ou menos aos éforos de sua magistratura. Vede, em Dionísio de Halicar-
de Esparta. (N. dos T.) nasso, liv. IX, o caso do tribuno Genúcio. (N. do
62 Aristóteles, Política, liv. II, cap. IX e X. A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 161

disso, de pessoas que, sendo povo como ele, se­ sem o que haveria nas resoluções uma confu­
riam impressionadas pela autoridade de tão são fora do comum.
poderoso acusador? Não; para conservar a Se o poder executivo não estatui sobre a
dignidade do povo e a segurança do indivíduo, arrecadação do dinheiro público apenas pelo
é mister que a parte legislativa do povo faça seu consentimento, não mais existiría liberda­
suas acusações diante da parte legislativa dos de, porque ele se tornaria legislador no ponto
nobres, a qual não possui nem os mesmos inte­ mais importante da legislação.
resses que ele nem as mesmas paixões. Se o poder legislativo estatui, não de ano em
Esta é a vantagem que esse governo possui ano, mas para sempre, sobre a arrecadação do
sobre a maioria das repúblicas antigas, onde dinheiro público, corre o risco de perder sua
este abuso existia: o povo era, ao mesmo liberdade, porque o poder executivo não mais
tempo, juiz e acusador. dependerá dele e, quando se possui para sem­
O poder executivo, como dissemos, deve pre tal direito, é assaz indiferente que o mante­
participar da legislação através do direito de nha para si ou para um outro. Acontece o
veto, sem o que seria despojado de suas prerro­ mesmo se ele estatui, não de ano em ano, mas
gativas. Mas, se o poder legislativo participar para sempre, sobre as forças da terra e do mar,
da execução, o poder executivo estará igual­ as quais deve confiar ao poder executivo.
mente perdido. Para que quem execute não possa oprimir, é
Se ò monarca participasse da legislação pela necessário que o exército que se lhe confie seja
faculdade de estatuir, não mais haveria liber­ povo e que tenha o mesmo espírito que o povo,
dade. Porém, como é preciso que ele participe como aconteceu em Roma, até o período de
da legislação para se defender, cumpre que ele Mário. E, para que assim seja, só há dois
aí tome parte pela sua faculdade de impedir. meios: ou que aqueles que participam dos
exércitos possuam bens suficientes para res­
A causa da mudança do governo em Roma
ponder por sua conduta diante dos outros cida­
foi que o senado, que tinha uma parte do poder
dãos e que só sejam recrutados por um ano, tal
executivo, e os magistrados, que possuíam a
como se praticava em Roma6 5; ou, se se pos­
outra, não tinham, como o povo, a faculdade
sui um corpo permanente de tropa em que os
de impedir.
soldados são uma das partes mais vis da
Eis, assim, a constituição fundamental do nação, é mister que o poder legislativo possa
governo de que falamos. O corpo legislativo destituí-lo assim que desejar, que os soldados
sendo composto de duas partes, uma parali­ convivam com os cidadãos e que não tenham
sará a outra por sua mútua faculdade de impe­ nem campo separado, nem casernas, nem pra­
dir. Todas as duas serão paralisadas pelo ças de guerra.
poder executivo, que o será, por sua vez, pelo
O exército, uma vez estabelecido, não deve
poder legislativo.
depender, imediatamente, do corpo legislativo,
Estes três poderes deveríam formar uma
mas do poder executivo; e isso pela natureza
pausa ou uma inação. Mas como, pelo movi­ da coisa; seu feito consiste mais na ação do
mento necessário das coisas, eles são obriga­ que na deliberação.
dos a caminhar, serão forçados a caminhar de
É próprio da maneira de pensar dos homens
acordo.
que se dê mais importância à coragem do que
O poder executivo, fazendo parte do legisla­ à timidez, mais à atividade do que à prudência,
tivo apenas pela sua faculdade de impedir, não mais à força do que aos conselhos. O exército
poderia participar dos debates das questões desprezará sempre o senado e respeitará seus
públicas. Não é mesmo necessário que as pro­ oficiais. Não dará atenção às ordens que lhe
postas partam dele porque, podendo sempre serão enviadas de um corpo composto de gente
desaprovar as resoluções, pode rejeitar as deci­ que crê tímida e, por isso, indigna de coman­
sões das proposições que desejaria não fossem dar. Assim, tão logo dependa o exército unica­
feitas. mente do corpo legislativo, o governo tornar-
Em algumas repúblicas antigas, em que o se-á militar. E, se alguma vez o contrário
povo, em conjunto, participava dos debates
dos negócios, era natural que o poder execu­ 6 5 Cf. Benjamin Constant, Cours de Droit Consti-
tivo os propusesse e os debatesse com o povo, tutionnel, 1.1, pág. 107.
162 MONTESQUIEU

aconteceu, isso se deve à ação de algumas Assim como todas as coisas humanas têm
circunstâncias extraordinárias; ao fato de o um fim, o Estado ao qual nos referimos perde­
exército estar sempre separado; ao fato de ser rá sua liberdade, perecerá. Roma, Lacede-
ele composto de vários corpos que dependem mônia e Cartago pereceram completamente.
cada um de sua província particular; ap fato Ele extinguir-se-á quando o poder legislativo
de as cidades capitais serem excelentes sítios for mais corrompido que o executivo.
que se defendem apenas por sua situação, e Não me cabe examinar se atualmente os
onde não há tropas. ingleses gozam ou não dessa liberdade. É-me
A Holanda encontra-se ainda em maior suficiente dizer que ela é estabelecida pelas leis
segurança do que Veneza; ela submergiría as e eu nada mais procuro.
tropas sublevadas, fá-las-ia morrer de fome. Não pretendo com isso depreciar os demais
Estas não estão em cidades que lhes poderíam governos, nem afirmar que esta liberdade polí­
prover a subsistência; esta subsistência é, por­ tica extremada deve mortificar os que apenas
tanto, precária. possuem uma liberdade limitada. Como pode­
E se, no caso em que o exército é governado ria afirmar isso, eu que acredito que o próprio
pelo corpo legislativo, circunstâncias particu­ excesso da razão nem sempre é desejável e que
lares impedem o governo de tornar-se militar, os homens, quase sempre, se acomodam me­
cair-se-á em outros inconvenientes; de duas, lhor no meio do que nas extremidades?
uma: ou será necessário que o exército destrua
o governo, ou que o governo enfraqueça o Harrington6 7, em seu Oceana, também exa­
exército. minou qual era o mais alto grau de liberdade
E este enfraquecimento teria uma causa bem que a constituição de um Estado podia atingir.
fatal: originar-se-ia das próprias fraquezas do Porém podemos dizer que ele só procurou esta
governo. liberdade depois de tê-la desprezado e que
Quem ler a admirável obra de Tácito Sobre construiu Calcedônia tendo a costa de Bizân-
os Costumes dos Germanos6 6 verá que foi cio diante dos olhos 6 8.
deles que os ingleses extraíram a idéia do
governo político. Este ótimo sistema foi encon­ 67 Harrington (1611-1677), autor de Oceana, ro­
mance político em forma de utopia, surgido em
trado na floresta. 1656, no qual o autor revela sua preferência pela
república.
66 Cap. XI. De minoribus rebus príncipes consul- 68 São palavras de Megabiso, em Heródoto, fiv.
tant, de majoribus omnes; ita tamen ut ea quoque IV, cap. CXLIV. Vemos, neste capítulo de extensão
quorum penes plebem arbitrium est apud príncipes inusitada, a complacência de Montesquieu pela
pertractentur. (N. do A.) constituição inglesa.

Capítulo VII

Das monarquias que conhecemos

As monarquias que conhecemos não têm, Os três poderes, nessas monarquias, não são
como aquela a que acabamos de nos referir, a divididos e calcados no modelo da constitui­
liberdade como seu objetivo direto; buscam ção à qual nos referimos. Cada um deles pos­
somente a glória dos cidadãos, do Estado e do
príncipe. Mas desta glória resulta um espírito sui uma divisão particular, segundo a qual eles
de liberdade que, nesses Estados, pode também se aproximam mais ou menos da liberdade
construir grandes coisas e talvez contribuir
tanto para a felicidade como a própria política e, se dela não se aproximassem, a
liberdade. monarquia degeneraria em despotismo.
DO ESPIRITO DAS LEIS II 163

Capítulo VIII

Por que os antigos não tinham uma


idéia bem clara da monarquia

Os antigos não conheciam o governo basea­ é suficiente ver Tácito, Sobre os Costumes dos
do num corpo de nobreza e ainda menos o Germanos. Os conquistadores disseminaram-
governo baseado num corpo legislativo forma­ se pela região; habitavam os campos e pouco
do pelos representantes de uma nação. As as cidades. Quando estavam na Germânia,
repúblicas da Grécia e da Itália eram cidades todo o povo podia ser reunido. Quando, pela
que possuíam, cada uma delas, seu governo e conquista, foram dispersados, isso não mais
que reuniam seus cidadãos em suas muralhas. era possível. Era mister, entretanto, que a
Antes que os romanos tivessem absorvido nação deliberasse sobre seus problemas tal
todas as repúblicas, quase não existia rei em como fazia antes da conquista, e ela o fez atra­
parte alguma, na Itália, na Gália, na Espanha, vés de seus representantes. Eis a origem do
na Alemanha; todas essas fegiões eram consti­ governo gótico entre nós. Foi inicialmente um
tuídas de pequenos povos ou de pequenas misto de aristocracia e de monarquia. Havia o
repúblicas; a própria África estava submetida inconveniente de o baixo povo ser aí escravo.
a outra maior; a Ásia Menor estava ocupada Era um bom governo que tinha em si a possibi­
pelas colônias gregas. Não havia, portanto, lidade de tornar-se melhor. Surgiu o costume
exemplo de deputados de cidades, nem de de conceder cartas de alforria e logo a liber­
assembléias de Estados; seria preciso ir até a dade civil do povo, as prerrogativas da nobre­
Pérsia para encontrar o governo de um só. za e do clero, o poderio dos reis encontraram-
É verdade que existiam repúblicas federa­ se tão bem concertados, que não creio que
tivas e várias cidades enviavam deputados a tivesse existido na terra governo tão bem
uma assembléia. Mas afirmo que não havia harmonizado como este que existiu em cada
monarquia calcada naquele modelo. parte da Europa, durante o período em que
Eis como se formou o primeiro esboço das subsistiu. E é admirável que a corrupção do
monarquias que conhecemos. As nações ger­ governo de um povo conquistador tenha for­
mânicas que conquistaram o império romano mado a melhor forma de governo que os ho­
eram, como sabemos, muito livres. Sobre isso mens puderam imaginar.

Capítulo IX

Maneira de pensar de Aristóteles

A confusão de Aristóteles aparece clara­ ção da tirania ou a sucessão da tirania.


mente quando ele trata dg monarquia 69. Esta­ Aristóteles coloca na classe das monarquias
belece cinco espécies e não as diferencia pela o império dos persas e o reino da Lacedemô­
forma da constituição mas pelas coisas aciden­ nia. Mas quem não vê que um era um Estado
tais, como as virtudes ou os vícios do príncipe, despótico e outro uma república?
ou pelas coisas estranhas, como a usurpa- Os antigos, que não conheciam a divisão
dos três poderes no governo de um só, não po­
69 Política, liv. III, cap. XIV. (N. do A.) diam ter uma idéia correta da monarquia.
164 MONTESQUIEU

Capítulo X

Maneira de pensar dos outros políticos

Para amenizar o governo de um só, Arri­ do que o comando; quiseram rivais e tiveram
bas70, rei de Epiro, não imaginou senão uma inimigos.
república. Os molossos, não sabendo como Somente na Lacedemônia dois reis eram
restringir o mesmo poder, escolheram dois toleráveis; eles não formavam a constituição,
reis71: com isso enfraqueciam mais o Estado mas eram uma de suas partes.

70 Vede Justino, liv. XVII, cap. III. Primus leges et 71 Aristóteles, liv. V, cap. IX.* (N. do A.)
senatum, annuosque magistratus, et reipublicae for­ * Devemos observar que Montesquieu leu mal e
mam composuit. (N. do A.) que só havia um rei entre os molossos.

Capítulo XI

Dos reis dos tempos heróicos


entre os gregos

Entre os gregos, nos tempos heróicos, ao menor capricho, destruir o reinado, tal
estabeleceu-se uma espécie de monarquia que como o fez em toda parte.
não subsistiu72. Os que tinham inventado as Num povo livre, possuidor do poder legisla­
artes, feito a guerra pelo povo, reunido os ho­ tivo; num povo encerrado numa cidade, onde
mens dispersos, ou que lhes tinham distribuído tudo que é odioso toma-se ainda mais odioso,
terras, obtinham para si o reino e legavam-no a obra-prima da legislação é saber situar bem
para seus filhos. Eram reis, sacerdotes, ou jui­ o poder de julgar. Mas ele não podia estar
zes. Trata-se de uma das cinco espécies de mais mal colocado do que nas mãos de quem
monarquia de que nos fala Aristóteles73 e é a já tinha o poder executivo. A partir deste
única que pode lembrar a idéia da constituição momento, o monarca tornou-se terrível.
monárquica. Mas o plano desta constituição é Porém, como ele não possuía a legislação, não
oposto ao das monarquias atuais. podia defender-se contra ela e, ao mesmo
Os três poderes estavam divididos de manei­ tempo, tinha muito poder mas não tinha o
ra que o povo tinha o poder legislativo7 4, e o suficiente.
rei o poder executivo, juntamente com o poder
Não se descobrira ainda que a verdadeira
de julgar, enquanto nas monarquias que
função do príncipe era estabelecer juizes e não
conhecemos o príncipe possui o poder execu­
ele próprio julgar. A política contrária tornava
tivo e legislativo ou, pelo menos, uma parte do
o governo de um só insuportável. Todos esses
legislativo, mas não julga.
reis foram expulsos. Os gregos não imagina­
No governo dos reis dos tempos heróicos, os
ram a verdadeira distribuição dos três poderes
três poderes eram mal distribuídos. Estas
monarquias não podiam subsistir porque, no governo de um só; só o imaginaram no
desde que possuía a legislação, o povo podia, governo de vários e denominaram esse tipo de
constituição,polícia7 5.
72 Aristóteles, Política, liv. III, cap. XIV. (N. do
A.) 7 6 Vede Aristóteles, Política, liv. IV, cap. VIII.*
73 7òW.(N.doA.) (N. do A.)
7 * Vede o que diz Plutarco, Vida de Teseu, cap. * Polícia, a mesma coisa que Políbio chama de
VIII. Vede também Tucídides, liv. I. (N. do A.) “democracia”.
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 165

Capítulo XII

Do governo dos reis de Roma e de como os


três poderes foram distribuídos

O governo dos reis de Roma tinha alguma O povo tinha direito de eleger81 os magis­
relação com o dos reis dos tempos heróicos trados, de aceitar novas leis e, quando o rei o
entre os gregos. Esse poder caiu, tal como os permitia, de declarar guerra e concluir a paz.
demais, por seu vício geral, apesar de que, em Não tinha de maneira alguma o poder de jul­
si mesmo e em sua natureza particular, fosse gar. Quando Túlio Hostílio atribuiu ao povo o
ótimo. julgamento de Horácio, ele teve razões particu­
Para explicar esse governo, distinguiria o lares, que se encontram em Dionísio de
dos cinco primeiros reis, o de Sérvio Túlio e o Halicarnasso82.
de Tarqüínio. Na época83 de Sérvio Túlio a constituição
A coroa era eletiva e, durante os cinco pri­ mudou. O senado não participou de sua elei­
meiros reis, cabia ao senado a parte mais ção; ele se fez proclamar pelo povo, despojou-
importante da eleição. se dos julgamentos8 4 civis, reservando para si
Depois da morte do rei, o senado examinava apenas os criminais, entregou diretamente ao
se seria conservada a forma de governo que es­ povo todas as questões, amenizou-lhe as taxas
tava estabelecida. Se considerava útil conser­ e colocou todo o peso delas sobre os patrícios.
vá-la, nomeava um magistrado7 6 extraído de Assim, à medida que enfraquecia o poder real
seu corpo, que elegia um rei; o senado deveria e a autoridade do senado, aumentava o poder
aprovar a eleição, o povo confirmá-la e os aus­ do povo8 5.
pícios garanti-la. Se uma das três condições Tarqüínio não se fez eleger nem pelo senado
falhasse, seria necessário realizar outra elei­ nem pelo povo. Considerava Sérvio Túlio um
ção. usurpador e tomou a coroa como um direito
A constituição era monárquica, aristo­ hereditário; exterminou a maioria dos senado­
crática e popular, e tal foi a harmonia do res; não mais consultou os que sobraram nem
poder, que não se viu, nos primeiros reinados, mesmo os convidou para seus julgamentos8 6.
nem inveja nem disputa. O rei comandava os Seu poderio aumentou, porém o que havia de
exércitos e tinha a intendência dos sacrifícios; odioso nesse poderio tornou-se ainda mais
tinha o poder de julgar as questões civis7 7 e odioso. Ele usurpou o poder do povo; estabe­
criminais7 8; convocava o senado, reunia o leceu leis sem ele e fê-las mesmo contra ele8 7.
povo, atribuía-lhe certas questões e regulamen­ Teria reunido os três poderes em sua pessoa,
tava as demais com o senado79. mas o povo lembrou-se por um momento que
O senado possuía grande autoridade. Os reis era legislador e Tarqüínio deixou de existir.
amiúde convidavam os senadores para julgar
com eles; não levavam nenhuma questão ao
povo antes que ela tivesse sido deliberada80 no 81 Ibid, liv. II. Cumpria, entretanto, que ele não
senado. nomeasse para todos os cargos porque Valério
Publícola fez a famosa lei que proibia todo cidadão
de exercer qualquer emprego se este não fosse obti­
7 6 Dionísio de Halicarnasso, liv. II, pág. 120, e liv. do pelo sufrágio do povo. (N. do A.)
IV, págs. 242 e 243. (N. do A.) 82 Ibid, liv. III, pág. 159. (N. do A.)
7 7 Vede o discurso de Tanaquil, em Tito Lívio, liv. 83 Ibid, liv. IV. (N. do A.)
I, e o regulamento de Sérvio Túlio, em Dionísio de 8 4 Ele privou-se da metade do poder real, diz Dio­
Halicarnasso, liv. IV, pág. 229. (N. do A.) nísio de Halicarnasso, liv. IV, pág. 229. (N. do A.)
78 Vede Dionísio de Halicarnasso, liv. II, pág. 118, 8 5 Acreditava-se que, se não tivesse sido prevenido
e liv. III, pág. 171. (N. do A.) por Tarqüínio, teria estabelecido o governo popular.
7 9 Foi por um senatus-consulto que Túlio Hostílio Dionísio de Halicarnasso, liv. IV, pág. 243. (N. do
mandou destruir Alba. Dionísio de Halicarnasso, A.)
liv. III, págs. 167 e 172 (N. do A.) 8 6 Dionísio de Halicarnasso, liv. IV. (N. do A.)
80 Ibid, liv. IV, pág. 276. (N. do A.) 87 Ibid. (N. do A.)
166 MONTESQUIEU

Capítulo XIII

Reflexões gerais sobre o Estado de


Roma depois da expulsão dos reis

Nunca se pode abandonar os romanos. para as do povo. Mas o povo, rebaixando os


Assim é que ainda hoje, em sua capital, dei­ patrícios, não precisou temer cair novamente
xam-se os novos palácios para ir-se à procura nas mãos dos reis.
de ruínas; assim é que o olho que repousou no De duas maneiras um Estado pode transfor­
esmalte das pradarias aspira a rever as rochas mar-se: ou porque a constituição se corrige ou
e as montanhas. porque ela se corrompe. Se conservou seus
As famílias patrícias tiveram, em todos os princípios e a constituição modifica-se, é por­
períodos, grandes prerrogativas. Tais privilé­ que ela se corrige; se perdeu seus princípios e a
gios, importantes na época dos reis, tomaram- constituição vem a ser modificada, é que ela se
se ainda mais depois da expulsão deles. Isso corrompe.
acarretou a inveja dos plebeus que preten­ Roma, após a expulsão dos reis, deveria ser
deram rebaixá-los. As contestações choca- uma democracia. O povo já possuía o poder
vam-se contra a constituição sem enfraquecer Içgislativo: fora seu sufrágio unânime que
o governo, porque, dado que os magistrados expulsara os reis; e, se não persistisse nesta
conservassem sua autoridade, era assaz indife­ vontade, os Tarqüínios, em qualquer momen­
rente a família a que pertencessem oS magis­ to, poderíam retornar. Não é lógico supor que
trados. o povo pretendeu expulsá-los para cair na
Uma monarquia eletiva, como a de Roma, escravidão de algumas famílias. A situação
supõe necessariamente um corpo aristocrático exigia, portanto, que Roma fosse uma demo­
poderoso que a garanta, sem o que ela se trans­ cracia, e entretanto ela não o era. Teria sido
forma, de início, em tirania ou em Estado necessário moderar o poder dos principais e
popular. Porém um Estado popular não tem que as leis tendessem para a democracia.
necessidade dessa distinção de famílias para se Frequentemente os Estados florescem mais
manter. Isso fez com que os patrícios, os quais, na passagem insensível de uma constituição a
na época dos reis, eram partes necessárias da outra do que o fazem em uma ou outra dessas
constituição, se tornassem uma parte supérflua constituições. É então que todas as molas do
no tempo dos cônsules; o povo pôde rebaixá- governo estão distendidas, que todos os cida­
los sem destruir a si próprio, e mudar a consti­ dãos têm pretensões, que se hostiliza ou bajula
tuição sem corrompê-la. e que há uma nobre emulação entre os que
Quando Sérvio Túlio aviltou os patrícios, defendem a constituição que agoniza e os que
Roma foi obrigada a passar das mãos dos reis levam avante a que prevalece.

Capítulo XIV

Como a distribuição dos três poderes começou


a mudar depois da expulsão dos reis88

Quatro coisas principalmente obstavam a nenhuma influência nos sufrágios. Foram esses
liberdade de Roma. Apenas os patrícios obti­ quatro abusos que o povo corrigiu.
nham todos os empregos sagrados, políticos,
civis e militares; havia-se atribuído ao consu­ 88 Laboulaye observa que Montesquieu se baseia
lado um poder exorbitantes ultrajava-se o indiscriminadamente em Dionísio de Halicamasso,
com o qual a História Moderna tem especial
povo; e, finalmente, não se lhe deixava quase precaução
DO ESPIRITO DAS LEIS II 167

1. ° Estabeleceu que existiríam magistra­ cento e noventa e três centúrias93, possuindo


turas as quais os plebeus pudessem pretender e um voto cada uma. Os patrícios e os principais
obteve, paulatinamente, que o povo partici­ formavam as noventa e oito primeiras centú­
paria de todas, exceto da do entre-rei. rias; os cidadãos restantes estavam distri­
2. ° O consulado foi decomposto e forma­ buídos em noventa e cinco outras. Eram os
ram-se diversas magistraturas. Criaram-se pre- patrícios, portanto, nesta divisão, senhores dos
tores89, aos quais se outorgou o direito de jul­ sufrágios.
gar as questões privadas; nomearam-se Na divisão por cúrias94, os patrícios não
questores90 para mandar julgar os crimes pú­ gozavam das mesmas vantagens. Todavia,
blicos; estabeleceram-se edis, aos quais se possuíam-nas. Cumpria consultar os auspí­
entregou a polícia; criaram-se tesoureiros91 cios, dos quais os patrícios eram senhores; não
que tiveram a administração do dinheiro públi­ se podia apresentar uma proposição ao povo
co; finalmente, pela criação de censores, reti- se ela não tivesse sido, anteriormente, apresen­
rou-se aos cônsules a parte do poder legislativo tada ao senado e aprovada por um senatus-
que regulamentava os costumes dos cidadãos, consulto. Mas na divisão por tribo não havia
e o controle momentâneo dos diversos corpos nem auspícios nem senatus-consulto, não
do Estado. As principais prerrogativas que res­ sendo os patrícios aí admitidos.
taram aos cônsules foram: presidir aos gran­
Ora, o povo procurou sempre fazer por cú­
des92 Estados do povo, convocar o senado e
rias as assembléias que se costumavam fazer
comandar os exércitos.
por centúrias, e a fazer por tribos as assem­
3. ° As leis sagradas estabeleceram tribunos
bléias que se faziam pelas cúrias, fato que
que podiam, a qualquer momento, sustar os
transferiu os negócios das mãos dos patrícios
empreendimentos dos patrícios, impedindo
para as dqs plebeus.
não somente as injúrias particulares como
também as gerais. Assim, quando os plebeus obtiveram o direi­
Enfim, os plebeus aumentaram sua in­ to de julgar os patrícios, o que teve início
fluência nas decisões públicas. O povo romano quando do caso de Coriolano9 5, os plebeus
estava dividido de três maneiras: por centúrias, quiseram julgá-los reunidos por tribos9 6 e não
por cúrias e por tribos; e quando ele dava seu por centúrias; e quando se estabeleceram em
sufrágio estava reunido e formado de uma des­ favor do povo as novas magistraturas9 7 de tri­
sas três maneiras. bunos e de edis, o povo conseguiu que se reu­
Na primeira, os patrícios, os principais, os nissem por cúrias a fim de os nomear; e, quan­
ricos, o senado, o que era quase a mesma do seu poder foi consolidado, obteve98 que
coisa, possuíam quase toda a autoridade; na eles fossem nomeados numa assembléia por
segunda, tinham-na menos; e, na terceira, tribos.
ainda menos.
A divisão por centúrias era antes uma divi­
93 Vede Tito Lívio, liv. I, cap. XLIII; e Dionísio de
são de censo e de riquezas do que uma divisão Halicarnasso, liv. IV e VII. (N. do A.)
de pessoas. O povo todo estava distribuído em 9 4 Dionísio de Halicarnasso, liv. IX, pág. 598. (N.
do A.)
9 5 Ibid., liv. VII. (N. do A.)
89 Tito Lívio, Primeira Década, liv. VI. (N. do A.) 9 6 Contrariamente ao antigo costume, como
90 Quaestores parricidii; Pompôni, leg. 2§ 23, tf. vemos em Dionísio-de Halicarnasso, liv. V, pág.
De Orig. Jur. (N. do A.) 320. (N. do A.)
91 Plutarco, Vida de Publícola, cap. VI. (N. do A.) 9 7 Ibid., liv. VI, págs. 410 e 411. (N. do A.)
92 Comitiis centuriatis. (N. do A.) 98 Ibid., liv. IX, pág. 605. (N. do A.)
168 MONTESQUIEU

Capítulo XV

Como, no florescente Estado da república,


Roma perdeu, subitamente, sua liberdade
No auge das disputas entre patrícios e ple­ do os decênviros cometeram as suas, ela admi­
beus, estes reclamaram que se lhes dessem leis rou-se do poder que lhes concedera.
fixas, a fim de que os julgamentos não fossem Mas qual era este sistema de tirania, cons­
o resultado de uma vontade caprichosa ou de truído por pessoas que somente obtiveram o
um poder arbitrário. Depois de muita resistên­ poder político e militar pelo conhecimento dos
negócios civis, e que, nessas circunstâncias,
cia, o senado aquiesceu. Para fazer essas leis,
nomearam-se decênviros. Pensou-se que se tinham, por dentro, necessidade da pusilani-
midade dos cidadãos para que se deixassem
deveria outorgar-lhes grande poder, pois deve­ governar e, por fora, necessidade da coragem
ríam dar leis a facções que eram quase incom­ deles para defendê-los?
patíveis. Suspendeu-se a nomeação de todos os O espetáculo da morte de Virgínia, imolada
magistrados e, nos comícios, eles foram eleitos por seu pai ao pudor e à liberdade, fez desva­
os únicos administradores da república e necer o poder dos decênviros. Cada um se
ericontraram-se revestidos do poder consular e ehcontrou livre, porque cada um foi ofendido;
tribunício. O primeiro concedia-lhes o direito todos tornaram-se cidadãos porque todos se
de convocar o senado e o outro o de convocar acreditaram pai. O senado e o povo recupe­
o povo; porém, eles não convocaram o senado raram uma liberdade que fora confiada a tira­
nos ridículos.
nem o povo". Dez homens sozinhos possuí­
O povo romano, mais que qualquer outro,
ram, na república, todo o poder legislativo,
comovia-se com os espetáculos. O do corpo
todo o poder executivo, todo o poder dos julga­
ensanguentado de Lucrécio pôs fim à realeza;
mentos. Roma viu-se submetida a uma tirania o devedor que apareceu na praça coberto de
tão cruel como a de Tarqüínio. Quando este pragas fez mudar a forma da república; a visão
praticava suas arbitrariedades, Roma estava de Virgínia ocasionou a expulsão dos decênvi­
indignada com o poder que ele usurpara; quan­ ros. Para conseguir a condenação de Mânlio,
seria preciso tirar do povo a visão do Capitó­
99 Montesquieu diz que eles não o fizeram e não lio. A túnica ensanguentada de César recondu­
que não tinham o direito, tal como lhe criticaram. ziu Roma à servidão.

Capítulo XVI

Do poder legislativo na república romana

Não se tinha direito a disputar, na época por centúrias, era composto de senadores,
dos decênviros. Porém, quando se recuperou a patrícios e plebeus. Nas disputas, os plebeus
liberdade, viram-se as invejas renascer: en­ ganharam esta questão99100: sozinhos, sem os
quanto restaram alguns privilégios aos patrí­ patrícios e sem o senado, poderíam fazer leis,
cios, os plebeus Ihos retiraram. que se chamaram plebiscitos; e os comícios
Teria havido pouco mal se os plebeus se onde foram feitas chamaram-se comícios por
tivessem contentado em privar os patrícios de tribo. Assim, houve casos em que os patrí-
suas prerrogativas e se não os tivessem ofen­
dido na sua própria qualidade de cidadãos. 100 Dionísio de Halicarnasso, liv. XI, pág. 725.
Quando o povo estava agrupado por cúrias ou (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 169

cios101 não tiveram nenhuma participação no mentado; através de outra, era limitado.
poder legislativo1 °2, em que foram submetidos Os censores, e antes deles os cônsules1 °3,for­
ao poder legislativo de outro corpo de Estado. mavam e criavam, por assim dizer, cada cinco
Foi um delírio da liberdade. O povo, para esta­ anos, o corpo do povo; legislavam sobre o pró­
belecer a democracia, feriu os próprios princí­ prio corpo que possuía o poder legislativo.
pios da democracia. Parecia que um poder tão “Tibério Graco, censor”, diz Cícero, “trans­
exorbitante teria podido destruir a autoridade feriu os libertos às tribos da cidade, não pela
do senado. Mas Roma possuía instituições força de sua eloquência, mas por uma palavra
admiráveis, principalmente duas delas: através e por um gesto; e se não o tivesse feito, não
de uma, o poder legislativo do povo era regula- teríamos mais esta república que hoje mal
sustentamos.”
De outro lado, o senado tinha o poder de
101 Pelas leis sagradas, os plebeus puderam efetuar retirar, por assim dizer, a república das mãos
plebiscitos, sozinhos e sem que os patrícios fossem
admitidos em suas assembléias; Dionísio de Hali­ do povo, pela criação de um ditador, diante do
carnasso, liv. VI, pág. 410, e liv. VII, pág. 430. (N. qual o soberano abaixava a cabeça e as leis
do A.) mais populares permaneciam silenciosas10 4.
10 2 Pela lei feita depois da expulsão dos decênvi-
ros, os patrícios foram submetidos aos plebiscitos,
apesar de não poderem votar. Tito Lívio, liv. III, 103 No ano 312 de Roma , os cônsules ainda fa­
cap. IV, e Dionísio de Halicarnasso, liv. XI, pág. ziam o censo, como aparece em Dionísio de Hali­
725. Esta lei foi confirmada pela de Públio Filo, carnasso, liv. XI. (N. do A.)
ditador, no ano de Roma de 416. Tito Lívio, liv. 10 4 Como as que permitiram apelar ao povo das
VIII, cap. XII. (N. do A.) ordenanças de todos os magistrados. (N. do A.)

Capítulo XVII

Do poder executivo na mesma república

Se o povo foi cioso de seu poder legislativo, uma aristocracia. O senado dispunha do
o foi menos de seu poder executivo: deixou-o dinheiro público e dava os impostos em arren­
quase inteiramente nas mãos do senado e dos damento. Era o árbitro dos negócios dos alia­
cônsules e quase só se reservou o direito de ele­ dos; decidia da guerra e da paz e orientava os
ger os magistrados e de confirmar os atos do cônsules nesse assunto; fixava o número das
senado e dos generais. tropas romanas e das tropas aliadas, distribuía
Roma, cuja paixão era comandar, cuja as províncias e os exércitos aos cônsules ou
ambição era tudo submeter, que sempre usur­ aos pretores e, quando o ano de comando expi­
para, que ainda usurpava, tinha continuamente rava, podia determinar-lhe o sucessor; conce­
grandes preocupações: seus inimigos conjura- dia os triunfos, recebia e enviava embaixadas;
vam contra ela, ou ela conjurava contra seus nomeava os reis, recompensava-os, punia-os,
inimigos. julgava-os, concedia-lhes ou retirava-lhes o tí­
Obrigada a se conduzir, de um lado, com tulo de aliados do povo romano.
coragem heróica e, de outro, com sabedoria Os cônsules procediam ao levantamento das
consumada, o estado de coisas exigia que o se­ tropas que deveríam ir à guerra; comandavam
nado tivesse a direção dos negócios. O povo os exércitos de terra ou do mar, dispunham
disputava ao senado todos os ramos do poder dos aliados; tinham nas províncias todo o
legislativo, porque era cioso de sua liberdade; poder da república; faziam a paz com os povos
não lhe disputava os ramos do poder executi­ vencidos, impunham-lhes as condições ou
vo, porque era cioso de sua glória. enviavam-nas ao senado.
A participação do senado no poder execu­ Nos primeiros tempos, quando o povo tinha
tivo era tão grande que Políbio10 5 diz que alguma participação nos negócios da guerra e
todos os estrangeiros pensavam que Roma era106 da paz, ele exercia antes seu poder legislativo
do que seu poder executivo. Quase só confir­
106 Liv. VI. (N. do A.) mava o que os reis, e depois deles os cônsules
170 MONTESQUIEU

ou o senado, tinham feito. Longe de ser o povo bunos das legiões que até então os generais
o árbitro da guerra, vemos que os cônsules ou nomeavam e, pouco tempo antes da Primeira
o senado a faziam frequentemente malgrado a Guerra Púnica, estabeleceu que apenas ele
posição de seus tribunos. Mas, na embriaguez teria o direito de declarar guerra10 1.
das prosperidades, o povo aumentou seu poder
executivo. Destarte10 6, ele próprio criou os tri-
107 O povo arrancou-a do senado, narra Freinshe-
mius, Segunda Década, liv. VI.* (N. do A.)
106 No ano 444 de Roma. Tito Lívio, Primeira Dé­ * Também aqui Crévier afirma que Montesquieu
cada, liv. IX, cap. XXX. Parecendo perigosa a
guerra contra Perseu, um senatus-consulto ordenou interpreta mal Freinshemius, o qual cita em sua
que esta lei fosse sustada e o povo o consentiu. Tito nota e declara, remontando a Tito Lívio, que “toda
Lívio, Quinta Década, liv. II. (Liv. XLII, cap. a História depõe contra esse fato” (cf. a nota da ed.
XXXI). (N. do A.) Laboulaye).

Capítulo XVIII

Do poder de julgar no governo de Roma

O poder de julgar foi atribuído ao povo, ao Inglaterra. E, fato que muito favorecia a liber­
senado, aos magistrados, a certos juizes. Deve­ dade1 13, era que o pretor escolhia os juizes de
mos ver como ele foi distribuído. Começa­ comum acordo11 4 com as partes. O grande
remos pelas questões civis. número de recusas que atualmente se pode
fazer na Inglaterra assemelha-se quase inteira­
Os cônsules108 julgaram depois dos reis,
mente a esse hábito.
como os pretores julgaram depois dos cônsu­ Os juizes apenas decidiam sobre as questões
les. Sérvio Túlio despojara-se do julgamento de fato11 5. Por exemplo: se uma soma tinha
das questões civis; os cônsules também não as ou não sido paga; se uma ação tinha ou não
julgaram, a não ser em casos muito raros109, sido cometida. Porém, quando se tratava de
que foram chamados, por esta razão, extraor­ questões de direito11 6, eram levadas ao tribu­
dinários' 1 °. Eles contentaram-se com nomear nal dos centúnviros11 7.
os juizes e compor os tribunais que deveríam Os reis reservavam para si o julgamento
julgar. Parece, pelo discurso de Ápio Cláudio, dos casos criminais e os cônsules sucederam-
em Dionísio de Halicarnasso111, que, desde o lhes nesta função. Foi em consequência desta
ano 259 de Roma, isso era considerado como autoridade que o cônsul Bruto mandou matar
um costume estabelecido entre os romanos e seus filhos e todos os que tinham conjurado em
atribuí-lo a Sérvio Túlio não significa remon­ favor dos Tarqüínios. Esse poder era exorbi­
tá-lo para muito tempo atrás. tante. Possuindo o poder militar, os cônsules
Cada ano, o pretor fazia uma li^ta112 ou rol
dos que escolhia para exercer a função de juiz 113 “Nossos antepassados não quiseram”, diz Cí­
durante o ano de sua magistratura. Escolhia- cero, Pro Cluentio, cap. XLIII, “que um homem,
cujas partes não estivessem concordes, pudesse jul­
se, para cada questão, um número suficiente. gar, não somente da reputação de um cidadão,
Isso se pratica quase da mesma maneira na como mesmo da mais insignificante questão pecu­
niária.” (N. do A.)
11 4 Vede nos fragmentos da lei Servília, da Corné-
108 Não se pode duvidar que os cônsules, antès da lia e outras, de que maneira essas leis escolhiam os
criação dos pretores, não tivessem tido os julga­ juizes para os crimes que se propunham punir.
mentos civis. Vede Tito Lívio, Primeira Década, liv. Frequentemente, eles eram designados por escolha,
II, cap. I; Dionísio de Halicarnasso, liv. X, pág. algumas vezes pelo sorteio, ou, finalmente, pelo sor­
627, e o mesmo livro, pág. 645. (N. do A.) teio combinado com a escolha. (N. do A.)
109 Amiúde os tribunos julgaram sozinhos; nada 11 5 Sêneca, De Benef., liv. III, cap. VII, in fine. (N.
os tornava mais odiosos. Dionísio de Halicarnasso, do A.)
liv. XI, pág. 709. (N. do A.) 11 6 Vede Quintiliano, liv. IV pág. 54, in-fol., ed. de
110 Judicia extraordinário. Vede as Institutas, liv. Paris, 1541. (N. do A.)
IV. (N. do A.) 117 L. 2, § 24, ff. De Orig. Jur. Magistrados,
111 Liv. VI, pág. 360. (N. do A.) chamados decênviros, presidiam ao julgamento,
112 Albumjudicum. (N. do A.) todos sob a direção de um pretor. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 171

exerciam-no mesmo nos negócios da óidade; e muito sábia. Ela conciliou admiravelmente o
o procedimento deles, alheio às formas de jus­ corpo dos plebeus e o senado. Pois, como a
tiça, eram mais ações violentas do que competência de uns e de outros dependia da
julgamentos. grandeza da pena e da natureza do crime, era
Isso originou a lei Valeriana, que permitia o preciso que elas estivessem harmonizadas.
apelo ao povo contra todas as ordenanças dos A lei Valeriana suprimiu tudo o que restava
cônsules que colocassem -em perigo a vida de em Roma do governo que tivera relação com
um cidadão. Os cônsules não puderam mais os dois reis gregos dos tempos heróicos. Os
pronunciar uma pena capital contra um cida­ cônsules viram-se sem poder para punir os cri­
dão romano contra a vontade do povo11 8. mes. Apesar de todos os crimes serem públi­
cos, cumpria, entretanto, distinguir os que inte­
Vemos, na primeira conjuração pelo retorno ressavam mais os cidadãos entre si, daqueles
dos Tarqíiínios, que o cônsul Bruto julga os
que interessavam mais o Estado nas suas rela­
culpados; na segunda, convocam-se o senado e ções com um cidadão. Os primeiros chamam-
os comícios para julgar11 9. se privados; os segundos, crimes públicos. O
As leis, que se chamaram sagradas, conce­ próprio povo julgava os crimes públicos; com
deram tribunos aos plebeus, formando um relação aos privados, para, cada crime, por
corpo que teve inicialmente imensas preten­ intermédio de uma comissão específica, no­
sões. Não se sabe qual foi a maior: se a vil meava um questor para dar-lhe andamento.
ousadia dos plebeus em demandar, ou se a Frequentemente, era um dos magistrados,
condescendência e a facilidade de conceder do algumas vezes um particular, que o povo esco­
senado. A lei Valeriana permitira os apelos ao lhia. Chamavam-no questor do parricídio, ao
povo, isto é, ao povo composto de senadores, qual se faz menção nas leis das Doze
de patrícios e de plebeus. Estes últimos estabe­ Tábuas121.
leceram que seria diante deles que as apelações O questor nomeava o que se chamava juiz
seriam levadas. Logo se questionou se os ple­ da questão, o qual sorteava os jurados, forma­
beus poderíam julgar um patrício. Isso foi va o tribunal e presidia ao julgamento122.
assunto de uma disputa que o caso Coriolano Convém observar aqui a parte que cabia ao
originou e que foi resolvida com este caso. senado na nomeação do questor, a fim de que
Coriolano, acusado pelos tribunos diante do se perceba como os poderes eram, a esse res­
povo, afirmava, contra o espírito da lei Valé­ peito, equilibrados. Algumas vezes, o senado
ria, que, sendo patrício, não podia ser julgado elegia um ditador para cumprir a função de
senão pelos cônsules; os plebeus, contra o espí­ questor1 23, outras vezes, ordenava que o povo
rito da mesma lei, pretendiam que só eles fosse convocado por um tribuno, para que
poderíam julgá-lo, e julgaram-no. nomeasse um questor124; enfim, o povo
nomeava, por vezes, um magistrado para apre­
A Lei das Doze Tábuas modificou essa sentar seu relatório ao senado a respeito de um
questão: ordenou que somente se poderia deci­ determinado crime e demandar-lhe um ques­
dir da vida de um cidadão nos grandes Estados tor, como se vê no julgamento de Lúcio
*120. Assim, o corpo dos plebeus, ou, o
do povo118 Cipião1 2 5, em Tito Lívio1 2 6.
que é a mesma coisa, os comícios por tribos,
apenas julgaram os crimes cuja pena não pas­
sasse de uma multa pecuniária. Era necessária 121 Diz Pompônio, na lei 2, no Digesto De Orig.
uma lei para infligir a pena capital; para con­ Jur. (N. do A.)
denar a uma pena pecuniária bastava um 1 22 Vede um fragmento de Ulpiano, que cita outro
plebiscito. da lei Cornélia; encontran.o-lo na Colação das Leis
Mosaicas e Romanas, tít. I, De sicariis et homici-
Essa disposição da Lei das Doze Tábuas foi diis. (N. do A.)
123 Isso ocorria sobretudo nos crimes cometidos
na Itália, onde o senado possuía a principal inspe­
118 Quoniam de capite civis romani, injussu populi ção. Vede Tito Lívio, Primeira Década, liv. IX, cap.
romani, non erat permissum consulibus jus dicere. XXVI, sobre a conjuração de Cápua. (N. do A.)
Vede Pompônio, liv. 2, § 6, De Orig. Jur. (N. do A.) 1 2 4 Foi assim no processo da morte de Postúmio,
11 9 Dionísio de Halicarnasso, liv. V, pág. 322. (N. no ano 340 de Roma. Vede Tito Lívio, liv. IV, cap.
do A.) L. (N. do A.)
120 Os comícios por centúrias. Destarte, Mânlio 12 5 Este julgamento efetuou-se no ano 567 de
Capitolino foi julgado nesses comícios. Tito Lívio, Roma. (N. do A.)
Primeira Década, liv. VI, cap. XX. (N. do A.) 126 Liv. VIII. (N. do A.)
172 MONTESQUIEU
No ano de Roma de 604, algumas dessas Disso resultaram infinitos males. Mudou-se
comissões tomaram-se permanentes12 7. Divi- a constituição num momento em que, no fogo
diram-se progressivamente todas as matérias das discórdias civis, mal havia uma constitui­
criminais em diversas partes, que foram cha­ ção. Os cavaleiros deixaram de ser essa ordem
madas questões perpétuas. Criaram-se diver­ intermediária que unia o povo ao senado e a
sos pretores e atribuíram-se a cada um algu­ continuidade da constituição rompeu-se.
mas dessas questões. Entregou-se-lhes, por um Havia mesmo motivos particulares que
ano, o poder de julgar os crimes que deles deveríam impedir que os julgamentos passas­
dependiam e, em seguida, iam governar sua sem aos cavaleiros. A constituição de Roma
província. alicerçava-se neste princípio: aqueles deviam
Em Cartago, o senado dos cem era com­ ser soldados com posse suficiente para respon­
posto de juizes vitalícios12 8, mas em Roma os der, com sua conduta, à república. Os cavalei­
pretores eram anuais e os juizes não o eram ros, sendo os ricos, formavam a cavalaria das
nem por um ano, visto que eram escolhidos legiões. Quando sua dignidade aumentou, eles
para cada caso. Viu-se, no capítulo sexto deste não mais quiseram servir nesta milícia; foi
livro, como, em certos governos, esta disposi­ necessário recrutar outra cavalaria; Mário
ção era favorável à liberdade. recrutou todo tipo de gente nas legiões e a
Até o tempo dos Gracos, os juizes foram república perdeu-se13 2.
escolhidos na ordem dos senadores. Tibério Demais, os cavaleiros eram os contrata-
Graco129 ordenou que eles fossem escolhidos dores da república, causavam desgraça sobre
na ordem dos cavaleiros, mudança tão consi­ desgraça e faziam aparecer necessidades públi-
derável, que o tribuno se vangloriava de, com Icas das necessidades públicas. Em vez de con­
apenas uma rogação, ter cortado os nervos da ferir a tais pessoas o poder de julgar, teria sido
ordem dos senadores. necessário que elas estivessem incessantemente
Deve-se notar que os três poderes podem ser sob os olhos dos juizes. Em louvor às antigas
bem distribuídos com relação à liberdade da leis francesas, é preciso que se diga isto: elas
constituição, apesar de não o serem tão bem estipularam, com os homens de negócios, com
em relação à liberdade do cidadão. Em Roma, a desconfiança que se tem pelos inimigos.
tendo o povo a maior parte do poder legisla­ Quando, em Roma, os julgamentos foram
tivo, parte do poder executivo e parte do poder entregues aos contratadores, não mais houve
de julgar, esse grande poder necessitava ser virtude, ordem, leis, magistratura, magistra­
contrabalançado por- outro. O senado tinha dos.
parte do poder executivo e um ramo do legisla­ Encontramos um retrato bem ingênuo dessa
tivo13 °, mas isso não era suficiente para com­ situação em alguns fragmentos de Diodoro da
pensar o poder do povo. Cumpria que ele Sicília e de Dion. “Múcio Cévola”, conta
participasse do poder de julgar e isso acontecia Diodoro133, “quis restabelecer os antigos cos­
quando os juizes eram escolhidos entre os tumes e viver frugal e integralmente de seus
senadores. Quando os Gracos privaram os próprios bens134, pois, tendo seus predeces-
senadores de seu poder de julgar131, o senado sores formado uma sociedade com os contrata­
não mais pôde resistir ao povo. Estes atingi­ dores, que então tinham, em Roma, os julga­
ram, portanto, a liberdade da constituição para mentos, cobriram a província de toda sorte de
favorecer a liberdade do cidadão; mas essa crimes. Mas Cévola mostrou quem eram real­
desapareceu com aquela. mente os publicanos e mandou prender os que
arrastavam os outros para esse caminho.”
Relata-nos Dion13 5 que Públio Rutílio, seu
12 7 Cícero, in Bruto. (N. do A.)
12 8 Tito Lívio, liv. XXXIII, cap. XLVI, que diz ter
Aníbal tornado sua magistratura anual, prova isso. 13 2 Capite censos plerosque. Salústio, Guerra de
(N. do A.) Jugurta, cap. LXXXIV. (N. do A.)
12 9 Devemos ler Caio e não Tibério. 133 Fragmento desse autor, liv. XXXVI, na coletâ­
130 Os senatus-consultos tinham força durante um nea de Conçtantino Porfirogêneto, Das Virtudes e
ano, embora não fossem confirmados pelo povo. dos Vícios. (N. do A.)
Dionísio de Halicarnasso, liv. IX, pág. 595, e liv. 13 4 Foi por ocasião de seu proconsulado da Ásia.
XI, pág. 735. (N. do A.) 13 5 Fragmento de sua história, tirado do Extrato
131 No ano de 630. (N. do A.) das Virtudes e dos Vícios. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 173

lugar-tenente, que não era menos odioso aos da região só podiam dizer que tinham como
cavaleiros, foi acusado, à sua volta, de ter rece­ propriedade particular o que estivesse dentro
bido presentes, e foi condenado com uma das muralhas da cidade. Não existia nem pro-
multa. Ele procedeu imediatamente à cessão de cônsul nem pretor que pudesse ou quisesse
bens. Sua inocência foi comprovada, pois opor-se a tal desordem, e que ousasse punir
encontraram-lhe muito menos bens do que se esses escravos, porque eles pertenciam aos
lhe acusava de ter roubado, e ele mostrou os tí­ cavaleiros que, em Roma, tinham o poder de
tulos de sua propriedade. Não quis mais per­ julgar13 7.” Isso foi, entretanto, uma das cau­
manecer na cidade com gente dessa espécie. sas da guerra dos escravos. Direi apenas uma
“Os italianos”, conta ainda Diodoro13 6, palavra: uma profissão que só tem e só pode
“compravam na Sicília tropas de escravos ter como objetivo o lucro, uma profissão que
para lavrar seus campos e cuidar de seus reba­ exigia sempre e da qual nada se exigia, uma
nhos; recusavam-lhes alimentos. Esses infeli­ profissão surda e inexorável, que empobrecia
zes eram obrigados a assaltar nas estradas, as riquezas e a própria miséria, não deveria,
armados de lanças e de maças, cobertos com em Roma, possuir o poder de julgar.
peles de animais e rodeados por grandes cães.
Toda a província foi devastada e os habitantes
13 7 Penes quos Romae tum judicia erant, atque ex
equestri ordine solerent sortito judices eligi in causa
13 8 Fragmento do livro XXXIV, no Extrato das praetorum et proconsulum, quibus, post adminis-
Virtudes e dos Vícios. (N. do A.) tratam provinciam, dies dieta erat. (N. do A.)

Capítulo XIX

Do governo das províncias romanas

Foi assim que os três poderes foram distri­ próprios cidadãos tinham, pela natureza das
buídos na cidade, mas nas províncias a situa­ coisas, os empregos civis e militares. Isso faz
ção estava longe de ser igual. A liberdade esta­ com que uma república que conquista quase
va no centro e a tirania nas extremidades. não possa comunicar seu governo e reger o Es­
Enquanto Roma só dominou na Itália, os tado conquistado de acordo com a forma de
povos foram governados como confederados. sua constituição. Com efeito, tendo o magis­
Obedecia-se às leis de cada república. Mas trado que envia para governar o poder executi­
quando ela estendeu suas conquistas, quando o vo, civil e militar, é muito necessário que ele
senado não mantinha diretamente as provín­ possua também o poder legislativo, pois quem
cias sob suas vistas, quando os magistrados faria leis sem ele? É mister também que ele
que estavam em Roma não mais puderam tenha o poder de julgar, pois quem julgaria
governar o império, foi preciso enviar pretores
independentemente dele? Cumpre, portanto,
e procônsules. Então, essa harmonia entre os
que o governador enviado pela república pos­
três poderes desapareceu. Os que eram envia­
dos tinham um poder que agrupava o de todas sua os três poderes, como aconteceu nas
as magistraturas romanas; que digo? o próprio províncias romanas.
poder do senado, o próprio poder do povo13 8. Uma monarquia pode comunicar mais facil­
Eram magistrados despóticos, que muito con­ mente seu governo, porque os oficiais que
vinham aos longínquos lugares a que eram envia têm, uns, o poder executivo civil e,
enviados. Exerciam os três poderes e eram, se outros, o poder executivo militar, o que não
ouso servir-me do termo, os paxás da repú­ traz consigo o despotismo.
blica. Constituía um privilégio de grande impor­
Dissemos alhures139 que, na república, os tância para um cidadão romano só poder ser
julgado pelo povo. Sem isso, ele teria sido sub­
metido, nas províncias, ao poder arbitrário de
13 8 Eles proclamavam seus editos ao entrarem nas
províncias. (N. do A.) um procônsul ou de um propretor. A cidade
13 9 Liv. V, cap. XIX. Vede também os livros II, não sentia a tirania que apenas se exercia
III, IV e V. (N. do A.) sobre as nações submetidas.
174 MONTESQUIEU

Assim, no mundo romano, como na Lacede­ dade os tributos, ou mesmo não os pagava1 40,
mônia, os que eram livres eram extremamente as províncias eram devastadas pelos cavalei­
livres e os que eram escravos eram extrema­ ros, que eram os contratadores da república.
mente escravos. Já nos referimos às afrontas que realizaram e
Enquanto os cidadãos pagavam tributos, toda a história delas está repleta.
estes eram arrecadados com uma equidade “Toda a Ásia espera-me como seu liberta­
muito grande. Obedecia-se à determinação de dor”, dizia Mitridates1 41, “tanto ódio excita­
Sérvio Túlio, que distribuira todos os cidadãos ram contra os romanos as rapinas dos procôn-
em seis classes, segundo a ordem de suas sules1 42, as exações dos homens de negócios e
riquezas, e fixara a parte de imposto propor­ as calúnias dos julgamentos1 43 e 1 4 4
cionalmente à parte que cada cidadão possuía Eis o que fez com que a força das províncias
no governo. Disso resultava que se sofria a nada acrescentasse à da república mas, ao
grandeza do tributo por causa da grandeza do contrário, só a enfraquecesse. Eis o que fez
crédito e se consolava com a pequenez do cré­ com que as províncias considerassem a perda
dito pela pequenez do tributo. da liberdade de Roma como a época do estabe­
Havia ainda uma coisa admirável; sendo a lecimento da sua.
divisão de Sérvio Túlio por classe, por assim
dizer, o princípio fundamental da constituição,
1 41 Arenga extraída de Troga Pompeu, relatada
acontecia que a equidade na arrecadação dos por Justino, liv. XXXVII, cap. IV. (N. do A.)
tributos atinha-se ao princípio fundamental do
1 42 Vede os Discursos contra Verres. (N. do A.)
governo e só poderia ser suprimida com ele.
Mas, enquanto a cidade pagava sem dificul­ 1 43 Sabe-se que foi o tribunal de Varo que levou os
germanos à revolta. (N. do A.)
144 Laboulaye observa que a expressão Calumniae
1 40 Depois da conquista da Macedônia, cessaram litium “deve ser traduzida por chicanas odiosas e
os tributos em Roma. (N. do A.) não por calúnias dos julgamentos”.

Capítulo XX

Fim deste livro

Desejaria verificar, em todos os governos moderados que conhecemos, qual é a distribuição


dos três poderes e daí calcular os graus de liberdade que cada um pode fruir. Mas nem sempre
deve-se esgotar a ponto de nada deixar a cargo do leitor. bJão se trata de fazer ler, mas de fazer
pensar.
LIVRO DÉCIMO SEGUNDO
DAS LEIS QUE FORMAM A LIBERDADE POLÍTICA
NA SUA RELAÇÃO COM O CIDADÃO
Capítulo I

Idéia deste livro

Não basta ter tratado da liberdade política Não há senão a disposição das leis, e
em sua relação com a constituição; é neces­ mesmo das leis fundamentais, que forma a
sário verificá-la na relação que mantém com o liberdade em sua relação com a constituição.
cidadão. Mas na relação com o cidadão, costumes,
Disse que, no primeiro caso, é formada por maneiras, exemplos recebidos podem fazê-la
uma certa distribuição dos três poderes; nascer, e certas leis civis favorecê-la, como
porém, no segundo, cumpre considerá-la de veremos neste livro.
outro ângulo. Consiste ela na segurança, ou na Demais, na maioria dos Estados, sendo a
opinião que se tem de sua segurança. liberdade mais restringida, abalada ou des­
Poderá ocorrer que a constituição seja livre truída do que o exige a constituição, é conve­
e que o cidadão não o seja. O cidadão poderá niente falar das leis particulares que, em cada
ser livre e a constituição não o ser. Nesses constituição, podem favorecer ou prejudicar o
casos, a constituição será livre de direito mas princípio da liberdade da qual cada um deles
não de fato; o cidadão será livre de fato e não pode ser suscetível.
de direito.

Capítulo II

Da liberdade do cidadão

A liberdade filosófica consiste no exercício tão imperfeita, que Sérvio Túlio pronunciou a
de sua vontade, ou, pelo menos (se é preciso sentença contra os filhos de Anco Márcio, acu­
falar em todos os sistemas), na opinião que se sado de ter assassinado o rei, seu sogro1 4 6. No
tem do exercício da vontade. A liberdade polí­ período dos primeiros reis dos francos, Clotá-
tica consiste na segurança, ou, pelo menos, na rio fez uma lei1 47 pela qual um acusado não
opinião que se tem de sua segurança. poderia ser condenado sem ser ouvido, o que
Esta segurança nunca é mais atacada do que prova uma prática contrária em algum caso
nas acusações públicas ou privadas. É, portan­ particular ou entre algum povo bárbaro. Cha-
to, da brandura das leis criminais que depende rondas foi quem introduziu os julgamentos
principalmente a liberdade do cidadão. contra os falsos testemunhos1 48. Quando a
As leis criminais não foram aperfeiçoadas inocência dos cidadãos não é garantida, a
de repente. Nos próprios lugares onde mais se liberdade também não o é.
procurou a liberdade, nem sempre ela foi
encontrada. Aristóteles1 4 5 conta-nos que, em
Cumes, os pais do acusador podiam ser teste­ 1 4 6 Tarqüínio Prisco. Vede Dionísio de Halicar­
nasso, liv. IV. (N. do A.)
munhas. Na época dos reis de Roma, a lei era
1 4 7 Do ano 560. (N. do A.)
1 48 Aristóteles, Política, liv. II, cap. XII. Ele deu
1 4 B Política, liv. II, cap. VIII. (N. do A.) suas leis a Túrio na 84.* olimpíada. (N. do A.)
178 MONTESQUIEU
Os conhecimentos que se têm em alguns paí­ É apenas na prática desses conhecimentos
ses e se adquirirão em outros sobre os regula­ que a liberdade pode ser alicerçada e, num Es­
mentos mais corretos que possam ser aplica­ tado que possuísse a este respeito as melhores
dos nos julgamentos criminais interessam ao leis possíveis, um homem que fosse processado
gênero humano mais que qualquer outra coisa e que devesse ser enforcado no dia seguinte
no mundo. seria mais livre que um paxá na Turquia.

Capítulo III

Continuação do mesmo assunto

As leis que condenam à morte segundo o voto a mais para condenar1 50. Nossas leis
depoimento de uma única testemunha são fa­ francesas exigem dois1 51. Os gregos preten­
tais à liberdade. A razão exige duas testemu­ diam que seu costume fora estabelecido pelos
nhas, pois uma que afirma e um acusado que deuses1 52; entretanto, esse costume também é
nega resultam num empate, e é necessário um o nosso.
terceiro para decidi-lo.
Os gregos e os romanos1*49 exigiam um 1 50 Isto é, maioria de um voto.
1 51 Sobre isso, alega-se Loisel: vox unius, yox nul-
lius; voto de apenas um, voto nulo (Institutes
1 49 Dionísio de Halicarnasso, sobre o julgamento Coutumières, liv. V, cap. V, n.° 10).
de Coriolano, liv. VII. (N. do A.) 1 52 Minervae calculus. (N. do A.)

Capítulo IV
Como a liberdade é favorecida pela natureza
das penas e pela proporção delas

Quando as leis criminais extraem cada pena da natureza1 5 4 da coisa, deve ela consistir na
da natureza específica do crime, há o triunfo privação de todas as vantagens que a religião
da liberdade. Todo o arbitrário desaparece, a oferece: expulsão dos templos; privação da
pena não mais se origina do capricho do legis­ sociedade dos fiéis, por um certo tempo ou
lador, mas da natureza da coisa, e não é um para sempre; fuga de sua presença; execrações,
homem que comete violência contra outro. detestações, conjurações1 5 5.
Há quatro tipos de crime: os da primeira Nas coisas que perturbam a tranquilidade
espécie atentam contra a religião; os da segun­ ou a segurança do Estado, as ações ocultas são
da, contra os costumes; os da terceira, contra a da alçada da justiça humana. Mas nas que afe­
tranquilidade; os da quarta, contra a segu­ tam a Divindade, onde não existe nenhuma
rança dos cidadãos. As penas a serem aplica­ ação pública, não há objeto de crime; tudo diz
das devem derivar da natureza de cada espécie. respeito ao homem e Deus, que conhece a me­
Não classifico entre os crimes que afetam a dida e o momento de suas vinganças. Porque,
religião os que a atacam diretamente, como se o magistrado, confundindo as coisas, procu­
todos os sacrilégios simples1 53, pois os crimes ra também o sacrilégio oculto, ele dirige uma
que perturbam seu exercício são da natureza inquisição sobre um gênero de ação onde ela
dos que afetam a tranquilidade dos cidadãos não é necessária e destrói a liberdade dos cida-
ou sua segurança e devem ser colocados nesta
classe.
Para que a pena dos sacrilégios seja extraída 1 5 4 São Luís promulgou leis tão severas contra os
que juravam, que o papa julgou ser seu dever adver­
ti-lo. Este príncipe moderou seu zelo e abrandou
1 53 Sacrilégios simples, isto é, que não acarretam suas leis. Vede suas ordenanças. (N. do A.)
consequências para outrem ou para a sociedade, 1 5 6 Provavelmente Montesquieu refere-se, aqui, às
sacrilégios exclusivamente religiosos. excomunhões, as quais não cita.
DO ESPIRITO DAS LEIS II 179

dãos, levantando contra eles o zelo das cons­ Trata-se aqui tão-só dos crimes que dizem
ciências tímidas e o das consciências atrevidas. respeito unicamente aos costumes e não dos
O mal decorre da idéia de que é necessário que afetam também a segurança pública, tais
vingar a Divindade. Porém, deve-se honrar a como o rapto e a violação, que são da quarta
Divindade e nunca vingá-la. Com efeito, se nos espécie.
orientássemos por esta última idéia, qual seria Os crimes da terceira classe são os que afe­
o objetivo dos suplícios? Se as leis dos homens tam a tranquilidade dos cidadãos, e as penas a
devem vingar um ser infinito, elas se basearão esse respeito devem ser extraídas da natureza
em sua infinidade e não sobre suas fraquezas, da coisa, e se relacionam a esta tranquilidade,
sobre as ignorâncias, sobre os caprichos da como a prisão, o exílio, as correções e outras
natureza humana. penas que reorientam os espíritos inquietos e
Um historiador1 5 6 da Provença relata um os fazem entrar na ordem estabelecida.
fato que nos dá bem uma imagem do efeito que Restrinjo os crimes contra a tranquilidade
produz sobre os espíritos fracos a idéia de vin­ às coisas que encerram uma simples violação
gar a Divindade. Um judeu, acusado de ter da ordem, pois os que, perturbando a tranquili­
blasfemado contra a Santa Virgem, foi conde­ dade, atingem ao mesmo tempo a segurança
nado a ser escorchado. Cavaleiros mascara­ devem ser colocados na quarta classe.
dos, punhais na mão, subiram ao cadafalso,
As penas para esses últimos crimes são as
expulsaram o carrasco, a fim de vingarem, eles
que chamamos suplícios. É uma espécie de
próprios, a honra da Santa Virgem. . . mas
talião, que leva a sociedade a recusar garantia
não quero influenciar as reflexões do leitor.
ao cidadão que a privou dela, ou que quis pri­
A segunda classe é a dos crimes cometidos
var outro cidadão. Essa pena é extraída da
contra os costumes, como o é a violação da
natureza da coisa, tirada da razão e das fontes
continência pública ou particular; isto é, da
do bem e do mal. Um cidadão merece a morte
vigilância sobre a maneira como se deve fruir
quando violou a segurança a ponto de suprimir
dos prazeres relacionados ao uso dos sentidos
e à união dos corpos. As penas para tais cri­
uma vida, ou quando tentou suprimi-la. Esta
mes devem igualmente ser extraídas da natu­
pena de morte é como o remédio de uma socie­
reza da coisa. A privação das vantagens que a
dade doente. Quando se viola a segurança rela­
tiva aos bens, podem existir, neste caso, moti­
sociedade atribui à pureza dos costumes, as
vos para que a pena seja capital; mas seria
multas, a desonra, a coerção que obriga a ocul­
talvez melhor, e mais natural, que a pena dos
tar-se, a infâmia pública, a expulsão da cidade
crimes contra a segurança dos bens fosse puni­
e da sociedade, enfim, todos os castigos que
são atributos da jurisdição correcional bastam da com a perda destes bens; e deveria ser
para reprimir os atrevimentos de ambos os assim, se as fortunas fossem comuns ou iguais.
sexos. Com efeito, essas coisas estão menos Porém, sendo os que não possuem bens os que
baseadas na malevolência do que no esqueci­ habitualmente atentam contra os bens de
mento ou no desprezo de si mesmo. outrem, foi necessário que a pena corporal
suprisse a pecuniária.
Tudo o que disse foi extraído da natureza e
1 5 6 Padre Bougerel. (N. do A.) é muito favorável à liberdade do cidadão.

Capitulo V

De certas acusações que necessitam


especialmente moderação e prudência

Máxima importante: cumpre ser muito infinidade de tiranias, se o legislador não sou­
circunspecto no combate à magia e à heresia. ber restringi-la, pois, como ela não diz respeito
A acusação desses dois crimes pode afetar diretamente às ações de um cidadão, mas
extremamente a liberdade e ser a fonte de uma principalmente à idéia que se faz de seu cará­
180 MONTESQUIEU

ter, ela torna-se perigosa na proporção da um milagre havia falhado por causa da magia
ignorância do povo e, desde então, um cidadão de um indivíduo, este e seu filho foram conde­
encontra-se sempre em perigo, porquanto a nados à morte. De quantas coisas prodigiosas
melhor conduta que se possa ter, a moral mais não dependia esse crime? Que não sejam raras
pura, o cumprimento de todos os deveres, não as revelações; que o bispo tenha tido uma; que
constituem garantias contra as suspeitas des­ ela fosse verdadeira; que tivesse havido um
ses crimes. milagre; que esse milagre tivesse malogrado;
Na época de Manuel Comneno, o protesta- que a magia pudesse subverter a religião; que o
tor' 5 7 foi acusado de ter conspirado contra o referido indivíduo fosse mágico; que ele tives­
imperador e de se ter servido para isso de cer­ se, finalmente, cometido essa magia.
tos segredos que tornam os homens invisíveis. O Imperador Teodoro Lascaris atribuía sua
Narra a biografia desse imperador que se moléstia à magia. Aos que disso eram acusa­
surpreendeu Aarão lendo um livro de Salo­ dos só restava o recurso de tocar um ferro em
mão, cuja leitura ocasionava o aparecimento brasa sem se queimar. Seria bom, entre os gre­
de uma legião de demônios. Ora, atribui-se à gos, ser mágico para se inocentar da magia.
Sua idiotice era tão grande, que , para o crime
magia um poder que engendra o inferno e,
mais incerto, reuniam as provas mais incertas.
partindo-se daí, considera-se o que se chama
No reinado de Filipe, o Longo, os judeus
um mágico como ò homem mais apto em todo foram expulsos da França, acusados de terem
o mundo para perturbar e para subverter a envenenado as fontes por meio de leprosos.
sociedade, e é-se levado a puni-lo indiscrimina­ Esta absurda acusação deve servir muito bem
damente. para pôr em dúvida todas aquelas que são
A indignação aumenta quando se acrescenta baseadas no ódio público.
à magia o poder de destruir a religião. A histó­ Não disse, aqui, que não se deve punir a
ria de Constantinopla1 58 ensina-nos que, com heresia; disse que cumpre ser muito circuns­
base numa revelação que teve um bispo de que pecto ao puni-la.

1 s 7 Niceta, Vida de Manuel Comneno, liv. IV. (N. 1 58 História do Imperador Maurício, por Teofi-
do A.) lacto, cap. XI. (N. do A.)

Capítulo VI

Do crime contra a natureza

Não permita Deus que eu diminua o horror “publicou uma lei contra esse crime; mandou
que se tem por um crime que a religião, a buscar todos os que dele eram culpados, não
moral e a política condenam alternativamente. somente após a promulgação da lei mas tam­
Seria necessário proscrevê-lo ainda quando só bém antes. O depoimento de uma bastava,
desse a um sexo as fraquezas do outro e prepa­ sobretudo contra os ricos e contra os que eram
rasse para uma velhice infame por uma juven­ da facção dos verdes.”
tude vergonhosa. O que dele direi deixar-lhe-á É curioso que, entre nós, três crimes tenham
todas as ignomínias e só atingirá a tirania que sido, todos os três, castigados com a pena do
pode abusar do próprio horror que dele se deve fogo: a magia, a heresia e o crime contra a
ter. natureza, dos quais poder-se-ia provar, quanto
Como é da natureza desse crime ser oculto, ao primeiro, que não existe; quanto ao segun­
ocorre amiúde que os legisladores o têm puni­ do, que é suscetível de uma infinidade de
do segundo o depoimento de uma criança. Isso distinções, interpretações, limitações; quanto
significava abrir uma porta muito ampla à ao terceiro, que é frequentemente obscuro.
calúnia. “Justiniano”, relata Procópio1 59, Afirmo que o crime não realizará grandes
progressos numa sociedade se o povo a isso
1 5 9 História Secreta. (N. do A.) não for levado por algum costume, como entre
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 181

os gregos, onde os jovens praticavam nus tê-las. Que não se prepare esse crime, que seja
todos os seus exercícios, como entre nós, onde proscrito por uma correta vigilância, como
a educação doméstica está fora de uso1*60, ou qualquer violação dos costumes, e ver-se-á
como entre os asiáticos, onde certos cidadãos subitamente a Natureza defender seus direitos
possuem um grande número de mulheres, as ou retomá-los. Suave, amável, encantadora, ela
quais desprezam, enquanto outros não podem distribuiu seus prazeres com uma mão liberal
e, em nos cumulando de delícias, prepara-nos,
1 60 . . .onde a educação doméstica está fora de pelos filhos que nos fazem, por assim dizer,
uso, ou seja, onde a educação não é ministrada no
lar, mas coletivamente, em determinados estabeleci­ renascer para satisfações maiores que esses
mentos. próprios prazeres.

Capítulo VII

Do crime de lesa-mqjestade

As leis da China estipulam que quem colocado, por descuido, uma observação num
desrespeitar o imperador deve ser punido com memorial assinado com pincel vermelho pelo
a morte. Como não definem o que é essa falta imperador, decidiu-se que ele faltara com o
de respeito, qualquer coisa pode fornecer pre­ respeito a esse, fato que acarretou contra essa
texto para suprimir a vida e exterminar a famí­
família uma das mais terríveis perseguições
lia que se queira.
que a história já conheceu1 62.
Tendo duas pessoas encarregadas de fazer o
diário da corte incluído num fato circuns­ Basta que o crime de lesa-majestade não
tâncias que não se revelaram verdadeiras, afir­ seja especificado para que o governo degenere
mou-se que mentir num diário da corte signifi­ em despotismo. Ater-me-ei mais longamentc
cava falta de respeito à corte; e condenaram- sobre isso no livro Da Composição das Leis,
nas à morte1 61. Tendo um príncipe de sangue

1 62 Cartas do Padre Parennin, nas Lettres Édi-


1 61 Padre du Halde, 1.1, pág. 43.(N. do A.) fiantes. (N. do A.)

Capítulo VIII

Da má aplicação do nome do crime


de sacrilégio e de lesa-majestade

Constitui também abuso violento chamar de Outra lei declarara que os que atentam contra
crime de lesa-majestade a uma ação que não o os ministros e oficiais do príncipe são crimino­
é. Uma lei dos imperadores1 63 castigava como sos de lesa-majestade, como se atentassem
sacrílegos os que colocavam em dúvida o jul­ contra o próprio príncipe1 6 5. Devemos essa lei
gamento do príncipe e duvidavam do mérito a dois príncipes1 66 cuja fraqueza é célebre na
dos que tinham sido escolhidos para alguma história; dois príncipes que foram guiados por
função1 64. Foram precisamente o gabinete e seus ministros como os rebanhos são guiados
os favoritos que estabeleceram esse crime. pelos pastores; dois príncipes, escravos no
palácio, crianças no conselho, estranhos aos
1 63 Graciano, Valentiniano e Teodósio. É a ter­ exércitos, que só conservaram o império por-
ceira no código De Crim. Sacril. (N. do A.)
1 6 4 Sacrilegii instar est dubitare an is dignus sit
quem elegerit imperator, ibid. Esta lei serviu de mo­ 1 6 5 Lei quinta, ad leg. Jul. mqj. Código IX, tít.
delo à lei de Rogério, nas constituições de Nápoles, VIII..(N. do A.)
tít. IV. (N. do A.) 1 6 6 Arcâdio e Honório. '(N. do A.)
182 MONTESQUIEU
que o entregaram diariamente. Alguns desses serve lealmente a seu príncipe e a seu Estado;
favoritos conspiraram contra seus imperado­ tiram-no a ambos; é como se se privasse o pri­
res. Fizeram mais: conspiraram contra o impé­ meiro de um braço1 68 e o segundo de uma
rio, atraíram os bárbaros e, quando se preten­ parte de seu poder”. Quando a própria servi­
deu sustá-los, o Estado estava tão fraco que foi dão dominar na terra, ela não falará de outro
necessário violar sua lei e expor-se ao crime de modo.
lesa-majestade para puni-los. Outra lei de Valentiniano, Teodósio e
Foi, entretanto, nesta lei que se funda­ Arcádio1 69 declara os falsos moedeiros
mentou o acusador do Senhor de Cinq- culpados do crime de lesa-majestade. Mas
Mars1 6 7, quando, pretendendo provar que ele isso não significa confundir as idéias das coi­
era culpado do crime de lesa-majestade por ter sas? Atribuir a outro crime o nome de lesa-ma­
desejado afastar o Cardeal de Richelieu dos jestade não é diminuir o horror do crime de
negócios, disse: “O crime que afeta a pessoa lesa-majestade?
dos ministros dos príncipes é reputado, pelas
constituições dos imperadores, tão grave como
o que afeta os próprios príncipes. Um ministro 1 68 Nam ipsi pars corporis nostri sunt. Encon­
tramos a mesma lei no código ad. leg. Jul. maj. (N.
do A.)
1 6 7 Mémoires de Montrésor, t. I, pág. 238, ed. de 169 È a nona no código Teod., Defalsa moneta.ÇN.
Colônia, 1723. (N. do A.) do A.)

Capítulo IX

Continuação do mesmo assunto

Tendo Paulino informado ao Imperador ro e Antonino escreveram a Pôncio que quem


Alexandre1 70 “que ele se preparava para con­ vendesse estátuas do imperador não consa­
denar como criminoso de lesa-majestade um gradas não incidiría no crime de lesa-majesta­
juiz que se manifestara contra suas ordenan­ de1 7 5. Os mesmos imperadores escreveram a
ças”, o imperador respondeu-lhe “que, num sé­ Júlio Cassiano que quem atirasse, por acaso,
culo como aquele, os crimes indiretos de lesa- uma pedra contra uma estátua do imperador
majestade não tinham cabimento1 71”. não deveria ser condenado como criminoso de
Havendo Faustiniano escrito ao mesmo lesa-majestade1 7 6. A lei Júlia exigia estes tipos
imperador que, tendo jurado pela vida do prín­ de mòdificações, porquanto tornara culpados
cipe que nunca perdoaria seu escravo, via-se de lesa-majestade não somente os que fundiam
obrigado a perpetuar sua cólera para não se as estátuas dos imperadores como os que
tornar culpado do crime de lesa-majestade: cometiam qualquer ação semelhante1 7 7, coisa
“Estais possuído de terrores vãos1 72”, respon- que tornava arbitrário o crime. Quando se
deu-lhe o imperador, “e não conheceis minhas estabeleceram muitos crimes de lesa-majes­
máximas”. tade, foi preciso necessariamente distinguir
Um senatus-consulto1 73 ordenou que aque­ esses crimes. Destarte, o jurisconsulto Ulpia-
le que fundira estátuas do imperador que ti­ no, depois de ter afirmado que a acusação do
nham sido reprovadas1 7 4 não seria culpado do crime de lesa-majestade não terminava com a
crime de lesa-majestade. Os imperadores Seve- morte do culpado, acrescenta que isso não diz
respeito a todos1 78 os crimes de lesa-ma­
jestade estabelecidos pela lei Júlia, mas somen­
170 Trata-se de Alexandre Severo. te aos que implicam um atentado contra o
1 71 Etiam ex aliis causis mqjestatis, criminina ces- império ou contra a vida do imperador.
sant meo saeculo. L.I, Cod. liv. IX tít. VIII, ad. leg.
Jul. maj. (N. do A.)
1 72 Alienam sectae meae sollicitudinem concepisti. 1 7 5 Vede a lei 5, § 2, ff. ad leg. Jul. maj. (N. do A.)
L. 2, Cod. liv. III, tít. IV ad leg. Jul. maj. (N. do A.) 1 76 Ibid.,§ l.(N. doA.)
1 73 Vede a lei 4, § 1, ff. ad leg. Jul. maj., liv. 1 7 7 Aliudve quid simile admiserint. Leg. 6, ff. ad
XLVIII, tít. IV. (N. do A.) leg. Jul. mqj. (N. do A.)
174 ... reprovadas, postas de lado ou abandona­ 178 Na última lei, ff. ad leg. Jul. maj. De adulteriis.
das. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 183

Capítulo X

Continuação do mesmo assunto


Uma lei da Inglaterra, promulgada no reina­ rei, os médicos nunca ousaram dizer que ele
do de Henrique VIII, declarava culpados de estava em perigo. Assim fizeram, sem dúvida,
alta traição todos os que predissessem a morte em consequência da referida lei1 79.
do rei. Essa lei era muito vaga. O despotismo é
tão terrível, que se volta mesmo contra os que 1 79 Vede História da Reforma, de Burnet. (N. do
o praticam. Quando da última enfermidade do A.)

Capítulo XI

Dos pensamentos

Um tal Mársias sonhou que cortava a gar­ grande tirania porque, mesmo que Mársias
ganta de Dionísio1 80. Este mandou matá-lo, tivesse pensado, não teria perpetrado o atenta­
do181. Às leis não cabe punir senão as ações
afirmando que ele não teria sonhado à noite, se
exteriores.
não tivesse pensado nisso de dia. Era uma
181 É necessário que ao pensamento se acrescente
180 Plutarco, Vida de Dionísio. (N. do A.) qualquer ação. (N. do A.)

Capítulo XII

Das palavras indiscretas

Nada torna os crimes de lesa-majestade todos os discursos. Nada é tão equívoco como
ainda mais arbitrários do que quando palavras tudo isso. Como, pois, distinguir um crime de
indiscretas tornam-se seu motivo. Os discursos lesa-majestade? Em toda parte em que ele é
são tão sujeitos a interpretação, há tanta dife­ estabelecido, não somente a liberdade desapa­
rença entre a indiscrição e a malícia e tão rece como ainda sua própria sombra.
pouca nas expressões que elas empregam, que No manifesto da falecida czarina183* , diri­
a íeí quase não pode submeter as palavras a gido contra a família Dolgoruki1 84 c 1 8 5, um
uma pena capital, a menos que declare expres­ desses príncipes é condenado à morte por ter
samente as que submete a essa pena1 82. proferido palavras indecentes relacionadas à
As palavras não formam um corpo de deli­ sua pessoa; outro, por ter malignamente inter­
to; elas só ficam na idéia. Geralmente, nada pretado suas sábias disposições para o impé­
significam em si mesmas, mas pela maneira rio, e ofendido sua sagrada pessoa por pala­
como são pronunciadas. Frequentemente, re- vras pouco respeitosas.
petindo-se as mesmas palavras, atribuímos a Não pretendo diminuir a indignação que se
elas um sentido diferente, dependendo esse sen­ deve ter contra os que querem macular a glória
tido de sua relação com outras coisas. Algu­ de seu príncipe, mas deixo claro que, se se pre-
mas vezes, o silêncio é mais expressivo que
183 A falecida czarina: Ana Ivanovna
182 Si non tale sit delictum, in quod vel scriptura (1693-1740).
legis descendit, vel ad exemplum legis vindicandum 184 Em 1740. (N. do A.)
est, diz Modestino na lei 7, § 3, ff. ad leg. Jul. maj. 185 A família de Ivan Dolgoruki, favorito de Pedro
(N. do A.) II e supliciado em Novgorod.
184 MONTESQUIEU
tende moderar o despotismo, uma simples cor­ minosa. Invertemos tudo se fazemos das pala­
reção, nestas ocasiões, será mais adequada do vras um crime capital, em vez de considerá-las
que uma acusação de lesa-majestade sempre como indício de um crime capital.
terrível à própria inocência18 6. Os imperadores Teodósio, Arcádio e Honó-
As ações não são diárias; muitas pessoas rio escreveram a Rufino, prefeito do pretório:
podem observá-las; uma falsa acusação sobre “Se alguém fala mal de nossa pessoa ou de
fatos pode ser facilmente esclarecida. As pala­ nosso governo, não ó puniremos18 7: se falou
vras que são ligadas a uma ação adquirem a por leviandade, cumpre desprezá-lo; se foi por
natureza desta ação. Assim, um homem que insensatez, cumpre lamentá-lo; se foi por injú­
numa praça pública exorta os súditos à revolta ria, cumpre perdoá-lo. Destarte, deixando as
torna-se culpado de lesa-majestade, porque as coisas tal como estão, dai-nos informações
palavras são ligadas à ação e dela participam. sobrç elas, a fim de que julguemos as palavras
Não se punem as palavras mas uma ação pelas pessoas e analisemos corretamente se
cometida, na qual empregam-se as palavras. devemos submetê-las a julgamento ou negli­
Elas só se transformam em crime quando pre­ genciá-las”.
param, acompanham ou seguem uma ação cri-
187 Si id ex levitate processerit, contemnendum
18 8 Nec lubricum linguae adpoenam facile trahen- est; si ex insania, miseratione dignissimum; si ab
dum est. Modestino, na lei 7, § 3, ff.ad. leg.Jul. mqj. injuria, remittendum. Leg. única, cod. si quis impe­
(N. do A.) rai maled. (N. do A.).

Capítulo XIII

Dos escritos

Os escritos contêm alguma coisa de mais cracia eles não são impedidos pelo mesmo mo­
permanente do que as palavras, mas, quando tivo que no governo de um só o são. Como eles
não preparam o crime de lesa-majestade, não são geralmente compostos contra pessoas
constituem uma questão de lesa-majestade. poderosas, lisonjeiam na democracia a malig-
Augusto e Tibério, entretanto, atribuíram nidade do povo que governa. Na monarquia
aos escritos a pena de lesa-majestade188; são proibidos, mas fizeram-nos antes um caso
Augusto o fez quando de certos escritos dirigi­ de polícia do que um crime. Podem eles agra­
dos contra homens e mulheres ilustres; Tibério dar à malignidade geral, consolar os descon­
tentes, diminuir a inveja que se tem dos altos
o fez por causa dos crimes que pensou serem
cargos, dar ao povo a paciência de sofrer e
cometidos contra ele. Nada foi mais fatal à
fazê-lo rir de seus sofrimentos.
liberdade romana. Cremúcio Cordo foi acusa­ A aristocracia é o governo que mais proíbe
do porque, em seus anais, chamara Cássio de as obras satíricas. Os magistrados são peque­
último dos romanos189. nos soberanos que não são suficientemente
Os escritos satíricos são pouco conhecidos poderosos para desprezar as injúrias. Se, na
nos Estados despóticos, onde o desalento, de monarquia, um escrito é dirigido contra o
wn lado, e a ignorância, de outro, não dão nem monarca, ele está colocado tão aíto que não é
talento nem vontade de escrevê-los. Na demo­ alcançado. Um senhor aristocrata é por ele
atravessado de lado a lado. Dessa maneira, os
decênviros, que formavam a aristocracia, puni­
188 Tácito, Anais, liv. I, cap. LXXII. Isto continuou ram com a morte os escritos satíricos190.
nuou durante os reinados seguintes. Vede a primeira
lei do código Defamosis libellis. (N. do A.)
189 Tácito, Anais, liv. IV, cap. XXXIV. (N. do A.) 190 A Lei das Doze Tábuas. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 185

Capítulo XIV

Violação do pudor na punição dos crimes

Há regras de pudor observadas em quase Quando a magistratura japonesa determi­


todas as nações do mundo; seria absurdo vio­ nou que mulheres nuas fossem expostas em
lá-las na punição dos crimes, a qual deve sem­ praças públicas e obrigou-as’a andar como
pre objetivar o restabelecimento da ordem. animais, fez fremir o pudor192, mas quando
Os orientais que expuseram mulheres a ele­ quis coagir uma mãe. . . quando quis coagir
fantes amestrados para um abominável gênero um filho. . . não posso concluir, fez fremir a
de suplício quiseram violar a lei pela lei? própria natureza193.
Uma antiga prática romana proibia conde­
nar à morte as jovens que não fossem núbeis. 191 Suetônio, in Tibério, cap. LXI. (N. do A.)
Tibério encontrou o expediente de mandar 192 Recueil des Voyages qui ont Servi à
violentá-las pelo carrasco antes de enviá-las ao lÉtablissement de la Compagnie des Indes, t. V,
suplício191; tirano sutil e cruel, para conservar parte II. (N. do A.)
os costumes, destruiu-os. 193 Ibid., pág. 496. (N. do A.)

Capítulo XV

Da libertação do escravo para acusar o senhor

Augusto determinou que os escravos dos nizada em favor de Tarqüínio, mas não foi tes­
que tivessem conspirado contra ele seriam ven­ temunha contra os filhos de Bruto. Era justo
didos ao público, a fim de que pudessem depor conceder liberdade aos que tinham prestado
contra seus senhores19 4. Não se deve despre­ tão grande serviço à pátria; mas não lha deram
zar nada que possibilite a descoberta de um a fim de que prestassem este serviço à pátria.
grande crime. Destarte, num Estado em que Desta maneira, o Imperador Tácito ordenou
existam escravos, é natural que eles possam ser que escravos não poderíam testemunhar con­
informantes; mas não poderíam ser testemu­ tra o seu senhor, inclusive no crime de lesa-
nhas. majestade19 5, lei que não foi incluída na
Víndex informou sobre a conspiração orga- compilação de Justiniano.

19 8 Flávio Vopisco, em A Vida do Imperador Tá­


19 4 Dion, em Xifilim, liv. LV, cap. V. (N. do A.) cito, cap. IX. (N. do A.)

Capítulo XVI

Calunia no crime de lesa-majestade

É necessário fazer justiça aos Césares, pois Orações de Cícero, Pro Cluentio, art. 3; in Pisonem,
não foram os primeiros a imaginar as tristes art. 21; Segunda contra Verres, art. 5; Epístolas
leis que fizeram. Foi Sila1 9 6 quem lhes ensi­ Familiares, liv. III, carta II. César e Augusto inseri-
nou que não se devia punir os caluniadores. ram-nas nas leis Júlias; outros fizeram novos acrés­
Logo se chegaria mesmo a recompensá-los19 7. cimos. (N. do A.)
197 Et quo quis distinctior accusator, eo magis
honores assequebatur, ac veluti sacrosanctus erat.
19 6 Sila fez uma lei de majestade, mencionada nas Tácito, An., IV, cap. XXXVI. (N. do A.)
186 MONTESQUIEU

Capítulo XVII

Da revelação das conspirações

“Quando teu irmão, teu filho, tua filha, tua Ela só deve ser aplicada com toda a sua
bem-amada esposa ou teu amigo, que é como severidade ao crime de lesa-majestade de pri­
tua alma, te disserem em segredo: Vamos a ou­ meiro grau. Nesses Estados é muito impor­
tros deuses, tu os apedrejarás; primeiro tua tante não confundir os diferentes graus desse
mão estará sobre ele, logo a de todo o povo.” crime.
Esta lei do Deuteronômio1 98 não poderia ser
No Japão, onde as leis anulam todas as
uma lei civil na maioria dos povos que conhe­
cemos porque abriria as portas a todos os idéias da razão humana, o crime de não revela­
crimes. ção aplica-se aos casos mais comuns.
A lei que em vários Estados ordena, sob Uma relação200 fala-nos de duas jovens que
pena de morte, revelar as conspirações das foram encerradas até a morte num cofre eriça-
quais não se foi nem mesmo cúmplice não é
menos dura1". Quando é transportada para o do de farpas; uma por ter tido uma intriga
governo monárquico, é muito conveniente amorosa qualquer; outra, por não a ter
restringi-la. revelado.

1 98 Cap. XIII, versículos 6, 7, 8 e 9. (N. do A.) 200 Recueil des Voyages qui ont Servi à
199 Ela foi causa da morte de Thou, executado por lÉtablissement de la Compagnie des Indes, pág.
não ter revelado a conspiração de Cinq-Mars. 423, liv. V, parte II, (N. do A.)

Capítulo XVIII

Como é perigoso, nas repúblicas, punir muito


severamente o crime de lesa-majestade

Quando uma república chegou a exterminar filhos201, algumas vezes cinco dos parentes
os que pretenderam derrubá-la é necessário mais próximos202. Expulsaram uma infini­
terminar logo com as vinganças, com as penas dade de famílias. Com isso enfraqueceram
e com as próprias recompensas. suas repúblicas; o exílio ou o retorno dos exila­
Não se pode aplicar grandes punições e, dos foram sempre épocas que assinalaram a
consequentemente, grandes modificações, sem modificação da constituição.
colocar nas mãos de alguns cidadãos um gran­ Os romanos foram mais sábios. Quando
de poder. Ê melhor, portanto, nesses casos, Cássio foi condenado por ter aspirado à tira­
muito perdoar do que muito punir; exilar nia, discutiu-se se seus filhos deveríam ser
pouco do que exilar muito; deixar os bens do mortos; eles não foram condenados a nenhuma
que multiplicar os confiscos. Estabelecer-se-ia pena. “Os que pretenderam”, diz Dionísio de
a tirania dos vingadores sob o pretexto de vin­ Halicarnasso203; “mudar esta lei no fim da
gar a república. Não se trata de destruir quem guerra dos Marsós e da guerra civil e destituir
domina mas a dominação. Cumpre retornar dos cargos os filhos dos proscritos por Sila são
tão logo seja possível a esse ritmo normal de
governo em que as leis tudo protegem e não se 201 Dionísio de Halicarnasso, Antiguidades Ro­
armam contra ninguém. manas, liv. VIII. (N. do A.)
Os gregos não colocaram limites às vingan­ 202 Tyranno occiso, quinque ejusproximos cogna-
tione, magistratus necato. Cícero, De Inventione,
ças que tornaram contra os tiranos ou contra liv. II, cap. XXIX. (N. do A.)
os que suspeitãram sê-lo. Mandaram matar os 203 Liv. VIII, pág. 547. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS II 187

muito criminosos.” Vê-se, nas guerras de tanto os meios que emprega são superiores aos
Mário e de Sila, até que ponto as almas dos outros, tanto os ricos estarão em segurança,
romanos se tinham paulatinamente depravado. tanto o baixo povo estará tranquilo, tanto se
Parecia que coisas tão funestas não mais se­ teme pôr em perigo a vida dos cidadãos, tanto
riam vistas. Porém na época dos triúnviros se quer apaziguar os soldados e tanto, final­
quis-se ser mais cruel parecendo sê-lo menos. mente, se será feliz 2 0 5.
Afligimo-nos ao ver os sofismas que a cruel­ Roma estava inundada de sangue quando
dade utilizou. Encontramos em Apiano20 4 a Lépido venceu na Espanha e, por um absurdo
fórmula das proscrições. Dirieis que seu único sem precedentes, ordenou que se regozijasse,
objetivo era o bem da república, tanto nos fala sob pena de ser proscrito20 6.
de sangue-frio, tanto nos mostra as vantagens,
20 5 Quodfelixfaustumque sit. (N. do A.)
20 6 Sacris et epulis dent hunc diem: qui secus faxit,
20 4 Das Guerras Civis, liv. IV. (N. do A.) interproscriptos esto. (N. do A.)

Capítulo XIX

Como se suspende o uso da liberdade na república

Há, nos Estados onde mais se cuida da gamento que, tendo sido aprovado pelas duas câma­
liberdade, leis que a violam contra um só, a ras e assinado pelo rei, passa a ato, pelo qual o acu­
sado é declarado culpado de alta traição, sem outra
fim de conservá-la para todos. Tais são, na formalidade e sem apelo ”. As últimas edições subs­
Inglaterra, os bilis denominados de atingir20 7. tituem esta nota pela seguinte: "Não basta, nos tri­
Eles remontam às leis de Atenas que estatuíam bunais do reino, que haja uma prova tal que os jui­
contra um indivíduo208, posto que fossem zes sejam convencidos; cumpre ainda que esta
prova seja formal, isto é, legal; e a lei exige que hqja
estabelecidas pelo sufrágio de seis mil cida­ duas testemunhas contra o acusado; outra prova
dãos. Eles remontam às leis que se estabele­ não bastaria. Ora, se um homem reputado culpado
ciam em Roma contra os cidadãos particula­ do que se chama alto crime tinha encontrado meio
res, e que se chamavam privilégios200. Só de afastar as testemunhas, de modo a tornar impos­
sível sua condenação pela lei, poder-se-ia dirigir
eram feitas nos grandes Estados do povo. Mas contra ele um bill particular de atingir, ou seja:
qualquer que fosse a maneira com que os fazer uma lei especial contra sua pessoa. Procede-se
povos as outorgassem, Cícero desejava que aqui como para todos os demais bilis; é necessário
fossem abolidas, pois só existe a força da lei que passe pelas duas câmaras e que o rei dê o seu
consentimento, sem o que não há bill, isto é, julga­
quando ela estatui para todos210. Confesso, mento. O acusado pode fazer com que seus advoga­
entretanto, que a prática dos povos mais livres dos falem contra o bill, e pode-se falar na câmara
que já existiram sobre a terra faz-me acreditar em favor do bill”. (N. dos T.)
que existem casos em que é mister, por certo 208 Legem de singulari aliquo ne rogato, nisi sex
millibus ita visum. Ex Andocide de mysteriis. Tra-
tempo, colocar um véu sobre a liberdade, tal ta-se do ostracismo. (N. do A.)
como se esconde a estátua dos deuses2 11. 209 De privis hominibus latae.Leg., Cícero, De liv.
III, cap. XIX. (N. do A.)
21 0 Scitum est jussum in omnes. Cícero, ibid. (N.
20 7 O texto francês apresenta aqui, como nota, a do A.)
seguinte variante contida nas edições de 1748 e de 211 Os amigos da “liberdade” muito se indignaram
1749 in-4.° e reproduzida segundo a edição Labou- com essa frase de Montesquieu. Nós acreditamos
laye, que julgamos útil inserir também na presente que é possível tomá-la num sentido razoável e que
tradução portuguesa: “O autor da continuação de em política haja ocasião em que se necessite suspen­
Rapin Thoyras define o bill de atingir como um Jul­ der as leis.
188 MONTESQUIEU

Capitulo XX

Das leis favoráveis à liberdade do cidadão na república

Sucede, amiúde, nos Estados populares, que era estigmatizado de infâmia213 e marcava-
as acusações sejam públicas, e que seja permi­ se-lhe a fronte com a letra K21 4. Vigiava-se o
tido a todo homem acusar quem desejar. Isso acusador a fim de que ele não pudesse corrom­
acarretou o estabelecimento de leis capazes de per os juizes ou as testemunhas21 5.
defender a inocência dos cidadãos. Em Atenas, Já me referi a esta lei ateniense e romana
o acusador que não obtivesse a quinta parte que permitia ao acusado retirar-se antes do
dos votos pagava uma multa de mil dracmas. julgamento.
Ésquines, que acusara Ctesifonte, incorreu
nesta pena212. Em Roma, o acusador injusto 213 Pela lei Remnia. (N. do A.)
21 4 É a primeira letra da palavra Kalumnia na
velha ortografia. Cf. Plínio, Panegyricus, cap.
212 Vede Filostrato, liv. I, Vida dos Sofistas, Vida XXXV.
de Ésquines. Vede também Plutarco e Fócio. (N. do 21 5 Plutarco, no tratado: Como se Poderia Apro­
A.) veitar a Utilidade de seus Inimigos. (N. do A.)

Capítulo XXI

Da crueldade das leis para


com os devedores na república

Um cidadão já adquire uma superioridade Essas leis cruéis contra os devedores muitas
muito grande sobre outro em lhe emprestando vezes colocaram em perigo a república roma­
um dinheiro que esse último só tomou empres­ na. Um homem coberto de chagas evadiu-se da
tado para dele se desfazer, e consequente­ casa de seu credor e apareceu na praça21 8. O
mente, não mais o tem. Que aconteceria se, povo comoveu-se com esse espetáculo. Outros
numa república, as leis aumentassem ainda cidadãos que seus credores não ousavam mais
mais essa servidão? reter saíram de seus calabouços. Fizeram-se-
Em Atenas e em Roma21 6 inicialmente foi Ihes promessas que não foram cumpridas; o
permitido vender os devedores que não esta­ povo retirou-se para o Monte Sagrado. Não
vam em condições de saldar sua dívidas. Em obteve a ab-rogação dessas leis, mas um
Atenas, Sólon corrigiu essa prática: ordenou magistrado que o defendesse219. Saía-se da
que ninguém seria escravizado por dívidas anarquia, acreditava-se mergulhar na tirania;
civis. Mas, em Roma, os decênviros21 7 não Mânlio, para tornar-se popular, ia retirar das
reformaram igualmente essa prática e, apesar mãos dos credores os cidadãos que tinham
de terem diante de seus olhos a regulamen­ sido reduzidos à escravidão220. Sustaram-se
tação de Sólon, não quiseram segui-la. Não é o os desígnios de Mânlio mas o mal sempre per-
único item da Lei das Doze Tábuas em que se durava. Leis particulares concederam aos
vê o desígnio dos decênviros de contrariar o devedores facilidades no pagamento221 e, no
espírito da democracia.
218 Dionísio de Halicarnasso, Antiguidades Ro­
21 6 Muitos vendiam os filhos para pagar dívidas. manas, liv. VI. (N. do A.)
Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.) 219 Instituições dos tribunos do povo.
21 7 Parece, pela História, que essa prática não se 220 Plutarco, Vida de Fúrio Camilo, cap. XVIII.
tinha estabelecido entre os romanos antes da Lei (N. do A.).
das Doze Tábuas. Tito Lívio, Primeira Década, liv. 221 Vede, mais abaixo, o capítulo XXII do Liv.
II, cap. XXIII e XXIV. (N. do A.) XXII. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS II 189

ano 428 de Roma, os cônsules apresentaram horror contra os tiranos que lhe tinha dado a
uma lei222 que suprimiu o direito dos credores desgraça de Lucrécio. Trinta e sete anos22 6
de manter os devedores em servidão nas suas depois do crime infame de Papiro, um crime
casas223. semelhante22 7 fez com que o povo se retirasse
Um usurário chamado Papiro pretendera para o Janículo228 e que a lei feita para a
corromper a pudicícia de um jovem chamado segurança dos devedores readquirisse nova
Públio22 4 que ele mantinha preso. O crime de força.
Sexto22 5deu a Roma a liberdade política; o de Desde essa época, os credores foram antes
Papiro, a liberdade civil. perseguidos pelos devedores por terem violado
Foi do destino desta cidade que novos cri­ leis estabelecidas contra a usura do que os
mes aí assegurassem a liberdade que crimes devedores por não as terem saldado.
antigos lhe tinham ocasionado. O atentado de
Ápio contra Virgínia restabeleceu no povo este 22 6 No ano 465 de Roma. (N. do A.)
22 7 O de Pláucio que atentou contra a pudicícia de
222 Cento e vinte anos depois da Lei das Doze Tá­ Vetúrio, Valério Máximo, liv. VI, cap. I, art. IX.
buas. Eo anno plebi romanae velut aliud initium Não se deve confundir esses,dois acontecimentos.
libertatis factum est, quod necti desierunt. Tito Não se trata das mesmas pessoas nem da mesma
Lívio, liv. VIII, cap. XXVIII. (N. do A.) época. (N. do A.)
223 Bona debitoris, non corpus obnoxium esset. 22 8 Vede um fragmento de Dionísio de Halicar­
Ibid. (N. do A.) nasso, no Extrato das Virtudes e dos Vícios, Epí-
22 4 Ler: Publílio. tome de Tito Lívio, liv. XI e Freinshemius, liv XI.
22 5 Sexto Tarqüínio. (N. do A.)

Capítulo XXII

Das coisas que afetam a liberdade na monarquia

A coisa mais inútil do mundo para o prín­ que sempre se acreditam muito justificados por
cipe tem, frequentemente, enfraquecido a liber­ suas ordens, por um obscuro interesse de Esta­
dade nas monarquias: os comissários nomea­ do, pela escolha que deles se fez e por seus pró­
dos algumas vezes para julgar um indivíduo. prios temores.
Os comissários são tão pouco úteis para o No reinado de Henrique VIII, quando se
príncipe, que não vale a pena que ele modifi­ processava um par, faziam-no ser julgado por
que a ordem das coisas para isso. Ele está comissários escolhidos na câmara dos pares;
moralmente seguro que possui mais espírito de com este procedimento condenaram-se à morte
probidade e de justiça do que seus comissários todos os pares que se quis.

Capítulo XXIII

Dos espiões na monarquia

São necessários espiões na monarquia229? necessária à pessoa pode fazer julgar da infâ­
Não é esta a prática comum dos bons prínci­ mia da coisa. Um príncipe deve tratar com
pes. Quando um homem é fiel às leis, ele está seus súditos com candura, franqueza, confian­
satisfeito com o que deve ao príncipe. Cumpre, ça. Quem tem tantas inquietudes, suspeitas e
ao menos, que ele tenha sua casa para asilo e o
temores é um ator que não está à vontade para
resto de sua conduta em segurança. A espiona­
gem talvez fosse tolerável se pudesse ser exer­ representar seu papel. Quando percebe que as
cida por pessoas honestas, mas a infâmia leis estão de posse de sua força e que são
respeitadas, pode acreditar-se em segurança. O
22 9 Trata-se de espiões operantes no civil e da comportamento geral informa-o sobre o com­
mola da política interna. portamento de todos os particulares. Que não
190 MONTESQUIEU

tenha ele nenhum temor, pois não pode imagi­ pre se imagina que o príncipe teria concedido.
nar quanto se é levado a amá-lo. Ah! E por Mesmo quando das calamidades públicas,
que não seria amado? Ê a fonte de quase todo nunca acusamos sua pessoa; queixamo-nos
bem que se pratica e quase todas as punições daquilo que ele ignora ou nos queixamos de
correm por conta das leis. Aparece sempre ao que ele está confundido pelas pessoas corrom­
povo com um rosto sereno; sua própria glória pidas que o cercam. Se o príncipe soubesse!
a nós se comunica e seu poder sustenta-nos. A — exclama o povo. Essas palavras são uma
prova de que é amado é que se tem confiança espécie de invocação e uma prova da con­
nele, e que, quando um ministro recusa, sem­ fiança que nele se deposita.

Capítulo XXIV

Das cartas anônimas

Os tártaros são obrigados a colocar seu têm motivos para temê-las, e a menor pena que
nome em suas flechas a fim de que se saiba se pode infligir-lhes é não acreditar neles. Só se
quem as lança. Filipe da Macedônia, tendo poderia prestar-lhes atenção nos casos em que
sido ferido durante o cerco de uma cidade, não poderíam sofrer a lentidão da justiça
encontrou no dardo: Aster assestou este golpe comum e nos que concernem à salvação do
mortal em Filipe230. Se os que acusam o fizes­ príncipe. Neste caso pode-se acreditar que
sem visando o bem público, não o acusariam quem acusa fez um esforço que desatou sua
diante do príncipe, que pode ser facilmente língua e a fez falar. Porém, em outros casos,
prevenido, mas diante dos magistrados, que cumpre dizer com o Imperador Constâncio:
têm regras que só são temíveis para os calunia­ “Não poderiamos suspeitar daquele a quem
dores. O fato de não quererem deixar as leis
faltou um acusador quando não lhe faltava um
entre eles e os acusados é uma prova de que
inimigo231”.
230 Plutarco, Obras Morais, Colação de Algumas
Histórias Romanas e Gregas, t. II, pág. 487. (N. do 231 Leg., VI, Cod. Teod. Defamos. libellis. (N. do
A.) A.)

Capítulo XXV

Da maneira de governar na monarquia

A autoridade real é uma grande mola que opinião que o povo tem da moderação do
deve movimentar-se fácil e silenciosamente. Os governo. Um ministro inábil quer sempre vos
chineses louvam um de seus imperadores que advertir de que sois escravos. Mas, se isso
governou, dizem eles, como o céu, isto é, pelo fosse verdade, ele deveria procurar fazer com
seu exemplo. que esse fato fosse ignorado. Ele só sabe escre­
Há casos em que o poder deve agir em toda ver-vos ou dizer-vos que o príncipe está abor­
recido, surpreso, que manterá a ordem. Há
a sua extensão; há outros em que deve agir por uma certa facilidade no comando: é mister que
seus limites. O sublime da administração é o príncipe encoraje e que sejam as leis que
saber exatamente qual é a parte do poder, ameacem232.
grande ou pequena, que se deve empregar nas
diferentes circunstâncias. 232 Nerva, diz Tácito, aumentou a indulgência do
Nas monarquias, toda felicidade consiste na poder. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 191

Capítulo XXVI

De como, na monarquia, o príncipe deve ser acessível

Perceber-se-á isso muito melhor pelos con­ sejam apresentadas petições antes que duas te­
trastes. nham sido apresentadas a seus oficiais. Pode-
“O Czar Pedro I”, relata o Senhor Perry233,
se, em caso de denegação da justiça, apresen­
“fez uma nova ordenança proibindo que lhe
tar-lhe a terceira, mas quem não tiver razão
233 Estado da Grande Rússia, pág. 173, ed. de deverá perder a vida. Desde então, ninguém
Paris, 1717. (N. do A.) apresentou petição ao czar.”

Capítulo XXVII

Dos costumes do monarca

Os costumes do príncipe contribuem tanto desde que os aprecie. Que ganhe o coração
para a liberdade como as leis; ele pode, tal mas não cative o espírito. Que se torne popu­
como as leis, fazer dos homens animais, e dos lar. Deve orgulhar-se do amor de seu súdito
animais, homens. Se ele aprecia as almas mais humilde, pois se trata, sempre, de
livres, terá súditos; se aprecia as almas vis, homens. O povo exige tão pouca consideração,
terá escravos. Quer ele conhecer a suprema que é justo concedê-la; a infinita distância que
arte de reinar? Que traga para junto de si a separa o soberano do povo impede que este úl­
honra e a virtude, que atraia o mérito pessoal. timo o incomode. Exorável à súplica, cumpre
Pode mesmo dar, algumas vezes, atenção aos que seja inflexível quanto às demandas e que
talentosos. Que não tema esses rivais chama­ saiba que seu povo frui de suas recusas e seus
dos homens de mérito, pois são seus iguais, cortesãos de suas graças.

Capítulo XXVIII

Das considerações que os monarcas devem a seus súditos

Cumpre que eles sejam extremamente mode­ insultam, eles humilham mas não desonram;
rados na zombaria. Essa agrada quando é mas os monarcas humilham e desonram.
comedida porque oferece possibilidade de criar O preconceito dos asiáticos é tal, que enca­
familiaridade. Porém uma zombaria ferina ram uma afronta cometida pelo príncipe como
lhes é bem menos permitida do que ao último uma bondade paternal, e tal é nossa maneira
de seus súditos, porque são os únicos que sem­ de pensar, que acrescentamos ao cruel senti­
pre ferem mortalmente. mento da afronta o desespero de nunca poder­
Ainda menos devem dirigir contra um de mos lavá-la.
seus súditos um insulto pesado, pois os monar­ Devem eles ficar encantados por terem súdi­
cas existem para perdoar, para punir, mas tos a quem a honra é mais cara que a vida e
nunca para insultar. não é menos um motivo de fidelidade do que
Quando insultam seus súditos, eles os tra­ de coragem.
tam bem mais cruelmente do que o turco ou o Podem ser lembradas as desgraças ocorri­
moscovita trata os seus. Quando esses últimos das aos príncipes por terem insultado seus sú­
192 MONTESQUIEU

ditos, as vinganças de Quereas, do eunuco rique III, que revelara um de seus defeitos
Narses e do Conde Juliano e, enfim, da Duque­ secretos, atormentou-o durante toda a sua
sa de Montpensier que, indignada contra Hen­ vida.

Capítulo XXIX

Das leis civis capazes de introduzir um


pouco de liberdade no governo despótico

Apesar de ser o governo despótico, em sua Veda entre os hindus, os livros clássicos entre
natureza, o mesmo em toda parte, as circuns­ os chineses. Ó código religioso completa o có­
tâncias, uma opinião religiosa, um precon­ digo civil e fixa o arbitrário.
ceito, exemplos recebidos, uma mudança de Não é inconveniente que, nos casos duvido­
idéias, de maneiras, de costumes, podem, sos, os juizes consultem os ministros da reli­
entretanto, introduzir nele diferenças conside­ gião23 5. Destarte, na Turquia, os cádis consul­
ráveis. tavam os molás23 6, porque, se o caso deve ser
É útil que certas idéias aí sejam estabele­ punido de morte, poderia ser conveniente que o
cidas. Assim, na China, o príncipe é conside­ juiz particular, se há algum, consulte o gover­
rado o pai dos povos e, nos inícios do império nador, a fim de que o poder civil e o eclesiás­
dos árabes, o príncipe era seu pregador23 4. tico sejam também moderados pela autoridade
Convém que haja algum livro sagrado que política.
sirva de regra, como o Alcorão entre os ára­
bes, os livros de Zoroastro entre os persas, o 23 5 História dos Tártaros, III parte, pág. 277, nas
notas. (N. do A.)
23 6 Montesquieu não distingue o molá e o mufti. O
23 4 Os califas. (N. do A.) molá é um juiz de ordem superior.

Capítulo XXX

Continuação do mesmo assunto


Foi o furor despótico que estabeleceu que o que interceder junto a um príncipe em favor de
desfavor do pai acarretaria o dos filhos e o das uma pessoa que caiu em desagrado significa
mulheres. São eles já infelizes sem serem cri­ faltar com o respeito que lhe é devido. Estes
minosos e, aliás, cumpre que o príncipe deixe, príncipes parecem envidar todos os esforços
entre o acusado e ele, suplicantes para abran­ para se despojar da virtude da clemência.
dar sua cólera, ou para esclarecer sua justiça. Arcádio e Honório, na lei239 à qual tanto
Era bom o costume dos Maldivas23 7 que me referi2 40, declaram que não concederão
estabelecia que, quando um senhor caía em nenhuma graça aos que ousarem suplicar em
desfavor, deveria ir todos os dias fazer a corte favor de culpados. Essa lei era bem má pois o
ao rei, até que obtivesse novamente sua graça; era no próprio despotismo2 41.
sua presença desarma a ira do príncipe. Era muito bom o costume da Pérsia que per­
Há Estados despóticos238 em que se pensa mitia, a quem quisesse, abandonar o reino; e,
apesar de que a prática contrária se tenha ori­
23 7 Vede François Pirard. (N. do A.) ginado no despotismo, onde os súditos foram
238 Como atualmente na Pérsia, segundo relato de
Chardin. É uma prática bem antiga. “Encerrou-se
Cavade”, narra Procópio, “no castelo do esqueci­ 239 A lei 5, no Cod. ad leg. Jul. mqj. (N. do A.)
mento. Há uma lei que proíbe referir-se aos que ali 2 40 No capítulo VIII deste livro. (N. do A.)
estão encerrados, e mesmo pronunciar o nome 2 41 Frederico imitou esta lei nas Constituições de
deles.” (N. do A.) Nápoles, liv. 1.
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 193

considerados2 42 escravos, e os que escapa­ 2 42 Há normalmente, nas monarquias, uma lei que
vam, escravos fugitivos, a prática da Pérsia proíbe aos que têm empregos públicos abandonar o
reino sem a permissão do príncipe. Esta lei deve ser
era, entretanto, muito útil ao despotismo, onde estabelecida também nas repúblicas. Mas, nas que
o temor da fuga ou a evasão dos devedores têm instituições singulares, a defesa deve ser geral
paralisa ou modera as perseguições dos paxás para que não se importem costumes estrangeiros.
e dos exatores. (N. do A.)
LIVRO DÉCIMO TERCEIRO
DAS RELAÇÕES QUE A ARRECADAÇÃO DOS TRIBUTOS
E A GRANDEZA DAS RENDAS PUBLICAS
TEM COM A LIBERDADE
Capítulo I

Das rendas do Estado

As rendas do Estado são uma parcela que de, os que, com um espírito inquieto, estavam
cada cidadão dá de seu bem para ter a segu­ na direção dos negócios sob o governo do prín­
rança da outra ou para fruí-la agradavelmente. cipe, julgaram que as necessidades do Estado
Para fixar corretamente essas rendas, cum­ eram as necessidades de suas almas insignifi­
pre considerar as necessidades do Estado e as cantes.
necessidades dos cidadãos. Não se deve tirar A sabedoria e a prudência devem regula­
das necessidades reais do povo para suprir as mentar tão bem como a porção que se retira e
necessidades imaginárias do Estado. a porção que se deixa aos súditos.
Necessidades imaginárias são as exigidas Não é pelo que o povo pode dar que se deve
pelas paixões e fraquezas dos que governam, a medir as rendas públicas mas sim pelo que ele
atração de um projeto extraordinário, o desejo deve dar; e, se as medimos pelo que ele pode
doentio de uma glória inútil e uma certa impo­ dar, é mister que isto seja, pelo menos, segun­
tência do espírito contra os caprichos. Amiú- do o que o povo pode sempre dar.

Capítulo II

De como é raciocinar mal dizer que a grandeza


dos tributos é boa por si mesma

Viu-se, em certas monarquias, como peque­ Seria melhor concluir que eles não eram neces­
nos países, isentos de tributos, eram tão mise­ sários. São todos os miseráveis dos arredores
ráveis quanto os que, à sua volta, estavam que se refugiam nesses lugares para nada
sobrecarregados deles. O principal motivo é fazer; já desencorajados pela sobrecarga do
que o pequeno Estado cercado não pode ter trabalho, fazem da preguiça toda a sua
indústria, artes, nem manufatura, porque é, no felicidade.
que diz respeito a essa questão, prejudicado de O resultado das riquezas de um país é inse­
mil maneiras pelo grande Estado no qual está rir a ambição em todos os corações. O resul­
encravado. O grande Estado que o rodeia tem
tado da pobreza é criar o desespero. A pri­
meira estimula-se no trabalho; o outro
a indústria, as manufaturas e as artes e estabe­
consola-se na indolência.
lece os regulamentos que lhe são favoráveis. O A Natureza é justa com os homens; recom­
pequeno Estado torna-se, portanto, necessaria­ pensa-os de seus sofrimentos; torna-os laborio­
mente pobre, apesar de os impostos arreca­ sos porque atribui as maiores recompensas aos
dados não serem elevados. maiores trabalhos. Porém, se um poder arbi­
Concluiu-se, entretanto, da pobreza desses trário suprime as recompensas da Natureza,
pequenos países que, para que o povo fosse recupera-se a aversão pelo trabalho e a inação
laborioso, eram necessários pesados impostos. parece ser o único bem.
198 MONTESQUIEU

Capítulo III

Dos tributos nos países em que uma


parte do povo é escrava da gleba

A escravidão da gleba estabelece-se, algumas vezes, depois de uma conquista. Neste caso, o
escravo que cultiva deve ser o colono arrendatário do senhor. Somente uma sociedade de perdas
e ganhos pode reconciliar os que estão destinados a trabalhar com os que estão destinados a
desfrutar.

Capítulo IV

De uma república em caso semelhante

Quando uma república reduziu uma nação a acreditava-se que os senhores seriam melhores
cultivar as terras para ela, não se deve permitir cidadãos quando só aspirassem ao que esta­
que o cidadão possa aumentar o tributo do vam acostumados a possuir.
escravo. Isso não era permitido na Lacedemô-
nia; imaginava-se que os heloas2*43 cultiva­ 2 43 Plutarco, Ditos Notáveis dos Lacedemônios*
riam melhor as terras se soubessem que sua (N. do A.)
servidão não seria aumentada ainda mais; * Os helotas, os hilotas.

Capítulo V

De uma monarquia em caso semelhante

Quando, numa monarquia, a nobreza faz os escravos de sua nobreza, cumpre que o se­
cultivar as terras em seu próprio benefício pelo nhor seja fiador2 4 5 do tributo, que o pague
povo dominado, é necessário ainda que o pelos escravos e o recupere desses; e, se não se
censo não possa ser aumentado2 4 4. Demais, é segue essa regra, o senhor e os que arrecadam
conveniente que o príncipe se contente com seu os tributos do príncipe, um após outro, ator­
domínio e com o serviço militar. Mas, se ele mentarão o escravo sucessivamente e o repri­
pretender arrecadar tributos em dinheiro sobre mirão até que ele pereça de miséria ou se refu­
gie nas florestas.
2 4 4 Foi isso que levou Carlos Magno a estabelecer
suas notáveis instituições a esse respeito. Vede o 2 4 5 Isso é praticado assim na Alemanha. (N. do
livro V das Capitulares, artigo 303. (N. do A.) A.)

Capítulo VI

De um Estado despótico em caso semelhante

O que acabo de dizer é ainda mais indispen­ suas terras e de seus escravos não é tão estimu­
sável num Estado despótico. O senhor que lado a conservá-los.
pode a qualquer momento ser despojado de Pedro I, pretendendo imitar a prática da
DO ESPIRITO DAS LEIS II 199

Alemanha e arrecadar seus tributos em dinhei­ e a paga ao czar. Se 0 número de camponeses


ro, estabeleceu um regulamento muito sábio diminui, ele pagará do mesmo modo; se o nú­
mero aumenta, ele não pagará a mais; está
que ainda hoje é observado na Rússia. O
portanto interessado em não vexar seus cam­
gentil-homem cobra a taxa de seus camponeses poneses.

Capítulo VII

Dos tributos nos países onde a


escravidão da gleba não está estabelecida

Num Estado, quando todos os indivíduos Se alguns cidadãos não pagarem bastante, o
são cidadãos, e quando cada um possui por mal não é grande; a abastança deles sempre
seu domínio o que o príncipe possui por seu retornará ao público; se alguns indivíduos
império, pode-se taxar as pessoas, as terras ou pagam muito, a ruína deles voltar-se-a contra
as mercadorias; duas delas ou todas as três. o público. Se o Estado mantém sua fortuna
No imposto sobre a pessoa, a proporção proporcional à dos particulares, o bem-estar
injusta seria a que seguisse exatamente a pro­ dos indivíduos logo fará aumentar a sua. Tudo
porção dos bens. Tinha-se dividido, em Ate­ depende do momento. Para se enriquecer, o
nas2*4 6, os cidadãos em quatro classes. Os que Estado começará empobrecendo os súditos?
extraíam de seus bens quinhentas medidas de Ou esperará que os súditos, à vontade, o enri­
frutos líquidos ou secos pagavam ao público queçam? Caber-lhe-á a primeira vantagem ou
um talento; os que extraíam trezentas medidas a segunda? Começará por ser rico ou termina­
deviam meio talento; os da quarta classe nada rá por sê-lo?
Os direitos sobre as mercadorias são os que
pagavam2 4 7. A taxa era justa, embora não
os povos menos sentem, porque não se lhes faz
fosse proporcional; se não acompanhava a
uma arrecadação formal. Podem eles ser tão
proporção dos bens, acompanhava a propor­
sabiamente manipulados, que o povo quase
ção das necessidades. Julgou-se que cada um
ignorará que os paga. Por isso, é muito impor­
possuía um necessário material igual, que não
tante que quem vende a mercadoria seja quem
devia ser taxado; que o útil vinha em seguida e
pague o direito. Ele saberá muito bem que não
deveria ser taxado, porém menos que o supér­
é ele quem paga e o comprador, que é quem
fluo, e que a grandeza da taxa sobre o supér­
efetivamente paga, o confunde com o preço.
fluo impedia o supérfluo.
Alguns autores disseram que Nero suprimira o
Nas taxas sobre as terras, estabeleciam-se
direito do vigésimo quinto escravo vendi­
listas nas quais incluíam-se as diversas classes do248; entretanto, não fizera ele outra coisa
de fundos. Mas é muito difícil conhecer essas senão ordenar que seria o vendedor que o
diferenças e ainda mais encontrar pessoas que pagaria e não o comprador; este regulamento
não estejam interessadas em desconhecê-las. que conservava todo o imposto pareceu supri-
Há nisso, portanto, duas espécies de injustiças: jni-lo.
a injustiça do homem e a injustiça da coisa. Há dois reinos na Europa em que se lança­
Mas, em geral, a taxa não é muito excessiva; se ram impostos muito elevados sobre as bebi­
se deixa ao povo um necessário abundante, das2 49; num, apenas o cervejeiro paga o direi­
essas injustiças individuais nada significam; to; noutro, eles são arrecadados
mas se, ao contrário, deixa-se ao povo apenas
aquilo de que tem absoluta necessidade para 2 48 Vectigal quoque quintae et vicesimae venalium
viver, a menor desproporção será da maior mancipiorum remissum specie magis quam vi; quia
consequência. cum venditor pendere juberetur, in partem pretii
emptoribus accrescebat. Tácito, Anais, liv. XIII,
cap. XXXI. (N. do A.)
2 4 6 Pólux, liv. VIII, cap. X, art. 130. (N. do A.) 2 49 . . .dois reinos: um, a Inglaterra, e outro, a
2 4 7 Porque eles nada possuíam, eram simples França. Na França, o direito em questão chamava-
assalariados. se “direito de auxílio”.
200 MONTESQUIEU

indiferentemente sobre todos os súditos que as Aliás, para que o cidadão pague, são neces­
consomem. No primeiro, ninguém sente o sárias contínuas sindicâncias em seu estabele­
rigor do imposto; no segundo, ele é conside­ cimento. Nada é mais contrário à liberdade; e
rado oneroso; naquele, o cidadão só sente a os que estabelecem esse tipo de imposto não
liberdade que tem de não pagar; neste, sente têm a felicidade de haver, a esse respeito,
apenas a necessidade que o constrange. encontrado a melhor forma de administração.

Capítulo VIII

Como se conserva a ilusão

Para que o preço da coisa e o direito possam a pena natural, a que a razão exige, que é o
confundir-se na mente de quem paga, cumpre confisco da mercadoria, torna-se incapaz de
que exista alguma relação entre a mercadoria e sustá-la, tanto mais que esta mercadoria, geral­
o imposto e que, sobre um gênero de pouco mente, é de preço muito vil. É preciso, assim,
valor, não se lance um direito excessivo. Há recorrer a penas exageradas, semelhantes às
países em que o direito excede dezessete vezes que se infligem aos maiores crimes. Toda a
o valor da mercadoria2 50. Então o príncipe proporção das penas desaparece. Pessoas2 51
extirpa a ilusão de seus súditos; estes percebem que seriam consideradas simplesmente homens
que são governados de uma maneira que não é perversos são punidas como celeradas; isso é o
correta, o que os leva a sentir sua servidão no que há de mais contrário ao espírito do gover­
mais alto grau. no moderado.
Aliás, para que um príncipe possa arrecadar Acrescento ainda que, quanto mais se propi­
um direito tão desproporcional em relação ao cia ao povo ocasião de fraudar o contratador,
valor da coisa, é mister que ele próprio venda a mais este se enriquece e o povo se empobrece.
mercadoria e que o povo não possa comprá-la Para impedir a fraude, é mister dar ao arrema­
em outro lugar, coisa que está sujeita a mil tante meios de vexações extraordinárias, e
inconvenientes. tudo teria fim.
Sendo a fraude, neste caso, muito lucrativa,
2 51 Pessoas, os contrabandistas de sal, ou burlado-
2 50 Montesquieu refere-se ao imposto do sal, a res dos regulamentos do sal. Eles lotavam as
gabela. galeras.

Capítulo IX

De uma ma espécie de imposto

Falaremos de passagem de um imposto esta­ nhecimentos, estando essas coisas sujeitas a


belecido em alguns Estados sobre as diversas discussões sutis. Assim, o contratador inter­
cláusulas de contratos civis2 52. Para se defen­ preta os regulamentos do príncipe, exerce um
der do contratador, requerem-se grandes co­ poder arbitrário sobre as fortunas. A expe­
riência mostrou que um imposto no papel
2 52 É o direito de controle ou de assento. O direito
de selo, ao qual se refere em seguida, lhe foi simples­ sobre o qual o contrato deve ser redigido seria
mente acrescentado e não o suprimiu. muito melhor.
DO ESPIRITO DAS LEIS II 201

Capítulo X

De como a grandeza dos tributos


depende da natureza do governo

Devem os tributos ser leves no governo ser aumentados nem diminuídos pelos que os
despótico. Se assim não fosse, quem se daria arrecadam. Uma porção sobre os frutos da
ao trabalho de cultivar as terras? Demais, terra, uma taxa por cabeça, um tributo de
como pagar pesados tributos num governo que tanto por cento sobre as mercadorias são os
nada acrescenta àquilo que o súdito deu? únicos convenientes.
No extraordinário poder do príncipe e na É bom, no governo despótico, que os comer­
estranha fraqueza do povo é necessário que ciantes tenham uma garantia pessoal e a prá­
não possa haver equívoco sobre nada. Os tri­ tica os faça respeitar; sem isso, eles seriam
butos devem ser facilmente compreendidos e muito fracos nas discussões que pudessem ter
tão claramente estabelecidos, que não possam com os oficiais do príncipe.

Capítulo XI

Das penas fiscais

É uma particularidade das penas fiscais soas que não são comerciantes. A fraude, entre
serem, contra a prática geral, mais severas na os mongóis, não é punida com o confisco mas
Europa do que na Ásia. Na Europa, confis­ com a duplicação dos direitos. Os prínci­
cam-se as mercadorias e, algumas vezes, inclu­ pes2 5 4 tártaros, que na Ásia habitam as cida­
sive os navios e os meios de transporte; na des, quase nada arrecadam sobre as mercado­
Ásia, não se faz nem uma coisa nem outra. É rias em trânsito. E se, no Japão, o crime de
que na Europa os comerciantes têm juizes que fraude no comércio é considerado crime capi­
podem garanti-los contra a opressão; na Ásia, tal, é porque há motivos para proibir toda
os juizes despóticos são os próprios opresso­ comunicação com os estrangeiros e porque a
res. Que faria um comerciante contra um paxá fraude2 5 5 é, aí, antes uma contravenção às leis
que resolvesse confiscar-lhe as mercadorias? da segurança do Estado do que às leis do
É a vexação que supera a si própria e vê-se comércio.
constrangida a uma certa brandura. Arreca­
da-se, na Turquia, apenas um único direito de 2 5 4 História dos Tártaros, parte III, pág. 290. (N.
entrada; e, depois disso, todo o país está aberto do A.)
aos mercadores. Não implicam falsas declara­ 2 5 5 Necessitando manter um comércio com os
estrangeiros sem se comunicar com eles, escolheram
ções, nem confisco, nem aumento dos direitos. duas nações: a holandesa, para o comércio com a
Na China, não se abrem2 53 os fardos das pes­ Europa, e a chinesa, para o comércio com a Ásia.
Mantêm os corretores e os marinheiros numa espé­
cie de prisão e os atormentam até fazê-los perder a
2 53 Du Halde, t. II, pág. 37. (N. do A.) paciência. (N. do A.)
202 MONTESQUIEU

Capítulo XII

Relação da grandeza dos tributos com a liberdade

Regra geral: pode-se arrecadar tributos mais Mas a regra geral continua válida. Há, nos
elevados, na proporção da liberdade dos súdi­ Estados moderados, uma compensação para o
tos, e é-se forçado a moderá-los na medida em excesso de tributos: é a liberdade. Nos Estados
que a servidão aumenta. Isso sempre aconte­ despóticos2 5 6 há um equivalente para a liber­
ceu e acontecerá sempre. É uma regra extraída dade: a modicidade dos impostos.
da natureza que nunca varia; encontramo-la Em certas monarquias européias encon­
em todos os países, na Inglaterra, na Holanda tramos províncias2 5 7 que, pela natureza de
e em todos os Estados em que a liberdade se seu governo político, estão em melhor situação
vai degradando, até na Turquia. A Suíça pare­ que as demais. Imagina-se sempre que elas não
ce ser uma exceção porque lá não se pagam tri­ pagam o suficiente porque, como resultado da
butos. Não sabemos o motivo específico disso, bondade do governo, poderíam pagar ainda
mas esse país confirma também o que afirmo. mais, e sempre se pensa suprimir-lhes este
Nas suas montanhas estéreis, os víveres são governo, justamente o que produziu este bem
tão caros e o país tão povoado, que um suíço que se comunica, que se propaga longe, e do
paga quatro vezes mais à Natureza do que um qual seria melhor aproveitar.
turco paga ao sultão.
Um povo dominador, como os atenienses e 2 5 6 Na Rússia, eram leves; foram aumentadas
os romanos, pode libertar-se de todo imposto desde que o despotismo se tornou mais moderado.
porque reina sobre nações dominadas. Não Vede a História dos Tártaros, parte II. (N. do A.)
paga, então, na proporção de sua liberdade, 2 5 7 Ospays dÉtats (na França)*. (N. do A.)
•Esses pays dtétats fixavam eles próprios a cota
pois que, nesta questão, não é um povo mas de seu imposto, mas já na época de Luís XIV este
um monarca. direito estava em pleno desuso.

Capítulo XIII

Em que governos os tributos são suscetíveis de aumento

Pode-se aumentar, na maioria das repúbli­ tos porque a moderação do governo pode
cas, os tributos, porque o cidadão, que pensa proporcionar riquezas. É como a recompensa
do príncipe, por causa do respeito que ele tem
estar pagando a si próprio, deseja pagá-los e,
pelas leis.
geralmente, em consequência da natureza do No Estado despótico, não se pode aumentá-
governo, tem-se poder para isso. los, porque não se pode aumentar a própria
Na monarquia, pode-se aumentar os tribu­ servidão.

Capítulo XIV

Como a natureza dos tributos é relativa ao governo

O imposto por pessoa é mais adequado à No governo despótico, é natural que o prín­
servidão; o imposto sobre as mercadorias é cipe não dê dinheiro nem à sua milícia nem
mais adequado à liberdade, porque se rela­ aos nobres mas que distribua terras e, conse­
ciona de modo menos direto à pessoa. quentemente, que poucos tributos sejam arre­
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 203

cadados, porque, se o príncipe dá dinheiro, o dor de todos os particulares. Ele adianta ao


tributo mais natural que poderia arrecadar Estado o direito que o comprador lhe pagará
seria um tributo por pessoa. Este tributo tem algum dia e pagou para o comprador o direito
que ser muito metódico, pois, como não se que pagou pela mercadoria. Percebe-se, por­
pode estabelecer diversas classes de contri­ tanto, que, quanto mais o governo é moderado,
buintes, por causa dos abusos que isso quanto mais o espírito da liberdade reina,
ria, considerando a injustiça e a violência do quanto mais as fortunas estão garantidas, mais
governo, cumpre, necessariamente, ser regula­ fácil é ao comerciante adiantar ao Estado e
mentado de acordo com a taxa que os mais
emprestar aos particulares direitos considerá­
miseráveis podem pagar.
veis. Na Inglaterra, um comerciante empresta
O tributo natural ao governo moderado é o
imposto sobre as mercadorias. Sendo esse realmente ao Estado cinquenta ou sessenta li­
imposto realmente pago pelo comprador, em­ bras esterlinas por cada tonel de vinho recebi­
bora o comerciante o adiante, é um emprés­ do. Que comerciante ousaria fazer coisa seme­
timo que o comerciante já fez ao comprador. lhante num país governado como a Turquia?
Assim, é necessário considerar o negociante E, se ousasse, como poderia fazê-lo, com uma
como o devedor geral do Estado e como o cre­ fortuna instável, incerta e arruinada?

Capítulo XV

Abuso da liberdade

Essas grandes vantagens da liberdade fize­ porque tratam sempre de suas necessidades e
ram com que se abusasse da própria liberdade. nunca das nossas.
Do fato de o governo moderado ter dado admi­ De uma imperdoável negligência, que os
ráveis resultados, abandonou-se essa modera­ ministros desses países2 60 extraem do governo
ção; porque se arrecadaram grandes tributos, e, amiúde, do clima, os povos desfrutam essa
quis-se arrecadá-los em excesso e, desprezan- vantagem de não serem incessantemente esma­
do-se a mão da liberdade que concedia essas gados por novas exigências. As despesas não
dádivas, caminhou-se para a servidão que tudo aumentam porque novos projetos não são fei­
recusa. tos, e, se por acaso são feitos, são projetos dos
A liberdade acarretou o excesso de tributos, quais se vê o fim, e não projetos começados.
mas o efeito desses tributos excessivos é pro­ Os que governam o Estado não o atormentam
porque não atormentam incessantemente a si
duzir, por sua vez, a servidão, é produzir a
mesmos. Mas, para nós, é impossível que algu­
diminuição dos tributos. ma vez tenhamos ordem em nossas finanças
Os monarcas da Ásia quase só proclamam porque sabemos sempre que faremos alguma
editos para isentar de tributos, anualmente, al­ coisa mas nunca o que faremos.
guma província de seu império2 58: as manifes­ Entre nós, não mais se chama de grande
tações de suas vontades são benefícios. Mas, ministro aquele que é um prudente adminis­
na Europa2 59 os editos dos príncipes afligem trador das rendas públicas mas sim aquele que
mesmo antes que deles se tenha conhecimento, é um homem de empreendimentos e que é
capaz de descobrir o que chamamos expedien­
tes.
2 58 É o costume dos imperadores da China. (N. do
A.)
2 59 Na Europa: leia-se “na França”. 2 60 Esses países: os países da Ásia.
204 MONTESQUIEU

Capítulo XVI

Das conquistas dos maometanos


Foram esses tributos2*61 excessivos que pro­ ção que a avareza sutil dos imperadores imagi­
duziram esta estranha facilidade que encon­ nara, viram-se submetidos a um tributo sim­
traram os maometanos em suas conquistas. Os ples, facilmente pago e igualmente cobrado; e
povos, em lugar desta série contínua de vexa- mais felizes obedecendo a uma nação bárbara
do que a um governo corrompido sob o qual
2 61 Vede, na História, a grandeza, a extravagância sofriam todos os inconvenientes de uma liber­
e mesmo o desvario desses tributos. Anastácio ima­
ginou um deles para respirar o ar: ut quisque pro dade que não mais fruíam com todos os horro­
haustu aerispenderei. (N. do A.) res de uma servidão presente.

Capítulo XVII

Do aumento das tropas

Uma nova doença difundiu-se na Europa; força de mantermos soldados, só teremos sol­
atingiu nossos príncipes e fê-los manter um nú­ dados e seremos como os tártaros2 6 4.
mero desordenado de tropas. Ela teve seus Os grandes príncipes, não satisfeitos em
desdobramentos e tornou-se necessariamente comprar as tropas dos mais pequenos265, pro­
contagiosa, porque, logo que um Estado curam de todos os lados comprar aliados, isto
aumenta o que chama suas tropas, os demais é, perder quase sempre seu dinheiro.
subitamente aumentam as suas, de modo que, A consequência de semelhante situação é o
com isso, apenas se alcança a ruína comum. perpétuo aumento dos impostos, o que anula
Cada monarca mantém preparados todos os todos os remédios futuros; não se conta mais
exércitos que deveria manter se seus povos com as rendas, mas faz-se a guerra com seu
estivessem em risco de serem exterminados. E capital. Não é mais um fato inédito ver Esta­
chamamos paz a esses estados de alerta2 62 dos hipotecarem seus fundos durante a própria
de todos contra todos. Nestas condições, a Eu­ paz e utilizarem, para se arruinar, meios que
ropa encontra-se tão arruinada que os indiví­
duos que estivessem na mesma situação em chamam de extraordinários e que são tão
que se encontram as três potências mais excessivos que o filho-família mais estróina
opulentas2 63 dessa parte do mundo não te- mal o imagina.
riam de que viver. Somos pobres com as rique­
zas e o comércio de todo o universo e logo, à 2 6 4 Para isso basta fazer valer a nova invenção das
milícias instituídas em quase toda a Europa e levá-
las ao mesmo excesso a que se levaram as tropas
2 62 É verdade que é principalmente este estado de regulares. (N. do A.)
alerta que mantém o equilíbrio porque esfalfa as 2 6 5 Os mais pequenos: podemos ver aqui uma alu­
grandes potências. (N. do A.) são aos mercenários alemães e suíços, também
2 63 A Inglaterra, a França e a Holanda. empregados por Luís XIV e Luís XV.

Capítulo XVIII

Da isenção de tributos
A máxima dos grandes impérios do Oriente, províncias arruinadas, deveria muito ser imita-
de dispensar do pagamento de tributos as da nos Estados monárquicos. Em alguns, de
DO ESPÍRITO DAS LEIS II 205

fato, ela já existe2 6 6, porém oprime mais do dos. Ocorre com o público a mesma coisa que
que se não existisse, porque, não arrecadando com os indivíduos: arruínam-se quando des­
o príncipe nem mais nem menos, todo o Esta­ pendem exatamente a renda de suas terras.
do torna-se solidário. Para aliviar uma aldeia A respeito da solidez2 6 7 entre os habitan­
que paga com dificuldade, sobrecarrega-se tes da mesma aldeia afirmou-se2 68 que ela
outra que paga melhor; não se restabelece a era razoável porque se podia supor um conluio
primeira, destrói-se a segunda. O povo fica
fraudulento de parte deles; mas de onde se
desesperado entre a necessidade de pagar, o
aprendeu que, baseado em suposições, deve-se
medo das exações, o perigo de pagar e o temor
estabelecer uma coisa injusta por si mesma e
das sobrecargas.
Um Estado bem governado deve colocar, ruinosa para o Estado?
como primeiro artigo de sua despesa, uma
soma regulamentada para os casos inespera- 2 6 7 Solidez, no sentido de “solidariedade”.
2 68 Vede Tratado das Finanças dos Romanos,
cap. II, impresso em Paris, Ed. Briasson, em 1740.
2 6 6 Principalmente na França. (N. do A.)

Capítulo XIX

O que é mais conveniente ao príncipe e ao povo: a arrecadação


por contrato ou a cobrança oficial dos tributos?

A arrecadação oficial é a administração de contratadores. Há uma arte e artifícios para


um bom pai de família que obtém, ele próprio, impedir as fraudes, que os interesses dos
com economia e ordem, suas rendas. contratadores lhes sugerem e que os cobrado­
Pela arrecadação oficial, o príncipe está em res do Estado não saberíam imaginar. Ora,
condições de apressar ou retardar a arrecada­ uma vez estabelecido pelo contratador o siste­
ção dos tributos, de acordo com suas necessi­ ma de arrecadação, pode-se estabelecer com
dades, ou de acordo com as necessidades de êxito a arrecadação oficial. Na Inglaterra, a
seus povos. Pela arrecadação oficial ele poupa administração da acisa2 70 e da renda postal,
ao Estado os imensos lucros dos contratado- como existe atualmente, foi imitada dos con­
res2 69 que o empobrecem de mil maneiras. tratadores.
Pela arrecadação oficial poupa ao povo o Nas repúblicas, as rendas do Estado são
espetáculo das fortunas súbitas que afligem. quase sempre recolhidas em sistema de arreca­
Pela arrecadação oficial, o dinheiro arreca­ dação oficial. O sistema contrário foi um gran­
dado passa por poucas mãos, indo diretamente de vício do governo de Roma2 71. Nos Estados
ao príncipe e, consequentemente, retorna mais despóticos, onde a arrecadação pelo Estado
rapidamente ao povo. Pela arrecadação oficial, existia, os povos são infinitamente mais felizes,
o príncipe poupa ao povo uma infinidade de como os casos da Pérsia e da China o compro­
leis nefastas que a avareza importuna dos vam2 72. Os mais infelizes são os povos dos
contratadores sempre lhe exige, e que mostram
uma vantagem presente nos regulamentos 2 70 Acisa: taxa arrecadada na Inglaterra sobre as
funestos no futuro. bebidas e outros bens de consumo (Littré).
Como quem possui o dinheiro é sempre se­ 2 71 César foi obrigado a suprimir os publicanos da
província da Ásia, estabelecendo aí outra forma de
nhor do outro, o contratador torna-se despó­ administração, como nos revela Dion, liv. XLII,
tico em relação ao próprio príncipe: ele não é cap. VI. E Tácito, Anais, liv. I, cap. LXXVI, rela­
legislador mas força o príncipe a fazer as leis. ta-nos que a Macedônia e a Acaia, províncias que
Augusto deixara ao povo romano e que, consequen­
Confesso que é algumas vezes útil realizar a temente, eram governadas pelo antigo plano, conse­
cobrança inicialmente por intermédio dos guiram estar entre as que o imperador governava
por intermédio de seus oficiais. (N. do A.)
2 72 Vede Chardin, Voyage de Perse, t. VI. (N. do
2 69 Dos contratadores: dos contratadores gerais. A.)
206 MONTESQUIEU

lugares em que o príncipe arrenda seus portos reclamar durante o ano; que haveria um pretor
de mar e suas cidades de comércio. A história estabelecido para julgar suas pretensões, sem
das monarquias está repleta de malefícios formalidade; que os comerciantes não paga­
ocasionados pelos contratadores. riam nada pelos navios2 73. Eis os dias glorio­
Nero, indignado com as vexações dos publi- sos desse imperador.
canos, formou o projeto impossível e magnâ­
nimo de abolir todos os impostos. Ele não ima­ 2 73 Tácito, Anais, liv. XIII, 1.1*. (N. do A.)
ginou a arrecadação oficial. Fez quatro * Ut leges cujusque publici, occultae ad id tempus,
proscriberentur, em outros termos, que as condições
ordenanças: que as leis proclamadas contra os dos arrendamentos feitos pelo Estado aos publica­
publicanos, que até então tinham sido manti­ nos por cada espécie de imposto seriam fixadas
publicamente. É claro que o Sr. de Montesquieu não
das secretas, fossem publicadas; que eles não entendeu a palavra publicum. (Nota de Crévier
poderíam exigir o que tivessem negligenciado reproduzida pela edição Laboulaye.)

Capítulo XX

Dos contratadores

Tudo está perdido quando a profissão lucra­ dades das guerras de cinquenta anos, mas,
tiva dos contratadores consegue, por suas então, essas riquezas foram consideradas ridí­
riquezas, ser uma profissão honrada. Isto pode culas, e nós as admiramos2 7 4.
ser conveniente nos Estados despóticos em Há um prêmio para cada profissão. O prê­
que, amiúde, seu emprego é uma parte das fun­ mio dos que arrecadam os tributos são as
ções dos próprios governantes. Mas não é riquezas, e as recompensas dessas riquezas são
conveniente na república; e algo semelhante as próprias riquezas. A glória e a honra cabem
destruía a república romana. Isso também não a esta nobreza que só conhece, que só vê, que
é melhor na monarquia: nada é mais contrário só sente como verdadeiro bem a honra e a gló­
do que isso ao espírito desses governos. A ria. O respeito e a consideração cabem a esses
mágoa apodera-se de todos os outros Estados; ministros e magistrados que, só encontrando
a honra perde toda a sua consideração, os trabalho sobre trabalho, velam noite e dia pela
meios lentos e naturais de ascensão perdem felicidade do império.
seu prestígio e o governo é afetado em seu
princípio. 2 7 4 Os contratadores receberam muito mal essas
Vimos perfeitamente, em épocas passadas, expressões se bem que Montesquieu pretendesse que
fortunas escandalosas; era uma das calami­ elas não eram dirigidas contra eles.
TERCEIRA PARTE

LIVRO DÉCIMO QUARTO


DAS LEIS NA RELAÇÃO QUE ELAS TEM
COM A NATUREZA DO CLIMA
Capítulo I

Idéia geral

Se é verdade que o caráter do espírito e as paixões do coração são extremamente diferentes nos
diversos climas, as leis devem ser relativas à diferença dessas paixões e à diferença desses
caracteres.

Capítulo II

Como os homens são diferentes nos diversos climas


O ar frio1 comprime as extremidades das fi­ propusermos uma ação ousada, creio que ele
bras externas de nosso corpo; isso aumenta estará muito pouco disposto; sua fraqueza
sua energia e favorece o retorno do sangue das atual desencorajará sua alma; temerá tudo
extremidades para o coração. Ele diminui a porque sentirá que nada pode. Os povos das
extensão2 dessas mesmas fibras; portanto, regiões quentes são tímidos como os anciões;
aumenta também com isso sua força. O ar os das regiões frias são corajosos como os
quente, ao contrário, relaxadas extremidades jovens. Se prestarmos atenção às últimas3
das fibras e as alonga- diminui, portanto, sua guerras, que são as que mais temos sob a vista
força e energia. e nas quais podemos melhor perceber certos
Tem-se, assim, mais,vigor nos climas frios. efeitos superficiais, imperceptíveis de longe,
A ação do coração e a reação das extremi­ perceberemos claramente que os povos do
dades das fibras efetuam-se melhor, os licores Norte, transportados para as regiões do Sul4,
estão em melhor equilíbrio, o sangue é mais aí não praticaram tão belas ações como seus
bem orientado para o coração e, reciproca­ compatriotas que, combatendo em seu próprio
mente, o coração é mais potente. Esta força clima, desfrutavam de toda a sua coragem.
maior deve produzir muitos efeitos. Por exem­ A força das fibras dos povos do Norte faz
plo: mais confiança em si mesmo, isto é, mais com que os sucos mais grosseiros sejam extraí­
coragem; mais conhecimento de sua superiori­ dos dos alimentos. Isso acarreta duas coisas:
dade, isto é, menos desejo de vingança; mais primeiro, as partes do quilo ou da linfa são
certeza de sua segurança, isto é, mais franque­ mais apropriadas, por sua extensa superfície,
za, menos suspeitas, menos política, menos para serem aplicadas sobre as fibras e nutri-
malícia. Enfim, isso deve formar caracteres las; segundo, são elas menos apropriadas, por­
bem diferentes. Colocai um homem num lugar que são grosseiras, a dar uma certa sutileza ao
quente e fechado e ele sofrerá, pelos motivos suco nervoso. Esses povos serão, portanto,
que acabo de expor, um grande enfraquecí-' grandes de corpo e de pouca vivacidade.
mento do coração. Se, nessa circunstância, lhe Os nervos que confinam, de todos os lados,
no tecido de nossa pele formam, cada um, um
1 Isso é mesmo visível: no frio parecemos mais
magros. (N. do A.) 3 As guerras pela sucessão da Espanha. (N. do A.)
2 Sabe-se que ele diminui o ferro. (N. do A.) 4 Na Espanha, por exemplo. (N. do A.)
210 MONTESQUIEU
feixe de nervos. Geralmente, não é todo o Acontece a mesma coisa com a dor; ela é
nervo que é excitado, mas uma parte infinita­ excitada em nós pelo dilaceramento de alguma
mente pequena. Nos países quentes, em que o fibra de nosso corpo. O autor da Natureza
tecido da pele está relaxado, as extremidades estabeleceu que essa dor seria mais forte à me­
dos nervos estão desabrochadas e expostas à dida que as perturbações fossem maiores. Ora,
mais pequena ação dos mais fracos objetos. é evidente que os grandes corpos e as fibras
Nos países frios, o tecido da pele está retraído, grosseiras dos povos do Norte são menos
e os mamilos comprimidos; as minúsculas bor­ capazes de perturbações do que as fibras deli­
las estão, de algum modo, paralisadas; a sen­ cadas das regiões quentes. Naqueles, portanto,
sação quase só atinge o cérebro quando é a alma é menos sensível à dor. É necessário
extremamente forte e quando pertence ao escorchar um moscovita para dar-lhe senti­
mento.
nervo no seu conjunto. Porém é de um número
Com a delicadeza de órgãos que há nas
infinito de pequenas sensações que dependem a
regiões quentes, a alma é soberanamente
imaginação, o gosto, a sensibilidade, a vivaci­ comovida por tudo que diz respeito à união
dade. dos dois sexos; tudo leva a esse objetivo.
Observei o tecido externo da língua de um Nos climas do Norte, a física do amor mal
carneiro na parte em que ela aparece, a olho tem força para se tornar bem sensível. Nos cli­
nu, coberta de mamilos. Vi, com um microscó­ mas temperados, o amor, acompanhado de mil
pio, sobre esses mamilos, pequenos pelos ou acessórios, torna-se agradável pelas coisas que
uma espécie de penugem; entre os mamilos inicialmente parecem ser ele próprio, e que
havia pirâmides, que formavam na extremi­ ainda não o são: nos climas mais quentes,
dade como que pequenos pincéis. E muito pro­ ama-se o amor em si; ele é a única causa da
vável que essas pirâmides sejam o principal felicidade; é a vida.
órgão do paladar. Nos países do Sul, uma máquina delicada,
Mandei gelar a metade dessa língua, e fraca mas sensível, entrega-se a um amor que,
encontrei, a olho nu, os mamilos considera­ num serralho, nasce e acalma-se incessante­
velmente diminuídos; algumas séries dos ma­ mente, ou se entrega a um amor que, deixando
milos tinham mesmo afundado em suas bai­ às mulheres grande independência, está sujeito
nhas. Examinei-lhes o tecido com o a mil perturbações. Nos países do Norte, uma
microscópio e não mais vi as pirâmides. À me­ máquina sadia e bem constituída, mas rude,
dida que a língua se degelava, os mamilos, a encontra seus prazeres em tudo que pode colo­
olho nu, pareceram levantar-se e, no microscó­ car os espíritos em movimento: a caça, as via­
pio, as minúsculas borlas começaram a reapa­ gens, a guerra, o vinho. Encontrareis, nos cli­
recer. mas do Norte5, povos que têm poucos vícios,
Esta observação confirma o que disse: nas muitas virtudes, sinceridade e franqueza.
regiões frias, as borlas nervosas são menos Aproximai-vos dos países do Sul e acreditareis
desabrochadas; entranham-se nas suas bai­ afastar-vos da própria moral: as paixões mais
nhas, onde estão ao abrigo da ação dos objetos ardentes multiplicarão os crimes; cada um
exteriores. As sensações são, portanto, menos procurará tomar sobre os demais todas as van­
vivas. tagens que podem favorecer essas mesmas pai­
Ter-se-á, nas regiões frias, pouca sensibili­ xões. Nas regiões temperadas, vereis povos
dade para os prazeres; ela será maior nas inconstantes em suas maneiras, nos próprios
regiões temperadas; nas regiões quentes, será vícios e em suas virtudes. O clima não possuí
uma qualidade assaz determinada para fixá-los
exagerada. Tal como diferenciamos os climas
em si mesmos.
pelos graus de latitude, poderiamos diferen­
O calor do clima pode ser tão excessivo que
ciá-los, por assim dizer, pelos graus de sensibi­
o corpo ficará totalmente sem força. Então, o
lidade. Assisti a óperas na Inglaterra e na Itá­ desânimo atingirá o próprio espírito; nenhuma
lia; eram as mesmas peças e os mesmos
personagens, mas a própria música produz
efeitos tão diferentes sobre as duas nações: Montesquieu entende por “climas do Norte” a
Inglaterra, a Alemanha e a Holanda; por “países do
uma é tão calma e a outra tão arrebatada, que Sul”, a Itália e a Espanha; a região “temperada” lhe
isso parece inconcebível. é representada pela França.
DO ESPIRITO DAS LEIS III 211

curiosidade, nenhum nobre empreendimento, ceis de sustentar do que a ação da alma, e a


nenhum sentimento generoso; as disposições servidão menos insuportável do que a força do
serão todas passivas; a preguiça será a felici­ espírito que é necessária para conduzir a si
dade; a maioria dos castigos serão menos difí­ mesmo.

Capítulo III

Contradição nos caracteres de certos povos do Sul


Os indianos6 são naturalmente sem cora­ mais que a morte. É a mesma sensibilidade que
gem; os próprios filhos 7 dos europeus nascidos os faz fugir de todos os perigos e os leva a
nas índias perdem a de seu clima. Mas como enfrentar todos.
conciliar isso com suas ações atrozes, seus Como uma boa educação é mais necessária
costumes e penitências bárbaras? Os homens às crianças do que àqueles cujo espírito já atin­
submetem-se a sofrimentos inacreditáveis, as giu a maturidade, da mesma maneira, os povos
mulheres queimam-se a si próprias. Eis tanta desses climas têm mais necessidade de um
força para tanta fraqueza. sábio legislador do que os povos do nosso.
A Natureza, que deu a esses povos uma fra­ Quanto mais fácil e fortemente se é impressio­
queza que os torna timoratos, deu-lhes tam­
nado, mais é importante sê-lo de um modo
bém uma imaginação tão viva, que tudo os
conveniente, não aceitar preconceitos e ser
impressiona excessivamente. Essa mesma deli­
orientado pela razão.
cadeza de órgãos que os faz temer a morte
serve também para fazê-los temer mil coisas No tempo dos romanos, os povos do Norte
da Europa viviam sem arte, sem educação,
6 “Cem soldados europeus”, diz Tavernier, “não
quase sem leis, e, entretanto, apenas pelo bom
teriam grande dificuldade em combater mil solda­ senso relacionado às fibras grosseiras desses
dos indianos.” (N. do A.) climas, eles resistiram, com admirável prudên­
7 Os próprios persas que se estabelecem nas índias cia, contra o poder romano, até o momento em
adquirem, na terceira geração, a indolência e a
covardia indiana. Vede Bernier, Sur le Mogol, t. I, que abandonaram suas florestas para destruí-
pág. 282. (N. do A.) los.

Capítulo IV

Causa da imutabilidade da religião, dos costumes,


das maneiras, das leis, nos países do Oriente
Se, a esta fraqueza de órgãos que faz com que faz com que as leis, os costumes8 e as
que os povos do Oriente recebam as mais for­ maneiras, mesmo as que parecem indiferentes,
tes impressões do mundo, acrescentardes certa como a maneira de vestir, sejam hoje, no
preguiça do espírito, relacionada naturalmente Oriente, semelhantes às de mil anos atrás.
com a do corpo, que faz com que esse espírito
não seja capaz de qualquer ação, de qualquer 8 Vê-se, por um fragmento de Nicolau de Damas­
esforço, de qualquer contenção, compreen­ co, conservado por Constantino Porfirogêneto,
como era antigo o costume oriental de mandar
dereis que a alma, que uma vez recebeu estrangular um governador que desagradava. Esse
impressões, não mais pode modificar-se. Ê isso costume vinha do tempo dos medos. (N. do A.)
212 MONTESQUIEU

Capítulo V
De como os maus legisladores aí são os que se opuseram

Os indianos acreditam que o repouso e o lência do clima, favorecendo-a por sua vez,
nada são o fundamento de todas as coisas e o ocasionou mil males.
fim onde terminam. Consideram eles, portan­ Os legisladores da China12 foram mais sen­
to, a inação completa como o estado mais per­ satos quando, considerando os homens, não no
feito, e o objeto de seus desejos. Dão ao sobe­ tranquilo estado em que diariamente se encon­
rano ser9 o sobrenome de imóvel. Os siameses tram, mas na ação adequada para levá-los a
acreditam que a felicidade10 suprema consiste cumprir seus deveres da vida, fizeram sua reli­
em não ser obrigado a animar uma máquina e gião, sua filosofia e suas leis totalmente práti­
a fazer um corpo agir. cas. Quanto mais as causas físicas levam os
Nesses países, em que o calor excessivo homens ao repouso, mais as causas morais
enerva e desanima, o repouso é tão delicioso e devem afastá-los dele.
o movimento tão penoso, que esse sistema de
metafísica parece natural. Foê11, legislador
11 Foê quer reduzir o coração ao puro vazio.
das índias, obedeceu ao que sentia, quando “Temos oihos e orelhas; mas a perfeição é não ver
pôs os homens num estado extremamente pas­ nem ouvir; uma boca, mãos etc., mas a perfeição é
sivo. Porém sua doutrina, que surgiu da indo- que esses membros estejam na inação.” Isso é tirado
do diálogo de um filósofo chinês, relatado pelo
Padre du Halde, tomo III*. (N. do A.)
à Paramanack. Vede Kircher. (N. do A.) * Foê é o nome chinês do Buda, Sáquia-Múni.
1 0 La Loubère, Relation de Siam, pág. 446. (N. do 12 Os legisladores da China: Confúcio ou os que se
A.) inspiram em sua doutrina.

Capítulo VI

Da cultura das terras nos climas quentes

A cultura da terra é o maior trabalho dos que dão aos príncipes a terra e vedam aos
homens. Quanto mais o clima tende a afastá- cidadãos o espírito da propriedade, aumentam
los desse trabalho, mais a religião e as leis os efeitos perniciosos do clima, isto é, a indo­
devem estimulá-los. Assim, as leis das índias, lência natural.

Capítulo VII

Do monaquismo

O monaquismo acarretou os mesmos males; deles; esta mesma diferença existe na Europa.
surgiu nos países quentes do Oriente, onde não A fim de sobrepujar a preguiça do clima,
se é menos levado à ação do que à especula­
seria preciso que as leis procurassem eliminar
ção.
Na Ásia, o número dos dervixes, ou monges, todos os meios de se viver sem trabalhar; mas,
parece aumentar com o calor do clima. As ín­ no Sul da Europa, elas fazem justamente o
dias, onde o calor é excessivo, estão repletas contrário: oferecem aos que desejam ser indo­
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 213

lentes lugares apropriados à vida especulativa baixo povo. Este perdeu a propriedade dos
e a isso acrescentam riquezas imensas. Essas bens; aquelas recompensam-no pela ociosidade
pessoas, que vivem numa abundância que lhes da qual o fazem desfrutar e o baixo povo chega
é pesada, dão, com razão, seu supérfluo ao a apreciar sua própria miséria.

Capítulo VIII
Bom costume da China

As relações13 da China falam-nos da ceri­ sua profissão e fá-lo mandarim da oitava


mônia1*4 de abertura das terras, feita pelo ordem.
imperador todos os anos. Pretendeu se com Entre os antigos persas1 6, no oitavo dia do
esse ato público e solene estimular1 5 os povos mês, chamado chorrem ruz, os reis abando­
navam seus faustos para comer com os lavra­
à lavragem.
dores. Essas instituições são admiráveis para
Demais, o imperador é, cada ano, infor­ encorajar a agricultura.
mado do lavrador que mais se distinguiu em
1 5 Ven-Ti, terceiro imperador da terceira dinastia,
13 Padre du Halde, Histoire de la Chine, t. II, pág. cultivou as terras com suas próprias mãos e man­
72. (N. do A.) dou a imperatriz e suas mulheres trabalharem com
1 4 Vários reis das índias fazem a mesma coisa. a seda, em seu palácio. Histoire de la Chine. (N. do
Relation du Royaume de Siam, por La Loubère, A.)
pág. 69. (N. do A.) 1 6 Hyde, Religion des Perses. (N. do A.j

Capítulo IX

Meios de encorajar a indústria

Demonstrarei, no livro XIX, que as nações aos lavradores que melhor cultivassem seus
preguiçosas geralmente são orgulhosas. Po- campos, ou aos operários que mais estimu­
der-se-ia voltar o efeito contra a causa e des­ lassem sua indústria. Esta prática será mesmo
vantajosa para toda região. Ela obteve êxito,
truir a indolência pelo orgulho. No Sul da em nossos dias, na Irlanda, com o estabeleci­
Europa, onde os povos dão tanta importância mento de uma das mais importantes manufa­
à honra, seria conveniente oferecer prêmios turas de tecido da Europa.

Capítulo X

Das leis relacionadas com a sobriedade dos povos


Nas regiões quentes, a parte aquosa do san­ líquido semelhante. A água é de uma utilidade
gue dissipa-se facilmente com a transpira­ admirável; os licores fortes aí coagulariam os
ção1 7-, é mister, portanto, substituí-la por um glóbulos18 do sangue que permanecem depois
da dissipação da parte aquosa.
1 7 Bernier, realizando uma viagem do Laore à
Caxemira, escrevia: “Meu corpo é um crivo: mal Nas regiões frias, a parte aquosa do sangue
bebo uma pinta de água, vejo-a sair como orvalho
de todos os meus membros, até a ponta dos dedos;
bebo dez pintas de água por dia, e isso não me 1 8 Há, no sangue, glóbulos vermelhos, partes fibro­
causa mal”. Voyages, de Bernier, t. II, pág. 261. (N. sas, glóbulos brancos, e água, onde tudo isso nada.
do A.) (N. do A.)
214 MONTESQUIEU

exala-se pouco com a transpiração; ela perma­ saúde, seu excesso seja mais severamente puni­
nece em grande abundância. Pode-se, pois, uti­ do do que nos países em que a embriaguez
lizar licores espirituosos sem que o sangue se acarreta poucos malefícios à pessoa e à socie­
coagule. Ele está repleto de humores; os licores dade, não tornando os homens furiosos mas
fortes, que dão movimento ao sangue, podem apenas estúpidos. Assim, as leis21 que punem
aí ser convenientes. um homem embriagado, pela falta que come­
A lei de Maomé que proíbe beber vinho é, teu, aplicam-se unicamente à embriaguez da
assim, uma lei do clima da Arábia; por isso, a pessoa e não à embriaguez da nação. Um ale­
água era, antes de Maomé, a bebida usual dos mão bebe por costume, um espanhol por
árabes. A lei1 9 que proibia os cartagineses de prazer.
beber vinho era também uma lei do clima; Nos países quentes, o relaxamento das fi­
efetivamente, o clima desses dois países é bras produz uma grande transpiração dos lí­
quase o mesmo. quidos, mas as partes sólidas diluem-se menos.
Uma lei semelhante não seria boa nos países As fibras, que possuem apenas uma ação
frios, onde o clima parece forçar uma certa muito fraca e pouca flexibilidade, quase não se
embriaguez da nação, muito diferente daquela desgastam; pouco suco nutritivo basta para
da pessoa. A embriaguez encontra-se estabele­ repará-las. Come-se, portanto, muito pouco
cida por toda a terra, na proporção da frieza e nesses lugares.
da umidade do clima. Caminhai do equador
Foram as diferentes necessidades nos dife­
até nosso pólo e vereis a embriaguez aumentar
rentes climas que formaram as diferentes
de acordo com os graus de latitude. Caminhai
maneiras de viver e são essas diferentes manei­
do mesmo equador ao pólo oposto e encontra­
ras de viver que formaram os diversos tipos de
reis a embriaguez aumentando para o Sul20,
leis. Pois, se numa nação os homens se comu­
tal como deste lado ela avançara para o Norte.
É natural que, nos lugares em que o vinho é nicam22 muito, certas leis são necessárias;
contrário ao clima e consequentemente à para um povo que não se comunica, outro tipo
de lei é necessário.
1 9 Platão, liv. II das Leis, Aristóteles, Do Cuidado
com os Assuntos Domésticos, Hv. I, v. Eusébio, 21 Como estabeleceu Pítaco, segundo Aristóteles,
Prep. Evang., liv. XII, cap. XVII. (N. do A.) Política, liv. II, cap. III. Ele vivia num clima onde a
2 0 Isso se observa entre os hotentotes e os povos da embriaguez não é um vício de nação. (N. do A.)
extremidade do Chile, que se encontram muito perto 22 Se comunicam: possuem numerosas e estreitas
do Sul. (N. do A.) relações. (N. do A.)

Capítulo XI

Das leis que têm relações com as moléstias do clima


Heródoto23 diz-nos que as leis dos judeus Nós mesmos sentimos seus efeitos. As cru­
sobre a lepra foram extraídas da prática dos zadas nos trouxeram a lepra; os sábios regula­
egípcios. Com efeito, as mesmas moléstias mentos adotados impediram-na de alastrar-se
requerem os mesmos remédios. Essas leis, para a massa do povo.
assim como o mal, foram desconhecidas para Vemos, pela lei2 5 dos lombardos, que essa
q& gregos, bem como para os primeiros roma­
moléstia se difundira pela Itália antes das cru­
nos. O clima do Egito e o da Palestina torna-
zadas e mereceu a atenção dos legisladores.
va-as necessárias e a facilidade que essa
Rotaris ordenou que um leproso, expulso de
moléstia tem de se fazer popular2*4 nos deve
sua casa e abandonado num lugar determi­
fazer sentir muito bem a sabedoria e a previ­
nado, não poderia dispor de seus bens porque,
dência dessas leis.
desde o momento que fosse tirado de sua casa,
era classificado como morto. A fim de impedir
23 Liv. II. (N. do A.)
2 4 De se fazer popular: maneira muito singular de
dizer: “de se difundir, de se propagar”. 2 5 Liv. II, tít. I, § 3; e tít. XVIII, § 1. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS III 215

todo contato com os leprosos, cassavam-lhes calamidade penetrou no seio do casamento e já


os direitos civis. havia corrompido a própria infância.
Acredito que essa doença foi trazida para a Como cabe à sabedoria dos legisladores
Itália pelas conquistas dos imperadores gre­ velar pela saúde dos cidadãos, foi muito sensa­
gos, nos exércitos dos quais poderia haver to paralisar esta comunicação por leis feitas
milícias da Palestina ou do Egito. De qualquer sobre o plano das leis mosaicas.
modo, a progressão da doença esteve sustada A peste é um mal cujas devastações são
até a época das cruzadas. ainda mais prontas e rápidas. Sua fonte princi­
Narra-se que os soldados de Pompeu, vol­ pal está no Egito, de onde se dissemina por
tando da Síria, trouxeram uma moléstia quase todo o universo. Fizeram-se, na maioria dos
igual à lepra. Nenhum dos regulamentos esta­ Estados europeus, regulamentos muito bons a
belecidos então chegou até nossos dias, mas fim de impedir sua penetração e, atualmente,
parece que eles existiram porque esse mal este­ imaginou-se um meio formidável para sustá-la:
ve paralisado até o tempo dos lombardos. dispõe-se uma linha de tropas que impede todo
Há dois séculos que uma moléstia, desco­ contato em torno do país infectado.
nhecida de nossos pais, passou do Novo Os turcos2*6, que a esse respeito não exer­
Mundo para este, e veio atingir a natureza hu­ cem qualquer vigilância, vêem os cristãos, na
mana justamente na fonte da vida e dos praze­ mesma cidade, escaparem ao perigo e eles
res. Vimos a maioria das grandes famílias do sozinhos perecerem. Compram as roupas dos
Sul da Europa perecer vitimada por um mal pestilentos, vestem-nas e continuam sua rotina.
que se tornou muito comum para ser vergo­ A doutrina de um destino inflexível que tudo
nhoso e não foi mais que funesto. Foi a sede do determina faz do magistrado um tranquilo
ouro que perpetuou essa moléstia; ia-se inces­ espectador: ele pensa que Deus já fez tudo e
santemente à América e sempre se traziam que nada lhe resta fazer.
novos germes.
Motivos piedosos quiseram exigir que se 2 6 Ricaut, De 1’Empire Ottoman (ed. de 1678, in-
deixasse esta punição para o crime, mas essa 12), pág. 284. (N. do A.)

Capítulo XII

Das leis contra os que se suicidam27

As histórias não nos contam que os roma­ na, independentemente de qualquer outra
nos se fizessem matar sem motivo, mas os causa.
ingleses matam a si próprios sem que se possa Ele parece ser um defeito da filtração do
imaginar qualquer motivo para essa ação; suco nervoso; a máquina, cujas forças motri­
suicidam-se quando se encontram no próprio zes encontram-se sempre sem ação, cansa-se
seio da felicidade. Este ato, entre os romanos, de si mesma; a alma não sente nenhuma dor
era resultado da educação e se relacionava à mas uma certa dificuldade em existir. A dor é
sua maneira de pensar e a seus costumes. Entre um mal localizado que acarreta o desejo de ver
os ingleses, ele é resultado de uma doença28 e cessar esta dor; o peso da vida é um mal que
está relacionado com o estado físico da máqui­
não está situado num local determinado e nos
acarreta o desejo de acabar com esta vida.
2 7 A ação dos suicidas é contrária às leis naturais
e à religião revelada. (N. do A.) Está claro que as leis civis de alguns países
28 Ela poderia muito bem ser complicada com o tiveram motivos para estigmatizar o homicídio
escorbuto que, sobretudo em alguns países, torna o de si mesmo, mas, na Inglaterra, não se pode
homem esquisito e insuportável a si próprio. Voya-
ges, de François Pyrard, parte II, cap. XXL (N. do puni-lo, como não se punem os efeitos da
A.) demência.
216 MONTESQUIEU

Capítulo XIII

Efeitos que resultam do clima da Inglaterra


Numa nação em que uma moléstia do clima enfraquece inclusive pelo hábito de sofrê-los.
afeta de tal maneira a alma, a ponto de causar Este caráter, numa nação livre, seria muito
o desgosto de todas as coisas, até da vida, vê- adequado para embaraçar os projetos da tira­
se bem que o governo que melhor conviría a nia29 que, em seus inícios, é sempre lenta e
essa gente a quem tudo é insuportável seria fraca, como é rápida e viva em seu fim; que,
aquele em que as pessoas não pudessem ligar- inicialmente, mostra apenas uma mão para
se a um só daqueles que causassem seus pesa­ socorrer, oprimindo depois com uma infini­
res e, onde as leis, governando mais do que os dade de braços.
homens, seria necessário, para modificar o A servidão começa sempre pelo sono. Mas
Estado, destruir as próprias leis. um povo que em nenhuma situação encontra
Pois, se a mesma nação também tivesse repouso, que se apalpa incessantemente e
recebido do clima um certo caráter de impa­ encontra todos os lugares dolorosos, não pode­
ciência que não lhe permitisse suportar muito ria adormecer.
tempo as mesmas coisas, vê-se perfeitamente A política é uma lima surda que se consome
que o governo ao qual acabamos de nos referir e chega lentamente a seu fim. Ora, os homens
seria também o mais conveniente. aos quais acabamos de nos referir não pode­
Este caráter de impaciência, em si mesmo, ríam suportar as lentidÕes, os pormenores, o
não é grande, mas pode tornar-se excessiva­ sangue-frio das negociações; nesta questão
mente grande quando a ele se acrescenta a lograriam muito menos êxito do que qualquer
coragem. outra nação e perderíam, por seus tratados, o
Diferencia-se da irresponsabilidade que faz que tivessem obtido por suas armas.
com que se empreenda algo sem motivo e que
seja abandonado da mesma maneira; aproxi­ 2 9 Tomo aqui essa palavra como o desígnio de der­
rubar o governo estabelecido e, principalmente, a
ma-se mais da teimosia porque se origina de democracia. Esta era a significação que lhe confe­
um sentimento dos males, tão vivo, que não se riam os gregos e os romanos. (N. do A.)

Capítulo XIV

Outros efeitos do clima


Nossos pais, os antigos germanos, viviam dobro dessa quantia do joelho para cima. Pa­
num clima em que as paixões eram muito cal­ rece que a lei media a extensão dos ultrajes
mas. Suas leis só encontravam nas coisas o cometidos contra a pessoa das mulheres como
que viam e nada mais imaginavam. E, como se mede uma figura de geometria; não punia os
julgavam os insultos feitos aos homens segun­ crimes da imaginação mas os do olhar. Porém,
do a grandeza dos ferimentos, essas leis igual­ quando uma nação germânica transferíu-se
mente não introduziam complicações nas ofen­ para a Espanha, originou muitas outras leis. A
sas cometidas contra mulheres. A lei30 dos lei dos visigodos proibia aos médicos sangra­
alemães é, a esse respeito, muito singular. Se rem uma mulher ingênua31 a não ser na pre­
alguém descobre a cabeça de uma mulher, sença do pai ou da mãe, do irmão, do filho ou
pagará uma multa de seis soidos; a mesma do tio. A imaginação do povo inflamou-se e a
quantia se descobrir a perna até o joelho; o dos legisladores também. A lei de tudo suspei-
31 Ingênuo, termo jurídico: nascido livre, em opo­
30 Cap. LVIII, §§ 1 e 2. (N. do A.) sição a escravo ou filho de escravo.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 217

tou para um povo que podia suspeitar de tudo. manietar e a apresentar ao marido a esposa
Essas leis concederam, portanto, extrema surpreendida em adultério; permitiam aos
atenção aos dois sexos. Mas parece que, nas filhos3 5 dela acusá-la e torturar seus escravos
punições que infligiram, pensaram mais em para comprovarem sua culpabilidade. Destar­
favorecer a vingança individual do que em
te, foram essas leis mais aptas para refinar
exercer a vingança pública. Assim, na maioria
dos casos, submetiam os dois culpados à servi­ excessivamente certas questões de honra do
dão dos pais ou do marido ofendido. Uma que para estabelecer uma boa polícia. Não nos
mulher32 ingênua, que se entregasse a um devemos admirar se o Conde Juliano acreditou
homem casado, era colocada sob a autoridade que um ultraje dessa espécie exigia a perda de
da esposa, que dela dispunha33 a seu bel-pra­ sua pátria e de seu rei. Não nos devemos
zer. Tais leis obrigavam os escravos3 4 a surpreender se os mouros, com tal semelhança
de costumes, encontraram tanta facilidade em
32 Leis dos Visigodos, liv. III, tít. IV, § 9. (N. do
A.)
se estabelecer na Espanha, em se manterem e
33 Que dela dispunha a seu bel-prazer, entenda-se: aí retardarem a queda de seu império.
“para que a mulher casada dela disponha à sua
vontade’’.
3 4 Ibid., liv. III, tít. IV, § 6. (N. do A.) 3 5 Ibid., liv. III, tít. IV, § 13. (N. do A.)

Capítulo XV

Da diferente confiança que as leis


depositam no povo, segundo os climas
O povo japonês tem um caráter tão atroz, executadas. Elas têm confiado os sobrinhos
que seus legisladores e magistrados não pude­ aos tios, os órfãos aos tutores, como em outras
ram ter nenhuma confiança nele: só lhe colo­ partes são confiados aos pais; regulamentaram
caram diante dos olhos juizes, ameaças e casti­ a sucessão pelo mérito reconhecido do suces­
gos; submeteram-no, a cada passo, à sor. Parece que pensaram que cada cidadão
inquisição da polícia. Essas leis que, em cada devia apoiar-se nas boas qualidades dos
cinco chefes de família, escolhem um magis­ demais.
trado para os quatro outros; essas leis que, Facilmente concedem liberdade38 a seus
para um único crime, punem toda uma família escravos; casam-nos, tratam-nos como se fos­
ou todo um bairro; essas leis que, onde pode sem seus próprios filhos39: clima feliz, que
cria a candura dos costumes e produz a doçura
haver um culpado, não encontram um inocen­
das leis!
te, são feitas para que todos os homens descon­
fiem um do outío, para que cada um investigue
a conduta de outrem e que seja seu inspetor, 3 7 Vede, na décima quarta coletânea das Lettres
Édifiantes, pág. 403, as principais leis ou costumes
testemunha e juiz. dos povos da índia da península de aquém Ganges.
O povo das índias, ao contrário, é afável3 6, (N. do A.)
terno, sensível. Dessa maneira, seus legisla­ 38 Lettres Édifiantes, nona coletânea, pág. 378. (N.
dores têm grande confiança nele. Estabele­ do A.)
39 Acreditara eu que a brandura da escravidão,
ceram poucas3 7 penas e estas são pouco seve­ nas índias, fizera com que Diodoro dissesse que
ras, não sendo mesmo rigorosamente nesse país não havia nem senhor nem escravo; mas
Diodoro atribuiu a toda a índia o que, segundo
Estrabão, liv. XV, só era característico de uma
3 6 Vede Bernier, t. II, pág. 140. (N. do A.) nação determinada. (N. do A.)
LIVRO DÉCIMO QUINTO
COMO AS LEIS DA ESCRAVIDÃO CIVIL
RELACIONAM-SE Ã NATUREZA DO CLIMA
Capítulo I

Da escravidão civil
A escravidão propriamente dita é o estabele a escravidão política, a escravidão civil é mais
cimento de um direito que torna um homem tolerável do que alhures. Cada um deve estar
completamente dependente de outro, que é o assaz contente por ter sua subsistência e sua
senhor40 absoluto de sua vida e de seus bens. vida. Assim, a condição de escravo quase não
A escravidão, por sua natureza, não é boa: não é mais penosa do que a condição de súdito.
é útil nem ao senhor nem ao escravo: a este Mas no governo monárquico, onde é extre­
porque nada pode fazer de forma virtuosa; mamente importante não humilhar ou aviltar a
àquele, porque contrai com seus escravos toda natureza humana, não deve existir a escravi­
sorte de maus hábitos, porque se acostuma, dão. Na democracia, em que todos são iguais,
insensivelmente, a abandonar todas as virtudes e na aristocracia, em que as leis devem envidar
morais, porque se toma orgulhoso, irritável, todos os esforços para que todos sejam tão
duro, colérico, voluptuoso, cruel. iguais quanto a natureza do governo o permi­
Nos países despóticos, em que já se está sob ta, os escravos são contra o espírito da consti­
40 Que é o senhor absoluto: entenda-se: “que este é tuição; só servem para dar aos cidadãos um
o senhor absoluto”. poder e um luxo que não devem ter.

Capítulo II

Origem do direito de escravatura entre os


jurisconsultos romanos
Nunca se acreditaria que a compaixão tives­ ação são rejeitados por todas as nações42 do
se estabelecido a escravidão e que, para isso, mundo.
procedesse de três maneiras 41. ° Não é verdade que um homem livre
2.
O direito das gentes quis que os prisioneiros possa vender-se. A venda supõe um preço;
fossem escravas, para que não fossem mortos. quando o escravo vende a si próprio todos os
O direito civil dos romanos permitia aos deve­ seus bens passam para a propriedade do
dores, que seus credores pudessem maltratar, senhor; o senhor nada paga e o escravo nada
venderem-se a si próprios; e o direito natural recebe. Dir-se-á que existe um pecúlio, mas o
quis que as crianças que um pai escravo não pecúlio é acessório à pessoa. Se não é permi­
mais podia nutrir fossem escravas como seu tido suicidar-se porque isso seria roubar-se à
pai. pátria, também não é permitido vender-se. A
liberdade de cada cidadão é uma parcela da
Esses motivos dos jurisconsultos não são liberdade pública. Esta qualidade, num Estado
razoáveis: popular, constitui mesmo uma parcela da
° É falso que, na guerra, seja permitido
l. soberania. Vender sua qualidade de cidadão é
matar, a não ser em caso de necessidade, e, um ato43 tão extravagante, que não podemos
desde que um homem escravizou outro, não se aceitá-lo num homem. Se a liberdade tem um
pode dizer que ele tenha tido necessidade de preço para quem a compra, não possui preço
matá-lo, pois não o matou. Todo o direito que para quem a vende. A lei civil que permitiu aos
a guerra pode dar sobre os prisioneiros é con­ homens a partilha dos bens não pôde incluir
trolar de tal modo suas pessoas, que não mais
possam causar dano. Os homicídios cometidos 42 Se não se quer citar as que comem seus prisio­
neiros. (N. do A.)
a sangue-frio pelos soldados e após o calor da 43 Refiro-me à escravidão na exata acepção da
palavra, tal como existia entre os romanos e como
41 Instit. de Justiniano, liv. I. (N. do A.) existe em nossas colônias. (N. do A.)
222 MONTESQUIEU

no número dos bens uma parte dos homens Dir-se-á que ela pôde ser-lhe útil porque o
que deviam fazer essa partilha. A lei civil que senhor deu-lhe alimentação. Cumpriría, neste
restitui de acordo com os contratos que. encer­ caso, limitar a escravidão às pessoas que são
ram alguma lesão não pode deixar de restituir incapazes de ganhar a vida. Porém não se de­
contra um acordo que encerra a maior de seja esse tipo de escravos. Quanto às crianças,
todas as lesões. a natureza que deu leite às mães assegurou sua
A terceira maneira é o nascimento. Esta cai
com as outras duas. Pois, se um homem não alimentação e o resto de sua infância está tão
pôde vender a si próprio, ainda menos pode perto da idade em que elas se tomam úteis, que
vender seu filho ainda não nascido. Se um não se poderia dizer que quem as alimentasse,
prisioneiro de guerra não pode ser reduzido à a fim de assenhorear-se delas, desse algo.
escravidão, com muito menos razão os seus A escravidão é, também, tão oposta ao
filhos. direito civil como ao direito natural. Que lei
O que faz com que seja lícito matar um cri­ civil poderia impedir um escravo de fugir, ele,
minoso é o fato de a lei que o pune ser feita em que não participa da sociedade e que, conse­
seu favor. Um assassino, por exemplo, desfru­ quentemente, não é acolhido por nenhuma das
tou da lei que o condena; ela conservou-lhe a
vida a todo instante e ele não pode, portanto, leis civis? O escravo só pode ser retido por
protestar contra ela. Com relação ao escravo, uma lei de família, isto é, pela lei do senhor 4 4.
a situação é diferente: a lei do escravo nunca
pôde ser-lhe útil; em todos os casos ela é con­ 4 4 Montesquieu, observa Laboulaye, “protesta
aqui contra a teoria antiga defendida até ele por
tra ele, sem nunca ser-lhe favorável, o que é Grotius: De Jure Belli et Pacis, liv. V; Bossuet:
contrário ao princípio fundamental de todas as Avertissement aux Protestants; e Locke: Governo
sociedades. Civil, cap. VI, § 9”.

Capítulo III
Outra origem do direito de escravidão
Gostaria também de dizer que o direito de tícios: caranguejos, caracóis, cigarras, gafa­
escravidão surge do desprezo que uma nação nhotos. Os vencedores fizeram disso um crime
tem por outra, desprezo baseado na diferença dos vencidos”. O autor confessa que foi sobre
dos costumes. isso que se fundamentou o direito que tomava
Lopes de Gomara4 5*diz que “os espanhóis os americanos escravos dos espanhóis; além
encontraram perto de Santa Marta cestos em disso, fumavam tabaco e não faziam a barba à
que os habitantes depositavam gêneros alimen- espanhola.
Os conhecimentos tornam os homens come­
4 5 Bibliot. Ingl., t. XVIII, parte II, art. 3. (N. do didos; a razão conduz à humanidade; somente
A.) os preconceitos acarretam a renúncia disso.

Capítulo IV
Outra origem do direito de escravidão
Gostaria também de dizer que a religião dá direito de escravizar tantos povos, pois esses
aos que a professam um direito de reduzir à facínoras, que desejam a todo custo ser facíno­
servidão os que não a professam, a fim de tra­ ras e cristãos, eram muito devotos.
balhar mais facilmente por sua propagação. Luís XIII47 opôs-se tenazmente à lei que
Foi esta maneira de pensar que encorajou os tornava escravos os negros de suas colônias,
destruidores da América em seus crimes46. mas, quando lhe fizeram ver que esta era a via
Foi sobre esta idéia que eles fundamentaram o mais segura para convertê-los, aceitou-a.

4 8 Vede a História da Conquista do México, por 4 7 Padre Labat, Nouveau Voyage aux fies de
Sólis, e da do Peru, por Garcilaso de la Vega. (N. do 1’Amérique, t. IV, pág. 114, ano 1722, in-12. (N. do
A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 223

Capítulo V

Da escravidão dos negros

Se eu tivesse que defender o direito que tive­ Pode-se julgar da cor da pele pela dos cabe­
mos de escravizar os negros, eis o que diria: los, que, entre os egípcios, os melhores filóso­
Tendo os povos da Europa exterminado os fos do mundo, era de tão grande importância,
da América, tiveram que escravizar os da Áfri­ que mandavam matar todos os homens ruivos
ca, a fim de utilizá-los no desbravamento de que lhes caíam nas mãos.
tantas terras.
Uma prova de que os negros não têm senso
O açúcar seria muito caro se não se culti­
comum é que dão mais importância a um colar
vasse a planta que o produz por intermédio de
de vidro do que ao ouro, fato que, entre as
escravos.
nações policiadas, é de tão grande conse­
Aqueles a que nos referimos são negros da
quência.
cabeça aos pés e têm o nariz tão achatado, que
é quase impossível lamentá-los. É impossível supormos que tais gentes
Não podemos aceitar a idéia de que Deus, sejam homens, pois, se os considerássemos
que é um ser muito sábio, tenha introduzido homens, começaríamos a acreditar que nós
uma alma, sobretudo uma alma boa, num próprios não somos cristãos.
corpo completamente negro. Os espíritos mesquinhos exageram muito a
É tão natural considerar que é a cor que injustiça que se faz aos africanos, pois, se ela
constitui a essência da humanidade, que os fosse tal como eles dizem, não teria ocorrido
povos da Ásia, que fazem eunucos, privam aos príncipes da Europa, que estabelecem
sempre os negros da relação que eles têm entre eles tantas convenções inúteis, fazer uma
conosco de uma maneira mais acentuada. delas em favor da misericórdia e da piedade?

Capítulo VI

Verdadeira origem do direito de escravidão

E tempo de procurar a verdadeira origem do de mil escravos, que são importantes comer­
direito de escravidão. Essa deve estar baseada ciantes, que têm também muitos escravos sob
na natureza das coisas. Vejamos se existem suas ordens e estes muitos outros; são herda­
casos em que isso não ocorre. dos e levados ao tráfico. NeSses Estados, os
Em todo governo despótico há grande facili­ homens livres, muito fracos contra o governo,
procuram tomar-se escravos dos que importu­
dade em vender a si próprio: a escravidão polí­
nam o governo.
tica, nesse governo, aniquila de algum modo a
É esta a origem, e de acordo com a razão,
liberdade civil. desse direito de escravidão muito suave que
Perry48 diz que os moscovitas se vendem encontramos em alguns países; ele deve ser
muito facilmente. Conheço exatamente ã suave porque está baseado na livre escolha de
razão: é que sua liberdade não vale nada. um senhor que um homem faz em seu próprio
Em Achim todos procuram vender-se. Al­ benefício, fato que estabelece uma convenção
guns dos principais senhores 4*9 não têm menos recíproca entre as duas partes.

4 8 Estado Atual da Grande Rússia, por Jean Perry. 49 Nova Viagem ao Redor do Mundo, por Dam-
(N. do A.) pier, t. III. (N. do A.)
224 MONTESQUIEU

Capítulo VII

Outra origem do direito de escravidão


Eis outra origem do direito de escravidão, e vos por natureza e o que ele diz pouco prova.
mesmo desta escravidão cruel que vemos entre Creio que, se existem tais escravos, são aque­
os homens. les a que acabo de me referir.
Há países em que o calor enerva o corpo e Mas, como todos os homens nascem iguais,
enfraquece tanto a coragem, que os homens só cumpre dizer que a escravidão é contrária à
efetuam um dever penoso por temor do casti­ natureza, apesar de que, em certos países, ela
go: a escravatura, portanto, choca menos a esteja baseada num motivo natural e é neces­
sário distinguir precisamente esses países da­
razão e, sendo o senhor tão cobarde em rela­
queles em que os próprios motivos naturais os
ção a seu príncipe como o escravo o é a seu
rejeitam, como nos países da Europa, onde ela
respeito, a escravidão civil é, aí, acompanhada foi tão felizmente abolida.
também da escravidão política. Plutarco narra-nos, na vida de Numa, que
Aristóteles50 pretende provar que há escra- na época de Saturno não havia nem senhor
nem escravo. Em nossos climas o cristianismo
50 Política, liv. I, cap. I. (N. do A.) fez renascer essa época.

Capítulo VIII

Inutilidade da escravidão entre nós

Deve-se, portanto, limitar a servidão natural los apreciar sua condição mais do que qual­
a alguns países determinados da terra51. Em quer outra que poderíam ter adquirido.
todos os outros, parece-me que, por mais peno­ Não existe trabalho tão penoso que não se
sos que sejam os trabalhos que a sociedade possa adequar à força de quem o realiza, con­
exige, tudo pode ser feito com homens livres. tanto que seja a razão e não a avareza que o
O que me faz pensar assim é que, antes que regulamente. Pode-se pela comodidade das
o cristianismo tivesse abolido na Europa a ser­ máquinas, que o engenho inventa ou aplica,
vidão civil, consideravam-se os trabalhos nas suprir o trabalho forçado que alhures os escra­
minas como tão penosos, que se acreditava vos eram obrigados a fazer. As minas dos tur­
que eles só poderíam ser efetuados por escra­ cos, no banato de Temesvar, eram mais ricas
vos ou por criminosos. Mas sabe-se atual­ do que as da Hungria mas nunca produziram
mente que os homens nelas empregados vivem tanto, porque os turcos nunca imaginavam
felizes52. Encorajou-se, com pequenos privilé­ outra coisa que o braço de seus escravos.
gios, essa profissão; ao aumento do trabalho Não sei se é o espírito ou o coração que dita
acrescentou-se o do lucro e conseguiu-se fazê- este artigo. Não há lugar na terra em que nao
se possa induzir homens livres ao trabalho.
51 Dito de outro modo: a servidão. Porque as leis eram mal feitas, houve homens
52 Podemos informar-nos do que ocorre, a esse res­
peito, nas minas do Hartz, na Baixa Alemanha, e preguiçosos; porque os homens eram preguiço­
nas da Hungria. (N. do A.) sos, foram escravizados.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 225

Capítulo IX

Das nações em que a liberdade civil


está geralmente estabelecida
Ouvimos dizer diariamente que seria bom dão ter-lhe-iam o maior horror e os homens
que existissem escravos entre nós. mais miseráveis ter-lhe-iam também horror. O
Porém, para apreciar corretamente essa apelo à escravidão é, portanto, o apelo do luxo
questão, cumpre não examinar se eles seriam e da voluptuosidade e não do amor pela felici­
úteis à pequena parte rica e voluptuosa de cada dade pública. Quem duvidaria que cada
nação; é indubitável que lhe seriam úteis. homem, em particular, não ficaria muito con­
Porém, adotando-se outro ponto de vista, não tente de ser senhor dos bens, da honra e da
acredito que nenhum dos que a compõem gos­ vida dos demais e que todas as suas paixões
taria de tirar a sorte para saber quem deveria não despertassem logo com essa idéia? Nessas
formar a parte da nação que seria livre e a que questões, se desejais saber se os desejos de um
seria escrava. Os que mais defendem a escravi­ são legítimos, examinai os desejos de todos.

Capítulo X

Diversos tipos de escravidão

Há duas formas de servidão: a real e a pes­ mônios; eram eles obrigados a todos os traba­
soal. A real é a que prende o escravo à terra. lhos fora da casa e a toda sorte de insultos den­
Eram assim os escravos entre os germanos, tro da casa: esse hilotismo é contrário à
segundo Tácito53. Não tinham nenhuma ocu­ natureza das coisas. Os povos simples pos­
pação na casa; entregavam ao senhor certa suem apenas um escravo real54, porque suas
quantidade de trigo, de gado ou de estofo; o mulheres e filhos encarregam-se dos trabalhos
objeto de sua escravidão não ia mais além. domésticos5 5. Os povos voluptuosos têm um
Esse tipo de servidão existe ainda na Hungria, escravo pessoal, porque o luxo exige o serviço
na Boêmia e em muitas regiões da Baixa de escravos na casa. Ora, o hilotismo reúne,
Alemanha. nas pessoas, a escravidão existente entre os
A servidão pessoal relaciona-se com os povos voluptuosos e a existente entre os povos
encargos da casa e diz mais respeito à pessoa simples.
do senhor.
O abuso excessivo da escravidão ocorre 6 4 “Não podereis”, diz Tácito, Sobre os Costumes
quando ela é, conjuntamente, pessoal e real. dos Germanos, cap. XX, “distinguir o senhor do
Tal era a servidão dos hilotas, entre os lacede- escravo pelas delícias da vida.” (N. do A.)
66 São palavras, de Tácito: Cetera domus officia
úxor ac liberi exequuntur (De Mor. German., cap.
93 De Moribus German., cap. XXV. (N. do A.) XXV).

Capítulo XI

O que as leis devem fazer com relação à escravidão

Porém, qualquer que seja a natureza da dela extirpar, de um lado, os abusos e, de


escravidão, cumpre que as leis civis procurem outro, os perigos.
226 MONTESQUIEU

Capítulo XII

Abuso da escravidão

Nos Estados maometanos5 6, não se é ape­ e não para a voluptuosidade. As leis da pudicí­
nas senhor da vida e dos bens das mulheres cia são do direito natural e devem ser observa­
escravas, como também do que chamamos sua das por todas as nações do mundo.
virtude e sua honra. Constitui uma das desgra­ Ora, se a lei que preserva a pudicícia dos
ças desses países que a maior parte da nação escravos é boa nos Estados em que o ilimitado
não faça outra coisa senão servir à voluptuo- poder diverte-se cruelmente com tudo, quanto
o será nas monarquias? Quanto o será nos
sidade da outra. Esta servidão é recompensada
Estados republicanos?
pela indolência da qual se faz desfrutar tais
Há um dispositivo da lei58 dos lombardos
escravos, fato que constitui ainda nova des­ que parece bom para todos os governos. “Se
graça para o Estado. um senhor ultraja a mulher de seu escravo,
Ê essa indolência que torna os serralhos do ambos tornar-se-ão livres.” Admirável deter­
Oriente.5 7 lugares deliciosos para aqueles mes­ minação para prevenir e sustar, sem muito
mos contra os quais eles são feitos. Pessoas rigor, a incontinência dos senhores.
que não temem senão o trabalho podem encon­ Não considero que os romanos tenham tido,
trar sua felicidade nesses lugares tranquilos. a esse respeito, uma boa polícia. Largaram as
Mas percebe-se que, com isso, afeta-se o pró­ rédeas à incontinência dos senhores; privaram
prio espírito do estabelecimento da escravidão. mesmo suas escravas do direito ao casamento.
Quer a razão que o poder do senhor não se Elas constituíam a parte mais vil da nação;
porém, por mais que o fossem, seria conve­
estenda além das coisas que são de sua função;
niente que tivessem costumes, porque, além do
cumpre que a escravidão seja para a utilidade
mais, ao se lhes vedarem os casamentos,
corrompiam-se os dos cidadãos.
6 6 Vede Chardin, Voyage en Perse. (N. do A.)
5 7 Vede Chardin, t. II, na sua Description du Mar-
ché dlzagour. (N. do A.) 58 Liv. I, tít. XXXII, § 5. (N. do A.)

Capítulo XIII

Perigo do grande número de escravos

O grande número de escravos tem efeitos Entretanto, nos Estados moderados, é muito
diferentes nos diversos governos. No governo importante que não existam muitos escravos.
despótico não é um peso; a escravidão política, A liberdade política torna preciosa a liberdade
estabelecida no corpo do Estado, faz com que civil, e quem for privado dessa última é igual­
pouco se perceba a escravidão civil. Os que mente privado da outra: vê uma sociedade feliz
chamamos homens livres pouco se diferenciam da qual nem mesmo é uma parcela;'encontra
dos que não têm esse título; e os que não têm, sua segurança estabelecida por outros e não
tendo em mãos quase todos os negócios, fazem por ele próprio; sente que seu senhor possui
com que a condição de homem livre e a de uma alma que pode crescer, e que a sua é coa­
escravo muito de aproximem. É, portanto, gida a se rebaixar incessantemente. Nada
quase indiferente que poucas ou muitas pes­ aproxima mais da condição dos animais do
soas vivam na escravidão. que ver sempre homens livres e não o . ser.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 227

Essas pessoas são inimigos naturais da socie­ isso tenha acontecido tão raramente59 nos
dade e sua quantidade seria perigosa. Estados despóticos.
Não nos devemos admirar, portanto, que,
59 A revolta dos mamelucos era um caso particu­
nos governos moderados, o Estado tenha sido lar; tratava-se de um corpo de milícia que usurpara
perturbado pelas revoltas dos escravos e que o império. (N. do A.)

Capítulo XIV

Dos escravos armados


Armar os escravos é menos perigoso na nos; estabeleceram que os libertos61 do fisco
monarquia do que nas repúblicas. Nela, um Triam à guerra, sob pena de serem reduzidos à
povo guerreiro, um corpo da nobreza, conterão servidão; ordenaram que cada godo partici­
bastante esses escravos armados. Na repú­
paria da guerra e armaria a décima62 parte de
blica, os homens que são simplesmente cida­
dãos quase não poderão conter os indivíduos seus escravos. Esse número era pouco conside­
que, de armas nas mãos, se considerarão iguais rável em comparação com o que restava.
aos cidadãos. Demais, esses escravos, levados à guerra por
Os godos, que conquistaram a Espanha, seus senhores, não constituíam um corpo isola­
espalharam-se na região e logo viram-se muito
enfraquecidos. Fizeram três regulamentos no­ do; estavam no exército e permaneciam, por
táveis: aboliram o antigo costume que lhes assim dizer, na família.
proibia60 aliar-se pelo casamento aos roma-
6\ Ibid., liv. V, tít. VII, § 20. (N. do A.)
60 Lei dos Visigodos, liv. III, tít. I, § 1. (N. do A.) 62 Ibid., liv. IX, tít. II, § 9. (N. do A.)

Capítulo XV

Continuação do mesmo assunto

Quando toda a nação é guerreira, os escra­ coisa roubada. Entre os alemães, as coisas que
vos armados são menos temíveis. tinham por princípio a coragem e a força não
Pela lei dos alemães, um escravo que rou­ eram odiosas. Serviam-se de seus escravos na
basse63 uma coisa que tivesse sido guardada
guerra. Na maioria das repúblicas procurou-se
era submetido à pena que se infligiría a um
homem livre; mas, se a roubava 6 4 pela violên­ sempre destruir a coragem dos escravos; o
cia, estava obrigado apenas à restituição da povo alemão, confiante em si próprio, pensava
aumentar a audácia dos seus; sempre armado,
63 Lei dos Alemães, cap. V, § 3. (N. do A.) nada temia deles; eram instrumentos de suas
6 4 Ibid., cap. V, § 5,per virtutem. (N. do A.) pilhagens ou de sua glória.

Capítulo XVI
Precauções a tomar no governo moderado
A benevolência para com os escravos, nos mesmo à servidão, contanto que o senhor não
Estados moderados, poderá prevenir os peri­ seja mais duro que a servidão. Os atenienses
gos que se poderia temer de seu número exces­ tratavam seus escravos com grande brandura e
sivo. Os homens acostumam-se a tudo, e não consta que eles tenham perturbado o Esta­
228 MONTESQUIEU

do de Atenas, como fizeram com o da seriam punidos como assassinos68. Mesmo


Lacedemônia. aquele a quem seu senhor tivesse ordenado69
Sabemos que os primeiros romanos não que o matasse, e que lhe tivesse obedecido,
tiveram inquietações com relação a seus escra­ seria considerado culpado; o escravo que não
vos. Foi somente quando abandonaram com tivesse impedido o suicídio do senhor também
relação a eles todos os sentimentos de humani­ seria punido 70. Se o senhor fosse assassinado
dade que surgiram as guerras civis, que já durante uma viagem, mandava-se matar71 os
foram comparadas à's guerras púnicas 6 5. que estivessem com ele e os que tivessem fugi­
As nações simples, que se ocupam elas pró­ do. Todas essas leis eram pronunciadas
prias do trabalho, são geralmente mais bran­ mesmo contra os que provassem sua inocên­
das para com seus escravos do que as nações
cia; todas essas leis objetivavam criar nos
que a ele renunciaram. Os primeiros romanos
escravos um respeito ilimitado por seu senhor.
viviam, trabalhavam e comiam com seus
escravos. Tratavam-nos com doçura e equida­ Elas não dependiam do governo civil mas de
de; o castigo mais severo que lhes impunham um vício ou de uma imperfeição desse. Não
era mandá-los passar diante de seus vizinhos derivavam da equidade das leis civis, pois
com um pedaço de galho bifurcado nas costas. eram contrárias aos princípios das leis civis.
Os bons costumes bastavam para manter a Eram propriamente baseadas no princípio da
fidelidade dos escravos; não se precisava de guerra, com a diferença de que era no seio do
leis. Estado que estavam os inimigos. O senatus-
Porém, quando os romanos agigantaram-se, consulto Silaniano derivava dos direitos das
quando os escravos não mais foram seus gentes, que querem que uma sociedade, mesmo
companheiros de trabalho mas instrumentos imperfeita, sobreviva.
de seu luxo e de seu orgulho, como não havia É uma desgraça para o governo quando a
mais costumes, necessitou-se de leis. Necessi­ magistratura se vê constrangida desse modo a
tou-se mesmo de leis terríveis para manter a estabelecer leis cruéis. É porque se tornou a
segurança desses senhores cruéis que viviam obediência difícil que se é obrigado a agravar a
entre seus escravos como entre seus inimigos.
pena de desobediência, ou se suspeitar da fide­
Fizeram o senatus-consulto Silaniano e ou­
lidade. Um legislador prudente previne-se da
tras leis6 6, as quais estabeleceram que, quando
infelicidade de se tornar um legislador terrível.
um senhor fosse assassinado, todos os escra­
Foi porque os escravos não puderam ter, entre
vos que se encontrassem sob o mesmo teto, ou
os romanos, confiança na lei que a lei não
num Fligar tão próximo da casa que se pudesse
pôde ter confiança neles.
ouvir a voz de um homem, seriam, indistinta-
mente, condenados à morte. Os que, neste
caso, refugiassem 6 7 um escravo para salvá-lo 68 L. Si quis, § 12, no ff. De senat. consult. Sillan.
(N.do A.)
69 Quando Antônio ordenou a Eros que o matasse,
6 5 “A Sicília”, diz Floro, “mais cruelmente devas­ não lhe estava ordenando que o matasse mas que
tada pela guerra servil do que pela guerra púnica.” matasse a si próprio, porque, se Eros obedecesse,
Liv. III, cap. XIX. (N. do A.) teria sido punido como assassino do senhor. (N. do
6 6 Vede todo o título De senat. consult. Sillan. no A.)
ff. (N. do A.) 70 L. I, § 22, ff. De senat. consult. Sillan. (N. do
6 7 “Refugiar”, no sentido muito ousado e um A.)
pouco estranho de “dar refúgio”. 71 L. I, § 31, ff. ibid., liv. XXIX, tít. V. (N. do A.)

Capítulo XVII

Regulamentos a serem feitos entre o senhor e os escravos

O magistrado deve velar para que o escravo essa questão deve ser regulamentada por lei.
obtenha sua alimentação e sua vestimenta; As leis devem cuidar para que eles sejam
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 229

tratados em suas doenças e na velhice. Cláu­ senhores podiam exigir que fossem vendidos a
dio72 ordenou que os escravos que tivessem outro. Nos últimos tempos, houve uma lei
sido abandonados, quando doentes, por seus semelhante em Roma77. Um senhor irritado
senhores seriam livres se escapassem73. Esta contra seu escravo e um escravo irritado con­
lei assegurava sua liberdade, mas teria sido tra seu senhor deveríam ser separados.
necessário assegurar sua vida. Quando um cidadão maltrata um escravo de
Quando a lei permite ao senhor matar seu outrem, cumpre que este último possa apresen­
escravo, trata-se de um direito que ele deve tar queixa em juízo. As leis78 de Platão e a
exercer como juiz e não como senhor: é mister maioria dos povos proíbem aos escravos a de­
que a lei ordene formalidades que suprimam a fesa natural; é mister, portanto, possibilitar-
suspeita de uma ação violenta. lhes a defesa civil.
Quando, em Roma, não mais foi permitido Na Lacedemônia, os escravos não podiam
aos pais mandar matar seus filhos, os magis­ obter qualquer justiça contra os insultos nem
trados infligiram 7 4 a pena que o pai pretendia contra as injúrias. Sua desgraça era tanta, que
prescrever. Uma prática semelhante entre o se­ eles eram não somente escravos de um cidadão
nhor e os escravos seria razoável nos países como também do público; pertenciam a todos
em que os senhores têm o direito de vida e de e a um só. Em Roma, no dano causado ao
morte. escravo, apenas se considerava o interesse do
A lei de Moisés era bem severa: “Se alguém senhor 79. Confundia-se, sob efeito da lei Aqui-
espancar seu escravo e este morrer em suas liana, o ferimento feito a um animal àquele
mãos, ele será punido; mas, se o escravo sobre­ feito a um escravo; considerava-se apenas a
viver um dia ou dois, não o será, pois trata-se diminuição de seu preço. Em Atenas80, pu-
de seu dinheiro7 5”. Que povo este em que era nia-se severamente, algumas vezes inclusive
preciso que a lei civil se separasse da lei com a morte, quem maltratasse o escravo de
natural! outro. A lei de Atenas, com razão, não queria
Por uma lei dos gregos 7 6, os escravos que acrescentar à perda da liberdade a perda da
fossem tratados muito brutalmente por seus segurança.

72 Xifilim, in Cláudio. (N. do A.) 7 7 Vede a constituição de Antonino Pio. Institui.,


7 3 Se escapassem: se sarassem. liv. I, tít. VII. (N. do A.)
7 4 Vede a lei 3, no Código De Patria Potestade, 7 8 Das Leis, liv. IX. (N. do A.)
que pertence ao Imperador Alexandre [Severo]. (N. 79 Foi também de acordo com o espírito das leis
do A.) dos povos que saíram da Alemanha, como se pode
7 5 Não o será, pois trata-se de seu dinheiro; porque verificar em seus códigos. (N. do A.)
jâ foi assaz punido pela perda de seu dinheiro. 80 Demóstenes, Orat. contra Midiam, seg. ed. de
7 6 Plutarco, Da Superstição. (N. do A.) Francforte (1604), pág. 610.

Capítulo XVIII

Das alforrias
É fácil perceber que quando, no governo As diversas leis e os senatus-consultos que
republicano, se têm muitos escravos, cumpre se fizeram em Roma em favor e contra os
libertar muito. O mal é que, se há muitos escravos, ora para prejudicar, ora para favore­
escravos, eles não podem ser contidos; se há cer as alforrias, mostram quantos obstáculos
muitos alforriados, eles não podem viver e tor- encontraram-se a esse respeito. Houve mesmo
nam-se uma carga para a república, sem con­ períodos em que não se ousou fazer leis. Quan­
tar que esta república pode ser ameaçada, de do, na época de Nero81, demandou-se ao sena­
um lado, por um número muito grande de do permissão para que os proprietários recolo­
libertos e, de outro, por um número muito cassem na servidão os alforriados ingratos, o
grande de escravos. É necessário, portanto, imperador determinou que seria necessário jul-
que as leis considerem esses dois inconve­
nientes. 81 Tácito, Anais, liv. XIII, cap. XXVII. (N. do A.)
230 MONTESQUIEU

gar os casos particulares e não estatuir em Quando existem muitos libertos, cumpre
geral. que as leis civis determinem o que eles devem a
Quase não saberia dizer quais são os regula­ seus proprietários ou que o contrato de alforria
mentos que uma boa república deve estabe­ estabeleça em lugar delas esses deveres.
lecer a esse respeito; isso depende muito das Percebe-se que a condição deles deve ser
circunstâncias. Eis algumas reflexões. mais favorecida no Estado civil do que no Es­
Não se deve conceder, subitamente e por
uma lei geral, um número considerável de tado político, porque, mesmo no governo
alforrias. Sabemos que, entre os volsianos82, popular, o poder não deve cair nas mãos da
os libertos, senhores dos sufrágios, fizeram plebe.
uma abominável lei que lhes outorgava o direi­ Em Roma, onde existiam tantos alforriados,
to de serem os primeiros a dormir com as jo­ as leis políticas, a esse respeito, foram admirá­
vens que se casavam com ingênuos. veis. Deu-se-lhes pouco e não se lhes excluiu
Há diversas maneiras de introduzir insensi­ quase nada. Tiveram efetivamente alguma
velmente novos cidadãos nas repúblicas. As participação na legislação, mas quase não
leis podem favorecer os pecúlios e possibilitar influíam nas resoluções a serem tomadas. Po­
aos escravos comprar sua liberdade; podem diam participar dos cargos e do próprio
estabelecer um prazo para a servidão, como as sacerdócio8 4 mas esse privilégio era, de certo
de Moisés, que limitara em seis anos a dos modo, anulado pelas desvantagens que as elei­
escravos hebreus83. É fácil libertar todos os
ções lhes proporcionavam. Tinham direito de
anos certo número de escravos entre os que,
entrar nas milícias, mas, para ser soldado, era
pela idade, pela saúde, pela engenhosidade, te­
preciso um certo censo. Nada vedava aos
nham meios de vida. Pode-se mesmo cortar o
mal pela raiz: como o grande número de escra­ alforriados8 5 unir-se pelo casamento às famí­
vos está relacionado aos diversos empregos lias ingênuas, mas não lhes era permitido
que lhes são dados, transferir aos ingênuos unir-se às dos senadores. Enfim, seus filhos
uma parte desses empregos significa diminuir eram ingênuos, apesar de eles próprios não o
o número de escravos. serem.
82 Suplemento de Freinshemius, década II, liv. V. 8 4 Tácito, Anais, liv. XIII, cap. XXVII. (N. do A.)
(N. do A.) 8 5 Arenga de Augusto, em Dion, liv. LVI. (N. do
83 Êxodo, cap. XXI. (N. do A.) A.)

Capítulo XIX

Dos forros e dos eunucos

Assim, no governo de muitos, frequente­ qualquer que seja o privilégio que se lhes con­
mente é útil que a condição dos libertos esteja ceda, quase não se pode considerá-los como
pouco abaixo da dos ingênuos e que as leis tra­ libertos, porque, como não podem constituir
balhem para suprimir-lhes a mágoa por sua família, estão, por sua própria natureza, liga­
condição. Mas, no governo de um só, quando dos a uma família e é somente por uma espécie
reina o luxo e o poder arbitrário, nada se pode de ficção que se pode considerá-los cidadãos.
fazer a esse respeito. Os libertos se encontram Entretanto, há países em que se lhes outor­
quase sempre acima dos homens livres; domi­ gam todas as magistraturas. “No Tonquim8 6”,
nam na corte do príncipe e nos palácios dos escreve Dampier8 7, “todos os mandarins civis
poderosos e, como estudaram as fraquezas de e militares eram eunucos.” Não têm família e,
seu senhor mas não suas virtudes, fazem-no
reinar, não por suas virtudes, mas por suas fra­ 8 6 Outrora, a mesma coisa acontecia na China. Os
quezas. Assim eram, em Roma, os alforriados dois árabes maometanos que a percorreram no sé­
culo IX dizem eunuco quando desejam se referir ao
da época dos imperadores. governador de uma cidade. (N. do A.)
Quando os principais escravos são eunucos, 87 Tomo III, pág. 91. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 231

apesar de serem naturalmente avaros, o senhor lado, permite-se-lhes o casamento, porque eles
ou o príncipe aproveitam, no final das contas, têm a magistratura.
de sua avareza. É assim que os sentidos que sobram querem
O mesmo Dampier88 conta-nos que, nesse obstinadamente suprir os que faltam e que os
país, os eunucos não podem passar sem mu­ empreendimentos do desespero são uma espé­
lher e que se casam. A lei que lhes permite o cie de prazer. Destarte, em Milton, este Espí­
casamento só pode estar baseada, de um lado, rito ao qual só restam desejos, compenetrado
na consideração que se tem por gente dessa de sua degradação, quer fazer uso de sua
espécie e, de outro, no desprezo que se vota às impotência.
mulheres. Vemos, na história da China, grande cópia
Assim, confiam-se a essa gente as magistra­ de leis destinadas a vedar aos eunucos os
turas, porque eles não têm família, e, de outro empregos civis e militares; mas eles sempre
retornam. Parece que os eunucos no Oriente
8 8 Tomo III, pág. 94. (N. do A.) são um mal necessário.
LIVRO DÉCIMO SEXTO
COMO AS LEIS DA ESCRAVIDÃO DOMÉSTICA
RELACIONAM-SE COM A NATUREZA DO CLIMA
Capítulo I

Da servidão doméstica

Os escravos são antes estabelecidos para a família do que na família. Assim distinguirei sua
servidão daquela a que estão submetidas as mulheres em alguns países, à qual chamarei propria­
mente de servidão doméstica.

Capítulo II

De como, nos países do Sul, há nos


dois sexos uma desigualdade natural

Nos climas quentes, as mulheres são nú- uma espécie de igualdade introduz-se natural­
beis89* aos oito, nove ou dez anos. Desta mente entre os sexos e, por consequência, exis­
maneira, a infância e o casamento estão quase te a lei que estabelece uma só esposa.
sempre juntos. Aos vinte anos, são velhas; a Nas regiões frias, o uso quase necessário
razão, portanto, nunca se encontra nelas com a das bebidas fortes introduz a intemperança
beleza. Quando a beleza reclama a suprema­ entre os homens. As mulheres, que a esse res­
cia, a razão a recusa; quando a razão poderia
peito têm uma moderação natural, porque
obtê-la, a beleza não mais existe. As mulheres
devem sempre se defender, possuem, portanto,
devem viver na dependência, porque a razão
sobre os homens, a vantagem da razão.
não lhes pode oferecer na velhice um domínio
A Natureza, que distinguiu os homens pela
que a beleza não lhes dera na própria juventu­
de. É, portanto, muito natural que um homem, força e pela razão, não pôs outro limite a seu
quando a religião a isso não se opõe, abandone poder senão o desta força e desta razão; deu
sua mulher para tomar outra, e que a poliga­ ela às mulheres os atrativos e quis que seu
mia apareça. desenvolvimento pusesse fim a seus encantos,
Nos países de clima temperado, em que os mas, nos países quentes, eles só se encontram
encantos femininos conservam-se melhor, em em seus inícios e nunca no curso de sua vida.
que elas se tornam núbeis mais tardiamente e Assim é a lei que não permite que uma mu­
que têm filhos numa idade mais avançada, a lher se adapte mais ao físico do clima da Euro­
velhice do marido, de alguma maneira, acom­ pa do que ao físico do clima da Ásia. Esta é
panha a dela, e, como as mulheres, na época uma das razões que fizeram com que o mao-
em que se casam, têm mais razão e conheci­ metismo encontrasse tanta facilidade em se
mentos, se mais não for porque viveram mais, estabelecer na Ásia e tanta dificuldade em
difundir-se na Europa, que fizeram com que o
89 Maomé desposou Cadija aos cinco anos, dor­ cristianismo se mantivesse na Europa e fosse
miu com ela aos oito. Nas regiões quentes da Ará­ destruído na Ásia, e que, finalmente, levam os
bia e das índias, as jovens são núbeis aos oito anos, maometanos a realizar tanto progresso na
e dão à luz um ano depois. Prideaux, Vie de Maho-
met. Vêem-se mulheres, nos reinos de Argel, parir China e os cristãos tão pouco. Os desígnios
aos nove, dez e onze anos. Laugier de Tassis, His­ humanos estão sempre subordinados a esta
toire du Royaume d’Alger, pág. 61. (N. do A.)* causa suprema, que faz tudo o que quer e que
* Cadija, observa Laboulaye, “tinha quarenta anos se serve de tudo que quiser.
quando desposou Maomé. È Ayescha que o profeta
desposou quando ela apenas tinha seis anos”. Algumas razões particulares a Valenti-
236 MONTESQUIEU

niano90 fizeram-lhe permitir a poligamia no Voltaire. Aliás, Crévier observa, a propósito da


nota que Montesquieu colocou na palavra Valenti-
império. Esta lei, violenta para nossos climas, niano: “Estes historiadores eclesiásticos se reduzem
foi anulada91 por Teodósio, Arcádio e Honó- a Sócrates, mas Sócrates é um escritor muito afas­
rio. tado do tempo de Valentiniano, e Jornandes não fez
mais que copiá-lo. Esta fabulação foi refutada por
Bossuet e por Tillemont, Histoire des Empereurs, t.
90 Vede Jornandes, De Regno et Tempor. Succes., V, nota 28 sobre Valentiniano”.
e os historiadores eclesiásticos. (N. do A.)* 91 Vede a lei 7 do Código De Judaeis et Caelicolis
* Este tom de Montesquieu estranhamente lembra e a nov. 18, cap. V. (N. do A.)

Capítulo III

De como a pluralidade das mulheres


depende muito de sua manutenção
Apesar de nos países em que a poligamia já oportunidade para um grande luxo entre as
se estabeleceu o grande número de mulheres nações poderosas. Nos climas quentes, têm-se
depender estreitamente das riquezas do mari­ menos necessidades92 e custa menos manter
do, não se pode dizer, entretanto, que sejam as uma mulher e filhos. Pode-se, portanto, ter
riquezas que acarretam o estabelecimento da maior número de mulheres.
poligamia num Estado. A pobreza pode produ­
zir o mesmo efeito, como direi ao me referir 92 No Ceilão, um homem vive com dois soidos por
mês; comem-se apenas arroz e peixe. Recueil des
aos selvagens. Voyages qui Ont Servi à fÉtablissement de la Com-
A poligamia é menos um luxo do que uma pagnie des Indes, t. II, parte I. (N. do A.)

Capítulo IV

Da poligamia; suas diversas circunstâncias


Segundo os cálculos feitos em diversos luga­ eles, permite a uma mulher ter vários mari­
res da Europa, nascem mais homens do que dos9 7.
mulheres93; ao contrário, as relações da Mas não creio que existam muitos países em
Ásia9 4 e da África9 5 dizem-nos que lá nascem que a desproporção seja tão grande a ponto de
exigir a introdução da lei de várias mulheres,
mais mulheres do que homens. A lei de uma só
mulher, na Europa, e a que permite várias ou da lei de vários maridos. Isto somente signi­
fica que a pluralidade das mulheres, e inclusive
delas, na Ásia e na África, têm, portanto, uma a pluralidade dos homens, em certos países,
certa relação com o clima. afasta-se menos da Natureza do que em
Nos climas frios da Ásia, nascem, como na outros.
Europa, mais homens do que mulheres. É esta, Confesso que, sendo verdadeiro o que esses
dizem os lamas9 6, a razão da lei que, entre relatos nos contam, isto é, que em Bantam98
há dez mulheres para um homem, teríamos
aqui um caso bem singular de poligamia.
93 Arbutnot considera que, na Inglaterra, o núme­ Nisso tudo, não justifico essas práticas, mas
ro de rapazes excede o de moças; concluir daí que o compreendo-lhes os motivos.
mesmo acontece em todos os climas é um erro. (N.
do A.)
9 4 Vede Kempfer, que nos relata um arrolamento 9 7 Albuzeir-el-Hassen, um dos dois muçulmanos
no Meaco, onde se encontraram 182 072 pessoas do árabes que percorreram as índias e a China no sécu­
sexo masculino e 223 573 do sexo feminino. (N. do lo IX, considera esta prática como uma prostitui­
A.) ção. É que nada impressionava tanto as idéias
9 5 Vede a Viagem à Guiné, de Smith, parte segun­ maometanas. (N. do A.)
da, sobre o país de Anteu. (N. do A.) 98 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
9 6 Du Halde, Mémoires de la Chine, t. IV, pág. 4. l Etablissement de la Compagnie des Indes, t. I. (N.
(N. do A.) do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 237

Capítulo V

Motivo de uma lei do Malabar

Na costa do Malabar, na casta dos naires", costume. Os naires constituem a casta dos
os homens só podem ter uma mulher, e essa nobres, que são os soldados de todos esses
pode, pelo contrário, possuir vários maridos. povos. Na Europa, impede-se o casamento dos
Creio que se pode descobrir o motivo desse soldados. No Malabar, onde o clima exige
ainda mais, contentou-se em tornar-lhes o
99 Voyages, de François Pyrard. cap. XXVII, Let­ casamento tão pouco embaraçoso quanto pos­
tres Édifiantes, terceira e décima coleções sobre o sível: deu-se uma mulher a vários homens,
Maleami na costa do Malabar. Isso é considerado coisa que diminui outro tanto o apego à famí­
como um abuso da profissão militar e, como diz
Pyrard, uma mulher da casta dos brâmanes nunca lia e aos cuidados do lar, e deixa a essas pes­
desposaria vários maridos. (N. do A.) soas o espírito militar.

Capítulo VI

Da poligamia em si mesma

Considerando-se a poligamia em geral, luxúria e a avareza: sua sede aumenta pela


independentemente das circunstâncias que aquisição de tesouros.
podem fazê-la um pouco mais tolerável, ela Na época de Justiniano, vários filósofos,
não é útil ao gênero humano, nem a ambos os constrangidos pelo cristianismo, refugiaram-se
sexos, seja o que abusa, seja o de quem se na Pérsia junto de Cósroes. O que mais os
abusa. Não é igualmente útil para os filhos e 101, foi que a poliga­
espantou, conta Agatias100
um dos seus grandes inconvenientes é que o mia era permitida a pessoas que nem mesmo se
pai e a mãe não podem ter a mesma afeição abstinham do adultério.
pelos filhos; um pai não pode amar vinte filhos A pluralidade das mulheres, quem o diria!,
da mesma maneira como uma mãe ama dois. acarreta este amor que a Natureza desaprova.
Pior quando uma mulher tem vários maridos É que uma devassidão sempre engendra outra.
porque, então, o amor paternal só se baseia na Na revolução que atingiu Constantinopla
opinião na qual um pai pode crer, se quiser, ou quando o Sultão Achmet102 foi deposto, os
na qual outros podem crer, que certos filhos relatos narravam que, tendo o povo pilhado a
lhe pertencem. casa do chiaia, lá não encontrou uma só
Diz-se que o rei do Marrocos possui, em seu mulher. Diz-se que, em Argel103, na maioria
serralho, mulheres brancas, negras e amarelas. dos serralhos não há mulheres.
Infeliz! Mal tem necessidade de uma só cor!
A posse de muitas mulheres nem sempre 101 Da Vida e das Ações de Justiniano, pág. 403.
evita os desejos1 00 pela de outrem. É como a (N. do A.)
102 Foi em 1730 que os janízaros depuseram o
Sultão Achmet. Quanto ao “chiaia”, trata-se do
100 E isto que faz com que, no Oriente, se escon­ funcionário principal do padixá.
dam com tanto cuidado as mulheres. (N. do A.) 103 Laugier de Tassis, Histoire d 'Aiger. (N. do A.)
238 MONTESQUIEU

Capítulo VII

Da igualdade do tratamento no caso


da pluralidade de mulheres
Da lei da pluralidade das mulheres decorre A lei de Moisés105 determina mesmo que,
a da igualdade do tratamento. Maomé, que se alguém casa o filho com uma escrava, des-
posando posteriormente uma mulher livre,
permite quatro, quer que tudo seja igual entre nada seja suprimido das vestimentas, da
elas: alimentação, trajes, deveres conjugais. alimentação e dos deveres da escrava. Podia-se
Esta lei existe igualmente entre as Maldi- dar mais à nova esposa, mas cumpria que a
vas1 0 4, onde se pode desposar três mulheres. primeira não tivesse menos.

10 4 Vovages, de François Pyrard, cap. XII. (N. do 105 Êxodo, cap. XXI, versículos 10 e 11. (N. do
A.) A.)

Capítulo VIII

Da separação entre as mulheres e os homens

Uma das consequências da poligamia, nas inútil. Nesses países, em lugar de preceitos, são
nações voluptuosas e ricas, é a existência de necessários ferrolhos.
Um livro clássico106 da China considera
um número excessivo de mulheres. Seu isola­
um prodígio de virtude um homem encontrar-
mento dos homens e sua reclusão originam-se se sozinho com uma mulher num cômodo afas­
naturalmente desse número excessivo. A tado sem lhe causar violência.
ordem doméstica assim o exige; um devedor
insolvente procura pôr-se ao abrigo das perse­ 10 6 “Encontrar, num lugar ermo, um tesouro do
guições dos credores. Há climas em que o físi­ qual se seja o dono, ou uma bela mulher sozinha em
seu cômodo afastado; ouvir a voz de seu inimigo
co tem tal força, que a moral quase nada pode. que perecerá se não for socorrido: admirável pedra
Deixai um homem com uma mulher; as tenta­ de toque.” Tradução de uma obra chinesa sobre a
moral, do Padre du Halde, t. III, pág. 151. (N. do
ções serão quedas, ataque seguro, resistência A.)

Capítulo IX

Relação do governo doméstico com o político

Numa república, a condição dos cidadãos é encontrado dificuldade em estabelecer-se no


limitada, igual, branda, moderada; tudo sofre Oriente.
as consequências da liberdade pública. O Ao contrário, a servidão das mulheres está
domínio sobre as mulheres não poderia ser tão muito de acordo com o espírito do governo
bem exercido e, quando o clima exigiu esse despótico, que se compraz em abusar de tudo.
domínio, o governo de um só tem sido o mais Destarte, viu-se, em todas as épocas, na Ásia,
conveniente. Eis uma das razões que fizeram a servidão doméstica e o governo despótico
com que o governo popular sempre tivesse marcharem de mãos dadas.
DO ESPIRITO DAS LEIS III 239

Num governo em que se exige, sobretudo, dade de espírito e as indiscrições, as inclina­


tranquilidade, e onde a subordinação extrema ções ou as aversões de nossas mulheres, suas
chama-se paz, é mister enclausurar as mulhe­ grandes e pequenas paixões se encontrassem
res; suas intrigas seriam fatais ao marido. Um transplantadas a um governo do Oriente, com
governo que não tem tempo de examinar a a atividade e esta liberdade que existe entre
conduta dos súditos a considera suspeita, uni­ nós: qual o pai de família que poderia estar um
camente pelo que ela aparenta e pelo que faz momento sossegado? Em toda parte, pessoas
sentir. suspeitas; em toda parte, inimigos. O Estado
Suponhamos, um momento, que a levian­ seria abalado, ver-se-iam correr rios de sangue.

Capítulo X

Princípio da moral do Oriente

No caso da multiplicidade de mulheres, Não se pode dizer o mesmo das índias, onde
quanto mais a família deixa de ser una, mais as o número infinito de ilhas e a situação do solo
leis devem reunir num centro essas partes dividiram-na em uma infinidade de pequenos
desgarradas, e, quanto mais diferentes são os Estados que grande número de causas (que
interesses, mais é necessário que as leis os não tenho tempo para expor) tornou despóti­
reconduzam a um único interesse. cos.
Isso se faz principalmente pela clausura. As Nesse país, existem apenas miseráveis que
mulheres devem não somente estar separadas pilham e miseráveis que são pilhados. Os que
dos homens pela clausura da casa, como se chamam poderosos têm apenas muito pou­
devem também ficar separadas nesta própria cos recursos; os que se chamam ricos mal têm
clausura, de modo que elas aí se estabeleçam para a sua subsistência. A clausura das mulhe­
como uma família particular dentro da família. res não pode ser tão rigorosa; não se pode
Disso deriva, para as mulheres, toda prática da tomar grandes precauções para contê-las; a
moral: o pudor, a castidade, o silêncio, a paz, a corrupção dos seus costumes é inimaginável.
dependência, o respeito, o amor, enfim, uma É nisso que vemos até que ponto os vícios
orientação geral de sentimentos, a melhor por do clima, deixados em grande liberdade,
sua natureza, que é o apego exclusivo à podem acarretar a desordem. É nisso que a
família. Natureza tem uma força e o pudor uma fra­
As mulheres têm, naturalmente, que cumprir queza que não podemos compreender. Em
tantos deveres que lhes são próprios, que não Patane108, a lubricidade109 das mulheres é
se pode separá-las muito de tudo quanto lhes
poderia dar outras idéias, de tudo o que diz 1 0 7 Há, aqui, muito de sistema, muito de otimis­
respeito às distrações, e tudo a que chamamos mo, e talvez um pouco de ironia. Atentar ainda para
negócios. o fato de que Montesquieu utiliza também fontes
muito duvidosas, como essas coletâneas de viagens
Encontramos, no Oriente, costumes mais da Companhia das índias, que citará mais abaixo.
puros à medida que a clausura das mulheres é 10 8 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, t. II,
mais rigorosa. Nos grandes Estados há, neces­ parte II, pág. 196. (N. do A.)
sariamente, grandes senhores. Quanto mais 109 Nas Maldivas, os pais casam as filhas com dez
poderosos, mais estão eles em condições de e onze anos, porque é um grande pecado, explicam
eles, deixá-las suportar a necessidade de homens.
manter as mulheres numa rigorosa reclusão e Voyages, de François Pyrard, cap. XII. Em Ban-
impedi-las de entrar na sociedade. É por isso tam, logo que uma jovem completa treze ou catorze
que, nos impérios turco, persa, mogol, chinês e anos, cumpre casá-la, se não se quer que ela leve
uma vida devassa. Recueil des Voyages qui Ont
japonês, a conduta das mulheres é admirá­ Servi à lÉtablissement de la Compagnie des Indes,
vel10 7. pág. 348. (N. do A.)
240 MONTESQUIEU

tão grande, que os homens são constrangidos a 110 Viagem na Guiné, segunda parte, pâg. 192, da
utilizar certas guarnições para se protegerem tradução. “Quando as mulheres”, escreve ele, “en­
contram um homem, agarram-no e ameaçam
de suas investidas. Segundo Smith110, as coi­ denunciá-lo a seu marido, no caso de serem despre­
sas não são melhores nos pequenos reinos dá zadas. Elas enfiam-se na cama de um homem, acor-
Guiné. Parece que, nesses países, os dois sexos dam-no e, se ele as recusa, ameaçam-no com o
perdem até mesmo suas próprias leis. flagrante.” (N. do A.)

Capítulo XI

Da servidão doméstica independente da poligamia

Não é somente a pluralidade de mulheres calmas, pouco ativas, pouco requintadas, onde
que exige, em certos lugares do Oriente, sua o amor tem sobre o coração um domínio tão
clausura: é o clima. Os que lerem os horrores, controlado, que a menor vigilância basta para
os crimes, as perfídias, as atrocidades, as peço-
orientá-las?
nhas, os assassínios que a liberdade das mulhe­
É uma felicidade viver nesses climas que
res ocasionou em Goa e nos estabelecimentos
portugueses nas índias, onde a religião só per­ permitem que nos comuniquemos111, onde o
mite uma esposa, e os que compararem isso à sexo que possui mais atrativos parece adornar
inocência e à pureza dos costumes das mulhe­ a sociedade, e onde as mulheres, reservando-se
res na Turquia, na Pérsia, no Mogol, na China para os prazeres de um único homem, servem
e no Japão, perceberão que é, amiúde, neces­
também para o entretenimento de todos112.
sário separá-las dos homens, tanto quando se
tem uma mulher como quando se têm várias.
É o clima que deve decidir as coisas. De que 111 Que nos comuniquemos: que vivamos em rela­
serviría enclausurar as mulheres nos nossos ções contínuas. Vede, mais acima, a nota 22, do
livro XIV.
países do Norte, em que seus costumes são 112 Isto convém admiravelmente à França do
naturalmente bons e onde todas as paixões são tempo de Montesquieu... e de outras épocas.

Capítulo XII

Do pudor natural

Todas as nações estão concordes em despre­ ela a viola. A modéstia e a moderação é que
zar a incontinência das mulheres; é que a lhe obedecem.
Natureza falou a todas as nações. Ela estabe­ Aliás, é da natureza dos seres inteligentes
leceu a defesa e o ataque e, tendo posto nos perceber suas imperfeições; assim, a Natureza
dois lados o desejo, colocou num a temeridade colocou em nós o pudor, ou seja, a vergonha
e, noutro, a vergonha. Deu aos indivíduos, de nossas imperfeições.
Deste modo, quando a força física de certos
para se conservar, longos períodos de tempo e, climas viola a lei natural dos dois sexos e a dos
para se perpetuar, só lhes deu momentos. seres inteligentes, cabe aos legislador estabe­
Portanto, não é verdade que a incontinência lecer as leis que vençam a natureza do clima e
obedeça às leis da Natureza; pelo contrário, restabeleçam as leis primitivas.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 241

Capítulo XIII

Do ciúme

É mister distinguir claramente, entre os maneiras da nação, às leis do país, à moral e,


povos, o ciúme .da paixão e o ciúme do hábito, algumas vezes mesmo, à religião113.
dos costumes, das leis. O primeiro é uma febre Ele é quase sempre resultado da força física
ardente que devora; o outro, frio mas algumas do clima e o remédio desta força física.
vezes terrível, pode aliar-se à indiferença e ao
desprezo. 113 Maomé recomendou a seus sectários que guar­
dassem suas mulheres. Um certo imame, ao morrer,
Um, abuso do amor, nasce do próprio amor. diz a mesma coisa e Confúcio não pregou menos
O outro atém-se unicamente aos costumes, às esta doutrina. (N. do A.)

Capítulo XIV

Do governo da casa no Oriente

Muda-se tão frequentemente de mulheres no Chardin, “dão-se às mulheres suas roupas


Oriente, que elas não podem ter o governo como se fossem crianças.” Assim, este cuidado
doméstico; os eunucos encarregam-se disso. que parece lhes convir tão bem, este cuidado
Entregam-se-lhes todas as chaves e eles dis­ que, em todos os outros lugares, é o primeiro
põem dos negócios da casa. “Na Pérsia”, diz de seus cuidados, não lhes diz respeito.

Capítulo XV

Do divórcio e do repúdio

A diferença entre o divórcio e o repúdio é gens dos encantos da juventude nas mulheres
esta: efetua-se o divórcio por um mútuo que, em idade avançada, um marido se com­
consentimento quando de uma incompatibi­ porte bondosamente à lembrança de seus
lidade mútua, enquanto o repúdio se efetua prazeres.
pela vontade e em favor de uma das duas par­ Constitui, portanto, uma regra geral que, em
tes, independentemente da vontade e da vanta­ todos os países onde a lei concede aos homens
gem da outra. a faculdade de repudiar, deva ela também ser
Repudiar é algumas vezes tão necessário às concedida às mulheres. Demais, nos climas em
que as mulheres vivem em escravidão domés­
mulheres e lhes é sempre tão desagradável
tica, parece que a lei deve permitir às mulheres
fazê-lo, quanto é dura a lei que outorga esse
o repúdio e aos maridos somente o divórcio.
direito aos homens sem outorgá-lo às mulhe­ Quando as mulheres vivem no serralho, o
res. Um marido é o senhor do lar; ele possui marido não pode repudiar por causa da incom­
mil maneiras para manter ou reconduzir suas patibilidade dos costumes; a culpa cabe ao
mulheres ao dever e parece que, em suas mãos, marido, se os costumes são incompatíveis.
o abuso não passa de um novo abuso do seu O repúdio com base na esterilidade da mu­
poder. Porém, a mulher que repudia utiliza lher só teria sentido na monogamia11 4: quan-
apenas um triste remédio. Sempre é para ela
uma grande desgraça ser constrangida a pro­ 11 * Isto não significa que o repúdio, sob alegação
curar novo marido, quando perdeu a maioria de esterilidade, seja permitido no cristianismo. (N.
de seus atrativos com outro. É uma das vanta­ do A.)
242 MONTESQUIEU

do há muitas esposas, este motivo não tem to, ao passo que a lei das Maldivas parece
nenhuma importância para o marido. menosprezar igualmente o casamento e o
A lei das Maldivas11 5 permite retomar uma repúdio.
mulher que se repudiou. A lei do México11 6 A lei do México apenas concedia o divórcio.
proibia, sob pena de morte, a reconciliação. A Era uma nova razão para não permitir que
lei do México era mais sensata do que a das casais, voluntariamente separados, tornassem
Maldivas; no mesmo momento da dissolução a sê reunir. O repúdio parece adequar-se mais
ela pensava na indissolubilidade do casamen- ao arrebatamento do espírito e a alguma pai­
xão da alma; o divórcio parece mais fruto da
11 5 Voyages, de François Pyrard. Teve preferência
reflexão.
sobre outra porque, neste caso, era preciso menos
O divórcio tem, comumente, grande utili­
despesas. (N. do A.) dade política e, no que concerne à utilidade
11 6 História de Sua Conquista, por Sólis, pág. 49. civil, ele é estabelecido para o marido e para a
(N. do A.) mulher, e nem sempre é favorável aos filhos.

Capitulo XVI

Do repúdio e do divórcio entre os romanos

Rômulo permitiu ao marido repudiar a es­ Para conceder o divórcio, a lei não exigia
posa se ela tivesse cometido adultério, prepa­ que se apresentassem os motivos120, porque,
rado veneno ou falsificado chaves. Às mulhe­ pela natureza da coisa, requerem-se motivos
res não concedeu o direito de repudiar seus para o repúdio que não são necessários para o
maridos. Plutarco117 diz que essa lei era divórcio, uma vez que, onde a lei especificou
muito severa. os motivos que podem romper o casamento, a
Como a lei de Atenas118 outorgava, tanto à incompatibilidade mútua é o maior deles.
mulher como ao marido, a faculdade de repu­ Dionísio de Halicarnasso121, Valério Má­
diar e como vemos que, entre os primeiros ximo122 e Aulo Gélio123 relatam um fato que
romanos, as mulheres obtiveram esse direito, não me parece verdadeiro. Dizem que, quando
não 'obstante a lei de Rômulo, é evidente que se estabeleceu em Roma o direito de repudiar a
esta instituição foi uma das que os deputados
esposa, teve-se tanto respeito pelos auspícios
de Roma imitaram dos atenienses e que foi
que ninguém, durante quinhentos e vinte
incluída nas leis das Doze Tábuas.
anos124, utilizou esse direito, até Carvílio
Cícero11 9 afirma que as causas do repúdio Ruga, que repudiou a sua por causa da esterili­
estavam nas leis das Doze Tábuas. Não pode­
mos duvidar, portanto, que esta lei tenha dade. Porém, basta conhecer a natureza do
aumentado o número das causas de repúdio espírito humano para perceber que prodígio
estabelecidas por Rômulo. seria que, dando a lei a todo um povo seme­
lhante direito, ninguém se utilizasse dele.
O direito de divórcio foi também uma dispo­ Coriolano, partindo para seu exílio, aconse­
sição, ou pelo menos uma consequência da Lei lhou12 5 sua mulher a casar com um homem
das Doze Tábuas, pois, desde o momento em
que a mulher ou o marido tivessem, separada­ 120 Justiniano modificou isso. Novel. 117, cap. X.
mente, o direito de repudiar, com mais forte (N. do A.)
razão podiam desfazer o concertado amigavel­ 121 Liv. II. (N. do A.)
mente e por vontade mútua. 122 Liv. II, cap. IV. (N. do A.)
1 2 3 Liv. IV, cap. III. (N. do A.)
124 Segundo Dionísio de Halicarnasso e Valério
11 7 Vida de Rômulo, cap. XI. (N. do A.) Máximo, e quinhentos e vinte e três, segundo Aulo
11 8 Era uma lei de Sólon. (N. do A.) Gélio. Por isso não citam os mesmos cônsules. (N.
119 Mimam res suas sibi habere jussit, ex duode- do A.)
cim tabulis causam addidit. Filip. II, cap. LXIX. 12 5 Vede o discurso de Vetúria em Dionísio de
(N. do A.) Halicarnasso, liv. VIII. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS III 243

mais feliz que ele. Acabamos de ver que a Lei anos depois de Rômulo”, isto é, a repudiou
das Doze Tábuas e os costumes dos romanos setenta e um anos antes da Lei das Doze Tá­
ampliaram muito a lei de Rômulo. Por que tais buas, que ampliava o poder de repudiar e as
ampliações, se nunca se fez uso da faculdade causas do repúdio.
de repudiar? Além disso, se os cidadãos tives­ Os autores que citei dizem que Carvílio
sem um tal respeito pelos auspícios, que nunca Ruga amava sua mulher mas que, por causa
repudiassem, por que os legisladores de Roma da sua esterilidade, os censores lhe fizeram
o teriam menos? Como a lei corrompeu inces­ jurar que a repudiaria, a fim de que ele pudesse
santemente os costumes? dar filhos à república, e que isso o tornou odio­
Cotejando-se duas passagens de Plutarco, so ao povo130. Cumpre conhecer o gênio do
ver-se-á desaparecer o maravilhoso do fato em povo romano para descobrir a verdadeira
questão. A lei real126 permitia ao marido
causa do ódio que votou a Carvílio. Não foi
repudiar nos três casos a que acabamos de nos pelo fato de repudiar a esposa que Carvílio
caiu na desgraça do povo; isso não perturbaria
referir. “E ela estipulava”, diz Plutarco127,
o povo. Porém, Carvílio fizera um juramento
“que quem repudiasse em outros casos fosse
aos censores, que, dada a esterilidade da
obrigado a dar a metade de seus bens à esposa
mulher, ele a repudiaria para dar filhos à repú­
e que a outra metade fosse consagrada a
blica. Era um jugo que o povo percebia que os
Ceres.” Podia-se, portanto, repudiar em todos
censores iriam colocar sobre ele. Mostrarei, na
os casos, mas submetendo-se à pena. Ninguém
continuação131 desta obra, as repugnâncias
o fez antes de Carvílio Ruga128, que, como que o povo romano demonstrou por regula­
narra ainda Plutarco129, “repudiou a esposa mentos semelhantes. Mas donde pode advir
por causa da esterilidade duzentos e trinta12 tamanha contradição entre estes autores? Ei-
la: Plutarco examinou um fato, e os outros
12 6 Plutarco, Vida de Rômulo. (N. do A.) relataram um prodígio.
12 7 Plutarco, Vida de Rômulo. (N. do A.)
12 8 Efetivamente, a causa da esterilidade não é
considerada pela lei de Rômulo. Ao que tudo indi­ 130 Crévier observa também que Montesquieu
ca, ele não esteve sujeito aos confiscos, pois obede­ apresenta o acontecimento como anterior às leis das
cia a ordens dos censores. (N. do A.) Doze Tábuas e que nesta época ainda não havia
129 Na Comparação de Teseu e Rômulo. (N. do censores.
A.) 131 No liv. XXin, cap. XXI. (N. do A.)
LIVRO DÉCIMO SÉTIMO
COMO AS LEIS DA SERVIDÃO POLÍTICA
SE RELACIONAM COM A NATUREZA DO CLIMA
Capítulo I

Da servidão política

A servidão política não depende menos da natureza do clima do que a servidão civil e a
doméstica, como demonstraremos.

Capítulo II

Diferenças dos povos com relação à coragem

Já dissemos que o calor excessivo diminui a Não nos devemos, pois, espantar que a
força e a coragem dos homens e que havia nos covardia dos povos de clima quente os tenha,
climas frios uma certa força de corpo e de espí­ quase sempre, tornado escravos, e que a cora­
rito que tornava os homens capazes de ações gem dos povos dos climas frios os tenha man­
duradouras, penosas, grandes e ousadas. No- tido livres. É uma consequência que deriva de
ta-se isso não apenas de nação para nação sua causa natural.
como também num mesmo país, de uma região Verifica-se isso igualmente na América; os
impérios despóticos do México e do Peru esta­
para outra. Os povos do Norte da China são vam próximos do equador e quase todos os
mais corajosos do que os do Sul132; os povos pequenos povos livres estavam ou estão ainda
do Sul da Coréia133 não o são tanto quanto os perto dos pólos.
do Norte.
133 Os livros chineses assim o dizem: ibid., t. IV,
1 32 Padre du Halde, 1.1, pág. 112. (N. do A.) pág. 448. (N. do A.)

Capítulo III

Do clima da Ásia

As13 4 relações contam-nos “que o Norte da situa-se num clima muito frio; que essas terras
Ásia, este vasto continente, se estende do quar­ imensas estão divididas de oeste a leste por
to grau, aproximadamente, até o pólo, e das uma cadeia de montanhas que deixam ao norte
fronteiras da Moscóvia até o mar Oriental, a Sibéria e ao sul a Grande Tartária; que o
clima da Sibéria é tão frio que, com exceção de
13 4 Vede as Voyages du Nord, t. VIII; a História alguns lugares, eia não pode ser cultivada; e
dos Tártaros e o quarto volume de La Chine, do apesar de que os russos tenham estabeleci­
Padre du Halde. (N. do A.) mento em todo o longo do Irtixe, eles nada cul­
248 MONTESQUIEU
tivam; que só crescem nesta região alguns apesar de quase todos os grandes rios da Ásia
pequenos abetos e arbustos; que os naturais da terem sua nascente na região, faltar água, de
região dividem-se em miseráveis bandos de nô­ modo que ela só pode ser habitada junto aos
mades, que são como os do Canadá; que o mo­ rios e lagos”.
tivo dessa frieza decorre, de um lado, da alti­ Estabelecidos esses fatos, eu raciocino
tude da região e, de outro, de que, à medida assim: a Ásia não está propriamente na zona
que se avança do Sul para o Norte, as monta­ temperada e os lugares num clima muito frio
nhas aplanam-se, de modo que o vento do confinam imediatamente com os que estão
Norte sopra por toda parte sem encontrar
situados num clima muito quente, isto é, a Tur­
obstáculos; que esse vento, que toma a Nova
quia, a Pérsia, o Mogol, a Coréia e o Japão.
Zembla inabitável, varrendo a Sibéria, toma-
a inculta; que, na Europa, ao contrário, as Na Europa, pelo contrário, a zona tempe­
montanhas da Noruega e da Lapônia são bas­ rada é muito extensa, apesar de que esteja
tiões admiráveis que protegem desse vento os situada em climas muito diferentes entre si,
países do Norte; que isso faz com que, em não havendo relação entre os climas da Espa­
Estocolmo, que se localiza aproximadamente a nha e da Itália e os da Noruega e Suécia. Mas,
cinquenta e nove graus de latitude, a terra pro­ como o clima, à medida que passa do Sul paia
duza frutos, cereais, plantas; e que, em torno o Norte, torna-se insensivelmente frio, quase
do Abo, que está a sessenta e um graus, assim na proporção da latitude de cada país, ocorre
como pelos sessenta e três e sessenta e quatro que cada país é mais ou menos semelhante ao
graus, existam minas de prata e que o terreno que lhe é vizinho, que não existe uma diferença
seja muito fértil”.
Vemos também, nas relações, “que a Gran­ notável entre eles e que, como acabo de dizer,
de Tartária, que está ao Sul da Sibéria, é igual­ a zona temperada é muito extensa.
mente muito fria; que o país nada cultiva e que Disso resulta que, na Ásia, as nações se
aí só existem pastagens para os rebanhos; que defrontem com nações, do forte ao fraco; os
aí não crescem árvores mas somente algumas povos guerreiros, bravos e ativos confinam
urzes, como nã Islândia; que há, próximo da imediatamente com povos efeminados, indo­
China e do Mogol, algumas regiões em que lentes e timoratos; cumpre, portanto, que um
cresce uma espécie de painço, mas que nem o seja conquistado e outro conquistador. Na
trigo nem o arroz podem amadurecer; que
Europa, pelo contrário, ás nações se defron­
quase não há, na Tartária chinesa, lugares, nos
tam, forte ao forte; as que são fronteiriças têm
graus quarenta e três, quarenta e quatro e qua­
renta e cinco, em que não gele durante sete ou aproximadamente a mesma coragem. Reside aí
oito meses no ano, de modo que ela é tão fria o principal motivo da fraqueza da Ásia e da
quanto a Islândia, apesar de que devesse ser força da Europa, da liberdade da Europa e da
mais quente do que o Sul da França; que não servidão da Ásia, motivo este que, ao que sei,
há cidades, exceto quatro ou cinco do lado do não tinha ainda sido observado13 6. Ê isso que
mar Oriental e algumas que os chineses, por faz com que, na Ásia, nunca aconteça de a
razões políticas, construíram perto da China; liberdade aumentar, enquanto, na Europa, ela
que, no resto da Grande Tartária, existem ape­ aumenta ou diminui segundo as circunstân­
nas algumas delas localizadas nas Bucárias, cias.
Turquestão e Carismo; que a origem desse frio
extremo reside na natureza do solo nitroso, Ver-se-á sempre no fato de ter a nobreza
moscovita sido reduzida à servidão por um de
repleto de salitre e arenoso, e, além disso, na
altura do terreno. O Padre Verbiest descobriu seus príncipes os traços de impaciência que os
que um certo local, a oitenta léguas ao norte climas do Sul não propiciam. Não vimos o
da grande muralha, para o lado da nascente do governo aristocrático aí estabelecido durante
Kavamhuram, ultrapassava a altura do nível alguns dias? Se outro reino do Norte perder
do mar, perto de Pequim, em três mil passos suas leis, pode-se confiar no clima, pois ele não
geométricos; que essa altura1 3 5 é causa de, as perderá irremediavelmente.

136 A Tartária é como uma espécie de montanha 13 8 Cf., entretanto, Aristóteles, Política, liv. VII,
chata. (N. do A.) cap. VII.
DO ESPIRITO DAS LEIS III 249

Capítulo IV
Consequência de tudo isso
O que acabamos de dizer está coerente com meira causada pelas conquistas dos romanos;
os conhecimentos da História. A Ásia foi süb- a segunda, pelas inundações dos bárbaros que
jugada treze vezes: onze pelos povos do Norte destruíram os próprios romanos; a terceira,
e duas pelos do Sul. Há muito tempo os citas a pelas vitórias de Carlos Magno; e a última,
conquistaram três vezes; em seguida os medos pela invasão dos normandos. E, se exami­
e os persas, uma vez cada um; os gregos, os narmos esses acontecimentos mais de perto,
árabes, os mongóis, os turcos, os tártaros, os encontraremos neles uma força geral difundida
persas e os aguanos13 7. Refiro-me apenas à em todas as partes da Europa. Sabemos das
Alta Ásia e deixo de lado as invasões ocorri­ dificuldades que os romanos encontraram para
das no Sul dessa parte do mundo, que conti­ fazer a conquista na Europa e da facilidade
nuamente sofreu grandes revoluções. que tiveram para invadir a Ásia. Conhecemos
Na Europa, ao contrário, só conhecemos, os percalços que os povos do Norte sofreram
desde o estabelecimento das colônias gregas e para derrubar o império romano, as guerras e
fenícias, quatro grandes transformações: a pri- as dificuldades de Carlos Magno e os diversos
empreendimentos dos normandos. Os destrui­
137 Os aguanos, os afegãos. dores eram incessantemente destruídos.

Capítulo V

De como, quando os povos do Norte da Ãsia


e os do Norte da Europa conquistaram, os efeitos
da conquista não eram os mesmos

Os povos do Norte da Europa conquista- nesas à Tartária. Esses chineses tornaram-se


ram-na como homens livres; os povos do tártaros e inimigos mortais da China, mas isso
Norte da Ásia conquistaram-na como escra­ não impediu que introduzissem na Tartária o
vos, e só venceram para um senhor. espírito do governo chinês.
Isso ocorreu porque o povo tártaro, con­ Amiúde uma fração da nação tártara, após
quistador natural da Ásia, tornou-se, ele pró­ haver efetuado a conquista, é por sua vez
prio, escravo. Ele conquista incessantemente expulsa e leva para seus desertos um espírito
no Sul da Ásia, forma impérios, mas a parte do de servidão que adquiriu no clima de escravi­
povo que permanece no país encontra-se sub­
dão. A história da China, bem como nossa his­
metida a um poderoso senhor que, despótico
no Sul, quer também sê-lo no Norte e, com tória antiga, fornece-nos grandes exemplos
poder arbitrário sobre os súditos conquistados, disso13 9.
pretende também estendê-lo aos súditos con­ É o que faz com que o gênio da nação tár­
quistadores. Atualmente, vê-se bem isso nesta tara ou gética tenha sido sempre semelhante ao
vasta região que se chama Tartária chinesa, dos impérios da Ásia. Os povos, nesta última,
governada pelo imperador quase tão despoti­ são governados pelo bastão; os povos tártaros,
camente como a própria China e que ele pelos compridos chicotes. O espírito da Euro­
aumenta todos os dias com suas conquistas. pa sempre foi contrário a tais costumes e, em
Podemos ver também ha história da China todas as épocas, o que os povos da Ásia cha-
que os imperadores138 enviaram colônias chi­

139 Os citas conquistaram três vezes a Ásia e


13 8 Como Ven-ti, quinto imperador da quinta foram três vezes expulsos. Justino, liv. II, cap. III.
dinastia. (N. do A.) (N. do A.)
250 MONTESQUIEU

maram punição, os da Europa chamaram sua Atlântica, tanto louvou a Escandinávia,


ultraje1 40. referiu-se a essa grande prerrogativa que deve
Destruindo o império grego, os tártaros colocar as nações que a habitam acima de
implantaram nos países conquistados a servi­ todos os povos do mundo; é que elas foram a
dão e o despotismo; os godos141, conquis­ fonte da liberdade da Europa, ou seja, de quase
tando o império romano, implantaram, em toda a liberdade que existe atualmente entre os
toda parte, a monarquia e a liberdade. homens.
Não sei se o famoso Rudbeck1 42 que, em
O godo Jornandes denominou o Norte da
Europa fábrica do gênero humano1 43. Eu
1 40 Isto não é contrário ao que afirmarei no livro denominaria antes fábrica dos instrumentos
XXIII, cap. XX, sobre a maneira de pensar dos que rompem os grilhões forjados no Sul. É lá
povos germanos sobre o bastão. Qualquer que fosse
o instrumento, consideravam sempre como uma que se formam esses povos intimoratos que
afronta o poder ou ação arbitrária de bater. (N. do saem de seus países para destruir os tiranos e
A.) os escravos e ensinar aos homens que, tendo a
141 Os godos; Montesquieu refere-se aos germanos
no seu conjunto. Natureza feito iguais, a razão só os poderia
1 42 Rudbeck, naturalista sueco (1630-1702), autor tornar dependentes para a sua felicidade.
de uma Atlântica em quatro volumes, na qual pre­
tendia demonstrar que a Atlântida de Platão era a
Escandinávia. 1 43 Humani generis officinam. (N. do A.)

Capítulo VI

Nova causa física da servidão


da Ásia e da liberdade da Europa

Na Ásia, sempre encontramos grandes im­ Estados de extensão média, nos quais o gover­
périos; na Europa, eles nunca puderam subsis­ no das leis não é incompatível com a manuten­
tir. É que, na Ásia que conhecemos, estão ção do Estado, sendo, pelo contrário, tão favo­
situadas as maiores planícies; e é cortada em rável, que, sem elas, este Estado cairia na
maiores porções pelos mares e, como está decadência e tornar-se-ia inferior a todos os
localizada mais ao sul, as fontes aí secam mais demais.
facilmente, as montanhas são menos cobertas Foi isso que originou um espírito de liber­
de neves e os rios1 4 4 menos caudalosos for­ dade que torna cada parte muito difícil de ser
mam barreiras menores. subjugada e submetida a uma força estran­
Na Ásia, o poder deve sempre ser despótico, geira, a não ser pelas leis e pela utilidade de
pois, não sendo a servidão tão extremada, seu comércio.
ocorrería logo uma divisão que a natureza da Pelo contrário, na Ásia reina um espírito de
região não poderia suportar. servidão que nunca a abandonou e, em todas
Na Europa, a divisão natural forma vários144 as histórias desse continente, não é possível
encontrar um só traço que marque uma alma
144 As águas se perdem ou se evaporam antes de livre; aí nunca se verá senão o heroísmo da
se reunirem, ou depois de se reunirem. (N. do A.) servidão.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 251

Capítulo VII

Da África e da América

Eis o que posso dizer sobre a Ásia e sobre a de sua antiga história está muito de acordo
Europa. A África está situada num clima com nossos princípios.
semelhante ao do Sul da Ásia e encontra-se
sob uma mesma servidão. A América1*4 5, des­
truída e novamente povoada pelas nações da 145 Os pequenos povos bárbaros da América são
chamados índios bravos pelos espanhóis, bem mais
Europa e da África, quase não pode hoje reve­ difíceis de serem submetidos do que os grandes
lar seu verdadeiro espírito, mas o que sabemos impérios do México e do Peru. (N. do A.)

Capítulo VIII

Da capital do império

Uma das consequências decorrentes do que correrá o risco de perder o Norte e quem a
acabamos de dizer é que é importante para um colocar ao Norte conservará facilmente o Sul.
príncipe muito poderoso escolher corretamente
Não me refiro a casos específicos: a mecânica
a sede de seu império1 4 6. Quem a situar ao Sul
tem efetivamente seus atritos que, muitas
1 4 6 Acreditou-se que Montesquieu se referia aqui a vezes, modificam ou paralisam os efeitos da
Pedro, o Grande, e a São Petersburgo. teoria; a política também tem os seus.
LIVRO DÉCIMO OITAVO
DAS LEIS EM SUAS RELAÇÕES
COM A NATUREZA DO TERRENO
Capítulo I

Como a natureza do terreno influi sobre as leis

A fertilidade das terras de um país estabe­ A esterilidade do solo da Ática ocasionou o


lece naturalmente a dependência. Os campone­ estabelecimento do governo popular e a fertili­
ses, que formam a maior parte do povo, não dade do da Lacedemônia, o governo aristocrá­
são tão ciosos de sua liberdade; estão muito tico, porque, nessa época, não se queria, na
ocupados e sobrecarregados com seus afazeres Grécia, o governo de um só: ora, o governo
particulares. Um campesinato rico teme a aristocrático é o que mais se aproxima do
pilhagem, teme o exército. “Quem é que forma governo de um só.
o bom partido?”, dizia Cícero a Ático1 4 7. Plutarco1 48 relata-nos “que, tendo a sedi-
“Serão os comerciantes ou os lavradores, a ção ciloniana apaziguado Atenas, a cidade re­
menos que não imaginemos que eles se opõem caiu nas suas antigas dissensões e dividiu-se
à monarquia, eles, para quem todos os gover­ em tantos partidos quantas espécies de solos
nos são iguais desde que estejam tranquilos?” havia na região da Ática”. Os da montanha
Assim, o governo de um só geralmente exis­ queriam à viva força o governo popular; os da
te nos países férteis e o governo de vários nos planície exigiam o governo dos principais; os
países que não o são, o que é, às vezes, uma que estavam próximos do mar eram favoráveis
compensação. a um governo formado pelos dois anteriores.

1 4 7 Liv. VII. (N. do A.) 1 4 8 Vida de Sólon, cap. VIII. (N. do A.)

Capítulo II

Continuação do mesmo assunto

Tais regiões férteis são planícies onde nada Os montanheses conservam um governo
se pode disputar ao mais forte; está-se, portan­ mais moderado porque não estão muito expos­
to, submetido a ele e, quando se lhe está sub­ tos à conquista. Defendem-se facilmente e são
metido, o espírito da liberdade não poderá sur­
atacados dificilmente. As munições de guerra e
gir. Os bens agrários são um penhor da
fidelidade. Mas, nas regiões montanhosas, de boca são reunidas e transportadas contra
pode-se e tem-se pouco a conservar. A liberda­ eles com enormes despesas e a região não as
de, ou seja, o governo no qual nos compraze- fornece. Deste modo, é mais difícil de lhes
mos, é o único bem que merece ser defendido.
Ela reina, assim, mais nos países montanhosos fazer a guerra, mais perigoso empreendê-la, e
e difíceis do que nos que a natureza parece ter todas as leis feitas para a segurança do povo
favorecido mais. são aí menos necessárias.
256 MONTESQUIEU

Capítulo III

Quais são as regiões mais cultivadas

As regiões não são cultivadas em razão de Esses climas favoráveis tinham, assim, sido
sua fertilidade, mas em razão de sua liberdade despovoados por outras transmigrações e não
e, se dividíssemos a terra pelo pensamento, conhecemos as coisas trágicas que aí ocorre­
ficaríamos admirados por ver, na maioria das ram.
vezes, desertos em suas partes mais férteis e “Parece, por vários monumentos”, diz Aris­
grandes povoados naquelas onde o terreno pa­ tóteles1 49, “que a Sardenha era uma colônia
rece recusar tudo.
grega. Outrora, fora muito rica, e Aristeu, cujo
É natural que um povo abandone uma
amor pela agricultura tem sido tão louvado,
região má para procurar outra melhor, mas
não que abandone uma região boa para procu­ dera-lhe leis. Mas ela decaiu muito depois, por­
rar outra pior. A maioria das invasões ocorre, que os cartagineses, conquistando-a, des­
portanto, nas regiões que a natureza prepara truíram tudo o que podia torná-la propícia à
para serem felizes. E, como nada está tão pró­ alimentação dos homens, e proibiram, sob
ximo da devastação como a invasão, as melho­ pena de morte, o cultivo da terra.” A Sardenha
res regiões são, amiúde, as mais despovoadas, ainda não se tinha restabelecido na época de
enquanto que as horríveis regiões do Norte Aristóteles e não o está ainda hoje.
continuam sempre habitadas, por serem quase As regiões mais temperadas da Pérsia, da
inabitáveis. Turquia, da Moscóvia e da Polônia não pude­
Vemos, pelo que nos contam os historia­ ram restabelecer-e das devastações dos gran­
dores do êxodo dos povos da Escandinávia des e dos pequenos tártaros.
para as margens do Danúbio, que não se trata­
va de uma conquista, mas somente de uma 1 49 Ou quem escreveu o livro De Mirabilibus. (N.
transmigração para terras desertas. do A.)

Capítulo IV

Novos efeitos da fertilidade e da esterilidade da região

A esterilidade das terras torna os homens Observou-se que as tropas da Alemanha


laboriosos, sóbrios, habituados ao trabalho, transportadas para lugares onde os campone­
corajosos, aptos para a guerra, pois é muito
necessário que eles se esforcem para obter o ses são ricos, como no Saxe, não são tão boas
que a terra lhes recusa. A fertilidade de uma como as outras. As leis militares poderão
região oferece, juntamente com a abastança, a
remediar esse inconveniente com uma severa
indolência e certo amor pela conservação da
vida. disciplina.

Capítulo V

Dos povos das ilhas

Os povos das ilhas são mais inclinados à liberdade do que os povos do continente. As
DO ESPIRITO DAS LEIS III 257

ilhas são, geralmente, de pequena extensão1 50; gada com tanto êxito para oprimir a outra; o
mar as separa dos grandes impérios e a tirania
assim, uma parte do povo não pode ser empre-
não se pode manter; os conquistadores são
paralisados pelo mar; os insulares não são
1 50 O Japão não confirma isso por sua grandeza e envolvidos pelas conquistas e conservam mais
por sua servidão. (N. do A.) facilmente suas leis.

Capítulo VI

Das regiões formadas pela indústria dos homens

As regiões que o labor dos homens tornou império exigia mais os costumes de um povo
habitáveis e que necessitam desse mesmo labor austero do que os de um povo voluptuoso,
para existir, atraem os governos moderados. mais o poder legítimo de um monarca do que o
Existem principalmente três dessa espécie: as poder tirânico de um déspota. Cumpria que o
duas belas províncias de Kiang-Nan e Tche- poder aí fosse moderado como o fora, outrora,
Kiang, na China, o Egito e a Holanda. no Egito. Cumpria que o poder fosse modera­
Os antigos imperadores da China não eram do, como o é na Holanda, feita pela natureza
conquistadores. A primeira coisa que fizeram para cuidar de si própria e não para ser aban­
para engrandecer-se foi a que provou sua sabe­ donada ao desleixo ou ao capricho.
doria. Viram-se emergir das águas as duas Assim, malgrado o clima da China que
mais belas províncias do império; foram cons­ induz naturalmente à obediência servil, mal­
truídas pelos homens. É a indizível fertilidade grado os horrores resultantes da enorme exten­
dessas duas províncias que deu à Europa as são do império, os primeiros legisladores da
idéias de felicidade desta vasta região. Mas um China foram obrigados a fazer leis muito boas
cuidado contínuo e necessário para garantir e o governo, amiúde, foi obrigado a observá-
contra a destruição uma parte considerável do las.

Capítulo VII

Das obras dos homens

Os homens, por seus cuidados e por suas tam inúmeros regatos, eles não pouparam
boas leis, tornaram a terra mais adequada a nenhuma despesa para obter a água. Atual­
ser habitada. Vemos correrem rios onde ape­ mente, sem que saibamos de onde ela provém,
nas existiam lagos e pântanos; trata-se de um encontramo-la nos campos e jardins.
benefício que a Natureza não outorgou, mas Assim, como povos destruidores causam
que é mantido por ela. Quando os persas1 51 malefícios que perduram mais do que eles, há
eram senhores da Ásia, permitiam aos que
outros, laboriosos, que fazem benefícios que
canalizassem as águas das fontes para algum
não acabam nem mesmo com eles1 52.
lugar que não fosse irrigado usufruí-lo durante
cinco gerações, e, como do monte Tauro bro­
1 52 Laboulaye observa que podemos nos referir
deste modo à Espanha, em que os árabes deixaram
1 51 Políbio, liv. X, cap. XXV. (N. do A.) todo um sistema de irrigação.
258 MONTESQUIEU

Capítulo VIII

Relação geral das leis

As leis estão estreitamente relacionadas povo que se limita a cultivar suas terras. É pre­
com o modo pelo qual os diferentes povos pro­ ciso um maior para este povo do que para
curam sua subsistência. É necessário um códi­ outro que vive de seus rebanhos. É necessário
go de leis mais amplo para um povo que se de­ um maior para este último do que para outro
dica ao comércio e ao mar do que para um que vive da caça.

Capítulo IX

Do solo da América

O que faz com que haja tantos povos selva­ Demais, os animais que pastam, como os bois,
gens na América é o fato de seu solo produzir os búfalos etc., adaptam-se melhor do que os
por si próprio muitos frutos com os quais animais carnívoros. Estes sempre dominaram
na África.
podemos nos alimentar. Se as mulheres culti­
Creio que todas essas vantagens não existi­
vam em redor da cabana uma nesga de terra, ríam na Europa se se deixasse a terra inculta:
logo aparece o milho. A caça e a pesca aca­ aqui quase só nasceríam florestas, carvalhos e
bam de oferecer aos homens a abundância. outras árvores estéreis.

Capítulo X

Do número dos homens em relação com a


maneira pela qual provêm à subsistência

Quando as nações não cultivam a terra, eis Eles quase não podem formar uma grande
em que proporção se encontra o número de nação. Se são pastores, necessitam de uma
homens. Tal como o produto de um solo incul­ vasta região para que possam subsistir em
to está para o produto de um solo cultivado, o certo número; se são caçadores, são ainda em
número dos selvagens, numa região, está para menor número e, para viver, formam um povo
o número dos lavradores em outra. E, quando menor.
o povo que cultiva as terras cultiva igualmente Seus domínios são geralmente repletos de
as artes1 S3, seguem-se daí proporções que exi­ florestas e, como os homens aí não canali­
giríam muitos pormenores. zaram as águas, a região é cheia de pântanos,
em que cada bando se agrupa e forma uma
193 As artes: leia-se: a indústria. pequena tribo.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 259

Capítulo XI

Dos povos selvagens e dos povos bárbaros

Entre os povos selvagens e os povos bárba­ um todo porque não poderíam obter alimento;
ros há esta diferença: os primeiros são peque­ os tártaros podem viver em conjunto durante
nas nações esparsas que, por motivos determi­ algum tempo porque seus rebanhos podem ser
nados, não se podem agrupar, ao passo que os reunidos durante certo tempo. Todas as hordas
bárbaros são, comumente, pequenas nações podem, portanto, agrupar-se, e isso ocorre
quando um chefe submete muitas outras, de­
que se podem reunir. Os primeiros, geralmente,
pois do que é preciso que elas façam uma das
são povos caçadores; os segundos, pastores. duas coisas: que se separem ou que se lancem
Vê-se bem isso no Norte da Ásia. Os povos da a alguma grande conquista em algum império
Sibéria não poderíam viver agrupados como do Sul.

Capítulo XII

Do direito das gentes entre os povos


que não cultivam as terras

Esses povos, não vivendo numa região limi­ pelas suas pescas, pela pastagem de seus ani­
tada e circunscrita, terão muitos motivos de mais, pelo apresamento de seus escravos e, não
querelas entre si. Disputarão mutuamente a
tendo território, terão tanta coisa a regula­
terra inculta, como entre nós os cidadãos dis­
putam as heranças. Deste modo, encontrarão mentar pelo direito das gentes, que pouca coisa
frequentes ocasiões de guerra pelas suas caças, terão que decidir pelo direito civil.

Capítulo XIII

Das leis civis entre os povos


que não cultivam as terras

É principalmente a partilha das terras que casa. Eles podem, portanto, mais facilmente
avoluma o código civil. Entre os povos onde mudar de mulheres, possuir várias e, algumas
esta partilha não se tenha efetuado, haverá vezes, cruzar-se indiferentemente como ani­
poucas leis civis. mais.
Poderemos chamar as instituições desses Os povos pastores1 5 4 não podem separar-se
povos mais precisamente costumes do que leis. de seus rebanhos, que constituem sua subsis­
Entre tais povos, os anciãos, que se lem­ tência; do mesmo modo, não poderíam sepa­
bram das coisas passadas, mantêm grande rar-se de suas mulheres, que deles cuidam.
autoridade; entre eles ninguém se distingue Assim, rebanhos e mulheres devem deslocar-se
pelos bens mas pelo poder e pelos conselhos. conjuntamente, tanto mais que, vivendo geral-
Esses povos erram e dispersam-se nas pasta­
gens e nas florestas. O casamento não é tão 154 Os povos pastores: os tártaros e os árabes. No
estável como entre nós, onde é fortalecido pelo início do capítulo, o autor parece referir-se mais aos
domicílio e onde a esposa se prende a uma selvagens da América.
260 MONTESQUIEU

mente nas grandes planícies, em que há poucos Suas leis regulamentarão a partilha das
sítios defensivos, suas mulheres, filhos e reba­ pilhagens e concederão, como nossas leis sáli-
nhos tornar-se-iam presa dos inimigos. cas, atenção particular aos roubqs.

Capítulo XIV

Do Estado político dos povos


que não cultivam as terras

Esses povos gozam de grande liberdade', iriam logo procurá-la com outro, ou refugiar-
pois, como não cultivam as terras, não lhes se-iam nas florestas para viver com sua famí­
lia. Entre esses povos a liberdade do homem é
estão ligados; são errantes, nômades e, se um tão grande, que acarreta necessariamente a do
chefe pretendesse suprimir-lhes a liberdade, cidadão.

Capítulo XV

Dos povos que conhecem o uso da moeda

Aristipo, tendo naufragado, nadou e alcan­ Essa cultura supõe muitas artes e conheci­
çou uma praia próxima; viu que, na areia, ha­ mentos e vemos sempre marcharem paralela­
viam sido traçadas figuras de geometria; mente as artes, os conhecimentos e as necessi­
comoveu-se de alegria, julgando que encon­ dades. Tudo isso conduz ao estabelecimento de
trara um povo grego e não um povo bárba­ um símbolo de valores.
ro1 5 5.
Ficai isolado e encontrai, por algum aciden­ As torrentes e os incêndios1 5 6 permitiram-
te, um povo desconhecido; se encontrardes nos descobrir que o solo continha metais. Uma
uma moeda, ficai certo de que vos encontrais vez separados, é fácil utilizá-los.
entre um povo civilizado.
A cultura da terra requer o uso da moeda
1 5 • Assim é que Diodoro, liv. V, cap. XXXV, nos
relata como os pastores encontraram o ouro dos
155 Cf. Cícero, De Rep., 1-17. Pirineus. (N. do A.)

Capítulo XVI

Das leis civis entre os povos


que não conhecem o uso da moeda

Quando um povo não conhece o uso da surgem com os novos meios e com as diversas
moeda, encontramos, nele, somente injustiças maneiras de ser desonesto.
decorrentes da violência; e os fracos, unindo- Nos países em que a moeda não existe, o
se, se defendem contra a violência. Em seu larápio só rouba coisas .e as coisas nunca se
meio, quase só existem conluios políticos. assemelham. Nos países onde existe a moeda,
Mas, entre um povo em que a moeda está esta­ o ladrão rouba símbolos e os símbolos se asse­
belecida, estamos sujeitos às injustiças decor­ melham. Nos primeiros países nada pode ser
rentes da astúcia e essas injustiças podem ser ocultado pois o ladrão sempre carrega consigo
exercidas de mil maneiras. Torna-se então as provas de seu crime; a mesma coisa não
necessária a existência de boas leis civis. Elas ocorre nos outros países.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 261

Capítulo XVII

Das leis políticas entre os povos


que não utilizam a moeda

O que mais assegura a liberdade dos povos da riqueza existem, podem eles ser amontoa­
que não cultivam as terras é o fato de não dos e distribuídos a quem se quiser.
conhecerem a moeda. Os frutos da caça, da Entre os povos que não conhecem o uso da
pesca ou dos rebanhos não podem ser reunidos
moeda, cada um possui poucas necessidades e
em quantidade muito grande, nem ser conser­
vados por muito tempo, a ponto de um homem as satisfaz fácil e igualmente. A igualdade é,
se encontrar em condições de corromper todos portanto, forçada e, destarte, os chefes não são
os demais, ao passo que, quando os símbolos despóticos.

Capítulo XVIII

Força das superstições

Se é verdade o que nos dizem as relações, a vida. Dirieis que é o grande Sesóstris. Esse
constituição de um povo da Louisiana denomi­ chefe é tratado em sua cabana com cerimônias
nado natchês derroga isso. Seu chefe1*5 7 dis­ que se dispensariam a um imperador do Japão
põe dos bens de todos os súditos e os faz traba­ ou da China.
lhar a seu capricho; não lhe podem recusar sua Os preconceitos da superstição são superio­
cabeça. Ele é como o Grão Senhor. Quando o res a todos os outros, e suas razões a todas as
demais. Assim, apesar de os povos selvagens
herdeiro presuntivo nasce, dão-se-lhe todas as
não conhecerem naturalmente o despotismo,
crianças de peito para servi-lo durante toda a esse povo o conhece. Adoram o Sol e, se o seu
chefe não tivesse imaginado que era irmão do
1 5 7 Lettres Édifiantes, vigésima coletânea. (N. do Sol, veriam nele apenas um miserável como
A.) eles próprios.

Capítulo XIX

Da liberdade dos árabes e da servidão dos tártaros

Os árabes e os tártaros são povos pastores. gelados; habitam uma imensa planície; têm
Os árabes estão incluídos nos casos gerais a pastagens e rebanhos e, portanto, bens. Porém,
que já nos referimos, e são livres, enquanto os não têm nenhuma espécie de refúgio nem de
tártaros (o mais curioso povo da terra) encon- defesa. Assim que um cã é vencido, cortam-lhe
tram-se na escravidão política1 58. Já apre­ o pescoço1 60 e tratam seus filhos da mesma
sentei1 59 algumas razões para esse último
fato: eis outras novas. maneira e todos os seus súditos passam a per­
Não têm cidades, não têm florestas, têm tencer ao vencedor. Não são condenados a
poucos pântanos; seus rios estão quase sempre uma escravidão civil, pois seriam uma carga

1 58 Quando se proclama um cã, todo o povo grita: 1 80 Assim, não nos devemos admirar se Miriveis,
Que sua palavra lhe sirva de gládio l (N. do A.) tendo-se tornado senhor do Isafã, mandasse matar
1 69 Liv. XVII, cap. V. (N. do A.) todos os príncipes de sangue. (N. do A.)
262 MONTESQUIEU
para uma nação simples que não possui terras livre, pois não existe uma parte dela que não
a cultivar e não necessita de nenhum serviço deva ter sido subjugada numerosas vezes.
doméstico. Assim, eles aumentam a nação. Os povos vencidos podem conservar certa
Mas,, em lugar da escravidão civil, concebe-se liberdade quando, pela força de sua situação,
que a escravidão política teve que se introduzir estão em condições de fazer tratados após a
aí. derrota. Mas os tártaros, sempre sem defesa,
Efetivamente, numa região em que as diver­ uma vez vencidos, nunca puderam impor
condições.
sas hordas guerreiam continuamente e con­
Disse, no capítulo II, que os habitantes das
quistam sem cessar umas às outras; numa planícies cultivadas quase nunca eram livres:
região em que, pela morte do chefe, o corpo as circunstâncias fazem com que os tártaros,
político de cada horda vencida é sempre habitando uma terra inculta, estejam no
destruído, a nação em geral quase não pode ser mesmo caso.

Capítulo XX

Do direito das gentes dos tártaros

Os tártaros parecem, entre eles, cordatos e se rápida e impetuosamente. Quando


humanos, mas são os mais cruéis conquista­ esperavam vencer, combatiam; quando não
dores: passam a fio de espada os habitantes esperavam, aumentavam o exército dos mais
das cidades que conquistam, e quando os ven­ fortes. Com tais costumes, achavam que era
dem, ou os distribuem entre seus soldados, contra seu direito das gentes que uma cidade,
acreditam conceder-lhes uma graça; des­ que não lhes podia resistir, os detivesse. Não
truíram a Ásia desde as índias até o Mediter­ consideravam as cidades como conglomerado
râneo; toda a região que forma o Oriente da de habitantes, mas como lugares apropriados a
Pérsia ficou deserta. resistir a seu poderio. Não possuíam nenhuma
Eis o que me parece o resultado de seme­ habilidade para sitiá-las e expunham-se muito
lhante direito das gentes. Esses povos não pos­ ao fazê-lo; vingavam com sangue todo o san­
suíam cidades; todas suas guerras realizavam- gue que acabavam de verter.

Capítulo XXI

Leis civis dos tártaros

O Padre du Halde afirma que, entre os tárta­ cado de Rohan entre os plebeus1 61. Trata-se
ros, é sempre o último varão que herda, por­ indubitavelmente de uma lei pastoril originada
que, na medida em que os mais velhos estão de algum pequeno povo bretão ou trazida por
em condições de iniciar a vida pastoril, aban­ algum povo germânico. Sabemos, por César e
Tácito1 62, que esse último cultivava pouco
donam sua casa com uma certa quantidade de
suas terras.
gado que o pai lhes dá e vão constituir uma
nova moradia. O último dos varões que perma­
161 “É o que se chama de direito de juveigneur e o
nece no lar com o pai é, assim, o herdeiro direito de quévaise*, ver O Costume da Bretanha. ”
natural. (Nota de Laboulaye).
Ouvi dizer que semelhante costume era * Direito de Juveigneur e de quévaise: é o que dá
certas vantagens aos filhos não primogênitos, em
observado em alguns pequenos distritos da detrimento desses últimos (N. dos T.)
Inglaterra e subsiste ainda na Bretanha, no du­ 1 62 Tácito, De Morib. Germ., cap. XIV e XV.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 263

Capítulo XXII

De uma lei civil dos povos germânicos

Explicarei aqui como esse texto particular pertencido às mulheres? Elas passavam para
da lei sálica, chamada comumente a lei sálica, outra casa.
diz respeito às instituições de um povo que não A terra sálica era, portanto, esse recinto que
cultivava as terras, ou, pelo menos, as culti­ dependia da casa do germano; constituía sua
vava pouco. única propriedade. Os francos, após a conquis­
A lei sálica1 63 determina que, quando um ta, adquiriram novas propriedades e conti­
homem deixa filhos, os do sexo masculino her­ nuaram a chamá-las terras sálicas.
dam a terra sálica em detrimento das filhas. Quando os francos viviam na Germânia,
Para saber o que eram as terras sálicas, seus bens eram constituídos de escravos, reba­
cumpre verificar o que eram as propriedades nhos, cavalos, armas, etc. A casa e a pequena
ou o uso das terras entre os francos, antes de porção de terra que lhe estava agregada eram
deixarem a Germânia. naturalmente dadas aos filhos varões que deve­
Ecchard1 6 4 provou muito bem que a pala­ ríam aí habitar. Mas quando, depois da con­
vra sálica deriva do termo sala, que significa quista, os francos adquiriram grandes proprie­
“casa”, e que, assim, a terra sálica era a terra dades, considerou-se injusto que as filhas e
da casa. Irei mais longe e examinarei o que era seus descendentes não pudessem delas partici­
a casa e a terra da casa entre os germanos. par. Introduziram uma prática que permitia ao
“Eles não habitam cidades”, diz Tácito1 6 5, pai convocar à sucessão sua filha e os filhos de
“e não podem tolerar que suas casas se sua filha. Fizeram calar a lei; vê-se bem que
toquem; cada um deixa em torno de sua casa essas convocações se tornaram comuns, uma
um pequeno terreno ou espaço, que é fechado e vez que para elas foram criadas fórmulas1 68.
cercado.” Tácito falava corretamente, pois Entre todas essas fórmulas, encontro uma
muitas leis dos códigos1 6 6 bárbaros tinham singular1 69. O avô chama à sucessão os netos
diferentes disposições contra os que des­ para que herdem juntamente com os filhos e
truíssem essa cerca e contra os que pene­ filhas. Que acontecia, portanto, com a lei sáli­
trassem na própria casa. ca? Cumpria que, mesmo nessa época, ela não
Sabemos por Tácito e César que as terras fosse observada ou que o uso contínuo de cha­
cultivadas pelos germanos só lhes eram dadas mar à sucessão as filhas tivesse feito com que
por um ano, tornando-se públicas depois desse sua possibilidade de herdar fosse encarada
prazo. Não tinham como patrimônio senão as como o caso mais comum.
casas e um pedaço de terra ao redor das mes­ Não tendo a lei sálica por objeto certa prefe­
mas1 6 7. É esse patrimônio particular que per­ rência por um sexo sobre outro, com muito
tencia aos homens. Com efeito, por que teria menos razão teria como objeto a perpetuidade
da família, do nome ou da transmissão da
163 Tít. LXII. (N. do A.)
terra; essas questões não passaram pela imagi­
1 6 4 Ecchard em suas Leges francorum Salicae et nação dos germanos. Tratava-se de uma lei
Ripuariorum (1720). puramente econômica que dava a casa, e a
1 6 5 Nullas Germanorum populis urbes habitari terra dela dependente, aos varões que a deviam
satis notum est, ne pati quidem inter se junctas habitar e a quem, consequentemente, convinha
sedes. Colunt discreti ac diversi, ut fons, ut campus,
ut nemus placuit. laicos locant, non in nostrum melhor.
morem connexis et cohaerentibus aedificiis: suam
quisque domum spatio circundai. De Moribus
Germ., cap. XVI. (N. do A.) 1 68 Vede Marculfo, liv. li, form. 10 e 12; o Apên­
166 A lei dos alemães, cap. X e a lei dos bávaros, dice de Marculfo, form. 49 e as fórmulas antigas,
tít. X, §§ 1 e 2. (N. do A.) ditas de Sirmond, form. 22. (N. do A.)
1 6 7 Esse recinto chamava-se curtis nas chartas. (N. 1 69 Form. 55, na coletânea de Lindembroch. (N.
do A.) do A.)
264 MONTESQUIEU

Basta transcrever aqui o título dos alódios era natural que as crianças considerassem a tia
da lei sálica, texto muito famoso, referido por como a própria mãe.
muitos e lido por poucos. A irmã da mãe tinha preferência com rela­
“l.° Se um homem morre sem deixar filhos, ção à irmã do pai. Isso se explica por outros
seu pai ou sua mãe lhe sucederão. 2.° Se não textos da lei sálica. Quando uma mulher ficava
tem pai nem mãe, o irmão ou a irmã lhe suce­ viúva1 7 4* , passava para a tutela dos parentes
derão. 3.° Se não tem nem irmão nem irmã, a do marido; a lei preferia para esta tutela os
irmã de sua mãe lhe sucederá. 4.° Se sua mãe parentes do lado materno aos parentes do lado
não tem irmã, a irmã de seu pai lhe sucederá. paterno. Com efeito, a mulher que entrava
° Se seu pai não tem irmã, o parente mascu­
5. numa família, unindo-se às pessoas de seu
lino mais próximo lhe sucederá1*70. 6.° Nenhu­ sexo, estava mais próxima dos parentes femini­
ma parcela1 71 da terra sálica passará às nos do que dos parentes masculinos. Além
mulheres, mas pertencerá aos varões, ou seja: disso, se um1 75 homem assassinasse outro e
os filhos varões sucederão a seu pai.” não tivesse com que ressarcir a pena pecu­
É claro que os cinco primeiros artigos dizem niária na qual incorrera, a lei permitia-lhe
respeito à sucessão de quem morre sem deixar ceder seus bens e os parentes deveríam cobrir o
filhos, e o sexto, à sucessão de quem tem que faltasse. Depois do pai, da mãe e da irmã,
filhos. era a irmã da mãe que pagava, como se esse
Quando um homem morria sem deixar laço tivesse algo de mais terno. Ora, o paren­
filhos, a lei estipulava que nenhum dos dois tesco que dava os encargos devia igualmente
sexos tivesse preferência sobre o outro a não dar as vantagens.
ser em certos casos. Nos dois primeiros graus A lei sálica determinava que, depois da irmã
de sucessão, as vantagens dos varões e das do pai, o parente masculino mais próximo
mulheres eram as mesmas; no terceiro e no tivesse a sucessão, mas, se o parentesco fosse
quarto, as mulheres tinham preferência e os além do quinto grau, ele nada herdava. Assim,
varões a tinham no quinto. uma mulher no quinto grau sucedería em pre­
juízo de um varão no sexto, e isso se vê na
Encontro as sementes dessas esquisitices em lei1 76 dos francos ripuários, fiéis intérpretes
Tácito. “Os filhos1 72 das irmãs”, diz ele, “são da lei sálica, no título dos alódios, onde ela
tão queridos pelo tio como pelo próprio pai. segue passo a passo o mesmo título da lei
Há pessoas que consideram este liame como sálica.
mais estreito e mesmo mais sagrado; prefe­ Se o pai deixava descendentes, a lei sálica
rem-no ao tornar reféns.” É por isso que nos­ estipulava que as filhas fossem excluídas da
sos primeiros historiadores1 73 falam-nos tanto sucessão da terra sálica e que esta pertencesse
do amor dos reis francos pela irmã e pelos fi­ aos varões.
Ser-me-á fácil provar que a lei sálica não ex­
lhos dela, pois, se os filhos das irmãs eram
considerados na casa como os próprios filhos,
clui indistintamente as filhas da terra sálica,
mas somente no caso de os irmãos as
excluírem.
1 70 Laboulaye nota que “no texto publicado por 1. ° Vemos isso na própria lei sálica que,
Baluze são as irmãs do pai que sucedem, antes das após declarar que as mulheres nada possuirão
irmãs da mãe”. da terra sálica, mas somente os varões, inter­
1 71 De terra vero salica in mulierem nulla portio
hereditatis transit, sed hoc virilis sexus acquirit, hoc preta-se e restringe-se a si própria, “isto é”, diz
est filii in ipsa hereditate succedunt. Tit. LXII, § 6. ela, “que o filho sucederá na herança do pai.”
(N. do A.) 2. ° O texto da lei sálica é esclarecido peJa Jei
1 72 Sororum Jtliis idem apud avunculum quam dos francos ripuários, que também tem o títu­
apud patrem honor. Quidam sanctiorem arctio-
remque hunc nexurn sanguinis arbitrantur, et in lo1 7 7 dos alódios, muito semelhante ao da lei
accipiendis obsidibus magis exigunt, tanquam ii et sálica.
animum firmius et domum latius teneant. De Mori-
bus Germ., cap. XX. (N. do A.)
1 73 Vede, em Gregório de Tours, liv. VII, cap. 1 7 * Lei sálica, tít. XLVII. (N. do A.)
XVIII e XX; liv. IX, cap. XVI e XX, as cóleras de 1 7 8 ibid., tít. LXI, § 1. (N. do A.)
Gontrão com relação aos maus tratos infligidos a 1 7 6 Et deinceps usque ad quintum genuculum qui
Ingunda, sua sobrinha, por Leuvigildo, e como seu proximus fuerit in hereditatem succedat. Tít. LVI, §
irmão, Gildeberto, guerreou a fim de vingá-la. (N. 6. (N. do A.)
do A.) 177 Tít. LVI. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 265

3. ° As leis desses povos bárbaros, todos estabelecimento dos feudos, mas foi o apareci­
originários da Germânia, interpretam-se mu­ mento desses últimos que impôs limites à
tuamente, tanto mais que todas elas têm sucessão feminina e às disposições da lei
aproximadamente o mesmo espírito. A lei dos sálica.
saxões1*78 exige que o pai e a mãe deixem sua Depois do que acabamos de dizer, não se
herança aos filhos e não às filhas mas que, se acreditaria que a sucessão perpétua dos varões
só tiverem filhas, a elas caberá toda a herança. à coroa da França pudesse ter-se originado da
4. ° Temos duas antigas fórmulas1 79 que lei sálica. Entretanto, é indubitável que ela se
colocam o caso em que, de acordo com a lei originou dessa lei. Demonstrá-lo-ei pelos di­
sálica, as filhas são excluídas pelos varões; é versos códigos das leis bárbaras. A lei sáli­
quando elas concorrem com o irmão. ca182 e a lei dos borguinhões183 não conce­
5. ° Outra fórmula1 80 prova que a filha her­ diam às filhas o direito de herdar a terra, com
dava em prejuízo do neto; ela era, portanto, seus irmãos; elas também não tinham direito
excluída apenas pelo irmão. de sucessão à coroa. A lei dos visigodos1 8 4.
6. ° Se as filhas, pela lei sálica, tivessem sido pelo contrário, admite que as filhas1 8 5 pos­
geralmente afastadas da sucessão das terras, sam, juntamente com os irmãos, herdar a
seria impossível explicar as histórias, as fór­ terra; as mulheres eram capazes de suceder à
mulas e as cartas que se referem continua­ coroa. Entre esses povos, a disposição da lei
mente às terras e aos bens das mulheres na pri­ civil forçou1 8 6 a lei política.
meira raça. Este não foi o único caso em que a lei políti­
Tem-se1 81 errado ao dizer que as terras sá-
ca, entre os francos, dobrou-se ante a lei civil.
licas eram feudos. l.° Este título é chamado
Pela disposição da lei sálica, todos os irmãos
dos alódios. 2.° Inicialmente, os feudos não
sucediam igualmente à terra e esta era também
eram hereditários. 3.° Se as terras sálicas tives­
a disposição da lei dos borguinhões. Destarte,
sem sido feudos, como Marculfo teria chama­
na monarquia franca e na dos borguinhões,
do de ímpio o costume que excluía as mulheres
todos os irmãos sucediam à coroa, com algu­
de sua sucessão, uma vez que os próprios
mas violências, assassínios e usurpações, entre
varões não herdavam os feudos? 4.° As char-
esses últimos.
tas, que são citadas para provar que as terras
sálicas eram feudos, provam apenas que elas
eram terras francas. 5.° Os feudos somente 182 Tít. LXII. (N. do A.)
foram estabelecidos após a conquista e as prá­ 183 Tít. I, § 3; tít. XVI, § 1, e tít. LI. (N. do A.)
18 4 Liv. IV, tít. II, § 1. (N. do A.)
ticas sálicas existiam antes que os francos dei­ 185 Os povos germânicos, diz Tácito, De Moribus
xassem a Germânia. 6.° Não foi a lei sálica Germ., cap. XXII, possuíam costumes comuns, mas
que, limitando a sucessão feminina, levou ao tinham também os que lhes eram particulares. (N.
do A.)
186 A coroa, entre os ostrogodos, passou por duas
1 7 8 Tít. VII, § 1. Pater aut mater defuncti, filio non vezes aos homens pelas mulheres: uma, por Amala-
filiae hereditatem relinquant. § 4. Qui defunctus, sunta na pessoa de Atalarico, e outra por Amala-
non fllios sedfilias reliquerit, ad eas omnis hereditas freda na pessoa de Teodato. Não é que, entre eles,
pertineat. (N. do A.) as mulheres não pudessem reinar por si próprias.
1 79 Em Marculfo, liv. II, form. 12, e no Apêndice Amalasunta reinou depois da morte de Atalarico, e
de Marculfo,form. 49. (N. do A.) reinou mesmo depois da eleição de Teodato, e
180 Na coletânea de Lindembroch, form. 55. (N. concorrentemente com ele. Vede as cartas de Ama­
do A.) lasunta e de Teodato, em Cassiodoro, liv. X. (N. do
1 81 Du Cange, Pitrou, etc. (N. do A.) A.)

Capítulo XXIII

Da longa cabeleira dos reis francos

Os povos que não cultivam as terras não germânicos; as artes não eram aplicadas em
têm a mesma idéia do luxo. É preciso ver, em seus ornamentos, eles as encontravam na
Tácito, a admirável simplicidade dos povos Natureza. Se a família de seus chefes devia ser
266 MONTESQUIEU

distinguida por algum sinal, era na própria francos, dos borguinhões e dos visigodos ti­
Natureza que deveríam procurá-lo. Os reis dos nham por diadema sua longa cabeleira.

Capítulo XXIV

Do casamento dos reis francos

Disse mais acima que, entre os povos que que, não por devassidão mas por nobreza, pos­
não cultivam as terras, os casamentos eram suíam várias.”
muito menos estáveis e que se tomavam, geral­ Isto explica como os reis da primeira raça
mente, muitas mulheres, “Os germanos eram tiveram um tão grande número de mulheres.
quase os únicos1 8 7 de todos os bárbaros que Esses casamentos eram menos um testemunho
se contentavam com uma única mulher, com de incontinência do que um atributo de digni­
exceção188”, afirma Tácito, “de alguns deles dade: retirar-lhes tal prerrogativa significaria
feri-los num lugar muito delicado189. Isto
18 7 Prope soli barbarorum singulis uxoribus con- explica por que o exemplo dos reis não foi
tenti sunt. De Moribus Germ., cap. XVIII. (N. do seguido pelos súditos.
A.)
188 Exceptis admodum paucis qui, non libidine sed
ob nobilitatem, plurimis nuptiis ambiuntur. Ibid. (N. 189 Vede a Crônica de Fredegário, no ano 628. (N.
do A.) do A.)

Capítulo XXV

Childerico

“Os casamentos entre os germanos são seve­ há poucos exemplos1 91, num povo tão nume­
ros1 90”, diz Tácito, “os vícios não são motivo roso, de violação da fé conjugal.”
de ridículo: corromper ou ser corrompido não Isto explica a expulsão de Childerico; ele
se chama um hábito ou uma maneira de viver; violara os rígidos costumes que a conquista
ainda não tivera tempo de mudar.
190 Severa matrimonia. . . Nemo illic vitia ridet;
nec corrumpere et corrumpi saeculum vocatur. De 191 Paucissima in tam numerosa gente adulteria.
Moribus Germ., cap. XIX. (N. do A.) Ibid. (N. do A.)

Capítulo XXVI

Da maioridade dos reis francos

Os povos bárbaros, que não cultivam as ter­ tratavam de nenhum negócio público ou parti­
ras, não possuem propriamente um território e cular sem estarem armados. Apresentavam sua
são, como dissemos, antes governados pelo opinião1 93 por um sinal que faziam com suas
direito das gentes do que pelo direito civil. Eles armas. Assim que podiam194 carregá-las,
estão, portanto, quase sempre armados. Desta eram apresentados à assembléia; punham-lhes
maneira, Tácito diz “que os germanos1 92 não
1 93 Si displicuit sententia, aspernantur; sin placuit,
frameas concutiunt. Ibid., cap. XI. (N. do A.).
192 Nihil neque publicae, neque privatae rei, nisi 19 4 Sed arma sumere non ante cuiquam moris
armati agunt. Tácito, De Moribus Germ., cap. XIII. quam civitas sujfecturum probaverit. Ibid., cap.
(N. do A.) XIII. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS III 267

nas mãos um dardo19 5; desde esse momento Vemos na lei dos ripuários, na idade dos
saíam da infância196; eram uma parte da quinze anos, a capacidade de carregar armas e
família e tornavam-se uma parte da repúbli­ a maioridade marcharem juntas. “Se um ripuá-
ca”. rio é morto, ou foi morto”, diz essa lei200,
“As águias”, dizia1 9 7 o rei dos ostrogodos, “tendo deixado um filho, este não poderá con­
“deixam de alimentar os filhotes logo que suas denar, nem ser condenado em julgamento, até
penas e unhas estão desenvolvidas; estes não que possua quinze anos completos; então ele
necessitam de socorro alheio quando vão sozi­ mesmo responderá ou escolherá um campeão.”
nhos em busca de uma presa. Seria indigno
Era mister que o espírito estivesse suficiente­
que nossos jovens que estão em nossos exérci­
mente formado para se defender em julga­
tos fossem considerados muito jovens para mento, como também o estivesse o corpo para
administrar seus bens e para orientar a condu­
se defender em combate. Entre os borgui­
ta de sua vida. Entre os godos, é a virtude que
nhões201 , que também tinham o hábito do
determina a maioridade.”
Childeberto II tinha quinze198 anos quan­ combate nas ações judiciais, a maioridade
também era de quinze anos.
do Gontrão, seu tio, o declarou maior e capaz
de governar sozinho1 99. Agatias conta-nos que as armas dos francos
eram leves; a maioridade podia ser obtida aos
quinze anos. Posteriormente, as armas torna-
19 5 Tum in ipso concilio, velprincipum aliquis, vel ram-se pesadas, sendo-o já bastante na época
pater, vel propinquus, scuto frameaque juvenem
ornant. (N. do À.) de Carlos Magno, como mostram nossas capi­
19 6 Haec apud illos toga, hic primus Juventae tulares ou nossos romances. Os
honos; ante hoc domus pars videntur, mox reipubli- que202 possuíam feudo e que, consequente­
cae. (N. do A.)
19 7 Teodorico, em Cassiodoro, liv. I, carta 38. (N. mente, deviam fazer o serviço militar, só atin­
do A.) giram a maioridade aos vinte e um anos203 .
198 Ele mal tinha cinco anos, diz Gregório de
Tours, liv. V, cap. I, quando sucedeu a seu pai, no
ano 575, e tinha, portanto, cinco anos. Gontrão o 200 Tít. LXXXI. (N. do A.)
declarou maior no ano de 585; tinha, então, quinze 2 01 Tít. LXXXVII. (N. do A.)
anos. (N. do A.) 202 Para os plebeus não houve modificação. (N. do
199 Gregório de Tours, VII, cap. XXXIII. Gon­ A.)
trão declarou maior seu sobrinho Childeberto que já 203 São Luís apenas atingiu a maioridade com
era rei e, além disso, fe-lo seu herdeiro. Ver infra, essa idade. Isso mudou por um ano o edito de Car­
cap. XXVIII. (N. do A.) los V, do ano de 1374. (N. do A.)

Capítulo XXVII

Continuação do mesmo assunto

Vímos que, entre os germanos, não se com­ Childeberto os degolaram e dividiram seu
parecia às assembléias antes da maioridade; reino. Esse exemplo fez com que, posterior­
era-se parte da família mas não da república. mente, os príncipes órfãos fossem declarados
Isso fez com que os filhos de Clodomiro, rei de reis imediatamente depois da morte dos pais.
Orleans e conquistador da Borgonha, não fos­
Assim, o Duque Gondovaldo salvou Childe­
sem declarados reis porque, na tenra idade em
que se achavam, não podiam estar presentes berto II da crueldade de Chilperico e o procla­
na assembléia. Ainda não eram reis mas deve­ mou rei2 0 5 com a idade de cinco anos.
ríam sê-lo quando fossem capazes de carregar Porém, nesta própria modificação, obede­
armas e, enquanto isso, Clotilde, sua avó, ceu-se, em primeiro lugar, ao espírito da
governava o Estado20 4. Seus tios Clotário e nação, de modo que os atos nem sequer eram
20 4 Parece, por Gregório de Tours, liv. III, que ela feitos em nome dos reis pupilos. Destarte,
escolheu dois homens de Borgonha, que era uma
conquista de Clodomiro, para educá-los na capital 20 5 Gregório de Tours, liv. V, cap. I. Vix lustro
de Tours, que também era do reino de Clodomiro. aetatis uno jam peracto, qui die dominicae natalis,
(N. do A.) regnare coepit. (N. do A.)
268 MONTESQUIEU
houve entre os francos uma dupla administra­ feudos, houve uma diferença entre a tutela e o
ção: uma que dizia respeito à pessoa do rei pu­ bailio20 6.
pilo e outra que dizia respeito ao reino; nos
20 6 A tutela se aplica à pessoa, o bailio à terra.

Capítulo XXVIII

Da adoção entre os germanos

Como, entre os germanos, em recebendo querendo adotar o rei dos hérulos, escreveu-
armas, obtinha-se a maioridade, a adoção era lhe208: “É uma bela coisa entre nós poder ser
efetuada sob o mesmo símbolo. Assim, Gon- adotado pelas armas, porque os homens cora­
trão, querendo declarar maior seu sobrinho josos são os únicos que merecem tomar-se
Childeberto e também adotá-lo, disse-lhe: nossos filhos. Há uma tal força nesse ato, que
“Coloquei20 7 esse dardo em tuas mãos como
aquele que dele é objeto preferirá sempre mor­
um símbolo de que te dei meu reino”. E,
voltando-se para a assembléia: “Vedes que rer a suportar algo de vergonhoso. Assim, pelo
meu filho Childeberto tornou-se um homem; costume dos povos e porque sois um homem,
obedecei-lhe”. Teodorico, rei dos ostrogodos, adotamos-vos por esses escudos, por essas
espadas, esses cavalos, que vos enviamos”.
20 7 Vede Gregório de Tours, liv. VII, cap. XXIII.
(N. do A.) 208 Em Cassiodoro, liv. IV, carta II. (N. do A.)

Capítulo XXIX

Espírito sanguinário dos reis francos

Clóvis não foi o único dos príncipes, entre conseguiu. Temia, diz Gregório de Tours210,
os francos, que empreendeu expedições nas que os francos tomassem outro chefe. Seus fi­
Gálias. Muitos de seus parentes para lá tinham lhos e seus sucessores adotaram a mesma prá­
levado tribos particulares; como ele obtivesse tica tanto quanto puderam. Viram-se irmãos,
grandes êxitos, podendo dar estabelecimentos tios, sobrinhos, que digo? filhos, pais, conspi­
consideráveis aos que o tinham seguido, fran­
cos de todas as tribos acorreram-lhe e os de­ rarem incessantemente contra toda a família.
mais chefes encontraram-se muito enfraque­ A lei separava constantemente a monarquia; o
cidos para lhe resistir. Ele se impôs como temor, a ambição e a crueldade queriam
objetivo exterminar toda a sua casa209 e o reuni-la.

209 Gregório de Tours, liv. II. (N. do A.) 210 Ibid. (N. do A.)

Capítulo XXX

Da assembléia da nação entre os francos

Dissemos acima que os povos que não culti- germanos estavam nesse caso. Tácito conta
vam as terras gozam de grande liberdade. Os que eles só outorgavam a seus reis ou chefes
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 269

um poder muito moderado211, e César212, negócios dos quais o povo toma conhecimento
que eles não possuíam magistrado comum são levados diante do príncipe.” Esse costume
durante a paz, mas que, em cada aldeia, os consefrvou-se após a conquista, como se vê21 5
príncipes faziam a justiça entre os seus. Desta em todos os monumentos.
maneira, os francos, na Germânia, não pos­
Tácito21 6 diz que os crimes capitais podiam
suíam reis, como Gregório de Tours213 prova
ser levados diante da assembléia. Essa prática
muito bem.
“Os príncipes21 4”, diz Tácito, “deliberam continuou após a conquista e os grandes vas­
sobre as pequenas coisas, toda a nação sobre salos aí foram julgados.
as grandes, de tal maneira, entretanto, que os
21 4 De minoribus príncipes consultant, de mqjori-
bus omnes; ita tamen ut ea quorum penes plebem
211 Nec regibus libera aut infinita potestas. Caete- arbitrium est, apud príncipes quoque pertractentur.
rum neque animadvertere, neque vincire, neque ver- De Moribus Germ., cap. XI. (N. do A.)
berare, etc. De Moribus Germ., cap. XXII. (N. do
A.) 21 5 Lex consensu populi fit et constitutione regis.
212 In pace nullus est communis magistratus; sed Capitulares de Carlos, o Calvo, ano 864, art. 6. (N.
príncipes regionum atque pagorum inter suos jus do A.)
dicunt. De Bello Gall., liv. VI, cap. XXII. (N. do 21 6 Licet apud concilium accusare et discrimen
A.) capitis intendere. De Moribus Germ., cap. XII. (N.
213 Liv. II. (N. do A.) do A.)

Capítulo XXXI

Da autoridade do clero na primeira raça

Entre os povos bárbaros, os sacerdotes por uma inspiração da divindade, sempre pre­
geralmente têm o poder, porque dispõem da sente aos que fazem a guerra.
autoridade que devem receber da religião e o Não nos devemos espantar se, desde os iní­
cios da primeira raça, vemos os bispos serem
poder que entre tais povos dá a superstição.
os árbitros21 9 dos julgamentos, se os vemos
Destarte, vemos em Tácito que os padres eram aparecer nas assembléias da nação, se eles
muito prestigiados entre os germanos, porque foram tão influentes nas resoluções dos reis e
policiavam21 7 a assembléia do povo. Só a se a eles foram dados tantos bens.
eles21 9 era permitido castigar, prender, bater,
coisa que faziam, não por uma ordem do prín­ 218 Nec regibus libera aut infinita potestas. Caete-
rum neque animadvertere, neque vincire, neque ver-
cipe, nem para infligir uma pena, mas como berare, nisi sacerdotibus est permissum; non quasi
in poenam, nec ducis jussu, sed velut Deo imperan-
te, quem adesse bellatoribus credunt. Ibid., cap. VII.
21 7 Silentium per sacerdotes, quibus et coercendi (N. do A.)
jus est, imperatur. De Moribus Germ., cap. XI. (N. 219 Vede a constituição de Clotário do ano 560,
do A.) art. 6. (N. do A.)
LIVRO DÉCIMO NONO
DAS LEIS EM SUAS RELAÇÕES COM OS PRINCÍPIOS
QUE FORMAM O ESPÍRITO GERAL,
OS COSTUMES E AS MANEIRAS DE UM POVO
Capítulo I

Do assunto deste livro

Esta matéria é muito extensa. Dessa multidão de idéias que se apresentam a meu espírito, darei
mais atenção à ordem das coisas do que às próprias coisas. É preciso que eu afaste à direita e à
esquerda, desvende e me esclareça

Capítulo II

Como, para as melhores leis, é necessário


que os espíritos estejam preparados

Nada parece mais insuportável aos germa­ acostumados a dela fruir. Assim é que, algu­
nos220 que o tribunal de Varo. Aquele que mas vezes, o ar puro é prejudicial aos que vive­
Justiniano erigiu221 entre os lazianos, para ram nas regiões pantanosas.
processar o assassino de seu rei, pareceu-lhes Um veneziano, chamado Balbi, estando em
uma coisa horrível e bárbara. Mitridates222, Pegu, foi apresentado ao rei. Quando este
arengando contra os romanos, censura-lhes soube que em Veneza não existiam reis, riu
sobretudo as formalidades223 de sua justiça. tanto e foi acometido por um acesso de tosse
Os partos não puderam suportar esse rei que, que lhe deu muita dificuldade para falar a seus
tendo sido educado em Roma, tornou-se afável cortesãos22 4. Que legislador poderia propor o
e acessível a todos. A própria liberdade pare­ governo popular a povos semelhantes?
ceu insuportável a povos que não estavam
22 4 Balbi apresentou a descrição do Pegu em 1596.
220 Eles cortavam a língua dos advogados e Recueil des Voyages qui ont Servi à l "Établissement
diziam: Víbora,pára de sibilar. Tácito. (N. do A.) de la Compagnie des Indes, t. III, parte I, pág. 33.*
2 21 Agatias, liv. IV. (N. do A.) (N. do A.)
2 2 2 Justino, liv. XXXVIII. (N. do A.) * Pegu: capital de um reino do mesmo nome, ane­
223 Calumnias litium. Ibid. (N. do A.) xado pelos ingleses ao reino de Bengala em 1853.

Capítulo III

Da tirania

Há duas espécies de tirania: uma real, que temia que não quisesse sagrar-se rei, mudou de
consiste na violência do governo, e outra de idéia. Os primeiros romanos não queriam reis
opinião, que se faz sentir quando os que gover­ porque não lhes poderíam suportar o poder.
nam estabelecem coisas que chocam a maneira Porque, apesar de César, os triúnviros e
de pensar de uma nação. Augusto serem verdadeiros reis, eles conser­
Dion diz que Augusto quis se fazer chamar varam toda a aparência de igualdade e suas
Rômulo mas que, tendo sabido que o povo vidas particulares encerravam uma espécie de
274 MONTESQUIEU

oposição com os faustos dos reis dessa época indignara contra Augusto, por causa de certas
e, quando os romanos não queriam reis, isto leis muito severas que ele fizera, mas que,
significava que queriam conservar seus costu­ assim que fez retornar o comediante Piládio,
mes e não copiar os dos povos da África e do que as facções tinham expulsado da cidade, o
Oriente. descontentamento cessou. Esse povo sentia
Dion22 5 relata-nos que o povo romano se mais vivamente a tirania quando se expulsava
um truão do que quando se lhe suprimiam
22 5 Liv. LIV, cap. XVII, pág. 532. (N. do A.) todas as leis.

Capítulo IV

O que é o espírito geral

Muitas coisas governam os homens: o maneiras governam os chineses; as leis tirani­


clima, a religião, as leis, as máximas do gover­ zam o Japão; os costumes serviam de regra
no, os exemplos das coisas passadas, os costu­ outrora na Lacedemônia; as máximas do
mes, as maneiras, resultando disso a formação governo e os costumes antigos o faziam em
de um espírito geral. Roma22 6.
À medida que, em cada nação, uma dessas
causas age com mais força, as demais lhe 22 6 ... os costumes antigos, mores majorum,
cedem outro tanto. Entre os selvagens, a natu­ expressão com sentido bem definido e jurídico entre
reza e o clima dominam quase sozinhos; as os romanos.

Capítulo V

Como se deve estar atento para não modificar


o espírito geral de uma nação

Se existisse no mundo uma nação que tives­ Poder-se-ia conter as mulheres, decretar leis
se um temperamento social, uma sinceridade para corrigir seus costumes, e limitar seu luxo,
de coração, umá alegria na vida, um gosto, mas quem sabe se não perderiamos certo gosto
uma facilidade em comunicar seus pensamen­ que seria a fonte das riquezas da nação, e uma
tos; que fosse viva, agradável, algumas vezes polidez que atrai para ela os estrangeiros?
imprudente, muitas vezes indiscreta; e que Cabe ao legislador obedecer ao espírito da
tivesse, juntamente com tudo isso, coragem, nação, quando ele não é contrário aos princí­
generosidade, franqueza, certo pundonor, não pios do governo, pois nada fazemos melhor do
se deveria procurar constranger, com leis, suas que aquilo que fazemos livremente, obede­
maneiras, para não prejudicar suas virtudes. cendo a nossa inclinação natural.
Se, em geral, o caráter é bom, não importa que Dê-se um espírito de pedanteria a um povo
alguns defeitos aí se encontrem22 7. naturalmente alegre: o Estado nada ganhará
com isso, nem interna nem externamente. Dei­
22 7 É bem evidente que Montesquieu traça tam­ xai-o fazer as coisas frívolas seriamente e
bém aqui uma imagem da França de seu tempo. alegremente as coisas sérias.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 275

Capítulo VI

Como não se deve tudo corrigir

Que nos deixem como somos, dizia um oferece, inspirando-nos o gosto pela sociabili­
gentil-homem de uma nação que se assemelha dade e, sobretudo, pelo trato com as mulheres.
muito àquela da qual acabamos de dar uma Que nos deixem tal como somos. Nossas
idéia. A Natureza tudo corrige. Ela nos deu qualidades indiscretas, unidas a nossa pouca
uma vivacidade capaz de ofender e apta a nos malícia, fazem com que as leis que constran­
fazer faltar a todos os respeitos; essa mesma gessem o temperamento sociável entre nós não
vivacidade é corrigida pela polidez que ela nos sejam convenientes.

Capítulo VII

Dos atenienses e dos lacedemônios

Os atenienses, prosseguia esse gentil-ho­ vivacidade que punham nos conselhos, leva-
mem, formavam um povo que tinha alguma vam-na para a execução. O caráter dos lacede­
mônios era grave, sério, seco, taciturno. Não
relação com o nosso: introduziam jovialidade
se tiraria mais proveito de um ateniense abor-
nos negócios. Uma pequena facécia lhes agra­ recendo-o do que de um lacedemônio, divertin­
dava, tanto na tribuna como no teatro. Esta do-o.

Capítulo VIII

Efeitos do temperamento sociável

Quanto mais os povos se comunicam, mais mes e forma o gosto; o desejo de se adornar
modificam facilmente as maneiras, porque mais do que os outros estabelece os enfeites, e
cada um é mais um espetáculo para o outro: o desejo de agradar mais do que por si mesmo
vêem-se melhor as singularidades dos indiví­ estabelece as modas. As modas são um objeto
duos. O clima que faz com que um povo goste importante: à força de tornar o espírito frívolo,
de se comunicar, faz também com que ele aumentam-se incessantemente os ramos de seu
goste de variar, e o que faz com que um povo comércio228.
goste de variar, faz também com que forme seu
22 8 Vede A Fábula das Abelhas*. (N. do A.)
gosto. * A Fábula das Abelhas, romance filosófico inglês
A sociedade das mulheres desgasta os costu­ de Mandeville.

Capítulo IX

Da vaidade e do orgulho dos povos

A vaidade é uma força tão boa para um sa. Para ver isto basta imaginar, de um lado,
governo quanto o orgulho é uma força perigo- os inumeráveis benefícios que decorrem da
276 MONTESQUIEU

vaidade: o luxo, a indústria, as artes, as indolentes; os que não possuem escravos alu­
modas, a polidez, o gosto; e, de outro lado, os gam um, mesmo que seja para andar cem pas­
infinitos malefícios que nascem do orgulho de sos e carregar duas pintas de arroz; conside-
certos povos: a indolência, a pobreza, o aban­ rar-se-iam desonrados se eles próprios as
dono de tudo, a destruição das nações que o carregassem.
acaso fez cair entre suas mãos, e sua própria Há vários lugares da terra em que se deixa
destruição. A preguiça229 é o resultado do crescer as unhas para mostrar que não se
orgulho; o trabalho é uma consequência da trabalha.
vaidade; o orgulho de um espanhol leva-lo-á a
As mulheres das índias231 crêem que lhes é
não trabalhar; a vaidade de um francês levá-
vergonhoso aprender a ler; esse assunto, dizem
lo-á a saber trabalhar melhor que os outros.
Todo povo preguiçoso é grave, pois os que elas, cabe aos escravos que entoam cânticos
não trabalham se consideram como soberanos nos pagodes. Numa casta, elas não fiam; em
dos que trabalham. outra, apenas fazem cestos e esteiras, não
Examinai todos os povos e vereis que, na devendo mesmo pilar o arroz; em outras, não
maioria, a gravidade, o orgulho e a indolência devem buscar água. O orgulho, aí, estabeleceu
marcham na mesma cadência. suas regras e faz com que sejam obedecidas.
Os povos de Achim230 são orgulhosos e Não é necessário dizer que as qualidades mo­
rais têm efeitos diferentes segundo estejam uni­
229 Os povos que obedecem ao cã de Malacamber, das a outras. Assim, o orgulho, unido a uma
os de Camataca e os de Coromandel, são povos
orgulhosos e preguiçosos; consomem pouco, porque grande ambição, à grandeza de idéias, etc.,
são miseráveis, enquanto os mongóis e os povos do produziu entre os romanos o resultado que
Hindustão trabalham e fruem das comodidades da conhecemos.
vida, como os europeus. Recueil des Voyages qui
ont Servi à VÉtablissement de la Compagnie des
Indes, 1.1, pág. 54. (N. do A.) 2 31 Lettres Édifiantes, duodécima coleção, pág. 80.
230 Vede Dampier, t. III. (N. do A.) (N. do A.)

Capítulo X

Do caráter dos espanhóis e dos chineses

Os diversos caracteres dos povos estão mes­ arrependeram. Mas essa qualidade admirável,
clados de virtudes e de vícios, de boas e más unida à preguiça, forma uma mistura cujo
qualidades. As misturas felizes são aquelas resultado lhes é pernicioso: os povos da Euro­
que produzem grandes benefícios que frequen­ pa fazem, sob seus olhos, todo o comércio de
temente não seriam suspeitados; há misturas sua monarquia.
das quais resultam grandes males, que muito O caráter dos chineses forma outra mistura
menos seriam suspeitados. que está em contraste com o caráter dos espa­
A boa-fé dos espanhóis sempre foi famosa. nhóis. Sua vida precária23 4 faz com que te­
Justino232 fala-nos de sua fidelidade em guar­ nham uma atividade prodigiosa e um desejo de
dar os depósitos2 3 3 ; muitas vezes, morreram lucro tão grande, que nenhum povo comer­
para mantê-los secretos. Esta fidelidade que ciante pode fiar-se neles23 5. Esta reconhecida
outrora possuíam, ainda hoje a conservam. infidelidade conservou-lhes o comércio com o
Todos os povos que comerciam em Cádiz con­ Japão; nenhum comerciante europeu ousou
fiam suas fortunas aos espanhóis e nunca se empreendê-lo sob o nome deles, qualquer que
fosse a facilidade que para isso tivesse, através
2 3 2 Liv. XLIV, cap. II. (N. do A.) de suas províncias marítimas do Norte.
233 Crévier pretende que Justino se refere apenas à
fidelidade dos espanhóis em conservar os “segre­
dos”: Saepe tormentis pro silentio rerum creditarum 23 4 Pela natureza do clima e do solo. (N. do A.)
immortui. 23 5 Padre du Halde, t. II. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS III 277

Capítulo XI

Reflexão

Não disse tudo isso para diminuir em nada cos não são vícios morais, e como todos os ví­
a distância infinita que há entre os vícios e as cios morais não são vícios políticos, e é isso
virtudes; que Deus não permita! Pretendi que não devem ignorar os que fazem leis que
somente mostrar como todos os vícios políti­ afetam o espírito geral.

Capítulo XII

Das maneiras e dos costumes no Estado despótico

É máxima capital nunca mudar os costumes ções. Portanto, modificam-se menos as manei­
e as maneiras no Estado despótico; nada ocor­ ras e os costumes. As maneiras mais fixas
rería tão prontamente como uma revolução. É aproximam-se mais das leis. Assim, cumpre
que, nesses Estados, não há leis, por assim que um príncipe ou um legislador aí contrarie
dizer; há somente costumes e maneiras e, se menos os costumes e as maneiras do que em
derrubardes isso, derrubareis tudo. qualquer outro país.
As leis são estabelecidas, os costumes são As mulheres são geralmente enclausuradas e
inspirados; estes concernem mais ao espírito não têm opinião a emitir. Em outros países em
geral; aquelas a uma instituição particular; que vivem com os homens, o desejo que têm de
ora, é tão perigoso, e mesmo mais, destruir o agradar, e o desejo que também se tem de
espírito geral quanto modificar uma instituição agradá-las, fazem com que se mude constante­
particular. mente de maneiras. Os dois sexos estragam-se
Comunica-se menos nos países em que cada mutuamente, perdendo ambos sua qualidade
um, tanto o superior como o inferior, exerce e distintiva e essencial; surge um arbitrário no
suporta um poder arbitrário, do que nos países que era absoluto, e as maneiras transformam-
em que a liberdade reina em todas as condi­ se diariamente.

Capítulo XIII

Das maneiras dos chineses

Mas é na China que as maneiras são indes­ transmitidas como preceitos e por circuns­
trutíveis. Além de serem as mulheres absoluta­ pectos doutores, fixam-se como princípios de
mente separadas dos homens, nas escolas ensi- moral e não mudam mais.
nam-se tanto as maneiras como os costumes.
Conhece-se um letrado23 6 pela maneira como
ele faz a reverência. Essas coisas, uma vez 23 6 Diz o Padre du Halde (N. do A.)
278 MONTESQUIEU

Capítulo XIV

Quais são os meios naturais de mudar os


costumes e as maneiras de uma nação

Dissemos que as leis eram instituições parti­ atraiu à corte, fê-las vestirem-se à moda alemã,
culares e exatas do legislador e os costumes e enviou-lhes tecidos. Este sexo experimentou
as maneiras, instituições da nação em geral. então uma maneira de viver que agradava
Disso decorre que, quando se quer modificar muito fortemente seu gosto, sua vaidade e suas
os costumes e as maneiras, não é com leis que paixões, e fez com que os homens também a
se deve modificá-los: isto parecería muito tirâ­ apreciassem.
nico; é melhor modificá-los por outros costu­ O que tornou a transformação mais fácil foi
mes e outras maneiras. o fato de os costumes de então serem estranhos
Assim, quando um príncipe pretende intro­ ao clima, e haverem sido para aí levados por
duzir grandes modificações em sua nação, uma mistura de nações e pelas conquistas.
cumpre que reforme por leis o que está estabe­ Pedro I, impondo os costumes e as maneiras
lecido por leis, e que modifique por novas da Europa a uma nação da Europa, encontrou
maneiras o que está estabelecido pelas manei­ facilidades que ele próprio não esperava. A
ras. supremacia do clima é a primeira de todas as
A lei que obrigava os moscovitas a raspar a supremacias.
barba e encurtar as roupas, e a violência de Portanto, ele não necessitava de leis para
Pedro I, que mandava aparar até os joelhos os modificar os costumes e as maneiras de seu
trajes compridos dos que entravam na cidade, povo: ter-lhe-ia sido suficiente inspirar outros
eram tirânicas. Há meios para impedir os cri­ costumes e outras maneiras.
mes: as penas; há outros para acarretar a Em geral, os povos são muito apegados a
mudança das maneiras: os exemplos. A facili­ seus costumes; suprimir-lhos violentamente é
dade e a rapidez com que essa nação se poli­ torná-los infelizes. Não se deve, assim, modifi­
ciou demonstrou bem que esse príncipe lhe cá-los, mas fazer com que eles próprios os
tinha péssima opinião e que esses povos não modifiquem23 7 .
eram animais, como ele dizia. As medidas vio­ Toda pena que não deriva da necessidade é
lentas que empregou eram inúteis; ele teria tirânica. A lei não é um puro ato de poder; as
igualmente atingido seu objetivo pela brandu- coisas indiferentes por sua natureza não são de
ra. sua alçada.
Ele próprio experimentou a facilidade des­
sas modificações. As mulheres eram enclausu­ 23 7 Os modifiquem: a frase é anfibológica. Leia-se
radas e, de certa maneira, escravizadas; ele as “modifiquem esses costumes”.

Capítulo XV

Influência do governo doméstico na política

Tais mudanças nos costumes das mulheres indubitavelmente influenciarão muito o governo da
Moscóvia. Tudo está estreitamente relacionado: o despotismo do príncipe relaciona-se natural­
mente com a servidão das mulheres; a liberdade das mulheres, com o espírito da monarquia.
DO ESPIRITO DAS LEIS III 279

Capítulo XVI

Como alguns legisladores confundiram


os princípios que governam os homens

Os costumes e as maneiras são práticas que modo, de outro. Eles deram, portanto, às re­
as leis não estabeleceram, ou não puderam, ou gras da civilidade, o maior alcance.
não quiseram estabelecer. Assim, entre os povos chineses, viram-se
Há esta diferença entre as leis e os costu­ aldeões239 observarem entre si cerimônias
mes: as leis regem mais as ações do cidadão e como pessoas de elevada condição; meio
os costumes regem mais as ações do homem. muito próprio para inspirar a brandura, para
Há esta diferença entre os costumes e as manter entre o povo a paz e a boa ordem, e
maneiras: as primeiras concernem mais à con­ para extirpar todos os vícios que decorrem de
duta interior e as outras à exterior. um espírito inflexível. Com efeito, despojar-se
Algumas vezes, num Estado, essas coi­ das regras da civilidade não significa procurar
sas238 confundem-se. Licurgo fez um mesmo uma maneira de colocar os defeitos mais à
código para as leis, os costumes e as maneiras; vontade?
e os legisladores da China também fizeram o A civilidade vale mais, a esse respeito, do
mesmo. que a polidez. A polidez favorece os vícios dos
outros e a civilidade impede-nos de revelar os
Não nos devemos admirar se os legisladores
nossos: é uma barreira que os homens colocam
da Lacedemônia e os da China confundiram as
entre si para se impedirem de se corromper.
leis, os costumes e as maneiras. É que os cos­
Licurgo, cujas instituições eram severas,
tumes representam as leis, e as maneiras repre­
não teve como objetivo a civilidade quando
sentam os costumes.
formou as maneiras; tinha em mira este espí­
Os legisladores da China tinham como obje­
tivo principal fazer com que o povo vivesse rito belicoso que pretendia incutir em seu
tranquilo. Queriam que os homens muito se povo. Pessoas que estão sempre corrigindo, ou
que são sempre corrigidas, que instruem sem­
respeitassem, que cada qual sentisse a todo
pre e que são sempre instruídas, ao mesmo
instante que muito devia aos demais e que não
existia cidadão que não dependesse, de algum
tempo simples e rudes, praticariam mais entre
si as virtudes, do que teriam considerações.
238 Moisés estabeleceu um mesmo código para as
leis e a religião. Os primeiros romanos confundiram 239 Vede o Padre du Halde, Description de la
os costumes antigos com as leis. (N. do A.) Chine, t. II. (N. do A.)

Capítulo XVII

Propriedade particular ao governo da China

Os legisladores da China fizeram mais2 40; chinês triunfou. Passaram toda a sua vida
confundiram a religião, as leis, os costumes e aprendendo-os e toda a sua vida praticando-os.
as maneiras: tudo isso foi a moral, tudo isso Os letrados ensinaram-nos, os magistrados
foi a virtude. Os preceitos concernentes a esses ■pregaram-nos. E, como eles envolviam todas
quatro pontos foram chamados ritos. Foi na as pequenas ações da vida, logo que se encon­
estrita observância desses ritos que o governo trou o meio de fazer com que eles fossem estri­
tamente observados, a China foi bem governa­
2 40 Vede os livros clássicos dos quais o Padre du da.
Halde nos ofereceu tão belas passagens. (N. do A.) Duas coisas-puderam gravar facilmente os
280 MONTESQUIEU

ritos no coração e no espírito dos chineses: Os príncipes que, em lugar de governar


uma, a maneira de escrever extremamente pelos ritos, governaram pela força dos suplí­
complexa que fez com que, durante uma gran­ cios, quiseram que os suplícios fizessem o que
de parte de sua vida, o espírito estivesse ocupa­ não está no seu poder, ou seja, impor os costu­
do unicamente2*41 com esses ritos, porque era mes. Os suplícios efetivamente eliminarão da
necessário aprender a ler nos livros e pelos li­ sociedade um cidadão que, tendo perdido os
vros que os continham; outra, porque os pre­ bons costumes, viola as leis. Mas se todos per­
ceitos dos ritos, nada tendo de espiritual, mas
derem seus bons costumes, restabelecê-los-ão
sendo simplesmente regras de uma prática
eles? Os suplícios suprimirão, de fato, várias
comum, convencem e impressionam mais
facilmente os espíritos do que uma coisa consequências do mal geral, mas não corrigi­
intelectual. rão esse mal. Desta maneira, quando se aban­
donaram os princípios do governo chinês,
2 *1 Foi isso que estabeleceu a emulação, a fuga à quando a moral desapareceu, o Estado mergu­
ociosidade, e a estima pelo saber. (N. do A.) lhou na anarquia, e viram-se revoluções.

Capítulo XVIII

Consequência do capítulo precedente

Disso resulta que a China não perde suas sua participação nos sacramentos, a confissão
leis pela conquista. As maneiras, os costumes, auricular, a extrema-unção, a monogamia,
as leis, a religião, sendo nesse país a mesma tudo isso aniquila os costumes e as maneiras
coisa, não se pode mudar tudo isso ao mesmo do país, atingindo também, ao mesmo tempo,
tempo. E como é necessário que o vencedor ou a religião e as leis.
o vencido mudem, na China foi sempre o ven­ A religião cristã, pelo estabelecimento da
cedor que mudou, porque seus costumes, não caridade, por um culto público, pela participa­
sendo suas maneiras; suas maneiras, suas leis; ção nos mesmos sacramentos, parece exigir
suas leis, sua religião, tem sido mais fácil ao que tudo se una; os ritos dos chineses parecem
vencedor dobrar-se paulatinamente ao povo ordenar que tudo se separe.
vencido, do que o povo vencido a ele. E, como vimos que a separação2 43 diz res­
Disso também decorre uma coisa bem triste: peito, em geral, ao espírito do despotismo,
é quase impossível ao cristianismo implantar- encontrar-se-á nisso uma das razões que fazem
se na China2 42. Os votos de castidade, a reu­ com que o governo monárquico e todo gover­
nião das mulheres nas igrejas, sua comunica­ no moderado se entrosem melhor2 4 4 com a
ção necessária com os ministros da religião, religião cristã.

2 42 Vede as razões apresentadas pelos magistrados 2 43 Vede o liv. IV, cap. III, e o liv. XIX, cap. XIII.
chineses, nos decretos pelos quais proscreviam a (N. do A.)
religião cristã (Lettres Èdtfiantes, coletânea XVII). 2 4 4 Vede mais abaixo o liv. XXIV, cap III. (N. do
(N. do A.) A.)

Capítulo XIX

Como se efetuou entre os chineses a união da religião,


das leis, dos costumes e das maneiras

Os legisladores da China tiveram como maneira mais adequada para mantê-la. Nessa
principal objetivo do governo a tranquilidade idéia, acreditaram dever inspirar o respeito
do império. A subordinação pareceu-lhes a pelos pais e, para issò, congregaram todas as
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 281

suas forças. Estabeleceram uma infinidade de que parecem mais indiferentes. Esse império
ritos e de cerimônias para honrá-los durante está baseado na idéia do governo de uma famí­
sua vida e depois de sua morte. Era impossível lia. Se diminuirdes a autoridade paterna ou
honrar tanto os pais falecidos sem honrá-los mesmo se reduzirdes as cerimônias que expres­
quando vivos. As cerimônias para os pais fale­ sam o respeito que se tem por ela, enfraque­
cidos relacionavam-se mais à religião; as ceri­ cereis o respeito pelos magistrados, que são
mônias para os pais vivos relacionavam-se considerados como pais. Os magistrados não
mais às leis, aos costumes e às maneiras, mas mais terão o mesmo desvelo para com povos
isso não eram senão as partes de um mesmo aos quais devem considerar como crianças; a
código e esse código era muito extenso. relação de amor que existe entre o príncipe e
O respeito, pelos pais estava necessaria­ os súditos também desaparecerá pouco a
mente relacionado a tudo que os pais represen­ pouco. Eliminai uma dessas práticas e abala­
tavam: os anciãos, os senhores, os magistra­ reis o Estado. É muito indiferente, em si
dos, o imperador. Esse respeito pelos pais mesmo, que todas as manhãs uma nora se
supunha uma reciprocidade do amor pelos fi­ levante para ir cumprir esses ou aqueles deve­
lhos e, consequentemente, a mesma reciproci­ res à sogra. Porém, se prestarmos atenção ac
dade dos anciãos aos jovens, dos magistrados fato de que essas práticas exteriores despertam
aos que lhes estavam submetidos, do impera­ sem cessar um sentimento que é necessário
dor aos seus súditos. Tudo isso formava os imprimir em todos os corações e que irá, em
ritos, e esses ritos o espírito geral da nação. todos os corações, formar o espírito que gover­
Notaremos a relação que podem ter, com a na o império, veremos que é necessário que
constituição fundamental da China, as coisas uma tal ação particular seja efetuada.

Capítulo XX

Explicação de um paradoxo sobre os chineses

O que há de singular é que os chineses, cuja vida precária; aí só se está com a vida assegu­
vida é inteiramente dirigida pelos ritos, sejam, rada à força de indústria e de trabalho.
entretanto, o povo mais velhaco da terra. Isso Quando todos obedecem e todos trabalham,
se manifesta sobretudo no comércio, que o Estado encontra-se numa feliz situação. Foi
nunca lhes pôde inspirar a boa fé que lhe é a necessidade, e talvez a natureza do clima,
própria. Quem compra deve levar sua própria que deu a todos os chineses uma avidez incon­
balança2*4 5 , tendo cada negociante três delas: cebível pelo ganho, e as leis não pensaram em
uma pesada para comprar; uma leve, para ven­ detê-lo. Tudo foi proibido quando se tratou de
der, e uma exata, para os que estão prevenidos. adquirir pela violência; tudo foi permitido
Creio poder explicar essa contradição. quando se tratou de obter pelo artifício ou pela
Os legisladores da China tiveram dois obje­ indústria. Não comparemos, portanto, a moral
tivos: pretenderam que o povo fosse submisso dos chineses com a da Europa. Todos, na
e pacífico e que fosse diligente e trabalhador. China, tiveram que estar atentos ao que lhes
Pela natureza do clima e de solo, ele tem uma era útil. Se o tratante vela por seus interesses, o
que é simplório deve cuidar dos seus. Na Lace­
2 4 5 Journal de Lange, em 1721 e 1722; tomo VIII demônia, era permitido roubar; na China, é
das Voyages du Nord, pág. 363. (N. do A.) permitido ludibriar.
282 MONTESQUIEU

Capítulo XXI

Como as leis devem ser relativas aos costumes e às maneiras

Somente instituições singulares confundem tar”. Belas palavras, que deveríam ser ouvidas
assim coisas naturalmente separadas: as leis, por todos os legisladores. Quando a sabedoria
os costumes e as maneiras; mas, apesar de divina diz ao povo judeu: “Dei-vos preceitos
serem separadas, não deixam de manter entre
si estreitas relações. que não são bons”, isso significa que tinham
Perguntou-se a Sólon se as leis que ele dera apenas uma bondade relativa, o que é a espon­
aos atenienses eram as melhores. “Dei-lhes”, ja de todas as dificuldades que se pode fazer
respondeu ele, “as melhores que podiam supor­ quanto às leis de Moisés.

Capítulo XXII

Continuação do mesmo assunto

Quando um povo possui bons costumes, as mento para cada chefe. Mas, diz o mesmo
leis devem ser simples. Platão2 4 6 diz que Platão2 4 7, quando um povo não é religioso,
Radamante, que governava um povo extrema­ somente se pode fazer uso do juramento nas
mente religioso, expedia todos os processos ocasiões em que quem jura não é interessado,
com celeridade, deferindo somente o jura­ como um juiz e testemunhas.

2 4 6 Das Leis, liv. XII. (N. do A.) 2 4 7 Ibid. (N. do A.)

Capítulo XXIII

Como as leis seguem os costumes

Na época em que os costumes de Roma derado como um grande castigo, tal como o
eram puros, não havia lei específica contra o testemunha o julgamento de Cipião2 4 9.
peculato. Quando esse crime começou a apare­
cer, acharam-no tão infame, que ser conde­ 2 48 In simplum. (N. do A.)
nado a restituir2 48 o que se tomara foi consi­ 2 4 9 Tito Lívio, liv. XXXVIII, cap. III. (N. do A.)

Capítulo XXIV

Continuação do mesmo assunto


As leis que dão a tutela à mãe concedem Entre os povos em que as leis devem confiar
maior atenção à conservação da pessoa do nos costumes dos cidadãos, dá-se a tutela ao
pupilo; as que a dão ao herdeiro mais próximo herdeiro dos bens, ou à mãe, e algumas vezes a
concedem maior atenção à conservação dos ambos.
bens. Entre os povos cujos costumes estão Se refletirmos sobre as leis romanas, vere­
corrompidos, é melhor dar a tutela à mãe. mos que seu espírito é conforme ao que afirmo.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 283

Na época em que se fez a Lei das Doze Tá­ ciladas ao pupilo, ele pode deixar a descoberto
buas, os costumes de Roma eram admiráveis. a substituição vulgar2 52, e colocar a pupilar
Concedeu-se a tutela ao parente mais próximo numa parte do testamento que só poderá ser
do pupilo, imaginando-se que quem tivesse o aberta depois de certo tempo.” Eis temores e
encargo da tutela deveria ter a vantagem da precauções desconhecidos dos primeiros roma­
sucessão. Nem se pensava que a vida do pupilo nos.
pudesse estar em perigo, apesar de estar colo­
cada entre as mãos daqueles a quem sua morte 2 50 Instit., liv. II, tít. VI, § 2, a compilação de
deveria ser útil. Mas, quando em Roma os cos­ Ozel, em Leide, 1658. (N. do A.)
tumes mudaram, viram-se legisladores mudar 2 51 Instit., liv. II, Depupil. substit., § 3. (N. do A.)
também de maneira de pensar. “Se, na substi­ 2 52 A substituição vulgar é: Se uma pessoa não
aceita a hereditariedade, eu a substituo, etc. A pupi­
tuição pupilar”, afirmam Caio2*50 e Justinia- lar é: Se uma pessoa morre antes da puberdade, eu
no2 51, “o testador teme que o substituto arme a substituo, etc. (N. do A.)

Capítulo XXV

Continuação do mesmo assunto

A lei romana dava liberdade de se fazerem ria desposar além de um décimo de seus bens e
donativos antes do casamento; depois do casa­ que, durante o primeiro ano de casamento,
mento, não o permitia mais. Isso estava basea­ nada lhe poderia dar. Isso decorria também
do nos costumes dos romanos, que só eram dos costumes do país. Os legisladores quise­
levados ao casamento pela frugalidade, simpli­ ram sustar essa jactância espanhola, inclinada
cidade e modéstia, mas que podiam se deixar unicamente a liberalidades excessivas num ato
seduzir pelos carinhos domésticos, pelos des- de ostentação.
velos e pela felicidade de toda uma vida. Os romanos, por suas leis, sustaram alguns
A lei dos visigodos2 53 determinava que o inconvenientes do império mais durável do
esposo não pudesse oferecer àquela que deve- mundo, que é o da virtude. Os espanhóis, pelas
suas, queriam impedir os maus efeitos da mais
2 53 Liv. III, tít. I, § 5. (N. do A.) frágil tirania do mundo, que é a da beleza.

Capítulo XXVI

Continuação do mesmo assunto

A lei de Teodósio e de Valentiniano2 5 4 mes, a esse respeito, tinham mudado, tendo os


extraiu as causas do repúdio dos antigos costumes orientais substituído os da Europa.
costumes2 5 5 e das maneiras dos romanos. Ela O primeiro eunuco da imperatriz, esposa de
incluiu no número dessas causas o gesto de um Justiniano Segundo, ameaçou, diz a História,
marido2 5 6 que castiga a esposa de maneira de lhe aplicar o castigo com o qual se punem
indigna de uma pessoa ingênua. Essa causa foi
as crianças nas escolas. Somente costumes
omitida nas leis seguintes2 5 7 : é que os costu­
estabelecidos ou costumes que procuram esta­
2 5 4 L. 8. Cod. De repudiis. (N. do A.) belecer-se permitem imaginar semelhante
2 5 5 E da Lei das Doze Tábuas. Vede Cícero, coisa.
Segunda Filípica, cap. LXIX. (N. do A.) Vimos como as leis acompanham os costu­
2 5 6 Si verberibus, quae ingenuis aliena sunt, affi-
cientem probaverit. (N. do A.) mes; veremos agora como os costumes acom­
2 5 7 Na Novela CXVII, cap. XIV. (N. do A.) panham as leis.
284 MONTESQUIEU

Capítulo XXVII

Como as leis podem contribuir para formar os costumes,


as maneiras e o caráter de um povo

Os costumes de um povo escravo fazem O ódio que existiría entre as duas partes
parte de sua servidão; os de um povo livre prolongar-se-ia, porque seria sempre impoten­
fazem parte de sua liberdade. te.
Referi-me, no livro XI2 58, a um povo livre; Sendo esses partidos compostos de homens
apresentei os princípios de sua constituição. livres, se um adquirisse muita preponderância,
Vejamos os efeitos deles decorrentes, o caráter as conseqüências da liberdade fariam com que
que se formou e as maneiras que deles este fosse rebaixado, enquanto os cidadãos,
resultaram2 59. como mãos que socorrem um corpo, viriam
Não afirmo que o clima não produza, em levantar o outro.
grande parte, as leis, os costumes e as manei­ Como cada cidadão, sempre independente,
ras dessa nação, mas sim que os costumes e as obedecería muito a seus caprichos e fantasias,
maneiras dessa nação deveríam ter estreita mudar-se-ia frequentemente de partido; aban-
relação com as suas leis. donar-se-ia um, onde se deixaria a todos os
Como haveria, neste Estado, dois poderes amigos, para se ligar ao outro no qual se
visíveis — o poder legislativo e o executivo — encontraria a todos os inimigos e, amiúde,
e como todo cidadão teria sua vontade própria nesta nação, poder-se-ia esquecer as leis da
e faria valer a seu bel-prazer sua indepen­ amizade e as do ódio.
dência, a maioria das pessoas teria mais afei­ O monarca estaria no caso dos cidadãos e,
ção por um desses poderes do que por outro, contra as máximas ordinárias da prudência,
não tendo a grande maioria, geralmente, sufi­ seria constantemente obrigado a confiar nos
ciente equidade nem discernimento para sim­ que mais o tivessem ofendido e infelicitar os
patizar igualmente com ambos2 60. que melhor o tivessem servido, fazendo por
E, como o poder executivo, dispondo de necessidade o que os outros príncipes fazem
todos os empregos, poderia dar grandes espe­ deliberadamente.
ranças e nunca temores, todos os que dele obti­ Tememos ver escapar um bem que percebe­
vessem algo seriam levados a voltar-se para
mos, que quase não conhecemos e que pode,
seu lado, e ele poderia ser atacado por todos os
nos ser disfarçado; e o temor sempre amplia os
que dele nada esperassem.
objetos. O povo inquietar-se-ia com sua situa­
Sendo aí livres todas as paixões, o ódio, a ção e acreditaria estar em perigo mesmo nos
inveja, o ciúme, a febre de enriquecer e se dis­ momentos mais estáveis.
tinguir surgiríam em toda a sua amplidão; e, se
isso ocorresse de outro modo, o Estado seria Tanto mais que os que se oporiam mais
como um homem derrotado pela doença, que ardorosamente ao poder executivo, não poden­
não tem paixões porque não tem força. do confessar os motivos de sua oposição,
aumentariam o terror do povo, que nunca
saberia exatamente se estaria ou não em peri-
2 58 Cap. VI. (N. do A.)
2 59 Trata-se aqui do célebre quadro político da go. Porém, isso mesmo contribuiría para lhe
Inglaterra, uma das partes mais conhecidas e mais fazer evitar os verdadeiros perigos a que pode­
significativas, com efeito, do Espírito das Leis. ria, consequentemente, ser exposto.
2 60 Daí os dois grandes partidos: trata-se dos
tories, zelosos pela manutenção da autoridade da Mas tendo o corpo legislativo a confiança
coroa, e dos whigs, mais ligados ao jogo do regime do povo e sendo mais esclarecido que ele,
parlamentar. Estes últimos, que compreendiam poderia fazê-lo esquecer as más impressões
principalmente os grandes senhores e os represen­ que lhe teriam sido inculcadas, e acalmar seus
tantes da cidade, predominavam então. A época era
a do Rei Jorge II, o qual deveria amiúde suportar movimentos.
ministros pelos quais não tinha simpatia. É esta a grande vantagem que teria esse
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 285

governo com relação às antigas democracias, deira e poderia acontecer que, para defendê-la,
nas quais o povo tinha um poder imediato, ela sacrificasse seus bens, sua comodidade,
pois, quando os oradores agitavam, essas agi­ seus interesses; que ela se sobrecarregasse de
tações alcançavam sempre seus objetivos. impostos tão pesados e tão numerosos, que o
Assim, quando os terrores incutidos não príncipe mais absoluto não ousaria fazer com
tivessem um objetivo certo, eles só produzi­ que seus súditos suportassem.
ríam vãos clamores e injúrias, e teriam mesmo Mas, como ela teria um conhecimento certo
esse bom efeito: distenderíam todas as molas da necessidade de se submeter, como pagaria
do governo e manteriam atentos os cidadãos. na esperança bem fundada de não mais pagar,
Mas, se eles nascessem por ocasião do desmo­ os encargos seriam mais pesados que o senti­
ronamento das leis fundamentais, seriam sur­ mento desses encargos, ao passo que há Esta­
dos, funestos, atrozes e produziríam catástro­ dos em que o sentimento está infinitamente
fes. acima do mal2 62.
Logo se veria uma horrenda calmaria, Teria crédito garantido, porque emprestaria
durante a qual tudo se reuniria contra o poder e pagaria a si própria. Poderia ocorrer que ela
violador das leis. empreendesse acima de suas forças naturais, e
Se, no caso em que as inquietações não têm faria valer contra seus inimigos imensas rique­
um objeto preciso, alguma potência estran­ zas fictícias, que a confiança e a natureza de
geira ameaçasse o Estado e colocasse em peri­ seu governo tornariam reais2 63
go sua glória ou sua fortuna, então, os interes­ Para conservar sua liberdade, esta nação
ses mesquinhos, cedendo lugar aos maiores, emprestaria a seus súditos, que veriam que seu
tudo se reuniria em favor do poder executivo. crédito estaria perdido se fosse conquistada e
Porque, se as disputas surgissem por oca­ teriam um novo motivo de envidar esforços
sião da violação das leis fundamentais e se para defender sua liberdade.
uma potência estrangeira aparecesse, haveria Se esta nação habitasse uma ilha, não seria
uma revolução que não mudaria a forma de conquistadora, porque as conquistas separadas
governo, nem sua constituição, uma vez que as a enfraqueceríam. Se o solo desta ilha fosse
revoluções que asseguram a liberdade não são bom, seria ainda menos conquistadora, porque
mais que uma confirmação da liberdade2*61. não teria necessidade de guerra para enrique­
Um povo livre pode ter um libertador; um cer-se. E, como nenhum cidadão dependería de
povo subjugado só pode ter um opressor, pois outro, cada um daria mais importância à sua
todo homem que tem força suficiente para liberdade do que à glória de alguns cidadãos,
expulsar quem já é senhor absoluto num Esta­ ou de um só deles.
do, a possui suficiente para tornar-se ele pró­ Ali considerar-se-iam os militares como pes­
prio senhor absoluto. soas de um ofício que pode ser útil e muitas
Como, para fruir da liberdade, cumpre que vezes perigoso, como pessoas cujos serviços
todos possam dizer o que pensam, e como, são laboriosos2 6 4 para o próprio povo, e as
para conservá-la, é também necessário que qualidades civis seriam mais consideradas.
todos possam dizer o que pensam, um cidadão, Esta nação, que a paz e a liberdade torna­
nesse Estado, diria e escrevería tudo o que as riam abastada, liberta dos preconceitos des­
leis não lhe proíbem expressamente dizer ou truidores, seria levada a tornar-se comerciante.
escrever. Se possuísse qualquer dessas mercadorias
Esta nação, sempre exaltada, poderia mais primitivas2 6 5, que servem para fazer essas coi­
facilmente ser conduzida por suas paixões do sas às quais a mão do operário confere um
que pela razão, que nunca produz grandes efei­ preço, poderia fazer estabelecimentos adequa­
tos sobre o espírito dos homens, e seria fácil dos para obter a fruição desse dom do céu em
aos que governam fazê-la agir contra seus toda sua extensão.
verdadeiros interesses.
Esta nação amaria prodigiosamente sua 2 62 A França.
liberdade, porque esta liberdade seria verda­ 2 63 Alusão às “notas do Erário”, que nos levam a
pensar em nossos “bônus do Tesouro”.
2 6 4 Laborioso, no sentido de oneroso.
2 61 Montesquieu refere-se evidentemente ao Rei 2 6 5 Entre essas “mercadorias primitivas”, a lã e o
Jaime II, a Luís XIV e à revolução de 1688. linho.
286 MONTESQUIEU

Se esta nação fora situada para o Norte, e se de nação para nação, que seriam tais, que sua
tivesse um grande número de gêneros supér­ prosperidade não seria senão precária, e
fluos2*6 6 , como também lhe faltaria um gran­ somente como depósito para um senhor.
de número de mercadorias que seu clima recu­ Habitando a nação dominadora uma grande
saria, estabelecería um comércio necessário, ilha, e possuindo um comércio muito desenvol­
mas grande, com os povos do Sul, e, esco­ vido, teria todo tipo de facilidades para possuir
lhendo os Estados que favorecería com um uma força naval, e como a preservação de sua
comércio vantajoso, faria tratados reciproca­ liberdade exigiria que ela não possuísse nem
mente úteis com a nação que tivesse escolhido. praças, nem fortaleza, nem exercito, teria
Num Estado em que, de um lado, a çpulên- necessidade de uma armada que a garantisse
cia fosse extrema e, de outro, os impostos contra invasões, e sua marinha seria superior à
excessivos, quase não se poderia viver sem de todas as outras potências que, tendo neces­
indústria com uma fortuna limitada. Muitas sidade de aplicar suas finanças para a guerra
pessoas, sob pretexto de viagens ou de saude, terrestre, não as teriam em quantidade sufi­
exilar-se-iam e procurariam a abundância até ciente para a guerra marítima.
em países de servidão. O império do mar sempre deu aos povos que
Uma nação comerciante tem um número o possuíram um orgulho natural porque,
prodigioso de pequenos interesses particulares; sentindo-se capazes de atacar, acreditam que
pode, portanto, ofender e ser ofendida de uma seu poder não possui outros limites que o
infinidade de maneiras. Isso a tornaria sobera­ oceano.
namente invejosa e se afligiría mais com a Esta nação poderia ter uma grande in­
prosperidade dos outros do que desfrutaria a fluência nos negócios de seus vizinhos, pois,
sua. como não utilizaria seu poderio para conquis­
E suas leis, aliás amenas e fáceis, poderíam tar, procuraria mais sua amizade, e temer-se-ia
ser tão rígidas a respeito do comércio e da mais seu ódio do que a inconstância de seu
navegação que nela se fizessem, que parecería governo e sua agitação interna não pareceríam
negociar apenas com inimigos. permitir.
Se esta nação estabelecesse colônias longín­ Assim, seria destino do poder executivo ser
quas, fá-lo-ia antes para ampliar seu comércio quase sempre perturbado internamente, e res­
do que sua dominação. peitado externamente.
Como prefere estabelecer em outros lugares Se acontecesse de esta nação tornar-se em
o que se encontra estabelecido em casa, daria algumas ocasiões o centro das negociações da
ao povo de suas colônias a forma de seu pró­ Europa, a elas traria um pouco mais de probi­
prio governo e esse governo, trazendo consigo dade e de boa fé do que as outras, porque,
a prosperidade, veria formarem-se grandes sendo seus ministros frequentemente obrigados
povos nas próprias florestas que mandasse a justificar sua conduta diante de um conselho
habitar. popular2 68 , suas negociações não poderíam
Poderia acontecer que ela tivesse outrora ser secretas, e eles seriam forçados a ser, a esse
subjugado uma nação vizinha2 6 7 que, por respeito, um pouco mais honestos.
sua situação, pela qualidade de seus portos, Demais, como seriam, de algum modo, fia-
pela natureza de suas riquezas, lhe causasse dores dos acontecimentos que uma conduta
inveja. Assim, apesar de que lhe tivesse outor­ fraudulenta poderia originar, o mais seguro
gado suas próprias leis, mantê-la-ia numa para eles seria seguir o caminho reto.
grande dependência, de modo que os cidadãos Se os nobres tivessem tido, em alguns perío­
seriam livres, mas o próprio Estado seria dos, um poder imoderado na nação, e se o
escravo. monarca tivesse encontrado o meio de subme­
O Estado conquistado teria um governo tê-los enaltecendo o povo, o ponto extremo da
civil muito bom, mas seria oprimido pelo servidão estaria entre o momento da queda dos
governo das gentes, e ser-lhe-iam impostas leis poderosos e o momento em que .o povo tivesse
começado a sentir seu poder.
Poderia acontecer que essa nação, tendo es-
2 6 6 Gêneros supérfluos; entenda-se: “gêneros em
supérfluo”.
2 6 7 Uma nação vizinha: a Irlanda. 2 68 O Parlamento.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 287

tado outrora submetida a um poder arbritá- Não podendo este clero proteger a religião,
rio2 69 , tivesse, em muitas ocasiões, conser­ nem por ela ser protegido, sem força para coa­
vado o modelo, de modo que, sobre a base de gir, procuraria persuadir e veriamos saírem de
um governo livre, ver-se-ia, amiúde, a forma de sua pena obras excelentes, para provar a reve­
um governo absoluto. lação e a providência do Grande Ser.
Relativamente à religião, como nesse Esta­ Poderia acontecer que se evitassem suas
do cada cidadão teria sua vontade própria, e assembléias e que não se quisesse permitir que
seria, consequentemente, guiado por suas pró­ ele corrigisse seus próprios abusos; e que, por
prias luzes, ou por seus caprichos, aconteceria um delírio de liberdade, se preferisse deixar
que ou cada cidadão seria muito indiferente a sua reforma imperfeita do que suportar que ele
todas as formas de religião, quaisquer que fos­ fosse o reformador.
sem elas, mediante o que todos seriam levados As dignidades, fazendo parte da constitui­
a abraçar a religião dominante, ou se zelaria ção fundamental, seriam mais fixas do que
pela religião em geral, mediante o que as seitas alhures. Porém, de outro lado, os poderosos,
se multiplicariam. neste país de liberdade, aproximar-se-iam mais
Não seria impossível existirem, nesta nação, do povo; as ordens seriam portanto mais sepa­
pessoas que não tivessem religião e que, entre­ radas e as pessoas mais próximas.
tanto, não poderíam tolerar que as obrigassem Tendo os que governam um poder que se
a mudar a que tivessem, caso tivessem uma, renova, por assim dizer, e se refaz todos os
porque sentiríam inicialmente que a vida e os dias, teriam mais consideração pelos que lhes
bens, tanto como sua maneira de pensar, não são úteis do que pelos que os divertem. Assim,
mais lhes pertenciam, e que quem pode arreba­ ver-se-iam poucos cortesãos, bajuladores, adu­
tar os primeiros, pode ainda mais facilmente ladores, enfim toda sorte de pessoas que fazem
suprimir a segunda. pagar aos grandes o próprio vazio de seu
espírito.
Se, entre as diferentes religiões, existisse
uma cujo estabelecimento tivesse sido tentado Quase não se estimariam os homens pelos
por intermédio da escravidão2 70, ela seria talentos ou pelos atributos frívolos, mas pelas
odiosa, pois, como julgamos as coisas pelas qualidades reais, e, desse gênero, só há duas:
relações e pelos acessórios que nelas introduzi­ as riquezas e o mérito pessoal.
mos, aquela jamais se apresentaria ao espírito Haveria um luxo sólido, baseado não nos
unida à idéia de liberdade. refinamentos da vaidade, mas em suas reais
As leis contra os que professassem esta reli­ necessidades, e quase só se procurariam nas
gião não seriam sanguinárias, porque a liber­ coisas os prazeres que a natureza nelas inseriu.
dade não imagina esses tipos de penas, mas se­ Desfrutar-se-ia de um grande supérfluo, e
riam tão repressoras, que ocasionariam todo o entretanto as coisas frívolas seriam proibidas.
mal que se pode fazer a sangue-frio. Assim, muitas pessoas, tendo mais bens do que
ocasiões de despesa, os utilizariam de uma
Poderia acontecer de mil maneiras que o
estranha maneira e nessa nação ter-se-ia mais
clero desfrutasse de tão pouco crédito, que os
espírito do que gosto.
outros cidadãos o tivessem mais. Assim, em
Como sempre se estaria ocupado com os
lugar de se separar2 71, acharia melhor supor­
próprios interesses, não se teria essa polidez
tar os mesmos encargos que os leigos, for­
que está baseada na ociosidade; realmente,
mando apenas, a esse respeito, um mesmo
não se teria tempo para isso2 72.
córpo. Mas, como procuraria sempre atrair o
A época da polidez dos romanos é a mesma
respeito do povo, distinguir-se-ia por uma vida
do estabelecimento do poder arbitrário. O
mais retirada, uma conduta mais reservada e
governo absoluto produz a ociosidade, e a
costumes mais puros.
ociosidade origina a polidez.
Quanto mais gente há numa nação que tem
2 69 Montesquieu refere-se ao dos Tudors. necessidade de ter deferências entre si e não
2 70 O catolicismo que precisamente os Tudors
pretenderam estabelecer pela intolerância e pela
violência. 2 72 “Os ingleses fazem-vos poucas gentilezas, mas
2 71 De se separar: de formar, assim como na Fran­ nunca grosserias.” (Notes sur ÍAngleterre.) (N. do
ça, uma ordem à parte. A.)
288 MONTESQUIEU

desagradar, mais há polidez. Mas é mais a Nenhum cidadão temendo outro, esta nação
polidez dos costumes do que a das maneiras seria orgulhosa, porque o orgulho dos reis só
que deve nos distinguir dos povos bárbaros. está baseado sobre sua independência.
Numa nação em que todo homem, à sua As nações livres são soberbas, as outras
maneira, participa da administração do Esta­ podem mais facilmente ser vãs.
do, as mulheres pouco deveríam imiscuir-se Mas, esses homens tão orgulhosos, vivendo
com os homens. Elas seriam, portanto, modes­
muito consigo mesmos, encontrar-se-iam mui­
tas, ou seja, tímidas. Essa timidez constituiría
tas vezes em meio a pessoas desconhecidas; se­
sua virtude, enquanto os homens, sem galante-
riam tímidos, e veriamos neles, a maior parte
ria, mergulhariam numa depravação que lhes
do tempo, uma estranha mistura de tolo
deixaria toda a sua liberdade e lazer.
acanhamento e de orgulho.
Não sendo as leis feitas para um cidadão
mais que para outro, todos se considerariam O caráter da nação aparecerá, sobretudo,
monarcas, e os homens, nesta nação, seriam nas obras de espírito, nas quais se verão pes­
antes confederados do que concidadãos. soas retraídas que as teriam pensado comple­
Se o clima tivesse dado a muitas pessoas um tamente sós.
espírito inquieto e vistas largas, num país em A sociedade ensina-nos a sentir os ridículos;
que a constituição outorgasse a todos uma o recolhimento faz-nos mais aptos a sentir os
participação no governo e interesses políticos, vícios. Seus escritos satíricos seriam impiedo­
falar-se-ia muito de política. Veriamos pessoas sos e encontrar-se-iam muitos Juvenais entre
que passariam sua vida a calcular os aconteci­ eles, antes de se encontrar um Horácio2 73.
mentos que, considerando-se a natureza das Nas monarquias completamente absolutas,
coisas e o capricho da sorte, isto é, dos os historiadores traem a verdade, porque não
homens, quase não são suscetíveis de cálculo. têm liberdade para dizê-la. Nos Estados extre­
Numa nação livre, é frequentemente indife­ mamente livres, traem a liberdade por causa
rente que os cidadãos raciocinem bem ou mal; da própria liberdade, que, sempre- produzindo
basta que raciocinem; daí origina-se a liber­ divisões, cada qual se torna tão escravo dos
dade que assegura os resultados desses mes­ preconceitos de sua facção, como o seria de
mos raciocínios. um déspota.
Da mesma maneira, num governo despó­
Seus poetas teriam mais frequentemente
tico, é igualmente pernicioso que se raciocine
essa rudeza original da invenção do que uma
bem ou mal; é suficiente raciocinar para que o
certa delicadeza criada pelo gosto. Encontrar-
princípio do governo seja atingido.
se-ia neles algo que mais se aproximaria da
Muitas pessoas não cuidariam de agradar a
força de Miguel Ângelo do que da graça de
ninguém; entregar-se-iam ao seu tempera­
Rafael2 7 4.
mento. A maioria dos que fossem dotados de
espírito seria atormentada por seu próprio
espírito: no desdém ou na aversão a todas as 2 73 Alusão às Viagens de Gulliver, de Jonathan
Swift, obra aparecida em 1726.
coisas, seriam infelizes com tantos motivos 2 7 4 Alusão possível, desta feita, a Milton e a seu
para não sê-lo. Paraíso Perdido.
1

QUARTA PARTE

LIVRO VIGÉSIMO
DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM O COMERCIO,
CONSIDERADO EM SUA NATUREZA E EM SUAS DISTINÇÕES

1 Com este livro XX iniciava-se o segundo tomo da edição de 1749 de Genebra, trazendo em epígrafe: Do-
cuit quae maximus Atlas, o que se pode traduzir por: o que me ensinou o estudo da natureza e de suas gran­
des leis, e é tirado do verso 741 do livro I da Eneida:
. . . Cithara crinitus lopas
Personat aurata docuit quae maximus Atlas.
Invocação às Musas2

Virgens do Monte Piério, escutais o nome fazei com que seja instruído e com que eu não
que vos dou? Inspirai-me. Percorro um longo ensine; que reflita e que pareça sentir; e quan­
caminho; estou sucumbido com tristezas e té­ do eu anunciar coisas novas, fazei com que se
dios3. Inseri em meu espírito este encanto e creia que eu nada sabia e que vós tudo me
esta doçura que sentia outrora e que fogem dissestes.
para longe de mim. Nunca sois tão divinas Quando as águas de vossa fonte saem do
como quando conduzis à sabedoria e à verda­ rochedo que amais, elas não sobem aos ares
de pelo prazer. para recair; correm nas campinas, fazem vos­
Mas se não pretendeis amenizar o rigor de sas delícias porque fazem as delícias dos
meus trabalhos, ocultai o próprio trabalho; pastores.
Encantadoras Musas, se pousardes sobre
2 Esta “Invocação às Musas”, que parece tão mim um só de vossos olhares, todos lerão
estranha em assunto desta natureza, não teria sido
inspirada pelos dois versos de Juvenal que Montes­ minha obra, e o que não passaria de recreação
quieu cita? Declarou tê-la escrito a fim de “des­ será prazer.
cansar o leitor” e consentiu em suprimi-la. (Cf. a
nota de Laboulaye, Oeuvres de Montesquieu, t. IV, Musas divinas, sinto que me inspirais, não o
pág. 359.) que se canta em Tempé nas flautas ou o que se
3 Narrate puellae repete em Delos com a lira; quereis que fale à
Pierides; prosit mihi vos dixisse puellas. razão; ela é o mais perfeito, o mais nobre e o
(Juvenal, Sátira IV, versos 35-36.) (N. do A.) mais delicado de nossos sentimentos.

Capítulo I

Do comércio

As matérias que se seguem exigiríam ser tra­ parte; compararam-nos mutuamente e disso
tadas mais amplamente; mas a natureza desta resultaram grandes benefícios.
obra não o permite. Desejaria deslizar sobre Pode-se dizer que as leis do comércio aper­
um rio tranquilo; sou arrastado por uma feiçoam os costumes, pela mesma razão pela
torrente. qual estas mesmas leis deturpam os costumes.
O comércio afasta os preconceitos destrui­ O comércio corrompe os costumes puros4: era
dores; e é quase uma regra geral que, onde esse o assunto das queixas de Platão; civiliza e
quer que haja costumes amenos, exista comér­ suaviza os costumes bárbaros, como vemos
cio e, onde quer que haja comércio, existam todos os dias.
costumes amenos.
Não nos espantemos, portanto, se nossos 4 César diz dos gauleses que a vizinhança e o
comércio de Marselha os corrompera, de modo que
costumes são menos rudes que outrora. O eles, que outrora sempre tinham vencido os germa­
comércio fez com que o conhecimento dos cos­ nos, se lhes tinham tornado inferiores. Guerra das
tumes de todas as nações penetrasse em toda Gálias, liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.)
292 MONTESQUIEU

Capítulo II

Do espírito do comércio

O efeito natural do comércio é trazer a paz. no número das maneiras de adquirir. O espí­
Duas nações que comerciam juntas tornam-se rito não é oposto a certas virtudes morais: por
reciprocamente dependentes; se uma tem inte­ exemplo, a hospitalidade, muito rara nos paí­
resse em comprar, a outra tem em vender; e ses de comércio, encontra-se admiravelmente
todas as uniões estão baseadas nas mútuas entre os povos salteadores.
necessidades. È um sacrilégio, entre os germanos, diz Tá­
Mas se o espírito de comércio une as cito, fechar a casa a um homem, quem quer
nações, não une do mesmo modo os indiví­ que ele seja, conhecido ou desconhecido.
duos. Vemos que nos países5 em que só se é Quem exerceu6 a hospitalidade com relação a
afetado pelo espírito de comércio trafica-se um estranho mostrar-lhe-á outra casa onde ela
com todas as ações humanas e com todas as é também praticada, e ele é recebido com a
virtudes morais: as mais pequenas coisas, as mesma humanidade. Mas, quando os germa­
que a humanidade exige, se fazem ou se dão nos fundaram reinos, a hospitalidade se lhes
por dinheiro. tornou uma carga. Isso transparece por duas
O espírito de comércio produz nos homens leis do código7 dos borguinhões, no qual uma
certo sentimento de justiça exata, oposto, de lei inflige uma pena a todo bárbaro que mostre
um lado, à pilhagem e, de outro, a essas virtu­ a um estrangeiro a casa de um romano; a outra
des morais que fazem com que nem sempre se reza que quem receber um estrangeiro será
discutam seus interesses com rigidez e que se indenizado pelos habitantes, cada um com sua
possa negligenciá-los pelos dos outros. quota-parte.
A ausência total de comércio produz, pelo
contrário, a pilhagem, que Aristóteles coloca 6 Et qui modo hospes fuerat, monstrator hospitii.
De Moribus Germ., cap. XX. Vede também César,
Guerra das Gálias, liv. VI, cap. XXI. (N. do A.)
6 A Holanda. (N. do A.) 7 Tít. XXXVIII. (N. do A.)

Capítulo III

Da pobreza dos povos

Há duas espécies de povos pobres: os que a são pobres porque foram desdenhados, ou por­
dureza do governo assim tornou e os que são que não conheceram as comodidades da vida;
incapazes de quase toda virtude, porque sua estes podem fazer grandes coisas, porque esta
pobreza faz parte de sua servidão; os outros só pobreza faz parte de sua liberdade.

Capítulo IV

Do comércio nos diversos governos


O comércio tem relação com a constituição. que pode servir a seu orgulho, delícias e fanta­
No governo de um só, é comumente baseado sias. No governo de muitos, ele é mais amiúde
no luxo e, apesar de estar também baseado em baseado na economia. Os negociantes, que têm'
suas necessidades reais, seu objetivo primor­ em suas vistas todas as nações da terra, levam
dial é proporcionar, à nação que o faz, tudo o a uma o que tiram de outra. É assim que as
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 293

repúblicas de Tiro, de Cartago, de Atenas, de tanto desejo de ganhar pouco se coloca numa
Marselha, de Florença, de Veneza e da Holan­ situação em que não tem menos desejo de ga­
da praticaram o comércio. nhar muito.
Esta espécie de tráfico relaciona-se ao Demais, os maiores empreendimentos dos
governo de muitos por sua natureza, e ao negociantes estão sempre necessariamente
monárquico por ocasião. Pois como apenas confundidos com os negócios públicos. Porém,
está fundado sobre a prática de ganhar pouco, nas monarquias, os negócios públicos são, na
e mesmo de ganhar menos que qualquer outra maior parte do tempo, tão suspeitos aos
nação e de só se ressarcir ganhando continua­ comerciantes quanto lhes parecem seguros nos
mente, é quase impossível que possa ser feito Estados republicanos. Os grandes empreendi­
por um povo no qual o luxo está estabelecido, mentos de comércio não são, portanto, para as
que despende muito e que apenas vê grandes monarquias, mas para o governo de muitos.
objetos8.
Numa palavra, uma maior certeza de
É nesse espírito que Cícero9 dizia tão bem:
propriedade, que se acredita ter nestes Estados,
“Não gosto que um mesmo povo seja ao
faz com que tudo se empreenda; e, porque se
mesmo tempo dominador e distribuidor do
universo”. Com efeito, cumpriría supor que acredita estar seguro do que se adquiriu, ousa-
cada indivíduo, nesse Estado, e mesmo todo o se expor para adquirir ainda mais; correm-se
Estado, tivesse sempre a cabeça cheia de gran­
riscos apenas quanto aos meios de aquisição;
des projetos e esta mesma cabeça repleta de ora, os homens esperam muito de sua fortuna.
pequenos projetos: isso é contraditório. Não quero dizer que exista alguma monar­
Não que, nesses Estados que subsistem pelo quia que esteja totalmente excluída do comér­
comércio de economia, não se façam também cio de economia; mas, por sua natureza, ela
os maiores empreendimentos, e que não se está menos inclinada a isso. Não quero dizer
tenha uma audácia que não se encontra nas que as repúblicas que conhecemos estejam
monarquias; eis a razão disso. inteiramente privadas do comércio do luxo,
Um comércio leva a outro: o pequeno ao mas este tem menos relação com sua constitui­
medíocre, o medíocre ao grande; e quem teve ção.
Quanto ao Estado despótico, é inútil referir-
8 ... que apenas vê grandes objetos. . . sendo, de mo-nos a ele. Regra geral: numa nação que
outro lado, o comércio considerado pela nobreza — está na servidão, trabalha-se mais para conser­
que o faz prosperar — como uma profissão avil­ var do que para adquirir. Numa nação livre,
tante.
9 -Nolo eumdem populum, imperatorem et partito- trábalha-se mais para adquirir do que para
rem esse terrarum. Cíc., De Rep., liv. IV. (N. do A.) conservar.

Capítulo V

Dos povos que fizeram o comércio de economia

Marselha, refúgio necessário em meio a um fosse sempre tranquilo, que tivessem, enfim,
mar tempestuoso; Marselha, lugar onde os costumes frugais para que sempre pudessem
ventos, os bancos de areia, a disposição das viver de um comércio que conservariam mais
costas obrigam a atracar, foi frequentada pela seguramente quanto menos vantajoso fosse.
gente do mar. A esterilidade10 de seu território Viu-se em toda parte a violência e as vexa-
levou seus cidadãos ao comércio de economia. ções darem nascimento ao comércio de econo­
Foi necessário que eles fossem laboriosos, mia, quando os homens foram constrangidos a
para substituir o que a Natureza lhes recusava, se refugiar nos pântanos, nas ilhas, nos baixios
que fossem justos para viver entre as nações e até nos escolhos. É assim que Tiro, Veneza e
bárbaras que deviam fazer sua prosperidade, as cidades da Holanda foram fundadas; os
que fossem moderados, para que seu governo fugitivos aí encontraram sua segurança. Cum­
pria subsistir; eles tiraram sua subsistência de
1 0 Justino, liv. XLIII, cap. III. (N. do A.) todo o universo.
294 MONTESQUIEU

Capítulo VI

Alguns efeitos de uma grande navegação

Sucede, às vezes, que uma nação que pratica nada perca, acreditará ter feito muito. É assim
o comércio de economia, tendo necessidade de que a Holanda tem também suas pedreiras e
uma mercadoria de um país que lhe fornece florestas.
recursos para adquirir mercadorias de outro, Não só um comércio que nada rende pode
contenta-se com ganhar muito pouco, e por ser útil como um comércio, mesmo desvanta­
vezes nada, sobre umas, na esperança ou certe­ joso, pode sê-lo. Ouyi dizer, na Holanda, que a
za de ganhar muito sobre as outras. Assim, pesca da baleia, em geral, quase nunca rende o
quando a Holanda comerciava quase sozinha que custa; mas os que foram empregados na
do Sul ao Norte da Europa, os vinhos france­ construção de barcos, os que forneceram mas-
ses que ela transportava para o Norte apenas sames, aprestos e víveres são também os que
lhe serviam, de alguma maneira, de fundos têm o principal interesse nesta pesca. Se per­
para fazer seu comércio no Norte. dem na pesca, ganham nos fornecimentos. Este
Sabemos que, amiúde, na Holanda, certos comércio é uma espécie de loteria, e cada qual
gêneros de mercadorias vindas de longe não se é seduzido pela esperança de tirar o bilhete
vendiam mais caro do que custaram nos luga­ premiado. Todos gostam de jogar; os mais sá­
res onde foram adquiridas. Eis a explicação: bios jogam voluntariamente quando não vêem
um capitão que necessita lastrar seu navio as aparências do jogo, seus desregramentos,
adquirirá mármore; se necessita de madeira suas violências, suas dissipações, a perda de
para a estivagem, comprá-la-á; e, uma vez que tempo e mesmo de toda a vida.

Capítulo VII

Espírito da Inglaterra quanto ao comércio

A Inglaterra quase não mantém tarifa comércio que nela se faz, pouco se prende a
regulamentada11 com as demais nações; sua tratados e apenas depende de suas leis.
Outras nações deixaram os interesses políti­
tarifa muda, por assim dizer, com cada parla­
cos sobrepujarem os do comércio; a Inglaterra
mento, pelos direitos particulares que suprime sempre subordinou os interesses políticos aos
ou impõe. Quis também conservar sobre isso de seu comércio.
sua independência. Soberanamente zelosa do E o povo do mundo que melhor soube
prevalecer-se, ao mesmo tempo, dessas três
11 ... tarifa regulamentada. . tratados comer­ grandes coisas: da religião, do comércio e da
ciais. liberdade.

Capítulo VIII

Como algumas vezes se perturbou o comércio de economia

Fizeram-se, em certas monarquias12, leis comércio de economia. Proibiram-nos de


adequadas a rebaixar os Estados que fazem o transportar mercadorias que não fossem pro­
12 ... certas monarquias. . sempre a França. duzidas no país; só lhes permitiram traficar
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 295

com navios da fábrica do pais de que cios, sabe onde colocar todas as mercadorias
provinham. supérfluas; que é rica e pode sobrecarregar-se
Cumpre que o Estado que impõe essas leis de muitos gêneros; que os pagará pronta­
possa facilmente fazer, por si só, o comércio;
mente; que tem, por assim dizer, necessidade
sem isso, ocasionará.a si mesmo um prejuízo
de ser fiel; que é, por princípio, pacífica; que
igual. É melhor negociar com uma nação que
exige pouco — e que as necessidades do procura ganhar e não conquistar; é melhor,
comércio tornam, de alguma forma, depen­ dizia eu, negociar com esta nação do que com
dente — do que com uma nação que, pela outras sempre rivais, e que não dariam todas
extensão de seus horizontes ou de seus negó­ essas vantagens.

Capítulo IX

Da exclusão em questão de comércio

A verdadeira máxima é nunca excluir qual­ certo preço. Os poloneses, com o trigo, prati­
quer nação do comércio sem que para isso caram esse comércio com a cidade de Danzig;
haja grandes motivos. Os japoneses só comer­ vários reis da índia têm semelhantes contratos
ciam com duas nações: a chinesa e a holande­ para as especiarias com os holandeses13. Estas
sa. Os chineses ganham mil por cento sobre o convenções só são adequadas a uma nação
açúcar e, por vezes, outro tanto sobre as devo­ pobre, que quer justamente perder a esperança
luções. Os holandeses obtêm quase os mesmos de enriquecer-se, uma vez que tenha uma
lucros. Toda nação que siga as normas japone­ subsistência assegurada; óu a nações cuja ser­
sas será necessariamente enganada. A concor­ vidão consiste em renunciar ao uso das coisas
rência é que dá um justo preço às mercadorias que a Natureza lhes tinha proporcionado; ou
e que estabelece as verdadeiras relações entre em fazer com estas coisas um comércio
desvantajoso.
elas.
Um Estado deve sujeitar-se ainda menos a
13 Isso foi primeiramente estabelecido pelos portu­
vender suas mercadorias a uma só nação, sob gueses. Voyages de François Pyrard, cap. XV, parte
pretexto de que esta lhe adquirirá todas a um II. (N. do A.)

Capítulo X

Estabelecimento próprio do comércio de economia

Nos Estados que fazem o comércio de eco­ que tenha possuído, ou que tenha podido pos
nomia, em boa hora estabeleceram-se bancos suir um tesouro; e, em toda parte onde há um.
que, pelo crédito, formaram novos símbolos de desde que seja excessivo, torna-se logo o tesou­
valores1*4. Mas seria um erro transportá-los ro do príncipe.
para Estados que praticam o comércio do Pela mesma razão, as companhias de nego­
luxo. Estabelecê-los em países governados por ciantes que se associam para um certo comér­
um só é supor o dinheiro de um lado e o poder cio raramente convêm ao governo de um só. A
de outro: isto é, de um lado, a faculdade de
natureza dessas companhias é dar às riquezas
tudo possuir sem nenhum poder e, de outro, o
particulares a força das riquezas públicas1 5.
poder sem a faculdade de coisa alguma. Em
semelhante governo, nunca existiu um príncipe Mas, nesses Estados, essa força só pode encon-
trar-se nas mãos do príncipe. Digo mais: elas
1 4 Aqui Montesquieu pensa no banco da Holanda nem sempre convêm nos Estados onde se faz o
1 5 Mediante as ações ou as notas. comércio de economia; e, se os negócios não
296 MONTESQUIEU
são tão grandes a ponto de se acharem abaixo Ihor não obstando, por privilégios exclusivos,
do alcance dos particulares, far-se-á ainda me- a liberdade do comércio.

Capítulo XI

Continuação do mesmo assunto

Nos Estados que praticam o comércio de blica. Mas, no governo monárquico, seme­
economia, pode-se estabelecer um porto fran­ lhantes estabelecimentos seriam contrários à
co. A economia do Estado, que sempre acom­ razão; não teriam outro efeito senão o de ali­
panha a frugalidade dos indivíduos, dá, por
viar o luxo do peso dos impostos. Ficar-se-ia
assim dizer, alma a seu comércio de economia.
O que perde em tributos pelo estabelecimento privado do único bem que o luxo pode propor­
ao qual nos referimos é compensado pelo que cionar, e do único freio que, em semelhante
pode extrair da riqueza industriosa da repú­ constituição, ele pode receber.

Capítulo XII

Da liberdade de comércio

A liberdade de comércio não é uma facul­ via marítima para a capital; não permite a
dade concedida aos negociantes de fazerem o exportação de seus cavalos e estes não são cas­
que querem: isto seria antes sua servidão. O trados; os navios1 6 de suas colônias que
comerciam na Europa devem fundear na Ingla­
que prejudica o comerciante não prejudica por
terra1 7. Ela prejudica o comerciante mas em
isso o comércio. É nos países da liberdade que favor do comércio.
o negociante encontra inumeráveis contradi­
ções; e ele nunca é menos obstado pelas leis do 16 Ato de Navegação de 1660. Foi apenas em
que nos países da servidão. período de guerra que os de Boston e de Filadélfia
mandaram seus barcos diretamente para o Mediter­
A Inglaterra proíbe a exportação de suas râneo, a fim de levar seus gêneros. (N. do A.)
lãs; quer que o carvão seja transportado por 1 7 A França aplicava esta mesma lei.

Capítulo XIII

O que destrói esta liberdade

Onde há comércio há alfândegas. O objetivo A finança destrói o pomércio pelas suas


do comércio é a exportação e a importação das injustiças, por suas vexações, pelo excesso do
mercadorias em favor do Estado18* , e o obje­ que impõe; mas, independentemente disso, ela
tivo das alfândegas é um certo direito sobre o destrói também pelas dificuldades que origi­
essa mesma exportação e importação, também na e pelas formalidades que exige. Na Ingla­
em benefício do Estado. Cumpre, portanto, terra, onde as alfândegas estão sob a adminis­
que o Estado se mantenha neutro entre sua tração do governo, há singular facilidade em
alfândega e seu comércio, e que proceda de negociar: a palavra escrita resolve os maiores
maneira que as duas coisas não se interpo­
nham; goza-se, então, da liberdade de comér­ negócios; não é necessário que o comerciante
cio. perca um tempo infinito e que possua um cai­
xeiro expressamente para impedir todas as difi­
18 ... em favor do Estado. . ., em benefício do culdades dos contratadores ou para a elas
Estado, embora o particular aí encontre sua conta. submeter-se.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 297

Capítulo XIV

Das leis do comércio que implicam


o confisco das mercadorias

A grande constituição dos ingleses19 proíbe que punia com a morte os que introduzissem
que se apreendam e confisquem, em caso de nos Estados da Espanha, mercadorias inglesas;
guerra, as mercadorias dos negociantes estran­ ela infligia a mesma pena aos que levassem a
geiros, exceto como represália. Ê notável que a Estados da Inglaterra mercadorias da Espa­
nação inglesa tenha feito disso um dos itens de
nha. Semelhante ordenação só pode, creio,
sua liberdade.
encontrar modelo nas leis do Japão. Ela choca
Na guerra que a Espanha travou com os
ingleses, em 1740, ela estabeleceu uma20 lei nossos costumes, o espírito do comércio e a
harmonia que deve existir na proporção das
1 9 A carta de João sem Terra no início do século penas; ela confunde todas as idéias, transfor­
XIII.
20 Publicada em março de 1740 em Cádis. (N. do mando em crime de Estado o que não passa de
A.) uma violação de polícia.

Capítulo XV

Da ordem de prisão por dívida

Sólon21 ordenou, em Atenas, que não mais em prazos amiúde muito curtos, a dá-las e
houvesse prisões por dívidas civis. Tirou22 retomá-las, faz-se mister que o devedor salde
esta lei do Egito; Bochóris a estabelecera e sempre seus compromissos no prazo determi­
Sesóstris a renovara. nado, o que supõe a prisão por dívida.
Esta lei é muito boa para os negócios23 Nos negócios que decorrem dos contratos
civis ordinários; porém temos razão de não civis ordinários, a lei não deve permitir a pri­
observá-la nos do comércio, pois, sendo os são por dívida, porque atribui mais impor­
negociantes obrigados a confiar grandes somas tância à liberdade de um cidadão do que ao
bem-estar de outro. Mas, nas convenções que
derivam do comércio, a lei deve dar mais
21 Plutarco, no tratado De Como Não se Deve
Emprestar a Juros, cap. IV. (N. do A.) importância ao bem-estar público do que à
22 Diodoro, liv. I, parte II, cap. LXXIX. (N. do liberdade de um cidadão, o que não impede as
A.) restrições e as limitações que a humanidade e a
Pode-se censurar os legisladores gregos por boa polícia2 4 podem exigir.
terem proibido que se tomassem como penhor as
armas e as charruas de um homem, enquanto permi­
tiam que se tomasse o próprio homem. Diodoro, 2 4 A prisão por dívida podia ser perpétua se o
livro I, parte II, cap. LXXIX. (N. do A.) devedor não a pagasse.

Capítulo XVI

Bela lei

A lei de Genebra que exclui das magistra- Iho, os filhos dos que viveram ou morreram
turas, e mesmo do ingresso no Grande Conse- insolventes, salvo se saldarem as dívidas de
298 MONTESQUIEU

seus pais, é muito boa. Tem este efeito: dá con­ bém à própria cidade. A fé particular aqui tem
fiança aos negociantes, aos magistrados e tam­ também a força da fé pública.

Capítulo XVII

Lei de Rodes

Os ródios foram mais longe. Sexto Empíri­ penso que a razão do próprio comércio deveria
co2 5 diz que, entre eles, o filho não podia dei­ introduzir esta limitação: as dívidas contraídas
xar de pagar as dívidas do pai, renunciando à pelo pai depois que o filho tivesse começado a
comerciar não afetariam os bens adquiridos
sua sucessão. A lei de Rodes era feita para por este último. Um comerciante deve sempre
uma república baseada no comércio. Ora, conhecer suas obrigações e se conduzir, a cada
instante, de acordo com o estado de sua
2 5 Hipotiposes, liv. I, cap. XIV. (N. do A.) fortuna.

Capítulo XVIII

Dos juizes para o comércio

Xenofonte, no livro das Rendas, pretendia fazem doações ou testamentos; atinge-se a


que se recompensasse aos prefeitos do comér­ maioridade somente uma vez.
cio que expedissem os processos mais rapida­ Platão2 6 afirma que, numa cidade em que
mente. Ele sentia a necessidade de nossa juris­ não há comércio marítimo, basta a metade das
dição consular. leis civis; e isso é muito verdadeiro. O comér­
Os negócios do comércio são muito pouco cio introduz no mesmo país diferentes tipos de
suscetíveis de formalidades. São ações de cada povos, um grande número de convenções, de
espécies de bens e de maneiras de adquirir.
dia, a que outras da mesma natureza devem se­
Assim, numa cidade comerciante, há menos
guir cada dia. Cumpre, portanto, que possam
juizes e mais leis2 7.
ser decididas cada dia. Não ocorre a mesma
coisa com as ações da vida que influem muito
2 6 Das Leis, liv. VIII. (N. do A.)
sobre o futuro, mas que raramente acontecem. 2 7 Menos juizes cíveis, podendo a justiça ordinária
Casa-se apenas uma vez; nem todos os dias se exercer-se no cível.

Capítulo XIX

De como o príncipe não deve comerciar

Teófilo28, vendo um navio onde havia centado: Quem poderá nos conter se fazemos o
mercadorias para sua mulher Teodora, man­ monopólio? Quem nos obrigará a cumprir
dou queimá-lo. “Sou imperador”, afirmou, “e nossos compromissos? O comércio que faze­
vós me fazeis dono de galera. Em que poderão mos, os cortesãos desejarão fazê-lo; serão mais
as pobres gentes ganhar a vida, se nós também ávidos e mais injustos do que nós. O povo con­
praticamos seu ofício?” Ele poderia ter acres­ fia em nossa justiça mas não confia em nossa
opulência; tantos impostos que causam sua
2 8 Zonaro. (N. do A.) miséria são provas exatas da nossa.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 299

Capítulo XX

Continuação do mesmo assunto

Quando os portugueses e os castelhanos em semelhante gente; o comércio é descon.


dominavam nas índias Orientais, tinha o nuado pela perpétua mudança daqueles a
comércio ramos tão ricos, que seus príncipes quem é confiado; ninguém administra este
não deixaram de arrebatá-los. Isso arruinou comércio nem se importa em deixá-lo arrui­
seus estabelecimentos nesses lugares. nado a seu sucessor; o lucro permanece em
O vice-rei de Goa concedia a particulares mãos de particulares e não se amplia suficien­
privilégios exclusivos. Não se tem confiança temente.

Capítulo XXI

Do comércio da nobreza na monarquia


É contra o espírito do comércio que, na os mercadores e plebeus, a facilidade de com­
monarquia, a nobreza o pratique. “Isto seria prar e vender.”
pernicioso às cidades”, diziam29 os impera­ É contra o espírito da mqparquia que a
dores Honório e Teodósio, “e suprimiría, entre nobreza comercie. O uso que, na Inglaterra,
permitiu que a nobreza praticasse o comércio é
29 L. nobiliores, cod. de commerc., e L. ult. de res- uma das coisas que mais contribuíram para
cind. vendit. (N. do A.) enfraquecer, neste país, o governo monárquico.

Capítulo XXII

Reflexão particular

Pessoas30 impressionadas pelo que se prati dos32 despóticos, onde ninguém pode nem
ca em alguns Estados pensam que seria neces­ deve ter emulação.
sário que, na França, existissem leis que indu­ Que não se diga que cada um seguirá me­
zissem os nobres a comerciar. Este seria o lhor sua profissão quando não puder trocá-la
meio de destruir a nobreza, sem nenhuma utili­ por outra. Afirmo que se praticará melhor a
dade para o comércio. A prática deste país é profissão quando os que nela se tiverem distin-
muito sábia: os negociantes não são nobres guido esperarem obter outra.
mas podem chegar a sê-lo. Têm a esperança de A aquisição que se pode fazer da nobreza a
obter a nobreza sem dela ter o inconveniente preço de dinheiro encoraja muitos negociantes
atual. Não têm meio mais seguro de sair de sua a se colocarem em situação de adquiri-la. Não
profissão do que praticá-la bem, ou fazê-la examino se se fez bem em dar assim às rique­
com honra, coisa que está comumente relacio­ zas o preço da virtude: há governos nos quais
nada à suficiência31. isso pode ser muito útil.
As leis que ordenam que cada um perma­
Na França, este estado de toga que se
neça em sua profissão, e a transmita aos filhos,
encontra entre a alta nobreza e o povo; que,
não são nem podem ser úteis senão nos Esta­ sem ter o brilho daquela, possui todos os seus
30 Pessoas: o Abade de Saint-Pierre nas suas Rê-
veries d ’un Homme de Bien. 32 Efetivamente, isto é amiúde estabelecido desta
31 Suficiência, no sentido de capacidade. maneira. (N. do A.)
300 MONTESQUIEU

privilégios; este estado que deixa os particu­ parte da nação, que serve sempre com o capi­
lares na mediocridade, enquanto o corpo das tal de seu bem; que, quando está arruinada, dá
leis está na glória; este estado, também, no seu lugar a outra que servirá ainda com seu
qual não se tem meio de se distinguir senão capital; que vai à guerra para que ninguém
pela suficiência e pela virtude; profissão hon­ ouse dizer que ela aí não esteve; que, quando
rada, mas que permite sempre ver uma mais não pode esperar riquezas, espera as honrarias,
distinguida: esta nobreza, inteiramente guerrei­ e que, quando não as obtém, se consola porque
ra, que pensa que, qualquer que seja o grau de adquiriu honrarias: todas essas coisas têm
riquezas em que se esteja, cumpre fazer fortu­ necessariamente contribuído para a grandeza
na, mas que é vergonhoso aumentar seu patri­ deste reino. E se, a partir de dois ou três sécu­
mônio se não se começa por dissipá-lo33; esta los, ela aumentou constantemente seu poderio,
faz-se mister atribuir isso à bondade de suas
33 Mediante aquisições de cargos, militares ou leis, e não à fortuna que não tem essas espécies
outros. de constância.

Capítulo XXIII

A que nações é
desvantajosa a prática do comércio
As riquezas consistem em fundos territoriais do será carente de tudo e nada poderá adqui­
ou em bens mobiliários: os fundos territoriais rir; melhor seria que não comerciasse com
de cada país são geralmente possuídos por nação alguma do mundo: é o comércio que,
seus habitantes. A maioria dos Estados tem nas circunstâncias em que ele se encontra, o
leis que desinteressam os estrangeiros pela conduz à pobreza.
aquisição de suas terras3 4; só mesmo a pre­ Um país que sempre envia menos mercado­
sença do proprietário as faz valer: este gênero rias ou gêneros do que recebe, coloca a si
de riquezas pertence, pois, a cada Estado em mesmo em equilíbrio empobrecendo-se: rece­
particular. Mas os bens mobiliários, comò o berá sempre menos, até que, numa extrema
dinheiro, as cédulas, as letras de câmbio, as pobreza, nada mais receberá.
ações de companhias, navios, todas as merca­ Nos países de comércio, o dinheiro que
dorias, pertencem ao mundo inteiro, que, nesta subitamente desaparece torna a voltar porque
relação, forma apenas um único Estado, do os Estados que o receberam o devem: nos
qual todas as sociedades forma membros; o Estados a que nos referimos, o dinheiro nunca
povo que possui a maioria desses bens mobi­ retorna, porque os que o adquiriram nada
liários do universo é o mais rico; alguns Esta­ devem.
dos possuem-nos em grande quantidade; ad­ A Polônia servirá aqui de exemplo. Ela não
quiriram-nos, cada um, por seus gêneros, pelo tem quase nenhuma das coisas a que chama­
trabalho de seus operários, pela sua indústria, mos bens mobiliários do universo, a não ser o
pelas suas descobertas e pelo próprio acaso. A trigo de suas terras. Alguns senhores são
avareza das nações disputa os móveis3 5 de proprietários de províncias inteiras; eles pres­
todo o universo. Podemos encontrar um Esta­ sionam os lavradores para ter maior quanti­
do tão infeliz que esteja privado dos bens de dade de trigo para poder enviar ao exterior e
outros países e mesmo de quase todos os seus: obter coisas que o luxo requer. Se a Polônia
os proprietários dos fundos territoriais não não comerciasse com nenhuma nação seus
passarão de colonos de estrangeiros. Este Esta­ povos seriam mais felizes. Os poderosos, que
apenas teriam seu trigo, dá-lo-iam aos campo­
3 4 Trata-se do direito de aubaine que confiscava neses para viver; domínios demasiado grandes
em favor do soberano a herança do estrangeiro que ser-lhes-iam um fardo; eles reparti-los-iam
morria nos seus Estados.
35 ... os móveis... os bens móveis, a riqueza entre os camponeses; encontrando toda gente
mobiliária. peles ou lãs em seus rebanhos, não mais have-
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 301

ria uma imensa despesa a fazer com as vesti­ adquirir poder; podem ocorrer casos em que se
mentas; os poderosos, que sempre apreciam o tenha necessidade de um rápido auxílio, que
luxo, e que só o poderíam encontrar em seu um Estado tão abastado possa dar mais
país, estimulariam os pobres ao trabalho. Digo depressa do que outro. É difícil que um país
que esta nação seria mais florescente, a menos tenha coisas supérfluas, mas é da natureza do
que se tornasse bárbara, coisa que as leis pode­ comércio tornar úteis as coisas supérfluas, e
ríam prevenir. necessárias as coisas úteis. O Estado poderá,
Consideremos agora o Japão. A quantidade portanto, oferecer as coisas necessárias a um
excessiva do que pode receber produz a quanti­ maior número de súditos.
dade excessiva do que pode exportar: as coisas Digamos, portanto, que não são as nações
estarão em equilíbrio se a importação e a que não têm necessidade de nada que perdem
exportação forem moderadas; e, aliás, esta ao praticar o comércio; perderão as que têm
espécie de excesso acarretaria ao Estado mil necessidade de tudo. Não são os povos que se
vantagens: haveria maior consumo, mais coi­ bastam a si próprios mas os que nada têm em
sas sobre as quais as artes poderíam exercer- seu país que se beneficiam em não traficar com
se, mais homens empregados, mais meios de ninguém.
LIVRO VIGÉSIMO PRIMEIRO
DAS LEIS NA RELAÇÃO QUE TÊM
COM O COMERCIO, CONSIDERADO
NAS REVOLUÇÕES QUE TEVE NO MUNDO
Capitulo I

Algumas considerações gerais

Embora o comércio esteja sujeito a grandes lhes permite quase nada do que vem de nós.
revoluções, pode acontecer que certas causas Andam nus; as vestes que possuem, fornece-as
físicas, a qualidade do terreno ou do clima, convenientes o país; e a religião, que tem sobre
determinem para sempre sua natureza. eles tanto poder, provoca-lhes repugnância
Hoje, só fazemos comércio com a índia pelo pelas coisas que nos servem de alimento. Não
dinheiro que para ali mandamos. Os roma­ têm necessidade, portanto, a não ser dos nos­
nos3*6 para lá levavam cerca de cinquenta sos metais, que são os símbolos dos valores e
milhões de sestércios cada ano. Esse dinheiro, pelos quais dão mercadorias que sua frugali­
como o nosso hoje, era convertido em merca­ dade e a natureza do país lhes proporcionam
dorias que traziam para o Ocidente. Todos os em grande abundância. Os autores antigos que
povos que negociaram com as índias sempre nos falaram das índias descrevem-nas3 7 tais
levaram metais e trouxeram mercadorias. como as vemos hoje, quanto à polícia, às
É a própria Natureza que produz esse efeito. maneiras e aos costumes. As índias foram, as
Os indianos têm suas artes, que se adaptam à índias serão o que são atualmente; e, em todos
sua maneira de viver. Nosso luxo não poderia os tempos, os que negociarem com as índias
ser o deles, nem nossas necessidades suas levarão para lá dinheiro e não o trarão de
necessidades. Seu clima não lhes pede nem volta.

3 8 Plínio, Hist. Nat., liv. VI, cap. XXIII e infra, 3 7 Vede Plínio, liv. VI, cap. XIX, e Éstrabão, liv.
cap. VI. (N. do A.) XV. (N. do A.)

Capítulo II

Dos povos da África

A maioria dos povos das costas da África recebem imediatamente das mãos da Nature­
são selvagens ou bárbaros. Creio que isso se za. Todos os povos civilizados estão, portanto,
deve muito ao fato de regiões quase inabitáveis em situação de negociar com eles vantajosa­
separarem as pequenas regiões que podem ser mente; podem fazê-los estimar muitas coisas
habitadas. Não têm indústrias; não têm artes; sem valor algum, e por elas receber elevados
possuem em abundância metais preciosos que preços.
306 MONTESQUIEU

Capítulo III

De como as necessidades dos povos do Sul


são diferentes das dos povos do Norte
Há na Europa uma espécie de equilíbrio taria, e tornar-se-iam bárbaras. Foi o que
entre as nações do Sul e as do Norte. As pri­ implantou a servidão entre os povos do Sul:
meiras possuem toda espécie de comodidades como podem facilmente prescindir de riquezas,
para a vida, e poucas necessidades: as segun­ podem ainda melhor prescindir de liberdade.
das têm muitas necessidades e poucas comodi­ Mas os povos do Norte têm necessidade da
dades para a vida. A umas, a Natureza deu liberdade, que lhes proporciona mais meios de
muito e elas só lhe pedem pouco;-a outras, a satisfazer todos os desejos de que a Natureza
Natureza deu pouco e elas pedem muito. O os dotou. Os povos do Norte ficam, pois,
equilíbrio se mantém pela preguiça que ela deu numa situação forçada, quando não são livres
às nações do Sul, e pela indústria e atividade nem bábaros: quase todos os povos do Sul
que deu às do Norte. Essas últimas são obriga­ estão, de alguma forma, num estado violento,
das a trabalhar muito, sem o que tudo lhes fal­ quando não são escravos.

Capítulo IV

Principal diferença entre o


comércio dos antigos e o de hoje

O mundo atravessa, de tempos em tempos, O comércio antigo que conhecemos exque se


situações que mudam o comércio. Hoje o fazia de um porto do Mediterrâneo a outro
comércio da Europa se faz principalmente do localizava-se quase todo no Sul. Ora, povos de
Norte para o Sul. Assim, a diferença de clima mesmo clima, possuindo quase as mesmas coi­
sas, não têm tanta necessidade de comerciar
faz com que os povos tenham grande necessi­
entre si quanto os de clima diferente. O comér­
dade das mercadorias uns dos outros. Por cio na Europa era, portanto, outrora, menos
exemplo, as bebidas do Sul levadas ao Norte extenso do que o é hoje.
constituem uma espécie de comércio que os Isso não está em contradição com o que
Antigos não faziam. Também a capacidade disse acerca de nosso comércio com as índias:
dos navios, que outrora se media por moios de a diferença excessiva do clima faz com que as
trigo, mede-se hoje por tonéis de licor. necessidades relativas sejam nulas.

Capítulo V

Outras diferenças

O comércio, ora destruído pelos conquista­ Vendo-se hoje a Cólquida, que nada mais é
dores, ora impedido pelos monarcas, percorre do que uma vasta floresta, onde o povo, que
a terra, foge de onde é oprimido, radica-se diminui dia a dia, só defende sua liberdade
onde o deixam respirar: reina hoje onde só se para vender-se aos poucos aos turcos e aos
viam desertos, mares e rochedos; onde reinava persas, não se diria nunca que essa região
não há senão desertos. tivesse sido, ao tempo dos romanos, cheia de
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 307

cidades onde o comércio atraía todas as dos povos. Suas diversas destruições e certos
nações do mundo. Não se encontra nenhum de fluxos e refluxos de populações e de devasta­
ções constituem seus maiores acontecimentos.
seus monumentos na região; só há traços delas
em Plínio38 e Estrabão39.
3 8 Liv. VI, cap. IV e V. (N. do A.)
A história do comércio é a da comunicação 39 Liv. XI. (N. do A.)

Capítulo VI

Do comércio dos Antigos


Os imensos tesouros de40 Semíramis, que mar Cáspio e penetrar na embocadura do
não poderíam ter sido adquiridos em um dia, Ciros; que deste rio bastava um trajeto por
fazem-nos pensar que os assírios haviam eles terra de cinco dias para ir ao Fásis, que condu­
próprios pilhado outras nações ricas, como as zia ao Ponto Euxino. É indubitavelmente pelas
outras nações os pilhariam depois. nações que povoavam esses diversos países
Os efeitos do comércio são as riquezas; a que os grandes impérios dos assírios, dos
consequência das riquezas, o luxo; a do luxo, a medos e dos persas comunicavam-se com as
perfeição das artes. As artes, no estágio em regiões do Oriente e do Ocidente mais afasta­
que as encontramos na época de Semíramis41, das.
indicam-nos um grande comércio já estabele­ Essa comunicação não mais existe. Todos
cido. > . esses países foram devastados pelos tárta­
Havia um grande comércio de luxo nos ros 4 7, e esta nação destruidora ainda os habita
impérios da Ásia. A história do luxo consti­ para os infestar. O Oxo não mais chega ao mar
tuiría uma bela parte da história do comércio; Cáspio: os tártaros desviaram-no por motivos
o luxo dos persas era o dos medos, como o dos particulares48; ele se perde nas areias áridas.
medos era o dos assírios. O laxartes, que outrora formava uma bar­
Ocorreram grandes mudanças na Ásia. A
reira entre as nações policiadas e as nações
parte da Pérsia que está a nordeste, a Hircânia,
bárbaras, foi igualmente desviado49 pelos tár­
a Margiana, a Bactfiana etc. eram outrora
taros e não mais atinge o mar.
cheias de cidades florescentes42 que já não
Seleuco Nicátor projetou50 ligar o Ponto
existem; e o Norte43 desse império, isto é, o
Euxino ao mar Cáspio. Este desígnio, que teria
istmo que separa o mar Cáspio do Ponto Euxi-
proporcionado muitas facilidades ao comércio
no, era coberto de cidades e de nações que
que nessa época se fazia, desapareceu com sua
também não existem mais. morte51. Não se sabe se ele teria podido execu­
Eratóstenes4 4 e Aristóbulo sabiam de Pá-
tá-lo no istmo que separa os dois mares. Essa
troclo4 5 que as mercadorias das índias passa­
região é atualmente muito pouco conhecida; é
vam pelo Oxo no mar do Ponto. Marco Var-
despovoada e coberta de florestas. Não há
rão4 6 nos diz que se soube, na época de
Pompeu, na guerra contra Mitridates, que se ia
falta de água, pois uma infinidade de rios para
em sete dias da índia ao país dos bactrianos, e aí descem pelo monte Cáucaso; mas este Cáu-
ao rio ícaro que desemboca no Oxo; que por aí caso, que forma o Norte do istmo e que esten-
as mercadorias da índia podiam atravessar o
4 7 É preciso que, desde a época de Ptolomeu, que
nos descreve tantos rios que se lançam na parte
40 Diodoro, liv. II (N. do A.) oriental do mar Cáspio, tivesse havido grandes
41 Diodoro, liv. II, cap. VII, VIII e IX. (N. do A.) transformações nessa região. O mapa do czar ape­
42 Vede Plínio, liv. VI, cap. XVI; e Estrabão, liv. nas situa desse lado o rio de Astrabat; e o de
XI. (N. do A.) Bathalsi nada registra. (N. do A.)
43 Estrabão, liv. XI. (N. do A.) 4 8 Vede a relação de Genkinson, na Coletânea das
4 4 Estrabão, liv. XI. (N. do A.) Viagens do Norte, t. IV. (N. do A.)
4 5 A autoridadç de Pátroclo é considerável, como 49 Creio que foi.daí que se formou o lago Arai. (N.
se vê por um relato de Estrabão, liv. II. (N. do A.) do A.)
4 6 Em Plínio, liv. VI, cap. XVII. Vede também 50 Cláudio César, em Plínio, liv. VI, cap. XI. (N.
Estrabão, liv. XI, sobre o trajeto das mercadorias do A.)
do Fásis ao Ciros. (N. do A.) 51 Foi morto por Ptolomeu Cerano. (N. do A.)
308 MONTESQUIEU

de espécies de braços52 para o Sul, teria sido unicamente da agricultura, pouco conhecia o
um grande obstáculo, sobretudo nesse tempo mar; assim, foi apenas ocasionalmente que os
em que não se possuía a arte de fazer eclusas. judeus negociaram no mar Vermelho. Eles
Poder-se-ia acreditar que Seleuco pretendia tomaram Elath e Asiongaber dos idumeus, que
fazer a ligação dos dois mares no mesmo lugar lhes deram esse comércio: eles perderam essas
em que o Czar Pedro I o fez depois, isto é, duas cidades e perderam também esse comér­
nessa mesma faixa de terra em que o Tânais se cio.
aproxima do Volga; mas o Norte do mar Cás­ A mesma coisa não ocorreu com os fení-
pio não fora ainda descoberto. cios: não faziam um comércio de luxo; não
Enquanto nos impérios da Ásia havia um negociavam pela conquista: sua frugalidade,
comércio de luxo, os tírios faziam por toda a habilidade, indústria, audácias, fadigas, os tor­
terra um comércio de economia. Bochard53 navam necessários a todas as nações do
dedicou o primeiro livro de seu Canaã à mundo.
enumeração das colônias que eles enviaram a As nações vizinhas do mar Vermelho ape­
todos os países que estão situados próximos do nas negociavam neste e no mar da África. O
mar; eles passaram as colunas de Hércules e assombro do universo quando da descoberta
fundaram estabelecimentos5 4 nas costas do do mar das índias, efetuada na época de Ale­
oceano. xandre, o prova suficientemente. Dissemos58
Naqueles tempos, os navegadores eram que sempre se levam às índias metais precio­
obrigados a seguir as costas, que eram, por sos que não são trazidos59 de volta: as frotas
assim dizer, sua bússola. As viagens eram lon­ judias que, pelo mar Vermelho, transportavam
gas e penosas. Os trabalhos da navegação de ouro e prata voltavam da África e não das
Ulisses foram um assunto fértil para o poema índias.
mais belo do mundo, depois daquele que é o Digo mais: esta navegação fazia-se na costa
primeiro de todos5 5. oriental da África; e o estado em que então se
O pouco conhecimento que a maioria dos encontrava a marinha prova suficientemente
povos tinha dos que estavam afastados deles que não se ia a lugares longínquos.
favorecia as nações que-praticavam o comér­ Sei que as frotas de Salomão e de Josafá só
cio de economia. Inseriam em seus negócios as retornavam no terceiro ano mas não vejo por
obscuridades que desejassem; tinham todas as que a duração da viagem prova a extensão do
vantagens que as nações inteligentes adquirem afastamento.
sobre os povos ignorantes. Plínio e Estrabão informam-nos que o cami­
O Egito, afastado de toda comunicação com nho que um navio das índias e do mar Verme­
os estrangeiros pela religião e pelos costumes, lho, fabricado com juncos, percorria em vinte
quase não praticava um comércio exterior; dias era coberto em sete por um navio grego
tinha um solo fértil e de extrema abundância. ou romano60. Nesta proporção, a viagem de
Era o Japão dessa época; bastava-se a si um ano para as frotas gregas e romanas signi­
próprio. ficava aproximadamente três para as de
Os egípcios foram tão pouco zelosos do Salomão.
comércio exterior, que deixaram o do mar Ver­ Dois navios de velocidade desigual não
melho a todas as pequenas nações que aí tives­ fazem sua viagem num tempo proporcional à
sem algum porto. Toleraram que os idumeus, sua velocidade: a lentidão produz amiúde uma
os judeus e os sírios aí tivessem frotas. Salo­ lentidão maior. Quando se trata de seguir cos­
mão 5 6 empregou nessa navegação os tírios, tas; quando se encontra constantemente numa
que conheciam esses mares. posição diferente; quando cumpre esperar um
Josefo5 7 conta que sua nação, ocupando-se bom vento para sair de um golfo, e outro para
avançar, um navio bom de velas aproveita-se
52 Vede Estrabão, liv. XI. (N. do A.)
53 Bochard, orientalista francês (1599-1664). 58 No cap. I deste livro. (N. do A.)
54 Fundaram Tartesso e estabeleceram-se em 59 A proporção estabelecida na Europa entre o
Cádis. (N. do A.) ouro e a prata pode, algumas vezes, fazer com que
5 5 A Odisséia; o primeiro de todos seria a Ilíada. seja mais lucrativo tomar, nas índias, ouro por
5 6 Livro III, dos Reis, cap. IX, vers. 26; Paralip., prata; mas isso significa pouco coisa. (N. do A.)
liv. II, cap. VIII, vers. 17. (N. do A.) 60 Vede Plínio, liv. VI, cap. XXII, e Estrabão, liv.
5 7 Contra Apião. (N. do A.) XV. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 309

de todos os tempos favoráveis, enquanto o são obrigados a mudar frequentemente de dire­


outro permanece num lugar difícil e espera vá­ ção; 2.°) andam mais lentamente porque, não
rios dias por outra mudança. tendo ponto de apoio, não poderíam contar
Essa lentidão dos navios das índias, que, com tantas velas como os outros. Pois, se
num tempo igual, não podiam percorrer senão numa época em que a marinha está tão aperfei­
um terço do caminho que percorriam os navios çoada, numa época em que as artes se comuni­
gregos e romanos, pode ser explicada pelo que cam, numa época em que se corrigem, pela
vemos atualmente em nossa marinha. Os na­ arte, tanto os defeitos da natureza como os
vios das índias, sendo de junco, eram de menor defeitos da própria arte, sentimos essas dife­
calado que os barcos gregos e romanos, que renças, como não o seria na marinha dos
eram de madeira e unidos com ferro. Antigos?
Pode-se comparar esses navios das índias Eu não poderia abandonar este assunto. Os
com os de algumas nações de hoje, cujos por­ navios das índias eram pequenos e os dos gre­
tos são pouco profundos; tais como os de Ve­ gos e dos romanos, se excetuamos essas má­
neza e mesmo, em geral, como os da Itália61, quinas que a ostentação fez aparecer, eram
do mar Báltico e da província da Holanda62. menores do que os nossos. Ora, quanto menor
Seus navios, que dali devem sair e entrar, são um navio, mais perigo sofre no mau tempo.
de fábrica63 redonda e larga quanto ao fundo; Uma tempestade, que poderia submergir um
ao passo que os navios de outras nações que navio, apenas fustigaria um outro, se ele fosse
possuem bons portos são por baixo de uma maior. Quanto mais um corpo ultrapassa
forma que os faz calar profundamente na água. outro em grandeza, relativamente menor será
Esta mecânica faz com que estes últimos nave­ sua superfície; daí segue que, num navio
guem mais perto do vento e que os primeiros pequeno, há uma razão menor, isto é; uma
quase só naveguem quando têm vento pela maior diferença do que num grande, entre a
popa. Um navio que cala muito na água nave­ superfície do navio e o peso ou carga que pode
ga para a mesma direção com quase todos os transportar. Sabemos que, por uma prática
ventos, o que decorre da resistência encon­ quase geral, introduz-se num navio uma carga
trada na água pelo barco impulsionado pelo de peso igual ao da metade da água que ele
vento, que constitui um ponto de apoio, e da poderia conter. Suponhamos que um navio
forma alongada do barco, que é apresentado contém oitocentos tonéis de água; sua carga
ao vento lateralmente, enquanto, graças à será de quatrocentos tonéis; a de um navio que
forma do leme, vira-se a proa para o lado que apenas contém quatrocentos tonéis de água
se deseja; de modo que se pode navegar muito será de duzentos. Assim, a grandeza do pri­
perto do vento, isto é, muito perto do lado de meiro navio estaria, para o peso que levaria,
onde o vento sopra. Mas, quando o navio é de como oito está para quatro; e a do segundo,
formato redondo e de fundo largo e, conse­ como quatro está para dois. Suponhamos que
quentemente, mergulha pouco na água, não há a superfície do grande esteja para a superfície
mais porto de apoio, o vento acossa o barco do pequeno como oito está para seis; a super­
que não pode resistir e nem tampouco seguir fície 6 4 deste estará, em relação a seu peso,
na direção oposta ao vento. Conclui-se daí que como seis para dois, enquanto a superfície
os barcos de construção redonda de fundo são daquele só estará, em relação a seu peso, como
mais lentos em suas viagens: l.°) perdem oito está para quatro; e atuando os ventos e as
muito tempo esperando o vento, sobretudo se vagas acenas sobre a superfície, o barco gran­
de, graças a seu peso, resistirá mais à impetuo­
sidade das águas do que o pequeno.
61 Quase não têm ancoradouro; mas a Sicília tem
portos excelentes. (N. do A.)
62 Refiro-me à província da Holanda, pois os por­ 6 4 Isto é, para comparar grandezas do mesmo gê­
tos da província da Zelândia são muito profundos. nero: a ação ou a apreensão do fluido sobre o navio
(N. do A.) será, em relação à resistência do mesmo navio,
63 Fábrica, no sentido de fabricação. como etc. (N. do A.)
310 MONTESQUIEU

Capítulo VII

Do comércio dos gregos

Os primeiros gregos eram todos piratas. tuada: separou dois mares, abriu e fechou o
Minos, que havia possuído o império do mar, Peloponeso, e abriu e fechou a Grécia. Foi
só obtivera talvez grandes êxitos nas pilha­ uma cidade de grande importância, numa
gens: esse império achava-se limitado às cerca­ época em que o povo grego era um mundo e as
nias de sua ilha. Porém, quando os gregos cidades gregas eram nações. Ela praticou um
tornaram-se um grande povo, os atenienses comércio maior do que o de Atenas. Tinha um
obtiveram o verdadeiro império do mar porque porto para receber as mercadorias da Ásia e
esta nação comerciante e vitoriosa ditou a lei outro para receber as da Itália; pois, como
ao monarca6 5 mais poderoso de então, e havia grandes dificuldades em contornar o
sobrepujou as forças marítimas da Síria, da promontório Máleo, onde ventos 6 7 opostos se
ilha de Chipre e da Fenícia. encontram e ocasionam naufrágios, preferia-se
É necessário que eu me refira a este império antes ir a Corinto e se podia mesmo fazer pas­
marítimo que Atenas teve. “Atenas”, diz sar os navios de um mar a outro, por terra. Em
Xenofonte65 66, “tem tem o império do mar; nenhuma outra cidade se enalteciam tanto as
porém, como a Ática está presa à terra, os ini­ obras de arte. A religião acabou de corromper
migos devastam-na, enquanto ela empreende o que sua opulência lhe deixara de costumes.
suas expedições às regiões longínquas. Os Ela erigiu um templo a Vênus, onde mais de
principais deixam destruir suas terras e colo­ mil cortesãs foram consagradas. Foi desse
cam seus bens em segurança em alguma ilha: o seminário que saiu a maioria das belezas céle­
populacho, que não possui terras, vive sem bres cuja história Atenas ousou escrever.
nenhuma inquietação. Mas, se os atenienses Parece que, na época de Homero, a opulên­
habitassem uma ilha e tivessem, por outro cia da Grécia situava-se em Rodes, em Corinto
lado, o domínio do mar, teriam o poder de pre­ e em Orcômeno. “Júpiter”, diz ele 68, “amou os
judicar os outros sem que pudessem ser preju­ ródios e deu-lhes grandes riquezas.” Dá a
dicados, enquanto fossem senhores do mar.” Corinto 6 9 o epíteto de rica.
Dir-se-ia que Xenofontes quis referir-se à Da mesma maneira, quando quer referir-se a
Inglaterra. cidades que possuem muito ouro, cita Orcôme­
Atenas, repleta de projetos de glória; Ate­ no70, que compara com Tebas do Egito.
nas, que aumentava a inveja em vez de aumen­ Rodes e Corinto conservaram seu poderio, e
tar a influência; mais preocupada em estender Orcômeno o perdeu. A posição de Orcômeno,
seu império marítimo do que dele fruir; com perto do Helesponto, da Propôntida e do
um governo político de tal espécie, que o baixo Ponto Euxino, leva naturalmente a pensar que
povo partilhava entre si as rendas públicas, ela extraía suas riquezas de um comércio sobre
enquanto os ricos permaneciam oprimidos, as costas desses mares que tinham dado ori­
não fez este grande comércio que lhe prome­ gem à fábula do tosão de ouro. E, efetiva-
tiam o trabalho de suas minas, a multidão de menté, o nome de Miniares é atribuído a
seus escravos, o número de seus marinheiros, Orcômeno71 e também aos argonaatas.
sua autoridade sobre as cidades gregas e, mais Porém, como em seguida estes mares torna­
do que tudo isso, as belas instituições de ram-se mais conhecidos; como os gregos aí
Sólon. Seu negócio quase só se limitou à Gré­ estabeleceram grande número de colônias;
cia e ao Ponto Euxino, de onde ela extraiu sua
subsistência. 6 7 Vede Estrabão, liv. VIII. (N. do A.)
Corinto se achou admiravelmente bem si­ 68 Ilíada, liv. II, verso 668. (N. do A.)
69 Ibid., verso 570. (N. do A.)
70 Ibid., liv. I, verso 381. Vede Estrabão. liv. IX,
65 O rei da Pérsia. (N. do A.) pág. 414 edição de 1620. (N. do A.)
6 6 De Republ. Athen, cap. II. (N. do A.) 71 Estrabão, liv. IX, pág. 414. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 311

como essas colônias negociaram com povos lia e na Itália e aí formou nações. Navegou
bárbaros; como elas se comunicaram com sua para os mares do Ponto, para as costas da
metropóle, Orcômeno começou a decair e en­ Ásia Menor, para as da África e aí procedeu
trou na multidão das demais cidades gregas. da mesma forma. Suas cidades adquirem pros­
Os gregos, antes de Homero, quase só ti­ peridade à medida que se encontram perto de
nham negociado entre si e com alguns povos novos povos. E, o que era admirável, inumerá­
bárbaros; mas estenderam seu domínio à medi­ veis ilhas, situadas como em primeira linha,
da que formavam novos povos. A Grécia era circundavam-na ainda.
uma grande península cujos cabos pareciam Quantas causas de prosperidade para a Gré­
ter feito o mar recuar e os golfos abrirem-se de cia; quantos espetáculos oferecia, por assim
todos os lados, como também para os receber. dizer, ao universo; templos aonde todos os reis
Se lançarmos o olhar sobre a Grécia, veremos, enviavam oferendas; festas onde se reuniam
numa região bastante comprimida, uma vasta forasteiros de todas as partes; oráculos que
extensão de costas. Suas incontáveis colônias atraíam a atenção de toda a curiosidade huma­
traçavam uma enorme circunferência em seu na; enfim, os gostos e as artes levados a tal
derredor; e ela via, por assim dizer, todo o ponto, que acreditar superá-los significará
mundo que não era bárbaro. Penetrou na Sicí- sempre não os conhecer!

Capítulo VIII

De Alexandre. Sua conquista


Quatro acontecimentos, na época de Ale­ Alexandre, que se fez acompanhar por sua
xandre, ocasionaram grande revolução no frota, não deixou de aí perder grande parte de
comércio: a tomada de Tiro, a conquista do seu exército. Os persas deixavam toda a costa
Egito, a da índia e a descoberta do mar que se em poder dos Ictiófagos7 6, dos Oritas e outros
situa ao sul deste país. povos bárbaros. Aliás, os persas7 7 não eram
O império persa estendia-se até o Indo72. navegantes e sua própria religião lhes interdi­
Muito tempo antes de Alexandre, Dario73 tava toda idéia de comércio marítimo. A nave­
enviara navegadores que desceram esse rio e gação que Dario mandou estabelecer no Indo e
no mar das índias foi mais uma fantasia de um
foram até o mar Vermelho. Como, portanto, príncipe que pretendia demonstrar seu poderio
foram os gregos que primeiro comerciaram, do que o projeto organizado de um monarca
pelo Sul, com as índias? Como os persas não o que quis utilizá-lo. Essa navegação não teve
fizeram anteriormente? De que lhes serviam consequência nem para o comércio nem para a
mares que estavam tão próximos deles, mares marinha; e se se saiu da ignorância foi para
que banhavam seu império? É verdade que nela recair.
Alexandre conquistou as índias: mas cumpre Há mais: era admitido78, antes da expedi­
conquistar um país para negociar? Examinarei ção de Alexandre, que a parte meridional das
essa questão. índias era inabitável7 9, o que decorria da tra­
A Ariana74, que se estendia desde o golfo dição de que Semíramis80 daí trouxera apenas
Pérsico até o Indo, e do mar do Sul até as vinte homens e Ciro sete.
montanhas dos Paropamísades, efetivamente
dependia de alguma maneira do império dos 7 6 Plínio, liv. VI, cap. XXIII; Estrabão, liv. XV.
persas; porém, em sua parte meridional, ela (N. do A.)
7 7 Para não macular os elementos, não navegavam
era árida, calcinada, inculta, bárbara. A nos rios. Hyde, Religião dos Persas. Ainda hoje não
tradição7 5 contava que os exércitos de Semíra- possuem comércio marítimo e chamam de ateus os
mis e de Ciro pereceram nesses desertos; e que viajam nos mares. (N. do A.)
7 8 Estrabão, liv. XV. (N. do A.)
79 Heródoto, in Melpomene, cap. XLIV, diz que
72 Estrabão, liv. XV. (N. do A.) Dario conquistou as índias. Isso só pode ser enten­
73 Heródoto, in Melpomene, IV, 44. (N. do A.) dido como a conquista da Ariana, ainda que só se
74 Estrabão, liv. XV. (N. do A.) tratasse de uma conquista imaginária. (N. do A.)
75 Ibid. (N. do A.) 80 Estrabão, liv. XV. (N. do A.)
312 MONTESQUIEU

Alexandre penetrou pelo Norte. Seu desíg­ para fechá-lo; e ele não pensava num comércio
nio era marchar para o Oriente; mas, tendo do qual a descoberta do mar das índias pode­
encontrado a parte do-Sul repleta de grandes ria por si só inspirar-lhe a idéia.
nações, de cidades e de rios, tentou a conquista Parece mesmo que, após esta descoberta,
e realizou-a. não teve mais nenhum novo objetivo com rela­
Nessas condições, planejou unir as índias ção a Alexandria. Tinha efetivamente, em
ao Ocidente por um comércio marítimo, como geral, o projeto de estabelecer um comércio
os unira por colônias que estabelecera nas entre as índias e as partes ocidentais de seu
terras. império; mas faltavam-lhe muitos conheci­
Mandou construir uma frota no Hidaspes, mentos para poder conceber o projeto de fazer
desceu este rio, entrou no Indo e navegou até o comércio pelo Egito. Vira o Indo, vira o
sua embocadura. Deixou seu exército e sua Nilo, mas não conhecia os mares da Arábia,
frota em Patala e ele próprio foi com alguns que estão entre os dois. Assim que chegou das
barcos reconhecer o mar, assinalou os lugares índias mandou construir novas frotas e nave­
onde quis que se construíssem portos, angras e gou8 4 pelo Euleus, pelo Tigre, pelo Eufrates e
arsenais. De volta a Patala, separou-se de sua pelo mar: retirou as cataratas que os persas
frota e seguiu o caminho por terra para lhe dar haviam colocado nestes rios: descobriu que o
auxílios e recebê-los. A frota seguiu a costa seio pérsico8 5 era um golfo do oceano. Como
desde a embocadura do Indo, ao longo das foi reconhecer8 6 este mar, assim como reco­
costas do país dos Oritas, dos Ictiófagos, da nhecera o das índias; como mandou construir
Caramânia e da Pérsia. Mandou abrir poços, um porto na Babilônia para mil barcos, e arse­
construir cidades: proibiu os ictiófagos81 de nais; como enviou quinhentos talentos para a
viverem de peixe; quis que as margens deste Fenícia e a Síria, a fim de que lhe enviassem
mar fossem habitadas por nações civilizadas. navegantes, que desejava colocar nas colônias
Nearco e Onesícrito redigiram o diário dessa que espalhava nas costas; como, finalmente,
navegação82 que durou dez meses. Chegaram realizou imensos trabalhos no Eufrates e em
a Susa; aí encontraram Alexandre que oferecia outros rios da Assíria, não se pode duvidar que
festas a seu exército. seu intento fosse comerciar com as índias pela
Babilônia e pelo golfo Pérsico.
Este conquistador fundara Alexandria com Algumas pessoas, sob pretexto de que Ale­
o objetivo de apoderar-se do Egito; era uma xandre pretendia conquistar a Arábia8 7, disse­
chave para abri-lo, no próprio83 lugar em que ram que ele intencionava aí estabelecer a sede
os reis seus predecessores tinham uma chave de seu império; mas como teria escolhido um
lugar que não conhecia88? Aliás, tratava-se da
81 Isto não podia dizer respeito a todos os ictió­ região mais incômoda do mundo; ele estaria
fagos que habitavam uma costa de dez mil estádios. separado de seu império. Os califas, que
Como Alexandre teria podido lhes garantir a subsis­
tência? Como se faria obedecido? Aqui só se trata conquistaram regiões longínquas, abando­
de alguns povos particulares. Nearco, no livro naram primeiramente a Arábia para se estabe­
Rerum Indicarum, diz que na extremidade desta lecerem alhures.
costa, do lado da Pérsia, encontrara povos menos
ictiófagos. Creio que a ordem de Alexandre refe­
ria-se a esta região,.ou alguma outra ainda mais 8 * Arriano, De Exped. Alexandri, liv. VII. (N. do
vizinha da Pérsia. (N. do A.) A.)
82 Plínio, Nat. Hist., liv. VI, cap. XXIL (N. do A.) 8 5 O seio pérsico, o “golfo Pérsico” (de Sinus
83 Alexandria foi fundada numa regíão chamada persicus).
Racotis. Os antigos reis aí mantinham uma guarni­ 8 6 Arriano, ibid. (N. do A.)
ção para impedir a entrada dos estrangeiros, sobre­ 8 7 Estrabão, liv. XVI, no final. (N. do A.)
tudo os gregos, que eram, como sabemos, grandes 88 Vendo a Babilônia inundada, ele visou a Arábia
piratas. Vede Plínio, liv. VI, cap. X; e Estrabão, liv. que estava próxima como uma ilha. Aristóbulo, em
XVIII. (N. do A.) Estrabão, liv. XVI. (N. do A.).
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 313

Capítulo IX

Do comércio dos reis gregos depois de Alexandre

Quando Alexandre conquistou o Egito, Os gregos do Egito puderam realizar um


conhecia-se muito pouco o mar Vermelho e comércio muito extenso; eram senhores dos
nada desta parte do oceano que se liga a este portos do mar Vermelho: Tiro, rival de toda
mar e que banha, de um lado, a costa da Áfri­ nação comerciante, não mais existia; não eram
ca e, de outro, a da Arábia: acreditou-se mais perturbados pelas antigas92 superstições
mesmo, desde então, que era impossível con­ do país; o Egito tornara-se o centro do
tornar a península da Arábia. Os que haviam universo.
tentado de cada lado tinham abandonado a Os reis da Síria deixaram aos do Egito o
empresa. Dizia-se89: “Como seria possível comércio meridional das índias e apenas se
navegar ao sul das costas da Arábia, uma vez dedicaram ao comércio setentrional que era
que o exército de Cambises, que a atravessou realizado pelo Oxo e pelo mar Cáspio. Acredi-
do lado norte, pereceu quase completamente, e tavà-se93, nessa época, que este mar era uma
o que Ptolomeu, filho de Lagos, enviou em parte do oceano setentrional; e Alexandre,
socorro de Seleuco Nicátor à Babilônia sofreu algum tempo antes de sua morte, mandara
perdas incríveis e, devido ao calor, não pôde construir9 4 uma frota para descobrir se ele se
marchar senão à noite. comunicava com o oceano pelo Ponto Euxino,
Os persas não possuiam nenhuma espécie de ou por qualquer outro mar oriental do lado das
navegação. Quando conquistaram o Egito, índias. Depois dele, Seleuco e Antíoco esforça­
para aí trouxeram o mesmo espírito que ti­ ram-se particularmente por reconhecê-lo. Aí
nham tido em seu país; e a negligência foi tão mantiveram9 5 frotas. O que Seleuco reconhe­
extraordinária, que os reis gregos acharam que ceu foi chamado mar Selêucida; o que Antíoco
hão somente as navegações dos tírios, dos idu- descobriu foi denominado mar Antióquido.
meus e dos judeus, no oceano, eram ignoradas, Preocupados com os projetos que poderíam
como até mesmo as do mar Vermelho o eram.
Creio que a destruição da primeira Tiro por realizar para essas bandas, negligenciaram os
Nabucodonosor e a das diversas pequenas mares do Sul, seja porque os Ptolomeus, com
nações e cidades vizinhas do mar Vermelho suas frotas no mar Vermelho, já se tivessem
fizeram com que se perdessem os conheci­ apoderado do império, seja porque tivessem
mentos adquiridos. descoberto, nos persas, uma invencível aversão
O Egito, na época dos persas, não se defron­ pela marinha. As costas do Sul da Pérsia não
tava com o mar Vermelho: continha90 apenas forneciam marinheiros; estes só tinham sido
essa faixa de terra longa e estreita que o Nilo vistos ali nos derradeiros momentos da vida de
cobre com suas inundações, e que está compri­ Alexandre. Mas os reis do Egito, senhores da
mida de ambos os lados por cadeias de monta­ ilha de Chipre, da Fenícia e de inúmeras
nhas. Foi necessário, portanto, descobrir o regiões nas costas da Ásia Menor, tinham
mar Vermelho uma segunda vez e o oceano todos os tipos de meios para realizar empreen­
uma segunda vez; e esta descoberta se deve à dimentos marítimos. Não tinham que cons­
curiosidade dos reis gregos. tranger o gênio de seus súditos; bastava
Subiu-se o Nilo; caçaram-se elefantes nas segui-lo.
regiões que estão situadas entre o Nilo e o
mar; descobriram-se, por terra, as margens 92 Elas inspiravam-lhes horror pelos estrangeiros.
deste mar; e, como esta descoberta foi efetuada (N. do A.)
pelos gregos, seus nomes são gregos, e os tem­ 93 Plínio, liv. II, cap. LXVII, e liv. VI, cap. IX e
plos são consagrados91 a divindades gregas. XIII; Estrabão, liv. XI, pág. 507; Arriano, Da
Expedição de Alexandre, liv. III, pág. 74, e liv. V,
pág. 104. (N. do A.)
8 9 Vede o livro Rerum Indicarum. (N. do A.) 94 Arriano, Da Expedição de Alexandre, liv. VII.
90 .Estrabão, liv. XVI. (N. do A.) (N. do A.)
91 Ibid. (N. do A.) 9 5 Plínio, liv. II, cap. LXVII. (N. do A.)
314 MONTESQUIEU

É difícil compreender a obstinação dos dura do Indo; vê-se que este foi o percurso
Antigos em acreditar que o mar Cáspio era seguido pela frota de Alexandre. Depois,
uma parte do oceano. As expedições de Ale­ seguiu-se um caminho mais curto103 e mais
xandre, dos reis da Síria, dos partos e dos seguro e foi-se do mesmo promontório a Siger.
romanos, não conseguiram fazê-los mudar de Este Siger só pode ser o reino de Siger ao qual
idéia: é que nos corrigimos de nossos erros o se refere Estrabão104, que os reis gregos de
mais tarde que podemos. Inicialmente conhe­ Bactriana descobriram. Plínio só pôde dizer
cia-se apenas o Sul do mar Cáspio; acreditou- que este caminho foi mais curto considerando
se tratar do oceano; à medida que se progredia que era percorrido em menos tempo, pois Siger
ao longo de suas costas, ao norte, acreditou-se deveria estar mais afastado que o Indo, uma
ainda que era o oceano que penetrava nas ter­ vez que os reis de Bactriana o descobriram.
ras. Seguindo as costas, apenas se reconhecera, Cumpria, portanto, que assim se evitasse o
do lado este, até o laxartes, e do lado oeste, até contorno de certas costas e que se aproveitasse
as extremidades da Albânia. O mar, do lado de certos ventos. Enfim, os mercadores segui­
norte, era lodoso9 6 e, consequentemente, ram um terceiro caminho: dirigiam-se a Canes
muito pouco próprio à navegação. Tudo deter­ ou a Océlis, portos situados na embocadura do
minou com que nunca se visse senão o mar Vermelho, de onde, por um vento de oeste,
oceano9 7. chegava-se a Muzíris, primeira etapa das ín­
O exército de Alexandre não fora, do lado dias, e de lá a outros portos.
oriental, senão até o Hipanis, que é o último Vê-se que em lugar de Ir da embocadura do
dos rios que desembocam no Indo. Assim, o mar Vermelho até Siagre, subindo a costa da
primeiro comércio que os gregos tiveram nas Arábia propícia a nordeste, ia-se diretamente
índias realizou-se numa parte muito pequena de oeste a este, de um lado a outro, por inter­
do país. Seleuco Nicátor penetrou até o Gan- médio das monções, cujas mudanças se desco­
ges98 e, por essa via, descobriu-se o mar onde briram navegando-se nessas paragens. Os
este rio desemboca, isto é, o golfo de Bengala. Antigos só abandonaram as costas quando se
Atualmente descobrem-se terras por meio de serviram das monções10 5 e dos ventos alísios,
viagens marítimas; outrora, descobriam-se que eram uma espécie de bússola para eles.
mares pela conquista das terras. Plínio1 0 6 informa que se partia para as ín­
Estrabão99, apesar do testemunho de Apo- dias em meados do verão e que se voltava por
lodoro, parece duvidar que os reis100 gregos volta do fim de dezembro e começos de janei­
de Bactriana tenham ido mais além que Seleu­ ro. Isto é inteiramente conforme aos diários de
nossos navegantes. Nesta parte do mar das ín­
co e Alexandre. Ainda que seja certo que, do
dias que está situada entre a península da Áfri­
lado oriental, não tenham ido mais longe que
ca e a de aquém Ganges, há duas monções: a
Seleuco, foram mais além em direção ao sul:
primeira, durante a qual os ventos sopram de
descobriram101 Siger e portos no Malabar que
oeste a leste, começa nos meses de agosto e
deram lugar à navegação a que vou me referir.
setembro; a segunda, durante a qual os ventos
Plínio1 02 ensina-nos que se seguiram suces­
sopram de leste a oeste, começa em janeiro.
sivamente três rotas para fazer a navegação
Assim, partimos da África para o Malabar no
das índias. Primeiramente, ia-se do promon­
tempo em que partiam as frotas de Ptolomeu, e
tório de Siagre à ilha de Patalene, na emboca­
retornamos no mesmo tempo.
A frota de Alexandre despendeu sete meses
9 6 Vede o mapa do czar. (N. do A.) para ir de Patala a Susa. Partiu ela no mês de
9 7 Crévier observa que outras autoridades, Diodo- julho, isto é, num tempo em que atualmente ne­
ro de Sicília, Aristóteles e Heródoto, “referiam-se
corretamente a este mar e disseram que ele não se nhum navio ousaria fazer-se ao mar para
comunicava com nenhum outro”. (Cf. Laboulaye, t. regressar das índias. Entre uma monção e
IV, pág. 423, n° 4.)
98 Plínio, liv. VI, cap. XVII. (N. do A.)
99 Liv. XV. (N. do A.) 1 03 Plínio, liv. VI, cap. XXÍII. (N. do A.)
100 Os macedônios da Bactriana, das índias e da 10 4 Liv. XI, Sigertidis regnum. (N. do A.)
Ariana, tendo-se separado do reino da Síria, forma­ 105 As monções sopram, durante uma parte do
ram um grande Estado. (N. do A.) ano, de um lado e, durante a outra, do lado contrá­
101 Apolônio Adramitino, em Estrabão, liv. XI. rio; e os ventos alísios sopram do mesmo lado
(N. do A.) durante todo o ano. (N. do A.)
1 0 2 Liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.) 10 6 Liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 315

outra, há um intervalo de tempo durante o qual das entre o Hipanis e o Ganges, diz que, entre
os ventos variam; e em que um vento do norte, os navegantes que vão do Egito às índias, pou­
misturando-se com os ventos comuns, causa, cos iam até o Ganges. Efetivamente, vemos
principalmente junto às costas, horríveis tem­ que as frotas não iam até aí; pelas monções,
pestades. Isso abarca os meses de junho, julho iam de oeste a leste, da embocadura do mar
e agosto. A frota de Alexandre, partindo de Vermelho à costa do Malabar. Paravam nas
etapas que aí se localizavam e não chegavam a
Patala no mês de julho, sofreu muitas tempes­
efetuar a volta da península do aquém Ganges
tades; e a viagem foi longa porque ela navegou
pelo cabo de Comorim e pela costa do Coro-
numa monção contrária.
mandel. O plano da navegação dos reis egíp­
Diz Plínio que se partia para as índias no
cios e dos romanos era de fazer o retorno no
fim do verão: assim, utilizava-se o tempo da
mesmo ano111.
variação da monção para fazer o trajeto de Assim, faltava muito para que o comércio
Alexandria ao mar Vermelho. dos gregos e dos romanos nas índias fosse tão
Vede, peço-vos, como nos aperfeiçoamos extenso quanto o nosso; nós, que conhecemos
pouco a pouco na navegação. A que Dario regiões imensas que eles não conheciam; nós,
mandou efetuar para descer o Indo e ir ao mar que fazemos nosso comércio com todas as
Vermelho durou dois anos e meio10 7. A frota nações indianas e que inclusive comerciamos
de Alexandre108, descendo o Indó, chegou a para elas e navegamos para elas.
Susa dez meses depois, tendo navegado três Mas eles faziam este comércio com mais
meses no Indo e sete no mar das índias. Em facilidade do que nós; e, se apenas se nego­
seguida, o trajeto da costa do Malabar ao mar ciasse na costa do Guzerate e do Malabar e,
Vermelho fez-se em quarenta dias109. sem procurar as ilhas do Sul, se se contentasse
Estrabão110, que explica os motivos da com as mercadorias que os insulares viessem
ignorância que se tinha sobre as regiões situa- trazer, dever-se-ia preferir a rota do Egito à do
cabo da Boa Esperança. Informa Estrabão112
que se negociava assim com os povos da
10 7 Heródoto, in Melpomene, liv. IV7 cap. XLIV. Taprobana.
(N. do A.)
108 Plínio, liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.)
109 Ibid. (N. do A.) 111 Plínio, liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.)
110 Liv. XV. (N. do A.) 112 Liv. XV. (N. do A.)

Capítulo X

Do périplo da África

Conta a História que, antes da descoberta Esperança. Porém, se se partia do mar Verme­
da bússola, tentou-se quatro vezes fazer o péri­ lho, encontrava-se este cabo na metade do
plo da África. Fenícios, enviados por caminho mais depressa do que partindo do
Neco11 3 e Eudoxo11 4, fugindo da cólera de Mediterrâneo. A costa que vai do mar Verme­
Ptolomeu-Latura, partiram do mar Vermelho e lho ao cabo é menos perigosa do que11 6 a que
obtiveram êxito. Sataspo11 5, no reinado de vai do cabo às colunas de Hércules. Para que
Xerxes, e Hanon, que foi enviado pelos carta­ os que partiam das colunas de Hércules pudes­
gineses, partiram das colunas de Hércules e sem descobrir o cabo foi necessária a invenção
da bússola, a qual permitiu afastar-se da costa
não obtiveram êxito.
da África e navegar no vasto oceano11 7 em
O ponto capital para a realização da volta
da África era descobrir e dobrar o cabo da Boa
11 6 Acrescentai a isso o que afirmo no capítulo XI
deste livro, sobre a navegação de Hanon. (N. do A.)
113 Heródoto, liv. IV, cap. XLII. Ele desejava 11 7 Encontra-se, no oceano Atlântico, nos meses
conquistar. (N. do A.) de outubro, novembro, dezembro e janeiro, um
11 4 Plínio, liv. II, cap. LXVII. Pompônio Mela, liv. vento nordeste. Transpassa-se a linha e, para evitar
III, cap. IX. (N. do A.) o vento geral do leste, dirige-se a rota para o sul; ou
11 5 Heródoto, in Melpomene, liv. IV, cap. XLIII. então penetra-se na zona tórrida, em lugares onde o
(N. do A.) vento sopra de oeste para leste. (N. do A.)
316 MONTESQUIEU

direção à ilha de Santa Helena ou em direção à mita a África121 conhecida no promontório


costa do Brasil. Era portanto muito possível Prassum, situado cerca do décimo quarto grau
que se tivesse ido do tnar Vermelho ao Medi­ de latitude sul; e o autor do périplo122, no
terrâneo sem que se tivesse retornado do Medi­ promontório Raptum, situado aproximada­
terrâneo ao mar Vermelho. mente no décimo grau dessa latitude. Parece
Destarte, sem efetuar esse grande circuito, que este tomava por limite um lugar aonde se
após o que não mais se podia retornar, era ia, e Ptolomeu um lugar aonde não se ia.
mais natural praticar o comércio da África O que confirma esta idéia é que os povos
oriental pelo mar Vermelho, e o da costa oci­ localizados em torno do Prassum eram antro­
dental pelas colunas de Hércules. pófagos123. Ptolomeu124, que nos fala de
Os reis gregos do Egito descobriram, inicial­ grande número de lugares entre o porto dos
mente, no mar Vermelho, a parte da costa da arômatas e o promontório Raptum, deixa um
África que se estende desde o golfo onde se vazio total desde o Raptum até o Prassum. Os
localiza a cidade de Herum até Dira, isto é, até grandes lucros da navegação das índias devem
o estreito hoje denominado Babelmândeb. Daí ter levado a negligenciar a da África. Final­
até o promontório dos arômatas, situado na mente, os romanos nunca estabeleceram, nesta
entrada do mar Vermelho11 8, a costa não fora costa, uma navegação regular: tinham desco­
reconhecida pelos navegantes; e isso torna-se berto esses portos por terra e por navios des­
evidente pelo que nos informa Artemidoro11 9, viados pelas tormentas: e assim como atual­
que se conheciam os lugares desta costa mas mente conhecem-se muito bem as costas da
se ignoravam as distâncias; o que provém do África e muito mal o interior12 5, os Antigos
fato de se haver conhecido sucessivamente conheciam bastante bem o interior e pessima­
estes portos por terra, e sem ir de um a outro. mente as costas.
Além desse promontório, onde começa a Disse eu que os fenícios, enviados por Neco
costa do oceano, nada era conhecido, como e Eudoxo no período de Ptolomeu-Latura, ti­
no-lo informam1 20 Eratóstenes e Artemidoro.
nham efetuado o périplo da África: é preciso
Tais eram os conhecimentos que se tinham
que, na época de Ptolomeu, o geógrafo, essas
das costas da África na época de Estrabão,
duas navegações fossem consideradas fabulo­
isto é, na época de Augusto. Porém, desde
Augusto, os romanos descobriram o promon­ sas, pois ele situa12 6, desde o sinus Magnus,
tório Raptum e o promontório Prassum, de que é, creio, o golfo de Sião, uma terra desco­
que Estrabão nada diz, porque não eram ainda nhecida, que vai da Ásia à África, terminando
conhecidos. Vemos que esses dois nomes são no promontório Prassum; de sorte que o mar
romanos. das índias não passaria de um lago. Os Anti­
Ptolomeu, o geógrafo, vivia na época de gos, que reconheceram as índias pelo norte,
Adriano e Antonino Pio; e o autor do périplo tendo avançado para o oriente, situaram no sul
do mar Eritreu, quem quer que seja, viveu esta terra desconhecida.
pouco tempo depois. Entretanto, o primeiro li­
12 2 Atribuiu-se este périplo a Arriano. (N. do A.)
11 8 Esse golfo, a que damos atualmente este nome, 12 3 Ptolomeu, liv. IV, cap. IX. (N. do A.)
era denominado pelos Antigos Seio Arábico; eles 12 4 Liv. IV, cap. VII e VIII. (N. do A.)
chamavam de mar Vermelho a parte do oceano vizi­ 12 5 Vede com que exatidão Estrabão e Ptolomeu
nha a esse golfo. (N. do A.) descrevem-nos as diversas partes da África. Esses
119 Estrabão, liv. XVI. (N. do A.) conhecimentos originavam-se das diversas guerras
120 Ibid. Artemidoro limitava a costa conhecida que as duas nações mais poderosas do mundo, os
ao lugar chamado Austricorno e Eratóstenes, ad cartagineses e os romanos, travaram com os povos
Cinnamomiferam. (N. do A.) da África, das alianças que contraíram, do comér­
121 Estrabão, liv. I, cap. VII; liv. IV, cap. IX; cio que praticaram nas terras. (N. do A.)
tábua IV da África. (N. do A.) 12 6 Liv. VII, cap. III. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 317

Capítulo XI

Cartago e Marselha

Cartago possuía um singular direito das demais, não devemos confundir um empreendi­
gentes; mandava12 7 afogar todos os estran­ mento que tem a audácia e a temeridade como
geiros que traficavam na Sardenha e cerca das objetivo, com o que é resultado de uma condu­
colunas de Hércules. Seu direito político não ta comum.
era menos extraordinário; proibia os sardos de O relatório de Hanon é um belo documento
cultivar a terra, sob pena de morte. Ela aumen­ da antiguidade: o mesmo homem que execu­
tou seu poderio pelas riquezas, e, em seguida, tou, escreveu; ele não insere qualquer ostenta­
suas riquezas por seu poderio. Senhora das ção em suas narrativas. Os grandes capitães
costas da África que banha o Mediterrâneo, escrevem suas ações com simplicidade porque
estendeu-se ao longo das do oceano. Hanon,
são mais gloriosos pelo que fizeram do que
por ordem do senado de Cartago, espalhou
pelo que escreveram.
trinta mil cartagineses desde as colunas de
As coisas são como o estilo. Ele não intro­
Hércules até Cemé. Afirma ele que essas
regiões eram tão afastadas das colunas de Hér­ duz o maravilhoso: tudo o que diz do clima, da
cules quanto estas eram de Cartago. Essa posi­ terra, dos costumes, das maneiras dos habitan­
ção é notável; revela que Hanon limitou seus tes, se relaciona com o que vemos atualmente
estabelecimentos ao vigésimo grau de latitude nesta costa africana; parece que se trata do
norte, isto é, dois ou três graus além das ilhas diário de um de nossos navegantes.
Canárias, para o sul. Hanon observou131 em sua frota que,
Estando Hanon em Cemé, empreendeu durante o dia, reinava no continente um vasto
outra navegação, cujo objetivo era realizar silêncio; que, à noite, se ouvia o som de diver­
descobertas cada vez mais para o sul. Quase sos instrumentos de música e que, em toda
não tomou conhecimento do continente. A parte, se viam fogos, uns maiores, outros
extensão das costas que seguiu foi de vinte e menores. Nossas relações confirmam isso: jul-
seis dias de navegação, tendo sido obrigado a ga-se que, de dia, os selvagens, para evitar o
retornar por falta de víveres. Parece que os ardor do sol, se refugiam nas florestas; que, à
cartagineses não fizeram nenhum uso do noite, acendem grandes fogos para afastar os
empreendimento de Hanon. Cílax128 diz que, animais ferozes, e que apreciam apaixonada-
além de Cemé, o mar não é navegável12 9, por­ mente a dança e os instrumentos de música.
que é raso, cheio de limo e de ervas marinhas: Hanon descreve-nos um vulcão com todos
efetivamente, há grandes quantidades delas os fenômenos que o Vesúvio apresenta atual­
nessas paragens1 30. Os mercadores cartagine­ mente; e a descrição que faz das duas mulheres
ses, aos quais Cílax se refere, podiam encon­ peludas que preferiam ser mortas a seguir os
trar obstáculos que Hanon, que possuía ses­ cartagineses, e cuja pele mandou.levar a Car­
senta navios de cinquenta remos cada um, tago, não é, como se disse, inverossímil132.
Esta relação é tanto mais preciosa porque é
tinha superado. As dificuldades são relativas e,
um monumento púnico; e é porque se trata de
1 2 7 Eratóstenes, em Estrabão, liv. XVII, pág. 802.
um monumento púnico que foi considerada
(N. do A.) como fabulosa, pois os romanos conservaram
128 Vede seu Périplo, artigo de Cartago. (N. do A.) seu ódio contra os cartagineses mesmo depois
129 Vede Heródoto, in Melpomene, liv. IV, cap. de os haver destruído. Mas foi apenas a vitória
XLIII, a respeito dos obstáculos que Sataspo
encontrou. (N. do A.)
13 ° Vede as cartas e as relações, o primeiro volume 131 Plínio, H. N., liv. V, cap. I, diz-nos a mesma
das Voyages qui Ont Servi à lÉtablissement de la coisa, referindo-se ao monte Átlas: Noctibus micare
Compagnie des Indes, parte I, pág. 201. Esta erva crebis ignibus, tibiarum cantu tympanorumque so-
cobre totalmente a superfície do mar, havendo difi­ nitu strepere, neminem interdiu cerni. (N. do A.)
culdade em ver a água; e os navios só podem passar 13 2 Supôs-se que se tratava de dois gorilas. (N. do
por ela com um vento vigoroso. (N. do A.) A.)
318 MONTESQUIEU

que decidiu se cumpriría dizer a fé púnica ou a mano vinte e cinco mil dracmas por dia: isto
fé romana. perfaz aproximadamente cinco milhões de li­
Modernos133 seguiram este preconceito. bras por ano, a cinquenta francos o marco.
Que é feito, dizem eles, das cidades que Hanon Chamavam-se as montanhas onde estavam
descreveu e das quais, já no tempo de Plínio, estas minas de montanhas de prata13 7, o que
não restava o menor vestígio? O maravilhoso nos mostra que eram o Potosi daquela época.
seria que elas tivessem permanecido. Era Atualmente, as minas de Hanôver não utilizam
Corinto, ou Atenas, que Hanon ia levantar um quarto dos operários que se empregavam
nessas costas? Ele deixava, nesses lugares pro­ nas minas da Espanha, e elas produziam mais:
pícios ao comércio, famílias cartaginesas e, porém os romanos, quase só possuindo minas
rapidamente, as colocava em segurança contra de cobre e poucas de prata, e os gregos, só
os homens selvagens e os animais ferozes. As conhecendo as minas da Ática, muito pouco
calamidades dos cartagineses fizeram cessar a ricas, devem ter-se espantado com a abun­
navegação da África, e essas famílias teriam dância das minas espanholas.
de perecer ou tornar-se selvagens. Digo mais: Durante a guerra pela sucessão da Espanha,
mesmo que as ruínas dessas cidades subsistis­ um homem chamado Marquês de Rodes, de
sem, quem iria descobri-las nas florestas e nos quem se dizia que se arruinara com as minas
pântanos? Entretanto, vê-se, em Cílax e em de ouro e se enriquecera com os hospitais138,
Políbio, que os cartagineses possuíram grandes propôs à corte de França abrir as minas dos
estabelecimentos nessas costas. Eis os vestí­ Pireneus. Citou os tírios, os cartagineses e os
gios das cidades de Hanon; não há outros por­ romanos. Permitiram-lhe pesquisar; ele procu­
que mal existem os da própria Cartago. rou, esquadrinhou todos os lugares; citava
Os cartagineses estavam no caminho das sempre mas nada encontrou.
riquezas: e, se eles tivessem ido até o quarto Os cartagineses, senhores do comércio do
grau de latitude norte, e ao décimo quinto de ouro e da prata, quiseram sê-lo também do
longitude teriam descoberto a Costa do Ouro e chumbo e do estanho. Estes metais eram trans­
as costas vizinhas. Teriam praticado um portados por terra, dos portos da Gália, no
comércio de importância completamente dife­ oceano, até os do Mediterrâneo. Os cartagi­
rente daquele que se pratica hoje, quando a neses quiseram recebê-los em primeira mão;
América parece ter aviltado as riquezas de enviaram Himilcon para organizar139 estabe­
todos os outros países; teriam encontrado lecimentos nas ilhas Cassitérides, que se julga­
tesouros que não poderíam ter sido arreba­ va serem as de Scilly.
tados pelos romanos. Essas viagens da Bética à Inglaterra leva­
Disseram coisas surpreendentes das rique-, ram certas pessoas a pensar que os cartagi­
zas da Espanha. A crer em Aristóteles13 4, os neses conheciam a bússola, mas é claro que
fenícios, que abordaram em Tartesso, aí eles seguiam as costas. É-me suficiente, como
encontraram tanta prata, que seus navios não prova, o que afirma Himilcon, que levou qua­
puderam contê-la, e fizeram, desse metal, os tro meses para ir da embocadura do Bétis à
utensílios mais vis. Os cartagineses, no relató­ Inglaterra; sem me referir à famosa1 40 história
rio de Diodoro13 5, encontraram tanto ouro e deste piloto cartaginês que, vendo um barco
prata nos Pireneus, que os utilizaram como ân­ romano aproximar-se, se deixou encalhar para
coras de seus navios. Não devemos dar crédito
a essas narrativas populares; eis os fatos 1 3 7 Mons argentarius. (N. do A.)
13 8 Ele tivera alguma participação na direção. (N.
precisos: do A.)
Vemos, num fragmento de Políbio citado 139 Vede Festus Avienus. Parece, segundo Plínio,
por Estrabão13 6, que as minas de prata situa­ que este Himilcon foi enviado ao mesmo tempo que
das na nascente do Bétis, onde quarenta mil Hanon e como, na época de Agátocles, havia um
Hanon e um Himilcon, ambos chefes dos cartagine­
homens eram empregados, davam ao povo ro­ ses, Dodwel conjectura se seriam os mesmos, tanto
mais que nesse período a república era florescente.
133 Dodwel. Vede sua Dissertação sobre o Périplo Vede a Dissertação Sobre o Périplo de Hanon. (N.
de Hanon. (N. do A.) do A.)*
13 4 Das Coisas Maravilhosas. (N. do A.) * Parece, segundo Plínio, que este Himilcon. . .
135 Liv. VI. (N. do A.) Estas linhas só aparecem nas primeiras edições.
13 6 Liv. III. (N. do A.) 1 40 Estrabão, liv. III, no final. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 319

não lhe revelar a rota da Inglaterra1 41; fato lavassem as mãos nos mares da Sicília; não
que mostra que esses barcos estavam muito lhes foi permitido navegar além do belo
próximos da costa quando eles se encontra­ promontório; foi-lhes proibido1 44 traficar na
ram. Sicília1 4 5, na Sardenha, na África, com exce­
Os Antigos poderíam ter feito viagens marí­ ção de Cartago, exceção que revela como não
timas que levariam a pensar que eles tivessem lhes preparava um comércio vantajoso.
Houve, nos primeiros tempos, grandes guer­
a bússola, embora não a tivessem. Se um pilo­
to se tivesse afastado das costas e, durante a
ras entre Cartago e Marselha1 4 6 a respeito da
pesca. Depois da paz, elas fizeram competiti­
viagem, tivesse havido tempo sereno, tendo
vamente o comércio de economia. Marselha
visto sempre, durante a noite, uma estrela
foi tanto mais ciosa quanto, igualando sua
polar1 42, e, durante o dia, o levantar e o pôr
rival na indústria, se tornara inferior em pode­
do sol, é evidente que ele poderia orientar-se
rio: eis a razão dessa grande fidelidade aos
como atualmente se orienta com a bússola; romanos. A guerra que estes travaram contra
mas seria um fato fortuito e não uma navega­ os cartagineses na Espanha foi uma fonte de
ção regular. riquezas para Marselha que servia de entre­
Vemos, no tratado que pôs fim à primeira posto. A ruína de Cartago e de Corinto
guerra púnica, que Cartago se esforçou, aumentou ainda mais a glória de Marselha; e,
primeiramente, em conservar o império do sem as guerras civis, em que era necessário fe­
mar, e Roma em conservar o da terra. char os olhos e tomar um partido, ela teria
Hanon1 43, nas negociações com os romanos, sido feliz sob a proteção dos romanos, que não
declarou que não permitiría sequer que eles tinham inveja de seu comércio.

141 Foi recompensado, por isso, pelo senado de 1 4 4 Políbio, liv. III. (N. do A.)
Cartago. (N. do A.) 145 Na parte submetida aos cartagineses. (N. do
1 42 Uma estrela polar. . . Crévier, que estuda A.)
Montesquieu sempre com a mesma severidade, 1 4 6 Justino, liv. XLIII, cap. V. Carthaginensium
observa com muita evidência que há apenas uma. quoque exercitus, cum bellum captis piscatorum
1 43 Tito Lívio, suplemento de Freinshemius, Se­ navibus ortum esset, saepe fuderunt, pacemque vic-
gunda Década, liv. VI. (N. do A.) tis dederunt. (N. do A.)

Capítulo XII

Ilha de Delos. Mitridates


Tendo Corinto sido destruída pelos roma­ O poder desses reis aumentou tão logo as
nos, os mercadores se retiraram para Delos. A submeteram1 50. Mitridates viu-se na situação
bárbaros, não as atacou148. Não parece,
religião e a veneração dos povos faziam com
que se considerasse esta ilha como um lugar mesmo, que os reis do Ponto, que as ocuparam
várias vezes, lhes tivessem1 49 suprimido o
seguro1 4 7: demais, ela estava muito bem situa­ governo político.
da para o comércio com a Itália e a Ásia, que,
desde o aniquilamento da África e o enfraque­ 1 48 Confirmou a liberdade da cidade de Amisa,
colônia ateniense que fruíra do Estado popular,
cimento da Grécia, tornara-se muito impor­ mesmo sob o domínio dos reis da Pérsia. Lúculo,
tante. que tomou Sinope e Amisa, restituiu-lhes a liber­
dade e chamou os habitantes que tinham fugido em
Desde os primeiros tempos, os gregos envia­ seus navios. (N. do A.)
ram, como já dissemos, colônias para a 1 49 Vede o que escreve Apiano sobre os fanagorea-
Propôntida e o Ponto Euxino: elas conserva­ nos, os amisianos, os sinopianos, em seu livro Da
Guerra Contra Mitridates. (N. do A.)
ram, sob o domínio persa, suas leis e sua liber­ 1 50 Vede Apiano, sobre os imensos tesouros que
dade. Alexandre, que só marchara contra os Mitridates empregou em suas guerras: os que ele
escondeu, os que frequentemente perdeu pela trai­
ção dos seus, os que foram encontrados após sua
1 4 7 Estrabão, liv. X. (N. do A.) morte. (N. do A.)
320 MONTESQUIEU

de comprar tropas em toda parte, de repa­ ciam só ter a temer a si próprios, Mitridates
rar1*51 continuamente suas perdas, de ter recolocou em discussão o que a tomada de
operários, navios, máquinas de guerra, de con­ Cartago, as derrotas de Filipe, de Antíoco e de
seguir aliados, de corromper os dos romanos e Perseu haviam decidido. Nunca guerra alguma
os próprios romanos, de assoldadar1 52 os bár­ fora mais funesta; e, tendo os dois partidos
baros da Ásia e da Europa, de guerrear duran­ poder e vantagens mútuas, os povos da Grécia
te longo tempo e, consequentemente, de disci­ e da Ásia foram destruídos, ou como amigos
plinar suas tropas; ele pôde armá-las e instruí- de Mitridates ou como seus inimigos. Delos foi
las na arte militar1 53 dos romanos e formar envolvida na infelicidade comum. O comércio
corpos consideráveis com seus trânsfugas; declinou em toda parte; efetivamente, ele deve­
enfim, pôde suportar grandes perdas e sofrer ria ser destruído, pois os povos o estavam.
grandes malogros sem perecer; e não teria Os romanos, adotando um sistema a que já
perecido se, na prosperidade, o rei voluptuoso me referi alhures1 54, destruidores para não
e bárbaro não tivesse destruído o que, na parecerem conquistadores, arruinaram Carta­
adversidade, o grande príncipe fizera. go e Corinto; e, com tal prática, ter-se-iam
É assim que, na época em que os romanos também arruinado se não houvessem conquis­
tinham atingido o ápice da grandeza, e pare- tado toda a terra. Quando os reis do Ponto se
tornaram senhores das colônias gregas do
161 Perdeu, certa vez, 170 000 homens e logo Ponto Euxino, se abstiveram de destruir o que
novos exércitos reapareceram. (N. do A.) deveria ser a causa de sua grandeza.
1 52 Vede Apiano, Da Guerra Contra Mitridates.
(N. do A.) ’ s 4 Nas Considérations sur les Causes de la Gran-
153 Ibid. (N. do A.) deur des Romains et de leur Décadence. (N. do A.)

Capítulo XIII

Do gênio dos romanos para a marinha

Os romanos apenas atribuíam importância rados1 5 6 para participar das legiões: a gente
às tropas de terra cujo espírito era permanecer do mar era, normalmente, composta de liber­
sempre firme, combater no mesmo lugar e aí tos.
morrer. Não podiam eles apreciar a prática da Atualmente, não temos nem a mesma estima
gente do mar que se apresenta ao combate, pelas tropas de terra, nem o mesmo desprezo
foge, retoma, evita sempre o perigo, empre­ pelas de mar. Entre as primeiras1 5 7 a arte
gando amiúde a astúcia e raramente a força. diminuiu; entre as segundas1 58 aumentou:
Tudo isso não era do gênio dos gregos1 5 5 e ora, estimam-se as coisas na proporção do
ainda menos do dos romanos. grau de suficiência exigido para fazê-las
corretamente.
Portanto, só destinavam à marinha os que
não eram cidadãos suficientemente conside­
' 5 6 Políbio, liv. V. (N. do A.)
1 5 7 Vede as Considérations sur les Causes de la
1 5 5 Como observou Platão, liv. IV das Leis. (N. do Grandeur des Romains etc., cap. IV, (N, do A.)
A.) 158 Ibid. (N. do A.)

Capítulo XIV

Do gênio dos romanos para o comércio

Nunca se observou nos romanos inveja com não como nação comerciante que atacaram
relação ao comércio. Foi como nação rival e Cartago. Favoreceram as cidades que pratica-
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 321

vam o comércio, apesar de estas não serem sú­ nam-se seus escravos, e eles estão nos mesmos
ditas: assim, aumentaram, pela cessão de vá­ termos com relação a nós.”
rias regiões, o poder de Marselha. Temiam Seu direito civil não era menos opressivo. A
tudo dos bárbaros e nada de um povo nego­ lei de Constantino, depois de ter declarado
ciante. Aliás, seu gênio, sua glória, sua educa­ bastardos os filhos das pessoas vis que se tives­
ção militar, a forma de seu governo, tudo os sem casado com as de condição elevada, con­
afastava do comércio. funde as mulheres que têm uma loja1 60 de
mercadorias com as escravas, as tabemeiras,
Na cidade, apenas se ocupavam de guerras,
de eleições, de intrigas e de processos; no as mulheres de teatro, as filhas de um homem
que mantém um antro de prostituição ou que
campo, só da agricultura; e, nas províncias, fora condenado a combater na arena. Isso pro­
um governo brutal e tirânico era incompatível vinha das antigas instituições romanas.
com o comércio. Sei perfeitamente que pessoas1 61 possui­
Se sua constituição política a isso se opu­ doras dessas duas idéias: uma, que o comércio
nha, seu direito das gentes não se repugnava é a coisa mais útil do mundo a um Estado e,
menos. “Os povos”, diz o jurisconsulto Pom­ outra, que os romanos possuíam a melhor polí­
pônio1*59, “com os quais não mantemos nem cia do mundo, acreditaram que eles muito
amizade, nem hospitalidade, nem aliança, não encorajaram e honraram o comércio; mas a
são nossos inimigos: entretanto, se uma coisa verdade é que eles raramente pensaram nele.
que nos pertence cai em suas mãos, eles se tor­
nam seus proprietários: os homens livres tor- 1 60 Quae mercimoniis publiceproefuit. Leg. I, cod.
de natural, liberis. (N. do A.)
161 . . .pessoas. . . É ainda no Padre de Saint-
1 59 Leg. 5, § 2, ÍT. de captivis. (N. do A.) Pierre que Montesquieu pensa.

Capítulo XV

Comércio dos romanos com os bárbaros

Os romanos tinham feito da Europa, da retirado com habilidade.” O transporte do


Ásia e da África um vasto império: a fraqueza ferro foi proibido sob pena de morte1 6 4.
dos povos e a tirania do comando uniram Domiciano, príncipe tímido, mandou arran­
todas as partes desse imenso corpo. Então, a car as vinhas na Gália1 6 5, temendo, sem dúvi­
política romana se resumiu em separar todas da, que esta bebida atraísse os bárbaros como
as nações que não tinham sido dominadas: o os tinha outrora atraído à Itália. Probo e Julia-
temor de lhes levar a arte de vencer fez com no, que nunca os temeram^restabeleceram seu
que se negligenciasse a arte de enriquecer. Eles cultivo.
fizeram leis para impedir todo comércio com Sei perfeitamente que, na fraqueza do impé­
os bárbaros. “Que ninguém”, dizem1 62 Va­ rio, os bárbaros obrigaram os romanos a esta*-
lente e Graciano, “envie vinho, óleo ou outros belecer entrepostos1 6 6 e comerciar com eles.
líquidos aos bárbaros, mesmo que seja apenas Porém, isso mesmo prova que o espírito dos
para provar.” “Que não se lhes leve ouro”1 63, romanos era não comerciar.
acrescentam Graciano, Valentiniano e Teodó-
sio, “e que mesmo o que eles possuem lhes seja 1 6 4 Leg. 2, quae res exportari non debeant (N. do
A.)
1 62 Leg. ad Barbaricum, cod. quae res exportari 1 6 5 Procópio, Guerra dos Persas, liv. I. (N. do A.)
non debeant. (N. do A.) 1 6 6 Vede as Considérations sur les Causes de la
1 63 Leg. 2, cod. de commerc. et mercator. (N. do Grandeur des Romains et de leur Décadence. (N. do
A.) A.)
322 MONTESQUIEU

Capítulo XVI

Do comércio dos romanos com a Arábia e as índias

O negócio da Arábia feliz e o das índias traziam eram vendidas em Roma pelo cêntu-
foram os dois ramos, quase os únicos, do plo. Creio que ele fala de uma maneira geral:
comércio exterior. Os árabes tinham grandes uma vez conseguido este lucro, todos teriam
riquezas; eles as extraíam de seus mares e de querido obtê-lo e, desde esse momento, nin­
suas florestas; e, como compravam pouco e guém mais o obteria.
vendiam muito, atraíam1*6 7 para si o ouro e a Podemos pôr em dúvida se era necessário
prata de seus vizinhos. Augusto1 68 conheceu aos romanos fazer o comércio da Arábia e das
sua opulência e resolveu tê-los como amigos, índias. Cumpria que eles enviassem para lá
ou como inimigos. Mandou Élio Galo passar sua prata e eles não tinham, como nós, o recur­
do Egito para a Arábia. Ele encontrou povos so da América, que supre o que enviamos.
ociosos, tranquilos e poucos aguerridos. Tra­ Estou persuadido que uma das razões que fize­
vou batalhas, estabeleceu cercos e apenas per­ ram aumentar, entre eles, o valor numérico das
deu sete soldados; mas a perfídia de seus guias, moedas, isto é, estabelecer o bilhão1 72, foi a
as marchas, o clima, a fome, a sede as molés­ raridade da prata, causada pelo transporte
tias, as medidas mal tomadas, fizeram-no per­ contínuo que dela se fazia nas índias. Pois, se
der seu exército. as mercadorias desse país eram vendidas em
Foi preciso, portanto, contentar-se com Roma pelo cêntuplo, este lucro dos romanos
negociar com os árabes, como outros tinham era realizado sobre os próprios romanos e não
feito, isto é, levar a eles ouro e prata em troca enriquecia o império.
de suas mercadorias; a caravana de Alepo e o Poder-se-á dizer, de um lado, que este
navio real de Suez levaram-lhes imensas comércio proporcionava aos romanos grande
somas1 69 navegação, isto é, grande poderio; que merca­
A Natureza destinara os árabes ao comércio dorias novas aumentavam o comércio interno,
mas não os destinara à guerra; porém, quando favoreciam as artes, mantinham a indústria;
que o número de cidadãos se multiplicava na
estes povos tranquilos se encontraram nas
proporção dos novos meios que se tinham para
fronteiras dos partos e dos romanos, torna-
viver; que este novo comércio produzia o luxo,
ram-se auxiliares de uns e de outros. Élio Galo
o qual provamos ser tão favorável ao governo
os havia encontrado comerciantes; Maomé os
de um só quanto fatal ao de vários; que este
encontrou guerreiros; infundiu-lhes entusiasmo
estabelecimento é da mesma época que a
e ei-los conquistadores.
queda de sua república; que o luxo de Roma
O comércio dos romanos com as índias era
era necessário; e que cumpria que uma cidade
considerável. Estrabão1 70 fora informado no que atraía todas as riquezas do universo as
Egito que eles empregavam cento e vinte
restituísse pelo seu luxo.
navios: este comércio ainda se sustentava ape­ Estrabão1 73 diz que o comércio dos roma­
nas por seu dinheiro. Enviavam todos os anos nos nas índias era muito mais considerável
cinquenta milhões de sestércios. Plí­ que o dos reis do Egito; e é singular que os
nio1 71 informa que as mercadorias que daí se romanos, que conheciam pouco o comércio,
tenham tido pelo das índias mais atenção que
1 67 Plínio, liv. VI, cap. XXVIII; e Estrabão, liv. os reis do Egito que o tinham, por assim dizer,
XVI. (N. do A.) sob seus olhos. Cumpre explicar isso.
168 Ibid. (N. do A.)
1 69 As caravanas de Alepo e de Suez aí levaram
dois milhões em nossa moeda e outro tanto passa 1 72 . . .estabelecer o bilhão. . . trata-se da altera­
fraudulentamente; o navio real de Suez levou-lhes ção das moedas pela aliagem.
também dois milhões. (N. do A.) 1 73 Diz ele, no liv. II, que os romanos aí emprega­
1 70 Liv. II, pág. 181, ed. do ano de 1587. (N. do vam cento e vinte navios; e, no livro XVII, que os
A.) reis gregos para aí enviavam apenas vinte. (N. do
1 71 Liv. VI, cap. XXIII. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 323

Após a morte de Alexandre, os reis do Egito aproximadamente, o quadragésimo grau de


estabeleceram nas índias um comércio maríti­ latitude norte, por regiões que estão a oeste da
mo; e os reis da Síria, que possuíram as China, mais policiadas do que atualmente o
províncias mais orientais do império, e conse­ são, porque os tártaros ainda não as haviam
quentemente as índias, mantiveram este co­ infestado.
mércio ao qual nos referimos no capítulo VI, Ora, enquahto o império da Síria estendia
que se praticava pelas terras e pelos rios e que tanto seu comércio do lado das terras, o Egito
recebera novas facilidades pelo estabeleci­ não aumentou muito seu comércio marítimo.
mento de colônias macedônicas; de sorte que a Os partos apareceram e fundaram seu
Europa se comunicava com as índias, através império; e, quando o Egito caiu sob domínio
do Egito e do reino da Síria. O desmembra­ romano, este império estava no auge de sua
mento que se fez do reino da Síria, de onde se força e recebera sua extensão.
formou o reino da Bactriana, em nada prejudi­ Os romanos e os partos foram duas potên­
cou este comércio. Marino, tírio citado por cias rivais que combateram, não para saber-
Ptolomeu1*7 4, fala das descobertas feitas nas quem deveria reinar, mas quem deveria existir.
índias por intermédio de alguns mercadores Entre os dois impérios formaram-se desertos;
macedônios. O que as expedições dos reis não entre os dois impérios se esteve sempre em
tinham feito, os mercadores fizeram. Vemos, armas; bem longe de haver comércio, não
em Ptolomeu1 7 5, que eles foram desde a torre houve mesmo comunicação. A ambição, a
de Pedro1 7 6 até Sera: e a descoberta pelos inveja, a religião, o ódio, os costumes, tudo
mercadores de uma etapa tão afastada, situada separava. Destarte, o comércio entre o Oci­
na parte oriental e setentrional da China, foi dente e o Oriente, que tivera diversas rotas,
uma espécie de prodígio. Assim, sob os reis da não possuiu mais do que uma; e, tendo Ale­
Síria e da Bactriana, as mercadorias do Sul xandria se tornado a única etapa, esta etapa
das índias passavam pelo Indo, pelo Oxo e cresceu.
Direi apenas uma palavra sobre o comércio
pelo mar Cáspio, ao Ocidente; e as das regiões
interno. Seu principal ramo foi o do trigo que
mais orientais e mais setentrionais eram leva­
se mandava buscar para a subsistência do
das desde Sera, a torre de Pedro e outras
povo de Roma: o que era matéria de polícia
etapas, até o Eufrates. Estes mercadores
mais do que objeto de comércio. Nessa oca­
percorriam sua rota acompanhando, sião, os navegantes receberam alguns privilé­
gios1 7 7, porque a salvação do império depen­
1 7 4 Liv. I, cap. II. (N. do A.) dia de sua vigilância.
1 7 5 Liv. VI, cap. XIII. (N. do A.)
1 7 6 Nossos melhores mapas situam a torre de
Pedro no centésimo grau de longitude e, aproxima­ 1 7 7 Suet., in Cláudio, cap. XVIII, L. 7, Cod. Teo-
damente, no quadragésimo de latitude. (N. do A.) dos., de naviculariis. (N. do A.)

Capítulo XVII

Do comércio após a destruição


dos romanos no Ocidente

O império romano foi invadido e um dos A lei1 78 dos visigodos permitia aos parti­
efeitos da calamidade geral foi a destruição do culares ocupar a metade do leito dos grandes
comércio. Os bárbaros inicialmente apenas o rios, contanto que a outra ficasse livre para as
consideraram como um objeto de suas pilha­ redes de pesca e para os barcos; era forçoso
gens; e quando se estabeleceram não o honra­ que houvesse bem pouco comércio nas regiões
ram mais do que a agricultura e as demais
que eles tinham conquistado.
profissões do povo vencido.
Em pouco tempo quase não houve mais Naquela época, éstabeleceram-se os direitos
comércio na Europa; a nobreza, que reinava
em toda parte, não se interessava por ele. 1 7 8 Liv. VIII, tít. 4, § 9. (N. do A.)
324 MONTESQUIEU

insensatos de aubaine e de naufrágio1 79: os costas de um mar fechado e repleto de esco­


homens pensaram que os estrangeiros, não lhos, eles tiraram proveito dos próprios esco­
lhes estando unidos por qualquer comunicação lhos.
do direito civil, não lhes deviam, de um lado, Mas os romanos, que faziam leis para todo
qualquer tipo de justiça e, de outro, nenhuma o universo, tinham-nas feito muito mais huma­
sorte de piedade. nas a respeito dos naufrágios1 80: reprimiram,
a este respeito, as pilhagens dos que habitavam
Nos estreitos limites em que se encontravam
as costas e, o que era ainda mais, a rapacidade
os povos do Norte, tudo lhes era estranho: na
de seu fisco181.
sua pobreza, tudo lhes era objeto de riquezas.
Estabelecidos, antes de suas conquistas, nas 180 Toto titulo, ff. de incend. ruin. naufrag. e Cod.
de naufragiis e I. 3. f.f. ad leg. Cornei, de sicariis.
1 79 Direito — se podemos chamar isso de direito. (N. do A.)
— de pilhar os navios naufragados. 181 L. I, Cod. de naufragiis. (N. do A.)

Capítulo XVIII

Regulamento particular
A lei1 82 dos visigodos, entretanto, fez uma entre eles, pelas leis e pelos costumes de sua
disposição favorável ao comércio; ordenou nação. Isto estava baseado no uso estabelecido
que os mercadores que viessem de além-mar
seriam julgados, nos litígios que surgissem entre esses povos mestiços que cada homem
vivesse sob sua própria lei: coisa a que me
182 Liv. XI, tít. III, § 2. (N. do A.) referirei em seguida.

Capítulo XIX

Do comércio depois do enfraquecimento


dos romanos no Oriente
Os maometanos apareceram, conquistaram os príncipes mais poderosos dessa época:
e se dividiram. O Egito teve soberanos particu­ podemos ver, na História, como, com uma
lares; continuou a fazer o comércio das índias. força constantes bem orientada, eles parali­
Senhor das mercadorias desse país, atraiu as saram o ardor, o arrebatamento e a impetuosi­
riquezas de todos os outros. Seus sultões foram dade dos cruzados.

Capítulo XX

Como o comércio surgiu na


Europa através da barbárie
Tendo a filosofia de Aristóteles sido trazida cações sobre o empréstimo a juros, ao passo
para o Ocidente, agradou a muitos espíritos que sua origem era tão natural no Evangelho;
sutis que, em tempos de ignorância, sao os eles o condenaram indistintamente e em todos
belos espíritos. Os escolásticos nela se enfatua-
ram e tomaram desse filósofo1 83 muitas expli- os casos. Assim, o comércio, que era apenas a
profissão das pessoas vis, tornou-se também a
18 3 Vede Aristóteles, Polít., liv. I, cap. IX e X. (N. das pessoas desonestas, pois, todas as vezes
do A.) que se proíbe uma coisa naturalmente permi­
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 325

tida ou necessária, apenas se transforma em para o príncipe ou para os senhores, das taxas
desonesta a gente que a pratica. que arrecadavam sobre os judeus, e das quais
O comércio passou a uma nação desde eram frustrados quando estes abraçavam o
então coberta de infâmia1*8 4 e logo não foi cristianismo. Nessa época, considerava-se aos
mais distinguido das usuras mais horríveis, homens como terras. E, observo de passagem,
dos monopólios, da arrecadação de subsídios e quanto de um século a outro se trapaceou com
de todos os meios desonestos de aquisição de esta nação. Confiscavam seus bens quando
dinheiro. eles desejavam ser cristãos e, logo depois, quei­
Os judeus185, enriquecidos pelas exações, mavam-nos quando não mais desejavam sê-lo.
Entretanto, vimos o comércio sair do seio
eram pilhados pelos príncipes com a mesma
da vexação e do desespero. Os judeus, prescri­
tirania: coisa que consolava os povos e não os
tos sucessivamente de cada país, encontraram
aliviava.
meios de salvar seus efeitos189 . Com isso,
O que se passou na Inglaterra dá uma idéia tornaram para sempre suas retiradas fixas,
do que se fez nos demais países. Tendo o Rei pois o príncipe que quisesse se desfazer deles
João1 8 6 mandado aprisionar os judeus para não estaria igualmente disposto a desfazer-se
apoderar-se de seus bens, poucos dentre eles do seu dinheiro.
deixaram de ter, pelo menos, um olho perfura­ Eles190 Inventaram as letras de câmbio e,
do: este rei fazia assim sua câmara de justiça. com isso, o comércio pôde afastar-se da vio­
Um deles, a quem se arrancaram sete dentes, lência e manter-se em toda parte, não tendo o
um cada dia, deu dez. mil marcos de prata no negociante mais rico senão bens invisíveis, que
oitavo. Henrique III arrancou de Aaron, judeu podiam ser enviados a toda parte, em nenhuma
de York, quatorze mil marcos de prata, e dez deixando vestígios.
mil para a rainha. Nesses tempos fazia-se Os teólogos foram obrigados a restringir
violentamente o que hoje se faz com modera­ seus princípios; e o comércio, que fora violen­
ção na Polônia. Não podendo os reis revistar tamente associado à má fé, entrou, por assim
as bolsas de seus súditos, por causa de seus dizer, no seio da probidade.
privilégios, mandavam torturar os judeus, os Destarte, devemos às especulações esco-
quais não eram considérados cidadãos. lásticas todas as desgraças191 que acompa­
Finalmente, introduziu-se um costume que nharam a destruição do comércio; e, à avareza
confiscou todos os bens dos judeus que abra­ dos príncipes, o estabelecimento de uma coisa
çaram o cristianismo. Este costume tão estra­ que o coloca, de algum modo, fora do poder.
nho, nós o conhecemos através da lei1 8 7 que o Foi necessário, a partir dessa época, que os
ab-rogou. Para isso razões bem fúteis foram príncipes se governassem com mais prudência
dadas; disse-se que se queria experimentá-los, que eles próprios teriam imaginado, pois, com
e fazer com que nada restasse da escravidão do o acontecimento, os grandes atos de autori­
demônio. Mas é evidente que esta confiscação dade se revelaram tão inábeis, que se tornou
era uma espécie de direito1 88 de amortização, uma experiência aceita que nada mais do que a
bondade do govêrno acarreta prosperidade.
Começamos a nos curar dó maquiavelismo
1 8 4 Montesquieu parece ter querido apenas assina­
lar aqui o estado de reprovação a que estavam sujei­ e curar-nos-emos todos os dias. Faz-se neces­
tos os judeus. sária mais moderação nos conselhos. O que
1 8 5 Vede, em Marca Hispanica, as constituições de outrora chamaríamos de golpes de Estado, não
Aragão, dos anos de 1228 e 1231;.e, em Brussel, o
acordo do ano de 1206, assinado entre o rei, a Con­
dessa de Champagne e Guy de Dampierre. (N. do 189 ... seus efeitos. . . efeitos no sentido de “va­
A.) lores mobiliários”.
1 8 6 Slowe, in his Survey of London, liv. III, pág. 1 90 Sabemos que, no reinado de Filipe Augusto e
54. (N. do A.) de Filipe, o Longo, os judeus, expulsos da França,
18 7 Edito lavrado em Bâville, em 4 de abril de refugiaram-se na Lombardia, e, desta região, entre­
1392. (N. do A.) garam aos negociantes estrangeiros e aos viajantes
188 Na França, os judeus eram servos, mão-mor- letras secretas contra os que lhes tinham confiscado
táveis e os senhores lhes sucediam. Brussel relata os efeitos na França, e que foram pagas. (N. do A.)
um acordo do ano de 1206, entre o rei e Thibaut, 191 Vede, no Corpo do Direito, a 83.* novela de
conde de Champagne, pelo qual se estabelecia que Leão, que revoga a lei de seu pai, Basílio. Esta lei de
os judeus de um não poderíam emprestar em terras Basílio encontra-se no Harmenopule, sob o nome de
de outro. (N. do A.) Leão, liv. III, tít. VII, § 27. (N. do A.)
326 MONTESQUIEU

passaria, atualmente, de imprudências, inde- numa situação em que, enquanto suas paixões
pendentemente do horror. lhes inspiram o pensamento de ser maus, têm,
E é uma felicidade para os homens estar entretanto, o interesse de não o ser.

Capítulo XXI

Descoberta de dois novos mundos;


estado da Europa a esse respeito
A bússola abriu, por assim dizer, o universo. enviado forças que um pequeno príncipe da
Encontramos a Ásia e a África, das quais ape­ Europa também poderia enviar, ela submeteu
nas conhecíamos algumas costas, e a América, dois grandes impérios e outros grandes Esta­
da qual nada conhecíamos. dos.
Os portugueses, navegando pêlo oceano Enquanto os espanhóis descobriam e con­
Atlântico, descobriram a ponta mais meridio­ quistavam do lado do Ocidente, os portugueses
nal da África; viram um vasto mar; ele levou impeliam suas conquistas e descobertas do
às índias Orientais. Os perigos que enfren­ lado do Oriente: estas duas nações se encon­
taram neste mar, e a descoberta de Moçambi­ traram; recorreram ao Papa Alexandre VI, que
que, de Melinda e de Calecute, foram louvados estabeleceu a célebre linha de demarcação, e
por Camões, cujo poema faz sentir alguma julgou um grande processo1 93.
coisa dos encantos da Odisséia e da magnifi­ Mas as outras nações da Europa não os dei­
cência da Eneida. xavam gozar tranquilamente sua partilha: os
Os venezianos tendo praticado, até essa holandeses expulsaram os portugueses de
época, o comércio com as índias, pela região quase todas as índias Orientais, e diversas
dos turcos, o tinham prosseguido em meio às nações organizaram estabelecimentos na Amé­
avanias e aos ultrajes. Pela descoberta do cabo rica.
da Boa Esperança, e com as que foram feitas Os espanhóis consideraram inicialmente as
pouco tempo depois, a Itália foi deslocada do terras descobertas como objetos de conquistas:
centro do mundo comerciante; ela ficou, por povos mais sofisticados que eles acharam que
assim dizer, num canto do universo e aí perma­ essas terras eram objetos de comércio, e foi
nece ainda hoje. Dependendo atualmente o com essa intenção que dirigiram suas vistas.
próprio comércio do Levante daquele que as Vários povos se conduziram com tanta sabe­
grandes nações fazem nas duas índias, a Itália doria, que deram o império a companhias de
apenas o pratica acessoriamente. negociantes1 9 4 que, governando esses Estados
Os portugueses traficaram nas índias como afastados unicamente como negócio, consti­
conquistadores. As leis constrangedoras192 tuíram grande poder acessório, sem embaraçar
que os holandeses, hoje em dia, impõem aos o Estado principal.
pequenos príncipes indianos sobre o comércio,
os portugueses as haviam estabelecido antes As colônias que aí foram formadas estão
deles.
sob um tipo de dependência do qual não
A fortuna da Casa da Áustria foi prodi­ encontramos senão poucos exemplos nas anti­
gas colônias, sejam as que atualmente depen­
giosa. Carlos Quinto recebeu a sucessão de
Borgonha, de Castela e de Aragão; alcançou o dem do próprio Estado, ou alguma companhia
comerciante estabelecida nesse Estado.
império; e para lhe proporcionar um novo gê­
O objeto dessas colônias é fazer o comércio
nero de grandeza, o universo dilatou-se, e
em melhores condições do que quando feito
vimos aparecer um novo mundo sob sua
obediência.
Cristóvão Colombo descobriu a América; e, 193 Com essa famosa “linha de demarcação”, o
apesar de que a Espanha para ali só tivesse Papa Alexandre VI, Bórgia, partilhava o Novo
Mundo entre os espanhóis e os portugueses.
194 ... companhias de negociantes. . . as “Com­
192 Vede a relação de François Pyrard, part. II, panhias das índias”, estabelecidas na Holanda e na
cap. XV. (N. do A.) Inglaterra e também na França.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 327

com os povos vizinhos, com os quais todas as O extremo afastamento de nossas colônias
vantagens são recíprocas. Estabeleceu-se que não é inconveniente para sua segurança, pois,
somente a metrópole poderia negociar na colô­ se a metrópole está distanciada para defendê-
nia; e isso com grande razão, porque a finali­ las, as nações rivais da metrópole também
dade do estabelecimento foi a extensão do estão para conquistá-las.
comércio e não a fundação de uma cidade ou
Demais, este afastamento faz com que os
de um novo império.
Assim, é ainda uma lei fundamental da Eu­ que aí se vão estabelecer não possam adotar o
ropa que todo comércio com uma colônia modo de viver de um clima tão diferente; são
estrangeira seja considerado como um puro obrigados a perder todas as comodidades da
monopólio19 5 punível pelas leis do país; e isso vida do país de origem. Os cartagineses200,
não deve ser julgado pelas leis e pelos exem­ para tornar os sardos e os corsos mais depen­
plos dos antigos19 6 povos, que não são aqui dentes, lhes tinham proibido, sob pena de
aplicáveis. morte, de plantar, semear ou de fazer qualquer
É igualmente estabelecido que o comércio
coisa semelhante a isso; enviavam-lhes víveres
efetuado entre as metrópoles não acarreta per­
da África. Chegamos ao mesmo ponto sem
missão para as colônias, que permanecem
sempre em estado de proibição. estatuir leis tão severas. Nossas colônias das
A desvantagem das colônias, que perdem a ilhas das Antilhas são admiráveis; têm objeti­
liberdade de comércio, é visivelmente compen­ vos de comércio que não temos nem podemos
sada pela proteção da metrópole197, que a ter; falta-lhes o que forma o objeto do nosso.
defende com suas armas, ou a mantém com O resultado da descoberta da América foi
suas leis. unir a Europa, a Ásia e a América. A América
Conclui-se daí uma terceira lei da Europa, fornece à Europa a matéria de seu comércio
que, quando o comércio estrangeiro é proibido com essa vasta parte da Ásia que se chama ín­
com a colônia, não se pode navegar em seus dias Orientais. A prata, esse metal tão útil ao
mares senão em casos estabelecidos em trata­ comércio como símbolo, foi também a base do
dos. maior comércio do universo como mercadoria.
As nações, que estão em relação com todo o
Finalmente, a navegação da África se tornou
universo como os particulares estão em rela­
ção com um Estado, se governam entre si pelo necessária: fornecia homens para o trabalho
direito natural e pelas leis que estabeleceram. das minas e das terras da América.
Um povo pode ceder a outro o mar, tal como A Europa atingiu um grau de poderio tão
pode ceder a terra. Os cartagineses exigi­ alto, que a História nada apresenta de compa­
ram198 dos romanos que estes não navegas­ rável, se consideramos a imensidade das des­
sem além de certos limites, como os gregos ti­ pesas, a grandeza dos empreendimentos, o nú­
nham exigido do rei da Pérsia que se mero de tropas e a continuidade de sua
mantivesse sempre afastado das costas do manutenção, mesmo quando são as mais inú­
mar1", à distância da corrida de um cavalo. teis e são mantidas apenas como ostentação.
O Padre du Halde201 afirma que o comér­
cio interior da China é maior do que o de toda
1 9 5 Por “monopólio” Montesquieu entende, como
o direito antigo, toda associação não autorizada a Europa. Isso seria verdadeiro se nosso
pela lei. comércio exterior não aumentasse o interior. A
19 6 Excetuando-se os cartagineses, como vemos Europa faz o comércio e a navegação de três
pelo tratado que terminou a primeira guerra púnica. outras partes do mundo; como a França, a
(N. do A.)
1 9 7 Metrópole é, na linguagem dos antigos o Esta­ Inglaterra e a Holanda fazem aproximada­
do que fundou a colônia. (N. do A.) mente a navegação e o comércio da Europa.
198 Políbio, liv. III. (N. do A.)
199 O rei da Pérsia se comprometeu, por um trata­
do, a não navegar com nenhum barco de guerra 200 Aristóteles, Das Coisas Maravilhosas. Tito
além das rochas Cianéias e das ilhas Quelidônias. Lívio, liv. VII da Década II. (N. do A.)
Plutarco, Vida de Cimon. (N. do A.) 201 T. II, pág. 170. (N. do A.)
328 MONTESQUIEU

Capítulo XXII

Das riquezas que a Espanha extraiu da América

Se a Europa202 encontrou tantas vantagens magnificência dos templos dos deuses e dos
no comércio com a América, seria natural palácios dos reis, não os procuravam com a
acreditar que a Espanha obteve as maiores. mesma avareza que nós; enfim, eles não
Ela extraiu do mundo recentemente descoberto conheciam o segredo da extração dos metais
uma quantidade de ouro e de prata tão prodi­ de todas as minas, mas somente das que a
giosa, impossível de comparar-se com o que separação era feita pelo fogo, não conhecendo
até eritão se tinha. a maneira de empregar o mercúrio, nem talvez
Porém (o que nunca se teria suspeitado), a o próprio mercúrio.
miséria fê-la malograr quase em toda parte. Fi­ A prata20 4, no entanto, não deixou de do­
lipe II, que sucedeu a Carlos V, foi obrigado a brar muito rapidamente na Europa, o que se
fazer a célebre bancarrota que toda gente revela pelo fato de o preço de tudo que se com­
conhece203, e quase nunca houve príncipe que prava ter-se tornado aproximadamente o
tenha sofrido mais do que ele murmúrios, inso­ dobro.
lências e revolta de suas tropas, sempre mal Os espanhóis escavaram as minas, abriram
pagas. as montanhas, inventaram máquinas para
A partir dessa época, a monarquia espa­ esvaziar a água, quebrar o minério e separá-lo;
nhola declinou incessantemente. Ê que existia e, como menosprezavam a vida dos indígenas,
um vício interno e físico na natureza dessas fizeram-nos, trabalhar sem descanso. A prata
riquezas que as tornava inúteis; e esse vício logo duplicou na Europa, o lucro diminuiu
aumentou todos os dias. sempre da metade para a Espanha, que cada
O ouro e a prata são uma riqueza de ficção ano só obtinha a mesma quantidade de um
ou de símbolo. Esses símbolos são muito durá­ metal que se tornara a metade menos precioso.
veis e se destroem pouco, como convém à sua
No dobro do tempo, a prata duplicou ainda,
natureza. Quanto mais se multiplicam, mais
e o lucro diminuiu ainda da metade.
perdem seu preço, porque representam menos
Diminuiu mesmo mais da metade: eis como.
coisas.
Para extrair o ouro das minas, para dar-lhe
Quando da conquista do México e do Peru,
as preparações necessárias e transportá-lo
os espanhóis abandonaram as riquezas natu­
para a Europa, era preciso alguma despesa.
rais para apoderar-se das riquezas de símbolo
Suponho que ela estivesse como 1 está para
que por si próprias se aviltavam. O ouro e a
64: quando a prata duplicou uma vez, e conse­
prata eram muito raros na Europa, e a Espa­
quentemente tornou-se pela metade menos pre­
nha, senhora, repentinamente, de imensa quan­
ciosa, a despesa esteve como 2 está para 64.
tidade desses metais, concebeu esperanças que
Assim, as frotas que trouxeram para a Europa
jamais tivera. As riquezas encontradas nas
a mesma quantidade de ouro, trouxéram uma
regiões conquistadas não eram, entretanto,
coisa que realmente valia a metade menos e
proporcionais às de suas minas. Os índios
custava a metade mais.
ocultaram parte delas; e, demais, estes povos,
Se acompanharmos o fato, de duplicação
que só utilizavam o ouro e a prata para a
em duplicação, encontraremos a progressão da
causa da impotência das riquezas da Espanha.
202Isso foi publicado, há mais de vinte anos, numa Há cerca de duzentos anos que se trabalham
pequena obra manuscrita do autor, que foi quase
inteiramente fundida nesta obra*. (N. do A.) as minas das índias. Suponho que a quanti­
*A “pequena obra” a que Montesquieu se refere em dade de prata que atualmente existe no mundo
sua nota “teria sido impressa pelo menos em pro­ que comercia esteja para aquela que existia
vas”, segundo Walcknaer. (Ver, a este respeito, a antes da descoberta como 32 está para 1, ou
nota da edição Laboulaye, t. IV, pág. 467, n.° 1).
203Esta bancarrota foi devida sobretudo ao acrés­
cimo das despesas militares, como já foi observado. 2 0 4 ... a prata ... a quantidade de prata.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 329

seja, que tenha duplicado cinco vezes: em É verdade que os holandeses, pelo comércio
duzentos anos ainda a mesma quantidade será que praticaram nas índias Orientais, deram
a que estava, antes da descoberta, como 64 algum valor à mercadoria dos espanhóis, pois,
está para 1, o que vale dizer que ela duplicou como eles trouxeram a prata para trocar com
também. Ora, atualmente, cinquenta2 0 5 quin­ mercadorias do Oriente, aliviaram, na Europa,
tais de minério por ouro dão quatro, cinco e os espanhóis de uma parte de seus gêneros que
seis onças de ouro; e, quando há apenas dois, o ali existiam em abundância.
mineiro pode cobrir seus gastos. Em duzentos E este comércio, que apenas indiretamente
anos, quando existirem apenas quatro, o parece dizer respeito à Espanha, é-lhe vanta­
mineiro também só cobrirá seus gastos. Have­ joso como às próprias nações que o fazem.
rá, portanto, pouco lucro a se obter do ouro.
Aplica-se o mesmo raciocínio para a prata, Por tudo o que acaba de ser dito, podemos
excetuando-se que o trabalho das minas de julgar das ordenanças do Conselho da Espa­
prata é um pouco menos vantajoso que o das nha, que proíbe o emprego de ouro e de prata
minas de ouro. em douraduras e outras superfluidades: decre­
Ainda que se descubram minas tão abun­ to semelhante aos que fariam os Estados da
dantes que dêem mais lucro, quanto mais Holanda, se eles proibissem o consumo da
abundantes forem elas, mais rapidamente o canela.
lucro desaparecerá. Meu raciocínio não se estende a todas as
Os portugueses encontraram tanto ouro20 6 minas: as da Alemanha e da Hungria, das
no Brasil, que será forçoso que o lucro dos quais se retira apenas pouca coisa acima do
espanhóis diminua consideravelmente dentro lucro, são muito úteis. Elas situam-se no Esta­
em breve, e o dos portugueses também. do principal e aí empregam vários milhares de
Ouvi amiúde deplorarem a cegueira do Con­ homens que consomem gêneros superabun-
selho de Francisco I que repeliu Cristóvão dantes: são propriamente uma manufatura da
Colombo que lhe oferecia as índias20 7. Em região.
verdade, fez ele, talvez por imprudência, uma As minas da Alemanha e da Hungria valori­
coisa bem sábia. A Espanha procedeu como zam o cultivo das terras; e o trabalho das do
esse rei insensato208 que pediu que tudo o que México e do Peru o destrói.
tocasse se convertesse em ouro, e que foi obri­ As índias209 e a Espanha são duas potên­
gado a retornar aos deuses para suplicar que cias dominadas por um mesmo senhor: mas as
pusessem fim a sua miséria. índias são o principal, e a Espanha apenas o
As companhias e os bancos que diversas
acessório. É inutilmente que a política quer
nações estabeleceram, acabaram de envilecer o
sujeitar o principal ao acessório; as índias
ouro e a prata em sua qualidade de símbolo,
atraem sempre a Espanha para si.
pois, por novas ficções, multiplicaram de tal
De aproximadamente cinquenta milhões de
modo os símbolos dos gêneros, que o ouro e a
mercadorias enviadas anualmente às índias, a
prata apenas parcialmente representaram esse
Espanha só fornece dois milhões e meio: as ín­
ofício, tornando-se assim menos preciosos.
Destarte, o crédito público substituiu as dias fazem, portanto, um comércio de cin­
minas e diminuiu ainda mais o lucro que os quenta milhões e a Espanha um comércio de
espanhóis tiravam das suas. dois milhões e meio.
É uma má espécie de riqueza, um tributo
20 5 veíje as obras de Frézier. (N. do A.) acidental que não depende da indústria da
20 6De acordo com Milorde Anson, a Europa recebe nação, do número de seus habitantes, nem do
do Brasil, anualmente, cerca de dois milhões de cultivo de suas terras. O rei da Espanha, que
esterlinos em ouro, que se encontram na areia ao recebe grandes somas de suas aduanas de
sopé das montanhas, ou no leito dos rios. Quando
elaborei a pequena obra à qual me referi na primeira Cádiz, não é, a esse respeito, senão um parti­
nota deste capítulo, faltava muito para que as cular muito rico num Estado muito pobre.
exportações do Brasil fossem um objeto tão impor­ Tudo passa dos estrangeiros para ele sem que
tante quanto atualmente. (Nota acrescentada na edi­
ção de 1758.) (N. do A.)
20 7 Cristóvão Colombo morreu em 1506, e Fran­ 208 ... esse rei insensato... o rei Midas.
cisco I, que subiu ao trono em 1515, não pode, por­ 209 . . . As índias. . . as índias Ocidentais, a Amé­
tanto, ter recebido suas propostas. rica, como no capítulo seguinte.
330 MONTESQUIEU

os súditos tenham alguma participação; este riquezas somente poderíam ser o efeito das. do
comércio é independente da boa ou má fortuna país; estas províncias estimulariam todas as
de seu reino. demais; e, todas reunidas, estariam mais aptas
Se algumas províncias, na Castela, lhe a suportar os respectivos encargos: em lugar
proporcionassem uma soma semelhante à de de um grande tesouro, ter-se-ia um grande
Câdiz, seu poderio seria bem maior: suas povo.

Capítulo XXIII

Problema

Não me cabe pronunciar sobre á questão se, quando estas são de preço vil. Talvez fosse útil
a Espanha não podendo fazer o comércio das que essas nações se prejudicassem mutua­
índias por si mesma, ser-lhe-ia melhor que o mente a fim de que as mercadorias que trans­
tornasse permitido a estrangeiros. Direi so­ portam para as índias fossem sempre baratas.
mente que lhe é conveniente levantar o menor Eis princípios que cumpre examinar, sem
número possível de obstáculos a esse comércio entretanto separá-los de outras considerações:
quanto sua política possa lhe permitir. Quando a segurança das índias, a utilidade de uma
as mercadorias que as diversas nações levam alfândega única, os perigos de uma grande
às índias são aí caras, as índias dão muito de mudança, os inconvenientes que se preveem e
sua mercadoria, que é ouro e prata, por pouca que, amiúde, são menos perigosos que os
mercadoria estrangeira; ocorre o contrário imprevistos.
LIVRO VIGÉSIMO SEGUNDO
DAS LEIS EM SUA RELAÇÃO
COM O USO DA MOEDA
Capítulo I

Razão do uso da moeda

Os povos que possuem poucas mercadorias Tendo todas as nações necessidades recípro­
para o comércio, como, por exemplo, os selva­ cas, acontece frequentemente desejar uma
gens e os povos policiados que apenas pos­ nação um número muito grande de mercado­
suem duas ou três espécies delas, negociam por rias de outra, e esta muito pouca das daquela,
troca. Destarte, as caravanas dos mouros que enquanto, no que diz respeito à outra nação,
vão a Tombuctu, no coração da África, trocar encontra-se em situação contrária. Porém,
sal com ouro não têm necessidade de moeda.
quando as nações possuem uma moeda e pro­
O mouro põe seu sal num monte; o negro, seu
cedem por compra e venda, as que adquirem
pó em outro; se não há bastante ouro, o mouro
diminui seu sal, ou o negro acrescenta ouro até mais mercadorias ficam quites, ou pagam o
que as partes estejam de acordo. excedente com dinheiro; e há esta diferença
Porém, quando um povo trafica com grande que, no caso da compra, o comércio se faz na
número de mercadorias, é necessário existir proporção das necessidades da nação que mais
moeda, porque um metal fácil de transportar exige; e que, na troca, o comércio faz-se
poupa muitos gastos que deveríam obrigatoria­ somente na medida das necessidades da nação
mente ser feitos se se procedesse sempre por que menos exige, sem o que esta última ver-se-
troca. ia na impossibilidade de saldar sua conta.

Capítulo II

Da natureza da moeda

A moeda é um signo que representa o valor Não tendo o uso dos metais, os atenienses se
de todas as mercadorias. Usa-se qualquer serviram de bois211 e os romanos, de ovelhas;
metal para que o símbolo seja durável210, se mas um boi não é a mesma coisa que outro
desgaste pouco com o uso e, sem se destruir, boi, como uma peça de metal pode ser a
seja capaz de muitas divisões. Escolheu-se um mesma que outra.
metal precioso, para que o símbolo possa ser Como o dinheiro é símbolo do valor das
facilmente transportado. O metal é muito ade­ mercadorias, o papel é o símbolo do valor do
quado para ser uma medida comum porque dinheiro; e, quando é bom, representa-o de tal
pode ser facilmente reduzido ao mesmo título. modo que, quanto ao efeito, não há diferença.
Cada Estado nele imprime seu cunho, a fim de Assim como o dinheiro é um símbolo de
que a forma corresponda ao título e ao peso e uma coisa, e o representa, cada coisa é um
que se conheçam um e outro por simples
inspeção. 211 Heródoto, in Clio, informa-nos que os lídios
descobriram a arte de cunhar a moeda; os gregos
aprenderam com eles; as moedas de Atenas tiveram
210 O sal utilizado na Abissínia tem o defeito de se como marca seu antigo boi. Vi uma dessas moedas
consumir, de se destruir continuamente. (N. do A.) no gabinete do Conde de Pembrocke. (N. do A.)
334 MONTESQUIEU

símbolo do dinheiro e o representa; e o Estado época de César, os fundos territoriais foram a


é próspero se o dinheiro representar, de um moeda que pagou todas as dívidas; na época
lado, efetivamente todas as coisas e, de outro, de Tibério, dez mil sestércios em fundos torna­
se todas as coisas representarem de fato o ram uma moeda comum, como cinco mil
dinheiro, e que sejam símbolos uns dos outros; sestércios em dinheiro.
isto é, que em seu valor relativo possamos ter A Carta Magna da Inglaterra21 6 proíbe
um assim que tenhamos o outro. Isso só ocorre penhorar as terras ou as rendas do devedor,
num governo moderado, mas nem sempre quando seus bens mobiliários ou pessoais são
ocorre nele: por exemplo, se as leis favorecem suficientes para o pagamento e se ele propõe
um devedor injusto, as coisas que lhe perten­ oferecê-los: desde então, todos os bens de um
cem não representam dinheiro e não são um inglês representavam dinheiro.
símbolo. A respeito do governo despótico, As leis dos germanos avaliavam em di­
seria um prodígio se as coisas representassem nheiro as satisfações pelas injúrias cometidas e
seu símbolo: a tirania e a desconfiança fazem para as penas de crime21 7. Porém, como havia
com que todos enterrem seu dinheiro212: as muito pouco dinheiro neste país, elas reava­
coisas, portanto, não representam dinheiro. liavam o dinheiro em gêneros ou em gado. Isto
Por vezes, os legisladores empregaram tal foi fixado nas leis dos saxões, com algumas
arte que não somente as coisas representavam diferenças, de acordo com a conveniência e a
dinheiro por sua natureza, mas tornavam-se comodidade de diversos povos. Em primeiro
moedas, como a própria prata. César213, dita­ lugar218, a lei declara o valor do soldo em
gado: o soldo de duas tremisses equivalia a um
dor, permitiu aos devedores dar em pagamento
boi de doze meses, ou a uma ovelha com seu
a seus credores fundos de terra de acordo com
cordeiro; o de três tremisses valia um boi de
o preço que valiam antes da guerra civil.
seis meses. Entre esses povos, a moeda torna-
Tibério21 4 ordenou que os que quisessem
va-se gado, mercadoria ou gênero; e essas coi­
dinheiro, recebê-lo-iam do tesouro público, sas tomavam-se moeda.
obrigando21 5 as propriedades em dobro. Na Não somente o dinheiro é um símbolo das
coisas como é também um símbolo do dinheiro
212 É um antigo uso, na Argélia, que cada pai de e representa o dinheiro, como veremos no capí­
família tenha um tesouro enterrado. Laugier de Tas-
sis., Historie du Royaume d’Alger, liv. I, cap. VIII. tulo seguinte.
(N. do A.)
213 Vede César, Da Guerra Civil, liv. III. (N. do 21 6 A Carta Magna da Inglaterra (1215).
A.) 21 7 Trata-se do famoso wehrgeld que estabelecia
21 4 Tácito, An., liv. VI, cap. XVII. (N. do A.) uma tarifa por cada atentado.
215 . . .obrigando. . . empenhando. 218 Lei dos Saxões, cap. XVIII. (N. do A.)

Capítulo III

Das moedas ideais219


Há moedas reais e moedas ideais. Os povos era uma vigésima parte da libra de prata conti-
policiados, que se servem quase todos de moe­ nua-se a chamar soldo, embora não mais seja a
das ideais, não o fazem porque tenham conver­ vigésima parte dessa libra. A partir de então, a
tido suas moedas reais em ideais. Inicialmente, libra é uma libra ideal, e o soldo, um soldo
suas moedas reais têm certo peso e certo título ideal; da mesma maneira, outras subdivisões; e
de algum metal. Logo, porém, a má fé ou a isto pode chegar ao ponto em que o que se cha­
necessidade faz com que se retire uma parte de mará libra não passará de uma porção muito
metal de cada moeda, à qual se deixa o mesmo pequena da libra, fato que a tornará ainda
nome; por exemplo: de uma moeda do peso de
uma libra de prata, retira-se a metade da prata 219 As moedas ideais, num certo sentido, as moe­
e se continua a denominá-la libra: à moeda que das de convenção, as moedas fictícias.
DO ESPÍRITO DAS LEIS III 335

mais ideal. Pode mesmo ocorrer que não se Para suprimir a fonte de abusos, seria uma
faça mais moeda que valha precisamente uma lei muitíssimo boa em todos os países em que
libra, e que não mais se faça uma moeda que se deseja que o comércio floresça, a que orde­
valha um soldo; daí, então, a libra e o soldo nasse o emprego de moedas reais e a proibição
serão moedas puramente ideais. Dar-se-á a de operações que possam torná-las ideais.
cada moeda a denominação de tantas libras e Nada deve ser tão isento de variação como
de tantos soidos que se deseje: a variação o que é medida comum de tudo.
poderá ser contínua porque é tão fácil dar O negócio, por si mesmo, é muito incerto, e
nome a uma coisa quanto é difícil mudar a é um grande mal acrescentar uma nova incer­
própria coisa. teza à que está baseada na natureza da coisa.

Capítulo IV

Da quantidade de ouro e de prata


nuem quando as nações bárbaras passam a Quando as nações policiadas são senhoras
dominar. Sabemos como esses metais foram do mundo, o ouro e a prata aumentam todos
raros quando os godos e os vândalos, de um os dias, seja porque os extraem de seu próprio
lado, e os sarracenos e tártaros, de outro, tudo solo, seja porque os vão procurar nos lugares
invadiram. onde eles se encontram. Pelo contrário, dimi-

Capítulo V

Continuação do mesmo assunto


A prata extraída das minas da América, Antes da Primeira Guerra Púnica, o cobre
transportada para a Europa, enviada ainda daí estava para a prata como 960 está para l220;
para o Oriente, favoreceu a navegação da
ele está hoje aproximadamente como 73 1/2
Europa: é uma mercadoria a mais que a Euro­
pa recebe em troca da América e que envia em está para l221. Quando a proporção estiver
troca para as índias. Uma maior quantidade como estava outrora, a prata só desempenhará
de ouro e de prata é, pois, favorável quando se melhor sua função de símbolo.
consideram esses metais como mercadorias:
ela não o é quando são considerados símbolos, 220 Vede, a esse respeito, o liv. XXII, cap. XII. (N
pois sua abundância afeta sua qualidade de do A.)
símbolo, que está estreitamente relacionada 221 Supondo a prata a quarenta e nove libras o
marco, e o cobre a vinte soidos a libra. (N. do A.)
com a sua raridade.
Capítulo VI

Por que razão a taxa da usura diminuiu222 da metade


quando da descoberta das índias
O Inca Garcilaso223 diz que na Espanha,
após a conquista das índias, os rendimentos 222 . . .a usura. . . sem sentido pejorativo, signifi­
cando somente juros.
que estavam a um décimo caíram a um vigé­ 223 Histórias das Guerras Civis Espanholas nas
simo do valor do capital. Isso teria que aconte- índias. (N. do A.)
336 MONTESQUIEU
cer. Grande quantidade de prata foi repentina­ diminuir o preço ou o aluguel de sua mercado­
mente transportada para a Europa; em breve, ria, isto é, o lucro.
A partir dessa época o empréstimo não pôde
menos pessoas tiveram necessidade de prata; o retornar à antiga taxa, porque a quantidade de
preço de todas as coisas aumentou, e o da prata aumentou todos os anos na Europa.
prata diminuiu; a proporção foi, portanto, Aliás, oferecendo os fundos públicos de alguns
rompida, todas as antigas dívidas extingui- Estados, baseados nas riquezas que o comér­
cio lhes proporcionava, um lucro muito módi­
ram-se. Podemos lembrar a época do Siste­
co, foi preciso que os particulares se pusessem
ma22 4 em que todas as coisas tinham grande de acordo sobre isto. Enfim, tendo o câmbio
valor, exceto a prata. Após a conquista das ín­ oferecido aos homens uma singular facilidade
dias, os que tinham prata foram obrigados a de transportar a prata de um país a outro, a
prata não pôde ser rara num lugar sem que
22 4 Assim se denominava o projeto de Law na acorresse de todos os lados em que ela era
França. (N.'do A.) frequente.

Capítulo VII

Como os preços das coisas se fixam


na variação das riquezas de símbolo
O dinheiro é o preço das mercadorias ou gê­ encontram no mesmo momento, os preços
neros. Mas como se fixará este preço? Isto é: serão fixados na razão composta do total das
por que porção de dinheiro cada coisa será coisas com o total dos símbolos, e a do total
representada? das coisas que estão no comércio com o total
Se comparamos a massa de ouro e de prata dos símbolos que também aí estão; e como as
que existe no mundo com a soma das merca­ coisas que não estão hoje no comércio aí
dorias existentes, é certo que cada gênero ou podem estar amanhã, e como símbolos que
mercadoria em particular poderá ser compa­ hoje aí não estão podem retornar da mesma
rada com uma determinada porção de toda a maneira, o estabelecimento do preço das coi­
massa de ouro e de prata. Como o total de sas sempre depende fundamentalmente da
uma está para o total de outra, a parte de uma razão do total das coisas com o total dos
estará para a parte da outra. Suponhamos que símbolos.
apenas exista um gênero ou mercadoria no Destarte, o príncipe ou o magistrado não
mundo, ou que não haja mais do que um único podem mais taxar o valor da mercadoria como
que possa ser comprado e que se divida como não podem estabelecer, por uma ordenança,
o dinheiro; esta parte desta mercadoria corres­ que a relação de um para dez seja igual à de
ponderá a uma parte da massa de dinheiro; a um para vinte. Tendo Juliano22 5 baixado os
metade do total de uma, à metade do total de gêneros na Antioquia, ocasionou uma horrível
outra; a décima, a centésima, a milésima de fome.
uma, à décima, à centésima, à milésima de
outra. Porém, como o que forma a propriedade 22 5 História da Igreja, por Sócrates, liv. II, cap.
XVII*. (N. do A.)
entre os homens não se encontra no mesmo * Trata-se da regulamentação do preço dos gêneros
momento no comércio e como os metais ou as e da lei do máximo que só logrou eficácia quando se
moedas, que são seus símbolos, também não se tornou desastrosa.
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 337

Capítulo VIII

Continuação do mesmo assunto

Os negros da costa da África têm um sím­ um Estado duplica, será necessário para uma
bolo dos valores sem moeda: é um símbolo macuta o dobro de dinheiro; mas se, dobrando
puramente ideal, baseado no grau de estima o dinheiro, dobrais também as macutas, a pro­
que eles atribuem, em seu espírito, a cada porção continuará tal como era antes de uma e
mercadoria, na proporção da necessidade que outra duplicação.
delas têm. Certo gênero ou mercadoria vale Se, desde a descoberta das índias, o ouro e a
três macutas; outra, seis macutas; outra, dez prata aumentaram na Europa na proporção de
macutas; é como se dissessem simplesmente um para vinte, o preço dos gêneros e mercado­
três, seis, dez. Estabelece-se o preço pela rias deveria ter subido na proporção de um
comparação que se faz entre todas as merca­ para vinte. Mas se, de um lado, o número de
dorias; assim sendo, não possuem moeda par­ mercadorias aumentou de um para dois, será
ticular mas cada porção de mercadoria é necessário que o preço dessas mercadorias e
moeda da outra. gêneros tenha subido, de um lado, na proporçã
Introduzamos momentaneamente entre nós de um para vinte, e que tenha abaixado na pro­
essa maneira de avaliar as coisas e acrescente- porção de um para dois, e que não esteja,
mo-la à nossa: todas as mercadorias e gêneros consequentemente, senão na proporção de um
do mundo, ou então todas as mercadorias ou para dez.
gêneros de um Estado em particular, conside­ A quantidade de mercadorias e gêneros
rado como separado de todos os demais, vale­ cresce com o aumento do comércio; o aumento
rão certo número de macutas; e, dividindo o do comércio, com o aumento do dinheiro que
dinheiro de certo Estado em tantas partes acorre, sucessivamente, e graças a novas
quantas são as macutas, uma parte dividida comunicações com novas terras e novos
desse dinheiro será o símbolo de uma macuta. mares, que nos proporcionam novos gêneros e
Supondo que a quantidade de dinheiro de novas mercadorias.

Capítulo IX

Da raridade relativa do ouro e da prata

Além da abundância e da raridade positiva prata se torna comum, porque cada um o tem
do ouro e da prata, há ainda uma abundância para esconder; o ouro reaparece quando a
e uma raridade relativa de um desses metais prata se torna rara, porque se é obrigado a reti­
para o outro. rá-lo de seus esconderijos.
A avareza guarda o ouro e a prata porque, E, portanto, uma regra: o ouro é comum
como ela não pretende consumir, aprecia sím­ quando a prata é rara, e o ouro é raro quando
bolos que não se destroem. Prefere guardar o a prata é comum. Isso mostra a diferença da
ouro à prata porque sempre receia perder e abundância e da raridade relativa com a abun­
pode esconder melhor o que tem menor volu­ dância e a raridade real: coisas de que muito
me. O ouro desaparece, portanto, quando a falarei.
338 MONTESQUIEU

Capítulo X

Do câmbio
É a abundância e a raridade relativa das Há na Holanda uma moeda chamada flo­
moedas dos diversos países que formam o que rim; o florim vale vinte soidos, ou quarenta
chamo câmbio. meios soidos, ou grossos2 2 7. Para simplificar
O câmbio é uma fixação do valor atual e as idéias imaginemos que não existam florins
momentâneo das moedas. na Holanda e que só existam grossos: um
O dinheiro, como metal, tem um valor como homem que possuir mil florins terá quarenta
todas as demais mercadorias; e tem ainda um mil grossos, e assim por diante. Ora, o câmbio
valor que decorre do fato de ser capaz de se com a Holanda consiste em saber quantos
tornar o símbolo de outras mercadorias; e se grossos valerá cada moeda dos outros países; e
fosse apenas uma simples mercadoria, não se como se conta, ordinariamente, na França, por
pode duvidar que perdería muito de seu preço. escudos de três libras, o câmbio indagará
O dinheiro, como moeda, tem um valor que quantos grossos valerá um escudo de três
o príncipe pode fixar em algumas relações e libras. Se o câmbio estiver a cinquenta e qua­
que não poderia fixar em outras. tro, o escudo de três libras valerá cinquenta e
O príncipe, l.°, estabelece uma proporção quatro grossos; se estiver a sessenta valerá ses­
entre uma quantidade de dinheiro como metal senta grossos; se o dinheiro estiver raro na
e a mesma quantidade como moeda; 2.°, fixa a França, o escudo de três libras valerá mais
que há entre diversos metais empregados como grossos; se estiver abundante valerá menos
moeda; 3.°, estabelece o peso e o título de cada grossos.
peça de moeda; enfim, dá a. cada peça este Esta raridade ou esta abundância, de que
valor idea! de que já falei; chamarei o valor da resulta a mutação do câmbio, não é a raridade
moeda nessas quatro relações de valor positi­ ou a abundância real; é uma raridade ou abun­
vo, porque pode ser fixado por uma lei. dância relativa; por exemplo: quando a França
As moedas de cada Estado têm, além disso, tem mais necessidade de ter fundos na Holan­
um valor relativo, no sentido que são compara­ da do que os holandeses têm necessidade de
das com as moedas de outros países: é este tê-los na França, o dinheiro é chamado
valor relativo que o câmbio estabelece. Ele comum na França e raro na Holanda; e
muito depende do valor positivo. É estabele­ vice-versa.
cido pela estimação mais geral dos negociantes
e não pode sê-lo pela ordenança do príncipe Suponhamos que o câmbio com a Holanda
porque varia incessantemente e depende de mil esteja a cinquenta e quatro. Se a França e a
circunstâncias. Holanda formassem apenas uma cidade, pro-
Para fixar o valor relativo, as diversas ceder-se-ia tal qual quando se dá a moeda de
nações se regulamentarão muito pela que tem um escudo: o francês tiraria de seu bolso três
mais dinheiro. Se ela tem tanto dinheiro quan­ libras e o holandês tiraria do seu cinquenta e
to todas as outras juntas, será muito necessário quatro grossos. Porém, como Paris é distante
que cada uma se compare com ela; o que fará de Amsterdam, cumpre que o que me dá por
com que elas se regulem aproximadamente meu escudo de três libras cinquenta e quatro
entre si como se comparam com a nação grossos que ele possui na Holanda, me dê uma
principal. letra de câmbio de cinquenta e quatro grossos
No estado atual do universo, é a Holan­ sobre a Holanda. Não se trata mais, agora, de
da22 6 esta nação de que falamos. Examinemos cinquenta e quatro grossos mas de uma letra
o câmbio em relação a ela. de cinquenta e quatro grossos. Destarte, para

22 6 Os holandeses regulamentam o câmbio de 22 7 Em francês, gros. Traduzimos o termo para o


quase toda a Europa através de uma espécie de deli­ português embora a antiga moeda portuguesa gros­
beração entre eles, segundo convenha a seus interes­ so não corresponda a essa francesa a que Montes­
ses. (N. do A.) quieu se refere. (N. dos T.).
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 339

julgar22 8 da raridade ou da abundância de tâncias atuais; será necessário verificar o que,


dinheiro, é preciso saber se há, na França, nesse momento, dará mais grossos na Holan­
mais letras de cinquenta e quatro grossos desti­ da: o dinheiro levado em espécie228229 ou uma
nadas à França do que escudos destinados à letra de câmbio sobre a Holanda equivalente à
Holanda. Se há muitas letras oferecidas pelos mesma soma em dinheiro.
holandeses e poucos escudos oferecidos pelos Quando o mesmo título e o mesmo peso do
franceses, o dinheiro é raro na França e dinheiro na França me rendem um mesmo
comum na Holanda, e é necessário que o câm­ peso e um mesmo título do dinheiro na Holan­
bio se eleve e que, para meu escudo, me seja da, dizemos que o câmbio está ao par. No esta­
oferecido mais de cinquenta e quatro grossos; do atual das moedas230, o par está aproxima­
do contrário não o daria; e vice-versa. damente a cinquenta e quatro grossos por
Vemos que as diversas operações do câmbio escudo: quando o câmbio estiver acima de cin­
formam uma conta de receita e de despesa que quenta e quatro grossos, diremos que está alto;
sempre cumpre saldar; e que um Estado que quando estiver abaixo, diremos que está baixo.
deve não se quita mais com os outros pelo Para saber se, numa certa situação de câm­
câmbio do que um particular paga uma dívida bio, o Estado ganha ou perde, é preciso consi-
cambiando dinheiro. derá-lo como devedor, como credor e como
Suponho que não existam mais do que três comprador. Quando o câmbio está mais baixo
Estados no mundo: a França, a Espanha e a que o par, ele perde como devedor, ganha
Holanda; que diversos particulares da Espa­ como credor; perde como comprador, ganha
nha devam na França o valor de cem mil mar­ como vendedor. Percebemos claramente que
cos de prata e que diversos particulares da perde como devedor: por exemplo, devendo a
França devam na Espanha cento e dez mil França à Holanda certo número de grossos,
marcos; e que alguma circunstância fez com quanto menos o escudo valer, tanto maior será
que, cada um, na Espanha e na França, quises­ a quantidade de escudos necessária para
se, repentinamente, retirar seu dinheiro: que fa­ pagar: ao contrário, se a França é credora de
riam as operações do câmbio? Quitariam um certo número de grossos, quanto menos
reciprocamente essas duas nações da soma de cada escudo valer grossos, mais escudos ela
cem mil marcos; mas a França continuaria receberá. O Estado perde ainda como compra­
devendo dez mil marcos na Espanha, e os dor, pois é sempre necessário o mesmo número
espanhóis teriam sempre letras de câmbio con­
de grossos para comprar a mesma quantidade
tra a França, no valor de dez mil marcos, e a
de mercadorias; e, quando o câmbio baixa,
França não teria absolutamente nada sobre a
cada escudo da França valerá menos grossos.
Espanha.
Pelo mesmo motivo, o Estado ganha como
Se a Holanda se encontrasse na situação vendedor: vendo minha mercadoria na Holan­
contrária com a França e se, por saldo, lhe
da pelo mesmo número de grossos que a ven­
devesse dez mil marcos, a França poderia
pagar a Espanha de duas maneiras: ou dando dia; terei, portanto, mais escudos na França,
a seus credores na Espanha letraS de câmbio quando me forem necessários cinquenta e qua­
sobre seus devedores da Holanda no valor de tro grossos para obter esse mesmo escudo: o
dez mil marcos, ou, então, enviando dez mil contrário de tudo isso acontecerá ao outro
marcos de dinheiro em espécie para a Espa­ Estado. Se a Holanda deve determinado núme­
nha. ro de escudos, ela ganhará; e se lhe devem, ela
A consequência disso é que quando um Es­ perderá; se ela vende, perderá; se compra,
tado tem necessidade de remeter uma soma de ganhará.
dinheiro para outro país, pela natureza da É, portanto, necessário observar o seguinte:
coisa, é indiferente que envie dinheiro ou letras quando o câmbio está abaixo do par, por
de câmbio. A vantagem dessas duas maneiras exemplo, se está a cinquenta, em vez de estar a
de pagar depende unicamente das circuns­ cinquenta e quatro, acontecerá que a França,

228 Há mais dinheiro num lugar quando há mais 229 Uma vez deduzidos os gastos de transporte e
prata do que papel; há pouco dinheiro quando há de seguro. (N. do A.)
mais papel do que prata. (N. do A.). 230 Em 1744. (N. do A.)
340 MONTESQUIEU
enviando pelo câmbio cinquenta e quatro mil países estrangeiros um dinheiro que nunca
escudos para a Holanda, apenas comprará deve retornar, perde sempre.
mercadorias no valor de cinquenta mil; e que, Quando os negociantes fazem muitos negó­
de outro lado, a Holanda, enviando o valor de cios num país, o câmbio sofre infalivelmente.
cinquenta mil escudos para a França, compra­ Isso decorre do fato de se assumirem muitos
rá no valor de cinquenta e quatro mil, o que compromissos e de se comprarem muitas
determinaria uma diferença de 8/54, ou seja, mercadorias; e sacar-se sobre o país estran­
mais de um sétimo de perda para a França; de geiro para pagá-los.
sorte que seria necessário enviar para a Holan­ Se um príncipe acumula muito dinheiro em
da um sétimo a mais em dinheiro ou em seu Estado, o dinheiro poderá tornar-se raro
mercadoria, o que seria desnecessário se o realmente, e comum relativamente; por exem­
câmbio estivesse ao par; e como o mal sempre plo, se, na mesma época, este Estado devesse
aumenta, já que semelhante dívida faria o câm­ comprar muitas mercadorias no país estran­
bio diminuir ainda mais, a França estaria, no geiro, o câmbio baixaria, àpesar de o dinheiro
final, arruinada. Parece, digo, que isso deveria ser raro.
ocorrer, mas não ocorre por causa do princípio O câmbio de todas as praças tende sempre a
que estabelecí alhures231: o de que os Estados se colocar numa certa proporção; e isto reside
sempre tendem a se equilibrar e a procurar sua na natureza da própria coisa. Se o câmbio da
liberação. Assim, apenas emprestam na pro­ Irlanda com a Inglaterra está mais baixo que o
porção em que podem pagar e só compram na par, e se o da Inglaterra com a Holanda estiver
medida em que vendem. E, tomando o exemplo ainda mais baixo que o par, o da Irlanda com
acima, se o câmbio cai na França de cinquenta a Holanda estará ainda mais baixo; isto é, na
e quatro a cinquenta, o holandês que com­ razão composta do da Irlanda com a Ingla­
prava mercadorias por mil escudos e que paga­ terra e o da Inglaterra com a Holanda; pois
va cinquenta e quatro mil grossos, não pagará um holandês, que pode fazer vir seus fundos
mais que cinquenta mil se o francês quiser con­ indiretamente da Irlanda através da Inglaterra,
sentir nisso. Porém, a mercadoria da França se não desejará pagar mais caro para trazê-los
elevará insensivelmente; o lucro será dividido diretamente. Digo que isso deveria ser assim;
entre franceses e holandeses, pois, quando um entretanto, isso não acontece exatamente
negociante pode ganhar, ele partilha facil­ assim; há sempre circunstâncias que fazem va­
mente seu lucro; far-se-á, portanto, uma comu­ riar as coisas; e a diferença do lucro que há em
nicação do lucro entre o francês e o holandês. sacar numa praça, ou em sacar em outra, cons­
Da mesma maneira, o francês, que comprava titui a arte ou a habilidade particular dos
mercadorias da Holanda por cinquenta e qua­ banqueiros, questão que não cabe tratar aqui.
tro mil grossos, e que pagava com mil escudos Quando um Estado eleva sua moeda, por
quando o câmbio estava a cinquenta e quatro, exemplo, quando chama de seis libras ou dois
seria obrigado a acrescentar 4/54 a mais em escudos o que chamava apenas de três libras
escudos da França para comprar as mesmas ou um escudo, esta nova denominação, que
mercadorias. Mas o comerciante francês, que nada acrescenta de real ao escudo, não deve
percebera a perda que teria, quererá dar menos proporcionar um só grosso a mais pelo câm­
pela mercadoria da Holanda. Ocorrerá, por­ bio. Não se deveria ter, para os dois novos
tanto, uma comunicação de perda, entre o escudos, senão a mesma quantidade de grossos
comerciante francês e o holandês; o Estado que se recebia pelo antigo; e, se isso não acon­
colocar-se-á insensivelmente na balança e a tece, não é absolutamente por efeito da fixação
baixa do câmbio não terá todos os inconve­ em si mesma, mas do efeito que ela produz
nientes que se deveria temer. como nova e do que produz como súbita. O
Quando o câmbio está mais baixo que o par, câmbio diz respeito a negócios começados e só
um negociante pode, sem diminuir sua fortuna, se regula depois de um certo tempo.
remeter seus fundos aos países estrangeiros; Quando um Estado, em lugar de elevar
porque, trazendo-os de volta, torna a ganhar o simplesmente sua moeda por uma lei, faz nova
que perdeu; mas um príncipe que só envia a fundição a fim de fazer de uma moeda forte
uma moeda mais fraca, acontece que, durante
2 31 Vede o liv. XX, cap. XXIII. (N. do A.) o tempo da operação, há dois tipos de moedas;
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 341

a forte, que é a velha, e a fraca, que é a nova; fará elevar o câmbio até o ponto em que se
e como a forte está depreciada e só é recebida terão, com pequena diferença, tantos grossos
na Casa da Moeda e como, consequentemente, pelo câmbio de um escudo de três libras quan­
as letras de câmbio devem ser pagas em espé­ to se teria fazendo sair do país um escudo de
cies novas, parece que o câmbio deveria regu- três libras em espécies antigas. Digo com
lar-se de acordo com a espécie nova. Se, por pequena diferença porque quando o lucro for
exemplo, o enfraquecimento na França era da módico não se será tentado a fazer sair a espé­
metade e se o antigo escudo de três libras desse cie, por causa dos gastos de transporte e dos
sessenta grossos na Holanda, ,o novo escudo riscos do confisco.
deveria valer apenas trinta grossos. De outro Convém dar uma idéia bem clara disso. O
lado, parece que o câmbio se deveria regular Senhor Bernard, ou qualquer outro banqueiro
sobre o valor da espécie velha, porque o ban­ que o Estado queira empregar, oferece suas le­
queiro que tem dinheiro e que adquire letras é tras sobre a Holanda, e as entrega a um, dois
obrigado a entregar à Casa da Moeda as espé­ ou três grossos acima do câmbio atual; estabe­
cies velhas, para adquirir as novas sobre as leceu uma provisão nos paísés estrangeiros por
quais ele perde. O câmbio se colocará, pois, meio das espécies antigas que ele mandou
entre o valor da espécie nova e o da espécie transportar continuamente; portanto, fez com
velha. O valor da espécie velha cai, por assim que o câmbio se elevasse ao ponto que acaba­
dizer, porque já há no comércio espécie nova, e mos de dizer. Entretanto, à força de dar suas
porque o banqueiro não pode manter rigor, letras, apoderou-se de todas as espécies novas,
tendo interesse em fazer sair prontamente o e força os outros banqueiros, que têm paga­
dinheiro velho de sua caixa para fazê-lo circu­ mentos a fazer, a levar suas espécies antigas à
lar, sendo mesmo forçado a isso para fazer Casa da Moeda; e, além disso, como obteve
seus pagamentos. Por outro lado, o valor da insensivelmente todo o dinheiro, forçou, por
espécie nova eleva-se, por assim dizer, porque sua vez, os demais banqueiros a lhe darem le­
o banqueiro, com a espécie nova, se encontra tras a um câmbio muito alto; o lucro final o
numa circunstância onde iremos ver que ele indeniza em grande parte da perda inicial.
pode, com grande vantagem, obter a antiga. O Percebemos que, durante toda esta opera­
câmbio colocar-se-á, portanto, como disse, ção, o Estado deve sofrer violenta crise. O
entre a espécie nova e a espécie velha. Então, dinheiro tornar-se-á muito raro: l.° porque é
os banqueiros lucrarão fazendo sair a espécie necessário depreciar-lhe a maior parte; 2.° por­
antiga do Estado, porque obtêm com isso a que será necessário transportar uma parte para
mesma vantagem que proporcionaria uma os países estrangeiros; 3.° porque todos o guar­
troca regulada sobre a espécie antiga, ou seja, darão, e ninguém desejará deixar ao príncipe
muitos grossos na Holanda; e têm um retorno um lucro que se espera obter para si mesmo. É
em câmbio, regulado entre a espécie nova e a perigoso fazer esta operação com lentidão: é
espécie antiga, isto é, mais baixo; o que perigoso fazê-la muito rapidamente. Se o lucro
proporciona muitos escudos na França. pressuposto é imoderado, os inconvenientes
Suponho que três libras da espécie antiga aumentam na mesma medida.
rendam, pelo câmbio atual, quarenta e cinco Vimos acima que, quando o câmbio estava
grossos e que, transportando esse mesmo escu­ mais baixo que a espécie, era lucrativo fazer
do para a Holanda, obtenha-se por ele sessen­ sair o dinheiro: pela mesma razão, quando ele
ta; mas, com uma letra de quarenta e cinco está mais alto que a espécie, é lucrativo fazê-lo
grossos, obter-se-á um escudo de três libras na retornar.
França, o qual, transportado em espécie para a Porém, há um caso em. que é lucrativo fazer
Holanda, dará ainda sessenta grossos: toda sair a espécie quando o câmbio está ao par; é
espécie antiga sairá, portanto, do Estado que quando é enviada a países estrangeiros para
faz a refundição, e o lucro será dos banqueiros. ser remarcada ou refundida. Quando retorna,
Para remediar isso, scr-se-á forçado a obtém-se lucro para a Casa da Moeda, seja
empreender nova operação. O Estado que efe­ empregando-a no país, seja adquirindo-se le­
tua a refundição, enviará, ele próprio, grande tras para o estrangeiro.
quantidade de espécies antigas para a nação Se, num Estado, se formasse uma compa­
que regula o câmbio; e, ali obtendo um crédito, nhia que tivesse um número muito conside­
342 MONTESQUIEU

rável de ações, e se se fizesse, depois de alguns os países estrangeiros faria baixar o câmbio.
meses, elevar essas ações vinte ou vinte e cinco Suponhamos que, no tempo do Sistema, na
vezes acima do valor da primeira compra, e se relação do título e do peso da moeda de prata,
este mesmo Estado tivesse estabelecido um a taxa de câmbio fosse de quarenta grossos por
banco cujas cédulas devessem realizar a fun­ escudo; se uma inumerável quantidade de
ção da moeda; e se o valor numerário dessas papel fosse transformada em moeda, não mais
cédulas fosse prodigioso, para corresponder ao se desejaria dar senão trinta e nove grossos por
prodigioso valor numerário das ações (é o sis­ escudo, e, em seguida, trinta e oito, trinta e
tema do Sr. Law), seguir-se-ia da natureza da sete, etc. Isto iria tão longe, que não se dariam
coisa que estas ações e cédulas anular-se-iam mais que oito grossos e, finalmente, não mais
da mesma maneira como teriam sido estabele­ haveria câmbio.
cidas. Não se poderia elevar repentinamente as Era o câmbio que devia, neste caso, regular
ações vinte ou vinte e cinco vezes acima de seu na França a proporção da prata com o papel.
primeiro valor, sem oferecer a muitos o meio Supondo que, pelo peso e título da prata, o es­
de obter imensas riquezas em papel: cada um cudo de três libras valesse quarenta grossos e
procuraria assegurar sua fortuna e, como o que se realizando o câmbio em papel, o escudo
câmbio oferece a via mais fácil para desnatu- de três libras em papel valesse apenas oito
rá-la, ou para transportá-la para onde se quei­ grossos, a diferença seria de quatro quintos. O
ra, remeter-se-ia incessantemente uma parte de escudo de três libras em papel valeria portanto
seus efeitos para a nação que regulamenta o quatro quintos a menos que o escudo de três li­
câmbio. Um projeto contínuo de remeter para bras em prata.

Capítulo XI

Das operações que os romanos efetuaram sobre as moedas

Certas medidas de autoridade tomadas na Não nos resta monumento da maneira como
França atual, com relação às moedas, em dois os romanos fizeram sua operação na Primeira
ministérios consecutivos, os romanos as toma­ Guerra Púnica; mas a que fizeram na segunda
ram em escala ainda maior, não na época assinala uma prudência admirável. A repú­
dessa república corrompida, nem na época blica não se encontrava em situação de saldar
dessa república que não passava de uma anar­ suas dívidas; o asse pesava duas onças de
quia, mas quando, na força de sua instituição, cobre e o denário, valendo dez asses, valia
pela prudência e pela coragem, depois de ter vinte onças de cobre. A república cunhou asses
vencido as cidades da Itália, ela disputava o de uma onça de cobre233; ganhou metade
império aos cartagineses. sobre seus credores2 3 4; pagou um denário
Sinto-me bastante inclinado a aprofundar com essas dez onças de cobre. Essa operação
um pouco esta matéria, a fim de que não se produziu grande abalo no Estado; era neces­
tome por um exemplo o que não o é. sário que ele fosse o menor possível; continha
Na Primeira Guerra Púnica232, o asse, que uma injustiça; era preciso que fosse a menor
devia ser de doze onças de cobre, não pesava possível. Tinha como objetivo a libertação da
mais do que duas; e, na Segunda Guerra Púni­ república em face de seus cidadãos, não era
ca, não pesava mais do que uma. Esta redução necessário que tivesse o da libertação dos cida­
corresponde ao que chamamos atualmente dãos entre si. Isto levou a efetuar uma segunda
aumento das moedas. Retirar de um escudo de operação; e ordenou-se que o denário, que até
seis libras a metade da prata para convertê-lo então só continha dez asses, contivesse dezes-
em dois, ou fazê-lo valer doze libras, é precisa­
mente a mesma coisa.
233 Plínio, Hist. Hat., liv. XXXIII, art. 13. (N. do
A.)
232 Plínio, Hist. Nat., liv. XXXIII, art. 13. (N. do 23 4 Em só pagando metade das dívidas, uma sim­
A.) ples falência.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 343

seis. O resultado dessa dupla operação foi que, nas de um quinto, a mudança real na moeda
enquanto os credores da república perdiam a era somente de um quinto; é fácil perceber as
metade23 5, os dos particulares só perdiam um outras consequências.
quinto2 3 6; as mercadorias aumentavam ape- Os romanos se conduziram, portanto, me­
lhor do que nós, que envolvemos, em nossas
operações, quer as fortunas públicas, quer as
23 5 Eles recebiam dez onças de cobre por vinte.
(N. do A.) fortunas particulares. Isto não é tudo; veremos
23 6 Recebiam dezesseis onças de cobre por vinte. como procederam em circunstâncias mais
(N. do A.) favoráveis que as nossas.

Capítulo XII

Circunstâncias nas quais os romanos


fizeram suas operações sobre a moeda

Antigamente havia muito pouco ouro e prata e o cobre não mais se podendo manter,
prata na Itália. Este país possui poucas ou efetuou diversas operações que não conhece­
nenhumas minas de ouro e de prata. Quando mos sobre as moedas. Sabemos apenas que, no
Roma foi tomada pelos gauleses, não se encon­ começo da Segunda Guerra Púnica, o denário
trou nela mais que mil libras de ouro23 7. romano não valia mais que vinte onças de
Entretanto, os romanos haviam saqueado mui­ cobre2 41; e que assim a proporção entre a
tas cidades poderosas e transportado suas prata e o cobre não mais era de 1 para 160. A
riquezas para Roma. Durante muito tempo só redução era considerável, pois a república ga­
se serviram de moedas de cobre; só depois da nhou cinco sextos sobre toda moeda de cobre.
paz de Pirro contaram com prata suficiente Mas se fez apenas o que a natureza da coisa
para dela fazerem moedas238. Cunharam exigia e restabeleceu-se a proporção entre os
denários desse metal que valiam dez asses239 metais que serviam de moeda.
ou dez libras de cobre. Desde então, a propor­ A paz que pôs fim à Primeira Guerra Púni­
ção da prata para o cobre era como de 1 para ca deixou os romanos senhores da Sicília.
960, pois o denário romano, valendo dez asses Logo eles entraram na Sardenha, começaram a
ou dez libras de cobre, valia cento e vinte conhecer a Espanha: a massa de prata aumen­
onças de cobre; e o mesmo denário, valendo tou ainda em Roma. Fez-se a operação que
um oitavo de onça de prata2 40, estabelecia a reduziu o denário de prata de vinte onças para
proporção que acabamos de indicar. dezesseis2 42, que teve como consequência
Roma, tornando-se senhora dessa parte dat restabelecer a proporção entre a prata e o
Itália, a mais próxima da Grécia e da Sicília, cobre; esta proporção era de 1 para 160; pas­
encontrou-se pouco a pouco entre dois povos sou a ser de 1 para 128.
ricos: os gregos e os cartagineses; séu dinheiro
aumentou; e a proporção de 1 para 960 entre a Examinai os romanos; nunca os encontra­
reis tão superiores como na escolha das
circunstâncias nas quais praticaram os bens e
2 3 7 Plínio, liv. XXXIII, art. 5. (N. do A.) os males.
238 Freinshemius, liv. V da Década II. (N. do A.)
239 Ibid. loco citato. Cunharam igualmente, diz o
mesmo autor, meios denominados quinários, e.quar- 241 Plínio, Hist. Nat., liv. XXXIII, art. 13. (N. do
tos denominados sestércios. (N. do A.) A.)
2 40 Um oitavo, segundo Budée; um sétimo, segun­ 2 42 Plínio, Hist. Nat., liv. XXXIII, art. 13. (N. do
do outros autores. (N. do A.) A.)
344 MONTESQUIEU

Capítulo XIII

Operações sobre as moedas no tempo dos imperadores

Nas operações qqe se efetuaram sobre as mais da metade de liga; a de Alexandre Seve­
moedas no tempo das repúblicas, procedeu-se ro2 4 6, dois terços; o enfraquecimento conti­
por meio da diminuição: o Estado confiava ao nuou; e no período de Galiano2 4 7 não se via
povo suas necessidades e não pretendia sedu­ mais do que cobre prateado.
zi-lo. Na época dos imperadores, procedeu-se
Percebe-se que essas operações violentas
por meio da liga. Estes príncipes, reduzidos ao
desespero por suas próprias liberalidades, se não poderíam efetuar-se atualmente: um prín­
viram obrigados a alterar as moedas; via indi­ cipe enganaria a si mesmo e não enganaria
reta, que diminuía o mal e que parecia não ninguém. O câmbio ensinou o banqueiro a
tocá-lo: retirava-se uma parte da dádiva e comparar todas as moedas do mundo e a dar-
ocultaya-se a mão; e, sem que se falasse da lhes o justo valor; o título das moedas não
diminuição do soldo ou das generosidades,
pode mais ser secreto. Se um príncipe lança o
essas se encontravam diminuídas.
bilhão, todos continuam e o fazem em seu
Vemos ainda, nas exposições2*43, medalhas
chamadas forradas que têm apenas uma lâmi­ lugar; as espécies fortes saem em primeiro
na de prata cobrindo o cobre. Num fragmento lugar, e lhe são devolvidas fracas. Se, como os
do livro LXXVII de Dion2 4 4 há referência a imperadores romanos, ele enfraquece a prata
esta moeda. sem enfraquecer o ouro, verá subitamente o
Dídio Juliano começou o enfraquecimento. ouro desaparecer, e será reduzido à sua má
Sabe-se que a moeda2 4 5 de Caracala tivera prata. O câmbio, como disse no livro prece­
dente248, suprimiu as grandes medidas de
2 43 Vede a Science des Médailles, do Padre Jou- autoridade, ou pelo menos seu êxito.
bert, ed. de Paris, 1739, pág. 59. (N. do A.)-
2 4 4 Extrato das Virtudes e dos Vícios. (N. do A.)
2 4 5 Vede Savot, part. II, cap. XII; e o Journal des 2 4 6 Ideml ibid. (N. do A.)
Savants de 28 de julho de 1681, sobre uma desco­ 2 4 7 Idem, ibid. (N. do A.)
berta de cinquenta mil medalhas. (N. do A.) 2 48 Cap. XXI. (N. do A.)

Capítulo XIV

Como o câmbio incomoda os Estados despóticos

A Moscóvia deseja sair de seu despotismo e Todos os súditos do império, como escravos,
não o consegue. O estabelecimento do comér­ não podiam sair, nem fazer sair seus bens, sem
cio exige o do câmbio; e as operações do câm­ permissão. O câmbio, que possibilita o trans­
bio contradizem todas as suas leis. porte de dinheiro de um país para outro, é por­
Em 1745, a czarina2 49 estabeleceu uma tanto contraditório com as leis da Moscóvia.
ordenança para expulsar os judeus porque eles O próprio comércio contradiz suas leis. O
tinham enviado para países estrangeiros o povo é composto apenas de escravos ligados
dinheiro dos que tinham sido exilados na Sibé­ às terras, e de escravos chamados eclesiásticos
ria e o dos estrangeiros que estavam a serviço. ou gentis-homens, porque são os senhores des­
ses escravos. Sobram, pois, poucas pessoas
2 49 A Czarina Isabel, filha de Pedro, o Grande para o terceiro estado, que deve formar os ope­
(1710-1762). rários e os comerciantes.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 345

Capítulo XV

Usos de algumas regiões da Itália

Em algumas regiões da Itália estabelece­ outra, é uma má lei a que não permite dispor,
ram-se leis para impedir que os súditos vendes­ para seus negócios, dos fundos territoriais,
sem suas propriedades rurais para transportar uma vez que se pode dispor de seu dinheiro.
seu dinheiro para países estrangeiros. Essas Esta lei é má porque dá vantagens aos efeitos
leis poderíam ser boas quando as riquezas de mobiliários2 50 sobre os fundos territoriais,
cada Estado lhes pertencessem de tal modo, porque ela dissuade os estrangeiros de virem
que fosse muito difícil fazê-las passar a outro. estabelecer-se no país, e, finalmente, porque
Mas desde que, pelo uso do câmbio, as rique­ pode ser burlada.
zas não pertencem, de alguma maneira, a ne­
nhum Estado em particular, e havendo muita 2 50 Aos efeitos mobiliários. . . aos valores mobi­
facilidade em transportá-las de uma região a liários.

Capítulo XVI

Do auxílio que o Estado pode auferir dos banqueiros

Os banqueiros são feitos para trocar2 51 o considerável; e, se lhe pedem grandes lucros,
dinheiro e não para emprestá-lo. Se o príncipe ele pode ter certeza de que se trata de uma
só os utiliza para trocar seu dinheiro, como só falha de administração. Quando, pelo contrá­
efetua grandes negócios, o menor lucro que ele rio, eles são usados para fazer adiantamentos,
lhes dá por suas remessas torna-se -um objeto a arte deles consiste em alcançar grandes lu­
cros com esse dinheiro, sem que se possa acu­
2 51 Trocar, no sentido de descontar. sá-los de usura.

Capítulo XVII

Das dívidas públicas

Algumas pessoas acreditaram que seria particulares da dívida da nação, isto é, que
conveniente que um Estado devesse a si pró­ lhes proporcione o pagamento. Mas eis os
prio: pensaram que isso multiplicaria as rique­ inconvenientes que disso resultam:
zas, aumentando a circulação. 1. ° Se os estrangeiros possuem muitos pa­
Creio que se confundiu um papel circulante, péis que representam uma dívida, tiram cada
que representa a moeda, ou um papel circu­ ano, da nação, uma soma considerável para os
lante que é o signo dos lucros que uma compa­ juros.
nhia auferiu ou auferirá do comércio, com um 2. ° Numa nação assim perpetuamente deve-
papel que representa uma dívida2 52: os dois dora, o câmbio deve ser muito baixo.
primeiros são muito vantajosos para o Estado; 3. ° O imposto arrecadado para o paga­
o último não pode sê-lo; e tudo que se pode mento dos juros da dívida prejudica as manu­
esperar dele é que seja um bom penhor para os faturas, tornando a mão-de-obra mais cara.
4. ° Retiram-se as verdadeiras rendas do Es­
2 82 Trata-se, respectivamente, nessas três espécies, tado dos que possuem atividade e indústria
de bilhetes de banco, de ações e de títulos de renda. para transferi-las às pessoas ociosas; isto sig­
346 MONTESQUIEU

nifica que se facilita o trabalho aos que não dos: é, na linguagem dos algebristas: 200 000
trabalham, e se dificulta o trabalho aos que escudos — 100 000 escudos 4- 100 000 escu­
trabalham. dos = 200 000 escudos
Eis os inconvenientes; não conheço as van­
O que pode causar erro é que um papel que
tagens. Dez pessoas têm, cada uma, mil escu­
representa a dívida de uma nação é um signo
dos de renda em fundos territoriais ou em
de riqueza; pois só um Estado rico pode sus­
indústrias; isto representa para a nação, a
tentar um tal papel sem cair em decadência.
cinco por cento, um capital de duzentos mil
escudos. Se essas dez pessoas empregassem á Mas, para que não caia, é preciso que o Estado
metade de suas rendas, isto é, cinco mil escu­ tenha de fato grandes riquezas. Diz-se que não
dos^ para pagar os juros de cem mil escudos há mal algum porque há recursos contra este
que tomaram emprestados a outros, isto ainda mal; e diz-se que o mal é um bem porque os
só representa para o Estado duzentos mil escu­ recursos superam o mal.

Capítulo XVIII

Do pagamento das dívidas públicas

Faz-se mister que exista uma proporção fundo de amortização pode ser pòuco conside­
entre o Estado credor e o Estado devedor. O rável: numa monarquia é necessário que este
Estado pode ser credor ao infinito; mas só capital seja maior.
pode ser devedor até certo ponto; e quando se 2. ° Os regulamentos devem ser tais, que
chega a ultrapassar este ponto, o título de cre­ todos os cidadãos do Estado suportem o peso
dor desaparece. da instituição desses fundos porque todos
Se esse Estado ainda possui um crédito que arcam com o peso do estabelecimento da dívi­
não tenha recebido qualquer dano, poderá da: o credor do Estado, pelas somas com que
fazer o que se praticou com tanto êxito num contribui, paga-se a si próprio.
Estado da Europa2 53: obter grande quanti­ 3. ° Há quatro classes de pessoas que pagam
dade de espécies e oferecer a todos os particu­ as dívidas do Estado: os proprietários de fun­
lares seu reembolso, a menos que esses não dos territoriais, os que exercem sua indústria
queiram reduzir o juro. Com efeito, assim pelo negócio, os lavradores e os artesãos, e,
como, quando o Estado pede emprestado, são finalmente, os rendeiros do Estado ou dos
os particulares que fixam a taxa do juro, quan­ particulares. Destas quatro classes, a última,
do o Estado quer pagar, a ele cabe fixar tal em caso de necessidade, deveria ser, ao que
juro. parece, a menos poupada, porque é uma classe
Não basta reduzir o juro; é necessário que a inteiramente passiva no Estado, enquanto este
redução constitua um fundo de amortização mesmo Estado é sustentado pela força ativa
que reembolse cada ano parte dos capitais: das três outras. Mas, como não se pode sobre­
operação tanto mais feliz quanto seu êxito carregá-la mais sem destruir a confiança públi­
aumenta todos os dias. ca, da qual o Estado, em geral, e essas três
Quando o crédito do Estado não é comple­ classes, em particular, têm suprema necessi­
to, isto é mais uma razão para tentar formar dade; como a fé pública não pode faltar a certo
um fundo de amortização; porque este fundo, número de cidadãos sem que pareça faltar a
uma vez constituído, logo restitui a confiança. todos; e como a classe dos credores é sempre
° Se o Estado é uma república, cujo
l. mais exposta aos projetos dos ministros, e
governo comporta, por sua natureza, que se como está sempre mais à vista e à mão, cum­
elaborem projetos duradouros, o capital do pre que o Estado lhe dispense especial prote­
Ç ção, e a parte devedora não tenha nunca a
2 53 A Inglaterra. (N. do A.) menor vantagem sobre a credora.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 347

Capítulo XIX

Dos empréstimos a juros


O dinheiro é o símbolo dos valores. É óbvio custaria mais em juros do que poderia ganhar
que aquele que tem necessidade deste símbolo em seu comércio, nada empreenderá. Se o
deve alugá-lo, como procede com todas as coi­ dinheiro não tem preço, ninguém o emprestará,
sas das quais pode ter necessidade. Toda a e o negociante tampouco nada empreenderá.
diferença consiste em que as outras coisas Engano-me quando digo que ninguém o
podem ser alugadas ou compradas, ao passo emprestará. Sempre é necessário que os negó­
que o dinheiro, que é o preço das coisas, se cios da sociedade continuem; a usura se esta­
aluga e não se compra2 5 4. belece, mas com as desordens experimentadas
É efetivamente uma ação muito louvável em todas as épocas.
emprestar a outro dinheiro sem juros, mas per­ A lei de Maomé confunde a usura com o
cebemos que isto só pode ser um conselho reli­ empréstimo a juro. A usura aumenta nos paí­
gioso e não uma lei civil. ses maometanos na proporção da severidade
Para que o comércio possa ser bem exercido da proibição: o prestamista indeniza-se do pe­
cumpre que o dinheiro tenha um preço mas rigo da contravenção.
que esse preço seja pouco considerável. Se for Nesses países do Oriente, a maioria dos ho­
muito alto, o negociante, vendo que esse lhe mens nada tem de garantido: quase não há
relação entre a posse atual de uma soma e a
esperança de reavê-la uma vez emprestada:
2 5 4 Aqui não nos referimos aos casos em que o
ouro e a prata são considerados mercadorias. (N. do portanto, a usura aumenta aí na proporção do
A.) perigo da insolubilidade.

Capítulo XX

Das usuras marítimas

A grandeza da usura marítima baseia-se negócios, e em grande número, ao passo que as


sobre duas coisas: o perigo do mar, que faz usuras de terra, não estando baseadas em
com que ninguém se exponha a emprestar seu
nenhuma dessas duas razões, são, ou proscri-
dinheiro senão para obter muito mais, e a faci­
lidade que o comércio confere ao que pede tas pelos legisladores, ou, o que é mais sensato,
emprestado de fazer rapidamente grandes reduzidas a justos limites.

Capítulo XXI

Do empréstimo por contrato


e da usura entre os romanos

Além do empréstimo feito para o comércio, Como o povo, entre os romanos, aumen­
há também outra espécie de empréstimo feito tasse cada dia seu poder, os magistrados pro­
por um contrato civil, do qual resulta um juro curaram adulá-lo e fazê-lo adotar leis que lhe
ou usura. fossem das mais agradáveis. O povo restringiu
348 MONTESQUIEU

os capitais2*5 5; diminuiu os juros; proibiu rece­ mais que, se as leis só apareciam de tempos em
bê-los; suprimiu as coerções corporais; final­ tempos, as queixas do povo eram contínuas e
mente, a abolição das dívidas foi posta em dis­ intimidavam sempre os credores. Isto fez com
cussão cada vez que um tribuno queria que fossem abolidos, em Roma, todos os meios
tornar-se popular. honestos de emprestar e de pedir emprestado e
Estas contínuas modificações, quer por leis,
que uma usura horrível, sempre fulminada2 5 6
quer por plebiscitos, naturalizaram a usura em
e sempre renascente, nela se instalasse. O mal
Roma, pois os credores, vendo o povo como
devedor, legislador e juiz, não mais tiveram advinha de essas coisas não terem sido bem
confiança nos contratos. O povo, como um arranjadas. As leis extremas no bem engen­
devedor desacreditado, não convidava nin­ dram o mal extremo. Cumpria pagar pelo
guém a lhe emprestar senão a altos juros; tanto empréstimo de dinheiro e pelo risco das penas
da lei.
2 5 5 ... restringiu os capitais, reduziu o capital a
ser reembolsado, isto é, permitiu a bancarrota. 2 5 6 Tácito, An., liv. VI, cap. XVI. (N. do A.)

Capítulo XXII

Continuação do mesmo assunto

Os primeiros romanos não dispunham de nega a avareza dos que emprestavam mas se
leis para regulamentar a taxa de usura2 5 7. Nas diz que os queixosos poderíam pagar se tives­
disputas que surgiram a esse respeito entre ple­ sem tido uma conduta mais regular2 60.
beus e patrícios, na própria sedição2 58 do Faziam-se, portanto, leis que apenas in­
Monte Sagrado, alegou-se, de um lado, apenas fluíam sobre a situação atual: ordenava-se, por
a fé e, de outro, apenas a severidade dos exemplo, que os que se alistassem para a guer­
contratos. ra que se tinha que sustentar não seriam perse­
guidos por seus credores; que os que estives­
Seguiam-se, portanto, as convenções parti­
sem nas çjideias seriam soltos; que os mais
culares; e creio que as mais comuns eram de
indigentes seriam levados para as colônias:
doze por cento ao ano. Digo isso porque, na
algumas vezes abria-se o tesouro público. O
antiga linguagem2 59 dos romanos, o juro a
povo apaziguava-se pelo alívio dos males pre­
seis por cento era chamado metade da usura; o
sentes; e, como nada exigia para o futuro, o se­
juro a três por cento, o quarto da usura; a
nado não cuidava de preveni-lo.
usura total era, pois, o juro a doze por cento. Na época em que o senado defendia com
Se se perguntar como tão grandes usuras tanta constância a causa das usuras, o amor
puderam estabelecer-se entre um povo que pela pobreza, pela frugalidade, pela mediocri­
quase não tinha comércio, diria que este povo, dade, era extremo entre os romanos: mas tal
amiudadamente obrigado a partir sem soldo era a constituição, que os principais cidadãos
para a guerra, tinha muito frequentemente suportavam todos os encargos do Estado e o
necessidade de pedir emprestado e, efetuando baixo povo nada pagava. Qual o meio de pri­
incessantemente expedições bem sucedidas, var aqueles do direito de demandar seus deve­
tinha constantemente facilidade de pagar. Per­ dores e de exigir-lhes que quitem suas obriga-
cebemos isso perfeitamente no relato das ções e concorram para as necessidades
demandas surgidas a esse respeito; aí não se urgentes da república?
Diz Tácito2 61 que a Lei das Doze Tábuas
2 6 7 Usura e juro significavam a mesma coisa entre fixou o juro a um por cento ao ano. Ê claro
os romanos. (N. do A.) que se enganou, e tomou pela Lei das Doze
2 88 Vede Dionísio de Halicarnasso que tão bem a Tábuas outra lei de que vou falar. Se a Lei das
descreveu. (N. do A.)
2 59 Usura sentisses, trientes, quadrantes. Vede, a
esse respeito, os diversos tratados do Digesto e do 2 60 Vede os discursos de Apio, em Dionísio de
Código de usuris e sobretudo a lei 17, com sua nota, Halicarnasso, liv. V. (N. do A.)
na ÍT. de usuris. (N. do A.) 261 An., liv. VI, cap. XVI. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 349

Doze Tábuas regulamentou isso, como, nas permitido2 70 aos devedores agir em conse­
disputas que se travaram depois entre credores quência dessas leis, foi morto pelos credo­
e devedores, não se teria utilizado a sua autori­ res2 71 por ter querido reavivar a lembrança de
dade? Não se encontra nenhum vestígio dessa uma rigidez que não mais se podia sustentar.
lei sobre o empréstimo a juro; e, por menos Deixo a cidade para lançar um olhar sobre
versado que se seja na história de Roma, ver- as províncias.
se-á que semelhante lei não deveria ser obra Disse alhures2 72 que as províncias romanas
dos decênviros. eram devastadas por um governo despótico e
A lei Liciniana2*62, promulgada oitenta e inflexível. Mas isso não é tudo: elas o eram
cinco anos depois da Lei das Doze Tábuas, foi também por usuras horríveis.
uma dessas leis efêmeras às quais nos referi­ Cícero afirma2 73 que a gente de Salamina
mos. Ordenou ela que se subtraísse do capital queria pedir emprestado a Roma e que não
o que fora pago pelos juros, e que o restante podia fazê-lo por causa da lei Gabiniana. É
fosse quitado em três pagamentos iguais. necessário que eu pesquise o que era esta lei.
No ano 398 de Roma, os tribunos Duélio e Quando os empréstimos a juro foram proi­
Menênio fizeram passar uma lei que reduzia os bidos em Roma, foram imaginadas todas as
juros a um2 63 por cento ao ano. É esta lei que espécies de meios para eludir a lei2 7 4, e, como
Tácito2 6 4 confunde com a Lei das Doze Tá­ os aliados2 7 5 e os da nação latina não esta­
buas; e foi a primeira lei feita entre os romanos vam submetidos às leis civis dos romanos,
para fixar a taxa de juro. Dez anos depois2 6 5, recorreu-se a um latino ou a um aliado que
esta«usura foi reduzida à metade2 6 6 : posterior­ emprestava seu nome e era, aparentemente, o
mente, foi completamente suprimida2 6 7, e, a credor. A lei nada mais fizera, portanto, do
darmos crédito a alguns autores que Tito Lívio que submeter os credores a uma formalidade, e
conheceu, isto se passou na época do consu­ o povo não fora aliviado.
lado2 68 de C. Márcio Rutílio e de Q. Servílio, O povo queixou-se desta fraude; e Marcos
no ano 413 de Roma.
Semprônio, tribuno do povo, através da autori­
dade do senado, mandou realizar um plebis­
Aconteceu com esta lei o mesmo que com cito2 7 6 que estipulava que, em matéria de
todas aquelas em que o legislador levou as coi­ empréstimos, as leis que proibiam os emprés­
sas ao excesso: encontrou-se um meio de elu- timos a juro entre um cidadão romano e outro
di-la. Foi preciso fazer muitas outras para seriam válidas igualmente entre um cidadão e
confirmá-la, corrigi-la, moderá-la. Ora foram um aliado, ou um latino.
abandonadas as leis para se seguirem os costu­ Nesse tempo, chamavam-se aliados os
mes2 69, ora foram abandonados os costumes povos da Itália propriamente dita, que se
para se seguirem as leis; porém, neste caso, o estendia até o Arno e o Rubicão e que não era
costume devia prevalecer facilmente. Quando governada como as províncias romanas.
um homem pede emprestado, encontra um Afirma Tácito2 7 7 que sempre se cometiam
obstáculo na própria lei feita em seu favor: novas fraudes contra as leis feitas para pôr
esta lei tem contra si quem ela socorre e quem cobro às usuras. Quando não mais se podia
ela condena. O pretor Semprônio Aselo, tendo emprestar nem pedir emprestado sob o nome
de um aliado, foi fácil fazer aparecer um
2 62 No ano de Roma de 388. Tito Lívio, liv. VI, homem das províncias, que emprestava seu
cap. XXV. (N. do A.) nome.
2 63 Unciaria usura. Tito Lívio, liv. VII, cap. XVI.
(N. do A.)
2 6 4 An., liv. VI, cap. XVI. (N. do A.) 2 70 Permisit eos legibus agere. Apiano, Da Guerra
2 6 5 No consulado de L. Mânlio Torquato e C. Civil, liv. I; e Epítome de Tito Lívio, liv. LXIV. (N.
Plâutio, segundo Tito Lívio, liv. VII, cap. XXVII; e do A.)
trata-se da lei citada por Tácito, An., liv. VI, ibid. 271 No ano de Roma de 663. (N. do A.)
(N. do A.) 2 72 Liv. XI, cap. XIX. (N. do A.)
2 6 6 Semiunciaria usura. (N. do A.) 2 73 Cartas aÁtico, liv. V, carta XXL (N. do A.)
2 6 7 Como diz Tácito, An., liv. VI. (N. do A.) 2 7 4 Tito Lívio, liv. XXXV, cap. VIL (N. do A.)
2 68 A lei foi feita por instigação de Genúcio, tribu­ 2 7 5 Ibid. (N. do A.)
no do povo. Tito Lívio, liv. VII, no final. (N. do A.) 2 7 6 No ano de Roma de 561. Vede Tito Lívio, liv.
2 69 Veteri jam more foenus receptum erat. Apiano, V, cap. VIL (N. do A.)
Da Guerra Civil, liv. I. (N. do A.) 2 7 7 An., liv. VI, cap. XVI. (N. do A.)
350 MONTESQUIEU

Era necessária uma nova lei contra estes Roma; e como cada governador baixava seu
abusos; e Gabínio2*78, estabelecendo a famosa edito ao entrar em sua província283, na qual
lei que tinha como objetivo extirpar a corrup­ estabelecia como lhe agradava a taxa da usura,
ção nos sufrágios, naturalmente deve ter pen­ a avareza ajudava a legislação e a legislação a
sado que o melhor meio para consegui-lo era avareza.
desencorajar os empréstimos: estas duas coi­ Cumpre que os negócios caminhem; e um
sas estavam naturalmente ligadas, pois as usu­ Estado está perdido se tudo aí permanece na
ras sempre aumentavam2 7 9 nas épocas de elei­ inação. Havia ocasiões em que era necessário
ção, porque se necessitava de dinheiro para que as cidades, os corpos, as sociedades das
obter votos. Vemos perfeitamente que a lei cidades, os particulares, emprestassem; e a
Gabiniana estendera o senatus-consulto Sem- necessidade de pedir emprestado era muito
proniano aos provincianos, uma vez que os premente, ainda que fosse para prover às
salaminianos não podiam pedir dinheiro em­ devastações dos exércitos, às rapinagens dos
prestado a Roma por causa desta lei. Bruto, magistrados, às concussões dos homens de
sob nomes emprestados, emprestou-lhes2 80 a negócios e aos maus costumes que se estabele­
quatro por cento ao mês281 e obteve para isso ciam todos os dias; pois nunca se foi nem tão
dois senatus-consultos, no primeiro dos quais rico nem tão pobre. O senado, que tinha o
era dito que este empréstimo não seria conside­ poder executivo, concedia por necessidade,
rado como uma fraude à lei, e que o governa­ amiúde por favor, a permissão de pedir
dor da Cilícia julgaria de conformidade com emprestado dos cidadãos romanos, e estabele­
as convenções assinaladas pelas disposições cia, então, senatus-consultos. Mas esses pró­
dos salaminianos2 82. prios senatus-consultos estavam desacredi­
Sendo o empréstimo a juro proibido pela lei tados pela lei: estes senatus-consultos28 4
Gabiniana entre as pessoas das províncias e os podiam permitir que o povo exigisse novas
cidadãos romanos, e tendo estes, então, todo o tabelas28 5, o que, aumentando o perigo da
dinheiro do universo entre suas mãos, foi perda do capital, aumentava ainda mais a
necessário tentá-los com grandes usuras que usura. Repetirei sempre que é a moderação que
fizessem desaparecer, aos olhos da avareza, o governa os homens e não os excessos.
perigo de perder a dívida. E como havia em Paga menos, diz Ulpiano28 6, quem paga
Roma gente poderosa que intimidava os mais tarde. Foi este princípio que orientou os
magistrados e fazia calar as leis, foram eles legisladores, depois da destruição da república
mais audaciosos em emprestar e mais audacio­ romana.
sos na exigência de grandes usuras. Isto fez
com que as províncias fossem sucessivamente 2 83 O edito de Cícero fixava-a a um por cento por
devastadas por todos os que tinham crédito em mês, com a usura da usura no fim de um ano. Quan­
to aos contratadores da república, obrigava-os a
conceder prazo a seus devedores. Se estes não
2 7 8 No ano 615 de Roma. (N. do A.) pagassem no tempo determinado, adjudicava a
2 7 9 Vede as Cartas de Cícero a Ático, liv. IV, car­ usura estipulada no título de dívida. Cícero a Ático,
tas XV e XVI. £N. do A.) liv. VI, carta I. (N. do A.)
2 80 Cícero aAtico, liv. VI, carta I. (N. do A.) 28 4 Vede o que afirma Lucéio, carta XXI, a Ático,
281 Pompeu, que emprestara ao Rei Ariobarsano liv. V. Houve mesmo um senatus-consulto geral
seiscentos talentos, fazia-se pagar trinta e três talen­ para fixar a usura a um por cento ao mês. Vede a
tos áticos cada trinta dias. Cícero a Ático, liv. V, mesma carta. (N. do A.)
carta XXI; liv. VI, carta I. (N. do A.) 28 5 Novas tabelas. . ., novas leis concernentes às
2 82 Ut neque Salaminis, neque cui eis dedisset, dívidas.
fraudi esset. Ibid. (N. do A.) 28 6 L. 12, ff. De verbor. signif. (N. do A.)
LIVRO VIGÉSIMO TERCEIRO
DAS LEIS NA RELAÇÃO QUE TÊM
COM O NÚMERO DE HABITANTES
Capítulo I

Dos homens e dos animais em relação


à multiplicação de sua espécie

ó Vênus, ó mãe do Amor! Dos rios e dos mares, e dos verdes


[campos,
Ardendo a teu aspecto de amor e de
Desde o primeiro belo dia que teu astro [desejo
[ressuscita, E pondo-se a povoar pela atração do
Os zéfiros fazem sentir seu alento [prazer:
[amoroso, Tanto se ama seguir-te, e a este atraente
A terra orna seu seio de brilhantes cores, [domínio
E o ar é perfumado pelo doce espírito das Que a beleza dá a tudo o que respira2 8 7.
[flores.
Ouvem-se os pássaros, ofuscados com teu
[poder, As fêmeas dos animais têm uma fecundi-
Por mil tons lascivos celebrarem tua dade quase que constante. Mas, na espécie
[presença: humana, a maneira de pensar, o caráter, as
Pela bela novilha vêem-se os soberbos paixões, as fantasias, os caprichos, a idéia de
[touros conservar a beleza, o incômodo da gravidez, o
Saltarem na planície ou atravessarem as de uma família numerosa, perturbam de mil
[águas. maneiras a propagação.
Enfim, os habitantes das florestas e das
[montanhas, 28 7 Lucrécio, no começo. (N. do A.)

Capítulo II

Dos casamentos

A obrigação natural que tem o pai de nutrir Esta obrigação, entre os animais, é tal, que a
seus filhos fez com que se estabelecesse o casa­ mãe pode comumente ser suficiente. Entre os
mento, que declara quem deve cumprir esta homens, ela é muito maior: os filhos são dota­
obrigação. Os povos288 de que fala Pompônio dos de razão, mas esta só lhes chega gradual­
Mela289 o fixavam apenas pela semelhança. mente. Não é suficiente nutri-los; cumpre tam­
Entre os povos bem policiados, o pai é aque­ bém orientá-los: já poderíam viver mas não se
le que as leis, pela cerimônia do casamento, podem governar.
declararam dever ser tal290, porque encontram
As conjunções ilícitas pouco contribuem
nele a pessoa que procuram.
para a propagação da espécie. O pai, que tem a
obrigação natural de alimentar e educar os
288 Os garamantes.
289 Liv. I, cap. VIII. filhos, não é nesse caso fixado, e a mãe, em
290 Pater est quem nuptiae demonstrant. quem recai a obrigação, encontra mil obstácu­
354 MONTESQUIEU

los; pela vergonha, pelos remorsos, pelos incô­ ção são mesmo incompatíveis com sua condi­
modos de seu sexo, pelo rigor das leis: quase ção; e elas são tão corrompidas, que não pode­
sempre faltam-lhe meios. ríam gozar da confiança da lei.
As mulheres que se submeteram à prostitui­ Decorre de tudo isso que a continência pú­
ção pública não podem ter a comodidade de blica está naturalmente unida à propagação da
educar seus filhos. Os cuidados dessa educa­ espécie.

Capítulo III

Da condição dos filhos


É a razão que dita que, quando há um casamento, os filhos sigam a condição do pai; e que,
quando não há, só dependam da mãe2 91.

291 E por isso que, nas nações que têm escravos, o filho segue quase sempre a condição da mãe.

Capítulo IV

Das famílias

Em quase toda parte é admitido que a mu­ uma espécie de propriedade: um homem que
lher passe à família do marido. O contrário tem filhos do sexo que não a perpetua, nunca
está, sem qualquer inconveniente, estabelecido está satisfeito de não ter os do sexo que a
em Formosa292, onde o marido vai formar a perpetua.
família da mulher. Os nomes, que dão aos homens a idéia de
Esta lei, que fixa a família numa série de uma coisa que parece não dever perecer, são
pessoas do mesmo sexo, muito contribui, muito adequados para inspirar em cada famí­
independentemente dos motivos iniciais, para lia o desejo de prolongar sua duração. Há
a propagação da espécie humana. A família é povos nos quais os nomes distinguem as famí­
lias: outros há em que eles só distinguem pes­
2 92 Padre du Halde, t. I, pág. 156. (N. do A.) soas: o que não é tão bom.

Capítulo V

Das diversas ordens de mulheres legítimas

Algumas vezes as leis e a religião estabele­ neste país, exige que os bens que o imperador
ceram várias formas de uniões civis; e isto dá não sejam muito divididos, porque estão
ocorre entre os maometanos, onde há diversas submetidos a uma obrigação, como eram, -
ordens de esposas, cujos filhos são reconhe­ outrora, nossos feudos.
cidos pelo nascimento na casa, ou por contra­ Há países em que uma mulher legítima
tos civis, ou mesmo pela escravidão da mãe e goza, no lar, aproximadamente das honras que
subsequente reconhecimento do pai. tem, em nossos climas, uma mulher única: nes­
Seria contra a razão que a lei condenasse ses países, os filhos das concubinas são consi­
nos filhos o que aprovou nos pais: todos estes derados como pertencentes à primeira esposa.
filhos devem, portanto, herdar, a menos que al­ Isso está assim estabelecido na China. O res­
guma razão particular a isso se oponha, como peito filial2 93, a cerimônia de um luto rigoro-
no Japão, onde apenas podem herdar os filhos
da esposa dada pelo imperador. A política, 293 Padre du Halde, t. II, pág. 121. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 355

so, não são devidos à mãe natural mas à mãe ção não existe, vê-se bem que a lei que legitima
determinada pela lei. os filhos das concubinas é uma lei forçada;
Com auxílio de tal ficção29 4, não hâ mais pois a maioria da nação é que seria aviltada
filhos bastardos; e, nos países em que esta fic
com eia. Igualmente, não se coloca nesses paí­
ses o problema dos filhos adulterinos. As sepa­
2 9 4 Distinguem-se as mulheres em grandes e
pequenas, isto é, em legítimas ou não; mas não exis­ rações das mulheres, a clausura, os eunucos,
te semelhante distinção entre os filhos. “É a grande os aldrabas tornam a coisa tão difícil, que a lei
doutrina do império”, está escrito numa obra chine­
sa sobre a moral, traduzida pelo mesmo padre. (N. a julga impossível. Aliás, o mesmo gládio
do A.) exterminaria a mãe e o filho.

Capítulo VI

Dos bastardos nos diversos governos

Quase não conhecemos, portanto, bastardos onde ela trazia consigo o soberano poder,
nos países em que a poligamia é permitida. faziam-se, amiúde, leis sobre a situação dos
Conhecemo-los nos lugares em que existe a lei bastardos, as quais tinham menos relação com
de uma única mulher. Foi necessário, nesses a própria coisa e com a honestidade do casa­
países, desonrar a concubinagem; foi necessá­ mento do que com a constituição particular da
rio, portanto, desonrar os filhos que dela república. Assim, o povo aceitou, algumas
nasceram. vezes, os bastardos como cidadãos2 9 5, a fim
Nas repúblicas, onde é mister que os costu­ de aumentar sua força contra os poderosos.
mes sejam puros, os bastardos devem ser ainda Destarte, em Atenas, o povo separou os bas­
mais odiosos do que nas monarquias. tardos do número de cidadãos para ter uma
maior porção do trigo que lhe enviara o rei do
Estabeleceram-se, em Roma, disposições
Egito. Enfim, Aristóteles2 9 6 nos ensina que,
talvez muito severas contra eles. Incitando, em muitas cidades, quando não havia um nú­
porém, as instituições antigas todos os cida­
mero suficiente de cidadãos, os bastardos her­
dãos a se casarem, e sendo, aliás, os matrimô­
davam, e que, quando este número era excessi­
nios abrandados pela permissão de repudiar ou
vo, eles não herdavam.
de divorciar, só uma grande corrupção dos
costumes poderia levar à concubinagem.
295 Vede Aristóteles, Política, liv. VI, cap. IV. (N.
Devemos observar que, sendo a qualidade do A.)
de cidadão considerável nas democracias, 29 6 Ibid., liv. III, cap. III. (N. do A.)

Capítulo VII

Do consentimento dos pais para o casamento

O consentimento dos pais está baseado em que a natureza havia já dado aos pais. O amor
seu poder, isto é, em seu direito de proprie­ ao bem público, aí, pode ser tal, que iguale ou
dade; está ainda baseado em seu amor, em sua ultrapasse qualquer outro amor. Assim, Platão
razão e na incerteza da de seus filhos, que a queria que os magistrados regulamentassem os
idade mantém no estado de ignorância, e as casamentos; assim, os magistrados lacedemô-
paixões, no estado de embriaguez. nios os dirigiam.
Nas pequenas repúblicas ou instituições sin­ Porém, nas instituições comuns, cabe aos
gulares às quais nos referimos pode haver leis pais casar seus filhos; sua prudência a esse res­
que conferem aos magistrados uma inspeção peito estará sempre acima de qualquer outra
sobre os casamentos dos filhos dos cidadãos, prudência. A natureza confere aos pais um de­
356 MONTESQUIEU

sejo de proporcionar a seus filhos sucessores que tenham quinze anos se casem; regulamen­
como se fora para si mesmos. Nos diversos tou-se mesmo o tempo do casamento dos
graus de progenitura, eles se vêem avançar indianos a catorze anos para os varões e a
insensivelmente para o futuro. Mas que acon­ treze anos para as jovens. Baseia-se num câno­
teceria se a vexação e a avareza fossem a
ne que diz que a malícia pode suprir a
ponto de usurpar a autoridade dos pais? Escu­
temos Thomas Gage2 9 7 sobre a conduta dos idade”2 98. Presenciou ele um desses censos:
espanhóis nas índias: “Era”, escreve, “uma coisa vergonhosa”.
“Para aumentar o número das pessoas que Assim, na ação do mundo que deve ser a mais
pagam tributo, cumpre que todos os indianos livre, os indianos ainda são escravos.

2 9 7 Relatório de Thomas Gage, pág. 171. (N. do 2 98 Cumpre entender por malícia, neste Malitia
A.) supplet aetatem, a engenhosidade do espírito.

Capítulo VIII

Continuação do mesmo assunto

Na Inglaterra, as jovens abusam frequente­ recurso do celibato; e a lei que lhes ordena
mente da lei para se casar de acordo com seu esperar o consentimento dos pais poderia ser
capricho, sem consultar os pais. Não sei se mais conveniente. Desse ponto de vista, o cos­
esse uso não seria, aí, mais tolerado do que tume da Itália e da Espanha seria o menos
alhures, uma vez que as leis, não tendo estabe­ razoável: o monarquismo existe nesses países e
lecido um celibato monástico, as moças, não pode-se casar sem o consentimento dos
tendo outra situação a escolher além da do pais299.
casamento, não podem a ele recusar-se. Na
França, ao contrário, onde o monarquismo
está estabelecido, as jovens sempre têm o 2 99 Era ainda a legislação do direito canônico.

Capítulo IX

Das moças

As jovens, que só pelo casamento são levadas ao prazer e à liberdade, que têm um espírito que
não ousa pensar, um coração que não ousa sentir, olhos que não ousam ver, ouvidos que não
ousam ouvir, que só se apresentam para se mostrar estúpidas, condenadas incessantemente a futi-
lidades e a preceitos, são muito dadas ao casamento; são os rapazes que se torna necessário
encorajar.

Capítulo X

O que determina o casamento

Em toda parte onde se encontra um lugar Os povos, em seus inícios, se multiplicam e


em que duas pessoas podem viver comoda­ crescem bastante. Seria um grande incômodo
mente, há um casamento. A Natureza a isso para eles viver no celibato; não o é ter muitos
estimula bastante quando não é detida pela filhos. O contrário ocorre quando a nação está
dificuldade da subsistência. formada.
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 357

Capítulo XI

Da severidade do governo

As pessoas que nada possuem, como os tratar-se das doenças; como poderíam educar
mendigos, têm muitos filhos. É que eles se criaturas que estão numa doença contínua, que
encontram na situação dos povos nascentes: é a infância?
nada custa ao pai transmitir sua arte aos filhos É a facilidade de falar, e a impotência de
que são mesmo, ao nascer, instrumento dessa examinar, que leva a dizer que, quanto mais os
arte300. Essas pessoas, num país rico ou súditos são pobres, mais as famílias são nume­
supersticioso, multiplicam-se porque não têm rosas; que quanto mais se está sobrecarregado
os encargos da sociedade, sendo eles próprios de impostos, mais se fica em condição de
os encargos da sociedade. Mas as pessoas que
pagá-los; dois sofismas que sempre perderam e
são pobres apenas porque vivem sob um
que perderão sempre as monarquias.
governo severo, que consideram seu campo
menos como o fundamento de sua subsistência A severidade do governo pode chegar inclu­
do que como um pretexto para a vexação; sive a destruir os sentimentos naturais pelos
essas pessoas, dizia eu, fazem poucos filhos. próprios sentimentos naturais. Pois as mulhe­
Elas não têm nem mesmo seu alimento; como res da América301 não abortavam para que os
poderíam pensar em partilhá-lo? Não podem filhos não tivessem senhores tão cruéis?

300 Isto é, mão-de-obra gratuita. 301 Relatório de Thomas Gage, pág. 58. (N. do A.)

Capítulo XII

Do número de moças e rapazes nos diferentes países


Já disse302 que na Europa nasce um pouco Relatórios30 4 mostram que, em Bantam, há
mais de homens do que de mulheres. Obser- dez moças para um rapaz: semelhante despro­
porção faria com que o número de famílias
vou-se que no Japão303 nascia um pouco mais
estivesse para o número das de outros climas
de mulheres do que de homens. Guardando as como um está para cinco e meio, o que seria
devidas proporções, haverá mais mulheres excessivo. Na verdade, as-famílias aí poderíam
fecundas no Japão do que na Europa, e conse­ ser mais numerosas; mas há poucas pessoas
suficientemente abastadas para poder manter
quentemente mais gente.
uma família tão grande.

302 No liv. XVI, cap. IV. (N. do A.) 30 4 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
303 Vede Kempfer, que relata um recenseamento l 'Etablissement de la Compagnie des Indes, 1.1, pág.
de Meaco. (N. do A.) 347. (N. do A.)

Capítulo XIII

Dos portos de mar

Nos portos de mar, onde os homens se que mulheres; entretanto, vêem-se mais crian­
expõem a mil perigos, e vão morrer ou viver ças do que alhures. Isso é devido à facilidade
em climas longínquos, há menos homens do de subsistência. E talvez mesmo ao fato de
358 MONTESQUIEU

serem as partes oleosas do peixe mais aptas a onde quase só se vive de peixe30 7. Se assim
fornecer esta matéria que serve à geração. Esta fosse, certas regras monásticas, que obrigam a
seria uma das causas deste número infinito de
viver de peixe, seriam contrárias ao espírito do
gente que existe no Japão30 5 e na China30 6,
próprio legislador.
30 5 O Japão é composto de ilhas; há muitas costas
e o mar é muito piscoso. (N. do A.) 30 7 Vede o Padre du Halde, t. II, págs. 130, 142 e
30 6 A China é cheia de regatos. (N. do A.) segs. (N. do A.)

Capítulo XIV

Dos produtos da terra que demandam


maior ou menor número de homens
As regiões de pastagens são pouco povoa­ Os países em que as minas de carvão forne­
das porque poucas pessoas nelas encontram cem matérias próprias para a combustão têm
ocupação; as terras de trigo ocupam mais ho­ esta vantagem sobre os demais: as florestas
mens e os vinhedos infinitamente mais. não são necessárias e todas as terras podem
Na Inglaterra308, lamentava-se amiúde que ser cultivadas.
o aumento das pastagens diminuía os habitan­ Nos lugares onde cresce o arroz, são neces­
tes; e observa-se na França que a grande quan­ sários grandes trabalhos para a irrigação; mui­
tidade dos vinhedos é uma das grandes causas tas pessoas, portanto, podem ser empregadas.
da multidão de homens. E mais: é preciso menos terra para fornecer a
subsistência de uma família do que nos lugares
308 A maioria dos proprietários dos fundos territo­ que produzem outros cereais: enfim, a terra
riais, diz Burnet, obtendo mais lucro na venda da lã
do que do trigo, cercou suas propriedades. As que é utilizada alhures na alimentação dos ani­
comunas (isto é, o povo), que morriam de fome, mais serve imediatamente para a subsistência
sublevaram-se; propôs-se uma lei agrária; o jovem dos homens; o trabalho, que, em outros luga­
rei escreveu mesmo a esse respeito; fizeram-se res, é feito pelos animais, é feito pelos homens:
proclamações contra os que tinham cercado suas
terras. Abrégé de 1’Histoire de la Réform, págs. 44 e e a cultura das terras torna-se, para os homens,
83. (N. do A.) uma imensa manufatura.

Capítulo XV

Do número de habitantes em relação às artes


Quando há uma lei agrária e as terras são sobra, nada os impele a trabalhar no ano
divididas igualmente, o país pode ser muito seguinte: os frutos não seriam consumidos
povoado, apesar de ter poucas artes, pois cada pelos ociosos, pois esses não teriam com que
cidadão encontra no trabalho de sua terra comprá-los. Cumpre, portanto, que as artes se
precisamente com que alimentar-se e todos os estabeleçam para que os frutos sejam consumi­
cidadãos juntos consomem todos os frutos do dos pelos lavradores e artesãos. Numa pala­
país. Isso era assim em algumas antigas vra, estes Estados necessitam que muitas pes­
repúblicas. soas cultivem além do que lhes é necessário.
Mas, em nossos Estados atuais, os fundos Para isto, é preciso incutir-lhes o desejo de
territoriais são distribuídos de modo desigual; possuir o supérfluo; mas apenas os artesãos
produzem mais frutos do que os que cultivam são capazes disso.
são capazes de consumir; e se as artes são Essas máquinas, cujo objetivo é reduzir a
negligenciadas e ninguém se ocupa da agricul­ arte, nem sempre são úteis. Se uma obra é de
tura, o país não pode ser povoado. Tendo os
que cultivam, ou mandam cultivar, frutos de 309 . . .as artes. . . as indústrias em geral.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 359

preço medíocre, e convém igualmente a quem porque fizeram descansar uma infinidade de
a compra e ao operário que a faz, as máquinas, braços, privaram muitas pessoas do uso das
que simplificariam a manufatura, isto é, que águas e fizeram com que muitas terras perdes­
diminuiríam o número de operários, seriam sem a fecundidade31 °.
perniciosas; e, se os moinhos de água não
tivessem sido estabelecidos em toda parte, eu 310 Que teria dito Montesquieu da mecanização
não os acreditaria tão úteis como se afirma, tal como existe hoje?

Capítulo XVI

Dos desígnios do legislador


acerca da propagação da espécie

Os regulamentos sobre o número dos cida­ quais Renaudot nos deu uma relação, ir procu­
dãos dependem muito das circunstâncias. Há rar a opinião312 da metempsicose sobre isso.
países em que a Natureza fez tudo; o legisla­ Os mesmos motivos fazem com que, na ilha
dor, portanto, nada tem a fazer. Por que razão Formosa313, a religião não permita às mulhe­
estimular, com leis, a propagação, quando a res dar à luz antes dos trinta e cinco anos:
fecundidade do clima favorece suficientemente
antes desta idade a sacerdotisa comprime-lhes
o aumento do povo? Algumas vezes o clima é
o ventre e as faz abortar.
mais favorável do que o terreno; o povo se
multiplica e as fomes o destroem; é o caso da
China. Destarte, um pai, nesse país, vende suas 311 Voyages de Dampierre, t. II, pâg. 41.
filhas e expõe seus filhos. As mesmas causas 312 Pág. 167.
313 Vede o Recueil des Voyages qui Ont Servi á
produzem em Tonquim311 os mesmos efeitos; lÉtablissement de la Compagnie des Indes, t. V.
e não se deve, como os viajantes árabes, dos parte I, págs. 182 e 188.

Capítulo XVII

Da Grécia e do número de seus habitantes

Este efeito, que se prende a causas físicas nias31 5; eles se venderam para a guerra, como
em certos países do Oriente, foi, na Grécia, os suíços fazem hoje em dia; nada que pudesse
produzido pela natureza do governo. Os gre­ impedir a excessiva multiplicação dos filhos
gos eram uma grande nação, composta de foi negligenciado.
cidades que tinham, cada uma, seu governo e Havia entre eles repúblicas cuja constitui­
suas leis. Não eram elas mais conquistadoras ção era singular. Povos submetidos eram obri­
do que as da Suíça, da Holanda e da Alema­ gados a fornecer a subsistência aos cidadãos:
nha o são atualmente. Em cada república, o os lacedemônios eram alimentados pelos hilo-
legislador tivera como objetivo a felicidade dos tas; os cretenses, pelos periecos; os tessálios,
pelos penestas. Devia haver apenas um certo
cidadãos interiormente e, exteriormente, uma
número de hbmens livres para que os escravos
força que não fosse inferior à das cidades vizi­
estivessem em condições de lhes garantir a
nhas3 1 4. Com pequeno território e grande feli­ subsistência. Dizemos hoje que é necessário
cidade, era fácil que o número dos cidadãos limitar o número das tropas regulares; ora, a
aumentasse e se tornasse uma carga: desta Lacedemônia era um exército mantido por
maneira, estabeleceram incessantemente colô­
315 Os gauleses, que estavam no mesmo caso, fize­
31 4 Pelo valor, disciplina e exercícios militares. ram o mesmo.
360 MONTESQUIEU

camponeses; cumpria, portanto, limitar este aconselha ele319 fazer com que a mulher abor­
exército; sem isso, os homens livres, que goza­ te antes que o feto adquira vida.
vam de todas as vantagens da sociedade, se te­ O meio infame que empregavam os creten-
riam multiplicado ilimitadamente, e os lavra­ ses para evitar o número excessivo de filhos é
dores teriam sido sobrecarregados. relatado por Aristóteles320; e senti o pudor
Os políticos gregos consagraram-se, pois, horrorizado quando quis citá-lo.
particularmente a regulamentar o número dos Há lugares, narra ainda Aristóteles321, em
cidadãos. Platão31 6 fixa-o em cinco mil e qua­ que a lei transforma os estrangeiros, ou os bas­
renta; e deseja que se detenha ou que se enco­ tardos, ou os que nasceram somente de mãe
raje a propagação, segundo a necessidade, cidadã em cidadãôs, mas, desde que têm bas­
pelas honrarias, pela desonra ou pelas adver­ tante povo, não mais o fazem. Os selvagens do
tências dos anciãos; quer mesmo31 7 que se Canadá queimam seus prisioneiros; mas,
regulamente o número de casamentos de modo quando têm choças vazias a lhes oferecer,
que o povo se refaça sem que a república seja reconhecem-nos como de sua nação.
sobrecarregada. O Cavaleiro Petty supôs, em seus cálculos,
Se a lei do país, diz Aristóteles318, proíbe que um homem na Inglaterra vale o preço pelo
expor os filhos, far-se-á necessário limitar o qual seria vendido em Argel322. Isto só pode
número dos que cada um deve engendrar. Se se ser bom para a Inglaterra: há países em que
têm filhos além do número estipulado pela lei, um homem nada vale; outros há em que vale
menos do que nada.
31 6 Em suas Leis, liv. V. (N. do A.)
31 7 República, liv. V. (N. do A.) 320 Aristóteles faz alusão, na passagem referida
31 8 Polit., liv. VII, cap. XVI. (N. do A.) por Montesquieu, ao homossexualismo que, afirma
319 Ibid.(N. do A.)* ele, teria orientado o legislador.
* Acreditava Aristóteles que o feto só adquiria vida 321 Polít., liv. III, cap. V. (N. do A.)
a partir de um certo momento. 322 Sessenta libras esterlinas. (N. do A.)

Capítulo XVIII

Do estado dos povos antes dos romanos


A Itália, a Sicília, a Ásia Menor, a Espanha, a Gália, a Germânia eram aproximadamente
como a Grécia, repletas de pequenos povos, e regurgitavam de habitantes: não se necessitava de
leis para aumentar seu número.

Capítulo XIX

Despovoamento do universo

Todas essas pequenas repúblicas foram que hoje, sem alguns soldados e alguns escra­
englobadas numa grande, e viu-se insensivel­ vos romanos, não passariam de um deserto.”
mente o universo se despovoar: basta ver o que “Os oráculos desapareceram”, diz Píutar-
eram a Itália e a Grécia antes e depois das co32 4, “porque os lugares onde falavam estão
vitórias dos romanos. destruídos; dificilmente encontrar-se-ão hoje,
“Perguntar-me-ão”, diz Tito Lívio323, na Grécia, três mil guerreiros.”
“onde os volscos puderam encontrar tantos “Não descreverei”, escreve Estrabão32 5, “o
soldados para fazer a guerra, depois de terem Epiro e os lugares circunvizinhos porque essas
sido tantas vezes vencidos. Teria sido preciso regiões estão inteiramente desertas. Este des-
que existisse um povo infinito nessas regiões,
32 4 Obras Morais: Dos oráculos que desapare­
ceram. (N. do A.)
3 2 3 Livro VI, cap. XII. (N. do A.) 32 5 Liv. VII, pág. 496. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 361

povoamento, que começou há muito tempo, disso em Políbio, que diz que Paulo Emílio,
continua todos os dias; de sorte que os solda­ depois de sua vitória, destruiu setenta cidades
dos romanos têm seus acampamentos em do Epiro, levando cento e cinquenta mil
casas abandonadas.” Ele encontra a causa escravos.

Capítulo XX

De como tomou-se necessário aos romanos


fazer leis para a propagação da espécie

Os romanos, destruindo todos os povos, diam, das associações que fizeram, dos direitos
destruíam a si mesmos. Incessantemente na de cidadania que outorgaram, e dessa imensa
ação, no esforço e na violência, gastavam-se, multidão de cidadãos que encontraram em
como uma arma da qual se faz uso sempre. seus escravos. Direi o que fizeram, não para
Não falarei aqui do cuidado que tiveram em reparar a perda de cidadãos, mas a de homens;
conseguir cidadãos32 6, à medida que os per- e, como foram o povo do mundo que melhor
I soube conciliar suas leis com seus projetos,
32 6 Tratei disso nas Considérations sur les Causes não é indiferente examinar o que fizeram a esse
de la Grandeur des Romains, cap. XIII. (N. do A.) respeito.

Capítulo XXI

Das leis dos romanos sobre a propagação da espécie

As antigas leis de Roma muito se esforça­ per, muito contribuíram para dissuadir os
vam em induzir os cidadãos para o casamento. cidadãos do casamento, qur só traz preocupa­
O senado e o povo fizeram amiúde regula­ ções para os que não mais têm atenções para
mentos sobre isso, como disse Augusto na os prazeres da inocência. Tal é o sentido da
arenga citada por Dion32 7. arenga331 que Metelo Numídico fez ao povo,
Dionísio de Halicarnasso328 não pôde crer em sua censura. “Se fosse possível não mais
que, após a morte de trezentos e cinco Fábios, ter mulher, nós nos livraríamos desse mal;
exterminados pelos Veios, só restasse dessa porém, como a Natureza estabeleceu que
raça uma única criança, porque a lei antiga, quase não se pode viver feliz com elas, nem
que ordenava a cada cidadão que se casasse e subsistir sem elas, faz-se necessário ter mais
educasse todos os filhos, ainda estava em consideração por nossa conservação do que
vigor32 9. por satisfações passageiras.”
Independentemente das leis, os censores A corrupção dos costumes destruiu a censu­
visavam aos casamentos; e, segundo as neces­ ra, ela própria estabelecida para destruir a cor­
sidades da república, a isso incitaram pela rupção dos costumes; mas, quando esta cor­
vergonha330 e pelas penas. rupção se tornou geral, a censura não teve
Os costumes, que começavam a se corrom­ mais força332.
As discórdias civis, os triunviratos, as pres­
crições enfraqueceram Roma mais do que
32 7 Liv. LVI. (N. do A.) qualquer guerra por ela travada: sobravam
32 8 Liv. II. (N. do A.)
32 9 No ano de Roma 227. (N. do A.)
330 Vede o que eles fizeram a esse respeito. Tito 331 Encontramo-la em Aulo Gélio, liv. I, cap. VI.
Lívio, liv. XLV; o Epítome de Tito Lívio, liv. LIX; (N. do A.)
Aulo Gélio, liv. I, cap. VI; Valério Máximo, liv. II, 332 Vede o que escrevi no liv. V, cap. XIX. (N. do
cap. IX. (N. do A.) A.)
362 MONTESQUIEU
poucos cidadãos333, e a maior parte não era nas procurais a paz em vossos desregramentos.
casada. Para remediar este último mal, César e Citareis, aqui, o exemplo das virgens Vestais?
Augusto restabeleceram a censura e quiseram Por conseguinte, se vós não obedeceis às leis
mesmo33 4 ser censores. Fizeram diversos da pudicícia, far-se-á necessário punir-vos
regulamentos: César33 5 ofereceu recompensas como elas. Sois igualmente maus cidadãos,
aos que tivessem muitos filhos; proibiu33 6 as quer todos imitem vosso exemplo, quer nin­
mulheres que tivessem menos de quarenta e guém o siga. Meu único objetivo é a perpetui-
cinco anos, e que não possuíssem nem maridos dade da república. Aumentei os castigos dos
nem filhos, de usarem pedras preciosas e se que não obedeceram; e, com relação às recom­
servirem de liteiras: método excelente de ata­ pensas, elas são tais que não me consta que a
car, pela vaidade, o celibato. As leis de virtifde tenha tido maiores alguma vez: há
Augusto3 3 7 foram mais incisivas; impôs338 menores que estimulam mil pessoas a arriscar
penas novas aos que não eram casados e a vida; e estas não vos incitariam a casar e a
aumentou as recompensas dos que o eram e nutrir os filhos?”
dos que possuíam filhos. Tácito chamou estas Instituiu ele a lei Júlia, derivada do seu
leis de Júlias339. Parece que nelas se tinham nome, e a lei Pápia Popéia, do nome dos côn­
fundido os antigos regulamentos feitos pelo sules3 42 de uma parte daquele ano. A extensão
senado, pelo povo e pelos censores. do mal transparecia na própria eleição desses:
A lei de Augusto encontrou mil obstáculos; Dion3 43 diz-nos que eles não eram casados e
e, trinta e quatro anos3 40 depois que foi feita, não tinham filhos.
os cavaleiros romanos exigiram sua revoga­ Esta lei de Augusto foi propriamente um có­
ção. Ele fez com que se colocassem, de um digo de leis e um corpo sistemático de todos os
lado, os que eram casados e, de outro, os que regulamentos que podiam ser feitos sobre este
não o eram: estes últimos apareceram em assunto. Nela refundiram-se as leis Júlias3 4 4 e
maior número, o que surpreendeu os cidadãos deu-se-lhes mais força; têm tantos desígnios,
e os confundiu. Augusto, com a gravidade dos influem sobre tantas coisas, que formam a
antigos censores, assim lhes falou3 41: mais bela parte das leis civis dos romanos.
“Enquanto as moléstias e as guerras nos Encontram-se trechos dispersos delas3 4 5
tiram tantos cidadãos, que acontecerá à cida­ nos preciosos fragmentos de Ulpiano, nas leis
de, se não se contraem mais casamentos? A ci­ do Digesto extraídas dos autores que escreve­
dade não consiste nas casas, nos pórticos, nas ram sobre as leis Papianas; nos historiadores e
praças públicas: são os homens que fazem a outros autores que as citaram; no código Teo-
cidade. Não vereis, como nas fábulas, homens dosiano que as ab-rogou; nos padres que as
saírem de debaixo da terra para cuidar de vos­ censuraram, sem dúvida com louvável zelo
sos negócios. Não é para viver sós que vos pelas coisas da outra vida, mas com pouquís­
conservais no celibato: cada um de vós tem simo conhecimento dos negócios desta vida.
companheira para a mesa e para o leito, e ape­ Estas leis tinham muitos itens e trinta e
cinco deles são conhecidos3 4 6. Mas, indo ao
meu assunto da maneira mais direta possível,
333 Após a guerra civil, tendo César mandado
fazer o censo, encontraram-se apenas cento e cin­ começarei pelo item que Aulo Gélio3 4 7 nos
quenta mil chefes de família. Epítome de Floro informa ser o sétimo e que diz respeito às hon­
sobre Tito Lívio, Década XII. (N. do A.) rarias e às recompensas concedidas por esta
33 4 Vede Dion, liv. XLIII, e Xifil., in August. (N. lei.
do A..) Os romanos, originários na maioria das cída-
33 5 Dion, liv. XLIII, cap. XXV; Suetônio, Vida de
César, cap. XX; Apiano, liv. II, Da Guerra Civil.
(N. do A.) 3 42 Marcus Papius Mutilus et Q. Poppoeus Sabi-
33 6 Eusébio, em sua Crônica. (N. do A.) nus. Dion, liv. LVI. (N. do A.)
3 3 7 Dion, liv. LIV, cap. XVI. (N. do A.) ’343 Dion, liv. LVI. (N. do A.)
33 8 No ano 736 de Roma. (N. do A.)
33 9 Julias rogationes, An., liv. III, cap. XXV. (N. 3 4 4 O título XIV dos Fragmentos de Ulpiano dis­
do A.) tingue perfeitamente a lei Júlia da Pápia. (N. do A.)
3 40 No ano 762 de Roma. Dion, liv. LVI, cap. I. 3 4 5 Jacques Godefroi compilou-as. (N. do A.)
(N. do A.) 3 4 6 O trigésimo quinto é citado na lei 19, ff. de ritu
341 Abreviei esta arenga que é de uma extensão nuptiarum. (N. do A.)
enfadonha; Dion relata-a no livro LVI. (N. do A.) 3 4 7 Liv. II, cap. XV. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 363

des latinas que eram colônias lacedemônias3*48 Se havia recompensas, havia também casti­
que tinham inclusive extraído destas cida­ gos3 60. Os que não eram casados nada po­
des349 uma parte de suas leis, tiveram pela diam receber pelo testamento dos estrangei­
velhice, como todos os lacedemônios, o res­ ros3 61; e os que, sendo casados, não tinham
peito que concede todas as honrarias e todas filhos apenas recebiam a metade3 62. Os roma­
as deferências. Quando faltaram cidadãos à nos, diz Plutarco3 63, casavam-se para ser her­
república, concederam-se ao casamento e ao deiros e não para ter herdeiros.
número de filhos as prerrogativas que se ha­ As vantagens que marido e mulher se po­
viam outorgado à idade3 50, atribuindo-se diam conceder pelo testamento eram limitadas
algumas só ao casamento, independentemente pela lei. Se tinham filhos, podiam deixar tudo
dos filhos que dele poderíam nascer: isto cha- para o outro3 6 4; se não os tinham, podiam
mava-se o direito dos maridos. Atribuíram-se receber a décima parte da sucessão, por causa
outras aos que tinham filhos, e maiores aos do casamento; e, se tinham filhos de outro
que tinham três filhos. Não devemos confundir casamento, podiam doar-se tantos décimos
estas três coisas. Existiam privilégios dos quais quantos filhos tivessem.
as pessoas casadas sempre gozaram, como, Se um marido se afastava3 6 5 de sua esposa
por exemplo, um lugar particular no teatro3 51; por outro motivo que não por negócios da
existiam outros de que só gozavam quando os república, não podia ser herdeiro.
que tinham filhos, ou aqueles que os tinham A lei concedia ao marido ou à esposa que
em maior quantidade, não Ihos tiravam, sobrevivesse o prazo de dois anos3 6 6 para tor­
i nar a casar, e um ano e meio em caso de divór­
Esses privilégios eram muito amplos. As
pessoas casadas que tinham maior número de cio. Os pais que não quisessem casar os filhos,
filhos eram sempre preferidas3 52, seja na soli­ ou outorgar um dote às filhas, a isso eram coa­
citação de honrarias, seja no exercício dessas gidos pelos magistrados3 6 7.
próprias honrarias. O cônsul que tivesse mais Não se podia contratar casamento se esse
filhos recebia, em primeiro lugar, os fasces3 53 ; devesse ser adiado por mais de dois anos3 68;
tinha a escolha das províncias3 S4; o senador e, como não se podia desposar uma jovem
que tinha mais filhos era o primeiro no catá­ senão aos doze anos, não se podia contratar
logo dos senadores; no senado, era o primeiro seu casamento senão aos dez. A lei não queria
a opinar3 5 5. Podia-se alcançar, antes da idade, que se pudesse fruir inutilmente3 69, sob pre-
a magistratura, pois cada filho dispensava um
ano3 5 6. Em Roma, quem tivesse três filhos es­ 3 6° Vede os Fragmentos de Ulpiano, nos títs. XIV,
tava isento de todos os tributos pessoais3 5 7. XV, XVI, XVII e XVIII, que são um dos belos tre­
As mulheres ingênuas que tivessem três filhos chos da antiga jurisprudência romana. (N. do A.)
3 61 Sozom., liv. I, cap. IX. Recebia-se dos paren­
e as libertas que tivessem quatro saíam358 tes; Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § I. (N. do A.)
desta tutela perpétua em que as retinham3 59 as 3 62 Sozom., liv. I, cap. IX e leg, unic., cod. Teodos.
antigas leis de Roma. De infirm. paenis coelib. et orbitat. (N. do A.)
3 63 Obras Morais: Do amor dos pais para com os
filhos. (N. do A.)
3 48 Dionísio de Halicarnasso. (N. do A.) 3 6 4 Vede mais longo pormenor disso nos Fragmen­
3 49 Os deputados de Roma, enviados para estudar tos de Ulpiano, tít. XV e XVI. (N. do A.)
leis gregas, foram a Atenas e às cidades da Itália. 3 6 5 Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § I. (N. do A.)
(N. do A.) 3 6 6 Fragm. de Ulpiano, tít. XIV. Parece que as pri­
3 50 Aulo Gélio, liv. II, cap. XV. (N. do A.) meiras leis Júlias concederam três anos. Arenga de
3 51 Suetônio, in Augusto, cap. XLIV. (N. do A.) Augusto, em Dion, liv. LVI; Suetônio, Vida de
3 52 Tácito, An., liv. II, cap. CLI. Ut numerus libe- Augusto, cap. XXXIV. Outras leis Júlias apenas
rorum in candidatis praepolleret, quod lex jubebat. concederam um ano; finalmente a, lei Papiana con­
(N. do A.) cedeu dois: Fragm. de Ulpiano, tít. XIV. Essas leis
3 53 Aulo Gélio, liv. II, cap. XV. (N. do A.) não eram do agrado do povo, e Augusto as mode­
3 5 4 Tácito, An., liv. XV, cap. XIX. (N. do A.) rava ou as tornava mais rígidas segundo se estivesse
3 5 5 Vede a lei 6, § 5, ff. de decurion. (N. do A.) mais ou menos disposto a suportá-las. (N. do A.)
3 5 6 Vede a lei 2, ff. de minorib. (N. do A.) 3 6 7 Tratava-se do trigésimo quinto item da lei
3 5 7 Lei I, § 3, e a lei 2, ff. de vacat et excusat, Papiana, I, 19, ff. de ritu nuptiarum. (N. do A.)
muner. (N. do A.) 3 68 Vede Dion, liv. LIV, ano 736; Suetônio in
3 58 Fragmentos de Ulpiano, tít. XXIX, § 3. (N. do Octavio, cap. XXXIV. (N. do A.)
A.) . 3 69 Vede Dion, liv. LIV; e, no mesmo Dion, a
3 59 Plutarco, Vida de Numa. (N. do A.) arenga de Augusto, liv. LVI. (N. do A.)
364 MONTESQUIEU
texto de desposório, dos privilégios das pes­ res corrigiam, a este respeito, as desordens que
soas casadas. apareciam, ou as impediam de surgir.
A um homem de sessenta anos3 70 era proi­
bido desposar uma mulher de cinquenta. Tendo Constantino3 78 feito uma lei pela
qual ele incluía na proibição da lei Papiana
Como se outorgaram grandes privilégios às
pessoas casadas, a lei não queria que houvesse não somente os senadores mas também os que
tivessem um posto importante no Estado, sem
casamentos inúteis. Pela mesma razão, o
senatus-consulto Calvisiano3 71 declarava de­ falar dos que eram de condição inferior, isto
sigual o casamento de uma mulher que tivesse constituiu o direito daquela época; apenas aos
mais de cinquenta anos com um homem de ingênuos, abrangidos pela lei de Constantino,
menos de sessenta; de sorte que uma mulher tais casamentos foram proibidos. Justinia-
que tivesse cinqüenta anos não podia casar no3 79 ab-rogou também a lei de Constantino,
sem incorrer nas penalidades dessas leis. Tibé­ e permitiu a todos os tipos de pessoas contrair
rio acentuou3 72 o rigor da lei Papiana e proi­ esses casamentos; é em conseqüência disso que
biu a um homem de sessenta anos esposar uma adquirimos uma liberdade tão triste.
mulher de menos de cinqüenta; de modo que E claro que as penas infligidas contra os que
um homem de sessenta anos não podia casar- se casavam contra a proibição da lei eram as
se, em nenhum caso, sem incorrer na pena; mesmas que as infligidas aos que não se casa­
mas Cláudio3 73 ab-rogou o que havia sido vam. Esses casamentos não lhes davam nenhu­
feito, na época de Tibério, a este respeito. ma vantagem civil3 80 : o dote381 ficava ca­
Todas estas disposições eram mais confor­ duco382 depois da morte da mulher.
mes ao clima da Itália do que ao do Norte, Tendo Augusto adjudicado ao tesouro383
onde um homem de sessenta anos tem ainda público as sucessões e os legados dos que estas
força, e onde as mulheres de cinqüenta anos leis declaravam incapazes, tais leis foram antes
geralmente não são estéreis. fiscais do que políticas e civis. A aversão que
Para que não se ficasse inutilmente limitado já se sentia por um encargo que parecia
na escolha que se pudesse fazer, Augusto per­ acabrunhador foi aumentada pelo de se ver
mitiu a todos os ingênuos que não fossem continuamente exposto à avidez do fisco. Isto
senadores3 7 4 desposar libertas3 7 5. A lei3 7 6 fez com que, na época de Tibério, se fosse obri­
Papiana interditava aos senadores o casa­ gado a modificar38 4 essas leis, que Nero dimi­
mento com mulheres que tivessem sido liber­ nuísse a recompensa dos3 8 5 delatores ao fisco,
tas, ou que se tivessem exibido em teatro; e, no que Trajano38 6 detivesse as extorsões desses,
tempo de Ulpiano3 7 7, era proibido aos ingê­ que Severo38 7 modificasse essas leis e que os
nuos o casamento com mulheres que tivessem jurisconsultos as considerassem odiosas e, em
tido má vida, que se tivessem exibido em tea­ suas decisões, abandonassem seu rigor.
tro, ou que tivessem sido condenadas por um
julgamento público. Era necessário que isso
3 78 Vede a lei I, no código de nat. lib. (N. do A.)
tivesse sido estabelecido por algum sepatus- 3 79 Novela, 117. (N. do A.)
consulto. Na época da república quase não se 380 Lei 37, § 7, de oper. libert.; Fragm. de Ulpiano,
fizeram essas espécies de leis, porque os censo­ tít. XVI, § 2. (N. do A.)
3 81 Fragm., ibid. (N. do A.)
3 82 Vede a este respeito o cap. XIII do liv. XXVI.
3 70 Fragm. de Ulpiano, tít. XVI; e a lei 27, cod. de (N-. do A.)
nupiiis. (N. do A.) 383 Exceto em determinados casos. Vede os
3 71 Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § 3. (N. do A.) Fragm. de Ulpiano, tít. XVIII; e a lei única, no cód.
3 72 Vede Suetônio, in Cláudio, cap. XXIII. (N. do de caduc. tollend. (N. do A.)
A.) 38 4 Relatum de moderando Papia Poppaea. Táci­
3 73 Vede Suetônio, Vida de Cláudio, cap. XXIII; e to, An., liv. III, cap. XXV. (N. do A.)
os Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § 3. (N. do A.) 3 8 B Reduziu-as à quarta parte. Suetônio, in Nero-
3 7 4 Dion, liv. LIV; Fragm. de Ulpiano, tít. XIII. ne, cap. X. (N. do A.)
(N. do A.) 38 6 Vede o Panegírico de Plínio. (N. do A.)
3 7 5 Arenga de Augusto, em Dion, liv. LVI. (N. do 38 7 Severo adiou até vinte e cinco anos para os ho­
A.) mens e vinte para as mulheres o tempo das disposi­
3 7 6 Fragm. de Ulpiano, cap. XIII; e a lei 44, na ff. ções da lei Papiana, como percebemos ao cotejar os
de ritu nuptiarum, no final. (N. do A.) Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, com o que diz Tertu-
3 7 7 Fragm. de Ulpiano, tít. XIII e XIV. (N. do A.) liano, Apologet., cap. IV. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 365

Aliás, os imperadores abrandaram essas Um panegirista de Constantino3 9 6 diz a


leis388 pelos privilégios que deram dos direitos este imperador: “Vossas leis só foram feitas
de maridos, filhos, e de três filhos. Fizeram para corrigir os vícios e regulamentar os costu­
mais: dispensaram os particulares389 das mes; abolistes o artifício das antigas leis que
penas dessas leis. Entretanto, regras estabele­ pareciam não ter outros objetivos senão o de
cidas para a utilidade pública pareciam não preparar armadilhas para a simplicidade”.
dever admitir dispensa. É indiscutível que as modificações de Cons­
Fora razoável conceder o direito de filhos às tantino foram feitas, ou sobre idéias que se
Vestais390, que a religião mantinha numa vir­ relacionavam com o estabelecimento do cris­
gindade necessária: outorgou-se391 igual­ tianismo, ou sobre idéias tomadas de sua
mente o privilégio dos maridos aos soldados, perfeição. Deste primeiro objetivo vieram
uma vez que eles não podiam casar. Era costu­ essas leis que concederam tal autoridade aos
me isentar os imperadores do incômodo de bispos, que elas foram o fundamento da juris­
certas leis civis. Assim, Augusto foi isento do dição eclesiástica: daí essas leis que enfraque­
embaraço da lei que limitava a faculdade392 ceram a autoridade paterna39 7, retirando do
de libertar, e da que limitava a faculdade3 93 de pai a propriedade dos bens dos filhos. Para
legar. Tudo isso não passava de casos particu­ propagar uma nova religião é necessário supri­
lares; porém, posteriormente, as dispensas mir a extrema dependência dos filhos, que
foram outorgadas sem circunspecção, e a regra sempre se prendem menos ao que está estabele­
não foi mais do que uma exceção. cido.
Seitas filosóficas haviam introduzido no As leis feitas com a finalidade da perfeição
império um espírito de negligência para com cristã foram sobretudo aquelas pelas quais ele
os negócios, que não teria podido atingir este suprimiu as penas das leis Papianas3 98, isen­
ponto no tempo da república3 9 4, onde todos se tando tanto os que não eram casados como os
ocupavam das artes da guerra e da paz. Daí que, sendo casados, não possuíam filhos.
uma idéia de perfeição relacionada a tudo o “Estas leis foram estabelecidas”, diz um
que conduz a uma vida especulativa; daí a historiador399 eclesiástico, “como se a multi­
aversão pelos cuidados e peias de uma família. plicação da espécie humana pudesse ser resul­
A religião cristã, vindo depois da filosofia, tado de nossos cuidados, em vez de verificar se
fixou, por assim dizer, as idéias que esta não fi­ este número cresce e decresce segundo a ordem
zera mais do que preparar. da Providência.”
O cristianismo deu seu caráter à jurispru­ Os príncipes da religião muito influíram
dência, pois o império sempre teve relação sobre a propagação da espécie humana: ora a
com o sacerdócio. Podemos ver o código estimularam, como entre os judeus, os maome­
Teodosiano, que não passa de uma compilação tanos, os guebros, os chineses; ora a prejudica­
das ordenanças dos imperadores cristãos3 9 5. ram, como fizeram entre os romanos tornados
cristãos.
388 P. Cipião, censor, em sua arenga ao povo Não se cessou de pregar em toda parte a
sobre os costumes, lamenta o abuso que já se intro­ continência, isto é, a virtude mais perfeita,
duzira; que ao filho adotivo se concedesse o mesmo pois, por sua natureza, ela deverá ser praticada
privilégio que ao filho natural, Aulo Gélio, liv. V,
cap. XIX. (N. do A.) por pouquíssimas pessoas.
3 89 Vede a lei 31, ff. de ritu nuptiarum. (N. do A.) Constantino não abolira as leis decimárias
390 Augusto, pela lei Papiana, deu-lhes o mesmo que davam maior extensão às doações que ma­
privilégio que às mães. Vede Dion, liv. LVI. Numa rido e mulher podiam se fazer na proporção do
lhes havia dado o antigo privilégio das mulheres que
tinham três filhos, que é de não ter curador. Plutar­
co, na Vida de Numa. (N. do A.) 3 9 6 Nozaire, in Panegyrico Constantini, ano 32L
391 Cláudio concedeu-lhos. Dion, liv. LX. (N. do (N. do A.)
A.) 39 7 Vede as leis do cod. Teod., de bonis maternis,
392 Apud eum, ff. de manumissionib.,§ I. (N. do maternique generis etc., e a lei única, no mesmo có­
A.) digo, de bonis quae filiis famil. acquiruntur. (N. do
393 Dion, liv. LVI. (N. do A.) A.)
39 4 Vede nos Ofícios de Cícero, liv. I, suas idéias 3 98 Lei única, cod. Teod., de infirm. poen. coelib.
sobre este espírito de especulação. (N. do A.) et orbit. (N. do A.)
39 5 Este código data de 438. 3 99 Sozomeno, liv. I, cap. IX. (N. do A.)
366 MONTESQUIEU

número de filhos; Teodósio, o Jovem, ab-ro­ expressa dos privilégios e das honrarias que os
gou400 também essas leis. romanos pagãos tinham concedido aos casa­
Justiniano declarou válidos401 todos os mentos e ao número de filhos; mas, onde o
casamentos que as leis Papianas proibiram. celibato tivesse preeminência, não mais podia
Essas leis exigiam que se recasasse; Justia- haver honrarias para o casamento; e, apesar de
niano402 concedeu vantagens aos que não tor­ que se pudessem obrigar os contratadores a
navam a casar-se. renunciar a tantos lucros pela abolição das
Pelas antigas leis, a faculdade natural que penas, percebe-se que foi ainda mais fácil
cada pessoa possui de se casar e ter filhos não suprimir as recompensas.
podia ser abolida. Assim, quando se recebia
A mesma razão de espiritualidade, que per­
um legado403 com a condição de não casar,
mitira o celibato, impôs, em breve, a necessi­
quando um senhor fazia seu liberto jurar40 4
dade do próprio celibato. Que Deus não me
que não se casaria, e que não teria filhos, a lei
Papiana anulava40 5 tanto está condição como permita falar aqui contra o celibato que a reli­
este juramento. As cláusulas, conservando viu­ gião adotou; mas quem poderá silenciar contra
vez, estabelecidas entre nós contradizem, por­ aquele que a libertinagem formou? Aquele em
tanto, o direito antigo, e se originam das que dois sexos, corrompendo-se pelos próprios
constituições dos imperadores, estabelecidas sentimentos naturais, evitam uma união que
sobre as idéias da perfeição. deve torná-los melhores, para viverem na que
Não há lei que contenha uma ab-rogação os torna sempre piores?
E uma regra extraída da Natureza que,
400 Leis 2 e 3, cód. Teod., de jure lib. (N. do A.) quanto mais se diminui o número dos casa­
401 L. Sancimo, cód. denupfiis. (N. do A.) mentos que poderíam ser contraídos, mais se
4 0 2 f^ov [27, cap. TI, Nov. '117, cap. V. (N. do A.) corrompem os que são feitos; quanto menos
403 Lei 54, ff. de condit, et demonst. (N. do A.) pessoas casadas houver, menos haverá fideli­
40 4 Lei 5, § 4, de jure patronat. (N. do A.)
40 5 Paulo, nas Sentenças, liv. III, tít. IV, § 15. (N. dade nos casamentos; como, quando há mais
do A.) ladrões, há mais roubos.

Capítulo XXII

Da exposição dos filhos

Os primeiros romanos tiveram uma polícia nasso408 que a lei que ordenava aos cidadãos
muito boa acerca da exposição dos filhos. Rô- que se casassem e educassem todos os filhos
mulo, diz Dionísio de Halicarnasso40 6, impôs estava em vigor no ano 277 de Roma; vemos
a todos os cidadãos a necessidade de educar que o uso restringira a lei de Rômulo, que per­
todos os filhos masculinos e as filhas primogê­ mitia expor as filhas mais novas.
nitas. Se os filhos eram disformes ou mons­ Não temos conhecimento do que a Lei das
truosos, ele permitia que fossem expostos, de­ Doze Tábuas, estabelecida no ano 301 de
pois de os ter mostrado a cinco dos vizinhos Roma, estatuiu sobre a exposição dos filhos,
mais próximos. senão por um trecho de Cícero 409 que, falan­
Rômulo não permitiu40 7 que se matasse do a respeito do tribunato do povo, diz que,
qualquer criança que tivesse menos de três logo depois do nascimento, esse foi sufocado
anos: com isso conciliava a lei que outorgava tal como a criança monstruosa da Lei das
aos pais o direito de vida e morte sobre os Doze Tábuas: os filhos que não eram mons­
filhos, e a que proibia que esses fossem truosos eram, portanto, conservados, e a Lei
expostos. das Doze Tábuas em nada modificou as insti­
Vemos também em Dionísio de Halicar- tuições precedentes.

40 6 Antiguidades Romanas, liv. II. (N. do A.) 408 Liv. IX. (N. do A.)
40 7 Ibid. (N. do A.) 409 Liv. III, de legib., cap. XIX. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS IV 367

“Os germanos”, narra Tácito410, “não riquezas partilhadas foram denominadas po­
expõem seus filhos; e, entre eles, os bons costu­ breza, quando o pai acreditou ter perdido o
mes têm mais força do que as boas leis têm que dava à sua família, e desligou esta família
alhures.” Havia, pois, entre os romanos, leis de sua propriedade.
contra este uso, mas não eram observadas.
Não encontramos nenhuma lei411 romana que
permita a exposição dos filhos; foi sem dúvida 410 De Morib. Germ., cap. XIX. (N. do A.)
411 Não há título a este respeito no digesto: o títu­
um abuso introduzido nos últimos tempos, lo do código nada diz a este respeito, tal como as
quando o luxo aboliu o bem-estar, quando as novelas. (N. do A.)

Capítulo XXIII

Do estado do universo depois


da destruição dos romanos

Os regulamentos que os romanos fizeram nham aniquilado: dir-se-ia que eles só tinham
para aumentar o número de seus cidadãos tive­ conquistado o mundo para enfraquecê-lo e
ram resultado enquanto sua república, no auge para entregá-lo indefeso aos bárbaros. As
de seu poderio, só teve que reparar as perdas nações godas412, géticas, sarracenas e tártaras
que sofria por sua coragem, por sua audácia, oprimiram-nos sucessivamente; em breve, os
por sua firmeza, por seu amor à glória e por povos bárbaros não tiveram para destruir
sua própria virtude. Mas logo as leis mais sá­ senão povos bárbaros. Destarte, no tempo das
bias não puderam restabelecer o que uma repú­ fábulas, depois das inundações e dos dilúvios,
blica moribunda, o que uma anarquia geral, o saíram da terra homens armados que se
que um governo militar, o que um império exterminaram.
duro, o que um despotismo soberbo, o que
uma monarquia fraca, o que uma corte estúpi­ 41 2 Godas, isto é, no vocabulário de Montesquieu,
da, idiota e supersticiosa sucessivamente ti­ germânicas.

Capítulo XXIV

Transformações ocorridas na Europa

No estado em que se encontrava a Europa, adquiridos sobre o comércio, o grande número


não se terià acreditado que ela pudesse resta- de guerras e querelas que surgiram incessante­
belecer-se; sobretudo quando, na época de mente, houve na maior parte das regiões da
Carlos Magno, não formou mais do que um Europa uma população maior do que nelas
vasto império. Mas, pela natureza do governo existe atualmente41 3.
de então, ela se dividiu numa infinidade de Não tenho tempo de tratar a fundo desta
pequenas soberanias. E, como um senhor resi­ matéria; mas citarei os prodigiosos exércitos
dia em sua vila ou em sua cidade, que não era das cruzadas, compostos de pessoas de toda
grande, rica, poderosa — que digo? —, como espécie. Pufendorff41 4 escreve que, na época
só ficava em segurança graças ao número de de Carlos IX, havia vinte milhões de homens
seus habitantes, cada um dedicou-se com sin­ na França.
gular atenção a fazer florescer sua pequena
terra: o que se conseguiu de tal modo, que, 413 Esta afirmação é, pelo menos, imprudente;
nada possuíamos de exato sobre esta questão.
malgrado as irregularidades do governo, a 41 4 História do Universo, cap. V, da França. (N.
falha dos conhecimentos que foram depois do A.)
368 MONTESQUIEU

Foram as perpétuas junções de vários de; cada parte do Estado era um centro de
pequenos Estados que produziram essa dimi­ poder; hoje, tudo se relaciona a um centro e
nuição. Outrora, cada povoado da França era este centro é, por assim dizer, o próprio
uma capital; atualmente, apenas há uma gran­ Estado.

Capítulo XXV

Continuação do mesmo assunto

É verdade que a Europa tem, há dois sécu­ do particular que praticasse sozinho uma gran­
los, aumentado muito sua navegação; isto lhe de navegação. Esse Estado aumentaria sua
proporcionou habitantes e fez com que os per­ população, porque todas as nações vizinhas vi­
ríam participar desta navegação; acorreríam
desse. A Holanda envia todos os anos, às ín­
marinheiros de todos os lados. A Europa,
dias, grande número de marinheiros, dos quais separada do resto do mundo pela religião41 5,
apenas dois terços retornam; o resto perece ou por vastos mares e por desertos, não se repara
se estabelece nas índias: a mesma coisa deve assim.
acontecer às outras nações que praticam este
comércio. 415 Os países maometanos cercam-na por quase
Não se deve julgar a Europa como um Esta­ todos os lados. (N. do A.)

Capítulo XXVI

Consequências

Devemos concluir de tudo isso que a Euro­ cidadãos que pesavam 41 6 à república, os polí­
pa está, ainda hoje, na situação de ter necessi­ ticos de hoje não nos falam senão de meios
dade de leis que favoreçam a propagação da adequados a aumentá-los.
espécie humana: assim, como os políticos gre­
gos nos falam sempre deste grande número de 416 ... que pesavam. . . que molestavam.

Capítulo XXVII

Da lei feita na Europa para


estimular a propagação da espécie

Luís XIV ordenou41 7 certas pensões para que tivessem doze. Mas não se tratava de
os que tivessem dez filhos, e maiores para os recompensar prodígios. Para favorecer um
certo espírito geral que induzisse à propagação
da espécie, teria sido necessário estabelecer,
41 7 Edito de 1666, em favor dos casamentos. (N. como os romanos, recompensas gerais ou
do A.) penas gerais.
DO ESPÍRITO DAS LEIS IV 369

Capítulo XXVIII
Como se pode remediar o despovoamento
Quando um Estado se encontra despovoado tarde; os homens, em seus desertos, encon-
por acidentes particulares, guerras, pestes, tram-se sem coragem e sem indústria. Com ter­
fomes, há recursos. Os homens que sobram ras para nutrir um povo, mal se tem com que
podem conservar o espírito de trabalho e de alimentar uma família. O baixo povo, nesses
indústria; podem procurar reparar suas des­ países, não tem mesmo quinhão em sua misé­
graças e tornar-se mais industriosos em conse­ ria, isto é, nos terrenos baldios de que estão
quência da própria calamidade. O mal é quase cheios. O clero, o príncipe, as cidades, os
incurável quando o despovoamento vem de poderosos, alguns cidadãos principais torna­
longa data, por um vício interno e um mau ram-se insensivelmente proprietários de toda a
governo. Os homens, neste caso, perecem por região: ela é inculta, mas as famílias destruídas
uma enfermidade insensível e habitual: nasci­ deixaram-lhes suas pastagens, e o homem de
dos no langor e na miséria, na violência ou nos trabalho nada tem.
preconceitos do governo, viram-se destruir, Nesta situação seria necessário fazer, em
amiúde sem perceber as causas de sua destrui­ toda a extensão do império, o que os romanos
ção. Os países devastados pelo despotismo ou faziam numa parte do seu: observar na escas­
pelas prerrogativas excessivas do clero sobre sez o que observavam na abundância; distri­
os laicos são dois grandes exemplos disso 41 8. buir terras a todas as famílias que nada têm;
Para restabelecer um Estado despovoado proporcionar-lhes os meios de desbravá-las e
desta maneira, esperar-se-ia inutilmente o cultivá-las. Essa distribuição deveria fazer-se
auxílio dos filhos que poderíam nascer. É na medida em que houvesse um homem para
recebê-la; de modo que não houvesse um só
418 Possível alusão à Espanha e à Itália. momento perdido para o trabalho.

Capítulo XXIX
Dos hospitais

Um homem não é pobre porque nada tem trabalhos de que são capazes; ensina outros a
mas porque não trabalha. O que não tem ne­ trabalhar, o que já constitui um trabalho.
nhum bem e trabalha, vive tão comodamente Algumas esmolas que se dão a um homem
quanto o que tem cem escudos de renda sem nu pelas ruas não preenchem de modo algum
trabalhar. Aquele que não tem nada e que tem as obrigações do Estado, que deve a todos os
um ofício, não é mais pobre do que aquele que cidadãos uma subsistência assegurada, alimen­
possui dez arpentes de terra como propriedade tação, uma vestimenta conveniente, e um gêne­
particular e deve trabalhá-los para subsistir. O ro de vida que não seja contrário à saúde.
operário que deu a seus filhos por herança sua Aureng-Zeb41 9, a quem se perguntava por
arte deixou-lhes um bem que se multiplicou na que não construía hospitais, diz: “Tornarei
proporção de seu número. O mesmo não acon­ meu império tão rico, que não terá necessidade
tece com aquele que tem dez arpentes de fun­ de hospitais”. Deveria ter dito: Começarei por
dos para viver, e os divide entre seus filhos. tornar meu império rico e construirei hospitais.
Nos países de comércio, onde muitas pes­ As riquezas de um Estado pressupõem
soas nada têm além de sua arte, o Estado é muita indústria. Não é possível que, em tão
frequentemente obrigado a prover às necessi­ grande número de ramos de comércio, não
dades dos velhos, dos doentes e dos órfãos.
Um Estado bem policiado extrai essa subsis­ 419 Vede Chardin, Voyage de Perse, tomo VIII.
tência do fundo das próprias artes; dá a uns os (N. do A.)
370 MONTESQUIEU
haja sempre algum que esteja em crise e que os lência dos demais, porque, praticando a hospi­
operários, consequentemente, não estejam talidade, uma infinidade de pessoas ociosas,
numa necessidade momentânea. gentis-homens e burgueses, passava sua vida a
É então que o Estado necessita oferecer um correr de convento em convento. Suprimiu
pronto auxílio, seja para impedir o povo de ainda os hospitais onde o baixo povo encon­
sofrer, seja para evitar que ele se revolte: é trava sua subsistência, como os gentis-homens
neste caso que são necessários hospitais, ou encontravam a sua nos monastérios. Desde
qualquer regulamento equivalente, que possa essas modificações, o espírito de comércio e
prevenir esta miséria. indústria estabeleceu-se na Inglaterra.
Mas, quando a nação é pobre, a pobreza Em Roma, os hospitais fazem com que toda
particular deriva da miséria geral; e ela é, por gente viva comodamente, exceto os que traba­
assim dizer, a miséria geral. Todos os hospitais lham, exceto os que têm indústria, exceto os
do mundo não poderiam sanar esta pobreza que cultivam as artes, exceto os que têm terra,
particular; ao contrário, o espírito de indo­ exceto os que praticam o comércio.
lência que eles inspiram aumenta a pobreza Disse que as nações ricas tinham necessi­
geral e, consequentemente, a particular. dade de hospitais, porque a fortuna aí estava
Henrique VIII420, querendo reformar a sujeita a mil acidentes; mas percebe-se que
Igreja da Inglaterra, destruiu os monges, classe auxílios momentâneos seriam melhores do que
indolente por si mesma e que mantinha a indo­ estabelecimentos perpétuos. O mal é momentâ­
neo; é mister, pois, auxílios da mesma nature­
420 Vede História da Reforma da Inglaterra, por za, e que sejam aplicáveis ao acidente particu­
Burnet. (N. do A.) lar.
QUINTA PARTE

LIVRO VIGÉSIMO QUARTO


DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM A RELIGIÃO
ESTABELECIDA EM CADA PAIS,
CONSIDERADA EM SLAS PRÁTICAS E EM SI MESMA
Capítulo I

Das religiões em geral

Como se pode julgar entre as trevas as que radas na relação com verdades mais subli
são menos espessas, e entre os abismos os que mes1.
são menos profundos, assim se pode procurar Quanto à verdadeira religião, bastará pou­
entre as religiões falsas as que são mais con­ quíssima equidade para ver que jamais pre­
formes ao bem da sociedade; as que, embora tendí fazer seus interesses cederem aos interes­
não tenham o efeito de conduzir os homens ses políticos, mas uni-los: ora, para uni-los,
para as venturas da outra vida, podem contri­ cumpre conhecê-los.
A religião cristã, que ordena que os homens
buir mais para a sua felicidade nesta. se amem, quer sem dúvida que cada povo
Só examinarei, portanto, as diversas reli­ tenha as melhores leis políticas e as melhores
giões do mundo em relação ao bem que delas leis civis, porque elas são, depois dela, o maior
se tira no estado civil, quer fale das que têm bem que os homens podem dar e receber.
sua raiz no Céu, quer das que a têm na Terra.
Como nesta obra não sou teólogo mas escri­
tor político, poderia haver coisas que não se­ 1 Notar-se-á aqui e posteriormente com que conve­
niência e com que circunspecção Montesquieu fala
riam integralmente verdadeiras senão no modo de uma religião que ele parece considerar sobretudo
de pensar humano, não tendo sido conside­ como religião oficial.

Capítulo II

Paradoxo de Bayle

Bayle2 pretendeu provar que mais valia ser que nem sempre ela reprime, é dizer que as leis
ateu que idólatra; isto é, em outros termos, que civis também não são um motivo repressor. É
é menos perigoso não ter religião alguma do mau raciocinar contra a religião, reunir numa
que ter uma má. “Preferiría”, diz ele, “que dis­ grande obra uma longa enumeração dos males
sessem de mim que não existo, a que dissessem que ela produziu, se não se faz o mesmo com
que sou um homem perverso.” Isto não é mais os bens que ela produziu. Se eu quisesse relatar
do que um sofisma, baseado na idéia de que todos os males que as leis civis, a monarquia, o
não é de nenhuma utilidade para o gênero hu­ governo republicano produziram no mundo,
mano crer-se que certo homem existe, ao passo diria coisas espantosas. Ainda que fosse inútil
que é muito útil que se acredite que Deus exis­ que os súditos tivessem uma religião, não o
te. Da idéia de que ele não existe, decorre a seria que os príncipes a tivessem e embranque­
idéia de nossa independência; ou, se não pode­ cessem de espuma o único freio que podem ter
mos ter esta idéia, a de nossa revolta. Dizer os que não temem as leis humanas.
que a religião não é um motivo repressor por­ Um príncipe que ama a religião e a teme é
um leão que cede à mão que o afaga ou à voz
2 Pensées sur la Comète, etc. Continuation des que o apazigua: o que teme a religião e a odeia
Pensées, etc., tomo II. (N. do A.) é como os animais selvagens que mordem a
374 MONTESQUIEU
corrente que os impede de atirar-se sobre os Para diminuir o horror do ateísmo acusa-se
que passam; aquele que não tem nenhuma reli­ muito a idolatria. Não é verdade que, quando
gião é este animal terrível que só sente sua os antigos erigiam altares a algum vício, isto
liberdade quando estraçalha e devora. significasse que amassem este vício; ao contrá­
O problema não é saber se seria preferível rio, significava que o odiavam. Quando os
lacedemônios levantaram uma capela ao
que certo homem ou que certo povo não tives­
Medo, isso não significava que esta nação beli­
se religião a que abusasse da que tem, mas cosa lhe pedisse que se apoderasse, durante os
saber qual é o menor mal: que se abuse algu­ combates, dos corações dos lacedemônios.
mas vezes da religião ou que ela não exista Havia divindades a quem se pedia não inspirar
absolutamente entre os homens. o crime, e outras a quem se pedia desviá-lo.

Capítulo III

De como o governo moderado convém melhor à religião


cristã e o governo despótico à maometana

A religião cristã está afastada do puro filhos3 do rei de Senaar; com sua morte, o
despotismo: é que, sendo a brandura tão reco­ Conselho os manda degolar em benefício do
mendada no Evangelho, ela se opõe à cólera que sobe ao trono.
despótica com a qual o príncipe faria justiça e Que se ponham, de um lado, diante dos
exercería suas crueldades. olhos as chacinas contínuas dos reis e dos che­
Proibindo esta religião a pluralidade de fes gregos e romanos; e, de outro, a destruição
esposas, os príncipes são menos enclausu­ dos povos e das cidades pelos mesmos chefes;
rados, menos separados de seus súditos e, Timur e Gengis-Cã, que devastaram a Ásia; e
consequentemente, mais homens; estão mais veremos que devémos ao cristianismo, no
dispostos a fazer leis e mais capazes de sentir governo, certo direito político, e na guerra
que não podem tudo. certo direito das gentes, que a natureza huma­
Enquanto os príncipes maometanos conde­ na não poderia reconhecer de modo suficiente.
nam incessantemente à morte, ou são mortos, É o direito das gentes que faz com que, entre
a religião, entre os cristãos, torna os príncipes nós, a vitória deixe aos povos vencidos estas
menos tímidos, e, consequentemente, menos grandes coisas: a vida, a liberdade, as leis, os
cruéis. O príncipe confia em seus súditos, e os bens, e sempre a religião, desde que não nos
súditos no príncipe. Coisa admirável! A reli­ deixemos cegar4.
gião cristã, que parece não ter outro objetivo Podemos dizer que os povos da Europa não
senão a felicidade na outra vida, proporciona são hoje mais desunidos do que o eram os
também a nossa nesta vida. povos e os exércitos ou os exércitos entre si no
império romano, tornado despótico e militar:
É a religião cristã que, apesar da grandeza
de um lado, os exércitos guerreavam entre si, e,
do império e do vício do clima, impediu o des­
de outro, a pilhagem das cidades e a partilha
potismo de se estabelecer na Etiópia, e levou
ou confisco das terras lhes eram entregues.
para o centro da África os costumes da Euro­
pa e suas leis.
O príncipe herdeiro da Etiópia goza de um 3 Relation dEthiopie, pelo Senhor Ponce, médico,
principado, e dá aos outros súditos o exemplo na quarta coleção das Lettres Edifiantes, pág. 290.
(N. do A.)
de amor e de obediência. Bem próximo desse 4 “Tratar-se-ia”, pergunta Laboulaye, “de uma alu­
país, vemos o maometismo mandar encerrar os são à expulsão dos judeus da Espanha?”
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 375

Capítulo IV

Consequências do caráter da religião


cristã e do da religião maometana

Com relação ao caráter da religião cristã e A história de Sabaco 5, um dos reis pastores,
ao da maometana devemos, sem outro exame, é admirável. O deus de Tebas lhe apareceu em
acolher uma e rejeitar outra, pois é bem mais sonhos e lhe ordenou que mandasse matar
evidente que uma religião deve abrandar os todos os sacerdotes do Egito. Julgou ele que
costumes dos homens do que ser verdadeira. seu reinado não mais agradava aos deuses pois
É uma infelicidade para a natureza humana
lhe ordenavam coisas tão contrárias à sua von­
quando a religião é imposta por um conquista­
dor. A religião maometana, que só fala do glá- tade normal, e retirou-se para a Etiópia.
dio, age ainda sobre os homens com este espí­
rito destruidor que a fundou. 5 Vede Diodoro, liv. I, cap. XVIII. (N. do A.)

Capítulo V

De como a religião católica convém melhor a uma


monarquia e a protestante se adapta melhor a uma república

Quando uma revolução nasce e se forma independência do clima que aquela que tem
num Estado, segue geralmente o plano do um.
governo no qual está estabelecida, pois os ho­ Nos próprios países em que a religião
mens que a recebem e os que a fazem receber protestante se estabeleceu, as revoluções se
quase não têm outras idéias de organização 6 fizeram no plano do Estado político. Lutero,
do que aquelas do Estado em que nasceram. tendo a seu favor grandes príncipes, quase não
Quando a religião cristã sofreu, há dois sé­ teria podido lhes fazer apreciar uma autori­
culos, esta infeliz divisão que a separou em
católica e protestante, os povos do Norte abra­ dade eclesiástica que não tivesse tido preemi-
çaram a protestante, e os do Sul conservaram nêr\cia externa: e tendo Calvino a seu favor
a católica. povos que viviam em repúblicas, ou burgueses
É que os povos do Norte têm e terão sempre obscurecidos em monarquias, podia muito
um espírito de independência e de liberdade bem não estabelecer preeminências e dignida­
que os povos do Sul não têm, e uma religião des.
que não Cem chefe visível convém mais à Cada uma dessas duas religiões podia acre­
ditar-se a mais perfeita; a calvinista julgando-
6 ... organização, também aqui com sentido de se mais conforme ao que Jesus Cristo dissera,
administração, de governo. e a luterana ao que os apóstolos tinham feito.

Capítulo VI

Outro paradoxo de Bayle

O Senhor Bayle, depois de ter insultado mariam um Estado que pudesse subsistir. Por
todas as religiões, aviltou a religião cristã: que não? Seriam cidadãos infinitamente escla­
ousa afirmar que verdadeiros cristãos não for­ recidos com relação a seus deveres, e que
376 MONTESQUIEU

demonstrariam um zelo muito grande em grande homem ter desconhecido o espírito de


cumpri-los; sentiríam muito bem os direitos da sua própria religião, não ter sabido distinguir
defesa natural; quanto mais acreditassem as ordens para o estabelecimento do cristia­
dever à religião, tanto mais pensariam dever à nismo com o próprio cristianismo, nem os pre­
pátria. Os princípios do cristanismo bem gra­
ceitos do Evangelho com seus conselhos.
vados no coração seriam infinitamente mais
fortes que essa falsa honra das monarquias, Quando o legislador, em lugar de dar leis, deu
essas virtudes humanas das repúblicas e esse conselhos, é que viu que seus conselhos, se fos­
medo servil dos Estados despóticos. sem ordenados como leis, seriam contrários ao
É espantoso que se possa imputar a este espírito de suas leis.

Capítulo VII

Das leis de perfeição na religião

As leis humanas feitas para falar ao espírito com que as primeiras fossem observadas. O
devem dar preceitos e nunca conselhos7: a reli­ celibato foi um conselho do cristianismo:
gião, feita para falar ao coração, deve dar quando se fez uma lei para uma certa ordem de
muito de conselhos e pouco de preceitos. pessoas8, foram necessárias diariamente novas
Quando, por exemplo, ela dá regras não leis9 para fazer com que os homens obser­
para o bem mas para o melhor, não para o que
vassem a primeira. O legislador se fatigou e
é bom mas para o que é perfeito, é conveniente
que sejam conselhos e não leis, pois a perfei­ fatigou a sociedade para fazer os homens
ção não diz respeito à universalidade dos ho­ executarem, por preceito, o que os que amam a
mens nem das coisas. Demais, se são leis, seria perfeição teriam executado por conselho.
necessária uma infinidade de outras para fazer
8 ... uma certa ordem de pessoas... os sacerdo­
7 Na terminologia teológica distingue-se o conse­ tes e os religiosos.
lho, que é simplesmente “conselho”, do preceito, que 9 Vede a Bibliothèque des -Auteurs Eclés. du
“ordena”. Sixième Siècle, tomo V, por Dupin. (N. do A.)

Capitulo VIII

Do acordo das leis da moral com as da religião

Num país em que se tem a infelicidade de ter fazer, ao contrário, todo bem possível. Com
uma religião que Deus não deu, é sempre isso acreditam que as pessoas se salvarão em
necessário que ela esteja de acordo com a qualquer religião, qualquer que seja ela, o que
moral, porque a religião, mesmo falsa, é a me­ faz com que estes povos, apesar de orgulhosos e
pobres, usem de brandura e compaixão para
lhor garantia que os homens podem ter da pro­ com os infelizes.
bidade dos homens.
Os principais pontos da religião dos de
10 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
Pegu10 são: não matar, não roubar, evitar a l LÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo
impudicícia, não causar dano ao próximo e lhe III, parte I, pág. 63. (N. do Â.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 377

Capítulo IX

Dos essênios

Os essênios11 faziam voto de observar a ninguém, mesmo para obedecer; de odiar os


justiça para com os homens; não fazer mal a injustos, cumprir a palavra dada, comandar
com modéstia, tomar sempre o partido da ver­
’1 Histoire desJuifs, por Prideaux. (N. do A.) dade, fugir a todo ganho ilícito.

Capítulo X

Da seita estóica12

As diversas seitas de filosofia entre os anti­ não encontrareis nada maior que os Antoni-
gos podiam ser consideradas como espécies de nos; o próprio Juliano, Juliano (um sufrágio
religião. Nunca houve uma cujos princípios arrancado desta maneira não me tornará cúm­
fossem mais dignos do homem e mais adequa­ plice de sua apostasia), não, não houve depois
dos à formação de pessoas de bem que a dos dele príncipe mais digno de governar os
estóicos; e, se eu pudesse por um momento dei­ homens.
xar de pensar que sou cristão, não poderia me Enquanto os estóicos consideravam como
impedir de colocar a destruição da seita de uma coisa inútil as riquezas, as grandezas
Zenon no número das desgraças do gênero humanas, a dor, as mágoas, os prazeres, ape­
humano. nas se empenhavam em trabalhar pela felici­
Ela exagerava apenas as coisas nas quais há dade dos homens, em cumprir os devefes da
grandeza, o desprezo pelos prazeres e pela dor. sociedade; parecia que eles consideravam este
Só ela sabia fazer cidadãos; só ela formava espírito que acreditavam estar neles próprios
grandes homens; só ela fazia grandes impera­ como uma espécie de providência favorável
dores. que velava sobre o gênero humano.
Fazei por um momento abstração das ver­ Nascidos para a Sociedade, acreditavam
dades reveladas; procurai em toda natureza e todos que seu destino era trabalhar para ela,
coisa tanto menos penosa quanto suas recom­
pensas estavam todas neles próprios, e, felizes
12 Laboulaye diz, segundo um artigo de Despois
da Revue Politique de 14 de novembro de 1874, que apenas com sua filosofia, parecia que a sim­
“este capítulo teria sido tomado do Traité Général ples felicidade dos outros pudesse aumentar a
des Devoirs, obra da juventude de Montesquieu”. sua.

Capítulo XI

Da contemplação
Sendo os homens feitos para se conservar, Os maometanos tornam-se especulativos
para se nutrir, para se vestir, e fazer todas as por hábito; oram cinco vezes por dia, e de
ações da sociedade, a religião não deve lhes cada vez é necessário que façam um ato pelo
dar uma vida muito contemplativa13. qual lançam para trás tudo o que pertence a
este mundo; isto os prepara para a especula­
13 É o inconveniente da doutrina de Foè e de Laoc-
ção. Acrescentai a isto esta indiferença por
kium. (N. do A.)* todas as coisas, que dá o dogma de um destino
* O “Foè” e o “Laockium” que Montesquieu cita rígido.
em sua nota são Buda e Lao-Tsé. Se, além disso, outras causas concorrem
378 MONTESQUIEU

para lhes inspirar o desprendimento, como se a A religião dos guebros tornou, outrora, o
dureza do governo, se as leis concernentes à reino da Pérsia florescente; ela corrigiu os
propriedade das terras incutem um espírito maus efeitos do despotismo. Hoje, a religião
precário, tudo está perdido. maometana destruiu esse mesmo império.

Capítulo XII

Das penitências

É útil que as penitências estejam ligadas à idéia de trabalho e não à idéia de ócio; à idéia do
bem e não à idéia do extraordinário; à idéia da frugalidade e não à idéia da avareza.

Capítulo XIII

Dos crimes inexpiáveis

Parece, por um trecho dos livros dos pontífi­ tém atados por algumas cadeias mas por um
ces, relatado por Cícero1*4, que havia entre os número incontável de fios; que deixa atrás de
romanos crimes1 5 inexpiáveis; e é sobre isso si a justiça humana e começa outra justiça;
que Zósimo baseia o relato tão próprio a enve­ que é feita para levar, incessantemente, do
nenar os motivos da conversão de Constantino arrependimento ao amor, e do amor ao
e, Juliano, essa zombaria amarga que faz dessa arrependimento; que coloca entre o juiz e o cri­
mesma conversão em seus Césares' 6. minoso um grande mediador, entre o justo e o
A religião pagã, que só proibia alguns cri­
mediador um grande juiz: uma tal religião não
mes grosseiros, que detinha a mão e abando­
deve ter crimes inexpiáveis. Mas, embora ins-
nava o coração, podia ter crimes inexpiáveis;
mas uma religião que envolve todas as pai­ , pire temores e esperanças a todos, deixa sentir
perfeitamente que, se não há crime que pela
xões; que é tão ciosa das ações quanto dos
desejos e dos pensamentos; que não nos man­ sua natureza seja inexpiável, toda uma vida
pode sê-lo; que seria muito perigoso atormen­
tar incessantemente a misericórdia com novos
1 4 Liv. II, Das Leis, cap. XXII. (N. do A.)
1 5 Sacrum commissum, quod neque expiaripoterit, crimes e novas expiações; que, inquietos com
impie commissum est; quod expiari poterit publici as antigas dívidas, nunca saldadas com o
sacerdotes expianto. (N. do A.) Senhor, devemos temer contrair novas, encher
1 6 Criticava-se Constantino de ter-se feito cristão
apenas para “expiar a morte de seu filho”, na reali­ as medidas, e chegar até o ponto em que a bon­
dade ocorrida catorze anos depois. dade paternal termina.

Capítulo XIV

Como a força da religião se aplica à das leis civis


Como a religião e as leis civis devem tender paraíso nem inferno, as leis, para suprir isso,
principalmente a tornar os homens bons cida­ foram feitas com uma severidade e executadas
dãos, vê-se que, quando uma das duas se afas­ com uma pontualidade extraordinárias.
tar desse objetivo, a outra deve tender ainda Quando a religião estabelece o dogma da
necessidade1 7 das ações humanas, as penas
mais para ele: quanto menos a religião for
das leis devem ser mais severas e a polícia
repressora, mais as leis civis devem reprimir.
Assim, no Japão, como a religião dominante 17 ... necessidade, no sentido mais forte de
quase não tem dogmas e não oferece nem “fatalidade”.
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 379

mais vigilante, para que os homens que, sem de inferno, mas para punir os que deixaram de
isso, se entregariam a si mesmos, sejam condu­ andar nus em certas estações, os que vestiram
zidos por estes motivos; mas, se a religião esta­ roupas de algodão e não de seda, os que procu­
belece o dogma da liberdade, a coisa é outra. raram ostras, os que agiram sem consultar o
Da preguiça da alma nasce o dogma da canto dos pássaros. Destarte, não consideram
predestinação maometana; e do dogma desta como pecado a embriaguez e os desregra-
predestinação nasce a preguiça da alma. Foi mentos com mulheres; acreditavam mesmo
dito: isto está nos decretos de Deus; é preciso, que a devassidão dos filhos agradava os
pois, permanecer em repouso. Em tal caso, deuses.
deve-se despertar com leis os homens adorme­ Quando a religião justifica por uma coisa
cidos pela religião. acidental, perde inutilmente a maior mola que
Quando a religião condena as coisas que as pode existir entre os homens. Entre os india­
leis civis devem permitir, é perigoso que as leis nos, acredita-se que as águas do Ganges têm
civis não permitam de seu lado o que a religião virtude santificante20, sendo os que morrem
deve condenar, assinalando sempre uma des­ em suas margens considerados isentos de cas­
sas coisas uma falta de harmonia e de exatidão tigos na outra vida, devendo habitar uma
nas idéias que se difunde sobre a outra. região plena de delícias; enviam-se, dos luga­
Assim, os tártaros1*8 de Gengis-Cã, entre os res mais distantes, urnas cheias de cinzas dos
quais era um pecado e mesmo um crime capi­ mortos para lançá-las no Ganges. Que importa
tal colocar a faca no fogo, apoiar-se contra um viver virtuosamente, ou não? Far-se-ão lançar
chicote, bater num cavalo com as rédeas, par­ no Ganges.
tir um osso com outro, não acreditavam que A idéia de um lugar de recompensa implica
houvesse pecado em violar a fé, arrebatar o necessariamente -a idéia de uma estada de cas­
bem de outrem, injuriar um homem, matá-lo. tigos; e, quando se espera uma sem temer a
Numa palavra: as leis que fazem considerar outra, as leis civis não mais têm força. Ho­
como necessário o que é indiferente têm o mens que acreditam em recompensas certas na
inconveniente de levar a considerar como indi­ outra vida escaparão ao legislador; terão
ferente o que é necessário. demasiado desprezo pela morte. Que meio
Os de Formosa19 acreditam numa espécie poderia conter pelas leis um homem que crê
estar certo que a maior pena que os magis­
1 8 Vede a relação do Irmão Jean Duplan Carpin, trados lhe poderão infligir terminará num
enviado para a Tartária pelo Papa Inocêncio IV, no momento para logo começar sua felicidade?
ano de 1246. (N. do A.)
19 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo V, 20 Lettres Édifiantes, décima quinta coletânea. (N.
parte I, pág. 192. (N. do A.) do A.)

Capítulo XV

Como as leis civis corrigem,


às vezes, as falsas religiões

O respeito às coisas antigas, a simplicidade mulheres e filhos. Lei civil admirável que con­
ou a superstição, têm, algumas vezes, estabele­ serva os costumes contra a religião!
Augusto22 proibiu os jovens de ambos os
cido mistérios ou cerimônias que podiam aten­ sexos de assistirem a qualquer cerimônia
tar ao pudor; e os exemplos disso não foram noturna se não estivessem acompanhados de
raros no mundo. Aristóteles diz21 que, neste um parente mais velho; e, quando restabeleceu
caso, a lei permite aos pais de família irem ao as festas23 lupercais, não quis que os jovens
corressem nus.
templo celebrar estes mistérios para suas
22 Suetônio, in Augusto, cap. XXXI. (N. do A.)
21 Política, liv. VII, cap. XVII. (N. do A.) 23 Ibid. (N. do A.)
380 MONTESQUIEU

Capítulo XVI

Como as leis da religião corrigem os


inconvenientes da constituição política

De outro lado, a religião pode sustentar o Nos Estados em que as guerras não se
Estado político quando as leis se acham na fazem por deliberação comum, e onde as leis
impotência. não deixaram nenhum meio de terminá-las ou
Assim, quando o Estado é amiúde agitado preveni-las, a religião estabelece tempos de paz
por guerras civis, a religião muito fará se esta­
e de tréguas, para que o povo possa fazer as
belecer que alguma parte deste Estado perma­
neça sempre em paz. Entre os gregos, os elea- coisas sem as quais o Estado não poderia sub­
tas, como sacerdotes de Apoio, gozavam de sistir, como as sementeiras e trabalhos seme­
uma paz eterna. No Japão2*4, deixa-se sempre lhantes.
em paz a cidade de Meaco2 5, que é uma cida­ Cada ano, durante quatro meses, toda hosti­
de santa; a religião mantém este regulamento; lidade cessava entre as tribos2 6 árabes: a
e este império, que parece estar sozinho na
terra, que não tem e que não quer ter nenhum menor perturbação teria sido uma impiedade.
recurso da parte de estrangeiros, mantém sem­ Na França, quando cada senhor fazia a guerra
pre em seu seio um comércio que a guerra não ou a paz, a religião estabelecia tréguas que
arruina. deveríam ocorrer em certas estações2 7.

2 4 Recueil des Voyages qui Ont Servi à 2 6 Vede Prideaux, Vie de Mahomet, pág. 64. (N.
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo do A.)
IV, parte I, pág. 64. (N. do A.) 2 7 Reconheceu-se a “trégua de Deus” instituída
2 5 Meaco. Trata-se de Kioto Tokjo. por São Luís.

Capítulo XVII

Continuação do mesmo assunto

Quando há muitos motivos de ódio num recebia a reparação. “Coisa muito útil”, escre­
Estado, cumpre que a religião apresente mui­ ve Tácito30, “porque as inimizades são mais
tos meios de reconciliação. Os árabes, povo perigosas num povo livre.” Creio que os minis­
salteador, frequentemente se dirigiam injúrias tros da religião, que gozavam de tanto crédito
e injustiças. Maomé28 estabeleceu esta lei: “Se entre eles, entravam nessas reconciliações.
alguém perdoa o sangue de seu irmão29, pode­ Entre os malaios31, em que a reconciliação
rá perseguir o malfeitor por danos e perdas;
não estava estabelecida, quem tivesse matado
mas quem prejudicar o comerciante, depois de
este lhe ter dado reparação, sofrerá no dia do outra pessoa, certo de ser assassinado pelos
juízo tormentos dolorosos”. parentes ou amigos do morto, entrega-se à sua
Entre os germanos, herdavam-se os ódios e fúria, fere e mata tudo o que encontra.
inimizades dos parentes; mas eles não eram
eternos. Expiava-se o homicídio oferecendo 30 De Moribus German., cap. XXI. (N. do A.)
uma certa quantidade de gado, e toda a família 31 Recueil des Voyages qui Ont Servi à
VÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo
VII, pág. 303. Vede também as Mémoires du Comte
2 8 No Alcorão, liv. I, cap. Da Vaca. (N. do A.) de Forbin e o que ele diz sobre os macáçares. (N. do
2 9 Renunciando à lei do talião. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 381

Capítulo XVIII

Como as leis da religião têm o efeito das leis civis

Os primeiros gregos eram pequenos povos encolerizado contra o assassino, inspirava-lhe


sempre dispersos, piratas no mar, injustos na perturbação e terror, e queria que este lhe
terra, sem polícia e sem leis. As belas ações de cedesse os lugares que frequentara; não se
Hércules e de Teseu deixam ver o estado em podia tocar o criminoso, nem conversar com
que se encontrava este povo nascente. Que ele, sem ficar maculado33 ou intestável; a pre­
podia fazer a religião, que fez ela para infundir sença do homicida devia ser poupada à cidade,
e cumpria expià-lo3 4.
o horror ao homicídio? Estabeleceu que um
homem morto violentamente32 ficava logo
3 3 Vede a tragédia de Édipo em Colona. (N. do A.)
3 4 Platão, nas Leis, liv. IX. (N. do A.)*
3 2 Platão, nas Leis, Liv. IX. (N. do A.) * expiar. . . no sentido de purificar.

Capítulo XIX

De como é menos a verdade ou a falsidade de um dogma


que o torna útil ou pernicioso aos homens, no estado civil,
do que o uso ou o abuso que dele se faz

Os dogmas mais verdadeiros ou mais santos ses3 6 e assim é ainda hoje no Japão3 7, em
podem ter consequências muito más, quando Macáçar3 8 e em vários outros lugares da terra.
não estão relacionados aos princípios da socie­ Esses costumes emanam menos diretamente
dade; e, ao contrário, os dogmas mais falsos do dogma da imortalidade da alma que do da
podem ter admiráveis consequências quando ressurreição dos corpos; de onde se tirou esta
se faz de modo com que se relacionem com os consequência: que, após a morte, um mesmo
mesmos princípios.
A religião de Confúcio nega a imortalidade 3 5 Um filósofo chinês assim argumenta contra a
da alma; e a seita de Zenon não acreditava doutrina de Foè: “Diz-se, num livro desta seita, que
nela. Quem o diria? Estas duas seitas extraí­ o corpo é nosso domicílio, e a alma,o hóspede imor­
ram de seus maus princípios consequências, tal que nele habita; mas, se o corpo de nossos pais
não passa de um alojamento, é natural considerá-lo
senão justas, ao menos admiráveis para a com o mesmo desprezo que se tem por um monte de
sociedade. lama e de terra. Não será isso querer arrancar do
A religião dos Tau e dos Foê acreditava na coração a virtude do amor pelos pais? Isso leva
imortalidade da alma; porém, desses dogmas mesmo a negligenciar o cuidado com o corpo, e lhe
recusar a compaixão e o afeto tão necessários para
tão santos, extraíram consequências horrí­ a sua conservação; assim, os discípulos de Foè se
veis3 5 matam aos milhares”. Obra de um filósofo chinês,
Quase em todo o mundo e em todos os tem­ na coletânea do Padre du Halde, tomo III, pág. 52.
pos, a opinião da imortalidade da alma, mal (N. do A.)
interpretada, levou as mulheres, os escravos, 3 6 Vede Thomas Bartholin, Antiguidades Dina­
marquesas. (N. do A.)
os súditos, os amigos, a se matarem, para ir
3 7 Relação do Japão, em Recueil des Voyages qui
servir num outro mundo o objeto de seu res­ Ont Servi à lÈtablissement de la Compagnie des
peito ou de seu amor. Assim era nas índias Indes. (N. do A.)
Ocidentais; assim era entre os dinamarque­ 3 8 Mémoires de Forbin. (N. do A.)
382 MONTESQUIEU
indivíduo teria as mesmas necessidades, os Não basta para uma religião estabelecer um
mesmos sentimentos, as mesmas paixões. dogma; cumpre também que ela o oriente. É o
Desse ponto de vista, o dogma da imortalidade que faz admiravelmente bem a religião cristã
da alma afeta prodigiosamente os homens, com respeito aos dogmas de que falamos; faz-
pois a idéia de uma simples mudança de mora-* nos esperar um estado em que nós acreditamos
dia está mais ao alcance de nosso espírito e e não um estado que sentimos ou que conhece­
lisonjeia mais nosso coração do que a idéia de mos; tudo, até a ressurreição dos corpos, leva-
uma nova modificação. nos a idéias espirituais.

Capitulo XX

Continuação do mesmo assunto

Os livros39 sagrados dos antigos persas filhos, porque todas as boas ações que farão
diziam: “Se quereis ser santos, instruí vossos vos serão imputadas”. Aconselhavam a casar-
se cedo, porque os filhos seriam como uma
ponte no dia do julgamento, e os que não tives­
39 Hyde, De Religione Veterum Persarum in sem filhos não poderíam passar. Esses dogmas
Sad-der. eram falsos mas muito úteis.

Capítulo XXI

Da metempsicose

O dogma da imortalidade da alma divide-se dos dois primeiros; e direi do terceiro que,
em três ramos: o da imortalidade pura, o da como foi bem e mal dirigido, teve nas índias
simples mudança de morada40, o da metem­ . bons e maus efeitos. Como dá aos homens
psicose, isto é, o sistema dos cristãos, o sistema certo horror ao derramamento de sangue, há
dos citas, o sistema dos hindus. Acabo de falar nas índias poucos homicídios; e, apesar de
nesse país quase não se punir com a morte,
toda gente está tranquila.
40 Mudança de morada, simples mudança de
lugar. A alma separada, entre os egípcios, por exem­ De outro lado, as mulheres são queimadas
plo, parece conservar as mesmas necessidades que quando da morte dos maridos; lá, só os ino­
os corpos. centes sofrem morte violenta.

Capítulo XXII

De como é perigoso que a religião inspire


horror por coisas indiferentes

Certa honra, que preconceitos de religião a certa aversão por outros homens, bem dife­
estabelecem nas índias, faz com que as diver­ rente dos sentimentos que devem originar as
sas castas tenham horror umas pelas outras. diferenças de categoria, que entre nós encer­
Essa honra está baseada unicamente na reli­ ram o amor pelos inferiores.
gião; tais distinções de família não formam As leis da religião evitarão inspirar outro
distinções civis: há determinado indiano que se desprezo além do vício, e sobretudo afastar os
acreditaria desonrado se comesse com seu rei. homens do amor e da piedade pelos homens.
Tais formas de distinção estão relacionadas A religião maometana e a hindu têm em seu
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 383

seio infinito número de povos; os hindus carne de vaca; os maometanos detestam os


odeiam os maometanos porque esses çomem hindus porque esses comem carne de porco.

Capítulo XXIII

Das festas

Quando uma religião ordena a suspensão do protestantes e os católicos estão situados43 de


trabalho, deve ter consideração pelas necessi­ modo que se tenha mais necessidade de traba­
dades dos homens mais do que à grandeza do lho nos primeiros do que nos segundos: a
ente que honra. supressão das festas convinha, pois, mais aos
Em Atenas41, era um grande inconveniente países protestantes do que aos católicos.
o número excessivo de festas. Entre esse povo Dampierre44 observa que os divertimentos
dominador, diante do qual todas as cidades da dos povos variam muito de acordo com os cli­
Grécia deviam levar seus litígios, não se podia mas. Como os climas quentes produzem quan­
dar conta dos negócios. tidades de frutos delicados, os bárbaros, que
Quando Constantino estabeleceu que não se encontram logo o necessário, utilizam mais
trabalharia no domingo fez essa ordenança tempo em se divertir: os indianos, das regiões
para as cidades42 e não para os povos do frias4 5, não têm tanto lazer; precisam caçar e
campo: ele sentia que nas cidades os trabalhos pescar continuamente. Portanto, há entre eles
eram úteis e nos campos eram necessários. danças, música e festins; e uma religião que se
Pela mesma razão, nos países que subsistem estabelecesse entre esses povos deveria levar
pelo comércio, o número das festas deve ser isso em consideração na instituição das festas.
relativo a esse próprio comércio. Os países
43 Os católicos estão mais para o Sul, e os protes­
41 Xenofonte, Da República de Atenas, cap. III, § tantes mais para o Norte. (N. do A.)
8. (N. do A.) 44 Novas Viagens ao'Redor do Mundo, tomo II.
42 Lei 3. Cod. de feriis. Essa lei provavelmente só (N. do A.)
era feita para os pagãos. (N. do A.) 45 ... das regiões frias, da América do Norte.

Capítulo XXIV

Das leís locais de religião

Há muitas leis locais nas diversas religiões. cam4 7 mediocremente; estão sujeitos a muitas
E quando Montezuma se obstinava tanto em doenças: uma lei de religião que os conserve é,
dizer que a religião dos espanhóis era boa para portanto, muito conveniente à polícia do país.
o país deles, e a do México para o seu, não Enquanto as pradarias são queimadas, o
dizia um absurdo porque, efetivamente, os arroz e os legumes ali crescem facilmente gra­
legisladores não puderam deixar de levar em ças às águas que se podem utilizar: uma lei de
conta o que a Natureza estabelecera antes religião que só permita esse alimento é por­
deles. tanto muito útil aos homens desses climas.
A opinião da metempsicose é feita para o A carne48 do gado não tem gosto e o leite e
clima das índias. O calor excessivo queima4 6 a manteiga que dele se obtêm constituem uma
todos os campos; só se pode alimentar parcela de sua subsistência. A lei que proíbe
pouquíssimo gado; há sempre o perigo de esse
faltar para a lavoura. Os bois só se multipli­
4 7 Lettres Édifiantes, segunda coletânea, pág. 95.
(N. do A.)
4 6 Voyage de Bernier, tomo II, pág. 137. (N. do A.) 48 Voyage áe Bernier, tomo II, pág. 137. (N. do A.)
384 MONTESQUIEU
matar e comer vacas não é portanto absurda oferendas aos deuses de certos pequenos pre­
nas índias. sentes os honravam 49 mais do que os que imo­
Atenas tinha em seu seio uma multidão lavam bois.
inumerável de povos; seu território era estéril;
foi uma máxima religiosa que os que faziam 49 Eurípides, em Ateneu, liv. II, pág. 40. (N. do A.)

Capítulo XXV

Inconveniente do transporte de uma religião


de um país a outro
Conclui-se daí que há assaz frequentemente ses52, onde o porco é um alimento quase uni­
muitos inconvenientes em transportar uma versal e de algum modo necessário.
religião 50 de um país a outro. Farei aqui uma reflexão. Sanctório observou
“O porco”, diz51 o Sr. de Boulainvilliers, que a carne de porco que se come transpira53
“deve ser muito raro na Arábia, onde quase pouco e mesmo que esse alimento impede
não há bosques e quase nada adequado à muito a transpiração dos outros alimentos:
descobriu que a diminuição chegava a um
alimentação desses animais; aliás, a salinidade
terço5 4; sabe-se também que a falta de transpi­
das águas e dos alimentos torna o povo muito
ração origina ou agrava as moléstias da pele:
suscetível às moléstias da pele.” A lei local que portanto, a carne de porco deve ser proibida
o proíbe não poderia ser boa para outros paí- nos climas em que se está sujeito a tais doen­
ças, como o da Palestina, da Arábia, do Egito
50 Não se fala aqui da religião cristã, pois, como e da Líbia.
dissemos no livro XXIV, cap. I, no final, a religião
cristã é o primeiro bem. (N. do A.) 53 Medicina Estática, seção III, aforismo 22. (N.
51 Vie de Mahomet. (N. do A.) do A.)
52 Como na China. (N. do A.) 5 4 Seção III, aforismo 23. (N. do A.)

Capítulo XXVI

Continuação do mesmo assunto

Chardin 5 5 afirma que não há rio navegável Quando a religião, baseada no clima, foi
na Pérsia, com exceção do rio Kur5 6, situado muito contrária ao clima de outro país, não
nas extremidades do império. A antiga lei dos pôde estabelecer-se nesse; e quando foi intro­
guebros, que interditava a navegação nos rios, duzida, expulsaram-na. Parece, humanamente
não tinha, pois, qualquer inconveniente em seu
falando, que foi o clima que prescreveu limites
país; mas em outro teria arruinado o comércio.
à religião cristã e à maometana.
As contínuas abluções são muito usadas nos
climas quentes. Isso fez com que a lei maome- Decorre daí que é quase sempre conveniente
tana e a religião hindu as ordenassem. É um que uma religião tenha dogmas particulares e
ato muito meritório nas índias orar5 7 a Deus um culto geral. Nas leis que concernem às prá­
em água corrente: mas como executar essas ticas do culto, faz-se mister poucos pormeno­
coisas em outros climas? res; por exemplo, mortificações e não uma
certa mortificação. O cristianismo está repleto
5 5 Voyage en Perse, tomo II. (N. do A.) de bom senso: a abstinência é de direito divi
56 . . .rio Kur. . . antigamente, o Ciros, que se
lança ao mar Cáspio. no; mas uma abstinência particular é de direito
5 7 Voyage de Bernier, tomo II. (N. do A.) de polícia e pode-se mudá-la.
385

LIVRO VIGÉSIMO QUINTO


DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM
O ESTABELECIMENTO NA RELIGIÃO DE CADA PAÍS,
E SUA POLÍCIA EXTERIOR
Capítulo I

Do sentimento pela religião

O homem piedoso e o ateu falam sempre de religião: um fala do que ama e outro do que teme.

Capítulo II

Dos motivos de afeição pelas diversas religiões

As diversas religiões do mundo não dão aos sua religião do que os protestantes à sua, e
que as professam motivos iguais de afeição por mais zelosos por sua propagação.
elas: isso depende muito da maneira como elas Quando 58 o povo de Éfeso soube que os pa­
se conciliam com o modo de pensar e sentir dres do concilio tinham decidido que se podia
dos homens. chamar59 a Virgem Mãe de Deus, foi tomado
Estamos muito inclinados à idolatria e de alegria: beijava as mãos dos bispos, abra­
entretanto não estamos muito ligados às reli­ çava seus joelhos, explodindo em aclamações.
giões idólatras; quase não tendemos às idéias Quando uma religião intelectual nos dá
espirituais e, todavia, somos muito afeiçoados ainda a idéia de uma escolha feita pela Divin­
às religiões que nos fazem adorar um Ser espi­ dade, e de uma distinção entre os que a profes­
ritual. É um sentimento feliz que decorre em sam e os que não o fazem, isso muito nos afei-
çoa a essa religião. Os maometanos não
parte da satisfação que encontramos em nós
próprios, de possuir inteligência suficiente seriam tão bons muçulmanos, se de um lado
não houvesse povos idólatras que lhes fizessem
para ter escolhido uma religião que tira a
pensar que eram os vingadores da unidade de
divindade da humilhação em que as demais a
Deus e se não houvesse, de outro lado, cristãos
haviam colocado. Consideramos a idolatria
para lhes fazer crer que eles eram o objeto de
como a religião dos povos rudes, e a religião suas preferências.
que tem por objeto um Ser espiritual, como a Uma religião carregada de muitas60 práti­
dos povos esclarecidos. cas prende mais do que outra que as tenha
Quando à idéia de um Ser espiritual supre­ menos: prendemo-nos às coisas com que esta­
mo, que forma o dogma, podemos acrescentar mos continuamente ocupados, como testemu-
também idéias sensíveis que fazem parte do
culto, isso nos dá um grande apego à religião,
58 Carta de São Cirilo. (N. do A.)
porque os motivos que acabamos de citar se 59 O concilio tornara obrigatória esta denomina­
acham ligados à nossa tendência natural pelas ção.
60 Isso não está em contradição com o que afirmei
coisas sensíveis. Desse modo, os católicos, que no penúltimo capítulo do livro precedente: refiro-me
têm mais do que os protestantes essa espécie aqui aos motivos de apego a uma religião e ali aos
de culto, são mais invencivelmente apegados à meios de torná-la mais geral. (N. do A.)
388 MONTESQUIEU

nha a tenaz obstinação dos maometanos61 e der, é necessário que tenha uma moral pura.
dos judeus, e a facilidade com que os povos Os homens, velhacos isoladamente, são, toma­
bárbaros e selvagens mudam de religião, pois, dos em conjunto, pessoas muito honestas;
ocupados unicamente com a caça ou a guerra, amam a moral e, se eu não tratasse de um
quase não se ocupam de práticas religiosas. assunto tão grave, diria que isso pode ser
Os homens estão muito inclinados a esperar observado admiravelmente bem nos teatros:
e a temer; e uma religião que não possua nem tem-se certeza de agradar o público pelos
inferno nem paraíso dificilmente poderia agra­ sentimentos que a moral reconhece e tem-se
dar-lhes. Prova-se isso pela facilidade que tive­ certeza de chocá-lo pelos que ela reprova.
ram as religiões estrangeiras em se estabelecer Quando o culto exterior possui grande
magnificência, isto nos lisonjeia e nos dá
no Japão, e o zelo e o amor com que foram
muito apego à religião. As riquezas dos tem­
recebidas 62.
plos e as do clero muito nos afetam. Destarte,
Para que uma religião seja capaz de pren-
a própria miséria dos povos é um motivo de
apego a esta religião, que serviu de pretexto
61 Isso é observado em toda a terra. Vede, a res­ aos que causaram sua miséria.
peito dos turcos, as Missions du Levant; Recueil des
Voyages qui Ont Servi à l Établissement de la Com­
pagnie des Indes, tomo III, parte I, pág. 201, sobre 62 A religião cristã e a religião dos hindus: estas
os mouros da Batávia, e o Padre Labat, sobre os ne­ têm um inferno e um paraíso, ao passo que a reli­
gros maometanos, etc. (N. do A.) gião xintoísta não os tem. (N. do A.)

Capítulo III

Dos templos

Quase todos os povos policiados moram em Os povos que não têm templos possuem
casas. Disso decorreu naturalmente a idéia de pouco apego à sua religião: eis por que os tár­
construir para Deus uma casa onde os homens taros sempre foram tão tolerantes65* , eis por
pudessem adorá-lo e procurá-lo em seus temo­ que os povos bárbaros que conquistaram o
res ou esperanças. império romano não hesitaram um momento
De fato, nada é mais consolador para eles em abraçar o cristianismo; eis por que os sel­
do que um lugar onde encontram a divindade vagens da América são tão pouco afeiçoados à
mais presente, e onde todos em conjunto dei­ sua própria religião e eis por que, desde que
xam falar sua miséria e fraqueza. nossos missionários fizeram com que cons­
Mas essas idéias tão naturais só ocorrem truíssem igrejas, no Paraguai, eles são tão
aos povos que cultivam a terra e não veremos zelosos pela nossa.
templos construídos entre os que não têm Como a divindade é o refúgio dos infelizes e
casas para si mesmos. como não há gente mais desgraçada do que os
Foi isso que fez com que Gengis-Cã reve­ criminosos, foi-se, naturalmente, levado a pen­
lasse tão grande desprezo pelas mesquitas63. sar que os templos eram um asilo para eles; e
Este príncipe64 interrogou os maometanos; esta idéia parece ainda mais natural entre os
aprovou todos os seus dogmas, exceto o que gregos, onde os assassinos, expulsos das cida­
diz respeito à necessidade de ir a Meca; não des e da presença dos homens, pareciam não
podia compreender que não se pudesse adorar possuir outras casas senão os templos e outros
Deus em qualquer parte. Os tártaros, não protetores senão os deuses.
morando em casas, não conhecem templos. Inicialmente isto só dizia respeito aos homi­
cidas involuntários; mas, quando abrangeu os
grandes criminosos, caiu-se numa grosseira
63 Entrando na mesquita de Bucara (Bukhara),
arrebatou o Alcorão, e o atirou aos pés de seus
cavalos. Hist. des Tartares, parte III, pág. 273. (N. 6 5 Esta disposição de espírito atingiu inclusive os
do A.) japoneses, que se originaram dos tártaros, como é
6 4 Ibid., pág. 342. (N. do A.) fácil de provar. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS V 389

contradição: se haviam ofendido os homens, para eles. Os grandes criminosos não mere­
com mais forte razão tinham ofendido os ciam asilo e não os tiveram68. Os judeus ti­
deuses. nham apenas um tabernáculo, que mudava
Multiplicaram-se esses asilos na Grécia: os continuamente de lugar, o que excluía a idéia
templos, diz Tácito66, estavam repletos de de asilo. É verdade que deviam ter um templo;
devedores insolventes e de escravos perversos; mas os criminosos que para aí convergiríam de
os magistrados tinham dificuldade em exercer todas as partes teriam podido perturbar o ser­
sua polícia; o povo protegia os crimes dos ho­ viço divino. Se os homicidas tivessem sido
mens como as cerimônias dos deuses; o senado expulsos do país, tal como o foram entre os
foi obrigado a excluir grande número deles. gregos, dever-se-ia temer que eles adorassem
As leis de Moisés foram muito sábias. Os deuses estrangeiros. Todas essas considerações
homicidas involuntários eram inocentes, mas levaram ao estabelecimento de cidades de asilo
deviam ser afastados da presença dos parentes em que se devia permanecer até a morte do
do morto; estabeleceu portanto um asilo67 sumo pontífice.

6 6 An., liv. III, cap. LX. (N. do A.)


6 7 Núm., cap. XXXV, v. 14. (N. do A.) 68 Ibid., v. 16 e seguintes. (N. do A.)

Capítulo IV

Dos ministros da religião

Os primeiros homens, diz Porfírio, não Exigindo o culto aos deuses atenção contí­
sacrificavam senão ervas. Para um culto tão nua, a maioria dos povos foi levada a fazer do
simples, cada um podia ser pontífice em sua clero um corpo separado. Assim, entre os egíp­
família. cios, os judeus e os persas71, consagraram-se à
O desejo natural de agradar à divindade divindade certas famílias, que se perpetuavam
multiplicou as cerimônias, o que fez com que e faziam o serviço. Houve mesmo religiões em
os homens, ocupados com a agricultura, se tor­ que não se pensou somente em afastar os
nassem incapazes de executar todas elas, e de eclesiásticos dos negócios, mas também em
fazê-lo com todos os pormenores. lhes suprimir o estorvo de uma família; e esta é
Consagraram-se aos deuses lugares particu­ a prática do principal ramo da lei cristã72.
lares: foram necessários ministros para tomá- Não falarei aqui das consequências da lei do
los a seus cuidados, como cada cidadão cuida celibato; sentimos que ela poderia tornar-se
de sua casa e de seus negócios domésticos. prejudicial na proporção em que o corpo do
Destarte, os povos que não têm sacerdotes são clero fosse muito amplo e o dos laicos, por
extraordinariamente bárbaros. Assim eram conseguinte, não o fosse bastante.
outrora os pedalianos 69, assim são ainda os Pela natureza do entendimento humano,
wolgusky 70. amamos em matéria de religião tudo o que
As pessoas consagradas à divindade deviam supõe um esforço, tal como, em matéria de
ser honradas, sobretudo entre os povos que ti­ moral, amamos especulativamente tudo o que
nham formado certa idéia de pureza corporal, leva o caráter à severidade. O celibato foi mais
necessária para se aproximar dos lugares mais agradável aos povos aos quais parecia convir
agradáveis aos deuses, e dependente de certas menos, e para os quais ele poderia acarretar
práticas. deploráveis consequências. Nos países do Sul
da Europa, em que, pela natureza do clima, a
69 Lilius Giraldus, pág. 726. (N. do A.)
70 Povos da Sibéria. Vede a Relação de Everard 71 Vede o Sr. Hyde. (N. do A.)
Isbrands-Ides, na Coletânea das Viagens do Norte, 72 Montesquieu evita dizer que se trata de um
tomo VIII. (N. do A.) ponto de disciplina católica.
390 MONTESQUIEU
lei do celibato é mais difícil de ser observada, admitida; nos em que há muitos, foi rejeitada.
ela foi mantida; nos do Norte, em que as pai­ Sentimos que todas estas reflexões apenas
xões são menos vivas, foi proscrita. Há mais: dizem respeito à enorme extensão do celibato,
nos países em que hâ poucos habitantes, foi e não ao celibato em si.

Capítulo V

Dos limites que as leis devem


estabelecer às riquezas do clero

As famílias particulares podem perecer: sobre os imóveis adquiridos pelas pessoas de


assim, seus bens não têm uma destinação per­ mão-morta. O interesse do príncipe lhe fez exi­
pétua. O clero é uma família que não pode gir um direito de amortização no mesmo caso.
perecer: seus bens são, pois, vinculados para Em Castela, onde não há direito semelhante, o
sempre e dele não podem sair. clero de tudo se apossou; em Aragão, onde há
As famílias particulares podem aumentar; algum direito de amortização, ele adquiriu
faz-se mister, assim, que seus bens possam menos; na França, onde este direito e o da
crescer também. O clero é uma família que não indenização estão implantados, ele adquiriu
deve aumentar: seus bens devem, portanto, ser ainda menos; e podemos dizer que a prosperi­
limitados. dade desse Estado deveu-se, em parte, ao exer­
Mantivemos as disposições do Levítico cício desses dois direitos. Aumentai esses direi­
sobre os bens do clero, exceto as que diziam tos e paralisai a mão-morta, se for possível73
respeito aos limites desses bens: efetivamente, Tornai sagrado e inviolável o antigo e neces­
ignorar-se-á sempre entre nós qual é o termo sário domínio do clero; que seja ele fixo e eter­
depois do qual não é mais permitido a uma no como o próprio clero, mas deixai sair de
comunidade religiosa adquirir. suas mãos os novos domínios.
Essas aquisições sem fim parecem aos Permiti violar a regra, quando a regra tor­
povos tão desarrazoadas, que quem preten­ na-se um abuso; suportai o abuso quando ele
desse defendê-las seria considerado imbecil. retorna à regra.
Às vezes, encontram as leis civis dificul­ Lembra-se sempre, em Roma, de um memo­
dades em modificar abusos estabelecidos, por­ rial que para lá foi enviado por ocasião de al­
que são relacionados a coisas que devem res­ guns litígios com o clero. Nele havia esta má­
peitar. Neste caso, uma disposição indireta xima: “O clero deve contribuir para os
observa melhor o bom espírito do legislador do encargos do Estado, apesar do que diz o Anti­
que outra que se chocaria contra a própria go Testamento”. Concluímos daí que o autor
coisa. Em vez de proibir as aquisições do do memorial compreendia melhor a linguagem
clero, cumpre procurar fazer com que ele pró­ dos impostos que a da religião.
prio se desgoste disso; deixar o direito, e supri­
mir o fato.
Em alguns países da Europa, a consideração 73 Pergunta-se se Montesquieu pensou aqui no
“edito de mão-morta”, do inspetor-geral de Me-
pelos direitos senhoriais fez com que se estabe­ chault, que, em 1747, impôs ao clero, por suas
lecesse em seu favor um direito de indenização possessões imobiliárias, uma autorização legal.

Capítulo VI

Dos mosteiros

Um mínimo de bom senso faz ver que estes devem vender seus bens vitalícios, nem fazer
corpos que se perpetuam eternamente não empréstimos vitalícios, a menos que se queira
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 391

que eles se tornem herdeiros de todos os que ram tê-los. Essa gente joga contra o povo mas
não têm parentes e de todos os que não quei­ conserva a banca contra ele.

Capítulo VII

Do luxo da superstição

“São ímpios para com os deuses”, escreve tano7 6, “a fim de que tenhamos todos os dias
Platão 7 4, “os que negam sua existência; ou os com que honrar os deuses.”
que a aceitam, mas afirmam que eles não se O cuidado que os homens devem ter em ren­
imiscuem nas coisas terrenas; ou, enfim, os der culto à divindade é bem diferente da
que pensam que os apaziguamos facilmente magnificência desse culto. Não lhe ofereçamos
com sacrifícios: três opiniões igualmente per­ nossos tesouros se queremos mostrar-lhe a es­
niciosas.” Platão diz aqui tudo o que o saber tima que fazemos das coisas que ela quer que
natural jamais disse de mais sensato em maté­ desprezemos.
ria de religião. “Que devem pensar os deuses dos dons dos
A magnificência do culto exterior guarda ímpios”, diz Platão admiravelmente7 7, “se um
muita relação com a constituição do Estado. homem de bem se envergonharia ao receber
Nas boas repúblicas, não apenas se suprimiu o presentes de um homem desonesto?”
luxo da vaidade, mas também o da supersti­ Não é necessário que a religião, sob pretexto
ção. Fizeram-se, na religião, leis de poupança. de dádivas, exija dos povos o que as necessi­
Entre elas, encontram-se leis de Sólon, várias dades do Estado lhes deixaram; e, como diz
leis de Platão sobre os funerais, que Cícero Platão, homens castos e piedosos devem ofere­
adotou; enfim, algumas leis de Numa7 5 sobre cer dádivas que se lhes assemelhem.
os sacrifícios. Não seria também necessário que a religião
“Pássaros e pinturas feitas num dia”, diz Cí­ encorajasse as despesas dos funerais. Que
cero, “são dádivas muito divinas.” haveria de mais natural do que suprimir a dife­
“Oferecemos coisas comuns”, diz um espar­ rença das fortunas numa coisa e nos momen­
tos em que todas as fortunas se tornam iguais?
7 4 Das Leis, liv. X. (N. do A.)
7 5 Rogum vino ne respergito. Lei das Doze Tá­ 7 6 Um espartano, . . .Licurgo, diz Plutarco.
buas. (N. do A.) 7 7 Das Leis, liv. IV. (N. do A.)

Capítulo VIII

Do pontificado

Quando a religião tem muitos ministros, é religião com suas próprias leis e como resul­
natural que eles possuam um chefe, e que o tado de sua vontade. Para evitar este inconve­
pontificado se estabeleça. Na monarquia, em niente, é preciso que haja monumentos da reli­
que não seria demais separar as ordens do Es­ gião; por exemplo, livros sagrados que a fixam
tado e onde não se deve reunir sob uma mesma e a estabelecem. O rei da Pérsia é o chefe da
cabeça todos os poderes, é conveniente que o religião; mas o Alcorão regulamenta a reli­
pontificado esteja separado do império. A gião; o imperador da China é o soberano
mesma necessidade não existe no governo pontífice, mas existem livros que estão nas
despótico, cuja natureza é reunir numa mesma mãos de toda gente e aos quais ele próprio
cabeça todos os poderes. Mas, neste caso, deve curvar-se. Inutilmente um imperador quis
poderia ocorrer que o príncipe considerasse a aboli-los; eles triunfaram sobre a tirania.
392 MONTESQUIEU

Capitulo IX

Da tolerância em matéria de religião

Aqui somos políticos e não teólogos; e, para que a reprimiu, não como religião, mas como
os próprios teólogos, fcá muita diferença entre tirania.
tolerar uma religião e aprová-la. É, portanto, útil que as leis exijam dessas
Quando as leis de um Estado acreditaram diversas religiões não somente que não pertur­
dever suportar várias religiões, cumpre que bem o Estado, mas também que não se pertur­
elas as obriguem também a se tolerar entre si. bem mutuamente. Um cidadão não satisfaz às
É um princípio que toda religião reprimida se leis contentando-se com não agitar o corpo do
torna repressora, pois, logo que, por algum Estado, é preciso também que não perturbe
acaso, pode sair-da opressão, ataca a religião qualquer c itro cidadão.

Capítulo X

Continuação do mesmo assunto

Copio quase somente as religiões intole­ leis políticas em matéria de religião. Quando
rantes têm grande zelo em se propagar em ou­ se está em condição de receber num Estado
tras partes, pois uma religião que pode tolerar uma nova religião, ou de não recebê-la, não é
necessário estabelecê-la; quando está estabele­
as demais quase não se ocupa de sua propaga­ cida, faz-se mister tolerá-la.
ção, seria uma lei civil muito boa, quando o
Estado está satisfeito com a religião já estabe­
7 8 Não falo, em todo este capítulo, da religião cris­
lecida, não permitir o estabelecimento7 8 de tã, porque, como afirmei anteriormente, a religião
cristã é o primeiro bem. Vede, no fim do capítulo
outra. primeiro do livro precedente, e a Defesa do Espírito
Eis, portanto, o princípio fundamental das das Leis, segunda parte. (N. do A.)

Capítulo XI

Da mudança de religião
Um príncipe que empreende, em seu Estado, Demais, a religião antiga está ligada à cons­
destruir ou mudar a religião dominante expõe- tituição do Estado e a nova não o está; a pri­
se muito. Se seu governo é despótico, corre meira está mais de acordo com o clima, e,
mais risco em ver uma revolução que, qual­ amiúde, a nova se lhe contradiz. Há mais: os
quer que seja a tirania, nunca é uma coisa cidadãos se desgostam de suas leis; passam a
nova nesses tipos de Estados. A revolução menosprezar o governo já estabelecido; substi­
resulta do fato de um Estado não mudar de
religião, de costumes, e de maneiras num ins­ tuem as desconfianças contra as duas religiões
tante e tão rapidamente quanto o príncipe por uma firme crença em uma delas; numa
publica a ordenança que estabelece uma nova palavra, dão ao Estado, ao menos por algum
religião. tempo, maus cidadãos e maus fiéis.
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 393

Capítulo XII

Das leis penais

É preciso evitar as leis penais em matéria de esqueça; não pelo que indigna, mas pelo que
religião. Elas imprimem o temor, é verdade; lança na tibieza, quando outras paixões agem
mas, como a religião tãmbém tem suas leis pe­ sobre nossas almas e as que a religião inspira
nais que inspiram temor, um é destruído pelo estão silenciadas. Regra geral: em matéria de
outro. Entre esses dois temores diferentes, as mudança de religião, os convites são mais
almas tornam-se atrozes. poderosos do que os castigos.
O caráter do espírito humano revelou-se na
A religião possui ameaças tão grandes, tão
mesma ordem das penas que foram emprega­
grandes promessas, que, quando elas estão pre­
das. Quando nos lembramos das perseguições
sentes em nosso espírito, qualquer coisa que o
no Japão79, revoltamo-nos mais contra os
magistrado possa fazer para nos constranger a suplícios cruéis do que contra as longas penas
abandoná-la parece que não nos deixa nada que cansam mais do que amedrontam, que são
quando no-la retira e que não nos retira nada mais difíceis de superar, porque parecem
quando no-la deixa. menos difíceis.
Não é, pois, enchendo a alma deste grande Numa palavra, a história nos ensina que as
objeto, aproximando-a do momento em que ele leis penais nunca tiveram resultado senão
deve ser de maior importância, que se conse­ como destruição.
gue separá-la dele: ele está mais certo de ata­
car uma religião pelo favor, pelas comodi­ 79 Vede a Recueil des Voyages qui Ont Servi à
dades da vida, pela esperança da fortuna; não rÉtablissement de la Compagnie des Indes, t. V,
pelo que adverte, mas pelo que faz com que se parte I, pág. 192. (N. do A.)

Capítulo XIII80
Muito humilde exortação aos inquisidores
da Espanha e de Portugal

Uma judia de dezoito anos, queimada em só podeis lamentar vossa fraqueza que vos im­
Lisboa no último auto-de-fé, motivou esta pede de nos exterminar e que faz com que vos
pequena obra; e penso que é a mais inútil das exterminemos.’
que já foram escritas. Quando se trata de pro­ “Mas é necessário confessar que sois bem
var coisas tão evidentes, está-se certo de não mais cruéis do que este imperador. Mandai-
convencer. nos matar, nós que só acreditamos no que cre­
O autor declara que, apesar de judeu, res­ des, porque não acreditamos em tudo o que
peita a religião cristã e que a ama bastante
credes. Seguimos uma religião que vos pró­
para retirar aos príncipes que não são cristãos
prios o sabeis ter sido outrora a religião predi­
um pretexto plausível para persegui-la.
leta de Deus; pensamos que Deus a ama ainda;
“Lamentai-vos”, diz ele aos inquisidores,
“de que o imperador do Japão mandou quei­ e vós pensais que Ele não a ama mais; e por­
mar lentamente todos os cristãos de seus Esta­ que julgais assim, fazeis passar pelo ferro e
dos; mas ele vos responderá: ‘Tratamo-vos, pelo fogo os que se encontram neste erro tão
vós que não credes como nós, como vós pró­
prios tratais os que não acreditam como vós; 80 Ver a XIX das Lettres Persanes.
394 MONTESQUIEU

perdoável de crer que Deus81* ama também o mas caberá aos filhos que tiveram a herança
que amou. dos pais odiar os que não a tiveram?
“Se sois cruéis conosco, sois muito mais em “Se possuís esta verdade, não a oculteis de
relação a nossos filhos; mandais queimá-los nós pela maneira com que no-la propondes. O
porque seguem muitas vezes as inspirações que caráter da verdade é seu triunfo sobre os cora­
lhes deram aqueles que a lei natural e as leis de ções e os espíritos, e não esta impotência que
todos os povos lhes ensinam a respeitar como revelais quando quereis fazer que a recebam
deuses. com suplícios.
“Privais-vos da vantagem que Ivos deu sobre “Se sois razoáveis, não nos deveis matar,
os maometanos a maneira pela qual sua reli­ pois não vos desejamos ludibriar. Se vosso
gião se estabeleceu. Quando eles se gabam do Cristo é o filho de Deus, esperemos que ele nos
número de seus fiéis, vós lhes dizeis que o recompensará por não termos querido profa­
adquiriram à força e que propagaram sua reli­ nar seus mistérios; e acreditamos que o Deus a
gião pelo ferro; por que, então, estabeleceis a que servimos, vós e nós, não nos punirá pelo
vossa pelo fogo? fato de termos sofrido a morte por uma reli­
“Quando quereis fazer com que cheguemos gião que outrora nos deu, porque acreditamos
a vós, nós vos objetamos uma origem de que ainda que por ele nos foi dada.
vos gabais de descender. Respondeis que vossa “Viveis num século em que o saber natüral é
religião é nova mas divina e o provais porque mais vivo do que jamais o foi, em que a filoso­
se difundiu sob a perseguição dos pagãos e fia iluminou os espíritos, em que a moral de
pelo sangue de vossos mártires; mas hoje assu­ vosso Evangelho é mais conhecida, em que os
mis o papel dos Dioclecianos e nos obrigais a direitos respectivos dos homens uns sobre os
assumir o vosso. outros, o império que uma consciência tem
“Conjuramo-vos, não pelo Deus poderoso a sobre outra consciência, estão melhor estabele­
que servimos, vós e nós, mas pelo Cristo que cidos. Se, pois, não abandonais vossos antigos
nos dizeis ter assumido a condição humana preconceitos que, se não vos acautelardes,
para vos propor exemplos que pudésseis serão vossas paixões,, devemos confessar que
seguir; conjuramo-vos a agir como ele próprio sois incorrigíveis, incapazes de toda luz e de
agiria se estivesse ainda sobre a terra. Quereis toda instrução; e uma nação que outorga a
que sejamos cristãos e não o quereis sê-lo. autoridade a homens como vós é bem infeliz.
“Mas, se não quereis ser cristãos, sede ho­ “Quereis que vos digamos simplesmente
mens ao menos: tratai-nos como farieis se, nosso pensamento? Considerais-nos antes
possuindo apenas esses fugazes lampejos de como vossos inimigos do que como inimigos
justiça que a Natureza nos dá, não tivésseis de vossa religião; pois, se amásseis vossa reli­
uma religião para vos conduzir, e uma revela­ gião, não a deixarieis corromper por grosseira
ção para vos esclarecer. ignorância.
“Se o céu vos amou bastante para fazer-vos “Cumpre advertir-vos de uma coisa: se
ver a verdade, ofereceu-vos uma grande graça; alguém na posteridade ousar alguma vez dizer
que no século em que vivemos os povos da Eu­
ropa eram policiados, outra pessoa citar-vos-á
81 É a origem da obstinação dos judeus não perce­
ber que a economia do Evangelho está na ordem para provar que eram bárbaros e a idéia que se
dos desígnios de Deus e que, assim, ela é uma terá de vós será tal, que aviltará vosso século e
consequência de sua própria imutabilidade. (N. do trará o ódio para todos os vossos contemporâ­
neos.”
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 395

Capítulo XIV

Por que a religião cristã é tão odiosa ao Japão

Falei do caráter atroz das almas japone­ As punições, entre os japoneses, são consi­
sas82. Os magistrados consideraram a firmeza deradas como a vingança de um insulto feito
que inspira o cristianismo quando se trata de ao príncipe. Os cantos de regozijo de nossos
renunciar à fé como muito perigosa: acredi­ mártires pareceram um atentado contra ele: o
taram ver aumentar a audácia. A lei do Japão título de mártir indignou os magistrados; em
pune severamente a menor desobediência. seus espíritos, significava rebelde; tudo fize­
Ordena-se renunciar à religião cristã: não ram para impedir que fosse obtido. Foi então
renunciar significava desobedecer; castigava- que as almas se aterrorizaram e que se viu hor­
se este crime e a continuação da desobediência rível combate entre os tribunais que condena­
parecia merecer outro castigo. ram e os acusados que sofreram, entre as leis
82 Livro VI, cap. XIII. (N. do A.) civis e as da religião.

Capítulo XV

Da propagação da religião

Todos os povos do Oriente, exceto os maneiras, obtenha todo o êxito que sua santi­
maometanos, julgam todas as religiões indife­ dade deveria prometer-lhe. Isso é verdadeiro
rentes em si mesmas. Temem o estabeleci­ principalmente nos grandes impérios despóti­
mento de outra religião apenas como mudança cos: toleram-se inicialmente os estrangeiros,
no governo. Entre os japoneses, em que há vá­ porque não se dá atenção ao que não parece
rias seitas, e onde o Estado teve durante longo atingir o poderio do príncipe: vive-se numa
tempo um chefe eclesiástico, nunca se discute ignorância extrema de tudo. Um europeu pode
a respeito de religião83. Acontece o mesmo tornar-se agradável por certos conhecimentos
entre os siameses84. Os calmucos8 5 fazem que proporciona: isto é bom no início. Mas,
mais: consideram uma questão de consciência logo que se obtém algum êxito, que surge
tolerar todas as formas de religião. Em Cale- algum litígio, que as pessoas que podem ter
cute8 6 é uma máxima do Estado considerar algum interesse são advertidas, proscreve-sp
boa toda religião8 7. logo a nova religião e os que a anunciam, pois
Mas disso não resulta que uma religião, tra­ este Estado, pela sua natureza, exige sobretudo
zida de uma região muito afastada e total­ tranquilidade e a menor perturbação pode
mente diferente em clima, em leis, costumes e destrüí-lo; irrompendo as disputas entre os que
a pregam, começa-se a se desgostar de uma
83 Vede Kempfer. (N. do A.)
8 4 Mémoires do Conde de Forbin. (N. do A.) religião em que até mesmo os que a propagam
8 5 Histoire des Tartares, parte V. (N. do A.) não se põem de acordo88.
8 6 Calecute, na índia; na presidência de Madrasta,
capital de província inglesa.
8 7 Voyage de François Pyrard, cap. XXVII. (N. 88 Referência à rivalidade entre jesuítas e domini­
do A.) canos na China.
LIVRO VIGÉSIMO SEXTO
DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE DEVEM TER COM A ORDEM
DAS COISAS SOBRE AS QUAIS ESTATUEM
Capítulo I

Idéia deste livro

Os homens são governados por diversas sociedade, segundo o qual todo cidadão pode
espécies de leis: pelo direito natural; pelo direi­ defender seus bens e sua vida contra qualquer
to divino, que é o da religião; pelo direito outro cidadão; e, finalmente, pelo direito
eclesiástico, igualmente chamado canônico, doméstico, que deriva do fato de uma socie­
que é o da polícia da religião; pelo direito das dade achar-se dividida em diversas famílias
gentes, que se pode reputar como o direito civil que têm necessidade de um governo particular.
do universo, no sentido de que cada povo é um
Há, portanto, diferentes ordens de leis; e a
cidadão seu; pelo direito político geral, que
sublimidade da razão humana consiste em
versa sobre esta sabedoria humana em que se
estribam todas as sociedades; pelo direito polí­ saber justamente com qual destas ordens se
tico particular, que diz respeito a cada socieda­ relacionam, principalmente, as coisas sobre as
de; pelo direito de conquista, fundamentado quais se deve estatuir, e em não introduzir con­
em que um povo quis, pôde e teve de fazer fusão nos princípios que devem governar os
violências a outro; pelo direito civil de cada homens.

Capítulo II

Das leis divinas e das leis humanas

Não se deve de modo algum estatuir pelas nas preceituam sobre o bem; a religião, sobre o
leis divinas o que deve sê-lo pelas leis huma­ melhor. O bem pode ter outro objeto, porque
nas, nem regulamentar pelas leis humanas o há vários bens, mas o melhor é somente um;
que deve ser feito pelas leis divinas. não pode mudar, portanto. A nós é dado
Essas duas sortes de leis divergem em sua mudar as leis, porque julgamo-las apenas
origem, em seu objeto e em sua natureza89. boas; mas as instituições da religião sempre
Todos estão de acordo em que as leis huma­ são consideradas as melhores.
nas são de natureza diferente da das leis da 2. °) Existem Estados em que as leis nada
religião, e isso constitui um grande princípio; representam, ou não passam de uma vontade
mas este mesmo princípio está sujeito a outros caprichosa e passageira de um soberano. Se,
que é necessário procurar. nestes Estados, as leis da religião fossem da
°) É da natureza das leis humanas estarem
l. mesma natureza das leis humanas, tampouco
submetidas a todos os acidentes que sobrevêm, nada representariam; é necessário, portanto, à
e variarem à medida que as vontades dos ho­ sociedade, que haja alguma coisa de fixo, e al­
mens mudam; ao passo que é da natureza das guma coisa de fixo é a religião.
leis da religião nunca variarem. As leis huma­
3. °) A principal força da religião promana
do fato de acreditarmos nela; já as leis huma­
89 A distinção nem sempre é fácil, nem, sobretudo,
são tão conciliâveis as duas ordens, como se vê pelo nas têm sua força em temermo-las. À religião
debate entre Antígone e Créon. convém a antiguidade, porque muitas vezes
400 MONTESQUIEU
cremos mais nas coisas à medida que mais Ao contrário, as leis humanas tiram proveito
remotas se encontram de nós; e isso porque de sua novidade, que denota uma atenção par­
não temos, na mente, idéias acessórias tiradas ticular e atual do legislador, a fim de torná-las
destes tempos, as quais possam contradizê-las. obedecidas.

Capítulo III

Das leis civis que são contrárias à lei natural

“Se um escravo”, diz Platão90, “se defende suplício do pudor natural? A educação aumen­
e mata um homem livre, deve ser tratado como tou-lhe a idéia da conservação deste pudor; e
parricida.” Aí está uma lei civil que pune a de­ mal lhe restou, nestes momentos, uma idéia da
fesa natural. perda da vida.
A lei que, no tempo de Henrique VIII, con­ Muito se falou de uma lei da Inglaterra91
denava um homem sem que tivessem sido aca­ que permitia a uma menina escolher um mari­
readas as testemunhas era contrária à defesa do. Esta lei era revoltante por dois aspectos:
natural: com efeito, para que se possa conde­ não tinha nenhuma deferência para com o
nar, é mister que as testemunhas saibam que o tempo da maturidade que a Natureza deu ao
homem contra quem depõem é mesmo o acu­ espírito, nem para com o tempo da maturidade
sado, e que esse possa dizer: Não é de mim que que ela deu ao corpo.
estais falando. Entre os romanos, um pai podia obrigar a
A lei admitida no mesmo reinado, conde­ filha a repudiar o marido92, embora tivesse
nando toda jovem que, tendo mantido relações antes consentido no casamento. Mas é contra a
ilícitas com alguém antes de desposá-lo, não o Natureza o divórcio ser posto nas mãos de
declarasse ao rei, contrariava a defesa do uma terceira pessoa.
pudor natural; é tão disparatado exigir de uma Se o divórcio é conforme à Natureza,
jovem que faça esta declaração, quanto pedir a somente o é quando as duas partes, ou ao
um homem que não procure defender a vida. menos uma delas, nele consentem; quando
A lei de Henrique II, que condena à morte a nem uma nem outra concordam com ele, o
jovem cujo filho tenha perecido, no caso em divórcio é uma monstruosidade. Enfim, a
que não tenha declarado sua gravidez ao faculdade de decretar o divórcio só deve ser
magistrado, não é menos contrária à defesa dada aos que sofrem dos incômodos do casa­
natural. Bastava obrigá-la a informar a res­ mento e que conhecem o momento em que há
peito uma das suas parentas mais próximas, interesse em cessá-los.
que cuidaria da conservação da criança.
Que outra confissão poderia ela fazer neste 91 Bayle fala desta lei na pág. 293 da Critique de
l’Histoire du Calvinisme. (N. do A.)
92 Vede a lei 5, no cód. de Repudiis et Judicio de
90 Liv. IX Das Leis. (N. do A.) moribus sublato. (N. do A.)

Capítulo IV

Continuação do mesmo assunto

Gondovaldo93, rei da Borgonha, ordenava crime94. Esta lei ia contra a Natureza. Como
que fossem reduzidos à escravidão a mulher ou podia uma mulher ser acusadora do marido?
filho daquele que roubou, se não revelassem o Como um filho podia ser acusador do próprio

93 Lei dos borguinhões. tít. XLVII. (N. do A.) 94 A fim de indenizar a vítima do roubo.
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 401

pai? Para compensar uma ação criminosa, descobrir o crime de sua madrasta quanto teria
ordenava outra ainda mais criminosa. pelo próprio crime; em sua surpresa, acusado,
A lei de9 5 Recessuindo permitia que os fi­ julgado, proscrito e coberto de infâmia, mal
lhos da mulher adúltera, ou os de seu marido, ousa fqzer algumas reflexões sobre o sangue
acusassem-na e submetessem a maus-tratos os abominável de que proveio Fedra; ele aban­
escravos da casa. Lei iníqua, já que, para pre­ dona o que tem de mais caro, tudo o que pode
servar os costumes, subvertia a Natureza, onde
indigná-lo, a fim de entregar-se à vingança dos
os costumes têm sua origem.
Com prazer assistimos, em nossos teatros, a
deuses que ele não mereceu9 6. São os acentos
um jovem herói demonstrar tanto horror por da Natureza que causam este prazer; é a mais
doce de todas as vozes.
9 5 No Código dos visigodos, liv. III, tít. IV, § 13.
(N. do A.) 9 6 Trata-se da Fedra de Racine.

Capítulo V

Caso em que se pode julgar pelos princípios do direito


civil modificando os princípios do direito natural

Uma lei de Atenas9 7 obrigava os filhos a seu caráter1 00; que, no terceiro, havia-lhes tor­
alimentar os pais que houvessem caído na nado insuportável uma vida que sentiam tanta
miséria; fazia exceção aos nascidos98 de uma dificuldade em manter. A lei encarava o pai e o
cortesã, àqueles cujo pai havia exposto a pudi- filho tão-somente como dois cidadãos, estatuía
cícia por um tráfico infame e àqueles a quem99 apenas sobre concepções políticas e civis;
não se tinha dado ofício para ganhar a vida. considerava que, numa boa república, são
A lei considerava que, no primeiro caso, necessários principalmente os costumes.
sendo incerto o pai, tornara precária sua obri­ Creio, na verdade, que a lei de Sólon era boa
gação natural; que, no segundo, aviltara a vida nos dois primeiros casos, ou seja, naquele em
que havia dado, e que o maior mal que poderia que a Natureza deixa que o filho ignore qual é
fazer a seus filhos, ele o fizera, ao privá-los de seu pai e naquele em que, segundo parece, ela
mesma ordena que o desconheça; mas não
poderiamos aprová-la no terceiro, em que o
9 7 Sob pena de infâmia; uma outra, sob pena de pri­ pai violara apenas um preceito civil.
são. (N. do A.)
98 Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.)
99 Plutarco, Vida de Sólon; e Galiano, in Exhort. ad 1 00 . . . de seu caráter. . ., de sua reputação, de sua
Art., cap. VIII. (N. do A.) honra.

Capítulo VI

De como a ordem das sucessões depende dos


princípios do direito político ou civil, e não dos
princípios do direito natural
A lei Voconiana não permitia, de forma mula de Marculfo102 chama ímpio o costume
alguma, que se instituísse herdeira uma mu­ que priva as filhas de suceder aos pais. Justi-
lher, nem mesmo filha única. Nunca houve, diz niano103 considera bárbaro o direito de suce­
Santo Agostinho1 01, lei mais injusta. Uma fór­ der dos homens, em detrimento das mulheres.

102 Liv. II, cap. XII. (N. do A.)


1 01 De Civilate Dei, liv. III. (N. do A.) 103 Novelas, 21. (N. do A.)
402 MONTESQUIEU

Essas idéias procedem do fato de se ter visto o deia tem um chefe, segundo este antigo costu­
direito que os filhos têm de suceder aos pais me escolhe-se o tio, ou qualquer outro parente,
como uma consequência da lei natural; o que para suceder.
não é. Há monarquias puramente eletivas; e, desde
A lei natural ordena aos pais que alimentem que está claro que a ordem das sucessões deve
seus filhos, mas não os obriga a instituí-los derivar das leis políticas ou civis, cabe a elas
herdeiros. A partilha dos bens, as leis sobre decidir em que caso a razão ordena que esta
esta partilha, as sucessões após a morte daque­ sucessão seja outorgada aos filhos, e em que
le que fez essa partilha, tudo isso só pode ter casos deve-se concedê-la a outros.
sido regulamentado pela sociedade e, por Nos países em que a poligamia é assentada,
conseguinte, por leis políticas ou civis. o príncipe tem muitos filhos; o seu número é
É verdade que a ordem política ou civil maior nuns países do que em outros. Há cer­
quer, muitas vezes, que os filhos sucedam aos tos109 Estados em que a manutenção dos fi­
pais; mas não o exige sempre. lhos do rei seria impossível ao povo; aí se pôde
As leis de nossos feudos podem ter tido estabelecer que os filhos do rei não lhe sucede­
razões para que o mais velho dos filhos varões, ríam, mas sim os da irmã.
ou os parentes mais próximos na linha dos Um prodigioso número de filhos exporia o
homens, tivessem tudo, e que as filhas não Estado a temíveis guerras civis. A ordem de
tivessem nada; e as leis dos lombardos10 4 sucessão que outorga a coroa aos filhos da
podem tê-las tido para que as irmãs, os filhos irmã, cujo número não é maior do que seria o
naturais, os outros parentes e, na sua falta, o dos filhos de um príncipe que só tivesse uma
fisco tivessem os mesmos direitos que as filhas. esposa, previne tais inconvenientes.
Em algumas dinastias da China, foi regula­ Existem nações nas quais razões de Estado
mentado que os irmãos do imperador lhe suce­ ou alguma máxima de religião exigiram que
deríam, e que seus filhos não lhe sucederíam. uma certa família fosse sempre a reinante: tal
Se se queria que o príncipe tivesse alguma é, nas índias11 °, o ciúme de casta e o medo de
experiência, se se temiam as minoridades, se não descender dela. Pensou-se lá que, a fim de
era preciso prevenir que os eunucos colocas­ sempre ter príncipes de sangue real, cumpria
sem sucessivamente crianças no trono, agiu-se tomar os filhos da irmã mais velha do rei.
muito bem fixando-se semelhante ordem de Máxima geral: alimentar os filhos constitui
sucessão; e, quando alguns10 5 escritores cha­ uma obrigação do direito natural; conceder-
maram estes irmãos de usurpadores, estavam lhes a sucessão é uma obrigação do direito
julgando baseados em idéias tiradas das leis de político ou civil. Daí procedem as diferentes
seus países. disposições sobre os bastardos nos diversos
Segundo o costume da Numídia1 0 6, Delsá- países do mundo; seguem elas as leis civis ou
cio1 0 7, irmão de Gela, sucedeu-lhe ao trono, e políticas de cada país.
não Massinissa, seu filho. E ainda hoje108,
entre os árabes da Barbaria, em que cada al­
109 Como em Lovengo, na África. Vede a Recueil
des Voyages qui Ont servi à 1'Établissement de la
1 0 4 Liv. II, tít. XIV, §§ 6, 7 e 8. (N. do A.) Compagnie des Indes, tomo IV, part. I, pág. 114, e
10 5 O Padre du Halde, sobre a segunda dinastia. Smith, Viagem à Guiné, part. II, pág. 150, sobre o
(N. do A.) reinado de Juidá. (N. do A.)
1 0 6 Tito Lívio, liv. XXIX, cap. XXIX. (N. do A.) 11 0 Vede as Lettres Édifiantes, décima quarta c&le-
1 0 7 Delsácio, Elsácio. tânea; e Les Voyages qui Ont Servi d
108 Vede as Viagens do Sr. Schaw, tomo I, pág. ITÈtablissement de la Compagnie des Indes, tomo
402. (N. do A.) III, parte II, pág. 644. (N. do A.).
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 403

Capítulo VII

De como não se deve decidir pelos preceitos


da religião quando se trata dos da lei natural

Os abexins têm uma quaresma de cinquenta sábado; mas constituiu uma estupidez desta
dias, muito rude, e que de tal modo os debilita, nação não se defender112, quando seus inimi­
que, por muito tempo, são incapazes de qual­ gos escolheram este dia para atacá-los.
quer ação: os turcos111 não deixam de atacá- Cambises, ao sitiar Pelusa, pôs na primeira
los após sua quaresma. A religião, em proveito fileira grande número de animais que os egíp­
da defesa natural, deveria pôr limites a essas cios consideravam sagrados; os soldados da
práticas. guarnição não se atreveram a atirar. Quem
Ordenou-se aos judeus que descansassem no não vê que a defesa natural é de ordem supe­
rior a todos os preceitos?
111 Recueil des Voyages qui Ont Servi a
lÉtablissement de la Compagnie des Indes, tomo '12 Como fizeram, quando Pompeu sitiou o Tem­
IV, parte I, págs. 35 e 103. (N. do A.) plo.' Vede Dion, liv. XXXVII, cap. XVI. (N. do A.)

Capítulo VIII

De como não se deve regulamentar pelos princípios


do direito que se chama canônico as coisas reguladas
pelos princípios do direito civil

Pelo direito civil dos romanos113, aquele nais da Igreja, onde só se viam as máximas do
que furta de um lugar sagrado uma coisa parti­ direito canônico; e, com efeito, encarando o
cular é castigado apenas pelo crime de furto; casamento apenas dentro das idéias puramente
pelo direito canônico11 4, é punido pelo crime espirituais e na relação com as coisas da outra
de sacrilégio. O direito canônico leva em vida, a violação é a mesma. Mas as leis políti­
consideração o lugar; o direito civil, a coisa. cas ou civis de quase todos os povos fizeram
Mas levar em conta somente o lugar equivale a distinção, com razão, entre esses dois casos.
não refletir nem sobre a natureza e a definição Exigiram das mulheres um grau de comedi-
do roubo, nem sobre a natureza e a definição mento e de continência que não pedem aos
do sacrilégio. homens, porque a violação do pudor pressupõe
Como o marido pode pedir a separação em nas mulheres uma renúncia a todas as virtu­
virtude de infidelidade da mulher, essa outrora des; porque a mulher, ao violar as leis do casa­
pedia-a por causa da infidelidade do mari­ mento, deixa o estado de dependência natural;
do11 5. Tal uso, contrário ao dispositivo das porque a Natureza assinalou a infidelidade das
leis31 6 romanas, fora introduzido nos tribu- mulheres com marcas certas, além de que os fi­
11 3 Leg. 5, ff. ad leg. Juliam peculatus. (N. do A.) lhos adulterinos da mulher são necessaria­
114 Cap. quisquis 17, quaestione 4; Cujácio, mente do marido, e estão ao cargo dele,
Observat., liv. XIII, cap. XIX, tomo III. (N. do A.) enquanto os filhos adulterinos do marido não
11 5 Beaumanoir, Ancienne Coutume de Beauvoi- são da mulher, nem se encontram ao cargo
sis, cap. XVIII, § 6. (N. do A.)
11 6 Leg. I, cód. ad leg. Jul. de adulter. (N. do A.) dela.
404 MONTESQUIEU

Capítulo IX

De como as coisas que devem ser reguladas pelos


princípios do direito civil raramente podem sê-lo
pelos princípios das leis da religião

As leis religiosas têm mais sublimidade; as rasse quatro anos, após os quais podia enviar
leis civis dispõem de mais extensão. ao chefe120 o libelo de divórcio; e, se seu mari­
As leis de perfeição, extraídas da religião, do voltasse, não podia mais acusá-la de adulté­
têm por objeto mais a bondade do homem que rio. Mas Justiniano121 estabeleceu que, qual­
as segue do que a da sociedade nas quais são quer que fosse o tempo decorrido desde a
observadas; ao contrário, as leis civis versam partida do marido, não podia ela casar-se
mais sobre a bondade moral dos homens em novamente, a menos que provasse a morte do
geral do que sobre a dos indivíduos. marido, pelo depoimento e pelo juramento do
Deste modo, por respeitáveis que sejam as
chefe. Justiniano tinha em vista a indissolubi-
idéias que nascem imediatamente da religião,
lidade do casamento; mas pode-se dizer que a
não devem sempre servir de princípio às leis
civis, porque é outro o princípio destas, que é o tinha muito em vista. Pedia uma prova positi­
bem geral da sociedade. va, quando bastava uma prova negativa; exigia
Os romanos estabeleceram regulamentos a uma coisa muito difícil: dar conta do destino
fim de resguardar na república os costumes de um homem afastado e exposto a tantos aci­
das mulheres: eram as instituições políticas. dentes; presumia um crime, isto é, a deserção
Quando se instalou a monarquia, criaram leis do marido, quando era tão natural presumir-
civis a este respeito; e as estabeleceram sobre lhe a morte. Ia de encontro ao bem público, ao
os princípios do governo civil. Quando apare­ deixar uma mulher sem casamento; ia de
ceu a religião cristã, as novas leis estabelecidas encontro ao interesse particular, ao expô-la a
apresentaram menos relação com a bondade mil perigos.
geral dos costumes do que com a santidade do A lei de Justiniano122, que colocou entre as
casamento; considerar-se-á menos a união dos causas do divórcio o consentimento do marido
dois sexos no estado civil do que num estado e da mulher em ingressar num mosteiro, afas­
espiritual. tava-se totalmente dos princípios das leis civis.
Primeiramente, pela lei11 7 romana, um ma­
É natural que certas causas do divórcio prove­
rido que recebia sua mulher após a condena­
nham de certos impedimentos que não se podia
ção de adultério deveria ser punido como cúm­
plice de seus desregramentos. Justiniano118, prever antes do casamento; mas se podia pre­
dentro de outro espírito, ordenou que ele pode­ ver o desejo de castidade, pois está em nós.
ría, durante dois anos, ir retomá-la no mostei­ Esta lei favorecia a inconstância num estado
ro. que é perpétuo por sua própria natureza; cho­
Quando uma mulher que tinha o marido na cava o princípio fundamental do divórcio, que
guerra não ouvia mais falar dele, podia, nos só aceitava a dissolução de um casamento na
primeiros tempos, casar de novo facilmente, esperança de outro; finalmente, mesmo se­
porque tinha nas mãos o poder de divorciar-se. guindo as idéias religiosas, ela apenas dedi­
A lei de Constantino11 9 ordenou que ela espe­ cava a Deus vítimas sem sacrifício.

11 7 Leg. II, § últ. ff. ad leg. Jul. de adult. (N. do A.) 120 ... ao chefe, à autoridade militar.
118 Novelas, 134, cap. X. (N. do A.) 121 Aut. Hodie quantiscumque, cód. de repud. (N.
11 9 Leg. 7, cód. de Repudiis et Judicio de moribus do A.)
sublato. (N. do A.) 12 2 Aut. Quod hodie; cód. de repud. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 405

Capitulo X

Em que caso se deve seguir a lei civil


que permite, e nào a lei da religião que proíbe
Quando, num país em que a poligamia é tal religião, a menos que o magistrado e o ma­
permitida, introduz-se uma religião que a proí­ rido as indenizem, restituindo-lhes, de alguma
maneira, seu estado civil. Do contrário, sua
be, não acreditamos, falando apenas politica­
condição seria deplorável; nada mais teriam
mente, que a lei do país deva admitir que um feito do que obedecer às leis, e se veriam priva­
homem que tem várias mulheres se converta a das das maiores vantagens da sociedade.

Capítulo XI

De como não se deve regulamentar os tribunais humanos


pelas máximas dos tribunais que concernem à outra vida

O tribunal da inquisição, formado pelos do vantagens dessas mesmas contradições.


monges cristãos à idéia do tribunal da penitên­ Esse tribunal é insuportável em todos os
cia, é contrário a toda boa polícia. Em governos. Na monarquia, só pode produzir
toda parte encontrou uma revolta geral; e te­ delatores e traidores; nas repúblicas, só pode
ria cedido às contradições, se aqueles que originar pessoas desonestas; no Estado despó­
pretendiam estabelecê-lo não houvessem tira­ tico, é tão destruidor quanto ele.

Capítulo XII

Continuação do mesmo assunto

Constitui um dos abusos desse tribunal que, mento e salvo. Semelhante distinção, porém,
de duas pessoas acusadas do mesmo crime, não pode dizer respeito aos tribunais huma­
aquela que nega é condenada à morte, e aquela nos; a justiça humana, que vê tão-somente as
que confessa evita o suplício. Isto é extraído ações, tem com os homens um único pacto,
das idéias monásticas, em que aquele que nega que é o da inocência; a justiça divina, que vê
parece estar na impenitência e condenado, e os pensamentos, tem dois, o da inocência e o
aquele que confessa parece estar no arrependi­ do arrependimento.
406 MONTESQUIEU

Capítulo XIII

Em que caso deve-se seguir, em relação


aos casamentos, as leis da religião e em que caso
deve-se seguir as leis civis

Ocorreu, em todos os países e em todos os que se trata de caracteres complementares e


tempos, que a religião se imiscuiu nos casa­ não de caracteres contraditórios. A lei reli­
mentos. Desde que*certas coisas foram consi­ giosa prescreve certas cerimônias, e as leis
deradas impuras e ilícitas, e entretanto eram civis querem o consentimento dos pais; com
necessárias, teve-se de apelar para a religião, a isso, exigem algo mais, mas nada exigem que
fim de legitimá-las num caso, e reprová-las nos seja contraditório.
outros. Segue-se daí que compete à lei da religião
De outro lado, sendo os casamentos, de decidir se o laço será indissolúvel ou não, pois,
todas as ações humanas, a que mais de perto se as leis da religião houvessem estabelecido o
interessava a sociedade, foi necessário que fos­ laço indissolúvel, e as leis civis tivessem
sem regulamentados pelas leis civis. preceituado que ele podia romper-se, seriam
Tudo o que diz respeito ao caráter do casa­ duas coisas contraditórias.
mento, à sua forma, à maneira de contraí-lo, à Os caracteres impressos ao casamento pelas
fecundidade que proporciona, que fez com que leis civis não são, às vezes, de absoluta neces­
todos os povos compreendessem que era obje­ sidade; assim são aqueles estabelecidos pelas
to de uma bênção particular, que, não lhe leis que, em lugar de anular o casamento,
estando sempre vinculada, dependia de certas contentaram-se com punir os que o contraí­
graças superiores; tudo isso é da competência ram.
da religião. Entre os romanos, as leis Papianas declara­
As consequências dessa união em relação ram contrários à justiça os casamentos que
aos bens, as vantagens recíprocas, tudo o que elas proibiam, e os submeteram tão-somente a
se relaciona com a nova família, com aquela penas123, e o senatus-consulto dado sobre o
donde saiu, com a que deve nascer, tudo isso discurso do Imperador Marco Antonino decla­
concerne às leis civis. rou-os nulos; não houve mais124 casamento,
Já que um dos grandes objetos do casa­ mulher, dote, marido. A lei civil determina-se
mento é eliminar todas as incertezas que segundo as circunstâncias; às vezes ela se
pesam sobre as uniões ilegítimas, a religião preocupa com reparar o mal, outras com
imprime-lhe seu caráter e as leis civis acrescen- preveni-lo.
tam-lhe o seu, a fim de que tenha toda autenti­
cidade possível. Desse modo, além das condi­ 123 Vede o que escrevi acima, no cap. XXI do
ções que a religião exige para que seja válido o livro XXIII: Das leis, na relação que têm com o nú­
matrimônio, as leis civis ainda podem exigir mero de habitantes. (N. do A.)
12 4 Vede a lei 16, ff. de ritu nuptiarum; e a lei 3, §
outras. 1, também no Digesto, de donationibus inter virum
O que transmite esse poder às leis civis é et uxorem. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 407

Capítulo XIV

Em que casos, nos casamentos entre parentes,


deve-se regulamentar pelas leis da Natureza; em que casos
deve-se regulamentar pelas leis civis

Na questão da proibição de casamento entre preciso falar, é necessário fazer-se amar, é pre­
parentes, é coisa muito delicada situar com ciso seduzir; esta sedução é que deve ter inspi­
exatidão o ponto em que se detêm as leis da rado horror.
natureza, e aquele em que se iniciam as leis Necessitou-se, portanto, de uma barreira
civis. Para tanto, é mister fixar princípios. insuperável entre aqueles que deviam ministrar
O casamento do filho com a mãe confunde o a educação e os que deviam recebê-la, e evitar
estado das coisas: o filho deve um respeito ili­ toda espécie de corrupção, mesmo em causa
mitado à mãe, a mulher deve um respeito ilimi­ legítima. Por que os pais privam com tanto
tado ao marido; o casamento da mãe com o cuidado os que tencionam desposar suas filhas
filho subvertería, num e noutro, seu estado da companhia e da familiaridade delas?
natural. O horror ao incesto do irmão com a irmã
Há mais: a Natureza adiantou, nas mulhe­ deve ter provindo da mesma fonte. Foi sufi-
res, o tempo em que podem gerar filhos; retar- cente que os pais e as mães tenham querido
dou-o nos homens; e, pela mesma razão, a mu­ conservar puros os costumes de seus filhos e
lher cessa de ter essa faculdade antes, e o suas casas, para inspirar aos filhos horror por
homem, mais tarde. Se fosse permitido o casa­ tudo o que podia incitá-los à união dos dois
mento entre mãe e filho, aconteceria quase sexos.
sempre que, quando o marido fosse capaz de A proibição do casamento entre primos
cumprir os desígnios da Natureza, a mulher coirmãos tem a mesma origem. Nos primeiros
não mais o seria. tempos, isto é, nos tempos santos, nas épocas
O casamento entre o pai e a filha repugna à em que não se conhecia o luxo, todos os1 2 7 fi­
Natureza como o anterior; mas repugna lhos permaneciam em casa, e aí se estabele­
menos, porque não apresenta esses dois obstá­ ciam; é que numa casa pequena podia-se abri­
culos. Daí por que os tártaros, que podem des- gar uma grande família. Os filhos128 dos dois
posar suas filhas12 5, jamais o fazem com as irmãos, ou primos coirmãos, eram conside­
mães, como vemos nos Relatórios'2 6. rados e se consideravam entre si irmãos. A
Sempre foi da natureza dos pais velar pelo mesma aversão que havia entre os irmãos e as
pudor de seus filhos. Encarregados do cuidado irmãs pelo casamento, havia também, portan­
de formá-los, tiveram de conservar-lhes o to, entre os primos coirmãos1 29.
corpo no mais perfeito estado, a alma o menos Essas causas são tão fortes e tão naturais,
corrompida possível, tudo o que pode melhor que atuaram em quase toda a terra, indepen­
inspirar desejos, e tudo o que é mais suscetível dentemente de qualquer comunicação. Não
de provocar ternura. Aos pais, sempre ocupa­ foram os romanos que ensinaram aos habitan-
dos em preservar os costumes dos filhos, foi
mister ter natural aversão por tudo o que pode­
1 2 7 Assim ocorreu entre os primeiros romanos. (N.
ría corrompê-los. O casamento não constitui do A.) *
corrupção, dirão; mas, antes do casamento, é 12 8 Com efeito, entre os romanos, tinham o mesmo
nome; os primos coirmãos eram chamados irmãos.
(N. do A.)
12 6 Esta lei é muito antiga entre eles. Átila, conta 12 9 Foram-no em Roma nos primeiros tempos, até
Prisco em sua Embaixada, deteve-se em certo lugar que o povo fez uma lei permitindo-os: desejava com
a fim de desposar Esca, sua filha: coisa permitida, isso obsequiar um homem extremamente popular, e
continua ele, pelas leis dos citas, pág. 22. (N. do A.) que se casara com sua prima coirmã. Plutarco, no
1 2 6 Hist. des Tartares, part. III, pág. 256. (N. do tratado Das Demandas das Coisas Romanas. (N.
A.) do A.)
408 MONTESQUIEU

tes de Formosa130 que o casamento entre mãos deve ser encarado como contrário à
parentes até o quarto grau era incestuoso; não natureza; entre os outros, não.
foram os romanos que o disseram aos ára­ Mas as leis da Natureza não podem ser leis
bes1 31, não o ensinaram aos maldivas132. locais. Desse modo, quando esses casamentos
Se alguns povos não rejeitaram os casamen­ são proibidos ou consentidos, são, de acordo
tos entre os pais e os filhos, as irmãs e os com as circunstâncias, consentidos ou proibi­
irmãos, viu-se no primeiro livro que os seres dos por uma lei civil.
inteligentes nem sempre seguem suas leis. Não é de uso necessário que o cunhado e a
Quem o diria! Idéias religiosas fizeram, cunhada habitem a mesma casa. O casamento
frequentemente, com que os homens caíssem não é, portanto, proibido entre eles a fim de
nesses desregramentos. Se os assírios, os per­ conservar a pudicícia em casa; e a lei que o
sas, desposaram suas mães, os primeiros fize­ proíbe ou consente não é uma lei da Natureza,
ram por religioso respeito para com Semíra- mas uma lei civil, que se estabelece sobre as
mis; e os segundos, porque a religião de circunstâncias, e depende dos costumes de
Zoroastro dava preferência a esses casamen­ cada país: são casos em que as leis dependem
tos133. Se os egípcios casaram-se com as dos costumes e das maneiras.
irmãs, foi também um desvairamento da reli­ As leis civis proíbem os casamentos, quan­
gião egípcia, que consagrou tais casamentos do, pelos usos aceitos em certo país, se julga
em honra de ísis. Como é do espírito da reli­ encontrarem-se nas mesmas circunstâncias
gião levar-nos a fazer com esforço coisas gran­ que os que são proibidos pelas leis da Nature­
des e difíceis, não se deve julgar que uma coisa za; e elas os permitem quando os casamentos
é natural somente porque uma religião falsa a
não se encontram neste caso. A proibição das
consagrou.
leis da Natureza é invariável, porque depende
O princípio de que os casamentos entre os de uma coisa invariável; o pai, a mãe e os fi­
pais e os filhos, os irmãos e as irmãs, são proi­ lhos habitam necessariamente a mesma casa.
bidos pela preservação do pudor natural em Mas as proibições das leis civis são acidentais,
casa servirá para fazer-nos descobrir quais são porque dependem de uma circunstância aci­
os casamentos proibidos pela lei natural, e os
dental, pois só acidentalmente é que os primos
que só podem sê-lo pela lei civil.
coirmãos e outros habitam a mesma casa.
Já que os filhos habitam, ou se julga habita­ Isso explica como as leis de Moisés, as dos
rem na casa de seu pai e, por conseguinte, o egípcios13 4 e de vários outros povos consen­
enteado com a madrasta, o padrasto com a tem no casamento entre o cunhado e a cunha­
enteada, ou com a filha de sua mulher, o casa­ da, ao passo que esses mesmos casamentos são
mento entre eles é proibido pela lei da Nature­ proibidos em outras nações.
za. Em tal caso, a imagem tem o mesmo efeito
que a realidade, porque tem a mesma causa; a Nas índias, há uma razão naturalíssima
lei civil não pode e não deve permitir tais para admitir essas espécies de casamento. O
casamentos. tio aí é olhado como pai, e é obrigado a manter
e estabelecer seus sobrinhos, como se fossem
Há povos entre os quais, como eu disse, os seus próprios filhos: isto provém do caráter
primos coirmãos são considerados irmãos, deste povo, que é bom e cheio de humanidade.
porque de ordinário habitam a mesma casa; há Esta lei ou este uso produziu outro. Se um ma­
outros onde não se conhece esse uso. Entre rido perdeu a mulher, não pode deixar de des-
aqueles povos, o casamento entre primos coir- posar a irmã dela13 5; e isto é muito natural,
pois a nova esposa torna-se a mãe dos filhos
130 Coletânea das Viagens às índias, tomo V, da irmã, e de forma alguma existe madrasta
parte I; Relação do Estado da Ilha Formosa. (N. do injusta.
A.)
131 O Alcorão, cap. das Mulheres. (N. do A.)
13 2 Vede François Pyrard. (N. do A.) 13 4 Vede a lei 8, no cód. de incestis et inutilibus
133 Eram considerados mais honrosos. Vide Fílon, nuptiis. (N. do A.)
De Specialibus Legibus quae Pertinent ad Praecepta 13 5 Lettres Édifiantes, décima quarta coletânea,
Decalogi. Paris, 1640, pág. 778. (N. do A.) pág. 403. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 409

Capítulo XV

De como não se deve regulamentar pelos


princípios do direito político as coisas que dependem
dos princípios do direito civil

Como os homens renunciaram à sua inde­ deve triunfar a lei civil, que, como os dois
pendência natural para viver sob leis políticas, olhos da mãe, olha cada particular como toda
renunciaram à comunhão natural dos bens a cidade.
para viver sob leis civis13 6. Se o magistrado político desejar fazer algum
Essas primeiras leis lhes proporcionaram a edifício público, alguma estrada nova, cumpre
liberdade; as segundas, a propriedade. Não se que indenize; o público é, a este respeito, como
deve decidir pelas leis da liberdade que, como um particular que trata com um particular13 7.
dissemos, é apenas o império da cidade, o que É bastante que possa obrigar um cidadão a lhe
deve ser decidido somente pelas leis concer­ vender sua herança, e que lhe roube o grande
nentes à propriedade. Constitui um paralo- privilégio, que tem da lei civil, de não poder ser
gismo dizer que o bem particular deve curvar- forçado a alienar seu bem.
se ante o bem público: isso só ocorrre nos Depois que os povos que destruíram Roma
casos em que se trata do império da cidade, abusaram de suas próprias conquistas, o espí­
isto é, da liberdade do cidadão; não acontece rito de liberdade fê-los voltar ao de equidade;
naqueles em que se trata da propriedade dos os mais bárbaros direitos, eles os exerceram
bens, porque o bem público consiste em que com moderação; e, se alguém duvidasse disso,
cada um conserve invariavelmente a proprie­ só teria que ler a admirável obra de Beauma-
dade que as leis civis lhe oferecem. noir, que escrevia sobre a jurisprudência no sé­
Cícero sustentava que as leis agrárias eram culo XII138.
funestas, porque a cidade só era estabelecida Em seu tempo, as grandes estradas eram
para que cada um conservasse seus bens. consertadas, como acontece hoje. Diz ele que,
Tenhamos, portanto, por máxima que, quando não se podia restabelecer uma grande
quando se trata de bem público, não reside ele estrada, abria-se outra, o mais perto possível
jamais em se privar um particular de seu bem da antiga; mas se indenizavam proprietá­
ou mesmo em lhe suprimir a menor parte por rios139 às custas dos que tiravam algum pro­
uma lei ou um regulamento político. Neste veito da estrada. Decidia-se, nessa época, pela
caso, importa seguir com rigor a lei civil, que é lei civil; em nossos dias, decide-se pela lei
a salvaguarda da propriedade. política.
Assim, quando o público tem necessidade
do capital de um particular, nunca se deve agir 1 3 7 Este uso de indenizar por motivo de expropria-
com o rigor da lei política; mas é então que ção dataria somente da Revolução.
138 ... século XII, leia-se XIII.
139 O senhor nomeavaprudhommes a fim de fazer
1 3 6 De acordo com este ponto, afigurava-se que a a arrecadação de impostos sobre o camponês; os
independência absoluta e a comunhão dos bens fos­ gentis-homens eram obrigados a pagar a contribui­
sem coisas naturais. Estamos desiludidos dessas ção pelo conde, e o eclesiástico, pelo bispo. Beau-
idéias simples. manoir, cap. XXV, §§ 13, 17. (N. do A.)
410 MONTESQUIEU

Capítulo XVI

De como não se pode resolver pelas regras do direito civil,


quando se trata de resolver pelas do direito político

Ver-se-á o fundo de todas as questões, se particulares é uma lei civil, que tem por objeto
não se confundirem as regras que derivam da o interesse dos particulares; a que regulamenta
propriedade da cidade, com as que nascem da a sucessão à monarquia é uma lei política, que
liberdade da cidade. tem por objeto o bem e a preservação do
O domínio de um Estado1 40 é alienável, ou Estado.
não é? Esta questão deve ser decidida pela lei Daí se segue que, quando a lei política esta­
política, e não pela lei civil. Não deve ser deci­ belecer num Estado uma ordem de sucessão, e
dida pela lei civil, porque é tão necessário que esta ordem venha a findar-se, é absurdo recla­
haja um domínio para prover à subsistência do mar a sucessão em virtude da lei civil de qual­
Estado, quanto é necessário que haja, no Esta­ quer que seja o povo1 41. Uma sociedade parti­
do, leis civis que regulamentem a disposição cular não vai fazer leis para outra sociedade.
dos bens. As leis civis dos romanos não são mais aplicá­
Se, portanto, se alienar o domínio, o Estado veis do que todas as outras leis; eles próprios
será forçado a constituir novo capital para não as empregaram, quando julgaram os reis:
outro domínio. Mas este expediente arruina e as máximas pelas quais julgaram os reis são
também o governo político, porque, pela natu­ tão abomináveis, que de modo algum se deve
reza da coisa, a cada domínio que se estabele­ revivê-las.
cer, o súdito pagará sempre mais, e o soberano Disso ainda se segue que, quando a lei polí­
retirará sempre menos; em suma, o domínio é tica fez qualquer família renunciar à sucessão,
necessário, e a alienação não o é. é absurdo querer empregar as restituições tira­
A ordem de sucessão, nas monarquias, das da lei civil. As restituições estão na lei; e
baseia-se no bem do Estado, que exige que esta podem ser boas contra os que vivem na lei;
ordem seja fixada, a fim de evitar as desgraças mas não são boas para aqueles que foram esta­
que, já disse, devem ocorrer no despotismo, belecidos para a lei e vivem para a lei.
onde tudo é incerto, porque tudo é arbitrário. E ridículo pretender decidir os direitos dos
Não é em proveito da família reinante que a reinos, das nações e do universo, pelas mesmas
ordem de sucessão é estabelecida, mas porque máximas com que se decide entre particulares
interessa ac Estado que haja uma família rei­ o direito de uma goteira, para servir-me da
nante. A lei que regulamenta a sucessão dos expressão de Cícero1 42.

1 41 Montesquieu pensa em Luís XIV reclamando à


140 O domínio do Estado era constituído pelas Espanha por direito de “devolução” certas provín­
propriedades públicas, assim como pelo conjunto de cias, como a Flandres e o Artois.
suas rendas. 1 4 2 Liv. I, Das Leis. (N. do A.)

Capítulo XVII

Continuação do mesmo assunto


O ostracismo deve ser examinado pelas re­ sempre uma pena, tivéssemos podido separar a
gras da lei política, e não pelas regras da lei idéia de ostracismo da de punição.
civil; e, muito longe de vir este uso aviltar o Aristóteles nos diz1 43 que toda a gente está
governo popular, é ele, ao contrário, apro­
priado a demonstrar-lhe a brandura, e tería-
mos sentido isso, se, sendo entre nós o exílio 1 43 Política, liv. III, cap. III (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS V 411

convicta de que esta prática apresenta alguma que não o merecia1 4 4, se deixou de empregá-
coisa de humano e de popular. Se, nos tempos lo1 4 5, ver-se-á muito bem que se tem dele uma
e nos lugares em que se exercia este julga­ idéia falsa, e que constituía uma lei admirável
mento, não o consideravam odioso, cabe a nós, a que previa os efeitos malsãos que podia pro­
que vemos as coisas de tão longe, pensar de duzir a glória de um cidadão, ao cumulá-lo de
• modo diferente dos acusadores, dos juizes e do nova glória.
próprio acusado?
E se dermos atenção ao fato de este julga­
mento do povo cumular de glória aquele con­ 1 44 Hipérbolo. Vede Plutarco, Vida de Aristides.
(N. do A.)
tra quem era pronunciado; ao fato de, quando 1 4 5 Achou-se que se opunha ao espírito do legisla­
dele se abusou em Atenas contra um homem dor. Inf. XXIX, VII. (N. do A.)

Capítulo XVIII

De como se deve examinar se as leis


que parecem contradizer-se são da mesma ordem

Em Roma foi permitido que o marido nos desregramentos de sua esposa, que não a
emprestasse a mulher a outro. Plutarco no-lo levasse a julgamento, ou que voltasse1 48 a ela
diz formalmente1 4 6. Sabe-se que Catão em­ após a condenação, era punido. Tais leis pare­
prestou sua mulher a Hortênsio1 4 7, e Catão cem contradizer-se, mas não se contradizem de
não era homem que violasse as leis de seu país. nenhum modo. A lei que permitia que um ro­
De outro lado, um marido que consentisse mano emprestasse a esposa é visivelmente uma
constituição lacedemônia, fixada para dar à
república filhos de boa espécie, se ouso servir-
1 4 6 Plutarco, em Comparação de Licurgo com
Numa. (N. do A.) me do termo; a outra tinha por objeto resguar­
1 4 7 Plutarco, Vida de Catão. Isto ocorreu em dar os costumes. A primeira era uma lei políti­
nosso tempo, diz Estrabão, liv. XI. (N. do A.)* ca; a segunda, uma lei civil.
* Na realidade, Catão divorciou-se de sua mulher,
com quem tornou a casar após a morte de Hortên­
sio. É evidentemente abusivo dizer que ele a
emprestou. 1 48 Leg. 11, § últ. ff. ad leg.Jul. de adult.

Capítulo XIX

De como não se deve decidir pelas leis civis as


coisas que devem sê-lo pelas leis domésticas

A lei dos visigodos ordenava que os escra­ varica. Prende os criminosos, menos para
vos1 49 fossem obrigados a prender o homem e levá-los a julgamento do que para que julguem
a mulher que surpreendessem em adultério e a ele próprio, e para conseguir que se investi­
apresentá-los ao marido e ao juiz: lei terrível, gue, nas circunstâncias da ação, se se pode
que colocava nas mãos destas vis pessoas o perder a suspeita de sua negligência.
encargo da vingança pública, doméstica e Mas nos países em que as mulheres não são
particular! guardadas, constitui uma insensatez que a lei
Esta lei só seria boa nos serralhos do Orien­ civil as submeta, elas que governam a casa, à
te, onde o escravo que é encarregado da clau­ inquisição de seus escravos.
sura já prevaricou no momento em que se pre­ Esta inquisição poderia ser, em certos casos,
no máximo uma lei particular doméstica,
1 49 Lei dos visigodos, liv. III, tít. IV, § 6. nunca uma lei civil.
412 MONTESQUIEU

Capítulo XX

De como não se deve decidir pelos princípios das


leis civis as coisas que pertencem ao direito das gentes

A liberdade consiste, principalmente, em quando nós, que vivemos sob leis civis, somos
não poder ser forçado a fazer uma coisa que a coagidos a fazer algum contrato que a lei não
lei não ordena; e achamo-nos nesta situação exige, podemos, graças à lei, insurgir-nos con­
tão-somente porque somos governados por leis tra a violência; mas um príncipe, que sempre
civis: somos livres, portanto, porque vivemos se encontra em situação de forçar ou ser força­
sob leis civis. do, não pode queixar-se de um tratado que foi
Segue-se disso que os príncipes, que não obrigado a fazer por violência. É como se ele
vivem entre si sob leis civis, não são livres; são se queixasse de seu estado natural; é como se
governados pela força; podem continuamente quisesse ser príncipe em relação aos outros
forçar ou ser forçados. Daí se segue que os tra­ príncipes, e que os outros príncipes fossem
tados que fizeram forçados são tão obrigató­ cidadãos em relação a ele; isto é, chocar a
rios quanto os que teriam feito de bom grado; natureza das coisas.

Capítulo XXI

De como não se deve decidir pelas leis políticas


as coisas que pertencem ao direito das gentes

As leis políticas exigem que todo homem por um homem independente. Poder-se-ia
seja submetido aos tribunais criminais e cíveis imputar-lhes crimes, se pudessem ser punidos
do país onde se encontra, e à animadversão do por crimes; poder-se-ia atribuir-lhes dívidas, se
soberano. pudessem ser presos por dívidas. Um príncipe
O direito das gentes ordenou que os prínci­ que tem orgulho natural falaria pela boca de
pes enviassem embaixadores uns aos outros; e um homem que teria tudo a temer. Cumpre
a razão, extraída da natureza da coisa, não seguir, pois, em relação aos embaixadores, as
permitiu que tais embaixadores dependessem razões tiradas do direito das gentes, e não as
do soberano aos quais foram enviados, nem de que procedem do direito político. Se abusarem
seus tribunais. Representam a palavra do prín­ de seu ser representativo, fazem-nos cessar,
cipe que os envia, e esta palavra deve ser livre. reenviando-os a seu país: pode-se mesmo acu­
Nenhum obstáculo deve obstar-lhes a ação. sá-los diante de seu senhor, que se torna, por
Podem muitas vezes desagradar, porque falam isso, seu juiz ou seu cúmplice.

Capítulo XXII

Destino infeliz do inca Ataualpa

Os princípios que acabamos de estabelecer cas e civis. Acusaram-no de ter mandado à


foram cruelmente violados pelos espanhóis. O morte alguns de seus súditos, de ter tido várias
inca1 50 Ataualpa só podia ser julgado pelo mulheres,etc. E o cúmulo da estupidez foi que
direito das gentes: iulgaram-no por leis políti­ não o condenaram pelas lei políticas e civis de
seu país, e sim pelas leis políticas e civis dos
1 50 Vede o inca Garcilaso de la Vega, pág. 108. espanhóis.
DO ESPÍRITO DAS LEIS V 413

Capítulo XXIII

De como, quando, por alguma circunstância, a lei política


destrói o Estado, deve-se decidir pela lei política que
o conserva, que se toma às vezes um direito das gentes

Quando a lei política, que estabeleceu no grande derramamento de sangue, como nos
Estado certa ordem de sucessão, toma-se deixam ver as histórias de todos os países.
destruidora do corpo político para o qual foi Segue-se daí que, se um grande Estado tem
feita, não se deve duvidar de que outra lei polí­ por herdeiro um possuidor de um grande Esta­
tica não possa mudar esta ordem; e, bem longe do, o primeiro pode muito bem excluí-lo, por­
de ser esta mesma lei oposta à primeira, ser- que útil se toma a ambos os Estados que se
Ihe-á inteiramente conforme na essência, pois' mude a ordem da sucessão. Desse modo, a lei
ambas dependerão deste princípio: A SALVA­ da Rússia, feita nos primórdios do reinado de
ÇÃO DO POVO É A SUPREMA LEI. Isabel, exclui prudentemente todo herdeiro que
Disse que um grande Estado1 51, ao se tor­ possua outra monarquia; desse modo, a lei de
nar acessório de outro, enfraquecia-se e enfra­ Portugal rejeita todo estrangeiro que seja
quecia mesmo o principal. Sabe-se que ao Es­ admitido à coroa por direito de sangue.
tado interessa ter seu chefe em seu próprio Se uma nação pode excluir, tem, com maior
país, que as rendas públicas sejam bem razão, o direito de fazer renunciar. Se ela teme
administradas, que seu dinheiro não saia para que um certo casamento tenha consequências
enriquecer outro país. Muito importa que que possam levar a perder a independência,
aquele que deve governar não se ache imbuído ou lançá-la numa partilha, poderá muito bem
de máximas estrangeiras; elas convêm menos fazer que os contraentes, e os que deles nasce­
do que as que já se acham fixadas: aliás, os ho­ rem, renunciem a todos os direitos que teriam
mens têm prodigioso apego a suas leis e a seus sobre ela1 52; e aquele que renuncia, e aqueles
costumes; neles reside a felicidade de cada contra quem se renuncia, poderão se queixar
nação; é raro mudá-los sem grandes abalos e tanto menos quanto o Estado poderia ter feito
uma lei para excluí-los.
1 61 Vede supra, liv. V, cap. XIV; liv. VIII, cap.
XVI-XX; liv. IX, cap. IV-VII; e liv. X, cap. IX e X.
(N. do A.) 1 52 Outra alusão ao “direito” de “devolução”.

Capítulo XXIV

De como os regulamentos de polícia são de


ordem diferente dos de outras leis civis

Há criminosos que o magistrado pune, há crimes, é a lei que pune mais do que o magis­
outros que corrige. Os primeiros são submeti­ trado. As questões de polícia são coisas de
dos ao poder da lei, os outros à sua autorida­ todo instante, em que ordinariamente se trata
de1 53; aqueles são desligados da sociedade, a de pouca coisa: quase não se necessita de
estes obriga-se que vivam de acordo com as re­ formalidades. As ações da polícia são rápidas,
gras da sociedade. e elas se exercem sobre coisas que se repetem
No exercício da polícia, quem pune é mais o todos os dias: as grandes punições não são,
magistrado do que a lei; nos julgamentos de portanto, próprias para isso. Ela ocupa-se
perpetuamente dos pormenores: os grandes
1 63 À autoridade do magistrado. exemplos não são feitos, portanto, para ela.
414 MONTESQUIEU

Ela possui mais regulamentos do que leis. As lia1 5 4, em que o porte de armas de fogo é puni­
pessoas que dela dependem estão incessante­ do como crime capital, e em que fazer mau uso
mente sob as vistas do magistrado; é, pois, delas não é mais fatal do que portá-las.
culpa do magistrado se caem em excessos. Segue-se ainda que a ação tão louvada desse
imperador que mandou empalar um padeiro
Assim, não se deve confundir as grandes viola­
que ele surpreendera em fraude é uma ação de
ções das leis com a violação da simples polí­
sultão, que só sabe ser justo exagerando a pró­
cia: essas coisas são de ordem diferente. pria justiça.
Daí se segue que não se está conforme à
natureza das coisas nesta república da Itá­ 1 5 4 Veneza. (N. do A.).

Capítulo XXV

De como não se deve seguir as disposições


gerais do direito civil, quando se trata de coisas
que devem ser submetidas a regras particulares
tiradas de sua própria natureza

Será uma boa lei a que torna nulas todas as de sua viagem, que não são mais da sociedade,
obrigações civis concluídas no curso de uma mas cidadãos do navio, não devem contrair
viagem entre os marinheiros num navio? Fran- essas obrigações que só foram introduzidas
çois Pyrard nos diz1 5 5 que, em seu tempo, ela para manter os encargos da sociedade civil.
não era observada pelos portugueses, mas que
o era pelos franceses. Pessoas que estão juntas É neste mesmo espírito que a lei dós ródios,
somente por pouco tempo, que não têm nenhu­ feita para um tempo em que se seguiam sempre
ma necessidade, pois o príncipe a provê, que as costas, ordenava que aqueles que permane­
não podem ter senão um único objeto, que é o cessem no barco durante a tempestade tives­
sem o navio e a carga, e que aqueles que o hou­
1 5 5 Capítulo XlV^parte 12. (N. do A.) vessem abandonado nada tivessem.
SEXTA PARTE

LIVRO VIGÉSIMO SÉTIMO


DA ORIGEM DAS TRANSFORMAÇÕES DAS LEIS
DOS ROMANOS SOBRE AS SUCESSÕES
Capítulo Unico

Esta matéria liga-se a estabelecimentos de Mas era indiferente que o herdeiro necessá­
antiguidade muito remota, e, a fim de penetrá- rio, ou, na sua falta, o agnato mais próximo,
la a fundo, seja-me permitido procurar nas pri­ fosse homem ou mulher, porque, não suce­
meiras leis dos romanos o que não sei se foi dendo os parentes do lado materno, embora
visto até agora. uma mulher herdeira se casasse, os bens volta­
Sabe-se que Rômulo dividiu as terras de seu vam sempre à família de que haviam saído. É
pequeno Estado entre seus cidadãos1; parece- por isso que não se distinguia, na Lei das Doze
me que daí é que procedem as leis de Roma Tábuas, se a pessoa que sucedia era homem ou
sobre as sucessões2. mulher5.
A lei da divisão das terras exigiu que os Isso fez com que, embora os netos pelo filho
bens de uma família não passassem para sucedessem ao avô, os netos pela filha não lhe
outra; disso seguiu-se que houve somente duas sucedessem; pois os agnatos lhes eram preteri­
ordens de herdeiros instituídos pela lei3: os fi­ dos, a fim de que os bens não passassem para
lhos e todos os descendentes que viviam sob a outra família. Dessa maneira, a filha sucedia
autoridade do pai, que foram chamados her­ ao pai, e seus filhos não6.
deiros necessários; e, à sua falta, os parentes Assim, entre os primeiros romanos, as
mais próximos pela linha masculina, chama­ mulheres sucediam, quando isso se harmoni­
dos agnatos. zava com a lei da divisão das terras; e não
Segue-se ainda que os parentes pela linha sucediam quando tal coisa podia ir de encon­
feminina, chamados cognatos, não deviam tro a ela.
suceder; teriam os bens transportados para Foram estas as leis das sucessões entre os
outra família; e isto assim ficou estabelecido. primeiros romanos; e, como eram uma depen­
dência natural da constituição e procediam da
Segue-se ainda que os filhos não deviam
partilha das terras, vê-se muito bem que não
suceder à mãe nem a mãe aos filhos; isto teria
tiveram uma origem estrangeira, e não foram
levado os bens de uma família para outra. Daí
incluídas no número das que importavam os
por que são excluídos pela Lei das Doze Tá­
deputados enviados às cidades gregas.
buas4; ela só designava à sucessão os agnatos,
Dionísio de Halicamasso7 diz-nos que Sér-
e o filho e a mãe não o eram entre si.
vio Túlio, encontrando abolidas as leis de Rô­
mulo e de Numa sobre a partilha das terras,
1 Dionísio de Halicamasso, liv. II. cap. III; Plutar­ restabeleceu-as e fez outras a fim de dar nova
co, em Comparação de Numa com Licurgo. (N. do
A.) força às antigas. Assim, não se pode duvidar
2 É de notar que toda a legislação romana e nota- de que as leis de que falamos, feitas em conse­
damente a que concerne à herança relacionava-se quência desta partilha, não sejam obra destes
com o culto dos antepassados, o que Montesquieu três legisladores de Roma.
parece não levar em consideração aqui. Sabe-se que
a agnação indica o parentesco pelo lar, pelo fogo Uma vez que a ordem de sucessão fora esta­
(agni). belecida em consequência de uma lei política,
3 A st si intestatus moritur, cui suus haeres nec um cidadão não devia alterá-la por uma vonta­
extabit, agnatus proximus familiam habeto. Fragm. de particular; isto é, nos primeiros tempos de
da Lei das Doze Tábuas, em Ulpiano, último título.
(N. do A.)
4 Vede os Fragm. de Ulpiano, § 8, tít. XXVI, Insti­ 5 Paulo, liv. IV, Senten., tit. VIII, § 3. (N. do A.)
tutos, tít. III. In proemio ad Sen. cons. Tertullia- 6 Institut., liv. III, tít. I, § 15.'(N. do A.)
num. (N. do A.) 7 Liv. IV, pág. 276. (N. do A.)
418 MONTESQUIEU

Roma, não devia ser permitido que se fizesse Sendo os testamentos propriamente uma lei
um testamento. Entretanto, foi penoso que se feita na assembléia do povo, os que se acha­
tivesse sido privado em seus últimos momen­ vam no exército viam-se privados da faculdade
tos da participação dos benefícios. de testar. O povo deu aos soldados o poder de
Encontrou-se um meio de conciliar, a este fazer11, diante de alguns de seus companhei­
respeito, as leis com a vontade dos particula­ ros, as disposições que teriam feito diante
res. Foi permitido dispor dos bens numa dele12.
assembléia do povo; e todo testamento, de al­ As grandes assembléias do povo só se reali­
guma maneira, foi um ato do poder legislativo. zavam duas vezes por ano; por outro lado, o
povo aumentara e os negócios também. Jul­
A Lei das Doze Tábuas permitiu àquele que gou-se que seria conveniente permitir que
fazia seu testamento que escolhesse para her­
todos os cidadãos fizessem seu testamento na
deiro o cidadão que quisesse. A razão que fez presença de alguns cidadãos romanos púbe-
com que as leis romanas restringissem tão
res13, que representassem o corpo do povo:
grandemente o número dos que podiam suce­
foram escolhidos cinco cidadãos1 4 ante os
der ab intestato foi a lei da partilha das terras;
quais o herdeiro comprava do testador sua
e a razão por que estenderam tão fortemente a
família, isto é, sua herança1 5; outro cidadão
faculdade de testar foi que o pai, podendo ven­
portava uma balança a fim de pesar o seu
der os filhos8, podia, com maior razão, privá- preço; pois os romanos ainda não dispunham
los de seus bens. Eram, portanto, efeitos dife­ de moeda1 6.
rentes, pois promanavam de princípios Há indícios de que esses cinco cidadãos
diversos; e é este o espírito das leis romanas a representavam as cinco classes do povo, e que
respeito. a sexta não era contada, composta que era de
As antigas leis de Atenas não permitiram ao pessoas que nada possuíam.
cidadão fazer seu testamento. Sólon o permi­ Não se deve dizer, com Jystiniano, que essas
tiu9, excetuando os que tinham filhos; e os vendas eram imaginárias; tornaram-se depois,
legisladores de Roma, imbuídos da idéia do mas no início não o eram. A maioria das leis
poder paterno, permitiram testar mesmo em que regulamentaram, em seguida, os testa­
detrimento dos filhos. Cumpre confessar que mentos têm sua origem na realidade de tais
as antigas leis atenienses foram mais conse­ vendas; vê-se muito bem a prova disto nos
quentes que as leis romanas. A permissão inde­ Fragmentos de Ulpiano' 1. O surdo, o mudo e
finida de testar, concedida aos romanos, arrui­ o pródigo não podiam fazêr testamento: o
nou paulatinamente o dispositivo político surdo porque não podia ouvir as palavras do
sobre a partilha das terras; introduziu, mais do comprador da família; o mudo porque não
que qualquer outra coisa, a funesta diferença podia pronunciar os termos da nomeação; o
entre as riquezas e a pobreza; vários quinhões pródigo porque, sendo-lhe interditada qualquer
foram reunidos numa só mão; certos cidadãos gestão de negócios, não podia vender sua famí­
tiveram demasiado, uma infinidade de outros lia. Omito os outros exemplos.
nada teve. Por isso, o povo, continuamente pri­
vado de sua parte, pediu sem cessar uma nova 11 Este testamento, denominado in procinctu, era
distribuição das terras1 °. Solicitou-a no tempo diferente do que se chamava militar, que só foi esta­
em que a frugalidade, a parcimônia e a pobre­ belecido pelas constituições dos imperadores, leg. 1,
ff. de militari testamento: foi uma das formas de
za constituíam o caráter distintivo dos roma­ bajular os soldados. (N. do A.)
nos, como nos tempos em que seu luxo chegou 12 Este testamento não era escrito e era feito sem
ao excesso. formalidades, sine libra et tabulis, como diz Cícero,
liv. I do Orador. (N. do A.)
8 Dionísio de Halicarnasso prova, mediante uma 13 Instit., liv. II, tít. X, § 1; Aulo Gélio, liv. XV,
lei de Numa, que â lei que permitia que o pai ven­ cap. XXVII. Esta espécie de testamento chamava-se
desse o filho três vezes era uma lei de Rômulo, e per aes et libram. (N. do A.)
não dos decênviros. Liv. II. (N. do A.) 1 4 Ulpiano, tít. X, § 2. (N. do A.)
9 Vede Plutarco, Vida de Sólon. (N. do A.) 1 5 Teófilo, Inst., liv. II, tít. X. (N. do A.)
10 Os romanos não solicitavam uma nova “distri­ 1 6 Só passaram a possuí-la no tempo da guerra de
buição” de todas as terras, mas tão-somente a entra­ Pirro. Tito Lívio, falando do cerco de Veios, diz:
da no patrimônio comum e a partilha eqüitativa dos nondum argentum signatum erat, liv. IV. (N. do A.)
territórios conquistados. 1 7 Tít. XX, § 13. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 419

Já que os testamentos eram feitos na assem­ não restringiram bastante as riquezas das
bléia do povo, constituíam atos do direito polí­ mulheres, e deixaram, por isso, uma porta
tico mais que do direito civil, do direito pú­ aberta ao luxo, que é sempre inseparável des­
blico mais que do direito privado; segue-se sas riquezas. Entre a Segunda e a Terceira
disso que o pai não podia consentir em que o Guerra Púnica, começou-se a sentir o mal; foi
filho, que estava sob seu poder, fizesse elaborada a lei Voconiana23. E como grandes
testamento. considerações levaram a fazê-la, como não nos
Entre a maioria dos povos, os testamentos restam senão poucos monumentos, e até agora
não estão sujeitos a maiores formalidades do só temos falado dela de maneira muito confu­
que os contratos ordinários, porque uns e ou­ sa, passo a esclarecê-la.
tros não passam de expressões da vontade Cícero conservou-nos um fragmento dela,
daquele que contrata, as quais pertencem que proíbe instituir herdeira uma mulher, casa­
igualmente ao direito privado. Entre os roma­ da ou não2 4.
nos, porém, onde os testamentos procediam do O Epítome de Tito Lívio, onde ele falou
direito público, cercaram-se de maiores for­ desta lei, nada mais acrescenta a isso2 5. Pare­
malidades1 8 do que os outros atos; e isto sub­ ce, através de Cícero2 6 e de Santo Agosti­
siste ainda hoje nas regiões da França que se nho2 7, que a filha, e mesmo a filha única, esta­
regem pelo direito romano. va compreendida na proibição.
Sendo os testamentos, como disse, uma lei Catão, o Antigo, contribuiu com todo o seu
do povo, deviam ser elaborados com a força poder para que esta lei fosse adotada28. Aulo
da ordem, e pelas palavras que se chamaram Gélio cita um fragmento do discurso que fez
diretas e imperativas. Disso se formou uma nessa ocasião29. Impedindo as mulheres de
regra: não se podia transmitir a herança senão suceder, pretendeu prevenir as causas do luxo,
pelas palavras de ordem18 19; daí se segue que, como, ao defender a lei Ópia, pretendeu deter o
em certos casos, se podia fazer uma substitui­ próprio luxo.
ção20, e ordenar que a herança passasse a Nas Institutos de Justiniano30 e de Teófi-
outro herdeiro; mas jamais se podia fazer fidei- lo31, fala-se de um capítulo da lei Voconiana,
comissos21, isto é, encarregar alguém, em que limitava a faculdade de legar. Lendo esses
forma de rogo, de entregar a outro a herança, autores, não há ninguém que não pense que
ou uma parte da herança. este capítulo foi feito para evitar que a suces­
Quando o pai não instituía o filho como her­ são não fosse de tal forma consumida por lega­
deiro, nem o deserdava, o testamento era des­ dos, que o herdeiro recusasse aceitá-la. Não é
feito; mas era válido, embora não deserdasse a este, porém, o espírito da lei Voconiana.
filha, ou a instituísse herdeira. Entendo a razão Vimos há pouco que seu objetivo era impedir
disso. Quando não instituía o filho seu herdei­ que as mulheres recebessem alguma sucessão.
ro, nem o deserdava, causava prejuízo a seu O capítulo desta lei que determinava limites à
neto que teria sucedido ab intestato a seu pai; faculdade de legar participava de tal objetivo:
mas, não instituindo herdeira a filha, nem a pois, se se pudesse legar tanto quanto se qui­
deserdando, não prejudicava de modo algum sesse, as mulheres podiam ter recebido, como
os filhos de sua filha, que não teriam sucedido
ab intestato à sua mãe22, porque não eram 23 Quinto Vocônio, tribuno do povo, foi quem a
herdeiros necessários nem agnatos. propôs, no ano 585 de Roma, 169 anos a. C. Vede
Cícero, Segundo Discurso contra Ferres. No Epí­
Não tendo as leis dos romanos pensado em tome de Tito Lívio, liv. XLI, deve-se ler Vocônio,
seguir senão o espírito da partilha das terras, em vez de Volúmnio. (N. do A.)
2 4 Sanxit... ne quis haeredem virginem neve
18 Instit., liv. II, tít. X, § 1. (N. do A.) mulierem faceret. Cícero, Segundo Discurso contra
1 9 Tício, sê meu herdeiro. (N. do A.) Ferres, cap. CVII. (N. do A.)
20 A vulgar, a pupilar, a exemplar. (N. do A.) 2 5 Legem tulit, ne quis haeredem mulierem insti-
21 Augusto, por razoes particulares, começou a tueret, liv. XLI. (N. do A.)
autorizar os fideicomissos. Instit., liv. II, tít. XXIII, 2 6 Segundo Discurso contra Ferres. (N. do A.)
§ l.(N. do A.) 2 7 Liv. III da Cidade de Deus. (N. do A.)
22 Ad liberos matris intestatae haereditas, lege XII 2 8 Epítome, de Tito Lívio, liv. XLI. (N. do A.)
tabularum, non pertinebat, quia feminae suos haere- 2 9 Liv. XVII, cap. VI. (N. do A.)
des non habent. Ulp., Fragm., tít. XXVI, § 7. (N. do 30 Instit., liv. II, tít. XXII. (N. do A.)
A.) 31 Liv. II, tít. XXII. (N. do A.)
420 MONTESQUIEU
legados, o que não podiam obter como censo segundo o espírito das instituições de
herança. Sérvio Túlio.
A lei Voconiana foi feita para prevenir as Os que não se tinham inscrito nas cinco pri­
riquezas demasiado grandes das mulheres. Foi, meiras classes, em que eram colocados de
portanto, mister privá-las das sucessões consi­ acordo com a proporção de seus bens38, não
deráveis, e não daquelas que não podiam man­ estavam no censo segundo o espírito da lei
ter o luxo. A lei fixava uma determinada quan­ Voconiana; os que não eram inscritos no nú­
tia, que devia ser dada às mulheres que mero das seis classes, ou que não eram coloca­
privasse da sucessão. Cícero32, que nos infor­ dos pelos censores no número dos chamados
ma deste fato, não nos diz qual era a somà; aerarii, não estavam no censo segundo as insti­
mas Dion33 afirma que montava a cem mil tuições de Sérvio Túlio. Tal era a força da
sestércios. Natureza, que os pais, a fim de eludir a lei
A lei Voconiana era feita para regulamentar Voconiana, consentiam em sofrer a vergonha
as riquezas, e não para regulamentar a pobre­ de ser misturados na sexta classe com os prole­
za; por isso, Cícero nos diz3 4 que ela estatuía tários e os que eram taxados por cabeça, ou
tão-somente sobre os que estavam inscritos-no talvez mesmo ser inscritos nas tábuas dos
censo. Ceritas39.
Isto fornece um pretexto para eludir a lei. Dissemos que a jurisprudência dos romanos
Sabe-se que os romanos eram extremamente não admitia os fideicomissos. A esperança de
formalistas; e dissemos acima que o espírito da eludir a lei Voconiana introduziu-os. Instituía-
república era seguir a letra da lei. Houve pais se um herdeiro capaz de receber pela lei e
que não se inscreveram no censo, a fim de rogava-se-lhe que devolvesse a herança a uma
poder deixar sua sucessão à filha; e os pretores pessoa que a lei excluira dela. Esta nova
julgaram que, assim, não se violava a lei, pois maneira de dispor teve efeitos bem diferentes.
não se estava violando a letra. Uns entregaram a herança; e a ação de Sexto
Um certo Ânio Aselo instituira herdeira sua Peduceu40 foi digna de n,ota. Deu-se-lhe uma
filha única. Podia fazê-lo, diz Cícero; a lei grande herança; não havia ninguém no mundo
Voconiana não o impedia, pois ele não estava além dele que soubesse que lhe fora rogado
no censo3 5; Verres, sendo pretor, privara a que a entregasse; ele procurou a viúva do tes-
filha da sucessão; Cícero afirma.que Verres tador e deu-lhe toda a fortuna do marido.
Outros guardaram para si a sucessão; e o
fora corrompido, poique, sem isso, não teria
exemplo de P. Sextílio Rufo também foi céle­
intervertido uma ordem que os outros pretores
bre, pois Cícero utiliza-o em suas disputas
tinham seguido.
contra os epicuristas 41. “Em minha mocida­
Que eram, portanto, estes cidadãos que não
de”, diz éle, “pediu-me Sextílio que o acompa­
estavam no censo que compreendia todos os nhasse à casa de seus amigos, para saber deles
cidadãos? Mas, segundo a instituição de Sér-
se devia entregar a herança de Quinto Fábio
vio Túlio, relatada por Dionísio de Halicarnas-
Galo a Fádia, sua filha. Ele reunira vários
so3 6, todo cidadão que não se inscrevesse no
jovens, com severas personalidades; e nenhum
censo era feito escravo; o próprio Cícero diz
foi de parecer que ele desse a Fádia mais do
que tal homem perdia a liberdade3 7; Zonara
que o que ela devia ter pela lei Voconiana. Sex­
diz a mesma coisa. Importava, pois, que hou­
tílio teve com isso grande herança, da qual não
vesse diferença entre não estar no censo segun­
teria ficado com nenhum sestércio, se tivesse
do o espírito da lei Voconiana e não estar no preferido o que era justo e honesto ao que era
útil.” “Acredito”, acrescenta Cícero, “que vós
32 Nemo censuit plus Fadiae dandum, quam pos- teríeis entregue a herança; acredito mesmo que
set ad eam lege Voconia pervenire. De finibus bon.
et mal., liv. II, cap. LV. (N. do A.)
33 Cum lege Voconia mulieribus prohiberetur ne 3 8 Essas cinco primeiras classes eram tão conside­
qua majorem centum millibus rummum haeredi- ráveis, que, às vezes, os autores só mencionam as
tatem posset adire, liv. LVI. (N. do A.) cinco. (N. do A.)
3 4 Qui census esset. Segundo Discurso contra Ver­ 33 In Caeritum tabulas referri; aerarius fieri. (N.
res. (N. do A.) do A.)
3 5 Census nom erat. Ibid. (N. do A.) 40 Cícero, Definib. bon. et mal., liv. II, cap. LVIII.
3 6 Liv. IV. (N. do A.) (N. do A.)
3 7 In oratione pro Coecina. Ibid. (N. do A.) 41 Ibid. (N.doA.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 421

Epicuro a teria entregue; más nisso não esta­ aos desígnios da lei, as esperanças de suceder,
rieis seguindo vossos princípios.” Farei aqui e diminuí-las para os que a isso se recusavam;
algumas reflexões. e, como a lei Voconiana tornara as mulheres
Constitui uma desgraça da condição huma­ incapazes de suceder, em certos casos a lei
na o fato de os legisladores serem obrigados a Papiana anulou essa proibição.
fazer leis que combatem mesmo os senti­ As mulheres44, sobretudo as que tinham
mentos naturais: tal foi a lei Voconiana. É que filhos, foram capacitadas a receber em virtude
os legisladores preceituam mais sobre a socie­ do testamento de seus maridos; quando tinham
dade do que sobre o cidadão, e sobre o cidadão filhos puderam receber em virtude do testa­
mais do que sobre o homem. A lei sacrificava mento dos estranhos: tudo isso contra a dispo­
tanto o cidadão como o homem, e só pensava sição da lei Voconiana; e é digno de observa­
na república. Um homem rogava a seu amigo ção que não se abandonou inteiramente o
que entregasse sua sucessão à sua filha: a lei espírito desta lei. Por exemplo, a lei Papiana4 5
desprezava no testador os sentimentos da permitia que um homem que tivesse um filho 4 6
Natureza; desdenhava na filha a piedade filial; recebesse toda a herança pelo testamento de
não tinha consideração alguma por aquele que um estranho; outorgava a mesma graça à mu­
era encarregado de entregar a herança, o qual lher somente quando ela tinha três filhos4 7.
se via em terríveis circunstâncias. Se a entre­ É de notar que a lei Papiana não tornou as
gasse, era um mau cidadão; se a conservasse mulheres que tinham três filhos capazes de
consigo, era um homem desonesto. Somente as suceder, senão em virtude do testamento dos
pessoas de uma bondade natural pensariam em estranhos; e que, em relação à sucessão dos
eludir a lei; somente as pessoas honestas po­ parentes, manteve as antigas leis e a lei Voco­
diam ser escolhidas para eludi-la; pois sempre niana48 em toda a sua força. Mas isso não
constitui um triunfo a obter sobre a avareza e durou.
as voluptuosidades; e só as pessoas honestas é Roma, arrumada pelas riquezas de todas as
que obtêm esses triunfos. Talvez mesmo hou­ nações, mudara os costumes; não houve mais
vesse rigor em considerá-los, por isso, maus a preocupação de deter o luxo das mulheres.
cidadãos. Não é impossível que o legislador Aulo Gélio, que vivia sob o reinado de Adria­
tenha conseguido uma grande parte de seu no49, diz-nos que, em seu tempo, a lei Voco­
objeto, quahdo sua lei era de tal sorte, que for­ niana estava quase aniquilada; foi abafada
çava somente as pessoas honestas a eludi-la. pela opulência da cidade. Por isso, encon­
No tempo em que se fez a lei Voconiana, os tramos nas Sentenças de Paulo 50, que vivia no
costumes ainda haviam conservado algo de tempo de Nigério, e nos Fragmentos de Ulpia­
sua antiga pureza. Interessou-se, às vezes, a no 51, que era do tempo de Alexandre Severo,
consciência pública em favor da lei, e fez-se que as irmãs do lado paterno podiam suceder,
que jurasse que a seguiría42; de sorte que a e que somente os parentes de um grau mais
probidade fazia guerra, por assim dizer, à pro­ afastado é que se incluíam no caso da proibi­
bidade. Nos últimos tempos, porém, os costu­ ção da lei Voconiana.
mes se corromperam a ponto de os fideico-
missos deverem ter menos força para eludir a
4 4 Vede, sobre isso, os Fragm. de Ulpiano, tít. XV,
lei Voconiana, do que esta lei para se fazer §16. (N. do A.)
obedecida. 4 5 Encontra-se a mesma diferença nos vários
As guerras civis mataram um número infi­ dispositivos da lei Papiana. Vede os Fragm. de
nito de cidadãos. Roma, no tempo de Augusto, Ulpiano, §§ 4 e 5, último tít.; e o mesmo no mesmo
viu-se quase deserta; cumpria repovoá-la. título, § 6. (N. do A.)
4 6 Quod tibi filiolus, velfilia, nascitur, ex me. . .
Foram feitas as leis Papianas, em que nada se Juraparentis habes; propter me scriberis haeres.
omitiu do que podia encorajar o cidadão a Juvenal, Sát. IX, vv. 83, 87. (N. do A.)
casar-se e a ter filhos43. Um dos principais 4 7 Vede a lei 9, cód. Teod. de bonisproscriptorum;
meios foi aumentar, para os que se prestavam e Dion, liv. LV. Vede os Fragm. de Ulpiano, último
tít., § 6; e tít. XXIX, § 3. (N. do A.)
48 Fragm. de Ulpiano, tít. XVI, § 1; Sozom., liv. I,
42 Sextílio dizia que havia jurado observá-la. Cíce­ cap. XIX. (N. do A.)
ro, Definib. bon. et mal., liv. II, cap. LV. (N. do A.) 49 Liv. XX, cap. I. (N. do A.)
43 Vede o que disse a respeito no livro XXIII, cap. 50 Liv. IV, tít. VIII, § 3.(N. doA.)
XXL (N. do A.) 51 Tít. XXVI, § 6. (N. do A.)
LIVRO VIGÉSIMO OITAVO
DA ORIGEM E DAS REVOLUÇÕES
DAS LEIS CIVIS DOS FRANCESES
Capítulo I

Do caráter diferente das


leis dos povos germânicos

Depois que os francos saíram de seu país, Há nas leis sálicas e ripuárias, nas dos ale­
eles mandaram redigir5 7, pelos sábios de sua mães, dos bávaros, dos turíngios e dos frisões,
nação, as leis sálicas. A tribo dos francos uma simplicidade admirável; encontramos
ripuários havendo-se reunido, sob o reinado de nelas uma rudeza original e um espírito que
Clóvis 58, à tribo dos francos sálios, conservou não havia sido ainda enfraquecido por outro
seus usos; e Teodorico59, rei da Austrásia, os espírito. Elas pouco se modificaram, porque
mandou redigir. Ele compilou60 também os estes povos, com exceção dos francos, conser-
usos dos bávaros e dos alemães que estavam varam-se na Germânia. Os próprios francos
sob seu reinado. Porque, estando a Germânia fundaram ali uma grande parte de seu império:
enfraquecida pela saída de tantos povos, os deste modo, todas as suas leis foram germâni­
francos, após haverem avançado na conquista, cas. O mesmo não aconteceu com as leis dos
haviam retrocedido um passo e levado o seu visigodos, dos lombardos e dos borguinhões;
domínio para as florestas de seus antepassa­ elas perderam muito de seu caráter, porque
dos. Parece que o código61 dos turíngios foi estes povos, que se fixaram em suas novas
outorgado pelo mesmo Teodorico, pois que os moradas, também perderam muito do seu.
turíngios eram também seus súditos. A lei62 O reino dos borguinhões não subsistiu o
dos frisões, que tinham sido dominados por tempo necessário para que as leis do povo ven­
Carlos Martelo e por Pepino, não é anterior a cedor pudessem sofrer grandes modificações.
estes príncipes. Carlos Magno, que foi o pri­ Gondebaldo e Sigismundo, que recolheram
meiro a subjugar os saxões, outorgou-lhes a lei seus usos, foram quase os últimos de seus reis.
que ainda possuímos. Basta ler estes dois últi­ As leis dos lombardos receberam mais adita­
mos códigos para ver que eles saem das mãos mentos do que modificações. As de Rotaris
de vencedores. Os visigodos, os borguinhões e foram seguidas pelas de Grimoaldo, de Luit-
os lombardos, tendo fundado reinos, manda­ prando, de Rachis, de Aistolfo; mas elas não
ram redigir suas leis, não para fazer com que adquiriram forma nova. O mesmo não se deu
seus usos fossem seguidos pelos povos venci­ com as leis dos visigodos 63; seus reis as refun-
dos, mas sim para que eles mesmos os diram e as fizeram refundir pelo.clero.
seguissem. Os reis da primeira raça eliminaram 6 4 das
leis sálicas e ripuárias o que não podia absolu­
6 7 Vede o prólogo da lei sálica. Leibniz diz, em seu tamente concordar com o cristianismo; conser­
tratado sobre a Origem dos Francos, que esta lei foi varam, porém, todo o seu fundamento. Isso
criada antes do reinado de Clóvis, mas ela não pode não se pode dizer das leis dos visigodos.
ter existido antes de os francos haverem saído da
Germânia: eles não compreendiam, então, a língua
latina. (N. do A.) 63 Eurico as outorgou, Leovigildo corrigiu-as.
5 8 Vede Gregório de Tours. (N. do A.) Vede a crônica de Isidoro. Chaindassuindo e Reces-
59 Vede o prólogo da leis dos bávaros e o da lei sá­ suindo as reformaram. Egiga mandou que fosse
lica. (N. do A.) feito o código que temos, e o incumbiu aos bispos;
60 Ibid. (N. do A.) foram conservadas, contudo, as leis de Chaindas­
61 Lex Angliorum Werinorum, hoc est, Thuringo- suindo e Recessuindo, pelo que se nota no décimo
rum. (N. do A.) sexto concilio de Toledo. (N. do A.)
62 Eles não sabiam escrever. (N. do A.) 8 4 Vede o prólogo da lei dos bávaros. (N. do A.)
426 MONTESQUIEU

As leis dos borguinhões, e principalmente as germânicas só é seguido na punição dos crimes


dos visigodos, apreciam as penas corporais. que eles cometem fora de seu território.
As leis sálicas e ripuárias não as acolheram6 5, Declara-se ali que, por causa de seus crimes,
elas conservaram melhor o seu caráter. eles jamais terão paz, e recusa-se-lhes até o
Os borguinhões e os visigodos, cujas provín­ asilo das igrejas.
cias estavam muito expostas, procuraram
Os bispos exerciam uma autoridade imensa
conciliar-se com os antigos habitantes e lhes
na corte dos reis visigodos; as questões mais
dar as leis civis mais imparciais 6 6, mas os reis
francos, seguros de seu poder, não tiveram 6 7 importantes eram decididas nos concílios.
estes cuidados. Devemos ao código dos visigodos todas as má­
Os saxões, que viviam sob o império dos ximas, todos os princípios e todos os objetivos
francos, tiveram um gênio indomável e obsti­ da inquisição de hoje; e os monges nada mais
naram-se em revoltar-se. Encontramos em fizeram do que copiar contra os judeus essas
suas68 leis o rigor do vencedor, que não é leis outrora feitas pelos bispos69.
encontrado em outros códigos das leis dos De resto, as leis de Gondebaldo para os
bárbaros. borguinhões parecem bastante judiciosas; as
Vemos ali o espírito das leis dos germanos de Rotaris e outros príncipes lombardos o são
nas penas pecuniárias, e o do vencedor nas ainda mais. Mas as leis dos visigodos, as de
penas corporais. Recessuindo, de Chaindassuindo e de Egiga,
Os crimes que eles cometem em seu país são são pueris, canhestras, sem sentido; elas não
punidos corporalmente; e o espírito das leis atingem a sua finalidade; cheias de retórica e
vazias de sentido, frívolas quanto ao fundo e
6 5 Encontram-se somente algumas no decreto de gigantescas quanto ao estilo7°.
Childeberto. (N. do A.)
6 6 Vede o prólogo do Código dos Borguinhões, e o
próprio Código, principalmente o tít. XII, § 5, e o 69 E dirigidas contra os visigodos.
tít. XXXVIII. Vede também Gregório de Tours, liv. 70 Laboulaye nota que Montesquieu “é severo com
II, cap. XXXIII, e o Código dos Visigodos. (N. do as leis dos visigodos”. “Não é notável”, acrescenta
A.) ele, “que essas leis traduzidas para o espanhol sob o
6 7 Vede o cap. III mais abaixo. (N. do A.) nome de FuerJuzgo (Forum Judicum) tenham atra­
68 Vede o cap. II, §§ 8 e 9; e o cap. IV, §§ 2 e 7. vessado toda a Idade Média e que sejam ainda hoje
(N. do A.) a essência do direito espanhol?”

Capítulo II

De como todas as leis dos


bárbaros foram pessoais

É uma característica particular dessas leis rar-se. O terror que eles tiveram pelos romanos
dos bárbaros não haverem sido vinculadas a fez com que se reunissem; cada homem, nessas
um determinado território: o franco era julga­ nações mescladas, teve que ser julgado pelos
do pela lei dos francos, o alemão pela lei dos usos e costumes de sua própria nação. Todos
alemães, o borguinhão pela lei dos borgui­ esses povos eram, de per si, livres e indepen­
nhões, o romano pela lei romana; e, bem longe dentes; e a independência foi conservada
de se cogitar, naqueles tempos, de tornar uni­ mesmo depois que eles se misturaram. A pátria
formes as leis dos povos conquistadores, não era comum e a república particular; o terri­
se pensava nem mesmo em ser legislador do tório era o mesmo e as nações diversas. O espí­
povo vencido. rito das leis pessoais existia então nesses povos
Encontro a origem disto nos costumes dos antes que eles partissem de suas terras de ori­
povos germânicos. Suas nações estavam sepa­ gem, e eles levaram-no em suas conquistas.
radas por pântanos, lagos e florestas; sabemos Encontra-se este uso estabelecido nas fór­
por César71 que esse povo gostava de sepa­ mulas72 de Marculfo, nos códigos das leis dos

71 De Bello Gallico, liv. VI. (N. do A.) 7 2 Liv. fórm. VIII. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 427

bárbaros, principalmente na lei dos ripuá- a do marido, as viúvas78 voltavam à própria


rios73, nos74 decretos dos reis da primeira lei, os libertos79 seguiam a de seu senhor. E
raça, de onde derivam as capitulares que não é tudo: cada um podia seguir a lei que qui­
foram feitas a esse respeito na segunda7 5. As
crianças7 6 seguiam a lei do pai, as mulheres7 7 sesse: a constituição de Lotário I80 exigia que
essa escolha fosse tomada pública.
73 Cap. XXXI. (N. do A.)
74 O de Clotário, do ano 560, na edição das Capi­ 7 6 Ibid., liv. II, tít. V. (N. do A.)
tulares de Baluze, tomo I, art. 4; ibid., in fine. (N. do 7 7 Ibid., liv. II, tít. VII, cap. I. (N. do A.)
A.) 78 Ibid., cap. II. (N. do A.)
7 6 Capitulares acrescentadas à lei dos lombardos, 7 9 Ibid., liv. II, tít. XXXV, cap. II. (N. do A.)
liv. I, tít. XXV, cap. LXXI; liv. II, tít. XLI, cap. 80 Na lei dos lombardos, liv. II, tít. XXXVII. (N.
VII; e tít. LVI, caps. I e II. (N. do A.) do A.)

Capítulo III

Diferença capital entre as leis sálicas e


as leis dos visigodos e dos borguinhões

Disse81 que a lei dos borguinhões e a dos assaltar um franco em sua casa e se ele era
visigodos eram imparciais; mas a lei sálica não morto, a lei sálica ordenava uma reparação de
o foi: estabeleceu entre os francos e os roma­ seiscentos soidos; mas, se se houvesse assal­
nos as mais aflitivas distinções. Quando82 tado um romano ou um liberto88, não se paga­
alguém matava um franco, um bárbaro, ou um va senão a metade da reparação. Pela mesma
homem que vivia sob a lei sálica, devia pagar lei89, se um romano aprisionava um franco,
aos seus parentes uma reparação de duzentos devia trinta soidos de reparação; mas, se um
soidos; pagavam-se apenas cem, quando se franco aprisionava um romano, ele não devia
havia morto um romano proprietário83, e senão uma de quinze. Um franco espoliado por
somente quarenta e cinco, quando se havia um romano tinha sessenta e dois soidos e meio
morto um romano tributário: a reparação por de reparação; e um romano espoliado por um
homicídio de um franco, vassalo8 4 do rei, era franco só recebia uma de trinta. Tudo isto
de seiscentos soidos; e por homicídio de um devia ser opressivo para os romanos.
romano conviva8 5 do rei8 6 não era senão de Entretanto, um autor célebre90 forma nm
trezentos. Ela estabelecia, então, uma dife­ sistema do Estabelecimento dos Francos nas
rença cruel entre o senhor franco e o senhor Gálias, no pressuposto de que eles eram os
melhores amigos dos romanos. Eram então os
romano, e entre o franco e o romano que eram
francos os melhores amigos dos romanos, eles
de condição medíocre.
que lhes causaram e que deles receberam91
E não é tudo: se se reunia8 7 gente para
males horríveis? Eram os francos amigos dos
romanos, eles que, após tê-los subjugado pelas
81 No cap. I deste livro. (N. do A.) armas, oprimiram-nos a sangue frio, com suas
82 Lei sálica, tít. XLIV, § 1. (N. do A.)
83 Qui res in pago ubi remanet próprias habet. Lei leis? Eles eram amigos dos romanos tal como
sálica, tít. XLIV, § 15; vede também o § 7. (N. do os tártaros que conquistaram a China eram
A.) amigos dos chineses.
8 4 Qui in truste dominica est, ibid., tít. XLIV, § 4. Se alguns bispos católicos quiseram servir-
(N. do A.)
8 5 Si romanus homo conviva regisfuerit. Ibid., § 6.
(N. do A.) 88 Lidus, cuja condição era melhor do que a de seu
8 6 Os romanos mais importantes ligavam-se à servo. Lei dos alemães, cap. XCV. (N. do A.)
corte, como se vê pela vida de muitos bispos que 89 Tít. XXXV, §§ 3 e 4. (N. do A.)
nela foram educados. Ali, apenas os romanos sa­ 90 O Abade Dubos. (N. do A.)
biam escrever. (N. do A.) 91 É o que testemunha a expedição de Arbogasto,
8 7 Lei sálica, tít. XLV. (N. do A.) em Gregório de Tours, História, liv. II. (N. do A.)
428 MONTESQUIEU

se dos francos para destruir os reis arianos, cos contaram com os romanos, menos eles os
deduz-se que eles tenham desejado viver sujei­ pouparam.
tos aos povos bárbaros? Pode-se concluir que Mas o Abade Dubos abeberou-se em más
os francos tivessem considerações especiais fontes para um historiador: os poetas e os ora­
pelos romanos? Eu tiraria disso tudo conse­ dores: não é sobre obras de ostentação que se
quências bem diferentes: quanto mais os fran­ devem fundar os sistemas.

Capítulo IV

De como o direito romano se perdeu no país


de domínio dos francos e se conservou no país de
domínio dos godos e dos borguinhões

As coisas que eu disse elucidarão outras que somente pelos eclesiásticos9 7, porquanto esses
até agora estiveram plenas de obscuridade. não tiveram nenhum interesse em mudar. As
O país a que hoje chamam França foi gover­ diferenças das condições e das categorias não
nado, durante a sua primeira raça, pela lei ro­ consistiam senão na grandeza das reparações,
mana ou pelo código Teodosiano, e pelas como eu farei ver em outra parte. Ora, leis98
diversas leis dos bárbaros92 que ali habita­ particulares lhes deram reparações tão favorá­
vam. veis quanto aquelas que tinham os francos:
eles conservaram, então, o direito romano.
No país de domínio dos francos, a lei sálica
Dele, eles não recebiam nenhum prejuízo; e ele
era estabelecida para os francos, e o código93
lhes convinha, além disso, porque era obra dos
Teodosiano para os romanos. Naquele de
imperadores cristãos.
domínio dos visigodos, uma compilação do có­
De outro lado, no patrimônio dos visigodos,
digo Teodosiano, feita por ordem de Alari-
como a lei visigoda" não conferia nenhuma
co9 4, regulou as questões dos romanos; os cos­
vantagem civil aos visigodos sobre os roma­
tumes da nação, que Eurico9 5 mandou redigir, nos, estes não tiveram nenhuma razão para
decidiram as dos visigodos. Mas por que as deixar de viver sob a lei deles para viver sob
leis sálicas adquiriram uma autoridade quase uma outra: conservaram, portanto, suas leis e
geral no país dos francos? E por que o direito não adotaram as dos visigodos.
romano se perdeu ali, pouco a pouco, enquan­ Isso se confirma à medida que se avança. A
to, no domínio dos visigodos, o direito romano lei de Gondebaldo foi muito imparcial e não
estendeu-se e exerceu uma autoridade geral? foi mais favorável aos borguinhões do que aos
Digo que o direito romano perdeu o seu uso romanos. Parece, pelo prólogo desta lei, que
entre os francos, em virtude das grandes vanta­ ela foi feita pelos borguinhões e que foi elabo-
gens que havia em ser franco9 ®, bárbaro, ou
homem vivendo sob a lei sálica; todos foram 9 7 “Segundo a lei romana sob a qual a igreja vive ",
levados a abandonar o direito romano para ê dito na lei dos ripuários, tít. LVIII, § 1. Vede tam­
viver sob a lei sálica. Ele foi conservado bém as inúmeras autoridades a esse respeito, relata­
das por Ducange, no verbete Lex Romana. (N. do
A.)
92 Os francos, os visigodos e os borguinhões. (N. 98 Vede as capitulares acrescentadas à lei sálica
do A.) em Lindembroch, no fim dessa lei, e os diversos có­
93 Terminado no ano de 438. (N. do A.) digos das leis bárbaras, sobre os privilégios dos
94 No vigésimo ano do reinado desse príncipe e eclesiásticos a esse respeito. Vede também a carta
publicada dois anos depois por Aniano, como se vê de Carlos Magno a Pepino, seu filho, rei da Itália,
no prefácio deste código. (N. do A.) no ano 807, na edição de Baluze, tomo I, pág. 462,
9 8 No ano de 504 da era da Espanhar Crônica de onde é dito que um eclesiástico deve receber uma
Isidoro. (N. do A.) reparação tríplice; e a Coletânea das Capitulares,
9 9 Francum, aut barbarum, aut hominem qui sali- liv.' V, art. 302, tomo I, ediçãq de Baluze. (N. do A.)
ca lege vivit. Lei Sálica, tít. XLV, § 1. (N. do A.) 9 9 Vede esta lei. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS 429

rada para regular as questões que poderíam Isto se prova pelo edito de Carlos, o Calvo,
nascer entre os romanos e os borguinhões; e, publicado em Pistes, no ano 864, o qual103
neste último caso, o tribunal foi bipartido. Isto distingue entre os países em que se julgava
era necessário por razões particulares, que pelo direito romano e aqueles em que isso não
decorreram do acordo100 político daqueles se dava.
tempos. O direito romano subsistiu na Borgo- O edito de Pistes prova duas coisas: uma,
nha. para regular as contendas que os romanos que havia países em que se julgava segundo a
poderíam ter entre si. Estes não tiveram razões lei romana e países em que não se julgava
para abandonar a própria lei, o que não acon­ segundo essa lei; outra, que esses países em
teceu no país dos francos; tanto mais que a lei que se julgava pela lei romana10 4 eram preci­
sálica ainda não fora estabelecida na Borgo- samente aqueles em que ela é seguida ainda
nha, como parece, pela fàmosa carta que Ago- hoje, como se vê nesse mesmo edito. Assim a
bardo escreveu a Luís, o Bonacheirão. distinção entre países da França consuetudi-
Agobardo101 pedia que este príncipe esta­ nária e da França regida pelo direito escrito es­
belecesse a lei sálica na Borgonha; portanto tava já estabelecida no tempo do edito de
ela não fora estabelecida ali. Assim o direito Pistes.
romano subsistiu e subsiste ainda em todas as Disse que, no início da monarquia, todas as
províncias que dependiam outrora deste reino. leis eram pessoais; assim, quando o edito de
O direito romano e a lei dos godos mantive­ Pistes distingue entre os países de direito ro­
ram-se, do mesmo modo, no país de coloniza­ mano e os que não o eram, isto significa que,
ção dos godos: a lei sálica aí nunca foi recebi­ nos países que não eram de direito romano,
da. Quando Pepino e Carlos Martelo
tantas pessoas escolheram viver sob alguma
expulsaram os sarracenos de lá, as cidades e as
das leis dos povos bárbaros, que não havia
províncias que se submeteram a estes prínci­
quase mais ninguém, nessas regiões, que esco­
pes1 02 pediram que as suas leis fossem conser­
lhesse viver sob a lei romana; e que, nos países
vadas, e o obtiveram: o que, apesar do uso
de lei romana, havia poucas pessoas que tives­
daqueles tempos, em que todas as leis eram
sem escolhido viver sob as leis dos povos
pessoais, fez com que cedo o direito romano
bárbaros.
fosse olhado como uma lei real e territorial
Bem sei que digo aqui coisas novas; mas, se
nesses países:
elas são verdadeiras, são muito antigas. Que
importa, enfim, que seja eu, os Valois ou os
100 Falarei disto em outra parte, liv. XXX, caps. Bignons10 5 que as tenham dito?
VI, VII, VIII e IXJN. do A.)
101 Agobardo, Opera. (N. do A.)
102 Vede Gervásio de Tilburi, na coletânea de 103 In illa terra in qua judida secundum legem
Duchesne, tomo III, pág. 366: Fada padione cum romanam terminantur, secundum ipsam legem Judi-
Francis, quod illic Gothi patriis legibus, moribus cetur; et in illa terra in qua etc., art. 16. Vede tam­
patemis vivant. Et sic Narbonensis provinda Pippi- bém o art. 20. (N. do A.)
no subjicitur. E uma crônica do ano 759, relatada 10 4 Vede os artigos 12 e 16 do edito de Pistes, in
por Catei, História do Languedoc. E o autor incerto Cavilono, in Narbona etc. (N. do A.)
da vida de Luís, o Bonacheirão, sobre o pedido feito 106 Adriano de Valois (1607-1697), autor das
pelos povos da Septimânia, na assembléia in Cari- Gesta Francorum (1646-1658); Jerônimo Bignon
síaco, na coletânea de Duchesne, tomo II, pág. 316. (1589-1656), autor da Excelência dos Reis do Rei­
ÍN.do A.) nado da França.

Capítulo V

Continuação do mesmo assunto

A lei de Gondebaldo subsistiu durante carta de Agobardo não deixa nenhuma dúvida
muito tempo entre os borguinhões, concomi­ a esse respeito. Do mesmo modo, embora o
tantemente com a lei romana; ela estava ainda edito de Pistes chame o país que havia sido
em uso aí no tempo de Luís, o Bonacheirão; a ocupado pelos visigodos de o país de lei roma
430 MONTESQUIEU

na, a lei dos visigodos subsistia sempre ali; o ram até em seus países, em consequência das
que se prova pelo sínodo de Troyes, reunido causas10 6 gerais que fizeram desaparecer, em
toda parte, as leis pessoais dos povos bárbaros.
sob Luís, o Gago, no ano de 878, isto é, cator­
ze anos depois do edito de Pistes. 10 6 Vede a esse respeito os capítulos IX, X e XI.
Depois, as leis góticas e borguinhãs perece­ (N. do A.)

Capítulo VI

Como o direito romano se conservou


no domínio dos lombardos

Tudo se curva aos meus princípios. A lei blicas não foram levados a adotar uma lei que
dos lombardos era imparcial, e os romanos estabelecia o uso da lide judiciária, e cujas
não tiveram nenhum interesse em deixar a pró­ instituições se prendiam muito aos costumes e
pria lei para adotar essa. O motivo que levou aos usos da cavalaria. Vivendo quase todo o
os romanos sob os francos a escolherem a lei clero, desde esse tempo tão poderoso na Itália,
sálica, não se apresentou na Itália; o direito ro­ sob a lei romana, o número dos que seguiam a
lei dos lombardos teve que ir diminuindo
mano ali se manteve ao lado das leis dos
sempre.
lombardos.
Não tinha, aliás, a lei dos lombardos essa
E aconteceu até que esta cedeu ao direito majestade do direito romano, que lembrava à
romano; ela deixou de ser a lei da nação domi­ Itália a idéia de seu domínio sobre toda a
nante; e, embora continuasse a ser a da nobre­ terra; ela não possuía essa extensão. A lei dos
za principal, a maioria das cidades se erigiu lombardos e a lei romana não podiam mais
em repúblicas, e esta nobreza caiu ou foi10 7 servir senão para suprir os estatutos das cida­
exterminada. Os cidadãos das novas repú- des que se haviam erigido em repúblicas; ora,
quem podia melhor supri-los, a lei dos lombar­
10 7 Vede o que diz Maquiavel da destruição da an­ dos, que só estatuía sobre alguns casos, ou a
tiga nobreza de Florença. (N. do A.) lei romana, que os abrangia a todos?

Capítulo VII

Como o direito romano se perdeu na Espanha

As coisas passaram-se de outro modo na tos entre os godos e os romanos. É claro que
Espanha. A lei dos visigodos triunfou e o direi­ essas duas leis tinham o mesmo espírito: este
to romano se perdeu. Chaindassuindo108 e rei queria suprimir as principais causas de
Recessuindo109 proscreveram as leis romanas, separação que havia entre os godos e os roma­
e não permitiram nem sequer citá-las nos tri­ nos. Ora, pensava-se que nada os separava
bunais. Recessuindo foi ainda o autor da mais do que a proibição de contratar casa­
lei110 que revogava a proibição dos casamen­
mento entre si, e a permissão de viverem sob
leis diversas.
10 8 Começou a reinar em 642. (N. do A.)
109 Nós não queremos mais ser atormentados Mas, embora os reis dos visigodos tivessem
pelas leis estrangeiras, nem pelas romanas. Lei dos proscrito o direito romano, ele sempre subsis­
visigodos, liv. II, tít. I, §§ 9 e 10. (N. do A.) tiu nos domínios que possuíam na Gália Meri­
110 Ut tam Gotho Romanam quam Romano Go-
tham matrimônio liceat sociarit. Lei dos visigodos, dional. Essas regiões, afastadas do centro da
liv. III, tít. I. cap. I. (N. do A.) monarquia, viviam em uma grande indepen­
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 431

dência111. Vê-se pela história de Vamba, o rantes contra os judeus; mas estes eram pode­
qual ascendeu ao trono em 672, que os natu­ rosos na Gália Meridional. O autor da história
rais do país tinham levado112 vantagem: do Rei Vamba denomina essas províncias de
assim, a lei romana tinha ali mais autoridade e prostíbulo dos judeus. Quando os sarracenos
a lei gótica menos. As leis espanholas não con­ vieram para essas províncias, tinham sido cha­
vinham nem aos seus hábitos nem à sua situa­ mados para ali: ora, quem os podia ter chama­
ção atual: e o povo obstinou-se na lei romana do, senão os judeus ou os romanos? Os godos
talvez porque a ela ligou a idéia de sua liberda­ foram os primeiros oprimidos, porque eles
de. Há ainda mais: as leis de Chaindassuindo e eram a nação dominante. Vê-se em Procó-
de Recessuindo continham disposições apavo- pio113 que, em seus infortúnios, eles se retira­
ram da Gália Narbonense para a Espanha.
Não há dúvida de que, no caso desse infortú­
111 Vede, em Cassiodoro, as condescendências que
Teodorico, rei dos ostrogodos, o príncipe mais nio, eles se refugiaram nas regiões da Espanha,
considerado de seu tempo, teve com eles; liv. IV, que ainda se defendiam; e o número daqueles
cartas 19 e 26. (N. do A.) que, na Gália Meridional, viviam sob a lei dos
112 A revolta dessas províncias foi uma defecção visigodos tornou-se muito diminuto.
geral, como se vê pelo julgamento que está na conti­
nuação da História. Paulo e seus partidários eram
romanos; eles foram mesmo favorecidos pelos bis­ 113 Gothi qui cladi superfuerant, ex Gallia cum
pos. Vamba não ousou executar os sediosos que uxoribus liberisque egressi, in Hispaniam ad Teu-
vencera. O autor da História denomina a Gália dim jam palam tyrannum se receperunt. De Bello
Narbonense de nutriz da traição. (N. do A.) Gothorum, liv. I, cap. XIII. (N. do A.)

Capítulo VIII

Falsa capitular

Este infeliz compilador, Benedito Levita, geral, como se tivesse querido exterminar o
não chegou a transformar esta lei visigoda, que direito romano em todo o universo.
proibia o uso do direito romano, em uma capi­
tular1 1 4, que foi atribuída mais tarde a Carlos 11 4 Capitulares, edição de Baluze, liv. VI, cap.
Magno? Ele fez desta lei particular uma lei CCCXLIII, pág. 981. (N. do A.)

Capítulo IX

De como os códigos das leis dos


bárbaros e as capitulares decaíram

As leis sálicas, ripuárias, borguinhãs e visi- tas11 5 cartas em que os senhores fixavam mul­
godas deixaram, pouco a pouco, de ser usadas tas, as quais deviam ser pagas em seus peque­
entre os franceses: e eis como. nos tribunais. Assim, seguia-se o espírito da
Tendo-se os feudos tomado hereditários e lei, sem se seguir a própria lei.
tendo-se os subfeudos estendido, muitos usos Além do mais, achando-se a França divi­
foram introduzidos, aos quais estas leis não dida numa infinidade de pequenos senhorios,
eram mais aplicáveis. Conservaram efetiva­ que mais reconheciam uma dependência feudal
do que uma dependência política, tornava-se
mente o seu espírito, que era o de regular a
maioria das causas pela aplicação de multas.
115 La Thaumassière [Anciennes Coutumes de
Mas tendo os valores, sem dúvida, mudado, as Berry\ recolheu muitas delas. Vede, por exemplo, os
multas mudaram também; e vêetn-se mui­ caps. LXI, LXVI e outros. (N. do A.)
432 MONTESQUIEU

bem difícil que uma só lei pudesse ser autori­ sas: as leis dos feudos estabeleceram-se, e
zada. Com efeito, não seria possível fazer com grande parte dos bens da Igreja foi governada
que ela fosse observada. Quase não havia mais pelas leis dos feudos; os eclesiásticos mais se
o uso de enviar oficiais11 8 extraordinários às separaram e negligenciaram11 7 as leis de
províncias, para que fiscalizassem a adminis­ reforma, nas quais não tinham sido eles os úni­
tração da justiça e as disputas políticas. Por cos reformadores: recolheram-se118 os câno­
essas cartas, parece mesmo que, quando os nes dos concílios e as decretais dos papas; e o
novos feudos se estabeleciam, os reis priva­ clero recebeu estas leis como provenientes de
vam-se do direito de para aí enviá-los. Assim, uma fonte mais pura. Desde a instituição dos
quando, pouco a pouco, tudo foi transformado grandes feudos, os reis não tiveram mais,
em feudo, estes oficiais não puderam mais ser como já disse, emissários nas províncias para
empregados; não houve mais lei comum por­ fazer com que as leis deles emanadas fossem
que não havia ninguém que pudesse fazer com observadas: assim, sob a terceira raça, não se
que ela fosse observada. ouviu mais falar.de capitulares.
As leis sálicas, borguinhãs e visigodas
foram então extremamente negligenciadas no 11 7 “Que os bispos”, diz Carlos, o Calvo, na capi­
tular do ano de 844, art. 8, “sob pretexto de que têm
fim da segunda raça; e, no começo da terceira, autoridade de fazer cânones, não se oponham a esta
quase não se ouvia mais falar delas. constituição, nem a negligenciem.” Parece que ele já
Sob as duas primeiras raças frequentemente previa a sua decadência. (N. do A.)
118 Inseriu-se na coletânea dos cânones um núme­
foi reunida a nação, isto é, os senhores e os bis­ ro infinito de decretais dos papas; destas havia
pos: não se tratava ainda das comunas. Procu- muito pouco na antiga coleção. Dionísio, o Peque­
rou-se nestas assembléias regulamentar o no, incluiu muitas na sua; mas na de Isidoro Merca-
clero, o qual constituía um corpo que se for­ tor foram inseridas verdadeiras e falsas decretais. A
antiga coleção esteve em uso na França até Carlos
mava, por assim dizer, sob os conquistadores, Magno. Este príncipe recebeu das mãos do Papa
e que estabelecia as suas prerrogativas. As leis' Adriano I a coleção de Dionísio, o Pequeno, e fez
feitas nestas assembléias são o que nós chama­ com que ela fosse aceita. A coleção de Isidoro Mer-
mos as capitulares. Aconteceram quatro coi­ cator apareceu na França na época do reinado de
Carlos Magno: obstinaram-se nela; depois veio o
que se denomina o Corpo do direito canônico. (N.
11 6 Missi dominici. (N. do A.) do A.)

Capítulo X

Continuação do mesmo assunto

Acrescentaram-se diversas capitulares à lei eclesiástico ou político não tinham relação


dos lombardos, às leis sálicas, à lei dos báva­ com esta lei; e as que diziam respeito ao gover­
ros. Procurou-se a razão disso: é preciso bus- no civil não se relacionavam senão com as leis
cá-la na própria coisa. As capitulares eram de dos povos bárbaros, as quais eram por elas
diversas espécies. Umas relacionavam-se com explicadas, corrigidas, aumentadas e diminuí­
o governo político, outras com o governo
das. Mas estas capitulares, acrescentadas às
econômico, a maioria com o governo eclesiás­
tico, algumas com o governo civil. As da últi­ leis pessoais, fizeram, creio, com que fosse
ma espécie foram acrescentadas à lei civil, isto negligenciado o próprio corpo das capitulares.
é, às leis particulares de cada nação: é por isso Em tempos de ignorância, o resumo de uma
que é dito nas capitulares que nada foi aí esti­ obra faz, muitas vezes, a própria obra decair.
pulado1 19 contra a lei romana. Com efeito, as
que diziam respeito ao governo econômico, 119 Vede o edito de Pistes, art. 20. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 433

Capítulo XI

Das outras causas da decadência dos códigos das leis


dos bárbaros, do direito romano e das capitulares

Quando as nações germânicas conquis­ havia cidades florescentes e quase que o único
taram o império romano, elas ali encontraram comércio que se fazia então. A proximidade da
o uso da escrita; e, imitando os romanos, elas Itália fez com que o direito romano se conser­
redigiram seus usos120 e deles fizeram códi­ vasse melhor nas regiões da Gália outrora sub­
gos. Os infelizes reinados que seguiram o de metidas aos godos e aos borguinhões, tanto
Carlos Magno, as invasões dos normandos, as mais que este direito era ali uma lei territorial
e uma espécie de privilégio. Parece que foi o
guerras intestinas, nóvamente mergulharam as
desconhecimento da escrita que fez, na Espa­
nações vitoriosas nas trevas de que tinham
nha, as leis visigodas decaírem. E, devido à
saído; não se soube mais ler nem escrever. Isto decadência de tantas leis, formaram-se, em
fez com que, na França e na Alemanha, fos­ toda parte, os costumes.
sem esquecidas as leis bárbaras escritas, o As leis pessoais caíram. As reparações e o
direito romano e as capitulares. O uso da escri­ que se denominava/ret/a121 foram regulamen­
ta conservou-se melhor na Itália, em que reina­ tados mais pelos costumes do que pelo texto
vam os papas e os imperadores gregos e onde dessas leis. Assim, como no estabelecimento
da monarquia se havia passado dos usos dos
120 Isto está determinado expressamente em al­ germânicos às leis escritas, voltou-se, alguns
guns prólogos desses códigos. Vêem-se mesmo, nas séculos depois, das leis escritas aos usos não
leis dos saxões e dos frisões, disposições diferentes escritos.
conforme os diversos distritos. Acrescentaram-se a
esses usos algumas disposições particulares que as
circunstâncias exigiram; tais foram as duras leis 121 Falarei disso em outra parte*. (N. do A.)
contra os saxões. (N. do A.) * Montesquieu fala disso no liv. XXX, cap. 14.

Capítulo XII

Dos costumes locais; revolução das leis


dos povos bárbaros e do direito romano

Vê-se, através de diversos documentos, que direito romano. Provarei que isso não é possí­
já havia costumes locais na época da primeira vel. O Rei Pepino1 2 6 ordenou que, em todo
e da segunda raça. Nesses documentos, fala-se lugar em que não houvesse nenhuma lei, o cos­
do costume do lugar'22, do uso antigo'23, do tume seria seguido; mas que o costume não
costume'2 4, das leis'2 5 e dos costumes. Al­ seria preferido à lei. Ora, dizer que o direito ro­
guns autores acreditaram que o que se denomi­ mano teve preferência sobre os códigos das leis
nava costumes eram as leis dos povos bárba­ dos bárbaros é inverter o que diziam os docu­
ros, e que o que se denominava a lei era o12 * mentos antigos e sobretudo estes códigos das
leis dos bárbaros, que dizem perpetuamente o
12 2 Prefácio das fórmulas de Marculfo. Quae apud contrário.
mqjores nostros.juxta consuetudinem loci quo degi- Longe de as leis dos povos bárbaros serem
mus, didici, vel e sensu proprio cogitavi etc. (N. do estes costumes, foram essas mesmas leis que,
A.) como leis pessoais, os introduziram. A lei sáli-
123 Lei dos lombardos, liv. II, tít. LVIII, § 3. (N.
do A.)
12 * Ibid., liv. II, tít. XLI, § 6. (N. do A.) 12 8 Lei dos lombardos, liv. II, tít. XLI, § 6. (N. do
12 B Vida de São Ligério. (N. do A.) A.)
434 MONTESQUIEU

ca, por exemplo, era uma lei pessoal; mas nos mentos sempre são remédios que indicam um
lugares geralmente ou quase geralmente habi­ mal presente, pode-se crer que, no tempo de
tados pelos francos sálios a lei sálica, embora Pepino, já se começava a preferir os costumes
inteiramente pessoal, tornava-se, em relação a às leis.
estes francos sálios, uma lei territorial; e ela só O que disse explica como o direito romano
era pessoal para os francos que habitavam começou desde os primeiros tempos a tornar-
alhures. Ora, se em um lugar em que a lei sáli­ se uma lei territorial, como se vê no edito de
ca era territorial acontecia que vários borgui­ Pistes; e como a lei goda não deixou de estar
nhões, alemães, ou mesmos romanos, tivessem em uso ainda aí, como parece pelo sínodo de
tido questões com frequência, essas questões Troyes12 7 do qual falei. A lei romana se havia
teriam sido decididas pelas leis destes povos; e tornado a lei pessoal geral, e a lei goda a lei
um grande número de julgamentos ajustados pessoal particular; e, consequentemente, a lei
segundo algumas dessas leis deveria ter intro­ romana era a lei territorial. Mas de que forma
duzido no país novos usos. E isso explica a ignorância fez decair em toda parte as leis
muito bem a constituição de Pepino. Era natu­ pessoais dos povos bárbaros, enquanto o direi­
ral que esses usos pudessem afetar os próprios to romano subsistiu como lei territorial nas
francos do lugar, nos casos que não eram de províncias visigodas e borguinhãs? Respondo
modo algum decididos pela lei sálica; mas não que a lei romana também teve mais ou menos
era natural que eles pudessem prevalecer sobre a sorte das outras leis pessoais; sem isso tería-
a lei sálica. mos ainda o código Teodosiano nas províncias
Assim, havia em cada lugar uma lei domi­ em que a lei romana era lei territorial, em lugar
nante e usos acolhidos que serviam como de aí termos as leis de Justiniano. Quase que
suplemento à lei dominante, desde que eles não só restou a essas províncias o nome de país de
se chocassem com ela. direito romano ou de direito escrito, e esse
Podia acontecer mesmo que eles servissem amor que os povos têm por sua lei, principal­
de suplemento para uma lei que nem era terri­ mente quando a olham como um privilégio, e
torial; e, para seguir o mesmo exemplo, se num algumas disposições do ■direito romano retidas
lugar em que a lei sálica era territorial, um pela memória dos homens. Mas isso foi o bas­
borguinhão era julgado pela lei dos borgui­ tante para produzir o efeito de, quando apare­
nhões e seu caso não se encontrasse no texto ceu a compilação de Justiniano, ter sido rece­
dessa lei, não é preciso duvidar que ele seria bida nas províncias do domínio dos godos e
julgado segundo o costume do lugar. dos borguinhões como lei escrita; enquanto
No tempo do Rei Pepino, os costumes que que, no antigo domínio dos francos, ela só o
se haviam formado tinham menos força que as foi como razão escrita.
leis; mas em pouco tempo os costumes
destruíram as leis e, como os novos regula­ 12 7 Vede a esse respeito o cap. V. (N. do A.)

Capítulo XIII

Diferença entre a lei sálica ou dos francos sálios


e as dos francos ripuários e dos outros povos bárbaros

A lei sálica nunca admitia o uso de provas tentava com as provas negativas; e aquele con­
negativas, o que quer dizer que, pela lei sálica, tra quem se formulava um pedido ou uma acu­
quem fazia uma petição ou uma acusação sação podia, na maioria dos casos, justificar-se
devia prová-la, e que não bastava ao acusado jurando perante um certo número de testemu-
negá-la: o que está de acordo com as leis de
quase todas as nações do mundo. 128 Isto se relaciona com o que diz Tácito (De
A lei dos francos ripuários tinha um128 Mor. Germ., c. 28), que os povos germânicos pos­
espírito completamente diferente; ela se con­ suíam usos comuns e usos particulares. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 435

nhas que ele não tinha feito nada daquilo que caso, não as admitia isoladas e sem o concurso
lhe imputavam. O número129 de testemunhas de provas positivas. O suplicante fazia132
que deviam jurar aumentava segundo a impor­ ouvir suas testemunhas para estabelecer o seu
tância da coisa; ele chegava algumas vezes a pedido; o defensor fazia ouvir as suas para
setenta e dois13 °. As leis dos alemães, dos bá­ justificar-se; e o juiz procurava a verdade nuns
varos, dos turíngios, dos frisões, dos lombar­ e noutros testemunhos133. Essa prática era
dos e dos borguinhões foram feitas sobre o bem diferente da das leis ripuárias e das outras
mesmo plano das dos ripuários. leis bárbaras, em que o acusado justificava-se
jurando que não era culpado e fazendo com
Acabei de dizer que a lei sálica nunca admi­ que- seus parentes jurassem que ele tinha dito a
tia as provas negativas. No entanto, havia um verdade. Essas leis só podiam convir a um
caso131 em que ela o fazia; mas, ainda nesse povo que possuía simplicidade e certa candura
natural. Ainda assim, foi necessário que os
129 Lèfdos Ripuários, títs. VI, VII, VIII e outros. legisladores previssem os abusos, conforme
(N. do A.) veremos logo a seguir.
130 Ibid., títs. XI, XII e XVII. (N. do A.)
131 Era aquele em que um antrustião, isto é, um
vassalo do rei, o qual se supunha ter uma franqueza 13 2 Vede o mesmo título LXXVI. (N. do A.)
maior, era o acusado. Vede o título LXXVI do Pac- 133 Como é praticado ainda hoje na Inglaterra. (N.
tus legis salicae. (N. do A.) do A.)

Capítulo XIV

Outra diferença
A lei sálica nunca permitia a prova pelo foram forçadas a estabelecer a prova do duelo.
duelo; a lei dos ripuários13 4 e quase13 5 todas Solicito que leiam as duas famosas13 9
as dos povos bárbaros aceitavam-na. Acho disposições de Gondebaldo, rei da Borgonha,
que a lei do duelo era uma consequência natu­ sobre esse assunto; verão que elas são extraí­
ral, e o remédio da lei que estabelecia as pro­ das da natureza da coisa. Era preciso, pela lin­
vas negativas. Quando se fazia um pedido e guagem das leis dos bárbaros, retirar o jura­
via-se que ele ia ser falseado por um juramen­ mento das mãos de um homem que dele queria
to, que restava a um guerreiro13 B, que se via abusar.
Entre os lombardos, a lei de Rotaris admite
na contingência de ser confundido, senão exi­
casos em que ela determinava que aquele que
gir justificação do dano que lhe faziam, e até
se houvesse defendido por um juramento não
mesmo denunciar o perjúrio? A lei sálica, que podia mais ser fatigado por um duelo. Esse uso
não admitia o uso das provas negativas, não estendeu-se1 40: veremos a seguir que males
precisava da prova do duelo e não a aceitava; disso resultaram, e como foi preciso voltar à
mas a lei dos ripuários13 7 e a dos outros antiga prática.
povos bárbaros138 que admitiam esse uso
139 Na lei dos borguinhões, tít. VIII, §§ 1 e 2, acer­
1 3 4 Tít. XXXII; tít. I, LVII; § 2, § 4. (N. do A.) ca das questões criminais, e o tít. XLV, que trata
13 6 Vede nota abaixo. (N. do A.) ainda das questões civis. Vede também a lei dos
13 6 Este espírito transparece bem nas leis dos turíngios, tít. I, § 31; tít. VII, § 6 e tít. VIII; a lei dos
ripuários, tít. LIX, § 4, e tít. LXVII, § 5; e a capitu­ alemães, tít. LXXXIX; a lei dos bávaros, tít. VIII,
lar de Luís, o Bonacheirão, acrescentada à Lei dos cap. II, § 6, e cap. III, § 1; e tít. IX, cap. IV, § 4; a
Ripuários. (N. do A.) lei dos frisões, tít. II, § 3; e tít. XIV, § 4; a lei dos
13 7 Vede essa lei. (N. do A.) lombardos, liv. I, tít. XXXII, § 3; e tít. XXXV, § 1;
138 A lei dos frisões, dos lombardos, dos bávaros, e liv. II, tít. XXXV, § 2. (N. do A.)
dos saxões, dos turíngios e dos borguinhões. (N. do 1 40 Vede, abaixo, o cap. XVIII, na parte final. (N.
A.) do A.)
436 MONTESQUIEU

Capítulo XV

Reflexão
Não digo que, nas modificações que foram ram, no curso de vários séculos, levar a estabe­
feitas no código das leis dos bárbaros, nas lecer certas leis particulares. Falo do espírito
disposições que a ele foram acrescentadas, e geral das leis dos germânicos, de sua natureza
no corpo das capitulares, não se possa encon­
trar algum texto em que, de fato, a prova do e de sua origem; falo dos antigos usos desses
duelo não seja uma consequência da prova povos, indicados ou estabelecidos por essas
negativa. Circunstâncias particulares pude­ leis: e aqui não se trata senão disso.

Capítulo XVI

Da prova pela água fervente


estabelecida pela lei sálica

A lei sálica1 41 admitia o uso da prova pela a lei tolerava mas não ordenava. A lei dava
água fervente; e, como essa prova era muito certa compensação ao acusador que queria
cruel, a lei1 42 assumia novo caráter para sua­ permitir ao acusado a defesa pela prova nega­
vizar seu rigor. Ela permitia àquele que tinha tiva: era franqueado ao acusador ater-se ao
sido citado para vir fazer a prova pela água juramento do acusado ou restabelecer a falsi­
fervente que resgatasse sua mão, com consenti­ dade ou a injúria.
mento da outra parte. O acusador, mediante A lei1 43 determinava um critério, para que
certa soma que a lei fixava, podia contentar-se antes do julgamento as partes, uma no temor
com o juramento de algumas testemunhas, as de uma prova terrível, outra à vista de uma
quais declaravam que o acusado não havia pequena compensação presente, terminassem
cometido o crime: este era um caso particular suas contendas e pusessem fim aos seus ódios.
da lei sálica, no qual ela admitia a prova Percebe-se bem que, uma vez consumada essa
negativa. prova negativa, não era necessária outra, e que
Essa prova era uma coisa convencional, que assim a prática do duelo não podia ser uma
consequência dessa disposição particular da
141 E algumas outras leis dos bárbaros também. lei sálica.
(N. do A.)
1 42 Tít. LVI. De manu ab aeneo redimenda. (N. do
A.) 1 43 Ibid., tít. LVI. (N. do A.)

C apítulo XVII

Maneira de pensar de nossos antepassados

Surpreende-nos ver que nossos antepassados Os germanos, que nunca haviam sido subju­
fizessem assim depender a honra, a fortuna e a gados, gozavam de uma independência extre­
vida dos cidadãos de coisas que eram menos ma1 44. As famílias combatiam pelos homicí-
da alçada da razão do que da do acaso; que
eles empregassem incessantemente provas que
nada provavam e que não estavam relacio­ 1 4 4 Isto se manifesta pelo que diz Tácito: Omnibus
nadas nem com a inocência nem com o crime. idem habitus (De Mor. Germ., cap. IV). (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 437

dios, pelos roubos, pelas injúrias1*4 5. Esse te toda a vida, exercitado nas coisas sem as
costume foi modificado submetendo essas quais não se pode obter a honra. E ainda, em
guerras a regras; elas passaram a ser travadas uma nação guerreira em que a força, a cora­
por ordem e sob as vistas do magistrado1 4 6; o gem e a façanha representam a honra, os cri­
que era preferível a uma licença geral de se mes verdadeiramente odiosos são os que nas­
guerrearem. cem da trapaça, da malícia e da astúcia, isto é,
Como hoje os turcos, em suas guerras civis, da covardia.
olham a primeira vitória como um julgamento Quanto à prova pelo fogo, depois que o acu­
de Deus que decide, assim os povos germanos, sado havia colocado a mão sobre um ferro
em suas questões particulares, consideravam o quente, ou na água fervente, envolvia-se a mão
acontecimento do combate como uma sen­ em um saco, que era lacrado: se, três dias
tença da Providência, sempre atenta para depois, não aparecesse marca de queimadura,
punir o criminoso ou o usurpador. ele era declarado inocente. Quem não vê que,
Tácito diz que, entre os romanos, quando num povo exercitado no manejo de armas, a
uma nação queria entrar em guerra com outra, pele rude e calosa não devia receber a impres­
ela procurava conseguir algum prisioneiro que são do ferro quente ou da água fervente, a
pudesse combater com um dos seus; e que se ponto de aparecer três dias depois? E, se ela
julgava pela realização desse combate o êxito aparecesse, isso era uma marca de que aquele
da guerra. Povos que acreditavam que o duelo que fazia a prova era um efeminado. Nossos
regularia as questões públicas bem podiam camponeses, com suas mãos calosas, manejam
pensar que ele poderia também regular as con­ o ferro quente do modo que querem. E, quanto
tendas particulares. às mulheres, as mãos daquelas que trabalham
Gondebaldo1 4 7, rei da Borgonha, foi de podem resistir ao ferro quente. Às damas não
todos os reis o que mais autorizou o uso do faltavam campeões para defendê-las149, e,
duelo. Esse príncipe expressa a razão de sua lei em uma nação em que não havia luxo, quase
em sua própria lei: “É”, diz ele, “para que nos­ não havia classe média.
sos súditos não prestem mais juramento sobre Pela lei dos turíngios1 50, uma mulher acu­
fatos obscuros e não cometam nunca perjúrio sada de adultério não era condenada à prova
sobre fatos certos”. Assim, enquanto os ecle­ pela água fervente, senão quando não se apre­
siásticos1 48 declaravam ímpia a lei que permi­ sentava nenhum campeão para tomar seu
tia o duelo, a lei dos borguinhões encarava lugar; e a lei1 51 dos ripuários não admitia esta
como sacrílega a que estabelecia o juramento. prova senão quando não se encontravam teste­
A prova pelo duelo tinha algum motivo munhas para se inocentar. Mas uma mulher a
baseado na experiência. Em uma nação unica­ quem nenhum dos parentes quisesse defender e
mente guerreira, a covardia supõe outros ví­ um homem que não pudesse alegar nenhum
cios; ela prova que se resistiu à educação que testemunho de sua probidade eram por isso
se recebeu, e que não se foi sensível à honra, mesmo já considerados culpados.
nem dirigido pelos princípios que governaram Digo, então, que, nas circunstâncias dos
os outros homens; ela demonstra que não se tempos em que a prova pelo duelo, a prova
teme o desprezo deles, e que não se considera a pelo ferro quente e pela água fervente estive­
estima deles: por pouco que se seja bem nasci­ ram em uso, houve tal acordo dessas leis com
do, não se será, ordinariamente, carente da os costumes, que essas leis produziram menos
habilidade que deve estar aliada à força, nem injustiças do que poderíam por sua natureza;
da força que deve concorrer com a coragem; que os efeitos foram mais inocentes do que as
porque, se se dá valor à honra, ser-se-á, duran­ causas; que elas ferjram mais a equidade do
que violaram os direitos; que elas foram mais
desarrazoadas do que tirânicas.
1 4 B Veleio Patérculo, liv. II, cap. CXVIII, diz que
os germanos decidiam todas as questões pelo duelo.
(N. do A.) 1 49 Vede Beaumanoir, Coutume de Beauvoisis,
1 4 6 Vede os códigos das leis dos bárbaros; e, quan­ cap. LXI. Vede também a lei dos anglos, cap. XIV,
to aos tempos mais modernos, Beaumanoir, sobre o em que a prova pela água fervente é apenas subsi­
Coutume de Beauvoisis. (N. do A.) diária. (N. do A.)
147 A lei dos borguinhões, cap. XLV. (N. do A.) 180 Tít. XIV. (N. do A.)
1 4 8 Vede as obras de Agobardo. (N. do A.) 1 51 Cap. XXXI, § 5. (N. do A.)
438 MONTESQUIEU

Capítulo XVIII

Como a prova pelo duelo difundiu-se

Poder-se-ia concluir, pela carta de Ago- senhores fizeram as mesmas solicitações, e


bardo a Luís, o Bonacheirão, que a prova pelo redobraram seus clamores; mas, sob pretexto
combate não estava em uso entre os francos, de ausência de algumas pessoas, adiaram
pois que, depois de ter advertido este príncipe ainda uma vez essa questão. Quando Oto II e
dos abusos da lei de Gondebaldo1 52, pede que Conrado1 58, rei da Borgonha, chegaram à Itá­
se julguem, na Borgonha, as questões pela lei lia, tiveram em Verona1 59 um colóquio1 60
dos francos. Mas, como se sabe, por outro com os senhores da Itália; e, sob suas reitera­
lado, que, naquele tempo, o duelo judiciário es­ das instâncias, o imperador, com o consenti­
tava em uso na França, fica-se embaraçado. mento de todos, fez uma lei que declarava que,
Isto se explica pelo que eu já disse: a lei dos quando houvesse alguma disputa sobre heran­
francos sálios não admitia nunca essa prova, e ças em que uma das partes quisesse se servir
a dos francos ripuários1 53 a aceitava. de uma escritura e a outra sustentasse que ela
Mas, apesar dos clamores dos eclesiásticos, era falsa, a questão seria decidida pelo duelo; e
o uso do duelo judiciário estendeu-se cada dia que a mesma regra seria observada quando se
mais na França; e vou provar imediatamente tratasse de matérias de feudos; que as igrejas
que foram eles mesmos que, em grande parte, seriam sujeitas à mesma lei e que elas comba­
propiciaram isso. teríam na pessoa de seus campeões. Vê-se que
É a lei dos lombardos que nos fornece esta a nobreza pediu á prova pelo duelo, por causa
prova. “Havia-se introduzido, há muito tempo, do inconveniente da prova introduzida nas
um detestável costume (isso é dito no preâm­ igrejas; que, apesar dos brados dessa nobreza,
bulo da constituição de Oto II); o de que, se a apesar do abuso que por si só bradava, e ape­
escritura de alguma herança era declarada sar da autoridade de Oto, que chegou à Itália
falsa, aquele que a apresentava jurava sobrê os para falar e agir com toda autoridade, o clero
Evangelhos que ela era verdadeira; e, sem ne­ se manteve firme em dois concílios; que o con­
nhum julgamento prévio, ele se tornava pro­ curso da nobreza e os príncipes, tendo forçado
prietário da herança; e assim os perjuros esta­ os eclesiásticos a ceder, o uso do duelo judi­
vam seguros de receber152 .” Quando o
*154155
156 ciário devia ser considerado como um privi­
Imperador Oto I se fez coroar em Roma1 5 5, légio da nobreza, como uma defesa contra a
dirigindo o Papa João XII um concilio, todos injustiça, e uma proteção ao direito de proprie­
os senhores1 5 6 da Itália clamaram ao impera­ dade; e que, desde esse momento, essa prática
dor que era preciso que ele fizesse uma lei para teve que se estender. E isso se fez num tempo
corrigir esse abuso indigno. O papa e o impe­ em que os imperadores eram grandes e os
rador julgaram que era preciso reencaminhar a papas pequenos, num tempo em que os Otos
questão para o concilio que devia se realizar vieram restabelecer na Itália a dignidade do
pouco depois em Ravena1 5 7. Uma vez lá, os império.
Farei uma reflexão que confirmará o que
152 Si placeret domino nostro ut eos transferret ad
legem Francorum. (N. do A.) disse acima, que o estabelecimento de provas
1 53 Vede esta lei, tít. LIX, § 4; e tít. LXVII, § 5. negativas arrastava atrás de si a jurisprudência
(N. do A.) do duelo. O abuso de que se queixavam diante
1 5 4 Lei dos lombardos, liv. II, tít. IV, cap. dos Otos era o de que um homem, ao qual se
XXXIV. (N. do A.)
155 No ano de 962. (N. do A.)
156 A b Italiae proceribus est proclamatum, ut 1 5 8 Tio de Oto II, filho de Rodolfo, e rei da Borgo­
imperator sanctus, mutata lege, facinus indignum nha transjurana. (N. do A.)
destrueret. Lei dos lombardos, liv. II, tít. LV, cap. 1 6 9 No ano de 988. (N. do A.)
XXXIV. (N. do A.) 1 80 Cum in hoc ab omnilnis imperiales aures
1 5 7 Ele teve lugar no ano de 967, em presença do pulsarentur. Lei dos lombardos, liv. II, tít. IV, cap.
Papa João XIII e do Imperador Oto I. (N. do A.) XXXIV. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 439

objetava que sua escritura era falsa, defendia- Magno1 6 6, Luís, o Bonacheirão, os Otos, fize­
se por uma prova negativa, declarando sobre ram diversas constituições gerais, que se
os Evangelhos que ela não o era. Que se fez encontram inseridas nas leis dos lombardos. e
para corrigir o abuso de uma lei que tinha sido acrescentadas às leis sálicas, as quais estende­
truncada? Restabeleceu-se o uso do duelo. ram o duelo de início às questões criminais e
Apressei-me em falar da constituição de Oto depois às civis. Não se sabia como fazer. A
II, a fim de dar uma idéia clara das disputas prova nçgativa pelo juramento tinha inconve­
daquele tempo entre o clero e os leigos. Havia nientes; a do duelo também os tinha: trocava-
existido antes uma constituição1 61 de Lotário se de provas na medida em que se era atingido
I que, sobre as mesmas queixas e as mesmas mais por umas que por outras.
disputas, querendo assegurar a propriedade De um lado, os eclesiásticos se compraziam
dos bens, havia ordenado que o notário juraria em ver que, em todas as questões seculares,
que sua escritura não era falsa; e que, se ele recorria-se às igrejas1 6 7 e aos altares; e, de
tivesse morrido, far-se-ia jurarem as testemu­ outro, uma nobreza arrogante prezava manter
nhas que a tinham assinado: mas a dificuldade seus direitos pela sua espada.
permanecia sempre, foi preciso recorrer ao Não afirmo que tenha sido o clero que intro­
remédio de que acabo de falar. duziu o uso de que a nobreza se queixava. Esse
costume derivava do espírito das leis dos bár­
Penso que antes daquele tempo, nas assem­
baros e do estabelecimento das provas negati­
bléias gerais presididas por Carlos Magno, a
vas. Mas, tendo uma prática que podia acarre­
nação lhe demonstrou que1 62, na situação
tar a impunidade para tantos criminosos feito
real, era muito difícil que o acusador ou o acu­
pensar que era preciso se servir da santidade
sado não se contradissessem no juramento, e
das igrejas para assustar os culpados e fazer
que era melhor restabelecer o combate judiciá­
empalidecer os perjuros, os eclesiásticos con­
rio ; o que foi feito por ele.
servaram esse uso e a prática à qual ele estava
O uso do combate judiciário estendeu-se unido; porque além do mais eles eram contrá­
entre os borguinhões, e o do juramento foi aí rios às provas negativas. Vemos em Beauma-
limitado. Teodorico, rei da Itália, aboliu o noir1 68 que essas provas nunca foram admiti­
combate singular entre os ostrogodos1 63; as das nos tribunais eclesiásticos; o que muito
leis de Chaindassuindo e de Recessuindo pare­ contribuiu, sem dúvida, para fazê-las cair, e
cem ter querido extinguir até a sua idéia. Mas para enfraquecer a disposição dos códigos das
essas leis foram tão pouco acolhidas no leis dos bárbaros a esse respeito.
Narbonês1 64, que o duelo era lá considerado Isso fará, ainda, sentir bem a ligação entre o
como uma prerrogativa dos godos. uso das provas negativas e o do duelo judi­
Os lombardos que conquistaram a Itália de­ ciário de que já falei tanto. Os tribunais leigos
pois da destruição dos ostrogodos pelos gregos admiravam ambas e os tribunais clericais rejei­
para lá levaram o uso do duelo: mas suas pri­ tavam todas as duas.
meiras leis o restringiram1 6 5. Carlos Na escolha da prova pelo duelo, a nação se­
guia seu gênio guerreiro; porque, enquanto se
’ ” Na lei dos lombardos, liv. II, tít. LV, § 33. No estabelecia o combate como um julgamento de
exemplar de que se serviu Muratori, ela é atribuída Deus, aboliam-se as provas pela cruz, pela
ao Imperador Guido. (N. do A.) água fria e pela água fervente, que tinham sido
1 62 Lei dos lombardos, liv. II, tít. IV, § 23. (N. do
A.)
1 63 Vede Cassiodoro, liv. III, cartas 23 e 24. (N. 6 6 Ibid., liv. II, tít. LV, § 23. (N. do A.)
do A.) 167 O juramento judiciário era feito então nas igre­
1 6 * In palatio quoque Bera comes Barcinonensis, jas; e havia, ao tempo da primeira raça, nos palá­
cum impeteretur a quodam vocato Sunila, et injide- cios dos reis, uma capela especial para as questões
litatis argueretur, cum eodem secundum legem pro- que fossem aí julgadas. Vede as fórmulas de Mar-
priam, utpote quia uterque Gothus erat, equestri culfo, livro I, cap. XXXVIII; as leis dos ripuários;
praelio congressus est et victus. O autor incerto da tít. LIV, § 4; tít. LXV, § 5; a história de Gregório de
vida de Luís, o Bonacheirão. (N. do A.) 1 Tours; a capitular do ano 803, acrescentada à lei sá­
1 6 6 Vede, na lei dos lombardos, o livro I, tít. IV e lica. (N. do A.)
tít. IX, § 23; e liv. II, tít. XXXV, §§ 4 e 5; e tít. LV, 1 68 Cap. XXXIX, pág. 212. Os clérigos afirmam
§§ 1, 2 e 3; os regulamentos de Rotaris; e, no § 15, que a negativa nunca deve servir de prova, porque
o regulamento de Luitprando. (N. do A.) ela não pode ser provada. (N. do A.)
440 MONTESQUIEU

também consideradas como julgamentos de poucos usos universalmente aprovados, essas


Deus. provas não tenham sido reproduzidas em algu­
Carlos Magno ordenou que, se sobreviesse mas igrejas, tanto mais que uma carta1 71 de
alguma desavença entre seus filhos, ela fosse Filipe Augusto faz menção a elas; mas digo
encerrada com o julgamento pela cruz. Luís, o que elas foram pouco usadas. Beaumanoir1 72,
Bonacheirão1 69, limitou esse julgamento às que vivia no tempo de São Luís e um pouco
questões eclesiásticas; seu filho Lotário abo­ depois, e fazia a enumeração dos diferentes gê­
neros de provas, fala da do duelo judiciário,
liu-o em todos os casos; ele também aboliu1 70
mas nunca, de modo algum, das demais.
a prova pela água fria.
Não digo que, num tempo em que havia tão
1 70 Em sua constituição inserida na lei dos lom­
bardos, liv. II, tít. LV, §31. (N. do A.)
1 69 Encontram-se essas constituições inseridas na 171 Do ano de 1200. (N. do A.)
lei dos lombardos e em continuação às leis sálicas. 1 72 Coutume de Beauvoisis, cap. XXXIX. (N. do
(N. do A.) A.)

Capítulo XIX

Nova razão do esquecimento das leis sálicas,


das leis romanas e das capitulares

Já expus as razões que fizeram com que as jurisprudência reduzia-se inteiramente a for­
leis sálicas, as leis romanas e as capitulares malidades; tudo foi governado pelo ponto de
perdessem sua autoridade; acrescentarei que a honra. Se não se havia obedecido ao juiz, ele
grande difusão da prova pelo duelo foi a prin­ demandava sobre a injúria. Em Burges1 7 4, se
cipal causa disso. o preboste tinha notificado alguém, e ele não
As leis sálicas, que nunca admitiam esse comparecesse. “Eu mandei te procurar”, dizia
uso, tornaram-se de algum modo inúteis e ele, “e tu te negaste a vir; dá-me a razão deste
pereceram; as leis romanas, que também não o desprezo”; e combatia-se. Luís, o Grande,
admitiam, perderam-se igualmente. Não se reformou1 7 5 esse costume.
pensou mais senão em aperfeiçoar a lei do
O duelo judiciário estava em uso em
duelo e em fazer para ela uma boa jurispru­
Orléans, em todas as demandas por dívi­
dência. As disposições das capitulares não se
das1 7 ®. Luís, o Jovem, declarou que esse cos­
tornaram menos inúteis. Assim, inúmeras leis
tume só seria aplicado quando a demanda
perderam sua autoridade sem que se possa
citar o momento em que isso ocorreu; foram excedesse cinco soidos. Essa ordenança era
esquecidas sem que se encontrem outras que uma lei local; porque, no tempo de São
tenham tomado seu lugar. Luís1 7 7, bastava que o valor fosse de mais de
Uma nação semelhante não tinha necessi­ doze dinheiros. Beaumanoir1 78 tinha ouvido
dade de leis escritas, e suas leis escritas po­ dizer por um homem de lei que havia outrora,
diam muito facilmente cair no esquecimento. na França, esse mau costume de se poder alu­
Se havia alguma discussão entre duas par­ gar durante certo tempo um campeão para
tes, ordenava-se o duelo. Para isso, não era combater nas questões. Para tanto, era preciso
necessário muita suficiência. que o uso do duelo judiciário tivesse, naquele
Todas as ações civis e criminais reduziam- tempo, uma prodigiosa extensão.
se a fatos. É sobre esses fatos que se combatia;
e não é somente o fundo da questão que se jul­ 1 7 * Constituição de Luís, o Grande, do ano de
gava pelo combate, mas ainda os incidentes, e 1145, na Coletânea das Ordenações. (N. do A.)
os interlocutórios, como o diz Beaumanoir173, 1 7 s Ibid. (N. do A.)
que dá exemplos deles. 1 7 8 Constituição de Luís, o Jovem, do ano de
1168, na Coletânea das Ordenanças. (N. do A.)
Acho que no começo da terceira raça, a 1 7 7 Vede Beaum., cap. LXIII, pág. 325. (N. do A.)
1 78 Vede Coutume de Beauvoisis, cap. XXVIII,
173 Cap. LXI, págs. 309 e 310. (N. do A.) pág. 203. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 441

Capítulo XX

Origem do ponto de honra

Encontram-se enigmas nos códigos das leis re a regra de que, quando um homem estava
dos bárbaros. A lei1*79 dos frisões não concede comprometido pela sua palavra, a honra não
senão meio soldo de reparação para aquele que lhe permitia mais que se retratasse.
recebeu golpes de bastão; e não há ferimento, Os gentis-homens18 6 batiam-se a cavalo e
por menor que seja, pelo qual ela não conceda com suas armas; e os vilões18 7*batiam-se a pé
mais. Pela lei sálica, se um ingênuo dava três e com o bastão. Daí decorreu que o bastão era
bastonadas em um ingênuo, pagava três soi­ o instrumento dos ultrajes188, porque um
dos; se fizera correr sangue, era punido como homem que tivesse sido batido com ele tinha
se tivesse ferido com o ferro e pagava quinze sido tratado como vilão.
soidos: a pena era medida pela importância Só os vilões combatiam com o rosto desco­
dos ferimentos. A lei dos lombardos180 esta­ berto1 89; assim, só eles podiam receber golpes
beleceu diferentes reparações para uma basto- na face. Uma bofetada tornou-se uma injúria
nada, duas, três, quatro. Hoje, um só golpe que devia ser lavada com sangue, porque um
vale cem mil. homem que a tivesse recebido havia sido trata­
A constituição de Carlos Magno, inserida do como vilão.
na lei dos lombardos181, manda que aqueles a Os fcovos germânicos não eram menos sen­
quem permite o duelo combatam com o bas­ síveis que nós ao ponto de honra; eles eram até
tão. Talvez isso tenha sido uma deferência bem mais. Assim, os parentes mais afastados
para com o clero; talvez, posto que se estendia tomavam parte muito importante nas injúrias;
o uso dos duelos, quisessem torná-los menos e todos os seus códigos estão fundados neste
sanguinários. A capitular182 de Luís, o Bona­ ponto. A lei dos lombardos190 manda que
cheirão, concede a escolha de combater com o aquele que, acompanhado de sua família,
bastão ou com as armas. Daí por diante, ape­ espanca um homem que não está em guarda,
nas os servos é que combatiam com o para cobri-lo de vergonha e de ridículo, pague
bastão183. a metade da reparação que ele deveria pagar se
o tivesse matado; e que se, pelo mesmo moti­
Já vejo nascerem e formarem-se os artigos
vo, ele o amarra, pague três quartos da mesma
particulares de nosso ponto de honra. O acusa­
reparação191.
dor começava por declarar, diante do juiz, que
certa pessoa havia cometido uma determinada Podemos então dizer que nossos pais eram
ação; e esta respondia que estava mentin­ extremamente sensíveis às afrontas; mas as
do184; baseado nisso, o juiz ordenava o duelo. afrontas de uma espécie particular, como a de
receber golpes com certo instrumento sobre
Estava estabelecida a máxima de que, quando
uma certa parte do corpo, e dados de certa
se havia recebido um desmentido, era preciso
bater-se.
18 6 Vede, sobre as armas dos combatentes,
Quando um homem18 5 havia declarado que Beaum., cap. LXI, pág. 308, e cap. LXIV, pág. 328.
combatería, não podia mais voltar atrás; e se o (N. do A.)
fazia, era condenado a uma pena. Disso decor­ 18 7 Vede Beaum., cap. LXIV, pág. 328. Vede tam­
bém as cartas de Santo Albino de Anjou, referidas
por Galland, pág. 263. (N. do A.)
1 7 9 Additio sapientum Wilemari, tít. V. (N. do A.) 188 Entre os romanos, as bastonadas nunca eram
180 Liv. I, tít. VI, § 3. (N. do A.) infamantes. L. Ictus fustium. De iis qui notantur
181 Liv. II, tít. V, § 23. (N. do A.) infamia. (N. do A.)
182 Acrescentada à lei sálica no ano de 819. (N. do 18 9 Eles não traziam nada além do escudo e do
A.) bastão. Beaumanoir, cap. LXIV, pág. 328. (N. do
183 Vede Beaum., cap. LXIV, pág. 328. (N. do A.) A.)
18 4* Ibid., pág. 329. (N. do A.) 190 Liv. I, tít. VI, § 1. (N. do A.)
18 6 Ibid., cap. III, págs. 25 e 329. (N. do A.) 191 Ibid., § 2. (N. do A.)
442 MONTESQUIEU

maneira, não lhes eram ainda conhecidas, espancado; e, neste caso, a intensidade dos
Tudo isso era compreendido na afronta de ser excessos marcava a importância dos ultrajes.

Capitulo XXI

Nova reflexão sobre o ponto de


honra entre os romanos

“Entre os germanos”, diz Tácito192 “era Carlos Magno194, corrigindo a lei sálica,
uma grande infâmia o fato de ter abandonado estabeleceu para esse caso uma reparação de
o próprio escudo no combate; e muitos, depois apenas três soidos. Não se poderá suspeitar
desta desgraça,, suicidar am-se.”Também a anti­ que esse príncipe tenha querido enfraquecer a
disciplina militar: é claro que essa modificação
ga lei193 sálica concedia quinze soidos de
decorreu da mudança das armas: e é a essa
reparação àquele de quem se tinha dito, por modificação das armas que se deve a origem
injúria, que havia abandonado o escudo. de muitos usos.

192 De Morib. Germ., cap. VI. (N. do A.) 194 Nós temos a lei antiga e a que foi corrigida por
193 No Pactus legis salicae, cap. VI. (N. do A.) este príncipe. (N. do A.)

Capítulo XXII

Dos costumes relativos aos combates


A nossa ligação com as mulheres está fun­ espécies de influências. Como nos duelos os
dada na felicidade vinculada ao prazer dos campeões estivessem armados de todas as
sentidos, no encantamento de amar e ser peças, e como, com armas pesadas, ofensivas e
amado, e ainda no desejo de agradá-las, pois defensivas, as de certa têmpera e de certa força
elas são juizes muito esclarecidos a respeito de representassem vantagens infinitas, a crença
uma parte das coisas que constituem1 9 5 o mé­ em armas encantadas de alguns combatentes
rito pessoal. Este desejo geral de agradar pro­ deve ter transtornado o juízo de muita gente.
duz a galanteria, que não é o amor, mas a deli­ Disso nasceu o maravilhoso sistema da
cada, a volúvel, a perpétua mentira do amor. cavalaria. Todos os espíritos abriram-se para
Segundo as circunstâncias, diferentes em essas idéias. Viram-se, nos romances, paladi­
cada nação e em cada século, o amor se incli­ nos, necromantes, fadas, cavalos alados ou
na mais para uma dessas três coisas do que dotados de inteligência, homens invisíveis ou
para as duas outras. Ora, digo que, no tempo invulneráveis, mágicos que se interessavam
dos nossos duelos, foi o espírito de galanteria pelo nascimento e pela educação de grandes
que precisou adquirir forças. personagens, e ainda palácios encantados e
Encontro, na lei dos lombardos1 9 6, que se desencantados; em nosso mundo, um mundo
um dos campeões tinha consigo erv^s próprias novo; e o curso ordinário da natureza deixado
para feitiços, o juiz fazia com que lhas tiras­ somente para os homens comuns.
sem e o obrigava a jurar que não tinha mais Paladinos, sempre armados em uma parte
nenhuma. Essa lei só podia estar estribada na do mundo cheia de castelos, de fortalezas e de
opinião comum; foi o medo, que se diz ter malfeitores, consideravam uma honra punir a
inventado tantas coisas, que fez imaginar essas injustiça e defender os fracos. Disso nasceu
ainda, nos romances, a galanteria fundada na
19 5 Eis aqui a contribuição do moralista. idéia do amor ligada à de força e de proteção.
1 9 6 Liv. II, tít. LV, § 2. (N. do A.) Assim, nasceu a galanteria, quando se ima­
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 443

ginaram homens extraordinários que, vendo a tidos. Certa idéia de tranquilidade nos campos
virtude unida à beleza e à fraqueza, foram da Grécia fez dar uma noção dos sentimentos
levados a se expor, por ela, aos perigos e a ser do amor197. A idéia de paladinos protetores
gentis nas ações triviais da vida. da virtude e da beleza das mulheres levou à
Nossos romances de cavalaria enalteceram noção de galanteria.
esse desejo de agradar e deram a uma parte da Esse espírito perpetuou-se pela prática dos
torneios, que, unindo ao mesmo tempo os
Europa esse espírito de galanteria, do qual se
direitos do valor e do amor, deram também à
pode dizer ter sido pouco conhecido pelos
galanteria uma grande importância.
antigos.
O luxo prodigioso dessa imensa cidade de 19 7 Podem-se examinar os romances gregos da
Roma incentivou a idéia dos prazeres dos sen­ Idade Média. (N. do A.)

Capítulo XXIII

Da jurisprudência do duelo judiciário


Ter-se-á talvez curiosidade de ver esse uso mas, desde que esse ponto foi assentado, sua
monstruoso198 do duelo judiciário reduzido a execução se fez com certa prudência.
princípios, e encontrar o corpo de uma juris­ Para se pôr bem a par da jurisprudência
daqueles tempos, é preciso ler com atenção os
prudência tão singular. Os homens, que no regulamentos de São Luís, os quais produzi­
fundo são razoáveis, submetem a regras seus ram tão grandes transformações na ordem
próprios preconceitos. Nada era mais contrá­ judiciária. Défontaines era contemporâneo
rio ao bom senso do que o duelo judiciário: desse príncipe; Beaumanoir escrevia depois
dele1 99; os outros viveram depois dele. É pre­
ciso então procurar a antiga prática nas corre­
19 8 Em tudo o que diz respeito ao duelo judiciário,
ções que a eles se fizeram.
Montesquieu esquece de dizer o principal: que ele
era fundado na lei e na crença de que Deus intervi-
ria, fazendo triunfar o representante do bom direito. 19 9 No ano de 1283. (N. do A.)

Capítulo XXIV

Regras estabelecidas no duelo judiciário

Quando200 havia muitos acusadores, era Antes do combate, a justiça202 fazia publi­
preciso que eles concordassem para que a car três proclamas. Por um, era ordenado aos
questão fosse demandada por um só; e, se não parentes das partes que se retirassem; por
se punham de acordo, aquele diante do qual se outro, avisavam o povo para guardar silêncio;
fazia a queixa nomeava um dentre eles, o qual pelo terceiro, era proibido dar socorro a uma
dava prosseguimento à querela. das partes, o que era castigado com graves
Quando201 um gentil-homem citava um penas, e mesmo com a morte, se graças a esse
vilão, ele devia apresentar-se a pé, com o escu­ socorro um dos combatentes houvesse sido
do e o bastão; e, se ele vinha a cavalo, com as vencido.
armas de um gentil-homem, despojavam-no do Os auxiliares da justiça guardavam a
cavalo e das armas; ele ficava de camisa e era liça203; e, no caso em que uma das partes hou­
obrigado a combater nesse estado contra o vesse falado de paz, eles prestavam bastante
vilão. atenção ao estado em que as duas estavam

200 Beaum., cap. VI, pàgs. 40 e 41. (N. do A.) 202 Ibid., pág. 33O.(N. do A.)
2 01 Ibid., cap. LXIV, pág. 328. (N. do A.) 203 Ibid. (N. do A.)
444 MONTESQUIEU

naquele momento, para que elas fossem re­ tivesse o maior interesse em defender a parte
postas2 0 4 na mesma situação, se não fosse que representava, ele tinha o punho cortado se
completada a paz. fosse vencido20 7.
Quando eram recebidos penhores por crime Quando se fez passar, no século passado, as
ou por falso julgamento, a paz não podia ser leis capitais contra os duelos, bastaria talvez
concluída sem o consentimento do senhor; e, despojar um guerreiro dessa sua qualidade
quando uma das partes havia sido vencida, pela perda da mão, não havendo comumente
não podia mais haver paz senão pela aprova­ nada mais triste para os homens do que sobre­
ção do conde20 5, o que tinha relação com as viver à perda de seu ofício.
nossas cartas de perdão. Quando, em um crime capital208, o comba­
Mas, se o crime era capitai e o senhor, cor­ te era feito por campeões, colocavam as partes
rompido com presentes, consentisse na paz, ele em um lugar de onde elas não podiam ver a
pagava uma multa de sessenta libras, e o batalha: cada uma delas era cingida com a
direito20 6 que ele tinha de mandar punir o corda que devia servir para o seu suplício, se
malfeitor era devolvido ao conde. seu campeão fosse batido.
Havia muita gente que não estava em condi­ Quem sucumbia no combate nem sempre
ções nem de oferecer o duelo nem de recebê-lo. perdia a coisa contestada. Se, por exemplo209,
Permitia-se, com conhecimento de causa, que se combatia sobre uma interlocutória, perdia-
escolhessem um campeão, e, para que este se apenas a interlocutória21 °.

20 4 Ibid., cap. LXIV, pág. 330. (N. do A.) 20 7 Esse uso, que se encontra nas capitulares, sub­
20 5 Os grandes vassalos tinham direitos particula­ sistiu até o tempo de Beaumanoir. Vede o cap. LXI,
res. (N. do A.) pág. 315. (N. do A.)
20 6 Beaum., cap. LXIV, pág. 330, diz: Ele perdia a 208 Beaum., cap. LXIV, pág. 330. (N. do A.)
sua justiça. Essas palavras, nos autores daquele 20 9 Beaum., cap. LXI, pág. 309. (N. do A.)
tempo, não têm uma significação geral, mas sim res­ 210 ... interlocutória, decisão judiciária que pres­
trita à questão de que tratam. Défontaines, cap. creve medidas a tomar antes de decidir sobre o
XXI, art. 29. (N. do A.) fundamento.

Capítulo XXV

Dos limites que se impunham


ao uso do duelo judiciário

Quando os penhores de batalha tinham sido que os costumes não fossem modificados pelos
recebidos sobre uma questão civil de pouca diversos resultados dos combates.
importância, o senhor obrigava as partes a Não se podia requerer o combate senão
retirá-los. para213 si mesmo ou para alguém de sua
Se um fato era notório211: por exemplo, se linhagem, ou para seu senhor lígio.
um homem tinha sido assassinado em pleno ■ Quando um acusado era absolvido21 4,
mercado, não era ordenada nem a prova por outro parente não podia requerer o combate;
testemunhas nem a prova pelo combate; o juiz pois de outro modo as questões jamais teriam
pronunciava-se sobre a publicidade do fato. fim.
Quando, na corte do senhor, houvessem Se aquele de quem os parentes queriam vin­
frequentemente julgado da mesma maneira e, gar a morte vinha a reaparecer, não havia mais
portanto, o uso estivesse conhecido212, o se­ motivo para combate: o mesmo acontecia21 5
nhor recusava o combate às partes, a fim de se, por uma ausência reconhecida por todos, o
combate se tornava impossível.
211 Beaum., cap. LXI, pág. 308. Ibid., cap. LXIII,
pág. 330. (N. do A.) 213 Beaum., cap. LXIII, pág. 322. (N. do A.)
2,2 Ibid., cap. LXI, pág. 314. Vede também 214 Ibid. (N. do A.)
Défontaines, cap. XXII, art. 24. (N. do A.) 21 5 Ibid., cap. LXIII, pág. 332. (N. do A.)
445
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI
Se um homem que tinha sido morto21 6 se decidiam por árbitros ou por cortes eclesiás­
havia, antes de morrer, desculpado aquele que ticas; não havia igualmente quando se tratava
era acusado, e denunciado outro, nunca se pro­ dos dotes das mulheres.
cedia ao combate; mas, se não havia acusado Mulher, diz Beaumanoir, não pode comba­
ninguém, considerava-se sua declaração ape­ ter. Se uma mulher citava alguém, sem nomear
nas como um perdão pela própria morte: a o seu campeão, não eram recebidos os seus
demanda tinha prosseguimento; e mesmo, penhores de batalha. Era preciso ainda que
entre gentis-homens, podia-se chegar à guerra. uma mulher fosse autorizada pelo seu
Quando havia uma guerra e um dos paren­ barão219, isto é, seu marido, para citar; mas
tes dava ou recebia os penhores de batalha, o sem essa autoridade ela podia ser citada.
direito da guerra cessava; pensava-se que as Se o apelante220 ou o apelado tinham
partes queriam seguir as vias normais da justi­ menos de quinze anos, não havia combate.
ça; e aquela que continuasse a guerra teria que Entretanto, ele podia ser ordenado para as
ser condenada a reparar os prejuízos. questões de pupilos, quando o tutor ou aquele
que tinha a jurisdição quisesse correr os riscos
Assim, a prática do duelo judiciário tinha a
desse processo.
seguinte vantagem: ela podia transformar uma
Parece-me que esses são os casos em que era
querela geral em uma querela particular,
permitido ao servo combater. Ele combatia
outorgar força aos tribunais e reconduzir ao
contra outro servo; ele combatia contra um
estado civil aqueles que não eram mais gover­
liberto, e mesmo contra um gentil-homem, se
nados senão pelo direito das gentes.
ele fosse citado; mas, se era ele quem cita­
Como há uma infinidade de coisas sábias va221, este lítimo podia recusar o combate; e
que são dirigidas de maneira muito insensata, o senhor do servo estava até mesmo no direito
há também loucuras que são conduzidas de de retirá-lo da corte. O servo podia, por con­
maneira muito sábia. cessão escrita do senhor222, ou pelo uso, com­
Quando um homem21 7 acusado de um bater contra todos os libertos: e a Igreja223
crime mostrava visivelmente que era o próprio exigia este mesmo direito para os seus servos,
acusador que o havia cometido, não havia como sinal de respeito a ela22 4.
mais penhores de batalha; porque nunca havia
culpado que não tivesse preferido um combate 219 Ibid. (N. do A.)
duvidoso a uma punição certa. 220 Ibid., pág. 323. Vede também o que eu disse no
Nunca havia21 8 combate nas questões que liv. XVIII, cap. XXVI. (N. do A.)
2 21 Beaum., cap. LXIII, pág. 327. (N. do A.)
222 Défont., cap. XXII, art. 7. (N. do A.)
21 6 Ibid., pág. 323. (N. do A.) 223 Habeant bellandi et testjficandi licentiam.
21 7 Beaum., cap. LXIII, pág. 324. (N. do A.) Carta de Luís, o Gordo, do ano de 1118. (N. do A.)
218 Ibid., cap. LXIH, pag. 325. (N. do A.) 22 4 Ibid. (N. do A.)

Capítulo XXVI

Do duelo judiciário entre uma


das partes e uma das testemunhas

Beaumanoir22 5 diz que um homem, ao ver e caluniaaora; e, se a testemunha quisesse sus­


que uma testemunha ia depor contra ele, podia tentar a querela, ele dava os penhores de bata­
impugnar a segunda, dizendo22 6 aos juizes lha. Não havia mais questão para inquérito:
que a sua parte fornecia uma testemunha falsa porque, se a testemunha fosse vencida, ficava
decidido que a parte havia fornecido uma falsa
22 5 Beaum., cap. LXI, pág. 315. (N. do A.) testemunha, e ela perdia o seu processo.
22 6 “Leur doit-on demander, avant qu ’ils fassent Não era necessário deixar que a segunda
nul serment, pour qui ils veulent tesmoigner; car
lenques gist li point d’aus lever de faus tesmoigna- testemunha contradissesse; porque ela teria
ge. ” Beaum., cap. XXXIX, pág. 218. (N. do A.) pronunciado seu testemunho e a questão teria
446 MONTESQUIEU

sido encerrada com o depoimento das duas Creio que isso era uma modificação do anti­
testemunhas. Mas, impedindo a segunda, o go costume; e o que me faz pensar assim é que
depoimento da primeira tomava-se inútil. esse uso de citar testemunhas encontra-se esta­
Tendo sido rejeitada a segunda testemunha, belecido na lei dos bávaros230 e na dos
a parte não podia fazer ouvir outras, e ela per­ borguinhões231, sem nenhuma restrição.
dia seu processo; mas, no caso em que não
Já falei da constituição de Gondebaldo, con­
houvesse penhores de batalha22 7, podiam ser
tra a qual Agobardo232 e Santo Avito233
apresentadas outras testemunhas. tanto protestaram.
Beaumanoir diz2 2 8 que a testemunha podia
dizer à sua parte antes de depor: “Eu não abro “Quando o acusado”, diz este príncipe,
a boca para combater por vossa querela, nem “apresenta testemunhas para jurar que ele não
para pleitear pela minha; e se vós quiserdes cometeu o crime, o acusador poderá convocar
defender-me, direi minha verdade de bom para combate uma das testemunhas, porque é
grado”. A parte achava-se obrigada a comba­ justo que este que se ofereceu para jurar, e que
ter pela testemunha e, se ela era vencida, não declarou que sabia a verdade, não ponha difi­
perdia sua liberdade229, mas a testemunha era culdade em combater para sustentá-la.” Esse
rejeitada. rei não deixava às testemunhas nenhum subter­
fúgio para evitar o combate.
22 7 Beaum., cap. LXI, pág. 316. (N. do A.)
228 Beaum., cap. VI, pág. 40. (N. do A.) 230 Tít. XVI, § 2. (N. do A.)
229 Mas, se o combate tinha sido feito por cam­ 231 Tít. XLV. (N. do A.)
peões, o campeão vencido tinha o punho cortado. 232 Carta a Luís, o Bonacheirão. (N. do A).
(N. do A.) 233 Vida de Santo A vito. (N. do A.)

Capítulo XXVII

Do duelo judiciário entre uma parte e um dos


pares do senhor. Apelação contra falso julgamento

Sendo da natureza da decisão pelo duelo ter­ querela por escrito, que só foi conhecido mais
minar a questão para sempre, e não sendo tarde.
compatível23 4 com um novo julgamento e Assim, diz São Luís, em seus Estabeleci­
novas demandas, a apelação, tal como é esta­ mentos23 6, que a apelação contém felonia e
belecida pelas leis romanas e pelas leis canôni­ iniquidade. Assim Beaumanoir nos diz que, se
cas, isto é, para um tribunal superior, a fim de um homem23 7 queria se queixar de algum
fazer reformar o julgamento de uma outra, era atentado cometido contra ele por seu senhor,
desconhecida na França. devia declarar a este que abandonava seu
Uma nação guerreira, governada unica­ feudo; depois do que, ele o citava diante de seu
mente pelo ponto de honra, não conhecia essa senhor suserano e oferecia os penhores de
forma de proceder; e, sempre segundo o batalha. Igualmente, o senhor renunciava à
mesmo espírito, ela tomava, contra os juizes, homenagem, se ele citava seu vassalo diante do
as vias23 5 que teria podido empregar contra as conde.
partes. Apelar contra o senhor, por falso julga­
A apelação, nessa nação, era um desafio mento, era o mesmo que dizer que seu julga­
para um combate com armas, que devia termi­ mento tinha sido falsa e maldosamente condu­
nar pelo sangue; e não esse convite para uma zido; ora. enunciar tais palavras contra seu
senhor era cometer uma espécie de crime de
23 4 “Car en la cour ou l ’on va par la raison de felonia.
l 'appel pour les gages maintenir, se bataille est falte,
la querelle est venue à fin, si que il n’y a metier de
plus d’apiaux. "Beaum., cap. II, pág. 32. (N. do A.) 23 6 Liv. II, cap. XV. (N. do A.)
23 8 Ibid., cap. LXI, pág. 312, e cap. LXVII, pág. 23 7 Beaum., cap. LXI, págs. 310 e 311; e cap.
338. (N. do A.) LXVII, pág. 337. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 447

Assim, em vez de citar por falso julgamento Se aquele2 4 5 que apelava não provava que o
o senhor que estabelecia e regulava o tribunal, julgamento tinha sido mau, pagava ao senhor
citavam-se os pares que formavam o tribunal; uma multa de sessenta libras, a mesma
evitava-se desse modo o crime de felonia; não multa2 4 6 ao par contra quem apelara, e outro
se insultavam senão os pares, aos quais sempre tanto a cada um dos que tinham abertamente
se podia dar reparação do insulto. concordado com o julgamento.
Expunha-se muito quem238 falseava o jul­ Quando um homem, violentamente suspeito
gamento dos pares. Se se esperava que o julga­ de um crime que merecia a morte, havia sido
mento fosse feito e pronunciado, ficava-se preso e condenado, não podia apelar2 4 7 con­
obrigado a combater239 com todos, quando tra um falso julgamento; pois teria sempre ape­
eles se ofereciam para tornar válido o julga­ lado ou para prolongar sua vida ou para obter
mento. Se se apelava antes que todos os juizes a absolvição.
tivessem dado a sua opinião, era necessário Se alguém2 4 8 dizia que o julgamento era
combater contra todos os que tinham chegado falso e mau, e não se oferecia para prová-lo,
ao mesmo parecer2 40. Para evitar esse perigo, isto é, para combater, era condenado a dez soi­
suplicava-se ao senhor241 que ordenasse .que dos de multa se fosse gentil-homem e a cinco
soidos se fosse servo, pelas palavras torpes que
cada par proclamasse bem alto seu parecer; e,
havia dito.
quando o primeiro já se tinha pronunciado e o
segundo ia fazer o mesmo, dizia-se-lhe que ele Os juizes2 49 ou pares que tinham sido ven­
cidos não deviam perder nem a vida nem os
era falso, mau e caluniador; e então não era
membros; mas quem os citava era punido com
mais senão contra este que se deveria comba­
a morte, quando a questão era capital2 50.
ter.
Essa maneira de citar os homens de feudo
Défontaines queria que, antes de declarar a
por falso julgamento visava evitar que fosse ci­
falsidade2 42, se deixasse que três juizes se tado o próprio senhor. Mas2 51, se o senhor
pronunciassem; e ele não diz que era neces­
não tinha nenhum pat ou não tinha o bastante,
sário combater contra os três, e ainda menos ele podia, às próprias custas, tomar empres­
que havia casos em que era preciso combater tados2 52 pares de seu senhor suserano; mas
contra todos os que se tinham declarado de esses pares não eram obrigados a julgar, se
mesma opinião2 43. Essas divergências decor­ não o quisessem; podiam declarar que só ti­
rem de que, naqueles tempos, não havia muitos nham vindo para dar o seu conselho; e, nesse
usos que fossem precisamente os mesmos. caso2 53 particular, era ao senhor que, jul­
Beaumanoir prestava conta do que se passava gando e pronunciando, ele próprio, o julga­
no condado de Clermont; Défontaines, do que mento, cabia sustentar a apelação, se se apela­
se usava em Vermandois. va contra falso julgamento.
Quando2 4 4 um dos pares ou homem de Se o senhor2 5 4 fosse tão pobre que não esti­
feudo houvesse declarado que sustentaria o vesse em situação de tomar emprestados pares
julgamento, o juiz mandava dar os penhores de
batalha, e além do mais tomava garantias para 2 4 5 Beaum., ibid.; Défont., cap. XXII, art. 9. (N.
que o apelante sustentasse seu apelo. Mas o do A.)
2 4 6 Défont., ibid. (N. do A.l
par que era apelado não dava nenhuma garan­ 2 4 7 Beaum., cap. LXI, pág. 316; e Défont., cap.
tia, porque ele era súdito do suserano, e devia XXII, art. 21.(N.do A.)
defender o apelo ou pagar ao senhor uma 2 4 8 Ibid., cap; LXI, pág. 314. (N. do A.)
multa de sessenta libras. 2 49 Défont., cap. XXII, art. 7. (N. do A.)
2 50 Vede Défont., cap. XXI, art. 11, 12 e seguin­
tes, que distingue os casos em que o acusador de fal­
238 Ibid., cap. LXI, pág. 313. (N. do A.) sidade perdia a vida, se a coisa fosse negada, ou
2 3 9 Ibid., pág. 314. (N. do A.) fosse apenas a interlocutória. (N. do A.)
2 40 Que estivessem de acordo com o julgamento. 251 Beaum., cap. LXII, pág. 322. Défont., cap.
(N. do A.) XXII, art. 3. (N. do A.)
2 41 Beaum., cap. LXI, pág. 314. (N. do A.) 2 52 O conde não era obrigado a emprestá-los.
2 42 Apelar contra falso julgamento. (N. do A.) Beaum., cap. LXVII, pág. 337. (N. do A.)
2 43 Ibid., cap. XXII, arts. 1, 10 e 11. Ele só diz que 2 53 Ninguém pode fazer julgamento em sua corte,
se pagava a cada um uma multa. (N. do A.) diz Beaum., cap. LXVII, págs. 336 e 337. (N. do A.)
2 4 4 Beaum., cap. LXI, pág. 314. (N. do A.) 2 5 4 Ibid., cap. LXII, pág. 322. (N. do A.)
448 MONTESQUIEU
de seu senhor suserano, ou negligenciasse em Um senhor2 59 que litigava em seu tribunal
fazer tal pedido, ou o suserano se recusasse a contra seu vassalo, e fosse condenado, podia
concedê-los, o senhor não podia então julgar citar um de seus homens, por falso julgamento.
só e ninguém era obrigado a litigar diante de Mas, por força do respeito que este devia a seu
um tribunal no qual o julgamento não podia senhor pela fé dada, e pela benevolência que o
ser feito, e a questão era levada à corte do se­ senhor devia a seu vassalo, pela fé recebida,
nhor suserano. fazia-se uma distinção: ou o senhor dizia, em
Creio que essa foi uma das grandes causas geral, que o julgamento2 60 era falso e mau; ou
da separação entre a justiça e o feudo, donde ele imputava a seu vassalo prevaricações2 61
se formou a regra dos jurisconsultos franceses: pessoais. No primeiro caso, ele ofendia seu
Uma coisa é o feudo, outra é a justiça. Porque, próprio tribunal, e, de algum modo, a si
havendo aí uma infinidade de homens de feudo mesmo, e nesse caso não podia ter penhores de
que não tinham pessoas sujeitas a eles, nunca batalha; mas, no segundo caso, os possuía,
se achavam em estado de manter o seu tribu­ porque atacava a honra de seu vassalo; e aque­
nal; todas as questões eram levadas ao tribunal le dos dois que fosse vencido perdia a vida e os
de seu senhor suserano; perdiam o direito à bens, para manter a paz pública.
justiça, porque não tinham nem o poder nem a Esta distinção, necessária neste caso parti­
vontade de reclamá-lo. cular, foi estendida. Beaumanoir diz que,
Todos os juizes2*5 5 que haviam participado quando aquele que apelava contra falso julga­
do julgamento deviam estar presentes quando mento atacava um dos súditos com imputa-
este era realizado, a fim de que pudessem ções pessoais, havia batalha; mas que, se só
acompanhá-lo e dizer sim àquele que, que­ atacasse o julgamento2 62, aquele dentre os
rendo acusar de falsidade, lhes perguntava, se pares que era citado era livre de fazer julgar a
prosseguiríam; porque, diz Défontaines2 5 6, “é questão por batalha ou por direito. Mas, como
uma questão de cortesia e de lealdade, e não há o espírito que reinava no tempo de Beauma­
aí possibilidade de fuga ou de dilação”. Creio noir era o de restringir o uso do duelo judiciá­
que é dessa maneira de pensar que adveio o rio, e como essa liberdade concedida ao par
uso, seguido ainda hoje na Inglaterra, pelo citado, de defender o julgamento, por combate
qual todos os jurados devem estár de acordo ou não, era igualmente contrária às idéias da
para condenar à morte. honra estabelecidas naqueles tempos, e ao
Cumpria então declarar-se de acordo com a compromisso que se tinha para com o senhor,
maioria; e, se havia empate, pronunciava-se, de denfender seu tribunal, creio que essa distin­
em caso de crime, pelo acusado; em caso de dí­ ção de Beaumanoir era uma jurisprudência
vidas, pelo devedor; em caso de herança, pelo nova entre os franceses.
demandado. Não digo que todas as apelações contra
Um dos pares, diz Défontaines2 5 7, não falso julgamento fossem decididas por batalha;
podia dizer que não julgaria se eles não fossem isto vale tanto para esta apelação como para
senão quatro2 58; ou se eles não estivessem todas as outras. Lembremo-nos das exceções
todos presentes, ou se os mais sábios não de que já falei no capítulo XXV. Aqui, era ao
comparecessem; é como se ele tivesse dito, no tribunal .suserano que competia ver se era pre­
meio da confusão, que não socorrería seu se­ ciso tirar, ou não, os penhores de batalha.
nhor porque ele não tinha perto de si senão Não se podia imputar falsidade aos julga­
uma parte de seus homens. Mas çra ao senhor mentos efetuados no tribunal do rei; porque,
que cabia fazer honra à sua corte e escolher os não tendo o rei quem lhe fosse igual, não havia
seus homens mais valentes e mais sábios. Cito ninguém que pudesse citá-lo; e, não tendo
isto para fazer sentir o dever dos vassalos, que
era o de combater e julgar; e esse dever era tal, 2 69 Vede Beaum., ibid. (N. do A.)
que julgar era o mesmo que combater. 2 60 Este julgamento é falso e mau. Ibid., cap.
LXVII, pág. 337. (N. do A.)
2 5 5 Défont., cap. XXI, arts. 27 e 28. (N. do A.) 261 Vós fizestes julgamento falso e mau, como
2 5 6 Ibid., art. 28. (N. do A.) mau vós sois, ou por dinheiro ou por conluio.
2 5 7 Cap. XXI, art. 37. (N. do A.) Beaum., cap. LXVII, pág. 337. (N. do A.)
2 58 Era preciso, pelo menos, este número. Défont., 2 62 Beaum., cap. LXVII, págs. 337 e 338. (N. do
cap. XXI, art. 36. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 449

superior, nào havia quem pudesse apelar con­ viou todo o seu conselho para julgar uma ques­
tra o seu tribunal. tão no tribunal do Abade de Corbie.
Esta lei fundamental, necessária como lei
Mas, se o senhor não pudesse ter juizes do
política, diminuía ainda, como lei civil, os abu­
sos da prática judiciária daqueles tempos. rei, ele podia incorporar seu tribunal ao do rei,
Quando um senhor temia2*63 que fosse atri­ se dependesse somente dele; e, se houvesse
buída falsidade ao seu tribunal, ou via que se senhores intermediários, ele se dirigia a seu se­
apresentavam para atribuir falsidade a ele, se nhor suserano, indo de senhor em senhor até o
era para o bem da justiça que isso não aconte­ rei.
cesse, ele podia requerer homens da corte do Assim, embora não se tivesse naqueles tem­
rei, cujo julgamento não se podia considerar pos nem a prática nem a idéia das apelações de
falso; e o Rei Filipe, diz Défontaines2 6 4, en-
hoje, tinham-se meios de recorrer ao rei, o qual
2 63 Défont., cap. XXII, art. 14. (N. do A.)
era sempre a fonte de onde partiam todos os
2 6 4 Ibid. (N.doA.) rios, e o mar a que eles voltavam.

Capítulo XXVIII

Da apelação de falta de direito

Chamava-se falta de direito ao fato de, no dente uma da outra2 68; toda a diferença2 69
tribunal de um senhor, diferir-se, evitar-se ou consistia em que o missus dava suas audiên­
recusar-se a fazer justiça às partes. cias em quatro meses do ano, e o conde nos
Na segunda raça, embora o conde tivesse outros oito.
muitos oficiais subordinados a ele, a pessoa Se alguém2 70, condenado em um julgamen­
desses estava subordinada, mas a jurisdição to2 71, solicitasse que o julgassem de novo, e
não o estava. Esses oficiais, em seus pleitos, fosse ainda condenado, pagava uma multa de
sessões ou audiências, julgavam, em última quinze soidos, ou recebia quinze bofetadas dos
instância, como se fossem o próprio conde. juizes que haviam decidido a questão.
Toda a diferença consistia na partilha da juris­ Quando os condes ou os enviados do rei não
dição; por exemplo, o conde2 6 5 podia conde­ se sentiam com bastante força para levar os
nar à morte, julgar sobre a liberdade e a resti­ poderosos à razão, faziam com que eles des­
tuição dos bens, e o centurião não o podia. sem caução2 72 de que se apresentariam peran­
Pela mesma razão havia causas maiores2 6 6 te o tribunal do rei: era para julgar a questão,
que estavam reservadas ao rei; eram aquelas e não para tornar a julgá-la. Encontro, na capi­
que interessavam diretamente à ordem políti­ tular de Metz2 73, a apelação por falso julga­
ca. Tais eram as discussões que existiam entre mento ao tribunal do rei estabelecida e todas
os bispos, os abades, os condes e outros pode­ as outras espécies de apelações proscritas e
rosos, que os reis julgavam junto com os gran­ punidas.
des vassalos2 6 7.
O que disseram alguns autores, que se ape­ 2 68 Vede a capitular de Carlos, o Calvo, acrescen­
lava do conde ao enviado do rei, ou missus tada à lei dos lombardos, liv. II, art. 3. (N. do A.)
dominicus, não tem fundamento. O conde e o 2 69 Capitular III, do ano de 812, art. 8. (N. do A.)
missus tinham uma jurisdição igual e indepen­ 2 70 Capitular acrescentada à lei dos lombardos,
liv. II, tít. LIX. (N. do A.)
2 71 Placitum. (N. do A.)
2 6 5 Capitular III, do ano de 812, art. 3; edição de 2 72 Isto se depreende das fórmulas, das cartas e
Baluze, pág. 497, e a de Carlos, o Calvo, acrescen­ das capitulares. (N. do A.)
tada à lei dos lombardos, liv. 11, art. 3. (N. do A.) 2 73 Do ano de 757, edição de Baluze, pág. 180,
2 6 6 Capitular III, do ano de 812, art. 2; edição de arts. 9 e 10; e o sínodo Apud Vernas, do ano de 755,
Baluze, pág. 497. (N. do A.) art. 29, edição de Baluze, pág. 175. Estas duas capi­
2 6 7 Cum fidelibus. Capitular de Luís, o Bonachei- tulares foram feitas sob o reinado de Pepino. (N. do
rão, edição de Baluze, pág. 667. (N. do A.) A.)
450 MONTESQUIEU

Se não se aquiescesse2 7 4 ao julgamento dos mentos ou de outros prazos: não havia julga­
escabinos2 7 5 e não se reclamasse, era-se preso mento e so se falseava sobre um julgamento.
até que se tivesse aquiescido; e, se se recla­ Enfim, o delito dos pares ofendia tanto o se­
masse, era-se conduzido sob uma guarda segu­ nhor quanto a parte: e era contra a ordem que
ra diante do rei, e a questão era discutida em houvesse um combate entre o senhor e seus
seu tribunal. pares.
Quase não se colocava a questão de apela­ Mas2 7 9 como diante do tribunal suserano se
ção por falta de direito porque, bem antes de, provava a culpa pelas testemunhas, estas po­
naqueles tempos, existir o costume de queixar- diam ser chamadas para o combate; e com isso
se de que os condes e outras pessoas que ti­ não se ofendia nem o senhor nem seu tribunal.
nham o direito de manter sessões de tribunal 1. ° No caso em que a falta provinha da
criminal não estivessem certos em manter sua parte dos homens ou pares do senhor que ha­
corte, queixava-se, ao contrário2 7 6, de que eles viam adiado a prestação da justiça, ou deixado
o eram muito; e há numerosas ordenações que de fazer o julgamento depois de passados os
proíbem aos condes e outros quaisquer oficiais prazos, era aos pares do senhor que se acusava
de justiça de realizarem mais do que três ses­ de falta de direito diante do suserano; e, se eles
sões por ano. Era menos necessário corrigir sucumbiam, pagavam uma multa ao seu
sua negligência do que sustar sua atividade. senhor274*280. Este não podia levar nenhum
Mas quando um incontável número de socorro aos seus homens; pelo contrário,
pequenos senhorios foi formado, e quando apreendia seu feudo até que cada um deles lhe
diferentes graus de vassalagem foram estabele­ tivesse pago uma multa de sessenta libras.
cidos, a negligência de certos vassalos em 2. ° Quando a falta provinha do senhor,
manter sua corte deu origem a essas espécies fato que ocorria quando não havia em sua
de apelação2 7 7 ; quanto mais que isso revertia corte número suficiente de homens para efe­
para o senhor suserano em multas considerá­ tuar o julgamento, ou quando não havia reuni­
veis. do seus homens, ou colocado alguém em seu
Difundindo-se cada vez mais o uso do duelo lugar para reuni-los, citava-se a falta diante do
judiciário, houve lugares, casos e momentos senhor suserano; mas, por causa do respeito
em que foi difícil reunir os pares, nos quais, devido ao senhor, fazia-se delongar a parte2 81
consequentemente, negligenciou-se a prestação e não o senhor.
da justiça. A apelação por falta de direito apa­ O senhor citava sua corte diante do tribunal
receu; e essas espécies de apelações foram suserano; e, se ganhava a causa, devolviam-lhe
amiúde pontos notáveis de nossa história, por­ a questão, e pagavam-lhe uma multa de ses­
que a maioria das guerras daqueles tempos senta libras282; mas se a falta de direito era
tinha por motivo a violação do direito político, provada, sua pena283 era perder o julgamento
como nossas guerras de hoje têm comumente da coisa contestada; o fundamento era julgado
por causa, ou por pretexto, a violação do direi­ no tribunal suserano; com efeito, não se tinha
to das gentes. reclamado a falta senão para isso.
Afirma Beaumanoir2 7 8 que, no caso de 3. ° Se se pleiteava28 4 na corte de seu se­
falta de direito, nunca havia batalha: eis aqui nhor contra ele, o que só ocorria para as ques­
as razões disso. Não se podia chamar ao com­ tões concernentes ao feudo, após ter cedido
bate o próprio senhor, por causa do respeito
devido à sua pessoa: não se podia chamar os
pares do senhor, porque a coisa era clara e 2 79 Beaum., cap. LXI, pág. 315. (N. do A.)
280 Défont., cap. XXI, art. 24. (N. do A.)
nada restava senão contar os dias dos adia­ 2 81 Ibid., cap. XXI, art. 32. (N. do A.)
282 Beaum., cap. LXI, pág. 312. (N. do A.)
274 Capitular XI de Carlos Magno, do ano de 805, 2 83 Défont., cap. XXI, art. 29. (N. do A.)
edição de Baluze, pág. 423; e lei de Lotário, na lei 28 4 No reinado de Luís VIII, o Senhor de Nesle
dos lombardos, liv. II, tít. III, art. 23. (N. do A.) pleiteava contra Joana, Condessa de Flandres; inti­
2 7 5 Oficiais sujeitos aò conde: scabini. (N. do A.) mou-a a mandar julgá-lo em quarenta dias, e citou-a
2 7 6 Vede a lei dos lombardos, liv. II, tít. III, art. em seguida no tribunal do rei, por falta de direito.
22. (N. do A.) Respondeu ela que o faria julgar por seus pares, em
2 7 7 Vêem-se apelações de falta de direito desde o Flandres. A corte do rei declarou que ele não seria
tempo de Filipe Augusto. (N. do A.) remetido, e que a condessa seria intimada. (N. do
2 78 Cap. LXI, pág. 315. (N. do A.) A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 451

todos os prazos, intimava-se o senhor285 sua corte. Descobriu-se que ele havia conce­
mesmo diante dos homens bons e fazia-se com dido um prazo ainda menor do que o costume
que ele fosse intimado pelo suserano, de quem do país permitia. Os ganteses lhe foram remeti­
se devia ter permissão. Nunca se intimava dos; ele mandou apreender seus bens até o
através dos pares, porque esses não podiam valor de sessenta mil libras. Eles retornaram à
citar seu senhor; mas podiam aprazar28 6 para corte do rei, para que essa multa fosse modera­
o seu senhor. da; foi decidido que o conde podia aplicar essa
Algumas vezes28 7 a apelação de falta de multa, e até mais, se desejasse. Beaumanoir
direito era seguida de uma apelação de falso assistira a esses julgamentos.
julgamento, quando o senhor, apesar da falta, ° Nas questões que o senhor podia ter
4.
havia feito apresentar o julgamento. contra o vassalo por causa da pessoa ou da
O vassalo288 que acusasse injustamente seu honra deste, ou de bens que não eram do
senhor por falta de direito era condenado a feudo, não havia caso de apelação por falta de
pagar-lhe uma multa deixada a seu critério. direito, posto que nunca se julgava na corte do
Haviam os ganteses289 citado por falta de senhor, mas na de quem o defendia; os súditos,
direito o Conde de Flandres pelo fato de ele ter diz Défontaines290, não tinham o direito de
demorado em lhes conceder julgamento em julgar sobre a pessoa de seu senhor.
Esforcei-me para dar uma idéia clara dessas
coisas, as quais, nos autores daqueles tempos,
2 8 5 Défont., cap. XXI, art. 34. (N. do A.) são tão confusas e obscuras, que na verdade
2 8 6 Ibid., art. 9. (N. do A.)
28 7 Beaum., cap. LXI, pág. 311. (N. do A.) extraí-las do caos em que estão é o mesmo que
2 88 Beaumanoir, pág. 311. Mas quem não tinha descobri-las.
sido súdito nem cavaleiro do senhor pagava apenas
uma multa de sessenta libras. Ibid. (N. do A.)
2 89 Ibid., pág. 318. (N. do A.) 290 Cap. XXI, art. 35. (N. do A.)

Capítulo XXIX

Época do reinado de São Luís

São Luís aboliu o duelo judiciário nos tribu­ sar de falsidade os julgamentos emitidos nos
nais de seus domínios, como parece pela orde­ senhorios de seus domínios, porque se trataria
nação que fez a esse respeito291, e pelos de crime de felonia. Efetivamente, se era uma
Estabelecimentos2 9 2. modalidade de crime de felonia contra o
Mas não o suprimiu nas cortes de seus senhor, com mais forte razão ele o era contra o
barões293, exceto no caso de apelação de falso rei. Mas quis que dele pudesse ser solicitada a
julgamento. correção2 9 7 dos julgamentos concedidos em
Não se podia acusar de falsidade29 4 a corte suas cortes; não porque eles fossem falsa ou
de seu senhor, sem requerer o duelo judiciário maldosamente prolatados, mas sim porque
contra os juizes que haviam pronunciado o causavam algum dano298. Quis, pelo contrá­
julgamento. Mas São Luís introduziu29 5 o uso rio, que se fosse obrigado a acusar de falsida­
de acusar de falsidade sem combater: modifi­ de2 99 os julgamentos das cortes dos barões, se
cação que foi uma espécie de revolução. se quisesse fazer queixa contra eles.
Declarou29 6 ele que nunca se poderia acu­ Não se podia, segundo os Estabelecimentos,
acusar de falsidade os tribunais do domínio do
291 Em 1260. (N. do A.) rei, como acabamos de dizer. Cumpria solici­
292 Liv. I, caps. II e VII; liv. II, caps. X e XI. (N. tar emenda diante do mesmo tribunal; e, no
do A.) caso em que o bailio não quisesse fazer a
293 Como aparece em vários pontos dos Estabele­
cimentos; e Beaum., cap. LXI, pág. 309. (N. do A.)
29 4 Isto é, apelar por falso julgamento. (N. do A.) 2 9 7 Ibid., liv. I, cap. LXXVIII; e liv. II, cap. XV.
29 5 Estabelecimentos, liv. I, cap. VI; e liv. II, cap. (N. do A.)
XV. (N. do A.) 2 9 8 Ibid., liv. I, cap. LXXVIII. (N. do A.)
2 9 6 Ibid., liv. II, cap. XV. (N. do A.) ”9 9 Ibid., liv. II, cap. XV. (N. do A.)
452 MONTESQUIEU

emenda requerida, o rei permitia o apelo ao Isso não foi universalmente aceito nos tribu­
tribunal300, ou antes, que eles, interpretando nais dos senhores. Escreve Beaumanoir30 6
eles próprios os Estabelecimentos, apresen- que, em seu tempo, havia duas maneiras de jul­
tassem-lhe301 um requerimenro ou uma peti­ gar: uma segundo o Estabelecimento-do-rei, e
ção. outra segundo a prática antiga; que os senho­
Com relação às cortes dos senhores, São res tinham o direito de seguir uma ou outra
Luís, ao permitir que se lhes acusasse de falsi­ dessas práticas; mas que numa questão, quan­
dade, desejou que a questão fosse levada302 ao do se tinha escolhido uma, não se podia mais
tribunal do rei, ou do senhor suserano, não303 voltar, à outra. Acrescenta ele3 0 7 que o Conde
para aí ser decidida pelo combate, mas por de Clermont seguia a nova prática, enquanto
testemunhas, seguindo uma forma de proceder seus vassalos se atinham à antiga; mas que ele
da qual ele deu as regras30 4. poderia, quando desejasse, restabelecer a anti­
Assim, quer se pudesse acusar de incompe­ ga, sem o que teria menos autoridade que seus
tência, como nos tribunais dos senhores, quer vassalos.
não se pudesse, como nos tribunais de seus Faz-se mister saber que a França estava,
domínios, estabeleceu ele que se poderia apelar então308, dividida em região do domínio do
sem correr o risco de um combate. rei e naquilo que se chamava região dos
Relata-nos Défontaines30 5 os dois primei­ barões, ou em baronias; e, para servir-me dos
ros exemplos que presenciou, em que se havia termos dos Estabelecimentos de São Luís, em
procedido sem duelo judiciário; um, numa região de obediência-ao-rei e em região fora da
questão julgada pelo tribunal de Saint- obediência-ao-rei. Quando os senhores faziam
Quentin, que pertencia ao domínio do rei; e ordenações para as regiões de seus domínios,
outro, no tribunal de Ponthieu, onde o conde, só utilizavam sua própria autoridade; mas,
que estava presente, objetou com a antiga quando as faziam considerando também a
jurisprudência; mas estas duas questões foram região de seus barões, eram feitas309 de acor­
julgadas pelo direito. do com eles, firmadas ou subscritas por eles;
Perguntar-se-á, talvez, por que São Luís sem isso, os barões as recebiam ou não as rece­
ordenou para os tribunais de seus barões uma biam, conforme lhes parecesse convir ou não
maneira de proceder diferente da que ele esta­ ao bem de seus senhorios. Os subvassalos
belecia nos tribunais de seus domínios. Eis a mantinham os mesmos termos com os grandes
razão: São Luís, estatuindo para os tribunais vassalos. Ora, os Estabelecimentos não foram
de seus domínios, nunca foi constrangido em dados com o consentimento dos senhores, em­
seus pareceres; mas teve que ser deferente com bora estatuíssem sobre coisas que lhes eram de
os senhores que gozavam dessa antiga prerro­ grande importância: mas só foram acolhidos
gativa pela qual as questões nunca eram retira­ pelos que acreditaram que lhes era vantajoso
das de seus tribunais, a menos que não se esti­ acolhê-los. Roberto, filho de São Luís, admi-
vesse exposto ao perigo de ser acusado de tiu-os em seu condado de Clermont; e seus
falsidade. São Luís manteve esse costume de vassalos não acreditaram que lhe conviesse
acusar de falsidade, mas quis se fizesse isso fazê-los aplicar entre eles.
sem combater: isto é, para que a modificação
fosse menos sentida, suprimiu o fato, e deixou
subsistir os termos. 30 6 Cap. LXI, pág. 309. (N. do A.)
30 7 Ibid. (N.doA.)
308 Vede Beaumanoir, Défontaines e os Estabele­
300 Ibid., liv. I, cap. LXXVIII. (N. do A.) cimentos, liv. II, caps. X, XI, XV e outros. (N. do
3 01 Ibid., liv. II, cap. XV. (N. do A.) A.)
302 Mas, se não se acusava de falsidade, e se se 309 Vede as Ordenações do começo da terceira
quisesse apelar, não se era recebido. Estabeleci­ raça, na coletânea de Laurière, principalmente a de
mentos, liv. II, cap. XV. Li sire en auroit le recort de Filipe Augusto sobre a jurisdição eclesiástica, e a de
sa cour, droitfaisant. (N. do A.) Luís VIII sobre os judeus; e as cartas referidas por
303 Ibid., liv. I, caps. VI e LXVII; e liv. II, cap. Brussel, sobretudo a de São Luís sobre o arrenda­
XV; e Beaum., cap. XI, pág. 58. (N. do A.) mento e o resgate de terras, e a maioridade feudal
304 Ibid., liv. I, caps. I, II, III. (N. do A.) das moças, tomo II, liv. III, pág. 35; e ibid., a orde­
30 5 Cap. XXII, arts. 16 e 17. (N. do A.) nação de Filipe Augusto, pág. 7. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 453

Capítulo XXX

Observações sobre as apelações

Compreende-se que as apelações, provoca­ laçào e considera-se o julgamento válido.” Isso


ções para um combate, deviam ser feitas subsistiu mesmo depois que se restringiu o
imediatamente. “Se se parte do tribunal sem costume311 do duelo judiciário.
apelar”, diz Beaumanoir310, “perde-se a ape-
311 Vede os Estabelecimentos de São Luís, liv. II,
310 Cap. LXIII, pág. 327; ibid., cap. LXI, pág. cap. XV; a Ordenação de Carlos VIII, de 1453. (N.
312. (N. do A.) do A.)

Capítulo XXXI

Continuação do mesmo assunto

Não podia o vilão acusar de falsidade o tri­ a ser abolida, e o uso das novas apelações a
bunal de seu senhor: informa-nos Défontai­ introduzir-se, julgou-se insensato que as pes­
nes3 12; isto é confirmado pelos Estabeleci­ soas libertas tivessem um recurso contra a
mentos3 13. “Também”, diz ainda injustiça do tribunal de seu senhores, e que os
Défontaines31 4, “não há entre ti, senhor, e teu vilãos não o tivessem; e o parlamento acolheu
vilão, outro juiz além de Deus.” suas apelações como as das pessoas libertas.
Fora o uso do duelo judiciário que impedira
os vilãos de poderem acusar de falsidade o tri­
312 Cap. XXI, arts. 21 e 22. (N. do A.)
buna) de seu senhor; e isso é tão verdadeiro, 313 Liv. I, cap. CXXXVI. (N. do A.)
que os vilãos que, por charta de permissão ou 31 4 Cap. II, art. 8. (N. do A.)
pelo uso31 5 tinham o direito de combater, pos­ 31 6 Défontaines, cap. XXII, art. 7. Este artigo e o
suíam igualmente o direito de acusar de falsi­ 21.° do cap. XXII do mesmo autor foram até aqui
pessimamente explicados. Défontaines não põe em
dade o tribunal do senhor, mesmo quando os oposição o julgamento do senhor e o do cavaleiro,
súditos que haviam julgado fossem cavalei­ pois era o mesmo; mas opõe o vilão comum ao que
ros31 6; e Défontaines31/ apresenta os expe­ tinha o privilégio de combater*. (N. do A.)
dientes para que esse escândalo do vilão que, * Por charta ou por uso, por direito escrito ou por
direito consuetudinário.
acusando de falsidade o julgamento, combatia 316 Os cavaleiros podem sempre ser do número
contra um cavaleiro não ocorresse. dos juizes. Défont., cap. XXI, art. 48. (N. do A.)
Começando a prática dos duelos judiciários 31 7 Cap. XXII, art. 14. (N. do A.)

Capítulo XXXII

Continuação do mesmo assunto

Quando se acusava de falsidade o tribunal apelação de falta de direito, a parte aprazada


do senhor, este comparecia pessoalmente ante diante do senhor suserano levava seu senhor
o senhor suserano, para defender o julgamento com ela, para que, se a falta não fosse provada,
de seu tribunal. Igualmente318, no caso de ele pudesse reaver seu tribunal.
Posteriormente, tendo-se tornado geral para
31 8 Défont., cap. XXI, art. 33. (N. do A.) todas as questões o que não passava de dois
454 MONTESQUIEU

casos particulares, pela introdução de todas as o senhor perdia apenas o direito de mandar jul­
modalidades de apelação, pareceu extraordi­ gar a questão em seu tribunal. Mas, se o pró­
nário que o senhor fosse obrigado a passar sua prio senhor era visado como3 2 2 parte — o que
vida em outros tribunais que não os seus, e por se tornou muito frequente323 —, pagava ao
questões que nãp as suas. Ordenou Filipe de rei, ou ao senhor suserano, devendo quem o
Valois319 que só os bailios seriam aprazados. havia provocado pagar uma multa de sessenta
E, quando o uso das apelações se tornou ainda libras. Daí originou-se o costume, quando as
mais frequente, coube às partes defender a ape­ apelações foram universalmente admitidas, de
lação; a causa do juiz tornou-se a causa da pagar a multa ao senhor quando se reformava
parte320. a sentença de seu juiz, uso que subsistiu por
Disse que321 na apelação de falta de direito muito tempo, foi confirmado pela ordenação
de Roussillon e prescreveu em virtude de seu
319 Em 1332. (N. do A.) absurdo.
320 Vede qual era o estado de coisas no tempo de
Boutillier, que vivia no ano de 1402. Somme Rura-
le, liv. I, págs. 19 e 20. (N. do A.) 322 Beaum., cap. LXI, págs. 312 e 318. (N. do A.)
3 21 Vede acima, cap. XXX. (N. do A.) 323 Ibid. (N. do A.)

Capítulo XXXIII

Continuação do mesmo assunto

Na prática do duelo judiciário, o apelante a corte considera nula a apelação; a corte con­
que acusara um dos juizes podia perder32 4, sidera nulos a apelação e o que foi apelado.
pelo combate, seu processo, e não podia Efetivamente, quando quem apelara de falso
ganhá-lo. Com efeito, a parte que tivesse um julgamento era vencido, a apelação ficava anu­
julgamento a seu favor não devia ser despo­ lada; quando vencia, o julgamento era anulado
jada dele pela causa de outrem. Fazia-se mis­ e também a apelação: era preciso realizar novo
ter, então, que o apelante que tivesse vencido julgamento.
combatesse ainda contra a parte, não para Tanto isto é verdade que, quando a questão
saber se o julgamento era bom ou mau; não se era julgada por inquéritos, esta maneira de
tratava mais desse julgamento, pois que o pronunciar não ocorria. O Sr. de la Roche-
combate o tinha anulado, mas de decidir se a Flavin32 5 nos diz que a câmara dos inquéritos
queixa era legítima ou não; e é sobre este novo não podia usar esta forma nos primeiros tem­
ponto que se combatia. Daí deve ter-se origi­ pos de sua criação.
nado nossa maneira de pronunciar os arestos:
32 5 Des Parlements de France, liv. I, cap. XVI. (N.
32 4 Défont., cap. XXI, art. 14. (N. do A.) do A.)

Capítulo XXXIV

Como o processo se tornou secreto

Os duelos haviam introduzido uma forma Diz o comentador de Boutillier32 7 ter


pública de processo: a acusação e a defesa aprendido de antigos praxistas, e por alguns
eram igualmente conhecidas. “As testemu­ processos velhos escritos a mão, que antiga­
nhas”, narra32 6 Beaumanoir, “devem prestar mente, na França, os processos criminais eram
seu testemunho diante de todos.” feitos publicamente, e de forma pouco dife-

32 6 Cap. LXI, pág. 315. (N. do A.) 32 7 É Charondas, o Caronté.


DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 455

rente dos julgamentos públicos dos romanos. nhas, o confronto^ as conclusões da parte pú­
Isso se relacionava à ignorância da escrita, blica; e tal é o uso de hoje em dia. A primeira
comum naqueles tempos. O uso da escrita fixa forma de proceder convinha ao governo de
as idéias, e pode fazer estabelecer o segredo; então, como a nova era apropriada ao governo
mas, quando não se tem esse uso, só a publici­ que foi estabelecido depois.
dade do processo pode fixar essas mesmas O comentador de Boutillier fixa na ordena­
idéias. ção de 1539330 a época dessa transformação.
E, como podia haver incerteza sobre o que Creio que isso aconteceu pouco a pouco, e que
havia sido julgado328 por homens, ou plei­ ela passou de senhoria a senhoria, à medida
teado diante dos homens, podia-se relembrá-lo que os senhores renunciaram à antiga prática
todas as vezes que se reunia o tribunal, razão de julgar, e que a extraída dos Estabeleci­
pela qual se chamava processo por recorda­ mentos de São Luís veio a se aperfeiçoar. De
ção323, e, neste caso, não era permitido desa­
fato, Beaumanoir331 diz que não era senão
fiar as testemunhas para combate porque as
nos casos em que se podia dar penhores de
questões nunca mais teriam fim.
Posteriormente, introduziu-se uma forma batalha que se ouvia publicamente as testemu­
secreta de proceder. Tudo era público: tudo se nhas; nos outros, elas eram vistas em segredo,
tornou oculto; os interrogatórios, as informa­ e redigiam-se por escrito seus depoimentos. Os
ções, a leitura dos depoimentos às testemu- processos tornaram-se então secretos, quando
não houve mais penhores de batalha.
32 8 Como diz Beaum., cap. XXXIX, pág. 209. (N.
do A.) 330 É a ordenação de Villers-Cotterêts de Fran­
329 Provava-se por testemunhas o que já se havia cisco I.
passado, dito ou ordenado em justiça. (N. do A.) 331 Cap. XXXIX, pág. 218. (N. do A.)

Capítulo XXXV

Das custas

Antigamente, na França, não havia conde­ esse número infinito de escrituras que se viu
nação de custas em tribunal leigo332. A parte depois, não era necessário obrigar que as par­
que era derrotada era bastante punida pelas tes arcassem com as custas.
condenações de multa para com o senhor e É o uso das apelações que deve natural­
seus pares. A maneira de proceder pelo duelo mente introduzir o de obrigar as custas. Desse
judiciário fazia com que, nos crimes, a parte modo, Défontaines333 diz que, quando se ape­
que sucumbia, e que perdia a vida e os bens, lava por lei escrita, isto é, quando se seguiam
fosse punida tanto quanto podia sê-lo; e, nos as novas leis de São Luís, obrigava-se às
outros casos do duelo judiciário, havia multas custas; mas que, no uso comum, que não per­
algumas vezes fixas, algumas vezes depen­ mitia citar sem acusar de falsidade, não havia
dentes da vontade do senhor, que faziam os custas: só se obtinha uma multa, e a posse por
processos bastante temidos. O mesmo aconte­ um ano e um dia da coisa contestada, se a
cia nas questões que só se decidiam pelo com­ questão era remetida ao senhor.
bate. Como era o senhor que tinha os proveitos Mas, quando as novas facilidades de apelar
principais, era ele também que fazia as princi­ aumentaram o número das apelações33 4;
pais despesas, quer para reunir os pares, quer quando, pelo frequente uso dessas apelações de
para aprontá-los para proceder ao julgamento. um tribunal a outro, as partes foram sem ces­
De resto, as questões, acabando no próprio sar transportadas para fora do lugar de seu
lugar, e quase sempre imediatamente, e sem
333 Cap. XII, art. 8. (N. do A.)
332 Défont., em seu Conseil, cap. XXII, arts. 3 e 8; 33 4 Atualmente, que se está tão inclinado a apelar,
e Beaum., cap. XXXIII. Estabelecimentos, liv. I, diz Boutillier, Somme Rurale, liv. I, tít. III, Edição
cap. XC. (N. do A.) de Paris, 1621, pág. 16. (N. do A.)
456 MONTESQUIEU
domicílio; quando a nova arte do processo conceder justiça; quando a má fé encontrou
multiplicou e eternizou os processos; quando a conselhos onde não encontrou apoios; foi
ciência de evitar as questões mais justas foi-se extremamente necessário conter os pleiteantes,
refinando; quando um pleiteante soube fugir, pelo temor das custas. Eles tiveram que pagá-
unicamente para se fazer seguir; quando a soli­ las pela decisão e pelos meios que haviam
citação se tornou ruinosa, e a defesa tranquila; empregado para eludi-la. Carlos, o Formoso,
quando as razões se perderam nos volumes de fez a esse respeito uma ordenação geral33 5.
palavras e de escritos; quando tudo ficou
repleto de cúmplices da justiça que não deviam 33 5 Em 1324.

Capítulo XXXVI

Da parte pública

Como, pelas leis sálicas e ripuárias, e pelas dade de combater. Muratori colocou-a na
outras leis dos povos bárbaros, as penas para continuação da constituição de Henrique I33 7
os crimes eram pecuniárias, nunca havia para a qual foi feita. Diz-se, nessa constitui­
então, como atualmente entre nós, parte pú­ ção, que, “se alguém matar seu pai, seu irmão,
blica que fosse encarregada da demanda judi­ seu sobrinho, ou algum outro de seus parentes,
cial criminal. Com efeito, tudo se reduzia a perderá sua sucessão, que passará para os ou­
reparações de danos; toda demanda judicial tros parentes, e a sua própria pertencerá ao
era, de alguma maneira, civil, e cada particular fisco”. Ora, é para a demanda dessa sucessão
podia fazê-la. Por outro lado, o direito romano destinada ao fisco que o advogado da parte pú­
tinha formas populares para a demanda judi­ blica, que lhe sustentava os direitos, tinha a
cial criminal, as quais não podiam estar de liberdade de combater: este caso fazia parte da
acordo com a mediação de uma parte pública. regra geral.
O uso dos duelos judiciários não repugnava Vemos nessas fórmulas o advogado da parte
menos a esta idéia; pois quem querería ser a pública agir contra quem havia prendido um
parte pública e tornar-se campeão de todos ladrão338 e não o tinha levado ao conde; con­
contra todos? tra quem339 provocara uma sublevação ou
Encontro, em uma coletânea de fórmulas uma assembléia contra o conde; contra
que Muratori inseriu nas leis dos lombardos, quem3 40 havia salvado a vida de um homem
que havia, na segunda raça, um advogado da que o conde lhe dera para ser morto; contra o
parte pública33 6. Mas, se lemos a compilação advogado das igrejas341, a quem o conde
inteira dessas fórmulas, veremos que havia ordenara que lhe apresentasse um ladrão e que
uma diferença total entre esses oficiais e o que não havia obedecido; contra quem3 42 havia
chamamos hoje de parte pública, de procura- revelado o segredo do rei aos estranhos; contra
dores-gerais, de procuradores do rei ou dos quem3 43, a mão armada, perseguira o enviado
senhores. Os primeiros eram agentes do públi­ do imperador; contra quem3 4 4 menosprezara
co, antes para a manutenção política e domés­
tica do que para a manutenção civil. Com efei­ 33 7 Vede esta constituição e esta fórmula no-
to, nunca se vê nessas fórmulas que eles segundo volume das Histórias da Itália, pág. 175.
fossem encarregados da demanda judicial cri­ (N. do A.)
338 Coletânea de Muratori, pág. 104, sobre a lei 88
minal e das questões que concerniam aos de Carlos Magno, liv. I, tít. XXVI, § 78. (N. do A.)
menores, às igrejas, ou ao estado das pessoas. 339 Outra fórmula, ibid., pág. 87. (N. do A.)
Disse que o estabelecimento de uma parte 3 40 Ibid., pág. 104. (N. do A.)
pública repugnava ao uso do duelo judiciário. 341 Ibid., pág. 95*. (N. do A.)
* . . .contra o advogado das igrejas. . . que teria
Encontrei, entretanto, em uma dessas fórmulas recusado soltar o ladrão refugiado na igreja, em vir­
um advogado da parte pública que tem a liber­ tude do direito de asilo.
3 42 Ibid., pág. 88. (N. do A.)
3 43 Ibid., pág. 98. (N. do A.)
33 6 Advocatus de parte publica. 3 4 4 Ibid., pág. 132. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 457

as cartas do imperador, e era processado pelo cias; pela razão de que não houve mais lei
advogado do imperador, ou pelo próprio impe­ geral, nem fisco geral; e pela razão de que não
rador; contra quem3 4 5 não quisera receber a houve mais conde nas províncias para manter
moeda do príncipe; enfim, este advogado a audiência; e consequentemente não houve
requeria as coisas que a lei adjudicava ao mais essas espécies de oficiais, cuja principal
fisco3 4 6. função era manter a autoridade do conde.
Mas na perseguição dos crimes no processo O uso dos combates, tornado mais frequente
criminal não se via o advogado da parte públi­ na terceira raça, não permitiu o estabeleci­
ca; mesmo quando utilizavam os duelos3 4 7; mento de uma parte pública. Igualmente,
mesmo quando se tratava de incêndio3 48; Boutillier, em sua Suma Rural, falando dos
mesmo quando o juiz era morto3 4 9 em seu tri­ oficiais de justiça, só cita os bailios, os vassa­
bunal; mesmo quando se tratava do estado das los feudais e os sargentos. Vede os Estabele­
pessoas3 50, da liberdade e da escravidão3 51. cimentos3 52 e Beaumanoir3 53 sobre a manei­
Essas fórmulas são feitas não somente para ra como eram feitos os processos naqueles
a lei dos lombardos, mas também para as capi­ tempos.
tulares acrescentadas: destarte, não é preciso Encontro nas leis3 5 4 de Tiago I, rei de
duvidar que, sobre este assunto, não nos apre­ Maiorca, uma criação do emprego de procura­
sentem elas a prática da segunda raça. dor do rei3 5 5, com as funções que têm hoje os
É claro que esses advogados da parte pú­ nossos. E óbvio que eles só surgiram depois
blica tiveram que extinguir-se com a segunda que a forma judiciária mudou entre nós.
raça, tal como os enviados do rei nas provín-
3 52 Liv. I, cap. I; e liv. II, caps. XI e XIII. (N. do
345 Fórmula, pág. 132. (N. do A.) A.)
346 Ibid., pág. 137. (N. do A.) 3 53 Cap. le cap. LXI. (N. do A.)
347 Ibid., pág. 147. (N. do A.) 3 5 4 Vede estas leis nas Vidas dos Santos, do mês
3 48 Ibid. (N. do A.) de junho, tomo III, pág. 26. (N. do A.)
3 49 Ibid., pág. 168. (N. do A.) 3 5 5 Qui continue nostram sacram curiam sequi
3 50 Ibid., pág. 134. (N. do A.) teneatur, instituatur qui facta et causas in ipsa curia
3 51 Ibid., pág. 107. (N. do A.) promoveat atqueprosequatur. (N. do A.)

Capítulo XXXVII

De como os Estabelecimentos de
Sâo Luís caíram no esquecimento

Este foi o destino dos Estabelecimentos: reino. Fazer um costume geral de todos os cos­
nasceram, envelheceram e morreram em muito tumes particulares seria uma coisa imprudente,
pouco tempo. mesmo naqueles tempos em que os príncipes
Farei a seguir algumas reflexões. O código em toda parte só encontravam obediência3 5 6.
que temos sob o nome de Estabelecimentos de Pois, se é verdade que não é preciso modificar
São Luís nunca foi feito para servir de lei para quando os inconvenientes igualam as vanta­
todo o reino, embora isto seja dito no prefácio gens, ainda é menos necessário modificar
desse código. Tal compilação é um código quando as vantagens são pequenas e os incon­
geral que estatui sobre todas as questões civis, venientes imensos. Ora, se atentamos para o
as disposições de bens por testamento ou inter estado em que estava então o reino, em que
vivos, os dotes e os benefícios das mulheres, as cada um se inebriava com a idéia de sua sobe­
vantagens e as prerrogativas dos feudos, as rania e de seu poderio, bem vemos que
causas de polícia, etc. Ora, numa época em empreender a modificação das leis e dos usos
que cada cidade, burgo ou vila tinha seu costu­ recebidos, em toda parte, era uma coisa que
me, dar um corpo geral de leis civis era querer
derrubar num momento todas as leis particu­ 3 5 6 Isso se tornava, contudo, uma das reformas da
lares sob as quais se vivia em cada lugar do Revolução.
458 MONTESQUIEU
não podia ocorrer aos espíritos dos que sua senhoria à execução de uma nova ordem
governavam. judiciária3 59.
O que acabo de dizer prova ainda que esse Digo, em terceiro lugar, que há grandes
código dos Estabelecimentos não foi confir­ indícios de que o código que temos seja algo
mado no parlamento pelos barões e súditos da diferente dos Estabelecimentos de São Luís
lei do reino, como é dito no manuscrito do sobre a ordem judiciária. Esse código cita os
palácio de Amiens, citado por Ducange3 5 7. Estabelecimentos: é, então, uma obra sobre os
Vê-se, nos outros manuscritos, que esse código
Estabelecimentos, e não os Estabelecimentos.
foi dado por São Luís no ano de 1270, antes de
sua partida para Túnis. Esse fato não é verda­ Além do mais, Beaumanoir, que cita amiúde
deiro; porque São Luís partiu em 1269, como os Estabelecimentos3 60 de São Luís, só cita os
observou Ducange; donde ele conclui que esse Estabelecimentos particulares desse príncipe, e
código fora publicado em sua ausência. Mas não essa compilação dos Estabelecimentos.
digo que isso não pode ser. Como São Luís Défontaines3 61, que escrevia sobre esse prínci­
teria escolhido a época de sua ausência para pe, fala-nos das duas primeiras vezes que exe­
fazer uma coisa que teria sido uma semente de cutaram seus Estabelecimentos sobre a ordem
perturbações, e que teria podido produzir não judiciária como uma coisa passada. Os Esta­
modificações, mas revoluções? Tal empreendi­ belecimentos de São Luís eram portanto ante­
mento, mais que outro, teria de ser acompa­ riores à compilação a que me refiro, a qual, a
nhado de perto, e não era a obra de uma regên­ rigor, e adotando os prólogos errados coloca­
cia fraca, e até composta por senhores que dos por alguns ignorantes no início dessa obra,
tinham interesse que a coisa não fosse bem
só teria surgido no último ano da vida de São
sucedida. Eram eles: Mateus, Abade de São
Luís, ou mesmo depois da morte desse
Dionísio; Simão de Clermont, Conde de
príncipe.
Nesle; e, em caso de morte, Filipe, Bispo de
Évreux; e João, Conde de Ponthieu. Vimos
acima3 58 que o Conde de Ponthieu opôs-se em 3 59 É Défontaines quem relata este fato. (N. do A.)
3 60 A palavra “Estabelecimentos” é entendida, no
tempo de São Luís, no sentido de “Leis e
3 5 7 Prefácio sobre os Estabelecimentos. (N. do A.) ordenações”.
3 58 Vede mais acima o cap. XXIX. (N. do A.) 3 61 Vede acima o cap. XXIX. (N. do A.)

Capítulo XXXVIII

Continuação do mesmo assunto

O que é então essa compilação que temos Beaumanoir3 62, que escrevia bem pouco
sob o nome de Estabelecimentos de São Luís? tempo depois da morte desse príncipe, diz que
O que é esse código obscuro, confuso e ambí­ a maneira de julgar estabelecida por São Luís
guo, em que se confunde incessantemente a era praticada em grande número de tribunais
jurisprudência francesa com a lei romana; em dos senhores.
que se fala como um legislador, e onde se vê Assim, esse príncipe alcançou seu objetivo,
um jurisconsulto; em que se encontra um embora seus regulamentos para os tribunais
corpo inteiro de jurisprudência sobre todos os dos senhores não tivessem sido feitos para
casos, sobre todos os pontos do direito civil? É serem lei geral do reino, mas exemplo que cada
preciso transportar-se para aqueles tempos. um poderia seguir, e que cada um teria até
Vendo São Luís os abusos da jurisprudência interesse em seguir. Ele suprimiu o mal acen­
de seu tempo, procurou fazer com que os tuando o melhor. Quando viram em seus tribu­
povos desgostassem dela; fez vários regula­ nais, quando viram nos tribunais dos seus
mentos para os tribunais de seus domínios, e
para os de seus barões; e teve um tal êxito, que 3 62 Cap. LXI, pág. 309. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 459

senhores, uma maneira de proceder mais natu­ viam penetrado nas cortes de baronia, o com­
ral, mais razoável, mais conveniente à moral, à pilador teve alguma razão em dizer que sua
religião, à tranquilidade pública, à segurança obra3 6 4 concernia também às cortes de
da pessoa e dos bens, adotaram-na e abando­ baronia.
naram a outra. É claro que quem fez essa obra compilou os
Convidar, quando não cumpre coagir; con­ costumes da região com as leis e os Estabeleci­
duzir, quando não cumpre comandar, é a habi­ mentos de São Luís. Essa obra é muito precio­
lidade suprema. A razão tem um império natu­ sa, porque contém os antigos. costumes de
ral; ela tem mesmo um império tirânico: Anjou e os Estabelecimentos de São Luís, tais
resiste-se-lhe, mas essa resistência é seu triun­ como eram então praticados, e, enfim, o que aí
fo; mais um pouco de tempo e ser-se-á forçado se praticava da antiga jurisprudência francesa.
a voltar a ela. A diferença entre essa obra e as de Défon­
São Luís, para fazer com que não se apre­ taines e de Beaumanoir é que aí se fala em ter­
ciasse a jurisprudência francesa, mandou tra­ mos de mandamento, como fazem os legisla­
duzir os livros do direito romano, para que fos­ dores; e isso assim podia ser, porque era uma
sem conhecidos pelos homens de lei daqueles compilação de costumes escritos e de leis.
tempos. Défontaines, que é o primeiro3 63 Havia um vício nessa compilação; formava
autor de praxe que temos, fez um grande uso ela um código anfíbio, onde se misturava a
dessas leis romanas; sua obra é, de alguma jurisprudência francesa com a lei romana;
maneira, resultado da antiga jurisprudência aproximavam-se coisas que não tinham rela­
francesa, das leis ou Estabelecimentos de São ção, e que frequentemente eram contraditórias.
Luís, e da lei romana. Beaumanoir fez pouco Bem sei que os tribunais franceses, de vassa­
uso da lei romana; mas conciliou a antiga los ou de pares, os julgamentos sem apelação
jurisprudência francesa com os regulamentos para um outro tribunal, a maneira de pronun­
de São Luís. ciar por estas palavras: Condeno3 6 5 ou Absol­
É no espírito dessas duas obras, e sobretudo vo, estavam em conformidade com os julga­
na de Défontaines, que algum bailio, creio, fez mentos populares dos romanos. Mas se fez
a obra de jurisprudência que chamamos os pouco uso dessa antiga jurisprudência; utiliza­
Estabelecimentos. Diz-se, no título dessa obra, ra-se mais da que foi posteriormente introdu­
que ela é feita segundo o uso de Paris e de zida pelos imperadores, que se empregou em
Orléans, e das cortes de baron-ia; e, no prólogo, toda parte nessa compilação, para regulamen­
que ele é um tratado dos usos de todo o reino, tar, limitar, corrigir, ampliar a jurisprudência
de Anjou e da corte de baronia. É claro que francesa.
essa obra foi feita para Paris, Orléans e Anjou,
tal como as obras de Beaumanoir e de Défon­
taines foram feitas para os condados de Cler- 3 6 4 Não há nada de tão vago como o título e o pró­
logo desses Estabelecimentos, que foram, sem dúvi­
mont e de Vermandois: e, como se afigura, por da, acrescentados depois. Primeiro são os usos de
Beaumanoir, que muitas leis de São Luís ha­ Paris e de Orléans, e da corte de baronia; depois são
os usos de todas as cortes leigas do reino, e do pre-
3 63 Ele mesmo diz em seu prólogo: Nus n’enprit bostado da França; depois são os usos de todo o
onques devant moi cette chose dont jaie exemplaire. reino, de Anjou e da corte de baronia. (N. do A.)
(N. do A.) 3 6 5 Estabelecimentos, liv. II, cap. XV. (N. do A.)

Capítulo XXXIX

Continuação do mesmo assunto

As formas judiciárias introduzidas por São meiro objetivo era fazer com que a antiga
Luís caíram em desuso. Esse príncipe tivera jurisprudência caísse em desagrado, e o segun­
em vista menos a coisa em si, isto é, a melhor do, criar nova jurisprudência. Mas, tendo apa­
maneira de julgar, do que a melhor maneira de recido os inconvenientes daquela, viu-se logo
substituir a antiga prática de julgar. O pri­ suceder outra.
460 MONTESQUIEU

Destarte, as leis de São Luís deram mais gava as3*6 6 que ocorriam entre duques, condes,
meios para modificar a jurisprudência francesa barões, bispos, abades, ou entre o rei e seus
do que a modificaram: abriram novos tribu­ vassalos3 6 7, mais na relação que elas tinham
nais, ou antes, vias para aí chegar; e, quando com a ordem pública do que com a ordem
se pôde chegar facilmente àquele que tinha civil. Com o tempo foi-se obrigado a tornar o
autoridade geral, os julgamentos que, anterior­ parlamento sedentário, e a mantê-lo sempre
mente, não cumpriam senão os usos de uma reunido; enfim criaram-se muitos deles para
senhoria particular, criaram uma jurispru­ que bastassem a todas as questões.
dência universal. Obtiveram-se, pela força dos Logo que o parlamento se tornou um corpo
Estabelecimentos, decisões gerais, que falta­ fixo, começou-se a compilar seus arestos. Jean
vam inteiramente no reino; quando o edifício de Monluc, no reinado de Filipe, o Belo, fez a
foi construído, deixou-se cair o andaime. compilação chamada atualmente de registros
Desse modo, as leis estabelecidas por São Olim3 6S.
Luís tiveram efeitos que não se deveríam ter 3 6 6 Vede Dutillet, sobre a corte dos pares. Vede
esperado da obra-prima da legislação. Algu­ também La Roche-Flavin, liv. I, cap. III; Budée e
mas vezes são necessários muitos séculos para Paul-Émile. (N. do A.)
preparar as modificações; os acontecimentos 3 6 7 As outras questões eram decididas pelos tribu­
nais comuns. (N. do A.)
amadurecem e eis as revoluções. 3 6 8 Vede a excelente obra do Sr. Presidente Hé-
O parlamento julgou, em última instância, nault [Nouvel Abregé Chronologique de l’Histoire
quase todas as questões do reino. Antes só jul­ de France], do ano de 1313. (N. do A.)

Capítulo XL

De como foram adotadas as


formas judiciárias das decretais

Mas como, ao se abandonarem as formas os crimes cometidos pelos leigos nos casos em
judiciárias estabelecidas, adotaram-se de prefe­ que não ofendiam a religião. Porque3 72 se, em
rência as do direito canônico às do direito razão das convenções e dos contratos, era pre­
romano? É que se tinham sempre diante dos ciso recorrer à justiça leiga, as partes podiam
olhos os tribunais eclesiásticos, os quais obe­ voluntariamente instaurar processo diante dos
deciam às formas do direito canônico, e não se tribunais eclesiásticos, os quais, não tendo o
conhecia nenhum tribunal que seguisse as do direito de obrigar a justiça leiga a mandar exe­
direito romano. Além disso, os limites da juris­ cutar a sentença, obrigavam a obedecê-la por
dição eclesiástica e da secular eram, naqueles meio da excomunhão3 73. Nessas circunstân­
tempos, bem pouco conhecidos: havia pes­ cias, quando, nos tribunais leigos, se quis
soas3 69 que litigavam indiferentemente nos mudar de prática, adotou-se a dos eclesiás­
dois tribunais3 70; havia matérias pelas quais ticos, porque era conhecida; e não a do direito
se litigava da mesma maneira. Parece3 71 que a romano, porque não era conhecida, pois, em
jurisdição leiga só conservou para si, privati­ matéria de prática, não se sabe senão aquiio
vamente, o julgamento das matérias feudais e que se pratica.

3 69 Beaum., cap. XI, pág. 58. (N. do A.) 3 72 Os tribunais clericais, sob pretexto do jura­
3 70 As mulheres viúvas, os cruzados, aqueles que mento, estavam mesmo embargados, como se vê
conservavam os bens da Igreja, em razão destes pelo famoso acordo feito entre Filipe Augusto, os
bens. Ibid. (N. do A.) clérigos e os barões, o qual se encontra nas Ordena­
3 71 Vede todo o capítulo XI de Beaumanoir. (N. ções de Laurière. (N. do A.)
do A.) 3 73 Beaum., cap. XI, pág. 60. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 461

Capítulo XLI

Fluxo e refluxo da jurisdição


eclesiástica e da jurisdição leiga

Estando o poder civil nas mãos de uma infi­ para fixar o que o defunto deveria ter dado
nidade de senhores, fora fácil para a jurisdição caso tivesse feito testamento. Não se podia
eclesiástica ampliar-se cada dia mais: porém, dormir junto na primeira noite de núpcias, nem
como a jurisdição eclesiástica enfraquecia a mesmo nas duas seguintes, sem ter comprado a
jurisdição dos senhores e contribuiu, por isso, permissão para tal; eram exatamente essas três
para dar forças à jurisdição real, esta restrin­ noites que cumpria escolher, porque, para as
giu pouco a pouco a jurisdição eclesiástica, demais, não se teria dado muito dinheiro. O
que recuou diante da primeira. O parlamento, parlamento corrigiu tudo isso. Encontra-se, no
que admitira em sua forma de proceder tudo o Glossário3 7 5 do Direito Francês de Ragueau,
que havia de bom e de útil na dos tribunais o aresto que ele emitiu contra o bispo de
eclesiásticos, incialmente apenas viu seus abu­ Amiens3 7 6.
sos; e, fortificando-se a jurisdição real todos os Volto ao começo de meu capítulo. Quando,
dias, esteve cada vez mais em condição de cor­ em um século, ou em um governo, vemos os
rigir esses mesmos abusos. Esses eram, efetiva­ diversos corpos do Estado procurarem aumen­
mente, intoleráveis; e, sem os enumerar, tar sua autoridade, lograrem, uns sobre os
remontarei a Beaumanoir3 74, a Boutillier, às outros, certas vantagens, enganar-nos-íamos
ordenações dos nossos reis. Só falarei dos que frequentemente se olhássemos seus empreendi­
interessavam mais diretamente à riqueza públi­ mentos como uma marca certa de sua corrup­
ca. Conhecemos esses abusos pelos arestos que ção. Por uma infelicidade relacionada com a
os reformaram. A ignorância crassa os havia condição humana, os grandes homens modera­
introduzido; uma espécie de inteligência apare­ dos são raros; e, como é sempre mais fácil se­
ceu, e eles não existiram mais. Pode-se consi­ guir sua força do que detê-la, talvez na classe
derar, pelo silêncio do clero, que ele próprio ia das pessoas superiores seja mais fácil encon­
à frente da correção; o que. considerada a trar pessoas extremamente virtuosas, do que
natureza do espírito humano, merece louvores. homens extremamente sábios.
Todo homem que morria sem deixar uma parte A alma sente tantos prazeres em dominar as
de seus bens à Igreja, o que se chamava morrer outras almas; mesmo os que amam o bem
inconfesso, era privado da comunhão e da amam tão fortemente a si mesmos, que não há
sepultura. Se morria sem fazer testamento, era ninguém que não seja bastante infeliz para ter
preciso que os parentes obtivessem do bispo ainda que desconfiar de suas boas intenções: e,
que nomeasse, juntamente com eles, árbitros na verdade, nossas ações contêm tantas coisas,
que é mil vezes mais fácil fazer o bem do que
fazê-lo bem feito.
3 7 4 Vede Boutillier, Somme Rurale, tít. IX, Que
pessoas não podem demandar em corte leiga; e
Beaumanoir, cap. XI, pág. 56; e os regulamentos de
Filipe Augusto a esse respeito; e o estabelecimento 3 ' 5 No verbete Executores testamentários. (N. do
de Filipe Augusto feito entre os clérigos, o rei e os A.)
barões. (N. do A.) 3 7 6 De 19 de março de 1409. (N. do A.)
462 MONTESQUIEU

Capítulo XLII

Renascimento do direito romano e o que


dele resultou. Modificações nos tribunais

Tendo sido o Digesto de Justiniano reencon­ pies, os quais era transmitidos por tradição.
trado mais ou menos no ano de 1137, o direito Havia, no tempo de Beaumanoir382, duas
romano pareceu rbceber um segundo nasci­ maneiras diferentes de fazer justiça. Em alguns
mento. Estabeleceram-se na Itália escolas onde lugares, julgava-se por pares383 ; em outros,
o ensinavam: já se tinham o Código Justiniano julgava-se por bailios. Quando se seguia a pri­
e as Novelas. Já disse que este direito ganhou meira forma, os pares julgavam conforme o
aí tal acolhimento que fez eclipsar a lei dos uso de sua jurisdição3 8 4; na segunda, eram os
lombardos. virtuosos ou os velhos que indicavam ao bailio
Doutores italianos trouxeram o direito de o mesmo uso. Tudo isso não requeria nenhuma
Justiniano para a França, onde só se conhe­ instrução, nenhuma capacidade, nenhum estu­
cera3 7 7 o Código Teodosiano, porque apenas do. Mas, quando o código obscuro dos Estabe­
depois do estabelecimento dos bárbaros nas lecimentos e outras obras de jurisprudência
Gálias é que as leis de Justiniano foram fei­ apareceram; quando o direito romano foi tra­
tas3 78. Esse direito sofreu algumas oposições; duzido; quando começou a ser ensinado nas
escolas; quando certa arte do processo e certa
mas se manteve, apesar das excomunhões dós
arte da jurisprudência começaram a formar-se;
papas, que protegiam seus cânones3 79. São
quando se viu nascerem praxistas e juriscon-
Luís procurou dar-lhe fé pelas traduções que
sultos, os pares e os homens virtuosos não se
mandou fazer das obras de Justiniano, as quais achavam mais em condição de julgar; os pares
ainda temos manuscritas em nossas bibliote­ começaram a retirar-se dos tribunais do
cas; e já disse que se fez um grande uso delas senhor; os senhores não se mostraram muito
nos Estabelecimentos. Filipe, o Belo380, man­ inclinados a reuni-los, quanto mais que os
dou ensinar as leis de Justiniano, somente julgamentos, em vez de serem uma ação bri­
como razão escrita, nas regiões da França lhante, agradável à nobreza, interessante para
governadas pelos costumes; e foram elas ado­ os guerreiros, não passavam de uma prática
tadas como lei nas regiões em que o direito ro­ que eles não entendiam nem queriam entender.
mano era a lei. A prática de julgar por pares tornou-se de
Disse mais acima que a maneira de proceder pouco uso38 5* , a de julgar por bailios am-
pelo duelo judiciário exigia, nos que julgavam,
bem pouca suficiência381; decidiam-se as 382 Coutume de Beauvoisis, cap. I, Do ofício dos
questões em cada lugar, conforme o uso de bailios. (N. do A)
cada lugar, e segundo alguns costumes sim- 383 Na comuna, os burgueses eram julgados por
outros burgueses, como os vassalos de feudo julga­
vam-se entre si. Vede la Thaumassière, cap. XIX.
3 7 7 Seguia-se, na Itália, o código de Justiniano. É (N. do A.)
por isso que o Papa João VIII, em sua constituição 38 4 Também todas as petições começavam por
dada após o sínodo de Troyes, fala desse código, estas palavras: “Senhor juiz, é de uso que em vossa
não porque esse fosse conhecido na França, mas jurisdição etc.”, como transparece na fórmula rela­
porque ele mesmo o conhecia; e sua constituição tada em Boutillier, Somme Rurale, liv. I, tít. XXL
era geral. (N. do A.) (N. do A.)
3 78 O código deste imperador foi publicado mais 3 8 5 A modificação foi insensível. Encontram-se
ou menos no ano de 530. (N. do A.) ainda os pares empregados no tempo de Boutillier,
3 7 9 Decretais, liv. V, tít. De privilegiis, cap. 28, que vivia em 1402, data de seu testamento, o qual
super specula. (N. do A.). cita esta fórmula no liv. I, tít. XXI: “Senhor Juiz,
380 Por uma charta do ano de 1312, em favor da em minha justiça alta, média e baixa, que tenho em
Universidade de Orléans, citada por Dutillet. (N. do tal lugar, corte, audiência, bailio, vassalos feudais e
A.) sargentos”. Mas apenas as matérias feudais eram
381 ... suficiência... no sentido de capacidade? julgadas por pares. Ibid. liv. I, tít. I, pág. 16. (N. do
cap., A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 463

pliou-se. Os bailios não julgavam38 6: faziam a direito civil concorreram igualmente para abo­
instrução e pronunciavam o julgamento dos lir os pares.
virtuosos; mas, não estando estes mais em con­ Assim se perdeu o uso, constantemente
dições de julgar, os próprios bailios é que observado na monarquia, segundo o qual um
julgaram. juiz nunca julgava só, como se vê pelas leis sá-
Isto se fez tão mais facilmente na medida licas, pelas capitulares, e pelos primeiros escri­
em que se tinha diante dos olhos a prática dos tores de praxe da terceira raça38 7. O abuso
juizes da igreja: o direito canônico e o novo cohtrário, que só ocorre nas justiças locais, foi
moderado, e de alguma maneira corrigido,
pela introdução em muitos lugares de um
38 6 Como se depreende da fórmula das cartas que representante do juiz, a quem este último con­
o senhor lhes dava, citada por Boutillier, Somme sulta e que representa os antigos virtuosos;
Rurale, liv. I, tít. XIV. O que se prova ainda por pela obrigação em que estava o juiz de servir-
Beaumanoir, Coutume de Beauvoisis, cap. I, Do ofí­ se de dois graduados nos casos que pudessem
cio dos bailios. Eles só faziam o processo. “Le bailli
est temu en la présence des hommes à penre les merecer uma pena aflitiva; e enfim esse abuso
paroles de chaux qui plaident, et doit demander as tornou-se nulo pela extrema facilidade das
parties se ils veulent oir droit selon les raisons que apelações.
ils ont dites; et se il dient, Sire, oil, le bailli doit
contraindre les hommes que ilsfacent le jugement. ’’
Vede também os Estabelecimentos de São Luís, liv. 3 8 7 Beaum., cap. LXVII, pág. 336; e cap. LXI,
I, cap. C V; e liv. II, cap. XV. “Lijuge, si ne doit pas págs. 315 e 316; os Estabelecimentos, liv. II, cap.
faire le jugement.” (N. do A.) XV. (N. do A.)

Capítulo XLIII

Continuação do mesmo assunto

Deste modo, não foi uma lei que proibiu os criação; mas ela não diz senão o que diz. Além
senhores de manterem eles próprios suas cor­ do mais, fixa o que prescreve pelas razões que
tes; não foi uma lei que aboliu as funções que apresenta para isso. “É para que”, afirma-se,
seus pares aí desempenhavam; não houve lei “os bailios possam ser punidos por suas
que ordenasse criar os bailios; não foi por uma prevaricações3 89 que cumpre que sejam eles
lei que eles tiveram o direito de julgar. Tudo admitidos na ordem dos leigos.” Conhecemos
isso se fez pouco a pouco, e por força da coisa. os privilégios dos eclesiásticos naqueles tem­
O conhecimento do direito romano, os arestos pos.
dos tribunais, as compilações dos costumes Não é preciso crer que os direitos que os
recentemente escritos, tudo demandava um es­ senhores usufruíam outrora, e que hoje não
tudo do qual os nobres e o povo iletrado não mais usufruem, lhes foram tirados como usur-
eram capazes. pações: muitos desses direitos foram perdidos
por negligência; e outros abandonados porque,
A única ordenação que temos sobre este tendo-se introduzido diversas modificações
assunto388 é a que obriga os senhores a esco­ nas cortes em müitos séculos, não podiam sub­
lherem seus bailios na ordem dos leigos. É sistir com essas modificações.
erradamente que a olharam como a lei de sua
3 89 Ut, si ibi delinquant, superiores sui possint
3 88 Ela é do ano de 1287. (N. do A.) animadvertere in eosdem. (N. do A.)
464 MONTESQUIEU

Capítulo XLIV

Da prova por testemunhas

Os juizes, que só tinham os usos como nobreza, a idade, a legitimidade, o casamento.


regras, em cada questão que se apresentava A escrita é um testemunho dificilmente cor­
informavam-se deles comumente através de rompível. Mandaram redigir por escrito os
testemunhas. costumes. Tudo isso era muito razoável: é
Tornando-se o duelo judiciário menos mais fácil procurar nos registros de batismo se
usado, os interrogatórios passaram a ser feitos Pedro é filho de Paulo, do que provar esse fato
por escrito. Mas uma prova oral feita por por um longo inquérito. Quando, numa região,
escrito nunca passa de uma prova oral; isso só há um número muito grande de usos, é mais
fazia aumentar as custas do processo. Fize- fácil escrevê-los todos em um código do que
ram-se regulamentos que tornaram inútil a obrigar os particulares a provar cada um.
maior parte desses interrogatórios390; estabe- Enfim, fez-se a famosa ordenação que proibia
leceram-se registros públicos, nos quais a receber a prova por testemunhas por uma dívi­
maioria dos fatos encontrava-se provada: a da acima de cem libras, a menos que já tivesse
havido um começo de prova por escrito3 91.
390 Vede como se provava a idade e o parentesco:
Estabelecimentos, liv. I, caps. LXXI e LXXII. (N. 391 É a ordenação de Moulins outorgada em 1566
dc A.) no reinado de Carlos IX.

Capítulo XLV

Dos costumes da França

A França era regida, como disse, pelos cos­ ria dos anciãos; mas se formaram pouco a
tumes não escritos; e os usos particulares de pouco leis e costumes escritos.
cada senhoria formavam o direito civil. Cada 1. ° No começo da terceira raça3 9 4 outorga­
senhorio tinha seu direito civil, como diz ram os reis chartas particulares, e mesmo algu­
, e um direito tão particular,
Beaumafioir392393 mas gerais, da maneira como expliquei acima:
que este autor, que deve ser considerado à luz tais são os Estabelecimentos de Filipe Augusto
daqueles tempos, e uma grande luz, diz não e os que se devem a São Luís. Do mesmo
crer que em todo o reino houvesse dois senho­ modo, os grandes vassalos, de acordo com os
rios que fossem governados inteiramente pela senhores que deles dependiam, outorgaram,
mesma lei. nas assentadas de seus ducados ou condados,
Essa prodigiosa diversidade tinha uma pri­ certas chartas ou Estabelecimentos, conforme
meira origem e também uma segunda. Pela pri­ as circunstâncias; tais foram a assentada de
meira, pode-se lembrar o que afirmei acima, no Godofredo, conde da Bretanha, sobre a parti­
capitulo dos costumes locais3 93 ; e, quanto à lha dos nobres; os costumes da Normandia,
segunda, encontramo-la nos diversos aconteci­ concedidos pelo Duque Raul; os costumes da
mentos dos duelos judiciários; devendo casos Champanha, outorgados pelo Rei Tibaldo; as
continuamente fortuitos introduzir natural­ leis de Simão, conde de Montfort, e outras.
mente novos usos. Isso produziu algumas leis escritas, e mais ge­
Esses costumes eram conservados na memó­ rais mesmo do que as que existiam.
2. ° No começo da terceira raça, quase todo
392 Prólogo sobre o Coutume de Beauvoisis. (N.do
A.) 39 4 Vede a Recueil des Ordonnances, de Laurière.
393 Cap. XII. (N.do A.) (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 465

o baixo povo era servo. Muitas razões obriga­ costumes adquiriram três características:
ram os reis e os senhores a libertá-los. foram escritos, foram mais gerais, receberam o
Libertando seus servos, os senhores doa- selo da autoridade real.
vam-lhes certos bens; foi preciso dar-lhes leis Tendo sido novamente redigidos, muitos
civis para regulamentar a disposição destes desses costumes foram alvo de muitas modifi­
bens. Libertando seus servos, os senhores cações, quer suprimindo tudo o que não era
privavam-se de seus bens; foi preciso então compatível com a jurisprudência atual, quer
regulamentar os direitos que os senhores se acrescentando muitas coisas extraídas dessa
reservavam para o equivalente de seus bens. jurisprudência.
Ambas as coisas foram regulamentadas pelas
Embora se considere, entre nós, que o direi­
cartas de alforria; estas compuseram parte de
to consuetudinário contém uma espécie de
nossos costumes, que se encontra redigida por
oposição ao direito romano, de maneira que
escrito.
esses dois direitos dividem os territórios, é ver­
° No reinado de São Luís e nos seguintes,
3.
dade, entretanto, que muitas disposições do
praxistas hábeis, tais como Défontaines, Beau­
manoir e outros, redigiram por escrito os cos­ direito romano entraram em nossos costumes,
tumes de seus bailiatos. Seu objetivo era antes sobretudo quando se efetuaram novas reda­
estabelecer uma praxe judiciária do que os ções, em tempos não muito longínquos dos
usos da época sobre a disposição dos bens. nossos, quando esse direito era o objeto dos
Mas aí se encontra de tudo; e, embora esses conhecimentos de todos os que se destinavam
autores particulares só tivessem autoridade aos empregos civis; em tempos em que nin­
pela verdade e publicidade das coisas que guém se vangloriava de ignorar o que se deve
diziam, não se pode duvidar que tenham sido saber, e de saber o que se deve ignorar; quando
muito úteis para o renascimento do nosso a aptidão do espírito servia mais para aprender
direito francês. Tal era, naqueles tempos, a própria profissão do que para exercê-la; e
nosso direito consuetudinário escrito. quando os divertimentos contínuos nào eram
Eis a grande época. Carlos VII e seus suces­ sequer o atributo das mulheres.
sores mandaram redigir por escrito, em todo o Teria sido necessário que me estendesse
reino, os diversos costumes locais, e prescre­ ainda mais no final deste livro; e que, ao entrar
veram as formalidades que deviam ser obser­ em maiores pormenores, tivesse seguido todas
vadas em sua redação. Ora, como essa redação as modificações insensíveis que, desde a aber­
foi feita por províncias, e como, de cada senho­ tura das apelações, formaram o grande corpo
rio, vinha-se depositar na assembléia geral da da jurisprudência francesa. Mas, assim, teria
província os usos escritos ou não escritos de inserido uma grande obra em outra grande
cada lugar, procurou-se tornar os costumes obra. Sou como aquele antiquário39 6 que par­
mais gerais, tanto mais quanto isso pôde ser tiu de seu país, chegou ao Egito, lançou uma
feito sem ferir os interesses dos particulares, olhadela sobre as pirâmides e voltou.
que foram preservados3*9 5. Destarte, nossos
39 6 No Speclateur Anglais*. (N. do A.)*
3 9 5 isto se fez quando da redação dos costumes de * ... antiquário... no sentido em que se entendia
Berry e de Paris. Vede La Thaumassière, cap. III. então, de curioso de coisas antigas, de amador de
(N. do A.) antiguidades.
LIVRO VIGÉSIMO NONO
DA MANEIRA DE COMPOR AS LEIS
Capítulo I

Do espírito do legislador

Eu o digo, e parece-me que só faço esta obra cido: as questões não teriam fim; a proprie­
para prová-lo: o espírito de moderação deve dade dos bens ficaria incerta; dar-se-ia, sem
ser o do legislador; o bem político, como o exame, a uma das partes o bem da outra ou se
bem moral, encontra-se sempre entre dois limi­
arruinariam todas as duas de tanto examinar.
tes. Eis o exemplo disso.
As formalidades da justiça são necessárias Os cidadãos perderíam sua liberdade e segu­
para a liberdade. Mas o número delas poderia rança; os acusadores não mais teriam meios
ser tão grande, que iria de encontro à finali­ para convencer, nem os acusados meios para
dade das mesmas leis que as teriam estabele­ justificar-se.

Capítulo II

Continuação do mesmo assunto

Cecílio, em Aulo Gélio39 7, discorrendo res? O bem será a violência, e todas as rela­
sobre a Lei das Doze Tábuas, que permitia ao ções entre as coisas serão destruídas?
credor esquartejar o devedor insolvente, justifi­
ca-a por sua própria atrocidade, que398 impe­ 3 98 Afirma Cecílio que nunca viu nem leu que esta
dia tomar emprestado além das possibilidades. pena tenha sido aplicada; mas parece que nunca foi
As leis mais cruéis serão portanto as melho- estabelecida. A opinião de alguns jurisconsultos, de
que a Lei das Doze Tábuas só falava da divisão do
valor do devedor vendido, é muito verossímil. (N.
3 9 7 Liv. XX, cap. I. (N.do A.) do A.)

Capítulo III

De como as leis que parecem afastar-se dos desígnios


do legislador frequentemente se lhes conformam

A lei de Sólon, que declarava infames todos pusessem ao abrigo; e que por isso as coisas
os que, numa sedição, nenhum partido toma­ não fossem levadas ao extremo.
vam, pareceu bastante extraordinária: mas Nas sedições que ocorriam nesses pequenos
faz-se mister atentar para as circunstâncias em Estados, a maior parte da cidade participava
que a Grécia se encontrava então. Estava ela
dividida em três pequenos Estados: era de da querela, ou a provocava. Em nossas gran­
temer que, numa república agitada pelas des monarquias, os partidos são formados por
dissensões civis, pessoas mais prudentes se poucas pessoas, e o povo desejaria viver na
470 MONTESQUIEU
inação. Nesse caso, é natural atrair os sedicio- que a fermentação de um licor pode ser detida
sos à maioria dos cidadãos e não a maioria por uma só gota de outro399.
dos cidadãos aos sediciosos; no outro, é preci­
so fazer com que a minoria de pessoas pruden­ 3 99 Vê-se aqui com que sagacidade o moralista
tes e tranquilas adira aos sediciosos: é assim intervém na política pura.

Capítulo IV

Das leis que contrariam


os desígnios do legislador

Há leis que o legislador conheceu tão pouco, que são contrárias ao próprio objetivo que ele se
propôs. As que estabeleceram entre os franceses que, quando um dos dois pretendentes a um
benefício morre, o benefício fica para o sobrevivente, procuraram sem dúvida extinguir as ques­
tões. Mas daí resulta um efeito contrário; vimos os eclesiásticos atacarem-se e baterem-se, como
dogues ingleses, até a morte.

Capítulo V

Continuação do mesmo assunto

A lei a que me vou referir encontra-se no to das gentes, entre os gregos, cumpria acostu­
juramento que nos foi conservado por Esqui­ má-los a pensar que era coisa atroz destruir
no400. “Juro que nunca destruirei uma cidade uma cidade grega: portanto, não deviam nem
dos Anfictiões401, e não desviarei de modo mesmo destruir os destruidores. A lei de Anfic­
algum suas águas correntes: se algum povo tião era justa, mas não prudente. Isto se prova
ousar fazer alguma coisa de semelhante, decla- pelo próprio abuso que dela se fez. Filipe não
rar-lhe-ei guerra e destruirei suas cidade.” O se deu o poder de destruir as cidades, a pre­
último artigo dessa lei, que parece confirmar o texto de que elas tinham violado as leis dos
primeiro, na realidade lhe é contrário. Anfic- gregos? Anfictião poderia infligir outras
tião quer que nunca se destruam as cidades penas: ordenar, por exemplo, que certo número
gregas, e sua lei abre a porta para a destruição de magistrados da cidade destruidora, ou os
dessas cidades. Para estabelecer um bom direi­ chefes do exército violador, fossem punidos
com a morte; que o povo destruidor cessasse,
por algum tempo, de gozar dos privilégios dos
400 Defalsa legatione. (N. do A.)
401 Sabe-se que se chama de anfictionia, do nome gregos; que pagasse uma multa até a restaura­
legendário de Anfictião, filho de Deucalião, uma ção da cidade. A lei devia sobretudo versar
confederação de cidades ou de povos. sobre a reparação do dano.

Capítulo VI

De como as leis que parecem as mesmas


nem sempre têm o mesmo efeito

Proibia César402 que se guardassem em casa mais de sessenta sestércios. Em Roma,


esta lei foi considerada muito adequada para
402 Dion, liv. XX, XLI. (N. do A.) conciliar os devedores com os credores; por­
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 471

que, obrigando 'os ricos a emprestar aos correspondia a um roubo praticado com
pobres, colocava esses em situação de satisfa­ violência. César fez sua lei para que o dinheiro
zer os ricos. Lei semelhante, estabelecida na circulasse entre o povo; o ministro da França
França, na época do Sistema403, foi muito fez a sua para que o dinheiro fosse depositado
funesta: é que a circunstância em que fora feita numa só mão. O primeiro deu em troca do
era terrível. Depois de suprimir todos os meios dinheiro bens fundiários ou hipotecas sobre
de empregar o dinheiro, suprimiu-se até o particulares; o segundo propôs, em troca do
recurso de guardá-lo na própria casa; o que dinheiro, títulos que não tinham nem poderíam
ter qualquer valor por sua natureza, já que a
403 . . .o Sistema. . . o “sistema” de Law. lei obrigava a aceitá-los.

C apítulo VII

Continuação do mesmo assunto


Necessidade de bem compor as leis.
Estabeleceu-se a lei do ostracismo em Ate­ nas, onde o legislador havia sentido a extensão
nas, Argos e Siracusa40 4. Em Siracusa, oca­ e os limites que deveria dar à sua lei, o ostra­
sionou males, porque foi executada impruden­ cismo foi uma coisa admirável: nunca se lhe
temente. Os cidadãos principais baniam-se .uns submetia mais que uma só pessoa;-era preciso
aos outros, colocando-se uma folha de figueira tão grande número de sufrágios, que se torna­
na mão40 5; de maneira que os que tinham va difícil exilar alguém cuja ausência não fosse
algum mérito deixaram os negócios. Em Ate- necessária.
Só se podia banir de cinco em cinco anos:
40 4 Aristóteles, Política, liv. V, cap. III. (N. do A.) com efeito, desde que o ostracismo só devia ser
40 5 Plutarco, Vida de Dionísio, cap. I*. (N. do A.)
* Razão pela qual o ostracismo tomava o nome de exercido contra um grande personagem que
petalismo. Segundo Plutarco e Diodoro, tratava-se inspirasse temor aos seus cidadãos, isso não
de uma folha de oliveira. devia ser questão de todos os dias.

Capítulo VIII

De como as leis que parecem as mesmas


nem sempre tiveram o mesmo motivo

Aceitou-se, na França, a maioria das leis pelo direito dos pontífices. Isso fez com que os
dos romanos sobre as substituições; mas estas romanos considerassem desonra morrer sem
têm aqui motivo completamente diferente do herdeiro, tomassem seus escravos por herdei­
que entre os romanos. Entre esses, a herança ros e inventassem as substituições. A substitui­
estava ligada a certos40 6 sacrifícios que deve­ ção vulgar, que foi a primeira a ser inventada,
ríam ser feitos, pelo herdeiro, regulamentados que só ocorria nos casos em que o herdeiro
instituído não aceitasse a herança, é uma gran­
de prova disso: nunca tinha por finalidade per­
40 6 Quando a hereditariedade estava excessiva­ petuar a herança numa família do mesmo
mente carregada, eludia-se o direito dos pontífices
por meio de certas vendas: de onde veio a expressão nome, mas encontrar alguém que aceitasse a
sine sacris hereditas. (N. do A.) herança.
472 MONTESQUIEU

Capítulo IX

De como as leis gregas e romanas puniram


o homicídio de si mesmo, Sem terem o mesmo motivo

Um homem, diz Platão40 7, que matou quem No tempo dos primeiros imperadores, as
lhe está estreitamente ligado, isto é, ele pró­ grandes famílias de Roma foram incessante­
prio, não por ordem do magistrado, nem para mente exterminadas por julgamentos. Introdu­
evitar a ignomínia, mas por fraqueza, será ziu-se o costume de prevenir a condenação por
punido. A lei romana punia essa ação, quando morte voluntária. Achavam nisso grande van­
ela não era praticada por fraqueza de alma, tagem. Obtinha-se408 a honra da sepultura, e
por tédio da vida, por incapacidade de sofrer a os testamentos eram executados; decorria isto
dor, mas pelo desespero por algum crime. A lei do fato de não haver lei civil em Roma contra
romana absolvia no caso em que a grega con­ os que se matavam a si mesmos. Mas, quando
denava, e condenava no caso em que a outra os imperadores se tornaram tão avaros quanto
absolvia. tinham sido cruéis, não deixaram mais àqueles
A lei de Platão estava baseada nas institui­ de que queriam desfazer-se o meio de conser­
ções lacedemônias, em que as ordens do var seus bens, e declararam crime tirar a vida a
magistrado eram totalmente absolutas, em que si próprio pelos remorsos de outro crime.
a ignomínia era a maior das desgraças, e a fra­ O que afirmo dos motivos dos imperadores
queza o maior dos crimes. A lei romana aban­ é tão verdadeiro, que estes consentiram que os
donava todas essas belas idéias; não passava bens409 dos que se tinham suicidado não fos­
de uma lei fiscal. sem confiscados, quando o crime pelo qual se
Na época da república, não havia lei em tinham suicidado não sujeitasse ao confisco.
Roma que punisse os que matavam a si pró­
prios: esta ação, entre os historiadores, é sem­ 408 Eorum qui de se statuebant, humabantur cor-
pre bem considerada, e nunca se vê neles puni­ pora, manebant testamento, pretium festinandi. Tá­
ção contra os que a cometeram. cito, Anais, liv. VI, cap. XXIX. (N. do A.)
409 Transcrito do Imperador Pio, na lei 3, §§ 1 e 2,
ff. De bonis eorum qui ante sententiam mortem sibi
40 7 Liv. IX, Das Leis. (N. do A.) consciverunt. (N. do A.)

Capítulo X

De como as leis que parecem contrárias


derivam algumas vezes do mesmo espírito

Vai-se atualmente à casa de um homem se podia ir à casa de um homem para citá-lo


para citá-lo em juízo; isso não se podia fazer em juízo do mesmo modo como hoje não se
entre os 41 0 romanos. pode coagir fisicamente em sua casa um
A citação em juízo era uma ação violen­ homem que só é condenado por dívidas civis.
ta411, uma espécie de coação física412, e não As leis romanas413 e as nossas admitem
igualmente o princípio de que cada cidadão
410 Lei 18, ff. De in jus vocando. (N. do A.) tem a própria casa como asilo, e que nela não
411 Vede a Lei das Doze Tábuas. (N. do A.)
412 Rapit injus, Horácio, liv. I, sát. IX. É por isso deve receber nenhuma violência.
que não se podia citar em juízo aqueles a quem se
devia um certo respeito. (N. do A.) 413 Vede a lei 18, ff. De in jus vocando. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 473

Capítulo XI

De que maneira duas leis


diferentes podem ser comparadas

Na França, a pena contra as falsas testemu­ munhas; pelo contrário, a razão requer que as
nhas é capital; na Inglaterra, não o é. Para jul­ intimide: só escuta as testemunhas de uma
gar qual das duas leis é a melhor, faz-se mister das41 5 partes; são estas que apresentam a
acrescentar: na França, a questão de crimino­ parte pública; e o destino do acusado depende
sos é praticada; na Inglaterra não o é; e dizer de suas testemunhas. Mas, na Inglaterra, são
ainda: na França, o acusado não apresenta aceitas as testemunhas de ambas as partes, e a
suas testemunhas, e é raríssimo que se admita
o que chamam fatos justificativos; na Ingla­ questão é, por assim dizer, discutida entre elas.
terra, são aceitas as testemunhas de ambas as O falso testemunho pode, portanto, ser aí
partes. As três leis francesas formam um siste­ menos perigoso; o acusado tem um recurso
ma muito coeso e muito consequente; as três contra o falso testemunho, enquanto a lei fran­
leis inglesas formam outro sistema que não o é cesa não o concede. Destarte, para julgar qual
menos. A lei da Inglaterra, que não conhece dessas leis é a mais conforme à razão, não
questão contra os criminosos, só pode alimen­ cumpre comparar cada uma dessas leis com as
tar pouca esperança de arrancar do acusado a outras; é preciso tomá-las todas em conjunto, e
confissão de seu crime; convoca, portanto, de
compará-las todas em conjunto 41 6.
todos os lados, testemunhas estranhas, e não
ousa desencorajá-las pelo temor de uma pena
capital. A lei francesa, que tem um recurso a 41 5 Pela antiga jurisprudência francesa, as teste­
munhas eram ouvidas pelas duas partes. Assim se
*41 4, não receia intimidar tanto as teste­
mais414 via, nos Estabelecimentos de São Luís, liv. I, cap.
VII, que a pena contra o falso testemunho em juízo
414 ... um recurso a mais... a tortura, esta ques­ era pecuniária. (N. do A.)
tão mesma. 41 6 Remontar ao cap. III do livro XVI.

Capítulo XII

De como as leis que parecem


as mesmas são na realidade diferentes

As leis gregas e romanas puniam tanto o roubo pode muitas vezes recebê-lo inocente­
receptador41 7 do roubo como o ladrão: a lei mente; o que rouba é sempre culpado: um im­
francesa faz o mesmo. Aquelas eram razoá­ pede a convicção de um crime já cometido, o
veis, estas não o são. Entre os gregos e os outro comete esse crime; tudo é passivo em
romanos, sendo o ladrão condenado a uma um, há uma ação no outro; cumpre que o
pena pecuniária, era necessário punir o recep­ ladrão supere muitos obstáculos, e que sua
tador com a mesma pena; porque todo homem alma se obstine por mais tempo contra as leis.
que contribui, de alguma maneira, para que Os jurisconsultos foram mais longe: encara­
haja um dano deve repará-lo. Mas, entre nós, ram o receptador como mais odioso que o
sendo capital a pena por roubo, não se pôde, ladrão418, porque sem eles41 9, dizem, o roubo
sem exagerar as coisas, punir o receptador da não poderia ser escondido por muito tempo.
mesma maneira que o ladrão. Quem recebe o
418 Lei I, ff. De receptatoribus. (N. do A.)
41 7 Lei I, ff. De receptatoribus. (N. do A.) 419 ... sem eles, os receptadores.
474 MONTESQUIEU

Isso, ainda uma vez, podia ser bom quando a ção de repará-lo; mas, tornada a pena capital,
pena era pecuniária; tratava-se de um dano, e seria necessário pautar-se por outros princí­
o receptador comumente estava mais em situa­ pios.

Capítulo XIII

De como não é necessário separar as leis do objetivo


para o qual são feitas. Leis romanas sobre o roubo.

Quando o ladrão era surpreendido com a romanos, grande diferença entre o roubo mani­
coisa roubada, antes que houvesse levado para festo e o roubo não manifesto422.
o lugar em que resolvera escondê-la, os roma­ Entre os romanos, o escravo que roubava
nos denominavam isso de roubo manifesto. era precipitado da rocha Tarpéia. No caso,
não se tratava das instituições lacedemônias;
Quando o ladrão só era descoberto posterior­
as leis de Licurgo sobre o roubo não se desti­
mente, tratava-se de roubo não manifesto.
navam aos escravos; segui-las era afastar-se
A Lei das Doze Tábuas ordenava que o delas nesse ponto.
ladrão manifesto fosse vergastado e reduzido à Em Roma, quando um impúbere era sur­
servidão se era púbere; ou somente vergastado preendido no roubo, o pretor mandava vergas-
se era impúbere: condenava o ladrão não tá-lo a seu bel-prazer, como se fazia na Lace-
manifesto apenas ao pagamento do dobro da demônia. Tudo isso vinha de mais longe. Os
coisa roubada. lacedemônios haviam copiado esses usos dos
Quando a lei Pórcia aboliu a prática de ver­ cretenses; e Platão423, desejando provar que
gastar os cidadãos e de reduzi-los à servidão, o as instituições dos cretenses eram feitas para a
guerra, cita esta: “A faculdade de suportar a
ladrão manifesto foi condenado ao quádru­ dor nos duelos e nos furtos que obrigam a
plo420 e continuaram a punir com o dobro o
esconder-se”.
ladrão não manifesto.
Como as leis civis dependem das leis políti­
Parece estranho que essas leis estabele­ cas, pois são feitas para uma sociedade, seria
cessem tal diferença na qualidade desses dois conveniente que, quando se quisesse trans­
crimes, e na pena que infligiam; de fato: que o portar uma lei civil de uma nação para outra,
ladrão fosse surpreendido antes ou depois de se examinasse antes se ambas têm as mesmas
haver levado o roubo ao seu destino, essa instituições e o mesmo direito político.
circunstância em nada alterava a natureza do Assim, quando as leis sobre o roubo passa­
crime. Parece-me indubitável que toda a teoria, ram dos cretenses para os lacedemônios, como
das leis romanas421 sobre o roubo foi extraída passaram juntamente com o governo e a pró­
pria constituição, foram tão judiciosas num
das instituições lacedemônias. Licurgo, dese­
jando dar a seus cidadãos habilidade, astúcia e
desses povos quanto o foram no outro. Mas
quando foram levadas da Lacedemônia para
atividade, quis que as crianças fossem exerci­ Roma, como não encontraram a mesma
tadas no furto, e que fossem rudemente chico- constituição, foram aí sempre estranhas, e não
teadas as que se deixassem surpreender: isso tiveram qualquer ligação com as outras leis
estabeleceu entre os gregos, e a seguir entre os civis dos romanos.

420 Vede o que diz Favorino sobre Aulo Gélio, liv. 422 Confrontai o que diz Plutarco, Vida de Licur­
XX, cap. I. (N. do A.) go, com as leis do Digesto, no título Defurtis; e as
421 A erudição moderna não admite mais esta Institutas, liv. IV, tít. I, §§ 1, 2 e 3. (N. do A.)
certeza. 423 Das Leis, liv. I. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 475

Capítulo XIV

De como é preciso não separar as leis


das circunstâncias nas quais foram feitas

Uma lei de Atenas queria que, quando a ci­ As leis 42 5 romanas queriam que os médicos
dade estava sitiada, todas as pessoas inúteis pudessem ser punidos por negligência ou por
fossem mortas42*4. Era uma abominável lei imperícia. Neste caso, condenavam à deporta­
política, consequente de um abominável direito ção o médico de condição algo elevada, e à
das gentes. Entre os gregos, os habitantes de morte o de condição mais baixa. Pelas nossas
uma cidade conquistada perdiam a liberdade leis isso se dá de outra forma. As leis de Roma
civil e eram vendidos como escravos; a toma­ não tinham sido feitas nas mesmas circuns­
da de uma cidade acarretava sua inteira tâncias que as nossas; em Roma, ingeria-se o
destruição; e é a origem não somente dessas medicamento que se quisesse; mas, entre nós,
proibições obstinadas e dessas ações desnatu- os médicos são obrigados a fazer estudos e a
radas, mas ainda dessas leis atrozes que algu­ receber certos graus de profissão; eles são por­
mas vezes foram feitas. tanto tidos» como conhecedores de sua arte.

42 4 Inutilis aetas occidatur, Sirian., em Hermog. 425 a lei Cornélia, De sicariis; Institutos, liv. IV,
(N. do A.) tít. III, De lege Aquilia, § 7. (N. do A.)

Capítulo XV

De como é bom, algumas vezes, que


uma lei se corrija a si própria

A Lei das Doze Tábuas permitia matar o inocência que, no momento da ação, chama
ladrão noturno42 6, tanto quanto o ladrão diur­ testemunhas, chama juizes. É preciso que o
no que, sendo perseguido, defendia-se; mas ela povo tome conhecimento da ação, e que tome
queria que aquele que matava o ladrão gritasse conhecimento dela no momento em que ela foi
e chamasse os cidadãos42 7; e isso é algo que
as leis que permitem fazer justiça com as pró­ executada; em um tempo em que tudo fala: o
prias mãos devem sempre exigir. É o grito da ar, o rosto, as paixões, o silêncio, e em que
cada palavra condena ou justifica. Uma lei que
42 6 Vede a lei 4, ff. ad leg. Aquil. (N. do A.) pode tornar-se tão contrária à segurança e à
42 7 Ibid. Vede o decreto de Tassilão, acrescentado liberdade dos cidadãos deve ser executada na
à lei dos bávaros; De copularibus legibus, art. 4. (N.
do A.) presença dos cidadãos.

Capítulo XVI

Coisas a observar na composição das leis

Os que têm um gênio suficientemente amplo devem tomar certas precauções sobre a manei-
para poder dar leis à sua nação ou a outra ra como formá-las.
476 MONTESQUIEU

O estilo deve ser conciso. As Leis das Doze palavras: “E aqueles que os juizes reais sempre
Tábuas são um modelo de precisão; as crian­ julgaram”; o que faz voltar ao arbitrário de
ças as aprendiam de cor428. As Novelas de que se acabava de sair.
Justiniano são tão difusas, que foi preciso Diz Carlos VII43 4 ter notícia de que as par­
abreviá-las429. tes apelam três, quatro e seis meses depois do
O estilo das leis deve ser simples; a expres­ julgamento, contra o costume do reino em país
são direta é sempre melhor compreendida do consuetudinário: ordena que se apelará incon-
que a expressão meditada. Não há majestade tinenti, a menos que tenha havido fraude ou
nas leis do baixo império; nelas os príncipes dolo do procurador43 5, ou que haja grande e
falam como retores. Quando o estilo das leis é evidente causa para dispensar o apelante. O
empolado, olhamo-las apenas como -obra de fim desta lei destrói o começo; e ela o destrói
ostentação. tão bem, que depois disso apelaram durante
É essencial que as palavras das leis desper­ trinta anos43 6.
A lei dos lombardos não permite que uma
tem em todos os homens as mesmas idéias. O
mulher que haja tomado hábito de religiosa,
Cardeal de Richelieu concordava que se podia
acusar um ministro diante do rei430, mas que­ embora não seja ainda consagrada, possa
casar-se43 7; “porque”, diz ela, “se um esposo
ria que se punisse aquele que quisesse provar
coisas que não fossem consideráveis; o que
que se comprometeu com uma mulher somente
por um anel não pode, sem crime, desposar
devia impedir toda gente de dizer alguma ver­
outra, com mais forte razão, a esposa de Deus
dade contra ele, pois uma coisa considerável é
ou da Santa Virgem...” Digo que, nas leis, é
inteiramente relativa, e o que é considerável
preciso raciocinar da realidade para a realida­
para um não é para outro.
de, e não da realidade para a abstração, ou da
A lei de Honório punia com a morte aquele abstração para a realidade.
que comprava como servo um liberto, ou que
tivesse querido inquietá-lo 431. Não era preciso Uma lei de Constantino438 quer que só o
servir-se de uma expressão tão vaga: a inquie­ testemunho do bispo baste, sem ouvir outras
tude que se causa a um homem depende intei­ testemunhas. Este príncipe escolhia um carhi-
ramente do grau de sua sensibilidade. nho bem curto; julgava as questões pelas pes­
Quando a lei deve estabelecer alguma coisa, soas, e as pessoas pelas dignidades.
é preciso, tanto quanto possível, evitar fazê-lo As leis não devem ser sutis; elas são feitas
a preço de dinheiro. Mil causas mudam.o valor para pessoas de entendimento medíocre: não
da moeda; e com a mesma denominação não são uma obra de lógica, mas a razão simples
se tem mais a mesma coisa. Sabe-se a história de um pai de família.
desse impertinente 4 3 2 de Roma que dava bofe­ Quando, numa lei, as exceções, limitações,
tadas em todas as pessoas que encontrava, e modificações não são necessárias, mais vale
lhes fazia apresentar os vinte e cinco soidos da não colocá-las. Semelhantes pormenores inspi­
Lei das Doze Tábuas. ram novos pormenores.
Quando, numa lei, foram fixadas as idéias É preciso não fazer modificação numa lei
das coisas, não é preciso recorrer a expressões sem razão suficiente. Justiniano ordenou que
vagas. Na ordenação criminal de Luís um marido poderia ser repudiado, sem que a
XIV433, após ter feito a enumeração exata mulher perdesse seu dote, se durante dois anos
desses casos reais, são acrescentadas estas ele não conseguira consumar o casamento439.
Modificou sua lei, e deu três anos ao pobre
428 Ut carmen necessarium. Cícero, De legibus,
liv. II, cap. XXIII. (N. do A.) 43 4 Em sua ordenação de Montel-les-Tours, do
429 É a obra de Irnério. (N. do A.) ano de 1453. (N. do A.)
430 Testament Politique. (N. do A.) 43 6 Podia-se punir o procurador, sem que fosse
431 Aut qualibet manumissione donatum inquie- necessário perturbar a ordem pública^(N. do A.)
tare voluerit. Apêndice ao código Teodosiano, no 43 6 A ordenação de 1667 determinou os regula­
tomo I das obras do Padre Sirmond, pág. 737. (N. mentos a esse respeito. (N. do A.)
do A.) 43 7 Liv. II, tít. XXXVII. (N. do A.)
432 Aulo Gélio, liv. XX, cap. I. (N. do A.)
433 (De 1670.) Encontram-se no processo verbal 438 No apêndice do Padre Sirmond ao código
desta ordenação os motivos que se tinham para isso. Teodosiano, tomo I. (N. do A.)
(N. do A.) 439 Lei I, código De repudiis. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 477

infeliz4 4°. Mas, em semelhante caso, dois anos infligia penas ao marido que conservava sua
valem três, e três não valem mais que dois. mulher depois do adultério, a menos que ele
Quando se esforça tanto para dar razão a não tivesse sido levado a isso pelo temor da
uma lei, é preciso que esta razão seja digna ocorrência de um processo, ou por negligência
dela. Uma lei romana decide que um cego não de sua própria vergonha; e é a presunção do
pode pleitear, porque não vê os ornatos da .homem. Era preciso que o juiz presumisse os
magistratura 4 41. Só propositadamente se po­ motivos pela conduta do marido, e que ele se
dería apresentar uma razão tão má, quando se decidisse por umá maneira de pensar muito
apresentavam tantas boas para isso. obscura. Quando o juiz presume, os julga­
O jurisconsulto Paulo diz que a criança mentos se tornam arbitrários; quando a lei pre­
nasce perfeita no sétimo mês, e que a razão dos sume, dá ao juiz uma regra fixa.
números de Pitágoras parece comprová-lo 4 42.
A lei de Platão4 4 7, como disse, queria que
É singular que se julguem essas coisas pela
se punisse aquele que se matava, não para evi­
razão dos números de Pitágoras.
tar a ignomínia, mas por fraqueza. Esta lei era
Alguns jurisconsultos franceses disseram
viciosa, pois, sendo este o único caso em que
que, quando o rei adquiria alguma região, as
não se podia arrancar ao criminoso a confis­
igrejas, aí, ficavam sujeitas ao direito de rega­ são do motivo que o levara a agir, queria que o
lia, porque a coroa do rei é redonda4 43. Não
juiz decidisse sobre estes motivos.
discutirei aqui os direitos do rei e se, neste
caso, a razão da lei civil ou eclesiástica deve Como as leis inúteis enfraquecem as leis
ceder à razão da lei políticá; mas direi que necessárias, as que podem ser eludidas enfra­
direitos tão respeitáveis devem ser defendidos quecem a legislação. Uma lei deve ter seu efei­
com sentenças graves. Quem nunca viu apoia- to, e é preciso não permitir que seja derrogada
rem-se, sobre a imagem do signo de uma digni­ por uma convenção particular.
dade, os direitos reais desta dignidade? A lei Falcídia ordenava, entre os romanos,
Dávila4 4 4 diz que Carlos IX foi declarado que o herdeiro tivesse sempre a quarta parte da
maior no parlamento de Ruão, mal entrara nos herança: outra lei4 48 permite ao testador proi­
catorze anos, porque as leis querem que se bir o herdeiro de reter esta quarta parte: é se
conte o tempo momento por momento, quando divertir com as leis. A lei Falcídia tornava-se
se trata da restituição e da administração dos inúfil: porque, se o testador queria favorecer
bens do pupilo: enquanto que considera o ano seu herdeiro, este não precisava da lei Falcí­
começado como completo, quando se trata de dia; e, se ele não queria favorecê-lo, proibia-o
adquirir honras. Não procuro censurar uma de usar a lei Falcídia.
disposição que não parece ter tido inconve­ É preciso atentar para que as leis sejam con­
nientes até aqui; direi somente que a razão ale­ cebidas de maneira que não entrem em choque
gada pelo chanceler do Asilo4 4 5 não era a com a natureza das coisas. Na proscrição do
verdadeira: o governo dos povos está longe de Príncipe de Orange, Filipe II prometeu dar
ser apenas uma honra. àquele que o matasse, ou aos herdeiros desse,
Em caso de presunção, a da lei vale mais vinte e cinco mil escudos e título de nobreza; e
que a do homem. A lei francesa considera isto com palavra de rei e como servidor de
fraudulentos todos os atos praticados por um Deus. A nobreza prometida por uma tal ação 1
negociante nos dez dias que precederam sua Tal ação ordenada na qualidade de servidor de
falência: é a presunção da lei4 4 6. A lei romana Deus! Tudo isso confunde as idéias de honra,
de moral e de religião.
4 40 Vede a autêntica sed hodie, no código "De repu- É raro que seja necessário proibir uma coisa
diis. (N. do A.)
4 41 Lei I, ff. De postulando. (N. do A.) que não é má, sob pretexto de alguma perfei­
4 42 Em suas Sentenças, liv. IV, tít. IX. (N. do A.) ção que se imagina4 49
4 43 Este péssimo jogo de palavras é atribuído a É preciso nas leis uma certa candura. Feitas
Harlay, arcebispo de Paris que teria sustentado para punir a maldade dos homens, elas mes-
“que o direito de regalia era vinculado à redondeza
da coroa fechada”.
4 44 Delia Guerra Civile di Francia, pág. 96. (N. do 4 4 7 Liv. IX, Das Leis. (N. do A.)
A.) 448 É a autêntica: Sed cum testator. (N. do A.)
4 4 5 O Chanceler do Asilo, Dávila, ibid. (N. do A.) 4 49 Quiseram ver aí uma alusão ao descrédito vin­
4 4 6 É de 18 de novembro de 1702. (N. dó A.) culado às segundas núpcias.
478 MONTESQUIEU

mas devem ter a maior inocência. Pode-se ver porco, contanto que eles não comessem a pró­
na lei4 50 dos visigodos essa petição ridícula pria carne de porco. Era uma grande cruelda­
pela qual se obrigou os judeus a comerem de: eram submetidos a uma lei contrária à
todas as coisas preparadas com carne de deles; não se deixava que conservassem sua
própria lei, o que podia ser um sinal para
4 50 Liv. XII, tít. II, § 16. (N. do A.) serem reconhecidos.

Capítulo XVII

Maneira prejudicial de fazer leis

Os imperadores romanos manifestavam, todos esses rescritos4 52; não podia suportar
como nossos príncipes, suas vontades através que fossem consideradas leis as respostas de
de decretos e de editos; mas, coisa que nossos Cômodo, de Caracala e de todos esses outros
príncipes não fazem, eles permitiram que os príncipes cheios de imperícia. Justiniano pen­
sou de maneira diferente, e encheu delas a sua
juizes ou os particulares, em suas desavenças, compilação.
os interrogassem por cartas; e suas respostas Eu queria que aqueles que lêem as leis
eram denominadas rescritos. As decretais dos romanas distinguissem bem estas espécies de
papas são, propriamente falando, rescritos. hipóteses dos senatus-consultos, dos plebisci­
Percebe-se que é uma má espécie de legislação. tos, das constituições gerais dos imperadores, e
Os que assim pedem leis são maus guias para de todas as leis baseadas na natureza das coi­
o legislador; os fatos são sempre mal expostos. sas, na fragilidade das mulheres, na fraqueza
Trajano, diz Júlio Capitolino4 51, recusou dos menores e na utilidade pública.
frequentemente fazer rescritos dessa espécie,
4 52 Ibid, cap. XIII. Fuit in jure non incallidus,
para que não se estendesse a todos os casos adeo ut statuisset omnia rescripta veterum princi-
uma só decisão, e frequentemente um favor pum tollere, ut jure, non rescriptis ageretur, nefas
particular. Macrino havia resolvido abolir esse dicens leges videri Commodi et Caracalli et
hominum imperitorum voluntates, quum Trajanus
nunquam libellis responderit, ne ad alias causas
4 51 Vede Júlio Capitolino, In Macrino, cap. XIII. facta praeferrentur, quae ad gratiam composita
(N. do A.) viderentur. (N. do A.)

Capítulo XVIII

Das idéias de uniformidade453

Há certas idéias de uniformidade que se grandeza do gênio em melhor saber em que


apoderam algumas vezes dos grandes espíritos caso é preciso uniformidade, e em que caso são
Çpois impressionaram Carlos Magno), mas que necessárias as diversidades? Na China, os chi­
chocam infalivelmente os pequenos espíritos. neses são governados pelo cerimonial chinês, e
Esses encontram nelas uma espécie de perfei­ os tártaros pelo cerimonial tártaro: no entanto,
ção que reconhecem, porque é impossível não é o povo do mundo que mais tem a tranqui­
descobri-la: os mesmos pesos na fiscalização, lidade como objetivo. Quando os cidadãos se­
as mesmas medidas no comércio, as mesmas guem as leis, que importa que sigam a mesma?
leis no Estado, a mesma religião em toda
parte. Mas isso é sempre conveniente, sem 4 53 Cf. sobre este ponto Benjamin Constant tra­
tando do “Espírito de Conquista”, em seu Cours de
exceção? O mal de mudar é sempre menor do Politique Constitutionnelle, cap. XII (It. II, pág.
que o mal de resignar-se? E não consiste a 170 e seguintes).
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 479

Capitulo XIX

Dos legisladores
Aristóteles queria satisfazer ora a sua inveja blica da Ingalterra, enquanto uma multidão de
de Platão, ora a sua paixão por Alexandre. escritores encontrava a desordem em toda
Platão era revoltado contra a tirania do povo parte em que não via coroa. As leis defron­
de Atenas. Maquiavel estava obcecado pelo tam-se sempre com as paixões e os precon­
ceitos do legislador. Algumas vezes passam
seu ídolo, o Duque de Valentinois. Thomas
através deles e por eles são manchadas; outr-as,
More, que falava mais do que havia lido e do ficam entre eles e a eles se incorporam.
que havia pensado, queria governar todos os
Estados com a simplicidade de uma cidade 4 54 Em sua Utopia. (N: do A.)
grega4 5 4. Arrington4 5 5 não via senão a repú­ 4 5 5 É Harrington em seu Oceana.
LIVRO TRIGÉSIMO
TEORIA DAS LEIS FEUDAIS ENTRE OS FRANCOS
NA RELAÇÃO QUE TÊM COM
O ESTABELECIMENTO DA MONARQUIA
Capitulo I

Das leis feudais

Acredito que haveria uma imperfeição em tendência para a ordem e para a harmonia.
minha obra se deixasse em silêncio um aconte­ Isso exigiría uma obra especial; mas, consi­
cimento ocorrido uma vez no mundo, e que derada a natureza desta, encontrar-se-ão nela
talvez não aconteça nunca mais; se não falasse mais essas leis como as considerei do que
dessas leis que vimos aparecer em determinado como as tratei.
momento em toda a Europa, sem que tivessem É um belo espetáculo o das leis feudais. Um
nada com aquelas que se conheceram até carvalho antigo ergue-se 4 5 6; os olhos vêem de
então; dessas leis que provocaram bens e longe sua folhagem; ele se aproxima, vê-se o
seu tronco; mas não se percebem suas raízes: é
males infinitos; que deixaram direitos quando
preciso cavar a terra para encontrá-las4 5 7.
seu domínio cedeu; que, ao dar a muitas pes­
soas diversos tipos de senhorio sobre a mesma
4 5 6 ... Quantum vertice ad auras
coisa ou sobre as mesmas pessoas, diminuíram Aethereas, tantum radice ad Tartara tendit. (N. do
o peso do senhorio inteiro; que colocaram A.)
diversos limites nos impérios demasiado exten­ 4 5 7 Que se note, ao lado da naturalidade e da bre­
vidade da expressão, o esforço de imparcialidade de
sos; que produziram a regra com uma inclina­ Montesquieu para apreciar uma legislação prescri­
ção para a anarquia, e a anarquia com uma ta.

Capítulo II

Das origens das leis feudais

Os povos que conquistaram o império ro­ costumes dos germanos. Essa obra é curta:
mano haviam saído da Germânia. Embora mas é a obra de Tácito, que abreviava tudo,
poucos autores antigos nos tenham descrito porque tudo via.
seus costumes, temos dois deles que são de Esses dois autores concordam de tal modo
grande importância. César, guerreando contra acerca dos códigos das leis dos povos bárbaros
os germanos, descreve os seus costumes4 58; e que possuímos, que ao ler César e Tácito
é sobre esses costumes que ele pautou algumas encontramos em toda parte esses códigos, e ao
de suas escaramuças4 59. Certas páginas de
ler esses códigos encontramos em toda parte
César sobre este assunto são volumes.
César e Tácito.
Tácito escreveu uma obra especial sobre os
De modo que, se na investigação das leis
4 58 Liv. IV. (N. do A.) feudais vejo-me em um labirinto obscuro,
4 59 Por exemplo, sua retirada da Alemanha (da cheio de caminhos e de voltas, creio que tenho
Germânia). Ibid. (N. do A.) a ponta do fio, e que posso caminhar.
484 MONTESQUIEU

Capítulo III

Da origem da vassaiagem
César4 60 diz “que os germanos não se inte­ gem de seus companheiros; recebem presentes;
ressavam pela agricultura; que a maioria vivia as legaçÕes vêm de todas as partes. Frequente­
de leite, queijo e carne; que ninguém tinha ter­ mente a reputação decide a guerra. No comba­
ras nem limites que lhe fossem próprios; que te, é vergonhoso para o príncipe ser inferior em
os príncipes e os magistrados de cada nação coragem; é vergonhoso para o bando não igua-
davam aos particulares a porção de terra que lar-se ao príncipe em virtude; é uma infâmia
bem queriam, e no lugar em que queriam, e os eterna sobreviver a ele. O compromisso mais
obrigavam no ano seguinte a passá-la adian­ sagrado é o de defendê-lo. Se uma cidade está
te”. Tácito diz 4 61 “que cada príncipe tinha um em paz, os príncipes vão para as que estão em
bando de pessoas qtie se ligavam a ele e o guerra; é por isso que conservam grande nú­
seguiam”. Este autor que, em sua língua, lhes mero de amigos. Estes recebem deles o cavalo
dá um nome que tem relação com sua situa­ de combate e o terrível dardo. As refeições
ção, denomina-os companheiros4 62. Havia pouco delicadas, mas em quantidade, são uma
entre eles uma emulação4 63 singular para espécie de soldo para eles. O príncipe não
obter alguma distinção junto ao príncipe, e mantém suas dádivas senão pelas guerras e
uma mesma emulação entre os príncipes quan­ pelas rapinas. É mais difícil persuadi-los a la­
to ao número e a bravura de seus companhei­ vrar a terra e esperar o outro ano 4 6 4 do que a
ros. “Ê”, acrescenta Tácito, “a dignidade, é o desafiar o inimigo e receber ferimentos; não
poder de estar sempre cercados por uma multi­ adquirirão pelo suor o que podem obter pelo
dão de jovens que se escolheram; é um adorno sangue.”
na paz, é um amparo na guerra. Tornam-se cé­ Assim, entre os germanos, havia vassalos, e
lebres em sua nação e entre os povos vizinhos, não feudos. Não havia feudos, porque os prín­
se superam os outros pelo número e pela cora- cipes não tinham terras para dar; ou, antes, os
feudos eram os cavalos de batalha, as armas,
4 60 Liv. VI da Guerra das Gálias, cap. XXL Táci­
as refeições. Havia vassalos porque havia ho­
to acrescenta: Nulli domus, aut ager, aut aliqua mens fiéis que estavam empenhados por sua
cura; prout ad quem venere aluntur. (De Moribus palavra, que estavam engajados para a guerra,
Germ., cap. XXXI.) (N. do A.) e que prestavam mais ou menos o mesmo ser­
4 61 De Morib. Germ., cap. XIII. (N. do A.) viço que fizeram depois para os feudos.
4 62 Comitês. (N. do A.)
4 63 De Moribus Germ., cap. XIII e XIV. (N. do
A.) 4 64 Isto é, colheita do ano.

Capítulo IV

Continuação do mesmo assunto

César4 6 6 diz que, “quando um príncipe eram louvados pela multidão. Mas, se não
declarava à assembléia que fizera um projeto cumpriam seu compromisso, perdiam a con­
de expedição, e pedia que o seguissem, aqueles fiança pública e eram considerados desertores
que aprovavam o chefe e o empreendimento e traidores”.
levantavam-se e ofereciam seu auxílio. Esses O que diz César e o que dissemos no capí­
tulo precedente é, segundo Tácito, o germe da
4 6 5 De Bello Gallico, liv. VI, cap. XXII. (N. do história da primeira raça.
A.) Não se deve ficar admirado com o fato de os
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 485

reis terem tido sempre, em cada expedição, considerado necessário para a monarquia; e de
novos exércitos a refazer, outros bandos a per­ um rei4 6 7 não poder, mesmo para o dote de
suadir, novas pessoas a engajar; com o fato de suas filhas, dividir esse tesouro sem o consenti­
ter sido necessário, para adquirir muito, des­ mento dos outros réis. O funcionamento da
pender muito; de terem adquirido sem cessar
pela partilha da terra e pelos saques, e dado monarquia dependia de molas que cumpria
sem cessar essas terras e esses saques; de seu sempre reajustar.
domínio ter aumentado continuamente e dimi­
nuir sem cessar; com o fato de um pai, que 4 6 7 Vede Gregório de Tours, liv. VI, sobre o casa­
dava a um de seus filhos um reino, juntar sem­ mento da filha de Chilperico. Childeberto enviou-
pre a ele um tesouro 4*6 6; de o tesouro do rei ser lhe embaixadores para lhe dizer que não devia dar
as cidades do reino de seu pai para a filha, nem seus
tesouros, nem os servos, nem os cavaleiros, nem as
4 6 6 Vede a Vida de Dagoberto. (N. do A.) atrelagens de bois, etc. (N. do A.)

C apítulo V

Da conquista dos francos

Não é verdade que os francos, entrando na que os bárbaros fizeram um regulamento geral
Gália, tenham ocupado todas as terras do país para estabelecer em toda parte a servidão da
para convertê-las em feudos. Algumas pes­ gleba, não é menos falsa que o princípio. Se,
soas4 68 assim pensaram, porque viram no fim numa época em que os feudos eram amovíveis,
da segunda raça quase todas as terras transfor­ todas as terras do reino tivessem sido feudos,
madas em feudos, em subfeudos, ou em depen­ ou dependências de feudos, e todos os homens
dências de um ou de outro; mas isso teve cau­ do reino tivessem sido vassalos ou servos deles
sas particulares que serão explicadas em dependentes, como aquele que tem os bens
seguida. sempre tem também o poder, o rei que hou­
A consequência que se quis tirar disso, a de vesse continuaménte disposto dos feudos, isto
é, da única propriedade, teria tido um poder
4 68 ... algumas pessoas, por exemplo, Boulainvil- tão arbitrário quanto o do sultão da Turquia: o
liers, do qual falaremos mais abaixo, cap. X que subverte toda a história.

Capítulo VI

Dos godos, dos borguinhões e dos francos

As Gálias foram invadidas pelas nações muda em um instante a maneira de pensar e


germânicas. Os visigodos ocuparam a Narbo- agir. Esses povos, na Germânia, cultivavam
nésia e quase todo o Sul; os borguinhões pouco as terras. Parece, segundo Tácito e
César, que se dedicavam muito à vida pastoril:
estabeleceram-se na parte que dá para o Orien­ também as disposições dos códigos das leis
te; e os francos conquistaram quase todo o dos bárbaros giram quase todas em torno de
restante. rebanhos. Roricão4 69, que escrevia história
Não se pode duvidar que esses bárbaros entre os francos, era pastor.
não tenham conservado, em suas conquistas,
os costumes, as inclinações e os usos que ti­ 4 69 Este Roricão era algum monge desconhecido,
nham em seu país, porque uma nação não do qual, sem dúvida, esse é somente o pseudônimo.
486 MONTESQUIEU

Capítulo VII

Das diferentes maneiras


de partilhar as terras

Tendo os godos e os borguinhões penetrado, Os francos não seguiram o mesmo plano.


sob diversos pretextos, no interior do império, Não se encontra nas leis sálicas e ripuárias ne­
os romanos, para deter suas devastações, nhum traço de semelhante divisão de terras.
foram obrigados a prover à subsistência deles. Haviam conquistado, tomaram o que lhes
De início deram-lhes trigo4 7 0; em seguida, aprouve, e só estabeleceram regulamentos
preferiram dar-lhes terras. entre eles mesmos.
Os imperadores ou, em nome deles, os Distingamos, portanto, o procedimento dos
magistrados romanos 4 71 fizeram convênios borguinhões e dos visigodos na Gália, o desses
com eles, sobre a partilha do país, como vemos
nas crônicas e nos códigos dos visigodos4 72 e
mesmos visigodos na Espanha, dos soldados
auxiliares4 7 4 sob o reinado de Augústulo e
dos borguinhões4 73.
Odoacro na Itália, daquele dos francos nas
Gálias, e dos vândalos na África4 7 s. Os pri­
4 70 Vede Zósimo, liv. V, sobre a distribuição do
trigo pedido por Alarico. (N. do A.) meiros concluíram convênios com os antigos
4 71 Burgundiones partem Galliae occupaverunt, habitantes, e, consequentemente, uma divisão
terrasque cum Gallicis senatoribus diviserunt. Crô­ de terras com eles; os segundos não fizeram
nica de Mário, do ano 456. (N. do A.) nada disso.
4 72 Liv. X, tít. I, §§ 8, 9 e 16. (N. do A.)
4 73 Cap. LIV, §§ 1 e 2; e essa divisão subsistia até
no tempo de Luís, o Bonacheirão, como transparece 4 7 4 Vede Procópio, Guerra dos Godos. (N. do A.)
na sua capitular do ano de 829, que foi inserida na 4 7 5 Vede Procópio, Guerra dos Vândalos. (N. do
lei dos borguinhões, tít. LXXIX, § 1. (N. do A.) A.)

Capítulo VIII

Continuação do mesmo assunto

O que da idéia da grande usurpação das ter­ que a metade àqueles que viessem para o país.
ras dos romanos pelos bárbaros é encontrar-se, Todas as terras não haviam, portanto, a princí­
nas leis dos visigodos e dos borguinhões, que pio, sido divididas entre os romanos e os
esses dois povos tiveram os dois terços das ter­ borguinhões.
ras; mas esses dois terços só foram tomados Encontram-se nos textos desses dois regula
em certos bairros, os quais foram destinados a mentos as mesmas expressões; explicam-se
eles.
Diz Gondebaldo4 7 6, na lei dos borguinhões. portanto um pelo outro. E, como não se pode
que seu povo, em seu estabelecimento, recebeu compreender o segundo como divisão univer­
dois terços das terras; e é dito, no segundo sal de terras, não se pode também dar taí signi­
suplemento dessa lei4 7 7, que não se daria mais ficação ao primeiro.
Os francos agiram com a mesma moderação
4 7 8 Licet eo tempore quo populus noster manci- que os borguinhões; não despojaram os roma­
piorum tertiam et duas terrarum partes accepit, etc. nos em toda a extensão de suas conquistas.
Lei dos borguinhões, tít. LIV, § 1. (N. do A.) Que teriam feito de tantas terras? Apossaram-
4 7 7 Ut non amplius a Burgundionibus, qui infra
venerunt, requiratur, quam ad praesens necessitas se daquelas que lhes convinham, e deixaram o
fuerit, medietas terrae. Art. II. (N. do A.) resto.
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 487

Capítulo IX

Justa aplicação da lei dos borguinhões e da


dos visigodos sobre a partilha das terras

É preciso considerar que essas divisões, não terras e de poucos servos; e o grande trabalho
foram feitas por um espírito tirânico, mas com da cultura das terras exigia que o romano
a idéia de prover às necessidades mútuas dos tivesse menos glebas, e maior número de ser­
dois povos que deviam habitar o mesmo país. vos. Os bosques eram divididos pela metade,
A lei dos borguinhões estabelece que cada porque as necessidades a esse respeito eram as
borguinhão seja recebido como hóspede em mesmas.
casa de um romano. Isso está de acordo com Vê-se, no código dos borguinhões480, que
os costumes dos germânicos, que, pela narra­ cada bárbaro foi colocado na casa de cada
romano. A divisão não foi, portanto, geral,
tiva de Tácito4 78, eram o povo da terra que
mas o número de romanos que concederam a
mais amava o exercício da hospitalidade 4 79
divisão foi igual ao dos borguinhões que a
Estipula a lei que o borguinhão tenha os receberam. O romano foi lesado o menos
dois terços das terras, e o terço dos servos. Ela possível481. O borguinhão, guerreiro, caçador
seguia o gênio dos dois povos, e conformava- e pastor, não desdenhou aceitar terrenos incul­
se à maneira pela qual eles procuravam a pró­ tos; o romano conservava as terras mais apro­
pria subsistência. O borguinhão, que fazia pas­ priadas para a agricultura; os rebanhos do
borguinhão adubavam o campo do romano.
tar os rebanhos, tinha necessidade de muitas
480 E no dos visigodos. (N. do A.)
4 7 8 De Morib. Germ. cap. XXL (N. do A.) 481 Colocaram em dúvida esta consideração tão
4 79 “Com a diferença”, observa Laboulaye, “que a otimista; perguntou-se também onde Montesquieu
hospitalidade dos borguinhões era uma hospitali­ havia aprendido que os borguinhões eram um povo
dade forçada e despojava o dono da casa.” pastor.

Capítulo X

Das servidões
a lei dos borguinhões que, quando
Diz482483 particular para os romanos, nem a liberdade e
esses povos se estabeleceram nas Gálias, rece­ a nobreza uma coisa particular para os
beram os dois terços de terras e o terço de ser­ bárbaros.
vos. A servidão da gleba estava portanto esta­ Essa mesma lei diz que48 5* , se um liberto
belecida em toda parte da Gália antes da borguinhão não havia dado uma certa soma a
entrada dos borguinhões 4 8 3. seu dono, nem recebido uma terça porção de
A lei dos borguinhões, ao estatuir sobre as um romano, continuaria sendo considerado da
duas nações, distingue48 4 formalmente, em família de seu dono. O romano proprietário
uma e outra, os nobres, os ingênuos e os ser­ era, portanto, livre, pois não estava na família
vos. A servidão não era portanto uma coisa de outro; era livre, pois sua terça porção era
um sinal de liberdade.
482 Tít. LIV. (N. do A.) Basta abrir as leis sálicas e ripuárias, para
483 Isto é confirmado por todo o título do código ver que os romanos não viviam mais em servi­
De agricolis et censitis et colonis. (N. do A.) dão nem entre os francos nem entre os outros
48 4 Si dentem optimati Burgundioni vel Romano conquistadores da Gália.
nobili excusserit, tít. XXVI, § 1; et si mediocribus
personis ingenuis, tam Burgundionibus quam Ro-
manis. Ibid., § 2. (N. do A.) 48 5 Tít. LVII. (N. do A.
488 MONTESQUIEU

O Conde de Boulainvilliers48 6 falhou no mais luzes do que saber; mas esse saber não
ponto capital de seu sistema; não provou que era desprezível, porque sabia muito bem as
os francos tenham feito um regulamento geral grandes coisas de nossa história e de nossas
que colocasse os romanos numa espécie de leis.
servidão. O Conde de Boulainvilliers e o Abade
Como sua obra foi escrita sem nenhuma Dubos fizeram, cada um, um sistema, dos
arte, e como, nela, ele fala com aquela simpli­ quais um parece ser uma conjuração contra o
cidade, com aquela franqueza, e com aquela Terceiro Estado, e o outro uma conjuração
contra a nobreza. Quando o Sol deu a Fae-
ingenuidade da antiga nobreza de que saiu,
tonte seu carro para conduzir, disse-lhe: “Se
todos são capazes de julgar não só das belas
você subir muito alto, queimará a morada
coisas que diz como também dos erros em que
celeste; se descer muito baixo, reduzirá a cin­
incidiu. Por isso, não o examinarei. Direi ape­
zas a terra. Não vá muito para a direita, cairá
nas que possuía mais espírito do que luzes,
na constelação da Serpente; não vá muito para-
a esquerda, irá para a de Ara: consérve-se
48 6 O Conde de Boulainvilliers, em suas Mémoires entre as duas”48 7.
Historiques sur 1’Ancien Gouvernement de la Fran-
ce, dizia, em sua vantagem, que os nobres franceses
descendiam dos francos, e os outros dos galo-roma- 48 7 São os versos de Ovídio: Metamorfoses, liv. II,
nos. Montesquieu parece partilhar essa opinião. v. 134 e seguintes.

Capítulo XI

Continuação do mesmo assunto

O que deu a idéia de um regulamento geral, que o exército podia encarregar-se; tudo era
feito na época da conquista^ é ter-se visto na transportado em comum, e era dividido pelo
França um número prodigioso de servidões no exército489. Todo o corpo da história prova
começo da terceira raça; e, como não se aper­ que depois do primeiro estabelecimento, isto é,
ceberam da progressão contínua que se fez após as primeiras devastações, eles receberam
dessas servidões, imaginaram numa época obs­ os habitantes em capitulação, e lhes deixaram
cura uma lei geral que nunca existiu. todos os direitos políticos e civis. Era o direito
No começo da primeira raça, viu-se um nú­ das gentes daqueles tempos; arrebatava-se
mero infinito de homens livres, seja entre os tudo na guerra, concedia-se tudo na paz. Se
francos, seja entre os romanos; mas o número isso não tivesse sido assim, como encontra­
de servos aumentou de tal modo, que, no co­ ríamos nós nas leis sálicas e borguinhãs tantas
meço da terceira, todos os trabalhadores e disposições contraditórias à servidão geral dos
quase todos os habitantes das cidades eram homens?
servos488; e, enquanto no começo da primeira Mas, o que a conquista não fez, o próprio
raça havia nas cidades quase a mesma direito das gentes490, que subsistiu à conquis­
administração que entre os romanos, grupos ta, o fez. A resistência, a revolta, o saque das
da burguesia, um senado, os cursos de judica- cidades acarretavam a servidão dos habitantes.
tura, não se encontram mais, no começo da E como, além das guerras que as diferentes
terceira, senão um senhor e servos. nações conquistadoras fizeram entre si, houve
Quando os francos, os borguinhões e os aquela particular entre os francos, as diversas
godos realizavam suas invasões, apossavam-se divisões da monarquia fizeram nascer ininter­
do ouro, do dinheiro, dos móveis, das vestes, ruptamente guerras civis entre os irmãos ou
dos homens, das mulheres, dos meninos, de sobrinhos, nas quais esse direito das gentes

488 Enquanto a Gália estava sob o domínio dos 489 Vede Gregório de Tours, liv. II, cap. XXVII;
romanos, eles formaram grupos particulares: eram Aimoin, liv. I, cap. XII. (N. do A.)
comumente libertos ou descendentes de libertos. (N. 490 Vede as Vidas dos Santos citadas abaixo. (N.
do A.) do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 489

continuou a ser praticado, as servidões torna­ Poderei citar inúmeras autoridades. E como,
ram-se mais gerais na França do que nos ou­ nessas desgraças, as entranhas da caridade se
tros países: e é, creio, uma das causas da dife­ comoveram; como muitos santos bispos,
rença que há entre nossas leis francesas e as da vendo os cativos presos dois a dois, emprega­
Itália e da Espanha, sobre os direitos dos ram o dinheiro das igrejas, e até venderam os
senhores. vasos sagrados para comprar os que eles
A conquista foi só questão de momento; e o pudessem; corno santos monges empenharam-
direito das gentes que nela empregaram provo­ se nisso, é na vida dos santos que se encontram
cou algumas servidões. O uso do mesmo direi­ os maiores esclarecimentos sobre esse assun­
to das gentes, durante muitos séculos, fez com to49 5. Embora se possa censurar aos autores
que as servidões se estendessem prodigiosa­ dessas vidas por terem sido algumas vezes um
mente. pouco crédulos demais sobre as coisas que
Teodorico491, crendo que os povos de Deus certamente fez, uma vez que estavam na
Auvergne não lhe eram fiéis, fala de sua parti­ ordem de seus desígnios, não se deixa de
lha aos francos: “Segui-me, eu vos levarei a extrair grandes luzes sobre os costumes e os
uma região onde tereis ouro, prata, escravos, usos daqueles tempos.
vestes, rebanhos em abundância; e transferireis Quando se lançam os olhos sobre os monu­
todos os homens para o vosso país”. mentos de nossa história e de nossas leis, pare­
Depois da paz 492 que se fez entre Gontrão e ce que tudo é mar, e que até as praias faltam
Chilperico, aqueles que sitiavam Burges, tendo ao mar49 6. Todos esses escritos frios, secos,
tido ordem de voltar, levaram consigo tanto insípidos e duros, é preciso lê-los; é preciso
saque, que não deixaram quase no país nem devorá-los, como a fábula diz que Saturno
homens nem rebanhos. devorava as pedras.
Teodorico, rei da Itália, cujo espírito e cuja Uma infinidade de terras a que os homens li­
política eram sempre de distinguir-se dos ou­ vres davam valor49 7 transformaram-se em ter­
tros reis bárbaros, ao enviar seu exército para ras de mão-morta. Quando um país se viu pri­
a Gália, escreveu ao general493: “Quero que vado de homens livres que o habitavam, os que
sejam seguidas as leis romanas, e que vós tinham muitos servos tomaram grandes territó­
entregueis os escravos fugitivos aos seus rios ou conseguiram sua cessão e aí cons­
donos; o defensor da liberdade não deve favo­ truíram aldeias, como se vê em diversas char­
recer o abandono da servidão. Que os outros tas. Por outro lado, os homens livres que
reis se divirtam com a pilhagem e a destruição cultivavam as artes498 viram-se convertidos
das cidades por eles tomadas: nós queremos em servos que deviam exercê-las; as servidões
vencer de maneira que nossos súditos se lasti­ restituíam às artes e à lavoura o que lhes ha­
mem de ter adquirido tão tarde a sujeição”. É viam tirado.
claro que ele queria tornar odiosos os reis fran­ Tornou-se comum os proprietários de terras
cos e borguinhões, e que fazia alusão ao direito doarem-nas às igrejas para aforarem-nas eles
das gentes desses povos. próprios, acreditando participar assim, pela
Esse direito subsistiu na segunda raça. servidão, da santidade das igrejas.
Tendo o exército de Pepino entrado na Aquitâ-
nia, voltou para a França carregado de um nú­ 49 5 Vede as vidas de Santo Epifânio, de Santo
mero infinito de despojos e de servos, dizem os Eptádio, de São Cesário, de São Fidólio, de São
Anais de Metz49 4. Porciano, de São Trevério, de Santo Eusíquio e de
São Ligério; os milagres de São Juliano. (N. do A.).
49 6 . . .Deerant quoque littora ponto. Ovíd.,
4 91 Gregório de Tours, liv. III, cap. XI. (N. do A.) Metam., liv. I, v. 293. (N. do A.)
492 Ibid., liv. VI, cap. XXXI. (N. do A.) 49 7 Mesmo os colonos não eram todos servos:
493 Carta 43, liv. III, em Cassiodoro. (N. do A.) vede as leis 18 e 23, no código De agricolis et censi-
49 4 No ano de 763. Innumerabilibus spoliis et cap- tis et colonis, e a 20." do mesmo título. (N. do A.)
tivis totus ille exercitus ditatus in Franciam reversus 498 ... que cultivavam as artes, simplesmente:
est. (N. do A.). “que exerciam uma profissão”.
490 MONTESQUIEU

Capítulo XII

Como as terras da partilha dos


bárbaros não pagavam tributos

Os povos simples, pobres, livres, guerreiros, ingênuos. Baseando-se nisso, interpreta a pala­
pastores, que viviam sem indústria, e que não vra latina ingenui por estas palavras: livres de
se ligavam às suas terras senão pelos casebres tributos; expressão de que nos podemos servir
de junco499 seguiam os chefes para conseguir no idioma francês, como se diz livre de preocu­
despojos e não para pagar ou levantar tributos. pações, livre de penas; mas, na língua latina,
A arte da cobrança ilegal de impostos é sem­ ingenui a tributis, libertini a tributis, manu-
pre inventada tarde demais, e quando os ho­ missi tributorum seriam expressões monstruo­
mens começam a desfrutar da felicidade das sas.
outras artes. Partênio, diz Gregório de Tours 50 5, pensou
O tributo 500 passageiro de um quarto de ser condenado à morte pelos francos por lhes
vinho por arpente, que foi uma das medidas haver imposto tributos. O Abade Dubos, pre­
vexatórias de Chilperico e de Fredegondo, só mido por essa passagem, supõe friamente o
concerniu aos romanos. Com efeito, não foram que está em questão: era, diz ele, uma
os francos que destruíram listas dessas taxas, sobrecarga.
mas os eclesiásticos que, naqueles tempos, Vê-se, na lei dos visigodos50 6, que, quando
eram todos romanos501. Esse tributo afligiu um bárbaro ocupava a gleba de um romano, o
principalmente os habitantes das cidades 502 : juiz o obrigava a vendê-la, para que essa gleba
ora, quase todas as cidades eram habitadas por continuasse a ser tributária: portanto, os bár­
romanos. baros não pagavam tributos sobre as ter­
Gregório de Tours 503 conta que, após a ras50 7.
morte de Chilperico, certo juiz foi obrigado a O Abade Dubos 508, necessitando que os
refugiar-se em uma igreja, por ter, sob o reina­ visigodos pagassem tributos 509, abandona o
do desse príncipe, submetido a tributos certos sentido literal e espiritual da lei, e imagina,
francos que, no tempo de Childeberto, eram unicamente porque ele imagina, que houve
ingênuos: Muitos de Francis, qui, tempore entre o estabelecimento dos godos e esta lei um
Childeberti regis, ingenui fuerant, publico tri­ aumento de tributos, que só concernia aos
buto subegit. Portanto, os francos, que não romanos. Mas só é permitido ao Padre Har-
eram servos, não pagavam tributos.
50 5 Liv. III, pág. 514. (N. do A.)
Não há gramático que não empalideça ao 50 6 Judices atquepraepositi terras Romanorum ab
ver como essa passagem foi interpretada pelo illis qui ocupatas tenent, aufèrant, et Romanis sua
Abade Dubos50 4. Observa ele que, naqueles exatione sine aliqua dilatione restituant, ut nihil
tempos, os libertos eram chamados também fisco debeat deperire. Liv. X, tít. I, cap. XIV. (N. do
A-)
50 7 Os vândalos também não o pagavam na Áfri­
499 Vede Gregório de Tours, liv. II. (N. do A.) ca. Procópio, Guerra dos Vândalos, liv. I e II; His­
5 0 0 Ibid., liv. V, cap. XXVIII. (N. do A.) toria Miscella, liv. XVI, pág. 106. Note-se que os
501 Isto aparece em toda a História de Gregório de conquistadores da África eram um composto de
Tours. O mesmo Gregório pergunta a um certo Val- vândalos, alanos e francos. Historia Miscella, liv.
filiaco como pudera alcançar o clericato, ele que era XIV, pág. 94. (N. do A.)
lombardo de origem. Gregório de Tours, liv. VIII, 508 Etablissement des Francs dans les Gaules. Da
cap. XXXVI. (N. do A.) monarquia francesa, tomo III, cap. XIV, pág. 510.
502 Quae conditio universis urbibus per Galliam (N. do A.)
constitutis summopere est adhibita. Vida de Santo 509 Ele se apóia em uma outra lei dos visigodos,
Arídio. (N. do A.) liv. X, tít. I, art. II, que não prova absolutamente
503 Liv. VII. (N. do A.) nada: ela diz apenas que aquele que recebeu uma
50 4 Etablissement de la Monarchie Française, terra de um senhor, sob condição de renda anual,
tomo III, cap. XIV, pág. 515. (N. do A.) deve pagá-la. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 491

douin exercer assim, sobre os fatos, um poder cos; sao coisas que é preciso não confundir.
arbitrário 51 °. Mostrarei, algum dia, numa obra particular,
O Abade Dubos vai buscar 511 no código de que o plano da monarquia dos ostrogodos era
Justiniano 512 leis para provar que os privilé­ inteiramente diferente do plano de todas as que
gios militares entre os romanos eram sujeitos a foram fundadas naqueles tempos pelos outros
tributos: donde conclui que o mesmo acontecia povos bárbaros, e que, longe de se poder dizer
com os feudos ou com os benefícios entre os que uma coisa estava em uso entre os francos,
francos. Mas a opinião segundo a qual nossos porque ela o estava entre os ostrogodos, tem-
feudos deduzem sua origem desse estabeleci­ se, pelo contrário, um justo motivo para pen­
mento dos romanos está hoje proscrita: ela só sar que uma coisa que se praticava entre os
teve crédito nos tempos em que se conhecia a ostrogodos não se praticava entre os francos.
história romana e bem pouco a nossa, e em O que mais custa àqueles cujo espírito flu­
que nossos monumentos antigos estavam en­ tua numa vasta erudição é procurar suas pro­
terrados na poeira. vas onde elas não são estranhas ao assunto, e
O Abade Dubos errou em citar Cassiodoro, encontrar, para falar como os astrônomos, o
e em empregar o que se passava na Itália e na lugar do sol.
parte da Gália submetida a Teodorico, para O Abade Dubos abusa tanto das capitulares
nos ensinar o que estava em uso entre os fran- como da história e das leis dos povos bárba­
ros. Quando quer que os francos tenham pago
510 O Padre Hardouin, jesuíta, lembra-nos Labou- tributos, aplica a homens livres o que só pode
laye, viveu de 1646 a 1729 e fez “uma boa edição de ser compreendido para os servos513; quando
Plínio, o Antigo” e uma coleção de doze volumes de quer falar de sua milícia, aplica aos servos o
Concílios. . . “mas ele pretendia que a maioria das que só podia concernir aos homens livres 51 4.
obras que nos são legadas pela Grécia e por Roma
era de monges do século XIII” e “havia imaginado
principalmente que a Eneida era obra de um benedi­ 513 Etablissement de la Monarchie Française,
tino que quisera celebrar o triunfo da Igreja sobre a tomo III, cap. XIV, pág. 513, em que ele cita o arti­
sinagoga”. go 28 da edição de Pistes. Vede mais abaixo o cap.
511 Tomo III, pág. 511. (N. do A.) XVIII. (N. do A.)
512 Lei 3, tít. LXXIV, liv. XI. (N. do A.) 51 4 Ibid., tomo III, cap. IV, pág. 298. (N. do A.).

Capítulo XIII

Quais eram os tributos dos romanos e dos


gauleses na monarquia dos francos

Eu poderia examinar se os romanos e os explica-nos muito bem a situação em que esta­


gauleses vencidos continuaram a pagar os tri­ vam os homens livres na monarquia dos fran­
butos aos quais estavam sujeitos sob os impe­ cos. Alguns bandos 51 6 de godos ou de iberos,
radores. Mas, para ir mais depressa, conten- fugindo à opressão dos mouros, foram recebi­
tar-me-ei em dizer que, se eles os pagaram no dos nas terras de Luís. A convenção estabele­
começo, logo foram isentos deles, e que esses cida com eles declara que, como os outros ho­
mens livres, eles iriam para o exército com seu
tributos foram transformados num serviço
conde; que, na marcha51 7, fariam a guarda e
militar; e confesso que não concebo como os
as patrulhas sob as ordens do mesmo conde, e
francos que haviam sido, de início, tão amigos
que dariam aos enviados do rei518, e aos
do imposto ilegal puderam, de repente, parecer
tão afastados dele.
Uma capitular51 5 de Luís, o Bonacheirão, 51 6 Pro Hispanis in partibus Aquitaniae, Septima-
niae e Provinciae consistentibus. Ibid. (N. do A.)
51 7 Excubias et explorationes quas wactas dicunt.
515 Do ano de 815, cap. I. O que está de acordo Ibid. (N. do A.)
com a capitular de Carlos, o Calvo, do ano de 844, 51 8 Não eram obrigados a dá-los ao conde. Ibid.,
art. 1 e 2. (N. do A.) art. 5. (N. do A.)
492 MONTESQUIEU

embaixadores que partissem de sua corte ou lá na caísse por si mesma na monarquia dos fran­
fossem ter, cavalos e carretas para os carros; cos; era uma arte muito complicada que não
que fora disso não poderíam ser coagidos a penetrava nem nas idéias nem nos planos des­
pagar outra quota de imposto, e que seriam ses povos simples. Se os tártaros inundassem
tratados como os outros homens livres. hoje a Europa, requerería muito trabalho fazê-
Não se pode dizer que esses fossem novos los compreender o que é, entre nós, um
usos introduzidos nos começos da segunda financeiro 52 3.
raça; isso devia pertencer pelo menos ao meio O autor desconhecido da Vida de Luís, o
ou ao fim da primeira. Uma capitular do 51 9 Bonacheirão 52 4, falando dos condes e dos ou­
ano de 864 diz expressamente que era um cos­ tros oficiais do povo franco que Carlos Magno
tume antigo o de os homens livres fazerem o estabeleceu na Aquitânia, diz que lhes deu a
serviço militar, e pagarem ainda os cavalos e guarda da fronteira, o poder militar e a inten-
os carros de que falamos; tributos que lhes dência dos domínios que pertenciam à Coroa.
eram particulares, e dos quais os que possuíam Isso revela a situação dos rendimentos do prín­
os feudos estavam isentos, como provarei em cipe na segunda raça. O príncipe conservara
seguida. domínios, que valorizava graças aos seus
E não é tudo; havia um regulamento 519
520 que escravos. Mas as convocações, a taxa indivi­
nunca permitia submeter homens livres a tribu­ dual e outros impostos arrecadados no tempo
tos. Quem tinha quatro solares521 era sempre dos imperadores sobre a pessoa ou os bens dos
obrigado a ir para a guerra; quem só tinha três homens livres haviam sido trocados por uma
era juntado a um homem livre que só possuía obrigação de guardar a fronteira ou de ir para
um; este o custeava por um quarto, e ficava em a guerra.
casa dele. Reuniam-se do mesmo modo dois Vê-se, na mesma história 52 5, que'Luís, o
homens livres, os quais tinham cada um dois Bonacheirão, tendo ido encontrar seu pai na
solares; aquele dos dois que ia para a guerra Alemanha, perguntou-lhe como podia ser tão
era custeado da metade pelo que ficava. pobre, ele que era rei: e que Luís respondeu-lhe
E há mais; temos uma infinidade de chartas que era rei só de nome, e que os senhores
em que se concedem privilégios de feudo às retinham quase todos os seus domínios; que
terras ou distritos possuídos por homens livres, Carlos Magno, temendo que este jovem prín­
e de que muito falarei522*em seguida. Isenta­ cipe perdesse a dedicação daqueles senhores,
ram-se essas terras de todos os tributos que se retomasse para si o que doara irrefletida-
sobre elas exigiam os condes e outros oficiais mente, enviou-lhe delegados para que restabe­
do rei; e, como são particularmente enumera­ lecessem as coisas.
dos todos esses tributos, como não se trata, aí, Os bispos, escrevendo a Luís52 6, irmão de
de tributos, é evidente que não os arrecada­ Carlos, o Calvo, diziam-lhe: “Cuidai de vossas
vam. terras, para que não sejais obrigado a viajar
Era natural que a arrecadação ilegal roma­ incessantemente para as casas dos eclesiás­
ticos, e a fatigar seus servos por causa dos car­
ros”. “Fazei de modo”, diziam ainda, “que
519 Ut pagenses Franci, qui caballos habent, cum tenhais de que viver e onde receber embaixa­
suis comitibus in hostem pergant. É proibido aos das.” É evidente que, nessa época, os rendi­
condes privá-los de seus cavalos; ut hostem facere,
et débitos paraveredos secundum antiquam consue- mentos dos reis consistiam em seus domí­
tudinem exsolverepossint. Edito de Pistes, em Balu­ nios 52 7.
ze, pág. 186. (N. do A.)
620 Capitular de Carlos Magno, do ano de 812,
cap. I; Edito de Pistes do ano de 864, art. 27. (N. do 523 ... um financeiro... no sentido de “contrata-
A.) dor-geral”.
521 Quatuor mansos. Parece-me que o que se cha­ 52 4 Em Duchesne, tomo II, pág. 287. (N. do A.)
mava mansus era uma certa porção de terra ligada a
uma herdade em que havia escravos; atesta a capi­ 52 5 Ibid., pág. 89. (N. do A.)
tular do ano de 853, apud Sylvacum, tít. XIV, con­ 52 6 Vede a capitular do ano de 858, art. 14. (N. do
tra aqueles que expulsavam os escravos de seu A.)
solar. (N. do A.) 52 7 Cobravam ainda alguns direitos sobre os rios,
522 Vede a esse respeito o cap. XX deste livro. (N. quando neles havia uma fonte ou uma passagem.
do A.) (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 493

Capítulo XIV

Do que denominavam census


Quando os bárbaros saíram de seu país, qui­ escritos daqueles tempos, pensaram que o que
seram redigir por escrito seus usos; mas, como se chamava census era precisamente o imposto
encontraram dificuldade em escrever as pala­ dos romanos; e tiraram disso a consequência
vras germânicas com letras romanas, fizeram de que nossos reis das duas primeiras raças se
essas leis em latim. haviam colocado no lugar dos imperadores
Na confusão da conquista e de seus progres­ romanos, e não tinham modificado nada em
sos, a maioria das coisas mudou de natureza; sua administração 530. E como certos direitos
foi preciso, para exprimi-las, servir-se de anti­ cobrados na segunda raça foram, por alguns
gas palavras latinas que tinham mais relação acasos e certas modificações, convertidos em
com os novos usos. Assim, ao que podia des­ outros, disso concluíram que esses direitos
pertar a idéia da antiga quota de imposto dos eram o tributo dos romanos531: e como, a par­
romanos528, chamaram de census, tributum; tir dos regulamentos modernos, viram que o
e, quando as coisas não tinham nenhuma rela­ domínio da coroa era absolutamente inaliená­
ção, exprimiam, como se podia, as palavras vel, disseram que esses direitos, que represen­
germânicas com as letras romanas: assim, for­ tavam o tributo dos romanos e que não for­
maram a palavra fredum, da qual falarei mais mam senão uma parte desse domínio, eram
nos capítulos seguintes. puras usurpações. Não discorrerei sobre as ou­
Tendo as palavras census e tributum sido tras consequências.
assim empregadas de uma maneira arbitrária, Transportar para séculos remotos todas as
isso lançou alguma obscuridade na significa­ idéias do século em que se vive é, das fontes de
ção que elas tinham na primeira e na segunda erro, a mais fecunda. A essas pessoas que que­
raça; e autores modernos, que tinham sistemas rem tornar modernos todos os séculos antigos,
particulares 52 9, encontrando essa palavra nos direi o que os sacerdotes do Egito disseram a
Sólon: “ó atenienses! Vós não passais de
crianças” 53 2.
528 O census era uma palavra tão genérica, que se
serviram dela para exprimir as peagens dos rios,
quando havia uma ponte ou uma balsa para a tra­
vessia. Vede a capitular III do ano de 803, edição de 530 Vede a fragilidade dessas razões dc Abade
Baluze, pág. 395, art. I, e a V do ano 819, pág. 616. Dubos, Etablissement de la Monarchie Française,
Dava-se ainda esse nome aos carros fornecidos tomo III, liv. VI, cap. XIV; principalmente a infe­
pelos homens livres ao rei ou aos seus enviados, rência que ele tira de uma passagem de Gregório de
como se depreende da capitular de Carlos, o Calvo, Tours sobre um debate que houve entre sua igreja e
do ano de 865, art. 8. (N. do A.) o Rei Chariberto. (N. do A.)
529 O Abade Dubos e os que o seguiram. (N. do 531 Por exemplo, pelas isenções. (N. do A.)
A.) 532 É Platão que o diz no Timeu.

Capítulo XV

Como o que se denominava census era


arrecadado apenas dos servos, e não dos homens livres
O rei, os eclesiásticos e os senhores arreca­ das leis dos barbaros533 ; com respeito aos
davam tributos regulamentados, cada um
sobre os servos de seus domínios. Provo isso, 533 Lei dos alemães, cap. XXII; a lei dos bávaros,
tít. I, cap. IV, na qual se encontram os regulamentos
com respeito ao rei, pela capitular De Villis; que os eclesiásticos fizeram sobre sua situação. (N.
com respeito aos eclesiásticos, pelos códigos do A.)
494 MONTESQUIEU

senhores, pelos regulamentos que Carlos pequena cabana: de maneira que não podia
Magno estabeleceu a esse respeito 63 4. mais ser pago pelo tributo; e foi ordenado que
Esses tributos eram chamados census: eram se restabelecessem as coisas ao seu primeiro
direitos econômicos e não fiscais; foros unica­ estado: o tributo era, pois, um tributo de
mente privados, e não tributos públicos. escravos.
Digo que o que denominavam census era Segue-se disso ainda que não havia tributo
um tributo arrecadado aos servos. Provo-o por geral na monarquia; e isso é claro por um
uma fórmula de Marculfo, que contém uma grande número de textos. Pois o que signifi­
permissão do rei para tornar-se clérigo, con­ caria esta capitular 5 41: “Queremos que se
tanto que se fosse ingênuo 53 5 e que não se exija o tributo real em todos os lugares em que
fosse inscrito no registro de tributação. Provo- outrora o exigiam legitimamente 5 42”? O que
o ainda por uma incumbência que Carlos querería dizer aquela capitular 5 43 em que Car­
Magno deu a um conde 53 6 que enviou às los Magno ordena aos seus enviados nas
regiões do Saxe; ela contém a isenção dos províncias que façam uma busca exata de
saxões porque esses tinham abraçado o cristia­ todos os tributos que tinham antigamente sido
nismo; e é propriamente uma charta de do domínio do rei 5 4 4, e a outra5 4 5 em que
ingenuidade53 7. Esse príncipe restabeleceu- prescreve os tributos pagos por aqueles de
lhes a primeira liberdade civil538 e isentou-os quem são exigidos 5 4 6? Que significação dar a
de pagar o tributo. Era portanto a mesma esta outra capitular 5 4 7 em que se lê: “Se
coisa ser servo e pagar tributo e ser livre e não alguém 5 48 adquiriu uma terra tributária da
pagá-lo. qual estávamos acostumados a arrecadar tri­
Por uma espécie de carias-patentes do 539 buto”? E a esta outra enfim 5 49 em que Carlos,
mesmo príncipe em tavor dos espanhóis que o Calvo 5 50, fala das terras tributadas cujo
haviam sido recebidos na monarquia, foi proi­ censo havia pertencido ao rei desde a mais re­
bido aos condes exigir deles algum tributo, e mota antiguidade?
tirar-lhes as terras. Sabe-se que os estranhos Notai que ha alguns textos que de início
que chegavam à França eram tratados como parecem contrários ao que eu disse, e que no
servos; e Carlos Magno, querendo que eles fos­ entanto o confirmam. Viram acima que os ho­
sem considerados homens livres, pois queria mens livres na monarquia só eram obrigados a
que tivessem a propriedade de suas terras, fornecer certos carros. A capitular que acabo
proibiu que lhes exigissem o tributo. de citar denomina isto census, e opõe ao tribu­
Uma capitular 5 40 de Carlos, o Calvo, feita to que era pago pelos servos 5 51
em favor dos mesmos espanhóis, quer que
esses sejam tratados como os outros francos, e 541 Capitular III, do ano de 805, art, 20 e 22, inse­
proíbe que se exija deles o tributo; portanto os rida na coletânea de Anzegise, liv. III, art. 15. Isto
homens livres não o pagavam. coincide com aquela de Carlos, o Calvo, do ano de
O artigo 30 do edito de Pistes reforma o 854, apud Attiniacum, art. 6. (N. do A.)
842 Undecumque legitime exigebatur. Ibid. (N. do
abuso pelo qual muitos colonos do rei ou da A.)
Igreja vendiam as terras dependentes de seus 6 43 Do ano de 812, art. 10 e 11, edição de Baluze,
solares aos eclesiásticos ou às pessoas de sua tomo I, pág. 498. (N. do A.)
544 Undecumque antiquitus adpartem regis venire
condição, e não reservavam para si senão uma83 solebant. Capitular do ano de 812, art. 10 e 11. (N.
do A.)
83 • Liv. V das capitulares, cap. CCC11I. (N. do A.) 8 4 8 Do ano de 813, art. 6, edição de Baluze, tomo
83 8 Si ille de capite suo bene ingenuus sit, et in I, pág. 508. (N. do A.)
puletico publico censitus non est. Liv. I, fórmula 84 6 De illis unde censa exigunt. Capitular do ano
XIX. (N. do A.) de 813, art. 6. (N. do A.)
83 8 Do ano de 789, edição das capitulares de Balu- 5 4 7 Liv. IV das capitulares, art. 37, e inserido na
ze, tomo I, pág. 250. (N. do A.) lei dos lombardos. (N. do A.)
83 7 Et ut ista ingenuitatis pagina firma stabilisque 5 48 Si quis terram tributariam, unde census adpar­
consistat. Ibid. (N. do A.) tem nostram exire solebat, susceperit: liv. IV das
838 Pristinaeque libertati donatos, et omni nobis capitulares, art. 37. (N. do A.)
debito censu solutos. Ibid. (N. do A.) 649 Do ano de 805, art. 8. (N. do A.)
839 Praeceptum pro Hispanis, do ano de 812, edi­ 8 80 Unde census adpartem regis exivit antiquitus.
ção de Baluze, tomo I, pág. 500. (N. do A.). Capitular do ano de 805, art. 8. (N. do A.)
840 Do ano de 844, edição de Baluze, tomo II, art. 8 81 Censibus vel paraveredis quos Franci homines
1 e 2, pág. 27. (N. do A.) ad regiam potestatem exsolvere debent. (N. do A.).
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 495

Além do mais, o edito de Pistes 5 52 fala des­ mas sim pagavam censum in capite, e é desse
ses homens francos que deviam pagar o tributo tipo de pessoas que se fala aqui.
É preciso então desfazer-se da idéia de um
real por cabeça e por cabana, e que se haviam
tributo geral e universal, derivado da fiscaliza­
vendido durapte a fome 5 53. O rei quis que eles ção dos romanos, do qual supõe-se terem-se os
fossem resgatados. É 5 5 4 que aqueles que esta­ direitos dos senhores derivado igualmente, por
vam libertos por cartas do rei não adquiriam usurpações O que denominavam tributo na
comumente uma liberdade plena e inteira5 5 5 • monarquia francesa, independentemente do
abuso que se fez dessa palavra, era um direito
particular arrecadado dos servos pelos donos.
5 52 Do ano 864, art. 34, edição de Baluze, pág. Peço ao leitor que me perdoe o mortal abor­
192. (N. do A.)
5 53 De illis Francis hominibus qui censum regium recimento que tantas citações devem-lhe dar:
de suo capite et de suis recellis debeant. Ibid. (N. do seria mais sucinto se não encontrasse sempre
A.) diante de mim o livro do Estabelecimento da
5 5 4 O artigo 28 do mesmo edito explica bem tudo Monarquia Francesa nas Gâlias, do Abade
isso. Faz mesmo uma distinção entre o liberto ro­ Dubos. Nada retarda mais o progresso dos
mano e o liberto franco e vê-se aí que o tributo não
era geral. É preciso lê-lo. (N. do A.) conhecimentos do que uma obra má de um
855 Como se conclui da capitular de Carlos autor célebre, porque cumpre, antes de ensinar,
Magno, do ano 813, já citada. (N. do A.) começar por dissipar o erro.

Capítulo XVI

Dos leudos ou vassalos

Falei desses voluntários que, entre os ger­ mais pela lei política do que pela lei civil, e que
mânicos, seguiam os príncipes em seus cometi- eles eram a sorte 5 62 de um exército e não o
mentos. O mesmo uso foi conservado depois patrimônio de uma família.
da conquista. Tácito designa-os pelo nome de Os bens reservados para os leudos foram
companheiros5 5 6; a lei sálica pelo de homens denominados bens fiscais 5 63, benefícios, hon­
que estão sob a fé do rei 5 5 7; as fórmulas de ras, feudos, nos diversos autores e nos diversos
Marculfo 5 58 pelo de antrustiões do rei 5 59; tempos.
nossos primeiros historiadores pelo de leudos, Não se pode duvidar que de início os feudos
de fiéis 5 60, e os seguintes pelo de vassalos e não eram amovíveis5 6 4. Vê-se, em Gregório de
senhores5 61
Tours 5 6 5, que tiraram de Sunegisilo e de Galo-
Encontra-se nas leis sálicas e ripuárias um
mão tudo o que eles retinham do fisco, e que
número infinito de disposições para os francos,
e somente algumas para os antrustiões. As não lhes deixaram senão o que eles tinham em
disposições sobre esses antrustiões são diferen­ propriedade. Gontrão, ao subir ao trono seu
tes daquelas feitas para os outros francos; sobrinho Childeberto, teve uma conferência
regulamentam aí os bens dos francos, e não secreta com ele, e indicou-lhe aqueles 5 6 6 a
dizem nada dos bens dos antrustiões: o que
decorre de que os bens destes regulamentam-se 5 62 ... a sorte. . . a parte.
5 63 Fiscalia. Vede a fórmula XIV de Marculfo, liv.
I. É dito na vida de São Mauro, dedit fiscum unum;
5 5 6 Comitês. (De Mor. Germ., cap. XIII.) (N. do e nos Anais de Metz, do ano de 747, dedit UH comi-
A.) tatus etfiscos plurimos. Os bens destinados à manu­
6 5 7 Qui sunt in truste regis, tít. XLIV, art. 4. (N. tenção da família real eram denominados regalia.
do A.) (N. do A.)
6 5 8 Liv. I, fór. XVIII. (N. do A.) 584 Vede o livro I, tít. I, dos feudos; e Cujácio
5 59 Da palavra treu, que significa/Ie/ para os ale­ sobre este livro. (N. do A.)
mães, e para os ingleses true, verdadeiro. (N. do A.) 5 6 5 Liv. IX, cap. XXXVIII. (N. do A.)
5 80 Leudes.fideles. (N. do A.) 8 6 6 Quos honoraret muneribus, quos ab honore
5 61 Vassali, seniores. (N. do A.) repelleret. Ibid., liv. VII. ÍN. do A.)
496 MONTESQUIEU

quem ele devia dar feudos, e aqueles de quem ram o livro dos feudos 5 69 ensinam-nos que, de
devia tirá-los. Em uma fórmula de Marcul­ início, os senhores puderam roubá-los à vonta­
fo5 6 7*, o rei dá em troca não somente benefí­ de c que, em seguida, eles lhes asseguraram
cios que seu fisco retinha, mas ainda aqueles por um ano 5 70, dando-lhes depois para toda a
que outro havia retido. A lei dos lombardos vida5 71.
opõe os benefícios à propriedade 5 68. Os histo­
riadores, as fórmulas, os códigos dos diferentes 5 69 Feudorum, liv. I, tít. I. (N. do A.)
povos bárbaros, todos os monumentos que nos 5 70 Era uma espécie de feudo precário que o se­
restam, são unânimes. Enfim, os que escreve- nhor renovava ou não renovava no ano seguinte,
como assinalou Cujácio. (N. do A.)
5 71 “O Liber Feudorum ”, diz Laboulaye, “é uma
5 6 7 Vel reliquis quibuscumque beneficiis, quod- autoridade pouco sólida para a história do direito
cumque ille, vel fiscus noster, in ipsis locis tenuisse feudal na França; foi escrito na Itália, tendo em
noscitur. Liv. I, fór. XXX. (N. do A.) vista os costumes lombardos, e é obra de dois juris­
5 68 Liv. III, tít. VIII, § 3. (N. do A.) consultos historiadores mais do que medíocres.”

Capítulo XVII

Do serviço militar dos homens livres


Duas espécies de pessoas eram retidas no decretos desses príncipes 5 7 5. Semelhante fis­
serviço militar: os leudos vassalos ou subvas- calização observa-se ainda hoje na Inglaterra.
salos, que a isso estavam obrigados em conse­ Como os condes levavam os homens livres
quência de seu feudo; e os homens livres, fran­ para a guerra, os leudos também levavam seus
cos, romanos e gauleses, que serviam o conde e vassalos ou subvassalos; e os bispos, abades
eram comandados por ele e por seus oficiais. ou seus procuradores 5 7 6 levavam os respec­
Denominavam-se homens livres os que, de tivos vassalos 5 7 7.
um lado, não tinham benefícios ou feudos, e Os bispos ficavam bastante embaraçados:
que, de outro lado, não estavam submetidos à não convinha que eles próprios realizassem
servidão da gleba; as terras que eles possuíam tais ações 5 78. Pediram a Carlos Magno que
eram o que se denominava terras alodiais. não mais os obrigasse a ir para a guerra; e,
Os condes reuniam os homens livres e os quando o conseguiram, queixaram-se de que
levavam à guerra 5 72 : tinham como subal­ isso lhes fazia perder a consideração pública: e
ternos oficiais aos quais chamavam vicá- esse príncipe foi obrigado a justificar suas
rios 5 73 ; e, como todos os homens livres esta­ intenções a esse respeito. Como quer que seja,
vam divididos em centenas, que formavam o não vejo como, nos tempos em que eles não
que se denominava burgo, os condes tinham iam mais à guerra, seus vassalos eram a ela
ainda sob sua ordem oficiais denominados levados pelos condes; vê-se ao contrário que os
centuriões, que levavam os homens livres do reis ou os bispos escolhiam um dos fiéis para
burgo, ou suas centúrias, para a guerra 5 7 4. conduzir os demais 5 7 9.
Essa divisão por centúrias é posterior ao Em uma capitular de Luís, o Bonachei-
estabelecimento dos francos nas Gálias. Ela
foi feita por Clotário e Childeberto, com a s 7 5 Concedidos no ano 595, art. I. Vede as capitu-
intenção de obrigar cada distrito a responder lares, edição de Baluze, pág. 20. Esses regulamentos
pelos roubos que se faziam aí: vê-se isso nos foram feitos, sem dúvida, de acordo. (N. do A.)
5 7 6 Advocati. (N. do A.)
5 7 7 Capitular de Carlos Magno, do ano 812, art. 1
5 72 Vede a capitular de Carlos Magno, do ano e 5, edição de Baluze, tomo I, pág. 490. (N. do A.)
812, art. 3 e 4, edição de Baluze, tomo I, pág. 491, 5 78 Vede a capitular do ano 803, outorgada em
e o edito de Pistes, do ano 864, art. 26, tomo II, pág. Worms, edição de Baluze, pág. 408 e 410. (N. do
186. (N. do A) A.)
5 73 Et habebat unusquisque comes vicarios et 5 79 Capitular de Worms, do ano 803, edição de
centenários secum. Liv II das capitulares, art. 28. Baluze, pág. 409, e o concilio do ano 845, sob Car­
(N. do A.) los, o Calvo, in Verno Palatio, edição de Baluze,
5 7 4 Eram denominados compagenses. (N. do A.) tomo II, pág. 17, art. 8. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 497

rão 580, o rei distingue três espécies de vassa­ Magno quer dizer que quem não tivesse terra
los: os do rei, os dos bispos, os do conde. Os própria entrava na milícia do conde e que
vassalos de um leudo581 ou senhor não eram quem possuísse um benefício do senhor partia
levados para a guerra pelo conde, a não ser com ele.
quando algum emprego na casa do rei impe­ Contudo, o Abade Dubos 58 4 pretende que,
disse os leudos de conduzi-los eles mesmos. quando se fala, nas capitulares, dos homens
Mas quem levava os leudos à guerra? Não que dependiam de um senhor particular, trata-
se pode pensar que fosse o rei, o qual ficava se somente dos servos: e baseia-se na lei dos
sempre à testa de seus fiéis. É por isso que, na$ visigodos, e na prática desse povo. Seria prefe­
capitulares, vê-se sempre uma oposição entre rível fundamentar-se nas próprias capitulares.
os vassalos do rei e os dos bispos 582. Nossos A que acabo de citar diz formalmente o
reis, corajosos, altivos e magnânimos, não contrário. O tratado entre Carlos, o Calvo, e
estavam no exército para poder manter-se à seus irmãos fala igualmente dos homens livres,
testa dessa milícia eclesiástica; não eram essas que podem escolher à vontade um senhor ou o
pessoas que eles escolhiam para vencer ou rei: e essa disposição está em conformidade
morrer com eles. com muitas outras.
Mas esses leudos levavam igualmente seus Pode-se dizer, pcrtanto, que havia três espé­
vassalos e subvassalos; e isto bem se revela cies de milícias: a dos leudos ou fiéis do rei,
nessa capitular 583, onde Carlos Magno orde­ que tinham, por seu turno, outros fiéis sob sua
na que todo homem livre que possuir quatro dependência; a dos bispos ou outros eclesiás­
solares, quer em sua propriedade, quer no ticos, com seus vassalos; e finalmente a do
benefício de alguém, dirija-se contra o inimigo, conde, que conduzia os homens livres.
ou siga seu senhor. É evidente que Carlos Não digo que os vassalos não pudessem ser
submetidos ao conde, como os que têm um
comando particular dependem de outro que
580 Capitulare quintum, anni 819, art. 27, edição tem um comando mais geral.
de Baluze, pág. 618. (N. do A.)
581 De Vassis dominicis qui adhuc intra casam Vê-se mesmo que o conde e os enviados do
serviunt, et tamen beneficia habere noscuntur, statu- rei podiam obrigá-los a pagar o bando, isto é,
tum est ut quicumque ex eis cum domino imperatore uma multa, quando não houvessem cumprido
domi remanserint, vassalos suos casatos secum nom os compromissos de seu feudo.
retineant; sed cum comitê, cujus pagenses sunt, ire
permittant. Capitular XI, do ano 812, art. 7, edição Da mesma maneira, se os vassalos do rei
de Baluze, tomo I, pág. 494. (N. do A.) praticavam rapinas58 5, eram submetidos à
582 Capitular I do ano 812, art. 5. De hominibus punição do conde, se não preferissem subme­
nostris, et episcoporum et abbatum qui vel benefi­ ter-se à do rei.
cia, vel talia própria habent, etc. Edição de Baluze,
tomo I, pág. 490. (N. do A.)
583 Do ano 812, cap. I, edição de Baluze, pág. 490. 58 4 Tomo III, liv. VI, cap. IV, pág. 299. Etablis-
Ut omnis homo liber qui quatuor mansos vestitos de sement de la Monarchie Française. (N. do A.)
proprio suo, sive de alicujus beneficio, habet, ipse se 58 5 Capitular do ano 882, art. 11, apud Vernis
praeparet, et ipse in hostem pergat, sive cum seniore Palatium, edição de Baluze, tomo II, pág. 17. ÍN. do
suo. (N. do A.) A.)

Capítulo XVIII

Do duplo serviço
Era um princípio fundamental da monar­ Luís, o Bonacheirão, do ano 815, faz que
quia que os que estavam sob a autoridade mili­ andem pari passu o poder militar do conde e
tar de alguém estavam consequentemente sob sua jurisdição civil sobre os homens livres;
sua jurisdição civil; também a capitular 58 6 de
igualmente os pleitos 58 7 do conde, que condu­
58 6 Art. 1 e 2; e o concilio In Verno Palatio, do
zia à guerra os homens livres, eram denomi-
ano 845, art. 8, edição de Baluze, tomo II, pág. 17.
(N. do A.) 58 7 Pleitos ou audiência. (N. do Á.)
498 MONTESQUIEU

nados pleitos dos homens livres 588, do que eram igualmente oficiais militares e civis59 4; a
resultou sem dúvida essa máxima segundo a única diferença é que o duque tinha sob sua
qual apenas nos pleitos do conde, e não nos de autoridade muitos condes, embora tenha havi­
seus oficiais, é que se podia julgar as questões do condes que não estiveram submetidos a ne­
sobre a liberdade. Também o conde não con­ nhum duque, tal como nos ensina Fredegá-
duzia à guerra os vassalos dos bispos ou aba­ rio 59 5.
des589, porque eles não estavam sob sua juris­ Julgar-se-á, talvez, que o governo dos fran­
dição civil; do mesmo modo, não conduzia ele cos era então muito rígido, pois os mesmos ofi­
os subvassalos dos leudos; por isso, o glossá­ ciais tinham, ao mesmo tempo, sobre os súdi­
rio 5 9 0 das leis inglesas nos diz 5 91 que aqueles tos, a autoridade militar e a autoridade civil, e
que òs saxões denominavam copies foram cha­ mesmo a autoridade fiscal: coisa que disse, nos
mados pelos normandos de condes, compa­ livros precedentes, ser uma das marcas distin­
nheiros, porque partilhavam com o rei as mul­ tivas do despotismo.
tas judiciárias: igualmente vemos, em todos os Mas não se deve deduzir daí que os condes
tempos, que a obrigação de todo vassalo para julgassem sozinhos, e fizessem justiça como os
com 592 seu senhor foi a de portar armas e a de paxás a fazem na Turquia59 6; reuniam, para
julgar seus pares em sua corte 593. julgar as questões, espécies de audiências ou
Uma das razões que vinculavam assim o sessões, para as quais eram convocados os
direito de justiça ao de conduzir à guerra era a notáveis 59 7.
de que aquele que levava à guerra fazia, ao Para que se possa bem entender o que con­
mesmo tempo, pagar os direitos do fisco, que cerne aos julgamentos, nas fórmulas, nas leis
consistiam em obrigações de transporte devi­ dos bárbaros e nas capitulares, direi que as
das pelos homens livres, e, em geral, em certos funções do conde, do gravião e do centurião
direitos judiciários dos quais falarei a seguir. eram as mesmas 598; que os juizes, os rachim-
Os senhores tiveram o direito de fazer justi­ burgos e os escabinos eram, sob nomes dife­
ça em seu feudo, pelo mesmo princípio que rentes, as mesmas pessoas. Eram adjuntos do
delegou aos condes o direito de administrar conde e comumente havia sete deles: e, como
justiça em seus condados; e, para bem dizer, os não era necessário menos de doze pessoas para
condados nas modificações ocorridas nos julgar599, o conde preenchia o número com os
diversos tempos seguiram sempre as modifica­ notáveis600.
ções sobrevindas nos feudos; uns e outros Mas quem quer que tivesse a jurisdição, o
eram governados no mesmo plano e com as rei, o conde, o gravião, o centurião, os senho­
mesmas idéias. Em uma palavra, os condes em res, os eclesiásticos, nenhum deles julgava
seus condados eram leudos; os leudos em suas sozinho; e esse uso, que tinha sua origem nas
senhorias eram condes. florestas da Germânia, manteve-se ainda quan-
Não. tiveram idéias justas os que conside­
raram os condes como oficiais de justiça, e os 59 4 Vede a fórmula VII de Marculfo, liv. I, que
duques como oficiais militares. Uns e outros contém as cartas concedidas a um duque, patrício
ou conde, e que lhes concedem a jurisdição civil e a
administração fiscal. (N. do A.)
588 Capitulares, liv. ÍV da coleção de Anzegise, 59 6 Crônica, cap. LXXVIII, do ano 636. (N. do
art. 57; e a capitular V de Luís, o Bonacheirão, do A.)
ano 819, art. 14, edição de Baluze, tomo I, pág. 615. 59 6 Vede Gregório de Tours, liv. V, ad annum 580.
ÇN.doA.) (N. do A.)
589 Vede a esse respeito, pág. 457, a nota 5; e pág. 59 7 Mallum. (N. do A.)
458, a nota 1. (N. do A.) 598 Acrescentai aqui o que eu disse no liv.
590 O qual se encontra na coletânea de Guilherme XXVIII, cap. XXVIII; e no liv. XXXI, cap. VIII.
Lambardo, De Priscis Anglorum Legibus. (N. do (N. do A.)
A.) 599 Vede principalmente as capitulares de Luís, o
591 Na palavra satrapia. (N. do A.) Bonacheirão, acrescentadas à lei sálica, art. 2; e a
592 As Cortes de Jerusalém, cap. CCXXI e CCX- fórmula dos julgamentos, outorgada por Ducange,
XII, explicam bem isto. (N. do A.) no verbete boni homines. (N. do A.)
593 Os advogados da Igreja (advocati) estavam 600 Per bonos homines. Algumas vezes, havia só
igualmente à frente de seus pleitos e de sua milícia. notáveis. Vede o Apêndice àsfórmulas de Marculfo,
(N. do A.) cap. LI. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 499

do os feudos adquiriram nova forma. tas ocasiões públicas 601; e, quanto aos direi­
Quanto ao poder fiscal, ele era tal, que o tos judiciários, havia leis que preveniam as
malversações 60 2.
conde quase não podia abusar dele. Os direitos
do príncipe com relação aos homens livres 601 E algumas obrigações sobre os rios a que me
referi. (N. do A.)
eram tão simples, que não consistiam, como 602 Vede a lei dos ripuários, tít. LXXXIX; e a lei
disse, senão em certos carros exigidos em cer­ dos lombardos, liv. II, tít. LII, § 9. (N. do A.)

Capítulo XIX

Das composições entre os povos bárbaros


Como é impossível ir pouco além em nosso lugar em que se faziam os julgamentos 60 5.
direito político, se não se conhecerem perfeita- Os compiladores das leis sálicas citam um
mente as leis e os costumes dos povos germa­ antigo uso dos francos, pelo qual aquele que
nos, deter-me-ei por um momento, a fim de exumara um cadáver a fim de despojá-lo era
fazer a pesquisa desses costumes e dessas leis. banido da sociedade dos homens, até que os
Parece, segundo Tácito, que os germanos
parentes consentissem em que voltasse 60 6; e,
conheciam apenas dois crimes capitais: enfor­
como antes desse tempo era proibido a toda
cavam os traidores e afogavam os covardes;
gente, e mesmo à sua esposa, dar-lhe pão ou
eram entre eles os únicos crimes que seriam
recebê-lo em casa, tal homem estava em rela­
públicos. Quando um homem causava prejuízo
ção aos outros e os outros estavam em relação
a outro, os parentes da pessoa ofendida ou le­
a ele no estado natural, até que esse estado ces­
sada entravam na querela603604 *;e o ódio aplaca-
sasse pela composição.
va-se com uma satisfação. Essa satisfação se
Excetuado isso, vê-se que os sábios das
dava àquele que fora ofendido, se pudesse rece­
diversas nações bárbaras pensaram em fazer
bê-la; e aos parentes, se lhes era comum a injú­
por si mesmos o que era muito demorado e
ria ou o prejuízo; ou se, pela morte daquele
perigoso de esperar da convenção recíproca
que fora ofendido ou lesado, lhes fosse desti­ das partes. Cuidaram de pôr um preço justo à
nada a satisfação. composição que devia receber aquele a quem
Da maneira como fala Tácito, tais satisfa­
ções se faziam por convenção recíproca entre se causara qualquer prejuízo ou injúria. Todas
as partes: daí por que, nos códigos dos povos essas leis bárbaras apresentam a esse respeito
bárbaros, tais satisfações se chamam composi­ uma admirável precisão: distinguem-se os
ções. casos com finura, pesam-se as circunstân­
Encontro unicamente a lei dos frísios que cias 60 7, a lei coloca-se no lugar daquele que é
deixava o povo na situação em que cada famí­ ofendido, e pede para ele a satisfação que, num
lia inimiga se achava, por assim dizer, no esta­ momento de sangue-frio, ele mesmo teria
do natural 60 4; e em que, sem ser coibida por pedido.
alguma lei política ou civil, ela podia executar Foi mediante a elaboração de tais leis que
a vingança a seu talante, até que ficasse satis­ os povos germânicos saíram desse estado natu­
feita. Mesmo essa lei foi moderada: fixou-se ral em que se encontravam, ao que parece,
que aquele cuja vida se exigia teria paz em ainda no tempo de Tácito.
casa, tê-la-ia ao ir à igreja e ao voltar, e no Rotaris declarou, na lei dos lombardos, que
aumentara as composições do costume antigo
para os ferimentos, a fim de que, sendo satis-
603 Suscipere tam inimicitias, seu patris, seu pro-
pinqui, quam amicitias, necesse est: nec implaca-
. biles durant; luitur enitn etiam homicidium certo 60 5 Addito sapientium, tít. I, § 1. (N. do A.)
armentorum ac pecorum numero, recipitque satis- 60 6 Lei sálica, tít. LVIII, § 1; tít. XVII, § 3. (N. do
factionem universa domus. Tácito, De Morib. A.)
Germ., cap. XXI. (N. do A.) 60 7 Vede principalmente os títulos III-VII da lei
604 Vede esta lei, tít. II, sobre os assassínios; e o sálica, que dizem respeito, aos roubos de animais.
aditamento de Wulemar sobre os roubos. (N. do A.) (N. do A.)
500 MONTESQUIEU

feito o ferido, pudessem cessar as inimiza­ com tão pouco dinheiro, houve entre eles tan­
des 608. Com efeito, tendo os lombardos, povo tas penas pecuniárias.
pobre, se enriquecido com a conquista da Itá­ Essas leis cogitaram de marcar com preci­
lia, as composições antigas tomavam-se ínfi­ são a diferença dos prejuízos, das injúrias, dos
mas, e não mais se faziam as reconciliações. crimes, a fim de que cada um conhecesse ao
Não duvido que esta consideração tenha obri­ certo até que ponto era lesado ou ofendido;
gado os outros chefes das nações conquista- que soubesse exatamente a reparação que
doras a constituir os diversos códigos de leis devia receber e, sobretudo, que não devia rece­
de que dispomos hoje. ber mais do que isso.
A principal composição era aquela que o
assassino devia pagar aos parentes do morto. Deste ponto de vista, concebe-se que aquele
A diferença de condições implicava uma dife­ que se vingasse após ter recebido a reparação
rença nas composições: assim, a composição cometia um crime. Esse crime não continha
pela morte de um adalingo 609, nas leis dos menos uma ofensa pública do que uma ofensa
anglos610, era de seiscentos soidos, de duzen­ particular; constituía um desprezo para com a
tos pela de um homem livre, de trinta pela de própria lei. E foi tal crime que os legislado­
um servo. A importância da composição esta­ res61 5 não deixaram de punir.
belecida pela cabeça de um homem era, pois, Havia outro crime que foi, principalmente,
uma de suas grandes prerrogativas; pois, além considerado perigoso, quando esses povos per­
da distinção que fazia de sua pessoa, determi­ deram no governo civil alguma coisa de seu
nava para ele, entre nações violentas, uma espírito de independência 61 6 e quando os reis
maior segurança. cogitaram de introduzir no Estado uma melhor
A lei dos bávaros faz-nos sentir isso 611: ela polícia; esse crime consistia em não querer de
dá o nome das famílias bávaras que recebiam nenhum modo dar ou não querer receber a
uma composição dobrada, porque eram as pri- satisfação. Em diversos códigos das leis dos
meiraç após os Agilolfingos612. Os Agilol- bárbaros vimos que os legisladores 61 7 obriga­
fingos eram da raça ducal e o duque era esco­ vam a isso. Com efeito, quem se recusasse a
lhido entre eles; tinham uma composição receber a reparação desejava manter seu direi­
quádrupla. A composição para o duque exce­ to de vingança; quem se recusasse a fazê-la
dia de um terço a que era fixada para os abandonava ao ofendido seu direito de vingan­
Agilolfingos. “Porque é duque”, diz a lei, “ren- ça; e isso é que as pessoas prudentes haviam
de-se-lhe mais honra do que a seus parentes.” reformado nas instituições dos germanos, que
Todas essas composições eram estabele­ convidavam à reparação, mas não a obriga­
cidas a dinheiro. Mas como esses povos, sobre­ vam.
tudo enquanto se mantiveram na Germânia, Falei de um texto da lei sálica, em que o
quase não dispunham de dinheiro, podia-se dar legislador deixava à liberdade do ofendido
gado, trigo, móveis, armas, cães, aves de caça, receber ou não a reparação; é essa lei que proi-
. Amiúde a lei fixava mesmo o
terras etc. 613*
valor dessas coisas 61 4; o que explica como, 81 s Vede a lei dos lombardos, liv. I, tít. XXV; §
21; ibid., liv. I, tít. IX, §§ 8 e 34; ibid., § 38; a capi­
608 Liv. I, tít. VII, § 15. (N. do A.) tular de Carlos Magno, do ano 802, cap. XXXII,
609 Adalingo, nobre. contendo uma instrução dada àqueles que enviava
610 Vede a lei dos anglos, tít. I, §§ 1, 2,4; ibid., tít. às províncias. (N. do A.)
V, § 6; a lei dos bávaros, tít. I, cap. VIII e IX; e a lei 81 8 Vede em Gregório de Tours, liv. VII, cap.
dos frisios, tít. XV. (N. do A.) XLVII, o pormenor de. um processo, em que uma
811 Tít. II, cap. XX. (N. do A.) das partes perde a metade da reparação que fora
812 Hozidra, Ozza, Sagana, Habilingua, Aniena. atribuída, por ter feito justiça com as próprias
Ibid. (N. do-A.) mãos, em lugar de receber a reparação, ainda que
813 Assim, a lei de Ina estimava a vida numa certa sofresse alguns excessos depois. (N. do A.)
soma de dinheiro, ou numa certa porção de terra. 81 7 Vede a lei dos saxões, cap. III, § 4; a lei dos
Leges Inae regis, tít. De villico regio. De priscis lombardos, liv. I, tít. XXXVII, §§ 1 e 2; e a lei dos
Anglorum legibus. Cambridge, 1644. (N. do A.) alemães, tít. XLV, §§ 1 e 2. Esta última lei permitia
81 4 Vede a lei dos saxões, que faz mesmo esta fixa­ que se fizesse justiça com as próprias mãos imedia­
ção para vários povos, cap. XVIII. Vede também a tamente e no primeiro impulso. Vede também as
lei dos ripuários, tít. XXXVI, § 11; a lei dos báva­ capitulares de Carlos Magno, do ano 779, cap.
ros, tít. I, §§ 10 e 11. Si aurum non habet, donet XXII; do ano 802, cap. XXXII; e a do mesmo, do
aliam pecuniam, mancipia, terram etc. (N. do A.) ano 805, cap. V. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 501

bia a quem despojara um cadáver o convívio punia os parentes que procurassem vingança
dos homens61 8, até que os parentes, aceitando por isso.
a reparação, consentissem que poderia viver Não é raro encontrar nos códigos das leis
entre os homens. O respeito pelas coisas santas dos bárbaros composições por ações involun­
fez com que os que redigiram as leis sálicas tárias. A lei dos lombardos é quase sempre
não tocassem de modo algum no uso antigo. judiciosa; ordenava que 620, em tal caso, se
Teria sido contrário à justiça conceder uma fizesse a composição segundo a generosidade,
reparação aos parentes de um ladrão morto no e que os parentes não pudessem procurar
ato do roubo, ou aos de uma mulher que fora vingança.
despedida após uma separação por crime de
Clotário fez um decreto muito sábio; proi­
adultério. A lei dos bávaros não estabelecia
biu que quem fosse roubado recebesse sua
composição para casos semelhantes619 e
composição em segredo621 e sem a ordem do
juiz. Logo veremos o motivo de tal lei.
618 Os compiladores das leis dos ripuários pare­
cem ter modificado isso. Vede o tít. LXXXV de tais
leis. (N. do A.) 620 Liv. I, tít. IX, §4. (N. do A.)
619 Vede o decreto de Tassilon, De popularibus 621 Pactus pro tenore pacis inter Childebertum et
legibus, art. 3, 4, 10, 16, 19; a lei dos anglos, tít. Clotarium, anno 593; <: Decretio Clotarii II regis,
VII, § 4. (N. do A.) circa annum 595, cap. XI. (N. do A.).

Capítulo XX

Do que se chamou depois a justiça dos senhores


Além da composição que se devia pagar.aos proteção contra vingança. Assim, na lei dos
parentes pelos assassínios, danos e injúrias, lombardos 62 4, se alguém matava por acaso
devia-se ainda pagar certo direito que os códi­ um homem livre, pagava o valor do homem
gos das leis dos bárbaros chamam fredum 622623 morto, sem o fredum; porque, tendo-o matado
Falarei muito disso; e, para dar uma idéia, involuntariamente, não era o caso de terem os
direi que se trata da recompensa da proteção parentes direito de vingança. Assim, na lei dos
concedida contra o direito de vingança. Ainda ■ripuários 62 5, quando um homem era morto
hoje, na língua sueca fred significa a paz 62 3. por um pedaço de madeira ou um instrumento
Entre essas nações violentas, administrar a feito pela mão do homem, o instrumento ou a
madeira eram considerados culpados e os
justiça nada mais era que conceder, àquele que
parentes tomavam-nos para seu uso, sem
fizera uma ofensa, sua proteção contra a vin­
gança daquele que a sofrerá, e obrigar este últi­ poder exigir o fredum.
Da mesma forma, quando um animal mata­
mo a receber a satisfação que lhe era devida;
va um homem, a mesma 62 6 lei fixava uma
de sorte que, entre os germanos, diferente-
reparação sem o fredum, porque os parentes
mente de todos os outros povos, a justiça se
do morto não eram ofendidos.
fazia para proteger o criminoso contra quem
Finalmente, pela lei sálica 62 7, uma criança
havia ofendido. que cometesse alguma falta antes da idade dos
Os códigos das leis dos bárbaros dão-nos os doze anos pagava a composição sem o fredum;
casos em que deviam ser exigidos esses freda. como ainda não podia carregar armas, não se
Naqueles em que os parentes não podiam vin- enquadrava no caso em que a parte lesada ou
gar-se, não se dão freda; com efeito, onde não seus parentes pudessem exigir vingança.
havia vingança, não podia haver direito de
62 4 Liv. I, tít. IX, § 17, ed. de Lindembrock. (N. do
622 Quando a lei não o fixava, era ordinariamente A.)
o terço do que se dava para a composição, como se 62 5 Tít. LXX. (N. do A.)
nos afigura na lei dos ripuários, cap. XXXIX, que é 62 6 Tít. XLVI. Vede também a lei dos lombardos,
explicada pela terceira capitular do ano 813, edição liv. I, Cap. XXI, § 3, ed. de Lindembrock; Si cabal-
de Baluze, tomo I, pág. 512. (N. do A.) lus cum pede etc. (N. do A.)
623 Paralelamente Friede, em alemão. 62 7 Tít. XXVII, § 6. (N. do A.)
502 MONTESQUIEU
Era o culpado que pagava o fredum, para a privilégios dos feudos em favor das igrejas 633,
paz e a segurança que os excessos que come­ que os feudos tinham esse direito. Podemos ver
tera lhe haviam feito perder, e que podia reco­ isso também por uma infinidade de chartas634
brar mediante a proteção; mas uma criança que contêm uma proibição aos juizes ou ofi­
não perdia essa segurança; não era um homem ciais do rei de entrar no território, a fim de aí
e não podia ser posta para fora da sociedade cumprirem qualquer ato de justiça, e exigir
dos homens. qualquer emolumento de justiça que fosse.
Esse fredum era um direito local concedido Desde que os juizes reais nada mais podiam
àquele que julgava628 no território. A lei dos exigir num distrito, não entravam mais nele; e
ripuários629 proibia, no entanto, que ele pró­ as pessoas a quem restava esse distrito cum­
prio o exigisse; ordenava ela que a parte que priam as funções que os primeiros haviam
obtivera ganho de causa o recebesse e levasse desempenhado.
ao fisco, a fim de que a paz, reza a lei, fosse
Aos juizes rèais era defeso obrigar as partes
eterna entre os ripuários.
a pagarem fiança para que pudessem compare­
A importância do fredum era proporcional à
cer diante deles: cabia, portanto, ao que rece­
importância da proteção63°; dessa maneira, o bia o território a tarefa de exigi-la. Já se disse
fredum pela proteção ao rei era maior do que o
que os enviados do rei não poderíam mais exi­
pago pela proteção ao conde e aos outros
gir alojamento; na realidade, não tinham mais
juizes. nenhuma função.
Já entrevejo o nascimento da justiça dos A justiça era portanto, tanto nos feudos
senhores. Os feudos compreendiam grandes antigos quanto nos novos, um direito inerente
territórios, como se nos afigura através de uma
ao próprio feudo, um direito lucrativo que dele
infinidade de monumentos. Já provei que os fazia parte. É por isso que, em nossos tempos,
reis nada arrecadavam sobre as terras que per­
foi ela considerada como tal; donde nasceu o
tenciam ao quinhão dos francos; muito menos
princípio de que as justiças, em França, são
podiam reservar-se direitos sobre os feudos. Os
patrimoniais.
que os obtiveram gozaram, a este respeito, da
mais ampla fruição; daí tiraram todos os fru­ Alguns julgaram que as justiças tinham sua
tos e todos os emolumentos; e, como um dos origem nas alforrias que os reis e os senhores
mais consideráveis631 eram os proveitos judi­ concederam a seus servos. Mas as nações ger­
ciários (freda) que se recebiam pelos usos dos manas, e as que delas descenderam, não foram
francos, seguia-se que quem possuía o feudo as únicas a libertar os escravos; e foram as
tinha a justiça, que se exercia tão-somente únicas a estabelecer justiças patrimoniais. Por
pelas composições aos parentes e lucros pagos outro lado, as fórmulas de Marculfo 63 5 nos
aos senhores. Nada mais era ela que o direito mostram homens livres dependendo dessas jus­
de exigir o pagamento das composições da lei tiças nos primeiros tempos; portanto, os servos
e o de exigir as multas da mesma. foram sujeitos à justiça, porque foram encon­
Vê-se, pelas fórmulas que trazem a confir­ trados no território; e eles não deram origem
mação ou a translação perpétuas de um feudo aos feudos, por terem sido englobados no
em proveito de um leudo ou fiel 632., ou dos feudo.
Outras pessoas tomaram um caminho mais
628 Como deixa ver o decreto de Clotário II, do curto: os senhores usurparam as justiças, dis­
ano 595. Fredus tamen judieis, in cujus pago est, seram; e se disse tudo. Mas na terra só terá ha­
reservetur. (N. do A.) vido povos descendentes da Germânia que te-
629 Tít. LXXXIX. (N. do A.)
630 Capitulare incerti anni, cap. LVII, em Baluze,
tomo I, pág. 515. E é de notar que o que se chama 633 Ibid., fórmulas II, III e IV. (N. do A.)
fredum ou faida nos monumentos da primeira raça 63 4 Vede as coletâneas dessas chartas, sobretudo a
chama-se bannum nos da segunda, como nos deixa que se acha ao final do quinto volume das Histo-
ver a capitular De partibus Saxoniae, do ano 789. riens de France, dos padres beneditinos. (N. do A.)
(N. do A.) 63 5 Vede as fórmulas III, IV e XIV do liv. I; e a
631 Vede a capitular de Carlos Magno, De villis, charta de Carlos Magno, do ano 771, em Martenne,
em que coloca esses freda no número das grandes tomo I, Anedot. col. II, Praecipientes jubemus ut
rendas do que se chamava villae, ou domínios do ullus judex publicus. . . homines ipsius ecclesiae et
rei. (N. do A.) monasterii ipsius Morbacensis, tam ingênuos quam
632 Vede as fórmulas III, IV e XVII, liv. I de Mar­ et servos, et qui super eorum terras manere etc. (N.
culfo. (N. do A.) do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 503

nham usurpado os direitos dos príncipes? A mas como roubam entre si os juizes de aldeia e
história nos informa suficientemente que ou­ procuradores. Seria preciso dizer que tais guer­
tros povos fizeram cometimentos contra seus reiros, em todas as províncias particulares do
soberanos; mas não se vê nascer o que se cha­ reino, e em tantos reinos, teriam elaborado um
mou as justiças dos senhores. Era, pois, no sistema geral de política. Loyseau fá-los racio­
fundo dos usos e dos costumes dos germanos cinar como ele próprio raciocinava em seu
que importava buscar a sua origem. gabinete.
Peço verifiquem em Loyseau 63 6 qual a Direi mais: se a justiça não era uma depen­
maneira que ele supõe que usaram os senhores dência do feudo, por que se vê em toda
para formar e usurpar suas diversas justiças. parte 63 7 que o serviço do feudo era servir ao
Seria necessário que tivessem sido eles as pes­ rei ou ao senhor, tanto nas suas cortes quanto
soas mais refinadas do mundo, e que houves­ em suas guerras?
sem roubado, não como pilham os guerreiros,
63 7 Vede Du Cange, na palavra hominium. (N. do
63 6 Traité des Justices de Village. (N. do A.) A.)

Capítulo XXI

Da justiça territorial das igrejas

As igrejas adquiriram bens bastante consi­ onde se administra a justiça641, em outro


deráveis. Vimos que os reis lhes outorgaram lugar que não na igreja onde tenham sido
grandes fiscos, isto é, grandes feudos; e nos alforriados. As igrejas exerciam, pois, justiça,
domínios das igrejas é que primeiro achamos mesmo sobre os homens livres, e realizavam
as justiças estabelecidas. Donde teria origi­ seus pleitos desde os primeiros tempos da
nado um privilégio tão extraordinário? Estava monarquia.
na natureza da coisa dada; o bem dos eclesiás­ Na Vida dos Santos6 42 encontro que Clóvis
ticos dispunha de tal privilégio, porque não lhe concedeu a um santo personagem o poder
era tirado. Dava-se um fisco à igreja e abando- sobre um território com seis léguas na região e
navam-lhe as prerrogativas que teria tido se ordenou que ele ficasse livre de qualquer juris­
tivesse sido dado a um leudo; por isso, esteve dição. Acredito que isso constitui uma falsida­
submetido ao serviço que dele tiraria o Estado de, mas trata-se de uma falsidade muito anti­
se o tivesse outorgado ao leigo, como já o ga; o fundamento da vida e as mentiras
vimos. relacionam-se com os costumes e com as leis
As igrejas possuíram, portanto, o direito de da época; e esses costumes e essas leis é que
solicitar o pagamento das reparações em seu procuramos aqui 6 43.
Clotário II ordena aos bispos e aos gran­
território e de exigir-lhes o fredum; e, como
des 6 4 4 que possuam terras em regiões afasta­
tais direitos excediam necessariamente o de
das que escolham no próprio local aqueles que
impedir os oficiais reais de entrar no território
devem administrar a justiça ou receber-lhe os
para reclamar esses freda e aí exercer todos os
emolumentos.
atos de justiça, o direito que tiveram os O mesmo príncipe6 4 5 regulamenta a com-
eclesiásticos de administrar a justiça em seu
tèrritório se chamou imunidade, no estilo das
641 Mallum. (N. do A.)
fórmulas6 3 8, das chartas e das capitulares. 6 42 Vita sancti Germerii, episcopi Tolosani, apud
A lei dos ripuários 638
639 proíbe aos libertos Bollandianos, 16 de maio. (N. do A.)
das igrejas6 40 participarem da assembléia, 6 43 Vede também a Vida de São Melãnio e a de
São Deícola. (N. do A.)
64 4 No Concilio de Paris, do ano 615. Episcopi vel
638 Vede as fórmulas III e IV de Marculfo, liv. I. potentes, qui in aliis possident regionibus, judices
(N. do A.) vel missos discussores de aliis provinciis non insti-
639 Ne aliubi nisi ad ecclesiam, ubi relaxati sunt, tuant, nisi de loco, qui justitiam percipiant et aliis
mallum teneant, tít. LVIII, § 1. Vede também o reddant. Art. 19. Vede também o art. 12. (N. do A.)
parágrafo 19, ed. de Lindembrock. (N. do A.) 6 4 6 No Concilio de Paris, no ano 615, art. 5. (N.
6 40 Tabulariis. (N. do A.) do A.)
504 MONTESQUIEU

petência entre os juizes das igrejas e seus ofi­ Reims, declararam que os vassalos das igrejas
ciais. A capitular de Carlos Magno, do ano estão incluídos em sua imunidade6 48. A capi­
802, prescreve aos bispos e aos abades as qua­ tular de Carlos Magno, do ano 8066 49, ordena
lidades que devem possuir seus oficiais de jus­ que as igrejas tenham a justiça criminal e cível
tiça. Outra 6 4 6, do mesmo príncipe, proíbe aos
sobre todos os que habitam em seu território.
oficiais reais que exerçam qualquer jurisdição
sobre os que cultivam as terras eclesiásti­ Finalmente, a capitular de Carlos, o Calvo, faz
cas647, a não ser que tenham adquirido tal distinção entre as jurisdições do rei 6 50, as dos
condição por fraude e para se subtrair aos senhores e as das igrejas; e nada mais direi a
encargos públicos. Os bispos, reunidos em respeito.

6 4 6 Na lei dos lombardos, liv. II, tít. XLIV, cap. II, 6 49 Foi acrescentada à lei dos bávaros, art. 7; vede
ed. de Lindembrock. (N. do A.) também o art. 3 da.ed. de Lindembrock, pág. 444.
6 4 7 Servi aldiones, libellarii antiqui, vel alii noviter Imprimis omnium jubendum est ut habeant eccle-
facti. Ibid. (N. do A.) siae earum Justitias, et in vita illorum qui habitant in
6 48 Carta do ano 858, nas capitulares, pág. 108. ipsis ecclesiis et post, tam in pecuniis quam et in
Sicut illae res et facultates in quibus vivunt clerici, substantiis earum. (N. do A.)
ita et illae sub consecratione immunitatis sunt de 6 50 Do ano 857, In synodo apud Carisiacum, art.
quibus debent militare yassalli. (N. do A.) 4, ed. de Baluze, pág. 96. (N. do A.)

Capítulo XXII

De como as justiças eram fixadas


antes do fim da segunda raça
Já se disse que foi na desordem da segunda Havia diferença, portanto, entre o território
raça que os vassalos atribuíram a si mesmos a dos centuriões e dos fiéis.
justiça em seus fiscos; preferiu-se fazer uma Este decreto de Childeberto explica a consti­
proposição geral a examiná-la; foi mas fácil tuição de Cíotário 6 5 4 do mesmo ano, que,
dizer que os vassalos não possuíam nada, do feita sobre o mesmo caso e sobre o mesmo
que descobrir como possuíam. Mas as justiças fato, só difere em seus termos; a constituição
não devem sua origem às usurpações; derivam chama in.truste o que o decreto chama in ter-
do primeiro estabelecimento e não da sua minis fidelium nostrorum. Os senhores Bignon
corrupção. e Du Cange 6 5 5, que acreditaram que in truste
“Aquele que mata um homem livre”, diz a significava domínio de outro rei, não foram
lei dos bávaros 6 51, “pagará a composição a muito felizes na interpretação.
seus parentes, se ele os tiver; e, se não tiver, Numa constituição de Pepino 6 5 6, rei da Itá-
pagá-la-á ao duque, ou àquele a quem se reco­
mendara em vida.” Sabe-se o que era recomen­ 6 53 Do ano 595, art. 11 e 12, ed. das capitulares de
dar-se para um benefício. Baluze, pág. 19. Pari conditione convenit ut si una
“Aquele de quem roubaram um escravo”, centena in alia centena vestigium secuta fuerit et
invenerit, vel in quibuscumque fidelium nostrorum
reza a lei dos alemães 6 52, “irá ao príncipe a terminis vestigium miserit, et ipsum in aliam cente-
que está sujeito o raptor, a fim de que ele possa nam minime expellere potuerit, aut convictus reddat
obter dele a composição.” latronem etc. (N. do A.)
“Se um centurião”, lê-se num decreto de 8 5 4 Si vestigius comprobatur latronis, tamen prae-
sentia nihil longe mulctando; aut si persequens
Childeberto 6 53, “encontra um ladrão em outra latronem suum comprehenderit, integram sibi com-
centúria que não a sua, ou nos limites de nos­ positionem accipiat. Quod si in truste invenitur,
sos fiéis, e não o expulsa daí, representará o medietatem compositionis trustis adquirat, et capi-
ladrão, ou se purificará mediante juramento.” tale exigat a latrone, art. 2 e 3. (N. do A.)
6 5 6 Vede o glossário (de Du Cange), na palavra
trustis. (N. do A.)
6 51 Tít. III, cap. XIII, ed. de Lindembrock. (N. do 6 5 6 Inserida na lei dos lombardos, liv. II, tít. LII, §
A.) 14. É a capitular do ano 793, em Baluze, pág. 544,
6 52 Tít. LXXXV. (N. do A.) art. 10. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 505

lia, feita tanto para os francos quanto para os faz a distinção entre suas próprias senhorias e
lombardos, este príncipe, após ter imposto as dos particulares.
penas aos condes e a outros oficiais reais que Não se dispõe de concessões originárias dos
prevaricam no exercício da justiça, ou que feudos, porque foram estabelecidos pela parti­
demoram em administrá-la, ordena que 6 5 7, se lha que se sabe ter sido feita entre os vencedo­
ocorrer que um franco ou um lombardo que res. Portanto, não se pode provar, por contra­
tenha um feudo não queira administrar a justi­ tos originários, que as justiças, inicialmente,
ça, o juiz, em cujo distrito ele estiver, suspen­ tenham sido inerentes aos feudos. Mas se, nas
derá o exercício de seu feudo; e que, nesse fórmulas das confirmações ou das translações
intervalo, o juiz ou seu enviado administrará a perpétuas desses feudos, encontra-se, como se
justiça. disse, que a justiça estava aí estabelecida, era
Uma capitular de Carlos Magno 6 58 prova preciso que esse direito de justiça fosse da
que os reis não arrecadavam em toda parte os natureza do feudo e uma de suas principais
freda. Outra6?9 do mesmo príncipe nos deixa prerrogativas.
ver as regras e o tribunal feudais já estabele­ Temos maior número de monumentos que
cidos. Outra, de Luís, o Bonacheirão, ordena fixam a justiça patrimonial das igrejas em seu
que, quando aquele que possui um feudo não território, do que o temos para provar a dos
administra justiça 6 60, ou impede que ela seja benefícios ou feudos dos leudos ou fiéis, por
dois motivos. Primeiro, porque a maior parte
administrada, se viva discretamente em sua
dos monumentos que nos restam foi conser­
casa até que seja feita a justiça. Citarei ainda
vada ou recolhida pelos monges para a utili­
duas capitulares de Carlos, o Calvo, uma de
dade de seus mosteiros. Segundo, porque,
861 6 61 em que se vêem jurisdições particu­ tendo sido formado o patrimônio das igrejas
lares estabelecidas, dos juizes e dos oficiais por concessões particulares, e uma espécie de
sobre eles; a outra6 62 do ano 864, em que se derrogação à ordem estabelecida, eram neces­
sárias chartas para isso; ao passo que, sendo
6 5 7 Et siforsitan Francus aut Longobardus habens as concessões feitas aos leudos consequências
beneficium justitiam facere noluerit, ille judex in da ordem política, não se necessitava de ter, e
cujus ministério fuerit, contradicat UH beneficium
suum, ínterim, dum ipse aut missus ejus justitiam muitos menos de conservar, uma charta parti­
faciat. Vede ainda a mesma lei dos lombardos, liv. cular. Frequentemente, mesmo os reis conten-
II, tít. III, § 2, que se relaciona com a capitular de tavam-se com fazer urna simples tradição pelo
Carlos Magno do ano 779, art. 21. (N. do A.) cetro, como se verifica pela vida de São
6 58 A terceira do ano 812, art. 10. (N. do A.)
6 59 A segunda capitular do ano 813, art. 14 e 20, Mauro.
pág. 509. (N. do A.) Mas a terceira fórmula de Marculfo 6 63 pro­
6 60 Capitulare quintum anni 579,art. 23, ed. de va-nos sobejamente que o privilégio de imuni­
Baluze, pág. 617. Ut ubicumque missi, aut episco- dade, e por conseguinte o da justiça, era
pum, aut abbatem, aut alium quemlibet honore
praeditum invenerint, qui Justitiam facere noluit vel comum aos eclesiásticos e aos seculares, pois é
prohibuit, de ipsius rebus vivant quandiu in eo loco feita tanto para uns como para os outros.
justitiasfacere debent. (N. do A.) Acontece o mesmo com a constituição de Clo-
6 61 Edictum in Carisiaco, em Baluze, tomo II, pág. tário II 6 6 4.
iSZ. Cfausquísque advocatus pro omnibus de sua
advocatione. . . in convenientia ut cum ministeria-
libus de sua advocatione quos invenerit contra hunc 6 63 Liv. I. Maximum regni nostri augere credimus
bannum nostrum fecisse. . . castigei. (N. do A.) monirnentum, si beneficia opportuna locis ecclesia-
6 62 Edictum Pistense, art. 18, ed. de Baluze, tomo rum, aut cui volueris dicere, benevola deliberatione
II, pág. 181. Si in fiscum nostrum, vel in quamcum- concedimus. (N. do A.)
que immunitatem, aut alicujus potentis potestatem 6 64 Citei-a no capítulo anterior: Episcopi vel
vel proprietatem confugerit etc. (N. do A.) potentes etc. (N. do A.)
506 MONTESQUIEU

Capítulo XXIII

Idéia geral do livro do estabelecimento da monarquia


francesa nas Gálias, pelo Senhor Abade Dubos

É oportuno que, antes de terminar este livro, ocupar do principal. Aliás, tantas pesquisas
eu examine um pouco a obra do Sr. Abade não nos permitem imaginar que nada tenha­
Dubos, porque minhas idéias estão em perpé­ mos encontrado: a extensão da viagem faz crer
tua oposição às suas; e porque, se ele encon­ que finalmçnte se chegou.
trou a verdade, eu não a encontrei. Mas, quando se examina bem, depara-se
Essa obra seduziu muita gente, porque é com um colosso imenso que tem pés de barro;
escrita com muita arte; porque se supõe aí e porque os pés são de barro é que o colosso é
eternamente o que se encontra em questão; imenso. Se o sistema do Sr. Abade Dubos
porque, quanto mais faltam provas, mais- se tivesse tido bom alicerce, ele não teria sido
multiplicam as probabilidades; porque uma obrigado a fazer três volumes mortais para
infinidade de conjecturas são apresentadas prová-lo; teria encontrado tudo em seu assun­
como princípios e daí se tiram como conse­ to; e, sem ir procurar em todas as partes o que
quências outras conjecturas. O leitor esquece está muito longe dele, a própria razão ter-se-ia
que duvidou para começar a acreditar. E, encarregado de colocar esta verdade na cadeia
como se carrega com uma erudição sem fim, das outras verdades. A história e nossas leis
não no sistema, mas ao seu lado, o espírito é ter-lhe-iam dito: “Não tenhais tanto trabalho:
distraído por coisas acessórias e deixa de se prestaremos testemunho por vós”.

Capítulo XXIV

Continuação do mesmo assunto.


Reflexão sobre a essência do sistema.

O Sr. Abade Dubos quer eliminar toda espé­ preferiram viver sob o domínio de Clóvis a
cie de idéia de que os francos tenham entrado viver sob a dominação dos romanos, ou sob
has Gálias como conquistadores; segundo ele, suas próprias leis. Ora, os romanos desta parte
nossos reis, convocados pelos povos, nada das Gálias que ainda não fora invadida pelos
mais fizeram que tomar o lugar e suceder aos bárbaros eram, de acordo com o Sr. Abade
direitos dos imperadores romanos. Dubos, de duas espécies: uns pertenciam à
Essa pretensão não se pode aplicar ao confederação armórica e haviam expulsado os
tempo em que Clóvis, entrando nas Gálias, oficiais do imperador, para se defenderem con­
saqueou e tomou as cidades; não pode apli­ tra os bárbaros e se governarem por suas pró­
car-se tampouco ao tempo em que derrotou prias leis; os outros obedeciam aos oficiais
Siágrio, oficial romano, e conquistou a região romanos. Ora, o Sr. Abade Dubos prova que
que este governava; só pode relacionar-se, os romanos, que ainda estavam sujeitos ao
pois, àquela época em que Clóvis, tornando-se império, tinham convocado Clóvis? De ne­
senhor de grande parte das Gálias mediante a nhum modo. Prova que a república dos armó-
violência, teria sido designado pela escolha e ricos tenha convocado Clóvis, e feito mesmo
pelo amor dos povos à dominação do resto do alguns tratados com ele? De modo algum. Por
país. E não basta que Clóvis tenha sido recebi­ mais longe que possa nos dizer qual foi o desti­
do, cumpre que tenha sido convocado; cumpre no dessa república, ele não poderia mostrar-lhe
que o Sr. Abade Dubos prove que os povos a existência; e, embora siga-a desde o tempo de
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 507

Honório até a conquista de Clóvis, embora re­ nega é igual à autoridade de quem o alega.
late com arte admirável todos os aconteci­ Tenho mesmo um motivo para tanto. Gregório
mentos daqueles tempos, ela permaneceu invi­ de Tours, que fala do consulado, nada diz
sível aos autores. Isso porque há muita acerca do proconsulado. Este proconsulado
diferença entre provar, por uma passagem de somente teria sido de, aproximadamente, seis
Zósimo 6 6 5, que, sob o império de Honório, a meses. Clóvis morreu um ano e meio após ter
região armórica e as outras províncias das Gá­ sido feito cônsul; não é possível transformar o
lias se revoltaram e formaram uma espécie de proconsulado num cargo hereditário. Enfim,
república 6 6 6 e fazer ver que, malgrado as quando o consulado e, se quiserem, o procon­
diversas pacificações das Gálias, os armóricos sulado lhe foram outorgados, ele já era o se­
sempre constituíram uma república particular, nhor da monarquia e todos os seus direitos
que subsistiu até a conquista de Clóvis. No estavam estabelecidos.
entanto, para estabelecer seu sistema, teria A segunda prova que o Sr. Abade Dubos
necessidade de provas bem fortes e precisas. alega é a cessão feita pelo Imperador Justi-
Pois, quando se vê um conquistador entrar niano aos filhos e aos netos de Clóvis de todos
num Estado e submeter uma grande parte pela os direitos do império sobre as Gálias. Teria
força e pela violência e se observa, algum muitas coisas para dizer acerca dessa cessão.
tempo depois, o Estado inteiro submisso, sem Pode-se julgar da importância que atribuíram
que a história diga como aconteceu, tem-se um a isso os reis dos francos pela maneira como
mui justo motivo para acreditar que a situação lhe executaram as condições. Aliás, os reis dos
terminou da forma como começou. francos eram senhores das Gálias; eram sobe­
Uma vez falhado este ponto, é fácil ver que ranos pacíficos; Justiniano não possuía uma
todo o sistema do Sr. Abade Dubos desaba polegada de terra; o império do Ocidente fora
completamente; e .todas as vezes que ele tirar destruído havia muito tempo, e o imperador do
alguma consequência do princípio de que as Oriente somente tinha direitos sobre as Gálias
Gálias não foram conquistadas pelos francos, como representante do imperador do Ocidente;
mas que os francos foram chamados pelos eram direitos sobre direitos. A monarquia dos
romanos, sempre se poderá negá-la. francos já estava fundada; estava feito o regu­
O Sr. Abade Dubos prova seu princípio lamento de seu estabelecimento; convencio­
pelas dignidades romanas de que Clóvis foi nados, os direitos recíprocos das pessoas e das
investido; ele pretende que Clóvis tenha suóe- diversas nações que viviam na monarquia;
dido a Childerico, seu pai, no emprego de se­ dadas, as leis de cada nação e mesmo redigidas
nhor da milícia. Esses dois cargos, porém, são por escrito. Que fazia esta cessão estranha a
purámente de sua criação. A carta de São um estabelecimento já formado?
Que quer dizer o Sr. Abade Dubos com os
Remi a Clóvis, na qual ele se baseia6 6 7, não
discursos de todos esses bispos, que, na desor­
passa de uma felicitação pelo advento à coroa.
dem, na confusão, na queda total do Estado,
Quando o objeto de um escrito é conhecido,
nas devastações da conquista, procuram lison-
por que atribuir-lhe um que não o é?
jear o vencedor? Que pressupõe a lisonja
Clóvis, no fim de seu reinado, foi feito côn­ senão a fraqueza daquele que é obrigado a
sul pelo Imperador Anastásio; mas que direito lisonjear? Que prova a retórica e a poesia,
podia outorgar-lhe uma autoridade simples­ senão o emprego mesmo dessas artes? Quem
mente anual? Há indícios, diz o Sr. Abade não ficaria admirado de ver Gregório de
Dubos, de que, no mesmo diploma, o Impera­ Tours, que, depois de ter falado dos assassí­
dor Anastásio tenha feito Clóvis procônsul. E, nios de Clóvis, diz que, entretanto, Deus pros-
quanto a mim, direi que há possibilidade de ternava todos os dias seus inimigos, porque ele
que não o tenha feito. Sobre um fato que não é marchava em seus caminhos? Quem pode
fundado em nada, a autoridade de quem o duvidar de que o clero não tenha ficado con­
tente com a conversão de Clóvis e disso tenha
6 5 5 História, liv. VI. (N. do A.) tirado mesmo grandes vantagens? Mas quem
6 6 8 Totusque tractus armoricus aliaeque Gallia- pode duvidar, ao mesmo tempo, de que os
rum provinciae. Ibid. (N. do A.)
6 6 7 Tomo II, liv. III, cap. XVIII, pág. 270. (N. do povos não tenham experimentado todas as des­
A.) graças da conquista, e que o governo romano
508 MONTESQUIEU

não tenha cedido ao governo germânico? Os de Siágrio. Mas vede como o pontífice dos ju­
francos não quiseram e mesmo não puderam deus vem ao seu encontro; escutai o oráculo de
mudar tudo; e mesmo poucos vencedores têm Júpiter Amon; lembrai-vos do que lhe fora
essa mania. Mas, para que todas as conse­ vaticinado em Górdio; vede como todas as
quências do Sr. Abade Dubos fossem verda­ cidades correm, por assim dizer, ao seu encon­
deiras, teria sido necessário que não somente tro; como os sátrapas e os grandes acorrem em
não tivesse mudado nada entre os romanos, multidão. Ele se veste à maneira dos persas; é
como também que eles mesmos tivessem a toga consular de Clóvis. Não lhe ofereceu
mudado. Dario a metade de seu reino? Dario não foi
Seguindo o método do Sr. Abade Dubos, eu assassinado como um tirano? A mãe e a espo­
me empenharia em provar da mesma forma sa de Dario não choraram a morte de Alexan­
que os gregos não conquistaram a Pérsia. dre? Quinto Cúrcio, Arriano, Plutarco eram
Primeiramente, falaria dos tratados que algu­ contemporâneos de Alexandre? A impren­
mas de suas cidades firmaram com os persas; sa 6 68 não nos deu as luzes que faltavam a tais
falaria dos gregos que estiveram assoldadados autores? Eis a história do Estabelecimento da
aos persas, como os francos o estiveram aos Monarquia Francesa nas Gálias.
romanos. Se Alexandre entrou no país dos per­
sas, sitiou, tomou e destruiu a cidade de Tiro, 6 68 Vede o Discurso preliminar do Abade Dubos.
trata-se de uma questão particular, tal como a (N. do A.)

Capítulo XXV

Da nobreza francesa

O ST. Abade Dubos afirma que, nos primei­ via trezentos soidos de composição, do roma­
ros tempos de nossa monarquia, havia uma no possuidor para quem prescrevia cem, e do
única ordem de cidadãos entre os francos. Esta romano tributário para quem prescrevia ape­
afirmação injuriosa ao sangue de nossas pri­ nas quarenta e cinco. E, como a diferença das
meiras famílias não o seria menos às três gran­ composições constituía a principal distinção,
des casas que reinaram sucessivamente sobre conclui que, entre os francos, havia uma única
nós. Não iria a origem de sua grandeza per- ordem de cidadãos e que, entre os romanos,
der-se, portanto, no esquecimento, na noite e havia três.
no tempo? A história iluminaria os séculos em É surpreendente como seu próprio erro não
que teriam sido famílias comuns; e, para que o tenha feito descobrir seu erro. Com efeito,
Chilperico, Pepino e Hugo Capeto fossem era um caso extraordinário que os nobres
romanos que viviam sob a dominação dos
gentis-homens, cumpria ir buscar sua origem
entre os romanos ou entre os saxões, isto é, francos tivessem tido uma reparação maior e
fossem pessoas mais importantes que os mais
entre as nações subjugadas6 69?
ilustres francos e-seus maiores capitães. Que
O Sr. Abade Dubos fundamenta6 70 sua opi­ indício de que o povo vencedor tenha tido tão
nião na lei sálica. É claro, diz ele, por esta lei, pouco respeito para consigo mesmo e tenha
qvte não havia duas ordens de cidadãos entre tido tanto para com o povo vencido? Demais,
os francos. Prescrevia ela duzentos soidos de o Sr. Abade Dubos cita as leis das outras
composição para a morte de qualquer franco nações bárbaras, que provam que havia entre
que fosse671; mas distinguia, entre os roma­ elas diversas ordens de cidadãos. Seria muito
nos, o conviva do rei, para cuja morte prescre- extraordinário que esta regra geral tivesse
encontrado uma exceção precisamente entre os
699 V. supra, nota 486. francos. Isso tê-lo-ia feito pensar que entendia
6 70 Vede o Etablissement' de la Monarchie Fran-
çaise, tomo III, liv. IV, cap. IV, pág. 304. (N. do A.) mal, ou que aplicava mal os textos da lei sáli­
6 71 Ele cita o título XLIV desta lei, e a lei dos ca; o que lhe aconteceu efetivamente.
ripuários, tít. VII e XXXVI. (N. do A.) Ao abrir esta lei, vê-se que a composição
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 509

para a morte de um antrustião 6 72, isto é, de É singular ver como ele foge às passagens
um fiel ou vassalo do rei, era de seiscentos soi­ que o pressionam de todos os lados 6 79. Fala-
dos, e que para a morte de um romano, convi­ se-lhe dos grandes, dos senhores, dos nobres?
va do rei, era tão-somente de trezentos 6 73. São, diz ele, simples distinções, e não distin­
Vê-se 6 7 4 aí que a reparação para a morte de ções de ordem; são coisas de cortesia, e não
um simples franco era de duzentos soidos6 7 5, prerrogativas da lei; ou então, diz ele, as pes­
que a para a morte de um romano 6 7 6, de con­ soas de que se fala pertenciam ao conselho do
dição ordinária, era apenas de cem. Pagava-se rei; podiam até ser romanos; mas sempre
ainda para a morte de um romano tributá­ havia uma única ordem de cidadãos entre os
rio677, espécie de servo ou de libgrto, uma francos. De outro lado, se falou de algum fran­
composição de quarenta e cinco soidos; mas co de classe inferior 680, trata-se dos servos; é
não falarei mais disso, tampouco da reparação desta maneira que interpreta o decreto de Chil­
para a morte do servo franco, ou do liberto deberto. Necessário se torna que me detenha
franco: não se trata aqui dessa terceira ordem neste decreto. O Abade Dubos tornou-o famo­
de pessoas. so porque dele se serviu para provar duas coi­
Que faz o Abade Dubos? Passa em silêncio sas: uma681, que todas as composições que se
a primeira ordem de pessoas entre os francos, encontram nas leis dos bárbaros eram apenas
isto é, o artigo que concerne aos antrustiões; e, interesses civis acrescidos às penas corporais,
em seguida, comparando o franco ordinário, o que subverte totalmente todos os antigos
para cuja morte se pagavam duzentos soidos monumentos; a outra, que todos os homens li­
de composição, com o que chama as três or­ vres eram julgados direta e imediatamente pelo
dens entre os romanos, e para cuja morte paga­ rei682, o que é contestado por uma infinidade
vam-se reparações diferentes, acha ele que de passagens e de autoridades que nos dão a
havia somente uma ordem de cidadãos entre os conhecer a ordem judicial daqueles tempos 683.
francos, e que havia três entre os romanos. Diz esse decreto, feito numa assembléia da
Como, segundo ele, havia uma única ordem nação 68 4, que, se o juiz encontrar um ladrão
de pessoas entre os francos, seria conveniente famoso, mandá-lo-á arnarrar a fim de ser reme­
que houvesse somente uma também entre os tido ao rei, se for um franco (Francus); mas, se
for uma pessoa mais fraca (debilior persona),
borguinhões, porque seu reino formou uma das
principais peças de nossa monarquia. Mas há será enforcado no local. Segundo o Abade
Dubos, Francus é um homem livre, debilior
em seus códigos três espécies de composi­
ções678; uma para o nobre borguinhão ou persona é um servo. Desconhecerei por um
romano, outra para o borguinhão ou romano momento o que pode significar aqui a palavra
de condição medíocre, a terceira para os que Francus; e começarei examinando o que se
pode entender pelas palavras uma pessoa mais
pertenciam a uma condição inferior nas duas
fraca. Digo que, em qualquer que seja a língua,
nações. O Abade Dubos não citou esta lei.
todo comparativo supõe necessariamente três
termos, o maior, o menor e o mínimo. Se se
6 72 Qui in truste dominica est, tít. XLIV, §4;e tratasse aqui apenas dos homens livres e dos
isso relaciona se com a fórmula XIII de Marculfo,
De reges anírusíione. Vede também o tít. LXVI da
lei sálica, §§ 3 e 4; e o út. LXXIV; e a lei dos ripuá­ 3 79 Etablissement de la Monarchie Française,
rios, tít. XI; e a capitular de Carlos, o Calvo, Apud tomo III, liv. VI, cap. IV e V. (N. do A.)
Carisiacum, do ano 877, cap. XX. (N. do A.) 680 Ibid., cap. V, págs. 319 e 320. (N. do A.)
6 7 3 Lei sálica, tít. XLIV, § 6. (N. do A.) 681 Ibid., liv. VI, cap. IV, págs. 307 e 308. (N- do
6 7 4 Ibid., § 4. (N. do A.) A.)
6 7 5 Ibid., § l.(N. do A.) 682 Ibid., tomo III, cap. IV, pág. 309; e no cap.
6 7 6 Ibid., § 15. (N. do A.) seg., págs. 319 e 320. (N. do A.)
6 7 7 Ibid., § 7. (N. do A.) 683 Vede o livro XXVIII desta obra, cap. XXVIII.
6 78 Si quis, quolibet casu, dentem optimati Bur- e o livro XXXI, cap. VIII. (N. do A.)
gundioni vel Romano nobili excusserit, solidos 68 4 Itaque Colonia convenit et ita bannivimus, ut
viginti quinque cogatur exsolvere: de mediocribus unusquisque judex criminosum latronem ut audierit,
personis ingenuis, tam Burgundionibus quam Ro- ad casam suam ambulet et ipsum ligare faciat: ita
manis, si dens excussus fuerit, decem solidis compo- ut, si Francus fuerit, ad nostram praesentiam diriga-
natur; de inferioribuspersonis, quinque solidos. Art. tur; et, si debilior persona fuerit, in loco pendatur.
1, 2 e 3 do tít. XXVI da lei dos borguinhões. (N. do Capitular da ed. de Baluze, tomo I, pág. 19. (N. do
A.) A.)
510 MONTESQUIEU

servos, ter-se-ia dito um servo, e não um dade de nobres homens, uma passagem da vida
homem de menor poder. Assim, debilior perso- de Luís, o Bonacheirão, se aplicará a estas
na de nenhum modo significa um servo, mas espécies de gente! “Talvez também”, acres­
uma pessoa abaixo da qual se encontra o centa ainda690, “que Hebon não tivesse sido
servo. Suposto isso, Francus não significará escravo na nação dos francos, mas na nação
um homem livre, e sim um homem poderoso: e saxônia, ou em outra nação germânica, em que
Francus é tomado aqui nesta acepção, porque, os cidadãos achavam-se divididos em várias
entre os francos, eram sempre aqueles que, no ordens.” Portanto, por causa do talvez do
Estado, dispunham de maior poder, e que era Abade Dubos, não terá havido nobreza na
mais difícil para o juiz ou para o conde corri­ nação dos francos. Mas não houve jamais um
gir. Esta explicação se coaduna com grande talvez mais mal aplicado. Vimos que Tega­
número de capitulares68*5 que determinam os no691 distingue os bispos que se opuseram a
casos em que os criminosos podiam ser remeti­ Luís, o Bonacheirão, dos quais uns tinham
dos ao rei, e os que não o podiam. sido servos e os outros eram de uma nação
Encontra-se na vida de Luís, o Bonacheirão, bárbara. Hebon era dos primeiros, e não dos
escrita por Tegano68 6, que os bispos foram os segundos. Aliás, não sei como se pode dizer
principais autores da humilhação desse impe­ que um servo tal como Hebon teria sido saxão
rador, sobretudo os que tinham sido servos e ou germânico: um servo não tem família, nem,
os que haviam nascido entre os bárbaros. Te­ por conseguinte, nação. Luís, o Bonacheirão,
gano apostrofa assim Hebon, que este príncipe libertou Hebon; e, como os servos libertos
tirara da servidão e fizera arcebispo de Reims: tomavam a lei de seu senhor, Hebon tornou-se
“Que recompensa o imperador recebeu de tan­ franco, e não saxão ou germano.
tos benefícios 68 7 ! Ele te fez livre, e não nobre; Ataquei, cumpre que me defenda. Dir-me-ão
não podia fazer-te nobre após ter-te dado a que o corpo dos antrustiões formava efetiva­
liberdade”. mente no Estado uma ordem distinta da dos
homens livres mas que, como os feudos foram
Esse discurso, que prova tão formalmente
a princípio amovíveis, e em seguida para toda
duas ordens de cidadãos, não embaraça o
a vida, isso não podia formar uma nobreza de
Abade Dubos. Ele responde desta maneira688:
origem, pois as prerrogativas não estavam
“Essa passagem não quer dizer que Luís, o
ligadas a um feudo hereditário. Foi esta obje­
Bonacheirão, não tenha podido fazer que
ção sem dúvida que fez o Sr. de Valois pensar
Hebon entrasse na ordem dos nobres: Hebon,
que havia apenas uma ordem de cidadãos entre
como arcebispo de Reims, seria da primeira
ordem, superior à da nobreza”. Deixo ao leitor os francos: sentimento que o Abade Dubos
tirou dele, e que ele somente deturpou à força
decidir se essa passagem não o quer dizer; dei­
de más provas. Como quer que seja, não teria
xo-lhe julgar se se trata aqui de uma prece­
dência do clero sobre a nobreza. “Essa passa­ sido o Abade Dubos que poderia fazer esta
objeção. Pois, tendo dado três ordens de
gem prova tão-somente”, continua689 o Abade
nobreza romana, e a qualidade de conviva do
Dubos, “que os cidadãos nascidos livres eram
rei para a primeira, não teria podido dizer que
qualificados de homens nobres: no uso do
este título assinalasse mais uma nobreza de
mundo, nobre homem e homem nascido livre
por muito tempo queriam dizer a mesma origem do que o de antrustião. Mas é preciso
uma resposta direta. Os antrustiões ou fiéis
coisa.”
não eram tais porque tinham um feudo; mas
Como! pelo fato de, em nossos tempos dava-se-lhes um feudo, porque eram antrus­
modernos, alguns burgueses tomarem a quali­ tiões ou fiéis. Lembre-se o que disse nos pri­
meiros capítulos deste livro: não tinham,
68 5 Vede o livro XXVIII desta obra, cap. XXVIII, então, como tiveram depois, um feudo; mas se
e o livro XXXI, cap. VIII. (N. do A.)
68 6 Cap. XLIII e XLI V. (N.do A.)
68 7 O qualem remunerationem reddidisti ei! Fecit 690 Dubos, ibid. (N. do A.)
te liberum, nom nobilem, quod impossibile est post 691 “Omnes episcopi molestifuerunt Ludovico, et
libertatem. Ibid. Ibid. (N. do A.) maxime ii quos e servili conditione honoratos habe-
688 Etablissement de la Monarchie Française, bat, cum his qui ex barbaris nationibus ad hocfasti-
tomo III, liv. VI, cap. IV, pág. 316. (N. do A.) gium perducti sunt. ’’ De Gestis Ludovici Pii, cap.
689 Ibid., liv. VI, cap. IV, pág. 316. (N. do A.) XLIII e XLIV. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 511

tivessem aquele, não teriam outro, tanto por­ uma idéia do que er a a antiga nobreza france­
que os feudos eram concedidos no nascimento, sa, nos dirá que jamais alguém se queixou na
como porque eram outorgados muitas vezes Turquia de que se tenham elevado às honrarias
nas assembléias da nação e, finalmente, por­ e às dignidades pessoas de baixo nascimento,
que, como era do interesse ter um, era também como havia quem se lamentasse nos reinados
do interesse do rei dar-lhes um. Essas famílias de Luís, o Bonacheirão, e de Carlos, o Calvo?
eram distinguidas por sua dignidade de fiéis e Não se queixavam no tempo de Carlos Magno,
pela prerrogativa de poder recomendar-se por porque este príncipe sempre distinguiu as anti­
um feudo. Farei ver no livro seguinte692 como,
gas famílias das novas; o que Luís, o Bona­
pelas circunstâncias dos tempos, houve ho­
cheirão, e Carlos, o Calvo, não fizeram.
mens livres aos quais foi admitido fruir desta
grande prerrogativa e, por conseguinte, entrar O público não deve esquecer que deve ao
na ordem da nobreza. Tal não aconteceu no Abade Dubos várias composições excelentes.
tempo de Gontrão e de Childeberto, seu sobri­ É a partir dessas belas obras que se deve jul-
nho; aconteceu no tempo de Carlos Magno. gá-lo, e não a partir desta69 4. O Abade Dubos
Mas embora, desde o tempo desse príncipe, os incidiu em grandes erros, porque teve mais
homens livres não fossem capazes de possuir diante dos olhos o Conde de Boulainvilliers do
feudos, parece, pela passagem de Tegano, que o seu assunto. De todas as minhas críticas,
acima relatada, que os servos libertos eram extrairei apenas esta reflexão: Se este grande
excluídos disso absolutamente. O Abade homem errou, que não devo eu temer?
Dubos693, que vai à Turquia a fim de nos dar
69 4 A obra que assegurou o êxito do Abade
692 Cap. XXIII. (N. do A.) Dubos, as Réflexions Critiques sur la Poésie et la
693 Etablissement de la Monarchie Française, Peinture, de estilo agradável e com reflexões enge­
tomo III, liv. VI, cap. IV, pág. 302. (N. do A.) nhosas, não faz dele um grande espírito.
LIVRO TRIGÉSIMO PRIMEIRO
TEORIA DAS LEIS FEUDAIS ENTRE OS FRANCOS,
NA RELAÇÃO QUE TÊM COM A REVOLUÇÃO
DE SUA MONARQUIA
Capítulo I

Transformações nos ofícios e feudos

Os condes, inicialmente, eram enviados a admirável para os negócios, dotada de quali­


seus distritos apenas por um ano; logo com­ dades que tinham sido respeitadas por tanto
praram a continuação de seus ofícios. Encon­ tempo, se tenha visto 69 7 repentinamente ex­
tra-se exemplo disso desde o reinado dos netos posta a suplícios tão longos, tão vergonhosos,
de Clóvis. Certo Peônio 69 5 era conde na cida­ tão cruéis, por um rei 698 cuja autoridade era
de de Auxerre; mandou seu filho Mumolo tão pouco sólida em sua nação, se ela não
levar dinheiro a Gontrão para continuar em tivesse caído, por alguma causa particular, na
seu emprego; o filho deu o dinheiro por si desgraça desta nação. Clotário censurou-
mesmo e obteve o lugar do pai. Os reis tinham lhe699 a morte de dez reis; mas ele próprio
já começado a corromper suas próprias gra­ mandou matar dois; a morte de alguns outros
ças. foi o crime do destino ou da perversidade de
Apesar de, pela lei do reino, os feudos serem outra rainha; e uma nação que deixara morrer
amovíveis, não eram, entretanto, dados nem Fredegunda em seu leito, que se opusera700
suprimidos de modo caprichoso e arbitrário; e inclusive à punição de seus espantosos crimes,
era, normalmente, uma das principais coisas devia ser muito indiferente com relação aos de
tratadas nas assembléias da nação. Podemos Brunilda.
pensar muito bem que a corrupção introdu­ Foi ela colocada sobre um camelo e exposta
ziu-se neste ponto como se introduzira no a todo o exército: indício indubitável de que
outro, e que se conservou a posse dos feudos caíra na desgraça desse exército. Fredegário
pelo dinheiro, tal como se conservava a posse diz que Protário, favorito de Brunilda, adqui­
dos condados. ria os bens dos senhores e com eles abarrotava
Mostrarei, na continuação deste livro 69 6, o fisco, humilhava a nobreza e ninguém podia
que independentemente dos dotes que os prín­ ter certeza de conservar o pôsto que pos­
cipes concederam por certo tempo, outros suía701. O exército conspirou contra ele e
houve que concederam para sempre. Sucedeu apunhalaram-no em sua tenda; e Brunilda, seja
que o tribunal quis revogar os donativos que ti­ pelas vinganças 702 que extraiu dessa morte,
nham sido feitos: isso ocasionou geral descon­
tentamento na nação, e logo se viu nascer essa 69 7 Crônica de Fredegário, cap. XLII. (N. do A.)
famosa revolução na história da França cuja 698 Clotário II, filho de Chilperico e pai de Dago-
primeira época foi o espantoso espetáculo do berto. (N. do A.)
suplício de Brunilda. 699 Crônica de Fredegário, cap. XLII. (N. do A.)
700 Vede Gregório de Tours, liv. VIII, cap. XXXI.
Parece, a princípio, extraordinário que essa (N. do A.)
rainha, filha, irmã, mãe de tantos reis, famosa 701 “Saeva illifuit contrapersonas iniquitas, fisco
ainda hoje por obras dignas de um edil ou de nimium tribuens, de rebus personarum ingeniosefis-
um procônsul romano, nascida com um gênio cum vellens implere. . . ut nullus reperiretur qui
gradum quem arripuerat potuisset adsumere.” Crô­
nica, de Fredegário, cap. XXVII, sobre o ano 605.
69 5 Gregório de Tours, liv. IV, cap. XLII. (N. do (N. do A.)
A.) 702 Ibid., cap. XXVIII, sobre o ano 607. (N. do
69 6 Cap. VIL (N. do A.) A.)
516 MONTESQUIEU

seja por insistir no mesmo plano, tornou-se crônicas, que sabiam tanto de história de seu
cada dia mais odiosa à nação 7 0 3. tempo como os aldeões sabem hoje da do
Clotário, ambicionando reinar sozinho, e nosso tempo, são muito estéreis. Contudo,
possuído da mais horrível vingança, certo de temos uma constituição de Clotário, outor­
perecer se os filhos de Brunilda levassem van­ gada no concilio de Paris 70 5 para a reforma
tagem, participou de uma conjuração contra si dos abusos, que mostra que esse príncipe fez
próprio; e, quer por ter sido inábil, quer por ter cessar as queixas que a revolução 70 6 tinha ori­
sido forçado pelas circunstâncias, tornou-se ginado. De um lado, confirma todos os donati­
acusador de Brunilda, e mandou fazer dessa vos que haviam sido feitos ou confirmados
rainha um terrível exemplo. pelos reis, seus predecessores7 0 7, e ordena, de
Varnacário fora a alma da conjuração con­ outro lado, que tudo o que fora retirado de
tra Brunilda; foi feito prefeito do paço de Bor- seus leudos ou fiéis lhes fosse restituído 703
*708.
gonha; exigiu de Clotário que nunca durante
Essa não foi a única concessão que o rei fez
sua vida70 4 fosse substituído. Com isso o pre­
nesse concilio. Quis que o que fora feito contra
feito do paço não mais pôde estar no caso em
os privilégios dos eclesiásticos fosse corrigi­
que tinham estado os senhores franceses; e esta
do709; moderou a influência do tribunal nas
autoridade começou a tornar independente a
eleições dos bispados710. O rei reformou
autoridade real.
Fora a funesta regência de Brunilda que igualmente os assuntos fiscais; quis que todos
sobretudo enfurecera a nação. Enquanto as leis os novos censos fossem suprimidos711; que
subsistiram em sua força, ninguém pôde não se arrecadasse nenhum direito de passa­
lamentar-se de que um feudo lhe tinha sido gem estabelecido depois da morte de Gontrão,
arrebatado, pois a lei não Iho outorgava para Sigiberto e Chiipericc712, ou seja: suprimia
sempre; mas, quando a avareza, as práticas tudo o que fora feito durante as regências de
perniciosas, a corrupção fizeram com que se Fredegunda e de Brunilda; proibiu que seus
concedessem feudos, lamentou-se de que se rebanhos fossem levados às florestas dos parti­
fosse privado por meios reprováveis, desones­ culares 71 3; e veremos brevemente que a refor­
tos, de coisas amiúde obtidas da mesma ma foi ainda mais geral e se estendeu aos negó­
maneira. É possível que, se o bem público cios civis.
tivesse sido o motivo da revogação das dádi­
vas, nada se tivesse dito; mas mostrava-se a 70 5 Algum tempo após o suplício de Brunilda, no
ordem sem esconder a corrupção; reclamava- ano 615. Vede a edição das Capitulares de Baluze,
se o direito do fisco a seu bel-prazer; as dádi­ pág. 21. (N. do A.)
79 6 Quae contra rationis ordinem acta vel ordinata
vas não mais foram a recompensa ou a espe­ sunt, ne in antea, quod averiat divinitas, contingant,
rança dos serviços. Brunilda, por um espírito disposuerimus, Christo proesule, per hujus edicti
corrompido, quis corrigir os abusos da corrup­ tenorem generaliter emendare. Ibid., art. 16. (N. do
ção antiga. Seus caprichos não eram os de um A.)
70 7 Ibid., art. ló.(N.do A.)
espírito fraco; os leudos e os grandes oficiais 708 Ibid., art. 17. (N. do A.)
se acreditaram perdidos; eles a perderam. 709 Et quodper têmpora ex hocpraetermissum est,
Falta muito para que conheçamos todos os vel dekinc, perpetualiter observetur. (N. do A.)
atos ocorridos nessa época; e os fazedores de 710 Ita ut episcopo decendete, in loco ipsius qui a
metropolitano ordinari debet cum provincialibus, a
clero et populo eligatur; et si persona condigna fue-
703 Ibid., cap. XLI, sobre o ano 613. Burgundiae rit, per ordinationem principis ordinetur; vel certe^si
farones, tam episcopi quam caeteri leudes, timentis palatio eligitur, per meritum personae et doctrinae
Brunichildem, et odium in eam habentes, consilium ordinetur. Ibid., art. I. (N. do A.)
inientes etc. (N. do A.) 711 Ut ubicumque census novus impie additus est,
70 4 Crônica de Fredegário, cap. XLII, sobre o ano ernendetur, art. 8. (N. do A.)
613. Sacramento Clotário accepto ne unquam vitae 712 Ibid., art. 9. (N. do A.)
suae temporibus degradaretur. (N. do A.) 713 Ibid., art. 21.ÍN. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 517

Capítulo II

De como o governo civil foi reformado

Vira-se até aqui a nação dar sinais de impa­ porque eram tão vorazes e injustos quanto
ciência e de precipitação em relação à escolha eles. Havia muitas leis estabelecidas, mas os
ou à conduta de seus senhores; vira-se regula­ reis as tomavam inúteis com certas cartas,
mentar os litígios de seus senhores entre si, e denominadasprecepções11 4, que anulavam as
lhes impor a necessidade da paz. Porém, o que mesmas leis; era aproximadamente como os
ainda não fora visto, a nação o fez então: lan­ rescritos dos imperadores romanos, seja por­
çou a vista sobre a situação atual, examinou que os reis tivessem imitado esse uso, seja por­
suas leis com sangue-frio, proveu à sua insufi­ que o tivessem extraído do próprio âmago de
ciência, pôs fim às violências, regulamentou o sua natureza. Vê-se, em Gregório de Tours,
poder. que eles cometiam assassínios a sangue-frio e
As regências varonis, audaciosas e insolen­ mandaVam matar acusados que não haviam
tes de Fredegunda e de Brunilda tinham mais sequer sido ouvidos; outorgavam precepções
advertido esta nação do que assombrado. Fre­ para casamentos ilícitos71 5, para transferir
degunda defendera suas perversidades por suas heranças, para suprimir direitos dos parentes,
próprias perversidades; justificara o veneno e para desposar religiosas. Na verdade, não só
os assassínios pelo veneno e pelos assassínios; faziam leis por sua iniciativa, como também
conduzira-se de modo que seus atentados fos­ suspendiam a prática das que eram feitas.
sem ainda mais particulares que públicos. Fre­ O edito de Clotário reparou todos esses gra-
degunda causou mais males, Brunilda fez vames. Ninguém podia mais ser condenado
receá-los ainda mais. Nesta crise, a nação não sem ser ouvido71 6, os parentes deviam sempre
se contentou com colocar ordem no governo suceder segundo a ordem estabelecida pela
feudal; quis também assegurar seu governo lei717, todas as precepções para esposar
civil, pois este era também mais corrompido jovens, viúvas ou religiosas foram inúteis e se
do que o outro; e esta corrupção era tanto puniu severamente os que as obtiveram ou
mais perigosa quanto era mais antiga, e se deias fizeram uso71 8. Saberiamos talvez mais
relacionava, de algum modo, mais ao abuso exatamente o que estatuía sobre essas precep­
dos costumes do que ao abuso das leis. ções se o artigo 13 desse decreto, e os dois
seguintes, não tivessem sido destruídos pelo
A história de Gregório de Tours e outros
tempo. Só possuímos as primeiras palavras do
monumentos mostram-nos, de um lado, uma
artigo 13 que ordenam que as precepções
nação feroz e bárbara; e, de outro, reis que não
o eram menos. Esses príncipes eram assassi­ sejam observadas; o que não se pode entender
com relação às que acabavam de ser abolidas
nos, injustos e cruéis porque toda a nação o
era. Se o cristianismo parece, algumas vezes, pela mesma lei. Possuímos outra constituição
abrandá-los, foi apenas pelo terror que o cris' do mesmo príncipe71 9 que se reporta a seu
tianismo inspirou aos culpados. As igrejas
defendefam-se contra eles pelos milagres e 71 4 Eram ordens que os reis enviavam aos juizes
para fazerem ou tolerarem certas coisas contra a lei.
pelos prodígios de seus santos. Os reis não (N. do A.)
eram sacrílegos porque temiam as penas dos 71 6 Vede Gregório de Tours, liv. IV, pág. 227. A
sacrilégios; mas cometeram, de outro lado, por história e as chartas estão repletas disso; e a exten­
são desses abusos aparece sobretudo no edito de
cólera ou a sangue-frio, todas as espécies de Clotário II, do ano de 615, outorgado para refor­
crimes e de injustiças, porque esses crimes e má-los. Vede as Capitulares, edição de Baluze,
essas injustiças não mostravam a mão da tomo I, pág. 22. (N. do A.)
divindade tão presente. Os francos, como afir­ 716 Art. 22. (N. do A.)
71 7 Ibid., art. 6. (N. do A.)
mei, suportaram os reis homicidas porque eles 718 Ibid., art. 18. (N.do A.)
próprios eram homicidas; não se impressio­ 719 Na edição das Capitulares de Baluze, tomo i,
naram com as injustiças e rapinas de seus reis pág. 7. (N. do A.)
518 MONTESQUIEU

edito, corrigindo, iguálmente, ponto por ponto, fraqueza do reinado de Gontrão, a crueldade
todos os abusos das precepções. do de Chilperico, e as detestáveis regências de
É verdade que o Sr. Baluze, encontrando Fredegunda e de Brunilda. Ora, como a nação
essa constituição sem data e sem o nome do teria podido suportar afrontas tão solenemente
lugar em que foi dada, atribuiu-a a Clotário I. proscritas, sem ter mlnca reclamado contra a
Pertence ela a Clotário II. Darei três razões: repetição contínua dessas afrontas? Como não
1. ° Declara-se aí que o rei conservará as teria ela> feito então o que fez quando, tendo
imunidades concedidas às igrejas por seu pai e Chilperico II721 retomado as antigas violên­
seu avô 720. Que imunidades poderia conceder cias, ordenou-lhe que nos julgamentos se obe­
às igrejas Childerico, avô de Clotário I, ele que decesse às leis e aos costumes, como se fazia
não era cristão e que vivia antes de a monar­ antigamente 7 2 2 ?
quia ter sido fundada? Mas, se atribuímos este ° Finalmente, esta constituição, feita para
3.
decreto a Clotário II, teremos como seu avô o reparar as afrontas, não pode concernir a Clo­
próprio Clotário I, que efetuou enormes dona­ tário I, pois, sob seu reinado, não havia quei­
tivos às igrejas a fim de expiar a morte de seu xas no reino a este respeito, e sua autoridade
filho Cramne, que ele mandara queimar junta­ era bastante sólida, sobretudo na época em que
mente com a esposa e os filhos. se situa esta constituição, ao passo que ela se
2. ° Os abusos que esta constituição corrige adapta muito bem aos acontecimentos que
subsistiram depois da morte de Clotário I, e ocorrerão no reinado de Clotário II, causando
foram mesmo levados a seu cúmulo durante a uma revolução no estado político do reino.
Cumpre esclarecer a história pelas leis e as leis
720 Falei, no livro precedente, cap. XXI, dessas pela história.
imunidades, que eram concessões de direitos de jus­
tiça e que continham proibições aos juizes reais de
exercer qualquer função no território, e eram equi­ 721 Começou a reinar por volta do ano 670. (N. do
valentes à ereção ou sucessão de um feudo. (N. do A.)
A.) 722 Vede a Vida de São Ligério. (N. do A.)

Capitulo III

Autoridade dos prefeitos do paço

Afirmei que Clotário II comprometera-se a Destarte, hão se deve confundir, como


não retirar o cargo de Varnacário durante sua fazem alguns autores, esses prefeitos do paço
vida. A revolução produziu outro resultado. com os que tinham essa dignidade antes da
Antes desse tempo, o prefeito era o prefeito do morte de Brunilda, os prefeitos do rei com os
rei; tornou-se ele prefeito do reino; o rei o prefeitos do reino. Vemos, pela lei dos bofgui-
escolhia, a nação o escolheu. Protário, antes nhões, que entre eles o cargo de prefeito não
da revolução, tinha sido feito prefeito por era um dos primeiros do Estado 7 2 6; não foi
Teodorico 723, e Landerico por Fredegun­ também um dos cargos mais eminentes entre
da724; porém, desde então a nação começou a os primeiros reis francos 7 2 7.
eleger 72 5. Clotário garantiu os que possuíam cargos e
feudos; e, depois da morte de Varnacário,
723 Instigante Brunichilde, Theodorico jubente, tendo este príncipe perguntado aos senhores
etc. Fredegário, cap. XXVII, sobre o ano 605. (N. reunidos em Troyes quem eles queriam colocar
do A.) em seu lugar, bradaram todos que não elege­
72 4 Gesta Regum Francorum, cap. XXXVI. (N. ríam 728 e, solicitando seu favor, colocaram-se
do A.) em suas mãos.
72 5 Vede Fredegário, Crônica, cap. LIV, sobre o
ano 626, e seu continuaddr anônimo, cap. Cl, sobre
o ano 695; e cap. CV, sobre o ano 715. Aimoin, liv. 72 6 Vede a lei dos borguinhões, in Proefat., e o
IV, cap. XV. Eginhard, Vie de Charlemagne, cap. segundo suplemento dessa lei, tít. XIII. (N. do A.)
XLVIII. Gesta Regum Francorum, cap. XLV. (N. 72 7 Vede Gregório de Tours, liv. IX, cap. XXXVI.
do A.) (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 519

Dagoberto, como seu pai, reuniu toda a cio 732; restituíram todos os bens que Dago­
monarquia: a nação apoiou-se nele e não lhe berto tomara733 e as queixas cessaram na
deu prefeito. Este príncipe sentiu-se em liber­ Nêustria e na Borgonha, como tinham cessado
dade; e garantido, aliás, por suas vitórias, reto­ na Austrásia.
mou o plano de Brunilda. Mas nisto saiu-se tão Após a morte de Egas, a rainha Nantilda
mal, que os leudos da Austrásia se deixaram incitou os senhores da Borgonha a escolher
derrotar pelos esclavões 72 9, retornaram a seu Floachato para seu prefeito 73 4. Este enviou
país e as fronteiras da Austrásia ficaram em aos bispos e aos principais senhores do reino
poder dos bárbaros. da Borgonha cartas nas quais lhes prometia
Preferiu ele propor aos austrasianos ceder a conservar para sempre, isto é, durante sua
Austrásia a seu filho Sigiberto, com um tesou­ vida, suas honras e suas dignidades 73 5. Con­
ro, e colocar o governo do reino e do palácio
firmou sua palavra com um juramento. É aqui
nas mãos de Cuniberto, bispo de Colônia, e do que o- autor do Livro dos Prefeitos da Casa
Duque Adalgiso. Fredegário não entrou nas Real assinala o começo da administração do
minúcias das convenções que desde então reino pelos prefeitos do paço 73 6.
foram feitas; mas o rei as confirmou todas com
suas chartas e logo a Austrásia foi colocada Fredegário, que era borguinhão, entrou em
fora de perigo73°. maiores minudências no que concerne aos pre­
Dagoberto, percebendo que ia morrer, reco­ feitos da Borgonha na época da revolução de
mendou sua mulher Nantilda e seu filho Clóvis que falamos, do que sobre os prefeitos da Aus­
a Egas. Os leudos da Nêustria e da Borgonha trásia e da Nêustria; mas as convenções que
escolheram este jovem príncipe para seu foram feitas na Borgonha foram, pelos mes­
rei731. Egas e Nantilda governaram o palá- mos motivos, feitas na Nêustria e na Austrá­
sia.
72 8 “Eo anno, Clotarius cum proceribus et leudi- A nação acreditou que era mais seguro colo­
bus Burgundiae Trecassinis conjungitur, cum eorum car o poder nas mãos de um prefeito que ela
esset sollicitus, si vellent jam, Warnachario disces- elegesse e a quem podia impor condições do
so, alium in ejus honoris gradum sublimare; sed que nas de um rei cujo poder era hereditário.
omnes unanimiter denegantes se nequaquam velle
Majorem domus eligere, regis gratiam obnixe peten-
tes, cum rege transegere. ” Crônica de Fredegário, 732 Ibid., (N. do A.)
cap. LIV, sobre o ano 626. (N. do A.) 733 Ibid., cap. LXXX, sobre o ano 639. (N. do A.)
729 “Istam victoriam, quam Vinidi contra Francos 73 4 Ibid., cap. LXXXIX, sobre o ano 641. (N. do
meruerunt, non tantum Sclavinorum fortitudo obti- A.)
nuit, quantum dementatio Austrasiorum, dum se 73 5 Ibid., Floachatus cunctis ducibus a regno
cernebant cum Dagoberto odium incurisse, et assi- Burgundiae, seu et pontificibus, per epistolam etiam
due expoliarentur." Crônica de Fredegário, cap. et sacramentis firmavit unicuique gradum honoris et
LXVIII, sobre o ano 630. (N. do A.) dignitatem, seu et amicitiam, pérpetuo conservare.
730 “Deinceps Autrasii eorum studio limitem et (N. do A.)
regnum Francorum contra Vinidos utiliter defen- 73 6 “Deinceps a temporibus Clodovei, quifuit fi-
sasse noscuntur." Crônica de Fredegário, cap. lius Dagoberti inclyti regis, pater vero Theodorici,
LXXXV. (N. do A.) regnum Francorum decidens per majores domus
731 Crônica de Fredegário, cap. LXXIX, sobre o coepit ordinari. ” De mqjor, domus regiae. (N. do
ano 638. (N. do A.) A.)

Capítulo IV

Qual era o espírito da nação a respeito dos prefeitos

Um governo e uma nação que tinha rei, que Descendiam eles dos germanos, dos quais
elegesse quem deveria exercer o poder real, diz Tácito que, na escolha de seus reis, orienta­
parecia bem extraordinário; mas, independen­ vam-se por sua nobreza 73 7 ; e na escolha de
temente das circunstâncias em qúe se encon­
travam, creio que os francos extraíam, a este 73 7 “Reges ex nobilitate, duces ex virtude sumunt. ”
respeito, suas idéias de muito longe. De Morib. Germ., cap. VII. (N. do A.)
520 MONTESQUIEU

seus chefes, por sua virtude. Eis os reis de pri­ primeiros reis estiveram à frente dos tribunais
meira raça, e os prefeitos do paço; os primei­ e das assembléias e fizeram leis com o consen­
ros eram hereditários, e os segundos eleti­ timento dessas assembléias; foi pela dignidade
vos733. do duque ou do chefe que eles empreenderam
Não podemos duvidar que estes príncipes suas expedições e comandaram seus exércitos.
que, na assembléia da nação, se levantavam e Para conhecer o gênio dos primeiros francos
se propunham para chefes de algum empreen­ a este respeito, basta lançar os olhos sobre a
dimento a todos que quisessem segui-los, não conduta de Arbogasto 7 3 9, franco de nacionali­
reunissem, na maior parte, em sua pessoa, a dade, a quem Valentiniano entregara o coman­
autoridade do rei e o poder do prefeito. Sua do do exército. Enclausurou o imperador no
nobreza lhes dera a realeza, e sua virtude, palácio, não permitiu a quem quer qué fosse
fazendo-os seguir por muitos voluntários que falar-lhe de qualquer negócio civil ou militar.
os escolhiam para chefe, lhes dava o poder do Arbogasto fez nessa época o que os Pepinos
prefeito. Foi pela dignidade real que nossos fariam depois.

73 8 È o que dizia Bouianviiliers no seu Gouverne- 739 Vede Suipicius Alexander, em Gregório de
ment de la France (t. I, pág. 28) (N. do A.) Tours, liv. II. (N. do A.)

Capitulo V

De como os prefeitos obtiveram o comando dos exércitos


Enquanto os reis comandaram os exércitos, Viu-se nascer, daí, um sem-número de
a nação não pensou em escolher um chefe. inconvenientes; não mais houve disciplina, não
Clóvis e seus quatro filhos estiveram à frente mais se soube obedecer; os exércitos não
dos franceses e os conduziram de vitória em foram mais funestos senão a seus próprios paí­
vitória. Teobaldo, filho de Teodeberto, prín­ ses; abarrotavam-se de despojos antes de en­
cipe jovem, fraco e doente, foi o primeiro dos trar em território inimigo. Encontramos em
reis que permaneceu em seu palácio7 4<) Gregório de Tours viva descrição de todos
Recusou empreender uma expedição à Itália esses males7 4 4. “Como poderemos obter a
contra Narsés e teve o desgosto de ver os fran­ vitória”, diz Gontrão 7 4 5, “nós que nem
cos escolherem dois chefes que os comanda­ mesmo conservamos o que nossos pais adqui­
ram 7 41. Dos quatro filhos de Clotário I, Gon- riram? Nossa nação não é mais a mesma. . .”
trão foi quem mais negligenciou o comando Coisa estranha! Encontrava-se ela em deca­
dos exércitos 7 42; outros reis seguiram seu dência desde os tempos dos netos de Clóvis.
exemplo e, para colocar sem perigo o comando Era, pois, natural que se viesse a estabelecer
em outras mãos, eles o deram a vários chefes um único duque; um duque que possuísse
ou duques 7 43. autoridade sobre esta multidão infinita de
senhores e de leudos que não mais conheciam
7 40 No ano 552. (N. do A.) seus compromissos; um duque que restabele­
7 41 Leutheris vero et Butilinus, tametsi id regi
ipsorum minime placebat, belli cum eis societatem cesse a disciplina militar e que levasse contra o
inierunt. Agátias, liv. I, Gregório de Tours, liv. IV, inimigo uma nação que apenas sabia fazer a
cap. IX. (N. do A.) guerra contra si própria. Entregou-se o poder
7 42 Gontrão não efetuou sequer a expedição con­ aos prefeitos do paço.
tra Gondovaldo, que se proclamava filho de Clotá­
rio e reclamava sua parte no reino. (N. do A.) A primeira função dos prefeitos do paço foi
7 43 Algumas vezes, em número de vinte. Vede Gre­ o governo econômico das casas reais. Tiveram
gório de Tours, liv. V, cap. XXVII; liv. VIII, cap. eles, juntamente com outros oficiais, o governo
XVIII e XXX; liv. X, cap. III. Dagoberto, que não político dos feudos; e, finalmente, deles dispu-
tinha prefeito na Borgonha, efetuou a mesma polí­
tica e enviou contra os gascões dez duques e vários
condes que nao estavam submetidos a outros 7 4 4 Gregório de Tours, liv. VIII, cap. XXX, e liv
duques. Crônica de Fredegário, cap. LXXVIII, X, cap. III. (N. do A.)
sobre o ano 636. (N. do A.) 7 4 5 Ibid., liv. VIII, cap. XXX. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 521

seram sozinhos7 4 6. Tiveram igualmente a e quem mais, além daquele que dispunha das
administração dos negócios da guerra e o graças, poderia ter esta autoridade? Nessa
comando dos exércitos; e essas duas funções se nação independente e guerreira, cumpria antes
encontraram necessariamente relacionadas convidar do que compelir; cumpria dar ou
com as duas outras. Naquela época, era mais
fazer esperar os feudos que vagavam com a
difícil reunir os exércitos do que comandá-los:
morte do possuidor, recompensar incessante­
7 4 6 Vede o segundo suplemento à lei dos borgui­
mente, fazer temer as preferências: quem tives­
nhões, tít. XIII, e Gregório de Tours, liv. IX, cap. se a superintendência do palácio devia ser,
XXXVI. (N. do A.) portanto, o general do exército.

Capítulo VI

Segunda época do declínio dos


reis da primeira raça

Desde o suplício de Brunilda, os prefeitos ti­ como numa espécie de prisão 7 50. Uma vez em
nham sido administradores do reino sob os cada ano eram mostrados ao povo. Ali baixa­
reis; e, embora tivessem a direção da guerra, vam ordenanças, mas eram as do prefeito 7 51;
os reis, entretanto, estavam à frente dos exérci­ respondiam aos embaixadores, mas eram as
tos, e o prefeito e a nação combatiam sob suas respostas do prefeito. É dessa época que os
historiadores nos falam do domínio dos prefei­
ordens. Mas a vitória do Duque Pepino sobre tos sobre os reis que lhes estavam submeti­
Teodorico e seu prefeito 7 4 7 acabou de degra­ dos752.
dar os reis 7 48; a vitória obtida7 49 por Carlos O delírio da nação pela família de Pepino
Martelo sobre Chilperico e seu prefeito Rain- foi tão longe, que elegeu para prefeito um de
fredo confirmou essa degradação. A Austrásia seus netos que estava ainda na infância7 53;
manteve-o contra um certo Dagoberto, e colo­
triunfou duas vezes sobre a Nêustria e a Bor­ cou um fantasma sobre outro fantasma.
gonha; e, estando o prefeito da Austrásia como
que ligado à família dos Pepinos, esta prefei­ 15 0 “Sedemque UH regalem sub sua ditione conces-
tura elevou-se acima de todas as demais, e esta sit. ”Anais de Metz sobre o ano 719. (N. do A.)
casa sobre todas as outras. Os vencedores 751 Ex Chronico Centulensi, liv. II. Ut responsa
quae erat edoctus, ve,' potius jussus, ex sua velut
temeram que algum homem acreditado se apo­ potestate redderet (N. do A.)
derasse da pessoa dos reis .para promover 7 52 Anais de Metz sobre o ano 691. Annoprinci-
perturbações. Mantiveram-nos numa casa real, patus Pippini super Theodericum. . . Anais de
Fulde ou de Laurisham (Loersch). Pippinus dux
Francorum obtinuit regnum Francorum per annos
7 4 7 Vede os Anais de Metz sobre o ano 687 e 688 27, cum regibus sibi subjectis. (N. do A.)
(N. do A.) 753 Posthaec Theudoaldus, filius ejus (Grimoaldi)
rt<s lílis quidem nomina regum imponens, ipse to- parvulus, in loco ipsius cum proedicto rege Dago­
tius regni habens privilegium etc. Ibid., sobre o ano berto, majordomus palatíi ejjectus est. O conti-
695. (N. do A.) nuador anônimo de Fredegário, sobre o ano 714,
7 49 Ibid., sôbre o ano 719. (N. do A.) cap. CIV. (N. do A.)
522 MONTESQUIEU

Capítulo VII

Dos grandes ofícios e dos feudos


sob os prefeitos do paço

Não tiveram os prefeitos do paço nenhum os reis dedicam à pessoa e aos herdeiros 7 5 7 : e,
cuidado em restabelecer a amovibilidade dos como as fórmulas são imagens das ações ordi­
cargos e dos ofícios; só reinaram graças à pro­ nárias da vida, elas provam que, no fim da pri­
teção que concediam, a este respeito, à nobre­ meira raça, uma parte dos feudos passava já
za: assim, os grandes ofícios continuaram a ser aos herdeiros. Muito faltava para que se tives­
dados vitaliciamente e esta prática confirmou- se, naquela época, a idéia de um domínio
inalienável; isto é uma coisa muito moderna
se cada vez mais.
que, então, não era conhecida nem na teoria
Porém, tenho reflexões particulares a fazer
nem na prática.
sobre os feudos. Não posso duvidar que naque­ Ver-se-ão, logo mais, sobre isto, provas efe­
le período a maior parte não tivesse sido torna­ tivas: e, se mostro uma época em que não se
da hereditária. encontram mais benefícios para o exército,
nem qualquer fundo para sua manutenção,
No tratado de Andely 7 5 4, Gontrão e seu
devemos convir que os antigos benefícios ti­
sobrinho Childeberto obrigam-se a manter as nham sido alienados. Esse período foi o de
liberalidades outorgadas aos leudos e às igre­ Carlos Martelo, que fundou novos feudos, os
jas pelos reis seus predecessores; e é permitido quais devemos distinguir dos primeiros.
às rainhas, às jovens, às viúvas de reis, dispor, Quando os reis começaram a outorgar
por testamento, e para sempre, das coisas que vitaliciamente, seja pela corrupção que se
introduziu no governo, seja pela própria cons­
recebiam do fisco 7 5 5.
tituição que fazia com que os reis estivessem
Marculfo escreveu suas fórmulas no tempo obrigados a recompensar incessantemente, era
dos prefeitos 7 5 6. Encontramos várias em que natural que começassem antes a dar perpetua­
mente os feudos do que os condados. Privar-se
de algumas terras era pouca coisa; renunciar
7 5 4 Relatado por Gregório de Tours, liv. IX. Vede aos grandes ofícios era perder o próprio poder.
também o edito de Clotário II, do ano 615, art. 16.
(N. do A.)
7 5 5 Ut si quid agris fiscalibus vel speciebus atque 7 5 7 Vede a fórmula XIV do livro I, que se aplica
praesidio, pro arbitrii sui voluntate.facere, aut cui- igualmente a bens fiscais dados diretamente para
quam conferre voluerint, fixa stabilitate perpetuo sempre, ou dados inicialmente em benefício e,
conservetur. (N. do A.) depois, para sempre: Sicut ab i[lo, aut a fisco nos-
7 5 0 Vede a formula XXIV e a fórmula XXXIV do tro, fuit possessa. Vede também a fórmula XVII,
livro I. (N. do A.) ibid. (N. do A.)

Capítulo VIII

Como os alódios foram transformados em feudos

A maneira de transformar um alódio em em usufruto ou benefício, e este designava ao


feudo encontra-se na fórmula de Marculfo 7 58. rei seus herdeiros.
Dava-se a terra ao rei; ele a restituía ào doador Para descobrir os motivos que existiram
para desnaturar assim seu alódio, cumpre que
7 58 Liv. I, fórmula XIII. (N. do A.) eu procure, como nos abismos, as antigas prer­
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 523

rogativas dessa nobreza que, há onze séculos, vinho por tanto tempo quanto tivesse faltado
está coberta de poeira, sangue e suor. ao serviço; mas o homem livre que não seguira
Os que possuíam feudos tinham imensas o conde 7 70 pagava uma reparação de seiscen­
vantagens. A reparação pelos prejuízos que se tos soidos7 71 e era posto em servidão até que a
lhes fazia era mais forte que a dos homens tivesse pago.
livres. Parece, pelas fórmulas de Marculfo, que Portanto, é fácil pensar que os francos, que
era privilégio do vassalo do rei que quem o não eram vassalos do rei, e ainda mais os
matasse pagaria seiscentos soidos de repara­ romanos, procuraram vir a sê-lo; e que, a fim
ção. Esse privilégio fora estabelecido pela lei de não serem privados de seus domínios,
sálica 7*59 e pela dos ripuários 7 60; e, enquanto imaginou-se a prática de dar seu alódio ao rei,
essas duas leis ordenavam seiscentos soidos receber dele um feudo, de lhe designar seus
pela morte do vassalo do rei, elas só estipu­ herdeiros. Esse uso continuou sempre; e ocor­
lavam duzentos pela morte de um ingênuo, reu sobretudo nas desordens da segunda raça,
franco, bárbaro, ou homem que vivesse sob a em que toda gente necessitava de um protetor e
lei sálica7 61; e cem pela de um romano. queria unir-se com outros senhores 7 72, e
Este não era o único privilégio que os vassa­ entrar, por assim dizer, na monarquia feudal,
los do rei possuíam. Faz-se mister saber que, porque não mais havia monarquia política.
quando um 7 62 homem era citado em julga­ Isto continuou na terceira raça, como se vê
mento, e não se apresentava, ou não obedecia por diversas chartas 7 73, seja dando seu alódio,
às ordenanças dos juizes, era chamado diante e recuperando-o pelo mesmo ato; seja decla-
do rei; e, se persistisse em sua contumácia, era rando-o alódio e reconhecendo-o como feudo.
colocado fora da proteção do rei 7 63 e ninguém Denominavam-se esses feudos feudos de reto­
podia recebê-lo em casa, nem mesmo lhe dar mada.
pão: ora, se fosse ele de condição ordinária, Isto não significa que os que possuíam feu­
seus bens eram confiscados 7 6 4, mas, se se tra­ dos os governassem como bons pais de famí­
tasse de um vassalo do rei, eles não o eram 7 6 5. lia; e, embora os homens livres procurassem
O primeiro, por sua contumácia, era conside­ sempre possuir feudos, tratavam esse gênero
rado culpado do crime, mas não o segundo. de bens como se administram atualmente os
Aquele, nos menores crimes era submetido à usufrutos. Foi isso que levou Carlos Magno, o
prova da água fervente 7 6 6; este só era conde­ mais vigilante e atento príncipe que tivemos, a
nado em caso de homicídio 7 6 7. Finalmente, fazer muitos regulamentos para impedir que
um vassalo do rei não podia ser obrigado a não se degradassem os feudos em favor de suas
jurar em justiça contra outro vassalo 7 68. Estes propriedades 7 7 4. Isto prova somente que, em
privilégios aumentaram sempre; e a capitular sua época, a maior parte dos benefícios ainda
de Carlomano concede esta honra aos vassalos vigorava e que, consequentemente, se cuidasse
do rei de não se poder obrigá-los a jurar mais dos alódios que dos benefícios; mas isso
pessoalmente, mas apenas pela boca de seus não impede que não se preferisse ainda ser vas­
próprios vassalos 7 69. Demais, quando o que salo do rei do que homem livre. Podia-se ter
tinha as honras não se apresentava no exército, motivos para dispor de certa porção particular
sua pena consistia em se abster da carne e do de um feudo, mas não se queria perder sua pró­
pria dignidade.
7 5 9 Tít. XLIV. Vede também os títulos LXVI, § § 3 Bem sei, ainda, que Carlos Magno lamenta-
e 4, e o tít. LXXIV. (N. do A.) se, numa Capitular, que, em alguns lugares,
7 60 Tít. XI. (N. do A.)
7 61 Vede a lei dos ripuários, tít. VII; e a lei sálica,
tít. XLIV, art. 1 e 4. (N. do A.) 7 70 Capitular de Carlos Magno, que é a segunda
7 62 Lei sálica, tít. LIX e LXXVI. (N. do A.) do ano 812, art. 1 e 3. (N. do A.)
7 63 Extra sermonem regis. Lei sálica, tít. LIX e 7 71 Heribannum. (N. do A.)
LXXVI. (N. do A.) 7 72 Non infirmis reliquit hoeredibus, diz Larriberd
7 6 4 Ibid., tít. LIX, § 1. (N. do A.) d’Ardres, em du Cange na palavra alodis. (N. do A.)
7 6 5 Ibid., tít. LXXVI, § 1. (N. do A.) 7 73 Vede a que du Cange cita na palavra alodis; e
7 6 6 Ibid., tít. LVI e LIX. (N. do A.) as que cita Galland, Traité du Franc-aleu, pág. 14 e
7 6 7 Ibid., tít. LXXVI, § 1. (N. do A.) seguintes. (N. do A.)
7 68 Lei sálica, tít. LXXVf, § 2. (N. do A.) 7 7 4 Capitular II do ano 802, art. 10; e a Capitular
7 69 Apud Vernis Palatium, do ano 883, art. 4 e 11. VII do ano 803, art. 3; e a Capitular I, incerti anni,
(N. do A.) art. 49, e a Capitular do ano 806, art. 7. (N. do A.)
524 MONTESQUIEU

existiam pessoas que davam seus feudos como risse uma propriedade a um usufruto; afirmo
propriedade, e os resgatavam em seguida como somente que, quando se podia fazer de um aló-
propriedade 7 7 5. Mas não digo que se prefe- dio um feudo que passasse aos herdeiros, no
caso da fórmula a que me referi, obtinham-se
7 7 5 A quinta do ano 806, art. 8. (N. do A.) grandes vantagens.

Capítulo IX

Como os bens eclesiásticos foram convertidos em feudos

Os bens fiscais não deveríam ter tido outro na Borgonha; e isto é bem evidente pelas nos­
destino que o de servir aos donativos que os sas crônicas, onde os monges não podem dei­
reis podiam fazer para convidar os francos a xar de admirar a devoção e a liberalidade dos
novos empreendimentos, os quais aumenta­ Pepinos 7 79. Eles próprios tinham ocupado os
vam, de outro lado, os bens fiscais; e isto era, primeiros lugares da Igreja. “Um corvo não
como tenho dito, o espírito da nação; mas os fura os olhos de outro”, como dizia Chilperico
donativos tomaram outro curso. Temos um aos bispos78°.
discurso de Chilperico, neto de Clóvis, que já Pepino submeteu a Nêustria e a Borgonha;
se queixa que seus bens tinham sido, quase mas tendo tomado, para destruir os prefeitos e
todos, dados às igrejas 7 7 6. os reis, o pretexto de opressão às igrejas, não
mais podia despojá-las sem contradizer seu tí­
“Nosso fisco tornou-se pobre”, dizia ele; tulo, e mostrar que zombava da nação. Mas a
“nossas riquezas têm sido transportadas para conquista de dois grandes reinos e a destruição
as igrejas 7 7 7. Só os bispos dominam; eles do partido oposto forneceram-lhe muitos
estão na grandeza e nós não mais estamos.” meios de contentar seus capitães.
Isto fez com que os prefeitos, que não ousa­ Pepino tornou-se senhor da monarquia, pro­
vam atacar os senhores', despojassem as igre­ tegendo o clero: Carlos Martelo, seu filho, só
jas; e um dos motivos que alegou Pepino para se pôde manter, oprimindo-o. Vendo este prín­
entrar na Nêustria foi que tinha sido convi­ cipe que uma parte dos bens reais e dos bens
dado pelos eclesiásticos a fim de paralisar as fiscais foi dada vitaliciamente ou como pro­
empresas dos reis, isto é, dos prefeitos, que pri­ priedade à nobreza e que, recebendo o clero
vavam a Igreja de todos os seus bens 7 7 8. das mãos dos ricos e dos pobres, adquirira
Os prefeitos da Austrásia, isto é, a casa dos grande parte dos próprios alodiais, despojou as
Pepinos, tinham tratado a Igreja com mais igrejas; e não mais subsistindo os feudos da
moderação do que se tinha feito na Nêustria e primeira partilha, ele, pela segunda vez, os for­
mou781. Tomou para si e para seus capitães os
bens da Igreja e as próprias igrejas e pôs fim a
7 7 6 Em Gregório de Tours, liv. VI, cap. XLVI. (N.
do A.) um abuso que, diferentemente dos males
7 7 7 Isso fez com que ele anulasse os testamentos comüns, era tanto mais fácil de sanar quanto
feitos em favor das igrejas, e mesmo os donativos era extremo.
feitos por seu pai: Gontrão os restabeleceu e efetuou
mesmo novos donativos. Gregório de Tours, liv.
VII, cap. VIL (N. do A.) 7 79 Vede nos Anais de Metz. (N. do A.)
7 78 Vede os Anais de Metz sobre o ano 687. Exci- 780 Em Gregório de Tours. (N. do A.)
tor imprimis querelis sacerdotum et servorum dei, 7 81 “Karolus, plurima juri ecclesiastico detrahens
qui me saepius adierunt ut pro sublatis injustepatri- praedia fisco sociavit, ac deinde militibus disperti-
moniis etc. (N. do A.) vit. "Ex Chronico Centulensi, liv. II. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 525

Capítulo X

Riquezas do clero

O clero recebia tanto, que seria necessário, se tivessem sido bastante honestos 782. Mas, se
nas três raças, dar-lhe várias vezes todos os os eclesiásticos eram ambiciosos, os laicos
bens do reino. Mas se os reis, a nobreza e o também o eram: se o moribundo outorgava, o
povo encontraram meio de lhe dar todos os sucessor retomava. Viam-se apenas querelas
seus bens, não encontraram menos o de Ihos entre senhores e bispos, gentis-homens e aba­
suprimir. A piedade acarretou a fundação de des; e cumpria perseguir vivamente os eclesiás­
igrejas na primeira raça; porém, o espírito ticos, pois foram eles obrigados a se colocar
militar fê-las dar aos militares, que as parti­ sob a proteção de certos senhores que os defen­
lharam com os filhos. Quantas terras não saí­ diam por um período e os oprimiam depois.
ram das rendas do clero! Os reis da segunda Desde esse momento, uma melhor polícia
raça abriram as mãos e fizeram ainda imensas que se estabelecia no decurso da terceira raça
liberalidades; os normandos chegam, pilham, permitia aos eclesiásticos aumentar seus bens.
devastam e perseguem, sobretudo os padres e Os calvinistas apareceram e mandaram cunhar
os monges, procuram as abadias, vêem onde moeda de tudo o que se encontrou de ouro e
encontrarão qualquer lugar religioso, pois atri­ prata nas igrejas. Como o clero poderia estar
buíam aos eclesiásticos a destruição de seus seguro de sua fortuna se não o estava de sua
ídolos e iodas as violências de Carlos Magno, vida? Tratava das matérias de controvérsia e
que os havia obrigado, uns após outros, a refu- seus arquivos eram queimados. De que servia
giar-se no Norte. Eram ódios que quarenta ou reclamar a uma nobreza sempre arruinada o
cinquenta anos não os tinham podido fazer que eia não mais tinha, ou o que hipotecara de
esquecer. Nesse estado de coisas, quantos bens mil maneiras? O clero sempre adquiriu, sem­
o clero não perdeu! Mal havia eclesiásticos pre devolveu e adquire ainda.
para reclamá-los. Sobraram, portanto, à pieda­
de da terceira raça muitas fundações a serem
criadas e terras a serem dadas: as opiniões, 787 Se livessem sido bastante honestos, isto é,
divulgadas e acreditadas naquela época, te- assaz escrupulosos para se conformarem às vonta­
riam privado os leigos de todos os seus bens, des do testador.

Capítulo XI

Estado da Europa no tempo de Carlos Martelo

Carlos Martelo, que procurou despojar o embaixada78 4 que Gregório III lhe enviou.
clero, encontrou-se nas circunstâncias mais Esses dois poderes estiveram unidos porque
felizes: era temido e amado pelos militares e não podiam passar um sem o outro: o papa
trabalhava para eles; tinha o pretexto de suas necessitava dos francos para sustentá-lo contra
guerras contra os sarracenos 783; apesar de
odiado pelo clero, dele não tinha nenhuma 78 4 Epistolam quoque, decreto romanorum princi-
pum, sibi praedictus praesul Gregorius miserat,
necessidade; o papa, a quem era necessário, quod sese populus Romanus, relicta imperatoris
estendia-lhe os braços; sabemos da célebre dominatione, ad suam defensionem et invictam cle-
mentiam convertere voluisset. Anais de Metz sobre
o ano 741... Eo pacto patrato, at a partibus impe­
783 Vede os Anais de Metz. (N. do A.) ratoris recederet. Fredegário. (N. do A.)
526 MONTESQUIEU

os lombardos e contra os gregos; Carlos Mar­ tudo o que afirmam está escrito e que até mui­
telo precisava do papa para humilhar os gre­ tos dentre eles o tinham ouvido contar a Luís,
gos, embaraçar os lombardos, tornar-se mais o Bonacheirão, pai de dois reis”.
respeitável em seu país, e acreditar os títulos O regulamento do Rei Pepino de que falam
que tinha e os que ele ou seus filhos poderíam os bispos foi feito no concilio realizado em
adquirir 78 5. Não podia, pois, falhar em sua Leptines789. Com isso a Igreja encontrava a
empresa. vantagem de que os que tinham recebido de
Santo Euquério, bispo de Orléans, teve uma seus bens só os mantinham de modo precário
visão que assombrou os príncipes. Sobre isso, e, além disso, ela ganhava seu dízimo e doze
preciso citar a carta 78 6 que os bispos reuni­ dinheiros por cada casa que lhe pertencera.
dos em Reims escreveram a Luís, o Germâ­ Mas tratava-se de um remédio paliativo, e o
nico, que entrara nas terras de Carlos, o mal sempre subsistia.
Calvo, porque ela serve muito bem para nos Mas até isso encontrou contradição, e Pepi­
mostrar qual era, nessa época, o estado das no foi obrigado a fazer outra capitular 790, em
coisas e a situação dos espíritos. Dizem que obrigava os que recebiam destes benefícios
eles 78 7 que, “tendo Santo Euquério sido trans­ a pagar este dízimo e este foro, e até a manter
portado ao céu, viu Carlos Martelo atormen­ as casas do arcebispado ou do monastério, sob
tado no inferno inferior por ordem dos santos pena de perder os bens dados. Carlos Magno
que devem assistir, com Jesus Cristo, ao Juízo renovou os regulamentos de Pepino7 91.
Final; que fora condenado a esta pena antes do O que os bispos dizem na mesma carta, isto
tempo, por ter despojado as igrejas de seus é, que Carlos Magno prometeu, para si e seus
bens e de se ter, com isso, tornado culpado dos sucessores, não mais repartir os bens das igre­
pecados de todos os que as haviam dotado; jas entre os soldados, é conforme à capitular
que o Rei Pepino mandou realizar, a este res­ desse príncipe, dada em Aix-la-Chapelle no
peito, um concilio; que restituiu às igrejas tudo ano 803, feita para acalmar os temores dos
o que pôde retirar dos bens eclesiásticos; que, eclesiásticos a esse respeito; mas as doações já
como não pôde reaver senão uma parte em feitas subsistiram sempre 792. Acrescentam os
consequência de suas desavenças com Vaifre, bispos, e com razão, que Luís, o Bonacheirão,
duque da Aquitânia, mandou fazer, em favor seguiu o procedimento de Carlos Magno, e não
das igrejas, cartas precárias do resto 788; e deu os bens da Igreja aos soldados.
regulamentou que os laicos pagariam um dízi­ Entretanto, os antigos abusos foram tão
mo dos bens que provinham das igrejas e doze longe, que, sob os filhos de Luís, o Bonachei­
dinheiros por cada casa; que Carlos Magno rão, os leigos estabeleciam sacerdotes em suas
não deu os bens da Igreja, que fez, pelo contrá­ igrejas, ou os expulsavam, sem o consenti­
rio, uma capitular pela qual se comprometia, mento dos bispos 793. As igrejas eram dividi­
por si e seus sucessores, a nunca os dar; que das entre os herdeiros 79 4 e, quando eram man­
tidas de maneira indecente, não tinham os
78 6 Podemos ver, nos autores dessa época, a
impressão que a autoridade de tantos papas deixou 789 Ano 743. Vede o livro V das Capitulares, art.
no espírito dos franceses. Embora o Rei Pepino já 3, ed. de Baluze, pág. 825. (N. do A.)
tivesse sido coroado pelo arcebispo de Mogúhcia, 790 A. de Metz, do ano 756, art. 4. (N. do A.)
ele considerou a unção que recebera do Papa Estê­ 791 Vede sua capitular do ano 803, dada em
vão como uma coisa que o confirmava em todos os Worms, edição de Baluze, pág. 411, em que se regu­
seus direitos. (N. do A.) la o contrato precário; e a de Francforte, do ano
78 6 Anno 858, apud Carisiacum, edição de Baluze, 794, pág. 267, art. 24, sobre as reparações das
tomo II, pág. 101. (N. do A.) casas; e a do ano 800, pág. 330. (N. do A.)
78 7 Ibid., tomo II, art. 7, pág. 109. (N. do A.) 792 Como se vê pela nota precedente e pela capitu­
788 Precaria, quod precibus utendum conceditur, lar de Pepino, rei da Itália, em que é declarado que
diz Cujácio, em suas notas sobre o livro I dos feu­ o rei daria os mosteiros como feudo aos que se reco­
dos. Encontro num diploma do Rei Pepino, datado mendassem para feudos. É ela acrescentada à lei
do terceiro ano de seu reinado, que esse príncipe dos lombardos, liv. III, tít. I, § 30; e às leis sálicas,
não foi o primeiro a estabelecer essas cartas precá­ coleção das leis de Pepino, em Echard, pág. 195, tít.
rias; cita ele uma feita pelo prefeito Ebroíno e conti­ XXVI, art. 4. (N. do A.)
nuada depois. Vede o diploma desse rei, no tomo V 793 Vede a constituição de Lotário I, na lei dos
dos Historiens de France dos beneditinos, art. 6. (N. lombardos, liv. III. lei I, § 43. (N. do A.)
do A.) 794 Ibid., § 44. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 527

bispos outro recurso senão retirar suas relí­ belecimento dos mosteiros, escreveram797
quias79 5. esses a Carlos, o Calvo, que essa reprovação
A capitular de Compiègne estabeleceu que o não os atingira, já que não eram culpados, e
enviado do rei poderia fazer a visita de todos advertiram-no do que fora prometido, resol­
os mosteiros com o bispo, com o parecer e em
vido e estatuído em tantas assembléias da
presença de quem o mantinha7 9 6; e essa regra
geral prova que o abuso era geral. nação 798. Efetivamente, citam nove delas.
Não é que faltassem leis para a restituição Disputava-se sempre. Os normandos chega­
dos bens das igrejas. Tendo o papa reprovado ram e puseram todos de acordo.
os bispos por sua negligência acerca do resta-
79 7 Cum consilio et consensu ipsius qui locum reti-
79 5 Ibid., (N. do A.) net. (N. do A.)
79 6 Dada no ano 28.° do reinado de Carlos, o 798 Concilium apud Bonoilum, ano 16.° de Carlos,
Calvo, no ano 868, edição de Baluze, pág. 203. (N. o Calvo, no ano 856, edição de Baluze, pág. 78. (N.
do A.) do A.)

Capítulo XII

Estabelecimento dos dízimos

Os regulamentos feitos na época do Rei Pe­ somente- que não serão arrecadados certos
pino tinham dado à Igreja mais a esperança de dízimos802 sobre os bens da Igreja. Nessa
um alívio do que um alívio efetivo; e, como época toda a pretensão da Igreja, muito longe
Carlos Martelo encontrou todo o patrimônio de arrecadar os dízimos, era pretender ficar
público nas mãos dos eclesiásticos, Carlos isenta deles. O segundo concilio de Macon803,
Magno encontrou os bens dos eclesiásticos nas realizado no ano 585, que ordena que se
mãos dos guerreiros. Não se podia fazer com pagassem os dízimos, diz, na verdade, que ha­
que estes restituíssem o que lhes fora dado; e viam sido pagos anteriormente; mas diz tam­
as circunstâncias que então existiam tornavam bém que, em fcua época, não mais eram pagos.
a coisa ainda mais impraticável do que era por Quem duvida que antes de Carlos Magno
sua natureza. De outro lado, o cristianismo não se tivesse aberto a Bíblia e pregado as dá­
não devia perecer por falta de ministros, tem­ divas e oferendas do Levítico? Mas afirmo que
plos e instruções 799. antes deste príncipe os dízimos podiam ser pre­
Isto levou Carlos Magno a estabelecer os dí­ gados, mas não estavam estabelecidos.
zimos, novo gênero de bem, que teve para o Disse que os regulamentos baixados no
clero a vantagem de, sendo dado singular­ período do Rei Pepino tinham submetido ao
mente à Igreja, ser mais fácil, depois, reconhe­ pagamento dos dízimos e das reparações das
cer-lhes as usurpações800. igrejas os que possuíam como feudo os bens
Quís-se dar a esse estabelecimento datas eclesiásticos. Era muito obrigar, com uma lei
bem mais anteriores; mas as autoridades cita­
das me parecem ser testemunhas contra os que
802 Agraria et pascuaria, vel décimas porcorum,
as alegam. A constituição de Clotário801 diz Ecclesiae concedimus; ita ut actor aut decimator in
rebus Ecclesiae nullus accedat. A capitular de Car­
799 Nas guerras civis que surgiram no tempo de los Magno, do ano 800, ed. de Baluze, pág. 336,
Carlos Martelo, os bens da igreja de Reims foram explica muito bem o que era esta espécie de dízimo
doados aos laicos. Deixou o clero subsistir como da qual Clotário isenta a Igreja: era a décima parte
pudesse, como se diz na Vida de São Rémy. Súrio, dos porcos que se colocavam nas florestas do rei
tomo I, pág. 279. (N. do A.) . para engorda; e Carlos Magno quer que seus juizes
800 Leis dos lombardos, liv. III, tít. III, §§ 1 e 2. a paguem como os demais, a fim de dar exemplo.
(N. do A.) Vemos que se tratava de um direito senhorial ou
801 É desta que tanto falei no cap. IV, que se econômico. (N. do A.)
encontra na ed. das Capitulares de Baluze, tomo I, 803 Cânone V, ex tomo I, Conciliorum antiquorum
art. 2, pág. 9. (N. do A.) Galliae, opera Jacobi Sirmondi. (N. do A.)
528 MONTESQUIEU

cuja justiça não podia ser posta em dúvida, os dos808, a dificuldade encontrada para obter o
principais da nação a dar exemplo. recebimento dos dízimos pelas leis civis; pode­
Carlos Magno fez mais. E vemos, pela capi­ mos apreciar, pelos diferentes cânones dos
tular De Villis30*, que obrigou seus próprios concílios, a encontrada para obter o recebi­
fundos territoriais ao pagamento dos dízimos; mento pelas leis eclesiásticas.
tratava-se também de um grande exemplo. Finalmente, consentiu o povo em pagar os
dízimos, com a condição de poder resgatá-los.
Mas o baixo povo quase não é capaz de A constituição de Luís, o Bonacheirão809, e a
abandonar seus interesses por exemplos. O sí- do Imperador Lotário810, seu filho, não o
nodo de Francforte80 5 lhe apresentou um mo­ permitiram.
tivo mais constrangedor para pagar os dízi­ As leis de Carlos Magno sobre o estabeleci­
mos. Fez aí uma capitular na qual se declara mento dos dízimos eram consequência da
que, na última fome, espigas de milho vazias necessidade; somente a religião tomou parte
foram encontradas80 6, que elas tinham sido nelas, e a superstição não tomou parte alguma.
devoradas por demônios e que se tinham ouvi­ A famosa divisão811 que ele fez dos dízimos
do suas vozes que exprobravam o fato de os dí­ em quatro partes, para a construção das igre­
zimos não terem sido pagos; e, consequente­ jas, para os pobres, para o bispo, para o clero,
mente, foi ordenado a todos que possuíam prova muito bem que quis dar à Igreja essa
bens eclesiásticos que pagassem o dízimo; e, situação firme e permanente que ela perdera.
também consequentemente, isso foi ordenado a Seu testamento812 mostra que pretendeu
todos. acabar de reparar os males que Carlos Marte­
lo, seu avô, cometera. Dividiu em três partes
O projeto de Carlos Magno não obteve êxito
iguais seus bens mobiliários: quis que duas
inicialmente; esse encargo pareceu esmaga­
partes fossem divididas em vinte e uma, para
dor80 7. O pagamento dos dízimos entre os ju­
as vinte e uma metrópoles de seu império; cada
deus entrara no plano de fundação de sua parte deveria ser subdividida entre a metrópole
república; mas aqui o pagamento dos dízimos e os bispados que dela dependiam. Dividiu o
era um encargo independente dos do estabele­ terço que restava em quatro partes: uma deu a
cimento da monarquia. Podemos ver, nas seus filhos e netos; outra foi acrescentada aos
disposições acrescentadas à lei dos lombar- dois terços já dados; as duas outras foram
empregadas em obras pias. Parecia que consi­
80 4 Art. 6, ed. de Baluze, pág. 332. F(i dada no derava a dádiva que acabava de conceder às
ano 800. (N. do A.) igrejas menos como uma ação religiosa que
80 5 Realizado sob Carlos Magno, no ano 749. (N. como uma distribuição política.
do A.)
80 6 Experimento enim didicimus in anno quo illa 808 Entre outras, a de Lotário. liv. III, tít. III, cap.
valida fames irrepsit, ebullire vacuas annonas a dae- VI. (N. do A.)
monibus devoratas, et voces exprobrationis auditas 809 Do ano 829, art. 7, em Baluze, tomo I, pág.
etc./ed. de Baluze, pág. 267, art. 23. (N. do A.) 663. (N. do A.)
80 7 Vede, entre outras, a capitular de Luís, o Bona- 810 Lei dos lombardos, liv. III, tít. III, § 8. (N. do
cheirão, do ano 829, edição de Baluze, pág. 663, A.)
contra os que, com objetivo de não pagar os dízi­ 811 Lei dos lombardos. liv. III, tít. III, 4. (N. do
mos, não cultivam suas terras; e art. 5. Nonis qui- A.)
dem et decimis, unde et genitor noster et nosfre- 812 É uma espécie de codicilo citado por Eginhard,
quenter in diversis placitis admonitionem fecimus. diferente do próprio testamento que se encontra em
(N. do A.) Goldast e Baluze. (N. do A.)
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 529

Capítulo XIII

Das eleições nos bispados e abadias

Tendo-se as igrejas tornado pobres, os reis compensação pelos bens que lhe tinham sido
abandonaram as eleições aos bispados e outros retirados.
benefícios aos eclesiásticos813. Os príncipes se E, se Luís, o Bonacheirão814, deixou ao
ocupavam menos em nomear os ministros e os povo romano o direito de eleger os papas, foi
competidores reclamaram menos sua autori­ esse um resultado do espírito geral da época:
dade. Assim, a Igreja recebia uma espécie de goveriíou-se em relação à sede de Roma como
se fazia com respeito a outras.
813 Vede a capitular de Carlos Magno, do ano
803, art. 2, ed. de Baluze, pág. 379, e o edito de 81 4 Isso foi dito no famoso cânone, Ego Ludovi-
Luís, o Bonacheirão, do ano 834, em Goldast, cus, que é visivelmente suposto. Encontra-se na edi­
Constituições Imperiais, tomo I. (N. do A.) ção de Baluze, pág. 591, sobre o ano 817. (N.do A.)

Capítulo XIV

Dos feudos de Carlos Martelo

Não direi se, dando Carlos Martelo os bens por que Carlos Martelo concedeu tanto em
da Igreja como feudo, os deu vitalícia ou alódio como em feudo.
perpetuamente. Tudo o que sei é que, no tempo
81 5 Como aparece por sua capitular do ano 801,
de Carlos Magno81 5 e de Lotário I81 6, havia art. 17, em Baluze, tomo I, pág. 360. (N. do A.)
81 6 Vede sua constituição inserida no código dos
dessas espécies de bens que passavam aos her­ lombardos, liv. III, tít. I, § 44. (N. do A.)
deiros e se dividiam entre eles. 81 7 Vede a constituição acima e a capitular de
Carlos, o Calvo, do ano 846, cap. XX, In Villa
Acho, além disso, que uma parte81 7 foi Sparnaco, ed. de Baluze, tomo II, pág. 31, e a do
dada como alódio, e outra parte como feudo. ano 853, cap. III e V, no sínodo de Soissons, ed. de
Baluze, tomo III, pág. 54; e a do ano 854, Apud
Disse que os proprietários dos alódios eram Attiniacum, cap. X, ed. de Baluze, tomo II, pág. 70.
submetidos a serviço como os possuidores de Vede também a capitular primeira de Carlos
Magno, incerti anni, art. 49 e 56, ed. de Baluze,
feudos. Isso foi, sém dúvida, em parte, a causa tomo I, pág. 519. (N.do A.)

Capítulo XV

Continuação do mesmo assunto

Cumpre observar que, tendo os feudos sido atribuídos à alta justiça preferivelmente ao que
transformados em bens da Igreja e os dela em hoje chamamos o feudo, segue-se que as justi­
feudos, uns e outros adquiriram reciproca­ ças patrimoniais eram estabelecidas no mesmo
mente alguma coisa de sua natureza. Destarte, tempo desses direitos.
os bens da Igreja tiveram os privilégios dos
feudos, e os feudos tiveram os privilégios dos
bens da Igreja; tais foram os direitos818 hono­ 81 8 Vede as Capitulares, liv. V, art. 44, e o edito de
Pistes do ano 866, art. 8 e 9, em que se vêem os
ríficos nas igrejas que se viram nascer nessa direitos honoríficos dos senhores, estabelecidos tais
época. E, como esses direitos têm sido sempre como estão hoje. (N. do A.)
530 MONTESQUIEU

Capítulo XVI

Confusão da realeza e da
prefeitura. Segunda raça.

A ordem das matérias fez com que confun­ nho de todos os monumentos821, nega822 que
disse a ordem dos períodos; de sorte que falei o papa tenha autorizado essa grande modifica­
de Carlos Magno antes de me referir a essa fa­ ção; uma de suas razões é que ele teria come­
mosa época da passagem da coroa aos Carlo- tido uma injustiça. E é admirável ver um histo­
víngios, efetuada na época do Rei Pepino: riador julgar o que os homens têm feito pelo
coisa que, diferentemente dos acontecimentos que deveríam fazer! Com esta maneira de
ordinários, é possivelmente mais notável hoje raciocinar não mais haveria história.
do que no próprio período em que ocorreu. De qualquer modo, é certo que, desde o
Os reis não tinham autoridade mas tinham momento da vitória do Duque Pepino, sua
um nome; o título de rei era.hereditário e o de família foi reinante, e que a dos Merovíngios
prefeito era eletivo. Embora os prefeitos, nos não mais o foi. Quando seu neto Pepino foi
últimos tempos, tivessem posto no trono dos coroado rei, tudo não passou de uma cerimô­
Merovíngios a quem queriam, não tinham nia a mais e de um fantasma a menos; com
escolhido um rei em outra família; e a antiga isso adquiriu apenas os ornamentos reais; na
lei que dava a coroa a uma determinada famí­ nação nada se modificou.
lia ainda não constrangera o coração dos fran­ Recordei isso para fixar o momento da revo­
cos. A pessoa do rei era quase desconhecida na lução, a fim de que não nos enganemos, consi­
monarquia; mas a realeza não. Pepino, filho de derando como revolução o que não passava de
Carlos Martelo, acreditou que era oportuno uma consequência da revolução.
confundir esses dois títulos, confusão que sem­ Quando Hugo Capeto foi coroado rei, no
pre deixaria incerteza se a realeza era heredi­ início da terceira raça, houve grande modifica­
tária ou não; e isso bastava a quem acrescen­ ção porque o Estado passou da anarquia para
tava à realeza grande poderio. Desde então, a um governo qualquer; porém, quando Pepino
autoridade do prefeito somou-se à autoridade assumiu a coroa, passou-se de um governo ao
real. Na confusão dessas duas autoridades, efe­ mesmo governo.
tuou ele uma espécie de conciliação. O prefeito Quando Pepino foi coroado rei, apenas tro­
fora eletivo, o rei hereditário: a coroa, no iní­ cou de nome; mas quando Hugo Capeto foi
cio da segunda raça, seria eletiva, porque o coroado rei, a coisa mudou, porque um grande
povo a escolhería; e também hereditária por­ feudo, unido à coroa, fez cessar a anarquia.
que ele a escolhia sempre na mesma famí­ Quando Pepino foi, coroado rei, o título de
lia819. rei uniu-se ao maior ofício; quando Hugo Ca­
O Padre Le Cointe820, apesar do testemu- peto foi coroado, o título de rei uniu-se ao
maior feudo.
81 9 Vede o testamento de Carlos Magno, e a parti­
lha que Luís, o Bonacheirão, fez aos filhos na
assembléia dos Estados, realizada em Quierzy, rela­ 821 A anônima, sobre o ano 752; e Chron. Centul.,
tada por Goldast; Quem populus eligere velit, ut sobre o ano 754. (N. do A.)
patri suo succedat in regni haereditate. (N. do A.) 822 “Fabella quae post Pippini mortem excogitata
820 Padre Le Cointe. . . Escreveu ele em oito volu­ est, aequitati ac sanctitati Zachariae papae pluri-
mes (Paris, 1664-1683) os Annales Ecclesiastici mum adversatur. . . "Annales Ecclesiastici Franco­
Francorum, indo de 417 a 485. rum, tomo II, pág. 319. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 531

Capítulo XVII
X

Coisa particular na eleição da segunda raça

Vemos, na fórmula da consagração de Pepi­ onde, depois de ter formado sua partilha,
no823, que Carlos e Carlomano foram tam­ disse828 que “se um dos três irmãos tiver um
bém ungidos e abençoados; e que os senhores filho e o povo queira elegê-lo para que suceda
franceses se comprometeram, sob pena de ao reino de seu pai, seus tios nisso consenti­
interdição e excomunhão, a nunca eleger pes­ rão”.
soa de outra raça82 4. Encontra-se essa mesma disposição na par­
Parece, pelos testamentos de Carlos Magno tilha que Luís, o Bonacheirão, efetuou entre
e de Luís, o Bonacheirão, que os francos esco­ seus três filhos829,Pepino, Luís e Carlos, no
lhiam entre os filhos dos reis; o que se rela­ ano 837 na assembléia de Aix-la-Chapelle e
ciona muito bem com a cláusula acima. E, também. noutra partilha do mesmo impera­
quando o império passou de uma casa a outra, dor830, feita vinte anos antes entre Lotário,
que não a de Carlos Magno, a faculdade de Pepino e Luís. Podemos ver também o jura­
eleger, que era restrita e condicional, tornou-se mento que Luís, o Gago, fez em Compiègne,
pura e simples, e se afastou da antiga quando foi coroado. “Eu, Luís831, constituído
constituição. rei pela misericórdia de Deus e eleição do
Pepino, sentindo-se perto do fim, convocou povo, prometo. . .” O que eu disse é confir­
os senhores eclesiásticos e laicos em Saint-De- mado pelas atas do concilio de Valência832
nis82 5, e dividiu seu reino entre seus dois fi­ realizado no ano 890 para a eleição de Luís,
lhos Carlos e Carlomano. Não possuímos as filho de Boson, ao reino de Aries. Elegeu-se aí
atas dessa assembléia; mas se encontra o que Luís e apresentaram como principais razões de
aí se passou no autor da antiga coleção histó­ sua eleição o fato de ele ser da família impe­
rica publicada por Canísio82 6 e no dos Anais rial833, que Carlos, o Gordo83 4, lhe outorgara
de Metz, como o observou82 7 o Sr. Baluze. a dignidade de rei, e que o imperador Arnulfo
Vejo aí duas coisas de algum modo contrárias: o investira pelo cetro e pelo ministério de seus
que ele fez a partilha com consentimento dos embaixadores. O reino de Aries, como os
grandes; e, em seguida, que a fez por direito demais, desmembrados, ou dependentes do
paterno. Isso prova o que eu disse, que o direi­ império de Carlos Magno, era eletivo e
to do povo nessa raça era o de eleger dentro da hereditário.
família: era, falando mais propriamente, antes
um direito de excluir do que de eleger.
Essa espécie de direito de eleição encontra- 828 Na capitular I do ano 806, ed. de Baluze, pág.
se confirmada pelos monumentos da segunda 439, art. 5. (N. do A.)
829 Em Goldast, Constituições Imperiais, tomo II,
raça. Tal é essa capitular da divisão do impé­ pág. 19. (N. do A.)
rio que Carlos Magno fez entre seus três filhos, 830 Ed. de Baluze, pág. 574, art. 14. Si vero aliquis
illorum decedens, legítimos filios reliquerit, non
inter eos potestas ipsa dividatur; sedpotius populus,
823 Tomo V dos Historiens de Franee pelos padres pariter conveniens, unum ex eis, quem Dominus
beneditinos, pág. 9. (N. do A.) voluerit, eligat; et hunc sêniorfrater in loco fratris et
82 4 Ut nunquam de alterius lumbis regem in aevo filii suscipiat. (N. do A.)
praesumant eligere, sed ex ipsorum. Ibid., pág. 10. 831 Capitular do ano 877, ed. de Baluze, pág. 272.
(N. do A.) (N. do A.)
82 5 Ano 768. (N. do A.) 832 Em Dumont, Corps Diplomatique, tomo I, art.
82 6 Tomo II, Lectionis Antiquae. (N. do A.) 36. (N. do A.)
82 7 Ed. das Capitulares, tomo I, pág. 188. (N. do 833 Por mulheres. (N. do A.)
A.) 83 4 Carlos, o Gordo, Carolus Crassus.
532 MONTESQUIEU

Capítulo XVIII

Carlos Magno
Carlos Magno pensou em manter o poder da em toda parte, em toda parte ele os resolvia.
nobreza em seus limites, e em impedir a opres­ Nunca príncipe algum soube melhor do que ele
são do clero e dos homens livres. Colocou tal apontar os perigos; nunca príncipe algum
moderação nas ordens de Estado, que elas soube melhor evitá-los. Zombou de todos os
foram contrabalançadas, e ele continuou o perigos, e particularmente dos que sempre
senhor. Tudo foi unido pela força de seu gênio. experimentam os grandes conquistadores: refi­
Levou continuamente a nobreza de expedição ro-me às conspirações. Esse príncipe prodi­
em expedição; não lhe deixou tempo para for­ gioso era extremamente moderado; seu caráter
mar desígnio e ocupou-a inteiramente em se­ era meigo, suas maneiras simples; gostava de
guir os seus. O império se manteve pela gran­ viver com as pessoas de sua corte. Foi talvez
deza do chefe: o príncipe era grande, o homem, muito sensível ao prazer das mulheres; mas
maior. Os reis, seus filhos, foram seus primei­ um príncipe que governou sempre por si
ros súditos, instrumentos de seu poder e mode­ mesmo e que passou a vida nos trabalhos pode
los de obediência. Estabeleceu regulamentos merecer mais desculpas. Organizou admiravel­
admiráveis; e mais, fê-los executar. Seu gênio mente suas despesas: fez valer seus domínios
expandiu-se sobre todas as partes do império. com sabedoria, atenção e economia; um pai de
Vemos, nas leis desse príncipe, um espírito família poderia aprender83 6 em suas leis a
previdente, que compreende tudo, e uma certa governar sua casa, Vemos, em suas Capitula­
força que tudo arrasta. Os pretextos83 5 para res, a fonte pura e sagrada de onde extrai suas
eludir os deveres são suprimidos, as negligên­ riquezas. Não direi mais que uma palavra:
cias corrigidas, os abusos reformados ou ordenava que se vendessem ovos dos gali­
prevenidos. Sabia punir; sabia ainda melhor nheiros de seus domínios, e as ervas inúteis de
perdoar. Grande em seus desígnios, simples na seus jardins83 7 ; e distribuira entre seus povos
execução, ninguém teve em mais alto grau a todas as riquezas dos lombardos e os imensos
arte de fazer as maiores coisas com facilidade tesouros desses hunos que tinham despojado o
e as difíceis com prontidão. Percorria, inces­ universo.
santemente, seu vasto império, impondo-se
onde quer que chegasse. Problemas renasciam
83 6 Vede a capitular De Villis do ano 800; sua
capitular II do ano 813, art. 6 e 19; e o livro V das
83 5 Vede sua capitular III do ano 811, pág. 486, Capitulares, art. 303. (N. do A.)
art. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8; e a capitular I, do ano 812, 83 7 Capitular De Villis, art. 39. Vede toda essa
pág. 490, art. I, e a capitular do mesmo ano, pág. capitular que é uma obra-prima de prudência, boa
494, art. 9 e 11; e outras. (N. do A.) administração e economia. (N. do A.)

Capítulo XIX

Continuação do mesmo assunto

Carlos Magno e seus primeiros sucessores nha grande número de bispados838 e a esses
temeram que aqueles que haviam colocado em ligaram grandes feudos. Parece, por algumas
lugares afastados fossem levados à revolta;
acreditaram que encontrariam mais docilidade 838 Vede, entre outras, a fundação do arcebispado
de Bremen, na capitular de 789, ed. de Baluze, pág.
nos eclesiásticos: assim, erigiram na Alema­ 245. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 533

charlas, que as cláusulas que continham as modo, eram peças que eles avançavarfi à frente
prerrogativas desses feudos não eram diferen­ contra os saxões. O que não podiam espe­
tes das que se colocavam ordinariamente nes­
rar da indolência ou das negligências de um
sas concessões83 9, apesar de se verem atual­
mente os principais eclesiásticos da Alemanha leudo, acreditavam que podiam esperar do zelo
revestidos do poder soberano. De qualquer e da ativa vigilância de um bispo; sem contar
que tal vassalo, bem longe de servir-se contra
839 Por exemplo, a proibição aos juizes reais de eles, de povos submetidos, teria, pelo contrá­
entrar no território para exigir os freda e outros
direitos. Referi-me muito a isso no livro precedente, rio, necessidade deles para se sustentar contra
cap. XX, XXI, XXII. (N. do A.) seus povos.

Capítulo XX

Luís, o Bonacheirão
Estando Augusto no Egito, mandou abrir o aumentou ainda mais o número de seus inimi­
túmulo de Alexandre8 40. Perguntaram-lhe se gos. Estas duas últimas ações lhe foram muito
queria que se abrissem os dos Ptolomeus; res­ criticadas8 42: não se deixou de dizer que havia
pondeu eie que quisera ver o rei e não os mor­ violado seu juramento e as promessas solenes
tos. Destarte, na história dessa segunda raça, que fizera a seu pai no dia de sua coroação8 43.
procurarn-se Pepino e Carlos Magno. Querer- Após a morte da Imperatriz Hermengarda,
se-ia ver os reis e não os mortos. de quem tinha três filhos, desposou Judite, de
Um príncipe, joguete de suas paixões e víti­ quem teve um filho; em breve, reunindo as
ma de suas próprias virtudes; um príncipe que complacências de um velho marido com todas
jamais conheceu sua força nem sua fraqueza; as fraquezas de um velho rei, introduziu tal
que não soube conciliar nem o medo nem o desordem na família, que acarretou a queda da
amor; que, com poucos vícios no coração, monarquia.
tinha toda sorte de defeitos no espírito, tomou Modificoú incessantemente as partilhas que
em mãos as rédeas do império que Carios fizera aos filhos. Entretanto, essas partilhas ti­
Magno segurara. nham sido confirmadas sucessivamente por
No momento em que o universo está em lá­ seus juramentos, pelos de seus filhos e dos
grimas pela morte de seu pai, nesse instante de senhores. Era querer tentar a fidelidade dos sú­
assombro em que todos clamam por Carlos e ditos; era procurar introduzir confusão, escrú­
não o encontram mais; no momento em que pulos e equívocos na obediência; era confundir
ele apressa seus passos para ir ocupar seu os diversos direitos dos príncipes, sobretudo
lugar, envia na sua frente pessoas de confiança numa época em que, sendo raras as fortalezas,
para conter os que tinham contribuído para o o primeiro sustentáculo da autoridade era a fé
desregramento da conduta de suas irmãs. Isso empenhada e a recebida.
ocasionou sangrentas tragédias841: eram im­ Os filhos do imperador, para manter suas
prudências bem precipitadas. Começou a vin­ partilhas, atraíram o clero e lhe deram direitos
gar os crimes domésticos antes de ter chegado até então desconhecidos. Esses direitos eram
ao palácio e a revoltar os espíritos antes de ser especiais; fazia-se o clero intervir como penhor
senhor. de uma coisa que se tinha querido que ele auto­
Mandou furar os olhos de Bernardo, rei da
Itália, seu sobrinho, que viera implorar sua cle­ rizasse. Agobardo8 4 4 representou a Luís, o
mência e que morreu alguns dias depois: isso
multiplicou seus inimigos. O temor que lhes 842 Vede o processo verbal de sua degradação, na
teve fe-lo tonsurar seus irmãos: com isso coletânea de Duchesne, tomo II, pág. 333. (N. do
A.)
8 43 Ordenou-lhe que tivesse para com suas irmãs,
8 40 Cf. Suetônio, Augusto (XVIII), e Dion (LI-16). irmãos e sobrinhos uma clemência ilimitada, indefi-
841 O autor incerto da Vie de Louis le Débonnaire, cientem misericordiam. Tegano, na coletânea de
na coletânea de Duchesne, tomo II, pág. 295. (N. do Duchesne, tomo II, pág. 276. (N. do A.)
A.) 84 4 Vede suas cartas. (N. do A.)
534 MONTESQUIEU

Bonacheirão, que ele enviara Lotário a Roma los Magno, pôde ter inimigos tão numero­
para declará-lo imperador; que fizera partilhas sos8 4 5, tão violentos, tão irreconciliáveis, tão
a seus filhos, depois de ter consultado o céu sequiosos em ofender, tão insolentes em sua
por três dias de jejuns e preces. Que podia humilhação, tão determinados em arruiná-lo; e
fazer um príncipe supersticioso, atacado, aliás, o teriam perdido irremediavelmente duas
pela própria superstição? Sente-se que malo­ vezes, se seus filhos, no fundo pessoas mais
gro a soberana autoridade recebeu duas vezes, honestas do que eles, tivessem podido conti­
pela prisão desse príncipe e sua penitência pú­ nuar um desígnio e concordar em alguma
blica. Tinha-se querido degradar o rei, degra­ coisa.
dou-se a realeza.
Inicialmente se têm dificuldades em com­ 8 4 5 Vede o processo verbal de sua degradação na
preender como um príncipe, que tinha muitas coletânea de Duchesne, tomo II, pág. 331. Vede
boas qualidades, a quem não faltavam conhe­ também sua vida, escrita por Tegano, Tanto enim
cimentos, que amava naturalmente o bem e, odio laborabat, ut toederet eos vita ipsius, diz o
autor incerto, em Duchesne, tomo II, pág. 307. (N.
finalmente para tudo dizer, era o filho de Car­ do A.)

Capítulo XXI

Continuação do mesmo assunto

A força que Carlos Magno introduzira na namente. Os bispos, acostumados, nesses tem­
nação subsistiu suficientemente sob Luís, o pos, a partir para a guerra contra os sarrace-
Bonacheirão, para que o Estado pudesse man­ nos e os saxões, estavam muito afastados do
ter-se em sua grandeza e ser respeitado pelos espírito monástico8 4 6. De outro lado, tendo
perdido toda sorte de confiança em sua nobre­
estrangeiros. O príncipe tinha espírito fraco,
za, elevou pessoas sem nenhum valor8 4 7. Pri­
mas a nação era aguerrida. A autoridade se vou-a de seus empregos8 48, afastou-a do palá­
perdia internamente sem que seu poderio pare­ cio, chamou estrangeiros. Separado desses
cesse diminuir externamente. dois corpos, foi por eles abandonado.
Carlos Martelo, Pepino e Carlos Magno
governaram sucessivamente a monarquia. O
84 6 “Então os bispos e os eclesiásticos começaram
primeiro estimulou a avareza dos guerreiros; a abandonar os cintos e os boldriés de ouro, os
os demais, a do clero. Luís, o Bonacheirão, punhais enriquecidos de pedrarias neles pendura­
descontentou a ambos. dos, as vestimentas de gosto requintado, as esporas
cuja riqueza pesava em seus calcanhares. Mas o ini­
Na constituição francesa, o rei, a nobreza e migo do gênero humano não suportou tal devoção,
o clero tinham em suas mãos toda a força do que levantou contra si os eclesiásticos de todas as
Estado. Carlos Martelo, Pepino e Carlos ordens e guerreou contra si própria.” O autor incer­
Magno se uniram, às vezes, com uma das duas to da Vie de Louis le Débonnaire, na coletânea de
Duchesne, tomo II, pág. 298. (N. do A.)
partes, a fim de conter a outra, e quase sempre
com ambas; mas Luís, o Bonacheirão, sepa- 8 4 7 Diz Tegano que o que se fazia muito rara­
mente sob o reinado de Carlos Magno se fez comu-
rou-se desses dois corpos. Indispôs os bispos mente sob o de Luís. (N. do A.)
com regulamentos que lhes pareceram rígidos,
848 Querendo conter a nobreza, tomou por cama­
porque ele ia mais longe do que eles próprios reiro certo Bernardo, que acabou por desesperá-la.
queriam ir. Há leis muito boas feitas inoportu­ (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 535

Capítulo XXII

Continuação do mesmo assunto

Mas o que sobretudo enfraqueceu a monar­ Assim, fez em todo o império o que eu
quia foi o fato de esse príncipe ter-lhe dissi­ disse8 52 que fizeram na Aquitânia: coisa que
pado os domínios8 49. É aqui que Nitard, um Carlos Magno reparou, e que ninguém reparou
dos mais judiciosos historiadores que possuí­ mais.
mos, Nitard, neto de Carlos Magno, que era li­ Foi nesse esgotamento que Carlos Martelo
gado ao partido de Luís, o Bonacheirão, e que encontrou o Estado quando assumiu a prefei­
escrevia a história por ordem de Carlos, o tura; e estava-se em circunstâncias tais, que
Calvo, deve ser escutado. não bastava mais um ato de autoridade para
Diz ele “que um tal Adelhard tivera, durante restabelecê-lo.
certo tempo, tal domínio sobre o espírito do O fisco estava tão pobre que, sob o reinado
imperador, que este príncipe seguia sua vonta­ de Carlos, q Calvo, não se mantinha ninguém
nas honras8 63, nào se concedia segurança a
de em todas as coisas, que, instigado por seu
ninguém, senão por dinheiro; quando podiam
favorito, dera os bens fiscais8 50 a-todos que os
destruir os normandos8 5 4, deixaram-nos esca­
quiseram; e com isso destruira a república8 51.
par por dinheiro; e o primeiro conselho que
Hinçmar dâ a Luís, o Gago, é o de exigir numa
8 49 Villas regias, quae erant sui et avi et tritavi, assembléia com que sustentar as despesas de
fidelibus suis tradidit eas ins possessiones sempiter- sua casa.
nas: fecit enim hoc diu tempore. Tegano, De Gestis
Ludovici PU. (N. do A.)
8 80 Hinc Ubertates, hincpublica inpropriis usibus 8 52 Vede o livro XXX, cap. XIII. (N. do A.)
distribuere suasit. Nitard, liv. IV, no final. (N. do 8 53 Hincmar, carta a.Luís, o Gago. (N. do A.)
A.) 8 84 Vede o fragmento da Crônica do monastério
8 81 Republicam penitus annullavit. Ibid. (N. do de São Sérgio d’Angers, em Duchesne, tomo II, pág.
A.) 401. (N. do A.)-

Capítulo XXIII

Continuação do mesmo assunto

O clero teve motivos para se arrepender da das que seguiram sua morte. Os três irmãos,
proteção que concedera aos filhos de Luís, o Lotário, Luís e Carlos, procuraram, cada um
Bonacheirão. Este príncipe, como afirmei, de seu lado, atrair os grandes para seu partido
nunca dera precepções dos bens da Igreja aos e conseguir seguidores. Deram aos que quise­
laicos8 5 5, mas logo Lotário, na Itália, e Pepi­ ram segui-los precepções dos bens da Igreja; e,
no, na Aquitânia, abandonaram o plano de para atrair a nobreza, entregaram-lhe o clero.
Carlos Magno e adotaram o de Carlos Marte­ Vemos, nas Capitulares3 5 6, que esses prín­
lo. Os eclesiásticos recorreram ao imperador cipes foram obrigados a ceder à importunidade
contra seus filhos; mas eles próprios tinham das demandas e que muitas vezes lhes foi
enfraquecido a autoridade que reclamavam.
Na Aquitânia, teve-se alguma condescen­ ase Vede o sínodo do ano 845. Apud Teudonis Vil­
dência; na Itália não se obedeceu. lam, art. 3 e 4, que descreve muito bem o estado das
As guerras civis, que tinham perturbado a coisas, assim como o do mesmo ano realizado no
vida de Luís, o Bonacheirão, foram o germe palácio de Vernes, art. 12; e o sínodo de Beauvais,
também do mesmo ano, art. 3,4 e 6; e a capitular In
Villa Sparnaco, do ano 846, art. 20; e a carta que os
8 8 8 Vede o que dizem os bispos no sínodo do ano bispos reunidos em Reims escreveram, no ano 858,
845. Apud Teudonis Villam, art. 4. (N. do A.) a Luís, o Germânico, art. 8. (N. do A.)
536 MONTESQUIEU

arrancado o que eles não teriam querido ceder; cios causados na Igreja e no Estado8 60. Os
vemos aí que o clero se acreditava mais opri­ reis comprometiam-se a não suprimir aos leu­
mido pela nobreza do que pelos reis. Parece dos seus homens livres e a não mais dar bens
também que Carlos, o Calvo8 5 7, foi quem eclesiásticos por precepções8 61; de sorte que o
mais atacou o patrimônio do clero, seja porque clero e a nobreza pareceram unir seus interes­
fosse o mais irritado contra esse, já que, por ses.
sua causa, seu pai fora degradado por ele, seja As estranhas devastações dos normandos,
porque fosse o mais tímido. De qualquer
como afirmei, muito contribuíram para pôr
modo, vemos nas Capitulares3 5 8 contínuas
querelas entre o clero que exigia seus bens e a fim a essas disputas.
nobreza que recusava, eludia ou diferia restt- Os reis, cada dia menos acreditados pelas
tuí-los; e os reis entre os dois. causas que já apontei e pelas que apontarei,
É um espetáculo digno de piedade ver o es­ acreditaram não ter outra coisa a fazer senão
tado das coisas nessa época. Enquanto Luís, o colocar-se nas mãos dos eclesiásticos. Mas o
Bonacheirão, fazia às igrejas imensos donati­ clero enfraquecera os reis, e os reis haviam
vos de seus domínios, seus filhos distribuíam enfraquecido o clero.
os bens do clero aos laicos. Frequentemente a
Em vão Carlos, o Calvo, e seus sucessores
mesma mão que fundava novas abadias despo­
java as antigas. O clero não se encontrava apelaram ao clero8 62 para apbiar o Estado e
numa situação estável. Despojavam-no; recu­ impedir sua queda; em vão serviram-se do res­
perava; mas a coroa sempre perdia. peito que os povos tinham para com. esse
Pelo fim do reinado de Carlos, o Calvo, e corpo8 63 para manter o que se devia ter por
desde esse reinado, quase não se tratou mais eles; em vão procuraram conferir autoridade a
das divergências do clero e dos laicos sobre a suas leis através da autoridade dos câno­
restituição dos bens da Igreja. Os bispos bem nes8 64;em vão acrescentaram as penas ecle­
que soltaram ainda alguns suspiros em suas siásticas às penas civis8 6 5; em vão, para
exortações a Carlos, o Calvo, que se encon­
tram na capitular do ano 856, e na carta859
8 68 Vede a capitular do ano 851, art. 6 e 7. (N. do
que escreveram a Luís, o Germânico, no ano A.)
858; mas propunham coisas e reclamavam ‘8 ei Declarou Carlos, o Calvo, no sínodo de Sois-
promessas tantas vezes iludidas que vemos que sons, que prometera aos bispos não mais dar
não alimentavam nenhuma esperança de "obtê- precepções dos bens da Igreja. Capitular do ano
las. 853, art. 11, ed. de Baluze, tomo III, pág. 56. (N. do
Só se tratou de reparar em geral os malefí A.)
8 82 Vede, em Nitard, liv. IV, como, após a fuga de
Lotário, os reis Luís e Carlos consultaram os bispos
8 5 7 Vede a capitular In Villa Sparnaco, do ano para saber se poderíam tomar e partilhar o reino
846. A nobreza tinha irritado o rei coqtra os bispos, que Lotário abandonara. Com efeito, como os bis­
de sorte que ele os expulsou da assembléia: escolhe­ pos formavam entre si um corpo mais unido que os
ram-se alguns cânones dos sínodos, e declarou-se leudos, convinha a estes príncipes assegurar seus
que eles seriam os únicos a serem observados; só direitos por uma resolução dos bispos, que pode­
lhes foi concedido o que era impossível negar-lhes. ríam levar todos os demais senhores a segui-los. (N.
Vede os art. 20, 21 e 22. Vede também a cárta que do A.)
os bispos reunidos em assembléia escreveram a 8 63 Vede a capitular de Carlos, o Calvo, Apud
Luís, o Germânico, no ano 858, art. 8; e o edito de Saponarias, do ano 859, art. 3. “Venilão, que eu
Pistes, no ano 864, art. 5. (N. do A.) tinha feito arcebispo de Sens, sagrou-me, e eu não
8 58 Vede a mesma capitular do ano 846, In Villa devia ser expulso do reino por ninguém, saltem sine
Sparnaco. Vede igualmente a capitular da assem­ audientia et judicio episcoporum, quorum ministé­
bléia efetuada Apud Marsnam, do ano 847, art. 4, rio in regem sum consecratus, et qui throni Dei sunt
na qual o clero se limitou a exigir que fosse reem- dicti, in quibus Deus sedet, et per quos sua decernit
possado de tudo que possuía sob o reinado de Luís,
o Bonacheirão. Vede também a capitular do ano judicia; quorum paternis correctionibus et castiga-
851; Apud Marsnam, art. 6 e 7, que mantém a toriis judiciis me subdere fui paratus, et in praesenti
nobreza e o clero em suas posses, e a._Apud Bonoi- sum subditus. ”(N. do A.)
lum, do .ano 856, que é uma exortação dos bispos ao 8 64 Vede a capitular de Carlos, o Calvo, De Cari-
rei considerando que os males, após tantas leis, não siaco, do ano 857, ed. de Baluze, tomo II, pág. 88,
foram reparados: e, finalmente, a carta que os bis­ art. 1.2, 3.4 e 7. (N.do A.)
pos, em assembléia realizada em Reims, escreveram sés Vede o sínodo de Pistes, do ano 862, art. 4; e a
a Luís, o Germânico, no ano 858, art. 8. (N. do A.) capitular de Carlomano e de Luís II, Apud Vernis
8 59 Art. 8. (N. do A.) Palatium, do ano 883, art. 4 e 5. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 537

contrabalançar a autoridade do conde, deram a cada bispo a qualidade de seu enviado nas
províncias8 6 6: foi impossível ao clero reparar
8 8 8 Capitular do ano 876, sob o reinado de Carlos, o mal que tinham causado; e uma estranha
o Calvo, In Synodo Pontigonensi; ed. de Baluze, desgraça, de que logo mais falarei, fez a coroa
art. 12. (N. do A.) cair por terra.

Capítulo XXIV

De como os homens livres foram


tomados capazes de possuir feudos
Disse que os homens livres iam à guerra sições aproximadamente semelhantes a res­
comandados por seus condes, e os vassalos peito dos vassalos; e como aí se regulamentam
pelos seus senhores. Isso fazia com que as or­ os mesmos pontos, e, quase nas mesmas
dens do Estado se contrabalançassem umas circunstâncias, o espírito e a letra desses três
com as outras; e, apesar de os leudos terem tratados revelam-se quase iguais a esse respei­
vassalos sob suas ordens, podiam ser contidos to.
pelo conde, que estava à frente de todos os ho­ Mas, no que concerne aos homens livres,
mens livres da monarquia. encontramos aí uma diferença capital. O trata­
Inicialmente8 6 7, esses homens livres não do de Andely não diz que eles possam se reco­
puderam recomendar-se para um feudo, mas mendar para um feudo, ao passo que encon­
posteriormente o puderam; e acho que essa tramos nas partilhas de Carlos Magno e de
modificação se processou na época situada Luís, o Bonacheirão, cláusulas expressas para
entre o reinado de Gontrão e o de Carlos
que eles se possam recomendar; o que mostra
Magno. Provo-o pela comparação que se pode
qpe, desde o tratado de Andely, um novo uso
fazer do tratado de Andely8 68, feito entre
se introduzia, pelo qual os homens livres se
Gontrão, Childeberto e a rainha Brunilda, e a
tornavam capazes dessa grande prerrogativa.
partilha feita por Carlos Magno a seus filhos, e
uma partilha semelhante feita por Luís, o Isso deve ter acontecido quando Carlos
Bonacheirão8 69. Esses três atos contêm dispo- Martelo, tendo distribuído os bens da Igreja a
seus soldados, e tendo-os dado, parte em
feudo, parte em alódio, ocasionou uma espécie
8 6 7 Vede o que afirmei acima, no livro XXX, últi­
mo capítulo, no fim. (N. do A.) de revolução nas leis feudais. É verossímil que
8 88 Do ano 587, em Gregório de Tours, liv. IX. os nobres, que já tinham feudos, achassem
(N. do A.) mais vantajoso receber novas dádivas em aló­
8 89 Vede o capítulo seguinte, em que discorro mais
longamente acerca dessas partilhas, e as notas onde dio, e que os homens livres se achassem ainda
são citadas. (N. do A.) mais felizes em recebê-los como feudo.

Capítulo XXV

Causa principal do enfraquecimento da


segunda raça. Modificação nos alódios.

Carlos Magno regulamentou, na partilha de sua morte os homens de cada rei receberíam
que falei no capítulo precedente8 70, que após benefícios no reino de seu rei, e não no reino de
outro8 71, ao passo que conservariam seus aló-

8 70 Do ano 806, entre Carlos, Pepino e Luís. É 8 71 Art. 9, pág. 443. O que é conforme ao tratado
relatada por Goldast, e por Baluze, tomo I, pág. de Andely, em Gregório de Tours. liv. IX. (N. do
439. (N. do A.) A.)
538 MONTESQUIEU

dios em qualquer que fosse o reino. Mas acres­ res8 78. Antes desse tratado, o homem livre
centa ele que todo homem livre poderia, após a podia recomendar-se para .um feudo, mas seu
morte de seu senhor, se recomendar para um alódio permanecia sempre sob o poder ime­
feudo nos três reinos a quem quisesse, do diato do rei, isto é, sob a jurisdição do conde;
mesmo modo como o que nunca tivera e não dependia do senhor ao qual estava reco­
senhor8 72. Encontramos as mesmas disposi­ mendado em razão do feudo que dele obtivera.
ções na partilha que Luís, o Bonacheirão, fez Desde esse tratado, todo homem livre pôde
aos filhos, no ano 8178 73. submeter seu alódio ao rei ou a outro senhor, à
Mas, embora os homens livres se recomen­ sua escolha. Não se trata aqui dos que trans­
dassem para um feudo, a milícia do conde não formavam seu alódio em feudo, e saíam, por
era por isso enfraquecida: sempre era neces­ assim dizer, da jurisdição civil para entrar no
sário que o homem livre contribuísse para seu poder do rei ou do senhor que desejavam
alódio, e preparasse pessoas que fizessem seu escolher.
Assim, os que estavam outrora claramente
serviço, à razão de um homem por quatro sola­
sob o poder do rei, na qualidade de homens li­
res; ou então, que preparasse um homem que
servisse o feudo em seu lugar; e, tendo alguns vres sob o do conde, tornaram-se, insensivel­
abusos se introduzido a esse respeito, foram mente, vassalos uns dos outros, pois cada
eles corrigidos, como parece pelas constitui­ homem livre podia escolher por senhor a quem
desejasse, quer o rei, quer os outros senhores.
ções8 7 4 de Carlos Magno e pela^de Pepino, rei 2? Pois, transformando um homem em
da Itália8 7 5, que se explicam mutuamente. feudo uma terra que possuía perpetuamente,
O que os historiadores disseram, que a bata­ esses novos feudos não podiam mais ser vitalí­
lha de Fontenay ocasionou a ruína da monar­ cios. Desse modo, vemos, posteriormente, uma
quia, é muito verdadeiro; mas que me seja per­ lei geral para dar os feudos aos filhos do pos­
mitido passar uma vista d’olhos sobre as suidor; é ela de Carlos, o Calvo, um dos três
príncipes que contrataram8 79.
funestas consequências dessa jornada.
O que eu disse da liberdade que tiveram
Algum tempo depois dessa batalha, os três todos os homens da monarquia, desde o trata­
irmãos, Lotário, Luís e Carlos, fizeram um tra­ do dos três irmãos, de escolher para senhor a
tado no qual encontro cláusulas que deveram quem bem desejassem, o rei ou outros senho­
ter modificado todo o estado político entre os res, confirma-se pelos atos lavrados desde essa
franceses8 7 6. época.
Na proclamação8 7 7 que Carlos fez ao povo No tempo de Carlos Magno, quando um
da parte desse tratado que lhe concernia, diz vassalo tinha recebido do senhor uma coisa,
que todo homem livre poderia escolher por se­ mesmo que não valesse mais que um soldo,
nhor quem desejasse, rei ou outros senho­
8 78 Ut unusquisque liber homo in nostro regno
8 72 Art. 10. No tratado de Andely não se fala seniorem quem voluerit, in nobis et in nostris fideli­
disso. (N. do A.) bus, accipiat. Art. 2 da proclamação de Carlos. (N.
8 73 Em Baluze, tomo I, pág. 174, Licentiam habeat do A.)
unusquisque liber homo qui seniorem non habuerit, 8 79 Capitular do ano 877, tít. LIII, art. 9 e 10.
cuicumque ex bis tribus fratribus voluerit, se Apud Carisiacum Similiter et de nostri svassallis
commendandi, art. 9. Vede também a partilha que faciendum est etc. Essa capitular se reporta a outra
fez o mesmo imperador, no ano 837, art. 6, ed. de do mesmo ano e do mesmo lugar, art. 3. (N. do A.)
Baluze, pág. 686. (N. do A.) 880 Capitular de Aix-la-Chapelle, do ano 813, art.
8 7 4 Do ano 811, ed. de Baluze, tomo I, pág. 486, 16. Quod nullus seniorem suum dimittat, postquam
art. 7 e 8, e a do ano 812, ibid., pág. 490, art. 1. Ut ab eo acceperit valente solidum unum. . . E a capi­
omnis liber homo qui quatuor mansos vestitos de tular de Pepino, do ano 783, art. 5. (N. do A.)
proprio suo, sive de alicujus beneficio habet ipse se 861 Vede a capitular de Carisiaco, do ano 856, art.
praeparet, et ipse in hostem pergat, sive cum seniore 10 e 13, ed. de Baluze, tomo II, pág. 83, na qual o
suo etc. Vede a capitular do ano 807, ed. de Baluze, rei e os senhores eclesiásticos e laicos convieram
tomo I, pág. 458. (N. do A.) nisso: Et si aliquis de vobis talis est cui suus senio-
8 7 5 Do ano 793, inserida na lei dos lombardos. liv. ratus non placet, et illi simulai ut ad alium seniorem
III, tít. IX, cap. IX. (N. do A.) melius quam ad illum acaptare possit, veniat ad
8 7 6 No ano 847, relatado por Aubert le Mire e illum, et ipse tranquille et pacifico animo donet illi
Baluze, tomo II, pág. 42, Conventus apud Mars- commeatum. . . et quod Deus illi cupierit, et ad
nam. (N. do A.) alium seniorem acaptare potuerit, paclfice habeat.
8 7 7 Adnunciatio. (N. do A.) (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 539

não mais podia deixá-lo880. Porém, sob o rei­ convidá-los a fruir dessa liberdade do que a
nado de Carlos, o Calvo, os vassalos puderam, contê-los881. Na época de Carlos Magno, os
impunemente, seguir seus interesses ou seu benefícios eram mais pessoais do que reais;
capricho; e esse príncipe se expressa tão vigo­ posteriormente, tornaram-se mais reais do que
rosamente a esse respeito que parece mais pessoais.

Capítulo XXVI

Modificação nos feudos


Não ocorreram menores mudanças nos feu­ bora os vassalos do rei pudessem doar como
dos do que nos alódios. Vemos, pela capitular feudo, isto é, como subfeudo do rei, não
de Compiègne, estabelecida sob o reinado do podiam, entretanto, esses subvassalos ou pe­
Rei Pepino882, que aqueles a quem o rei dava quenos vassalos de vassalos doar como feudo;
um benefício, davam eles próprios parte desse de sorte que o que haviam dado podiam sem­
benefício a diversos vassalos; mas essas partes pre retomar. Além disso, tal concessão não
não eram diferenciadas do todo. O rei as supri­ passava aos filhos como os feudos, porque não
mia quando suprimia o todo; e, quando da era considerada feita segundo a lei dos feudos.
morte do leudo, o vassalo perdia também seu Se compararmos a situação em que se
subfeudo; vinha um novo beneficiário, que encontrava a subvassalagem, no tempo em que
estabelecia também novos subvassalos. Des­ os dois senadores de Milão escreveram estes
tarte, o subfeudo não dependia do feudo; era a livros, com a situação em que se encontrava na
pessoa que dependia. De um lado, o subvas- época do Rei Pepino, verificaremos que os
salo voltava ao rei, porque não estava ligado subfeudos conservaram por mais tempo sua
para sempre ao vassalo; e o subfeudo voltava natureza primitiva do que os feudos88 4.
ao mesmo rei, porque era o próprio feudo e Mas, quando esses senadores escreveram,
não uma dependência do feudo. introduziram-se exceções tão gerais a essa
Tal era a subvassalagem, quando os feudos regra que quase a aniquilaram. Pois, se quem
eram amovíveis; tal era ainda, enquainto os recebera um feudo de um vassalo de vassalo
feudos foram vitalícios. Isto modificou-se tivesse ido a Roma numa expedição, conquis­
quando os feudos passaram aos herdeiros e tava todos os direitos de vassalo; do mesmo
quando os subfeudos também passaram. O que modo, se tivesse dado dinheiro ao vassalo de
dependia imediatamente do rei, dele não vassalo para obter o feudo, este não podia
dependeu mais do que mediatamente; e o mais o retirar, nem o impedir de transmitir ao
poder real se encontrou, por assim dizer, filho, até que seu dinheiro fosse restituído88 5.
recuado de um grau, algumas vezes de dois, e Finalmente, essa regra não mais era seguida
amiúde ainda mais. no senado de Milão88 6.
Vemos, nos livros Dos Feudos883, que, em­
88 4 Pelo menos na Itália e na Alemanha. (N. do
882 Do ano 757, art. 6, ed. de Baluze, pág. 181. (N. A.)
do A.) 88 5 Liv. I, Dos Feudos, cap. I. (N. do A.)
883 Liv. I, cap. I. (N. do A.) 88 8 Ibid. (N. do Á.)

Capítulo XXVII

Outra modificação sobrevinda nos feudos

Na época de Carlos Magno88 7, era-se obri- gado, sob grandes penas, a se apresentar à
convocação para qualquer guerra que fosse;
88 7 Capitular do ano 802, art. 7, ed. de Baluze, não se aceitavam desculpas; e o próprio conde
pág. 365. (N. do A.) que aceitasse escusas seria punido. Porém, o
540 MONTESQUIEU
tratado dos três irmãos introduziu nisso uma o outro; coisa que os dois príncipes juraram e
restrição888 que tirou, por assim dizer, a que obrigaram os dois exércitos a jurar890.
nobreza das mãos do rei889: só se era obri­ A morte de cem mil franceses na batalha de
gado a acompanhar o rei na guerra quando Fontenay levou o que ainda restava da
esta fosse defensiva. Era-se livre, nos outros nobreza891 a ponderar que, pelas querelas
casos, para seguir seu senhor ou ocupar-se de particulares de seus reis sobre sua partilha, ela
seria exterminada, e que a ambição e a inveja
seus negócios. Esse tratado relaciona-se a
dos mesmos fariam verter tudo o que ainda
outro, feito cinco anos antes, entre os dois
existia de sangue a derramar. Decretou-se,
irmãos, Carlos, o Calvo, e Luís, rei da Germâ­ então, a lei pela qual a nobreza não seria cons­
nia, pelo qual os dois irmãos dispensaram seus trangida a acompanhar os príncipes na guerra
vassalos de segui-los na guerra, no caso de senão quando se tratasse de defender o Estado
fazerem qualquer empreendimento um contra contra uma invasão estrangeira. Essa lei esteve
em vigor durante vários séculos892.

883 Apud Marsnam, ano 847, ed. de Baluze, pág.


42. (N. do A.) 890 Apud Argentoratum, em Baluze, Capitulares,
889 Volumus ut cujuscumque nostrum homo, in tomo II, pág. 39. (N. do A.)
cujuscumque regno sit, cum seniore suo in hostem, 891 Efetivamente, foi a nobreza que fez esse trata­
vel aliis suis utilitatibus, pergat; nisi talis regni inva- do. Vede Nitard, liv. IV. (N. do A.)
sio quam Lamtuveri dicunt, quod absit, acciderit, ut 892 Vede a lei de Guy, rei dos romanos, entre as
omnis populus illius regni ad eam repellendam com- que têm sido acrescentadas à lei sálica e à dos lom­
muniter pergat. Art. 5, ibid., pág. 44. (N. do A.) bardos, tít. VI, § 2, em Echard. (N. do A.)

Capítulo XXVIII

Modificações ocorridas nos


grandes ofícios e nos feudos

Parecia que tudo contraía um vício particu­ dados aos filhos do conde, e quis que esse
lar e ao mesmo tempo se corrompia. Disse eu regulamento fosse válido também para os
que, nos primeiros tempos, vários feudos se feudos39 4.
encontravam perpetuamente alienados; mas Ver-se-á logo mais que esse regulamento
eram casos particulares, e os feudos, em geral, recebeu mais extensão; de sorte que os grandes
conservavam sempre sua própria natureza; e, ofícios e os feudos passaram a parentes mais
se a coroa perdera feudos substituíra-os por afastados. Disso decorreu que a maioria dos
outros. Disse também que a coroa nunca tinha senhores que dependiam imediatamente da
alienado os grandes ofícios perpetuamente393. coroa dela passasse a depender só mediata-
Porém, Carlos, o Calvo, estabeleceu um mente. Esses condes, que distribuíam outrora a
regulamento geral que afetou igualmente os justiça nos tribunais do rei; esses condes, que
conduziam os homens livres à guerra, se
grandes ofícios e os feudos; estabeleceu ele nas
suas Capitulares que os condados seriam893 * encontraram entre o rei e seus homens livres; e
o poder recuou de um grau.
Há mais: parece, pelas capitulares, que os
893 Outros autores disseram que o condado de condes tinham benefícios relacionados com
Toulouse fora dado por Carlos Martelo, e passou de
herdeiro em herdeiro até o último Raimundo; mas,
se isso foi assim, o foi em consequência de algumas 89 4 Vede sua capitular do ano 877, LIII, art. 9 e
circunstâncias que puderam levar a escolher os con­ 10, Apud Carisiacum. Essa capitular se relaciona a
des de Toulouse entre os filhos do último possuidor. outra do mesmo ano e do mesmo lugar, art. 3. (N.
(N. do A.) do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 541

seu condado e vassalos sob sua autoridade39 5. gênitos tinham dado porções a seus caçulas,
Quando os condados tornaram-se hereditários, estes prestassem homenagem ao primogêni­
esses vassalos do conde não mais foram vassa­ to99 6, de modo que o senhor dominante ape­
los imediatos do rei, os benefícios relacionados nas os mantinha como subfeudo. Filipe Augus­
com os condados não mais foram benefícios to, duque da Borgonha, os condes de Nevers,
do rei; os condes tornaram-se mais poderosos de Bolonha, de São Paulo, de Dampierre, e ou­
porque os vassalos que já possuíam os coloca­ tros senhores, declararam que, daqui por dian­
ram em situação de procurar outros. te, o todo dependería sempre do mesmo
Para perceber bem o enfraquecimento que senhor, sem nenhum senhor intermediário" 7.
resultou no fim da segunda raça, basta ver. o Essa ordenança geralmente não foi obedecida,
que ocorreu, no começo da terceira, em que a pois, como afirmei anteriormente, era impos­
multiplicação dos subfeudos colocou os gran­ sível fazer, nessa época, ordenanças gerais;
des vassalos em desespero. porém muitos de nossos costumes se regula­
Era costume do reino que, quando os primo- mentam por ela.

89 5 Capitular III do ano 812, art. 7; e a do ano 89 6 Como parece por Othon de Frissinge, Das
815, art. 6, sobre os espanhóis; coletânea das Capi­ Gestas de Frederico, liv. II, cap. XXIX. (N. do A.)
tulares, liv. V, art. 288; e a capitular do ano 869, 89 7 Vede a ordenança de Filipe Augusto, do ano
art. 2; e a do ano 877, art. 13, ed. de Baluze. (N. do 1209, na nova coletânea (das Ordenanças de
A.) Laurière). (N. do A.)

Capítulo XXIX

Da natureza dos feudos desde o


reinado de Carlos, o Calvo

Disse eu que Carlos, o Calvo, quis que, hereditária porque se tomavam sempre os reis
quando o possuidor de um grande ofício ou de nesta raça; era-o também porque os filhos
um feudo deixasse, ao morrer, um filho, lhe sucediam; era eletiva porque o povo escolhia
fosse dado o oficio ou o feudo. Seria difícil entre os filhos. Como as coisas marcham sem­
acompanhar o progresso dos abusos que disso pre paulatinamente, e uma lei política sempre
resultaram, e a extensão que se deu a essa lei tem relação com outra, obedeceu-se, para a
em cada país. Encontro nos livros Dos Feu­ sucessão dos feudos, ao mesmo espírito que
dos399 que, no início do reinado do Imperador pautara a sucessão da coroa900. Destarte, os
Conrado II, os feudos, nos países de sua domi­ feudos passaram aos filhos, por direito de
nação, não passavam aos netos; passavam sucessão e por direito de eleição; e cada feudo
somente àquele dos filhos do último possuidor foi, como a coroa, eletivo e hereditário.
que o senhor tinha escolhido8"; assim, os feu­ Esse direito de eleição, na pessoa do senhor,
dos foram concedidos por uma espécie de elei­ não subsistia901 no tempo dos autores dos li­
ção que o senhor fez entre seus filhos. vros Dos Feudos902, isto é, no reinado do
Expliquei, no capítulo XVII deste livro, Imperador Frederico I903.
como, na segunda raça, a coroa era eletiva em
certos respeitos e, em outros, hereditária. Era898
899
900 Pelo menos na Itália e na Alemanha. (N. do
A.)
901 Quod hodie ita stabilitum est, ut ad omnes
898 Liv. I, tít. I. (N. do A.) aequaliter veniat. Liv. I, Dos Feudos, tít. I. (N. do
899 Sic progressum est, ut ad filios deveniret in A.)
quem dominus hoc vellet beneficium confirmare. 902 Gerardus Niger e Aubertus de Orto. (N. do A.)
Ibid. (N. do A.) 903 Barba-Roxa (1122-1190).
542 MONTESQUIEU

Capítulo XXX

Continuação do mesmo assunto

Está escrito, no livro Dos Feudos30 4, que, putar a uma casa estrangeira seus direitos
quando o Imperador Conrado partiu para incontestáveis ao império, e, finalmente, no
Roma, os fiéis que estavam a seu serviço lhe tempo de Hugo Capeto, a casa reinante, despo­
solicitaram o estabelecimento de uma lei para jada de todos os seus domínios, nem mesmo
que os feudos que passavam aos filhos passas­ pôde sustentar a coroa.
sem também aos netos; e aquele cujo irmão A fraqueza de espírito de Carlos, o Calvo,
morresse sem deixar herdeiros legítimos pudes­ introduziu na França igual fraqueza de Esta­
se suceder aos feudos que pertenceram ao pai do. Mas seu irmão, Luís, o Germânico, e al­
comum: isto foi concedido. guns dos que lhe sucederam, possuíram as
Acrescente-se aí — e deve-se lembrar que os maiores qualidades, a força de seu Estado
que falam viviam na época do Imperador Fre­ manteve-se mais longamente.
derico I90 5 — “que os antigos jurisconsultos Que digo? Talvez o espírito fleumático e, se
sempre tinham sustentado que a sucessão dos ouso dizer, a imutabilidade do espírito da
feudos em linha colateral não passava além nação alemã tenha resistido por mais tempo do
dos irmãos germanos, embora nos tempos que o da nação francesa a essa disposição das
modernos ela tenha chegado até o sétimo grau, coisas que fazia com que os feudos, como que
como, pelo novo direito, fora levada em linha por uma tendência natural, se perpetuassem
reta até o infinito”90 6. Foi assim que a lei de nas famílias.
Conrado foi pouco a pouco ampliada. Acrescento que o reino da Alemanha não
Supostas todas essas coisas, a simples leitu­ foi devastado e, por assim dizer, aniquilado,
ra da história da França mostrará que a perpe- como o foi o da França, por esse gênero parti­
tuidade dós feudos se estabeleceu mais cedo na cular de guerra que lhe moveram os norman-
França do que na Alemanha. Quando o Impe­ dos e os sarracenos. Havia menos riqueza na
rador Conrado II começou a reinar, em 1024, Alemanha, menos cidades a saquear, menos
as coisas ainda se encontravam, na Alemanha, costas a percorrer, mais pântanos a atravessar,
tal como estavam na França sob o reinado de mais florestas a penetrar. Os príncipes, que
Carlos, o Calvo, morto em 877. Mas na Fran­ não viram a cada instante o Estado prestes a
ça, desde o reinado de Carlos, o Calvo, sobre­ cair, tiveram menos necessidade de seus vassa­
vieram tantas modificações, que Carlos, o los, isto é, dependeram menos deles. Parece
Simples, não se encontrou em posição de dis- que se os imperadores da Alemanha não tives­
sem sido obrigados a ir a Roma se fazer
90 4 Liv. I, Dos Feudos, tít. I. (N. do A.) coroar, e empreender contínuas expedições à
90 5 Cujácio o demonstrou muito bem. (N. do A.) Itália, os feudos teriam conservado, nesse país,
90 6 Livro I, Dos Feudos, tít. I. (N. do A.) por mais tempo, sua natureza primitiva.

Capítulo XXXI

Como o império saiu da casa de Carlos Magno

O império que, em prejuízo do ramo de Car­ duque de Francônia, no ano 912. O ramo que
los, o Calvo, já fora entregue aos bastardos do reinava na França, e que mal podia disputar as
de Luís, o Germânico90 7, passou ainda para vilas, estava ainda menos em condições de dis­
uma casa estrangeira, pela eleição de Conrado, putar o império. Temos um acordo feito entre
Carlos, o Simples, e o Imperador Henrique I,
90 7 Arnoul e seu filho Luís IV. (N. do A.) que sucedera a Conrado. É chamado Pacto de
DO ESPIRITO DAS LEIS VI 543

Bonn908. Os dois príncipes encontraram-se amizade eterna. Empregou-se um mezzo termi­


num navio situado no meio do Reno e juraram ne muito bom. Carlos tomou o título de rei da
França Ocidental, e Henrique o de rei da Fran­
908 Do ano 926, relatado por Aubert le Mire, Cod. ça Oriental. Carlos contratou com o rei da
donationum piarum, cap. XXVII. (N. do A.) Germânia e não com o imperador.

Capítulo XXXII

Como a coroa da França passou


para a casa de Hugo Capeto

A hereditariedade dos feudos e o estabeleci­ diam avançar nem pelo Sena nem pelo Loire.
mento geral dos subfeudos destruíram o gover­ Hugo Capeto, que possuía essas duas cidades,
no político e formaram o governo feudal. Em tinha em suas mãos as duas chaves dos infeli­
lugar dessa multidão inumerável de vassalos zes restos do reino; foi-lhe conferida uma
que os reis tiveram, somente possuíram alguns
de quem os outros dependeram. Os reis quase coroa que só ele podia defender. Foi assim que
não tiveram mais autoridade direta: um poder depois se deu o império à casa que mantém
que devia passar por tantos outros poderes, e imóveis as fronteiras dos turcos911.
por poderes tão grandes, deteve-se ou se per­ O império saíra da casa de Carlos Magno
deu antes de chegar a seu termo. Vassalos
no tempo em que a hereditariedade dos feudos
muito poderosos não mais obedeceram; e
inclusive se serviram de seus subfeudos para apenas se estabelecia como uma condescen­
não mais obedecer. Os reis, privados de seus dência. Estabeleceu-se inclusive mais tardia­
domínios, reduzidos às cidades de Reims e de mente entre os alemães do que entre os france­
Laon, ficaram à sua mercê. A árvore estendeu ses912; isso fez com que o império,
muito seus ramos e a cabeça secou. O reino
considerado como feudo, fosse eletivo. Ao
encontrou-se sem domínio, como se encontra
contrário, quando a coroa de França saiu da
atualmente o império909. Entregou-se a coroa
a um dos vassalos mais poderosos. casa de Carlos Magno, os feudos eram real­
Os romanos devastavam o reino; chegavam mente hereditários nesse reino: a coroa, como
em espécies de jangadas ou pequenas embarca­ um grande feudo, também o foi.
ções, entravam pelas embocaduras dos rios, Todavia, cometeu-se grande erro em atribuir
subiam-nos e devastavam a região de ambos ao momento dessa revolução todas as transfor­
os lados. As cidades de Orléans e de Paris mações que ocorreram ou que ocorreríam
paralisaram esses salteadores91 0 e eles não po­ depois. Tudo se reduziu a dois aconteci­
mentos: a família reinante mudou e a coroa foi
909 O império. . . a Alemanha. unida a um grande feudo.
910 Vede a capitular de Carlos, o Calvo, do ano
877. Apud Carisiacum, sobre a importância, nessa
época, de Paris, de Saint-Denis e dos castelos do 911 A casa da Áustria.
Loire. (N. do A.) 912 Vede acima o cap. XXX. (N. do A.)
544' MONTESQUIEU

Capítulo XXXIII

Algumas consequências da perpetuidade dos feudos

Resultou da perpetuidade dos feudos que o serviço, cumpria que o possuidor estivesse em
morgadio ou direito de primogenitura se esta­ condições de o executar. Estabeleceu-se um
belecesse entre os franceses. Não era conhe­ direito de primogenitura; e a razão da lei feu­
cido na primeira raça913* ; a coroa era parti­ dal forçou a da lei política e civil.
lhada entre os irmãos, os alódios também e os Passando os feudos aos filhos do possuidor,
feudos, amovíveis ou vitalícios, não sendo ob­ os senhores perdiam a liberdade de dispor
jeto de sucessão, não podiam ser objeto de deles; e, para se compensarem, estâbeleceram
partilha. um direito que se chamou direito de resgate, de
Na segunda raça, o título de imperador que que falam nossos costumes, que se pagou
Luís, o Bonacheirão, possuía, e com o qual inicialmente em linha direta e que, pelo uso,
honrou Lotário, seu filho primogênito, fê-lo não se pagou mais do que em linha colateral.
pensar em conferir a este príncipe uma espécie Em breve, os feudos puderam ser transfe­
de primazia sobre seus irmãos mais novos. Os ridos aos estrangeiros, como um bem patrimo­
dois reis deviam ir encontrar o imperador cada nial. Isso fez surgir o direito de laudêmio e de
ano, levar-lhe presentes91 4 e dele receber ou­ vendas, estabelecido em quase todo o reino.
tros maiores; deviam conferenciar com ele Inicialmente, esses direitos foram arbitrários;
sobre negócios comuns. Foi o que deu a Lotâ- mas, quando a prática de conceder essas
rio essas pretensões que lhe custaram tão caro. permissões generalizou-se, foram fixados em
Quando Agobardo escreveu para este prínci­ cada região.
pe91 5, alegou a disposição do próprio impera­
O direito de resgate deveria ser pago quando
dor, que associara Lotário, depois de, por três
de cada mutação de herdeiro e inicialmente foi
dias de jejuns e celebração dos santos sacrifí­
pago mesmo em linha direta91 6. O costume
cios, por orações e esmolas, ter sido Deus
mais generalizado fixara-o em um ano de
consultado; que a nação lhe prestara jura­
renda. Isso era oneroso e incômodo ao vassalo
mento e que não podia ela perjurar; que envia­
e afetava, por assim dizer, o feudo. Obteve,
ra Lotário a Roma, para ser confirmado pelo
amiúde, no ato de homenagem que o senhor
papa. Pondera ele sobre tudo isso e não sobre
não exigisse para o resgate senão uma pequena
o direito de primogenitura. Diz bem que o
quantia de dinheiro91 7, a qual, pelas modifica­
imperador designara uma partilha aos caçulas
ções havidas nas moedas, tornou-se de mínima
e dera preferência ao primogênito; mas, dizer
importância: assim, o direito de resgate encon­
que preferira o mais velho era dizer ao mesmo
tra-se atualmente quase reduzido a nada,
tempo que teria podido preferir os mais moços.
enquanto o de laudêmio e de vendas subsistiu
Porém, quando os feudos se tornaram em toda a sua extensão. Não concernindo esse
hereditários, o direito de primogenitura estabe­ direito nem aos vassalos nem aos herdeiros,
leceu-se na sucessão dos feudos, e, pela mesma mas sendo um caso fortuito que não se devia
razão, no da coroa, que era o grande feudo. A prever ou esperar, não se fizeram essas espé­
antiga lei, que instituiu partilhas, não mais cies de estipulações e se continuou a pagar
subsistiu: sendo os feudos encarregados de um certa porção do preço.
Quando os feudos eram vitalícios, não se
913 Vede a lei sálica e a lei dos ripuários, no título
dos alódios. (N. do A.)
91 4 Vede a capitular do ano 817, que contém a pri­ 91 8 Vede a ordenança de Filipe Augusto do ano
meira partilha que Luís, o Bonacheirão, fez entre 1209, sobre os feudos. (N. do A.)
seus filhos. (N. do A.) 91 7 Encontramos, nas chartas, muitas dessas con­
91 8 Vede suas duas cartas a este respeito, da qual venções, como na capitular de Vendôme e na abadia
uma tem como título De divisione imperii. (N. do de São Cipriano, em Poitou, de que Galland, pág.
A.) 55, apresenta extratos. (N. do A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 545

podia dar uma parte do feudo, para o manter enfim922, que, além dos limites da Alemanha,
para sempre como subfeudo; era absurdo que e em tempos assaz modernos, renasceram, de
um simples usufrutuário dispusesse da proprie­ algum modo, pelo estabelecimento do cristia­
dade da coisa. Porém, quando se tornaram nismo.
perpétuos, isso foi permitido918, com certas Quando eram os feudos amovíveis, eram
restrições que os costumes impuseram919: o dados a pesssoas que estavam em condições de
que se chamou fruir de seu feudo. servi-los e não se cogitava dos menores.
Tendo a perpetuidade dos feudos feito esta­ Porém, quando foram perpétuos, os senhores
belecer o direito de resgate, as filhas puderam tomaram o feudo até a maioridade, seja para
suceder a um feudo, na ausência de sucessores aumentar seus proveitos, seja para educar o
masculinos. Pois, dando o senhor o feudo à pupilo no exercício das armas923. É a isso que
filha, multiplicava os casos de seu direito de nossos costumes chamam de guarda-nobre,
resgate, porque o marido devia pagâ-lo como a baseada em princípios diferentes dos da tutela
mulher920. Essa disposição não era válida e deles inteiramente diferentes.
para a coroa, uma vez que, não dependendo de Quando os feudos eram vitalícios, recomen­
ninguém, não poderia haver direito de resgate dava-se para um feudo; e a tradição real, que
sobre ela. se fazia pelo cetro, confirmava o feudo, como
faz hoje a homenagem. Não nos consta que os
A filha de Guilherme V, conde de Toulouse,
condes, ou mesmo os enviados do rei, recebes­
não sucedeu ao condado. Posteriormente,
sem as homenagens nas províncias; e esta fun­
Eleonora sucedeu na Aquitânia, e Matilde na
ção não se encontra nas comissões desses ofi­
Normandia; e o direito de sucessão das filhas
parece, nessa época, tão bem estabelecido que
ciais, que nos foram conservadas nas
capitulares. Algumas vezes, efetivamente, fa­
Luís, o Jovem, após a dissolução de seu casa­
ziam que todos os súditos92 4 prestassem jura­
mento com Eleonora, não opôs nenhuma difi­
mento de fidelidade, mas esse juramento era
culdade em lhe restituir a Guiena. Como esses
tampouco uma homenagem da natureza dás
dois últimos exemplos seguem de muito perto
que se estabeleceram depois, que, nessas últi­
o primeiro, cumpre que a lei geral, que chama­ mas, o juramento de fidelidade era uma ação
va as mulheres à sucessão dos feudos, se tenha
anexa à homenagem, que ora a seguia ora a
introduzido mais tarde no condado de Tou­ precedia, que não se efetuava em todas as
louse do que nas outras províncias do homenagens, que foi menos solene que a home­
reino921. nagem e dela era inteiramente distinta92 5.
A constituição dos diversos reinos da Euro­
pa seguiu o estado em que estavam os feudos
922 Os Estados escandinavos e a Rússia (Moscó-
na época em que esses reinos foram consti­ via).
tuídos. As mulheres não sucederam nem à 923 Vemos na capitular do ano 877, Apud Carisia-
coroa da França nem à do império, porque, no cum, art. 3, ed. de Baluze, tomo II, pág. 269, o
estabelecimento dessas duas monarquias, as momento em que os reis fizeram administrar os feu­
dos para os conservar aos menores: exemplo que foi
mulheres não podiam suceder aos feudos, mas seguido pelos senhores, e deu origem ao que chama­
sucederam nos reinos cujo estabelecimento se­ mos a guarda-nobre. (N. do A.)
guiu o da perpetuidade dos feudos, tais como 92 4 Encontramos a fórmula na capitular II do ano
802. Vede também a do ano 854, art. 13, e outras.
os que foram fundados pelas conquistas dos (N. do A.)
normandos, os que foram fundados pelas con­ 92 5 O Sr. du Cange na palavra Hominium, pág.
quistas feitas sobre os mouros; outros, 1 163, e na palavra Fidelitas, pág. 474, cita as char-
tas das antigas homenagens, onde essas diferenças
se encontram, e grande número de autoridades que
918 Mas não se podia suprimir o feudo, isto é, podemos consultar. Na homenagem, o vassalo colo­
suprimir-lhe uma porção. (N. do A.) cava sua mão na do senhor, e jurava: o juramento
919 Fixaram elas a parcela que se podia fruir. (N. de fidelidade se fazia, jurando-se sobre os Evange­
do A.) lhos. A homenagem se fazia de joelhos, o juramento
920 Ê por isso que o senhor constrangia a viúva a de fidelidade, de pé. Só o senhor podia receber a
casar. (N. do A.) homenagem, mas seus oficiais podiam receber o
921 A maior parte das casas tinha suas leis de juramento de fidelidade. Vede Littleton, sec. XCI e
sucessão particulares. Vede o que nos diz Thaumas- XCII. Fé e homenagem é fidelidade e homenagem.
sière sobre as casas do Berri. (N. do A.) (N. do A.)
546 MONTESQUIEU

Os condes e os enviados do rei mandavam fazer com que fossem lembrados os deveres
ainda, em certas ocasiões, dar aos vassalos, recíprocos do senhor e do vassalo, em todas as
cuja fidelidade era susoeita, uma garantia que épocas.
se chamavafirmitas32 6, mas essa garantia não Poderia acreditar que as homenagens come­
podia ser uma homenagem, pois os reis a çaram a ser estabelecidas na época do Rei
davam entre si92 7. Pepino, época em que disse que vários benefí­
Pois, se o Abade Suger fala de uma cadeira cios foram dados perpetuamente: mas acredi­
de Dagoberto onde, segundo a relação da anti­ tá-lo-ia com precaução e apenas na suposição
guidade, os reis da França tinham o costume de que os autores dos antigos Anais dos fran­
de receber a homenagem dos senhores928, é cos não eram ignorantes, que, descrevendo as
claro que ele emprega aqui as idéias e a lingua­ cerimônias do ato de fidelidade que Tassillon,
gem de sua época. duque da Baviera, fez a Pepino929, tenham fa­
Quando os feudos passaram aos herdeiros, o lado segundo os usos que viam ser praticados
reconhecimento do vassalo, que nos primeiros em sua época930.
tempos era apenas coisa ocasional, tornou-se
ação regulamentada: foi feito de modo mais 928 Suger, liv. De administratione sua. (N. do A.)
brilhante, repleto de formalidade, porque devia 929 Anno 757, cap. XVII. (N. do A.)
930 Tassillo venit in vassatico se commendans, per
manus sacramenta iuravit multa et innumerabilia,
92 6 Capitular de Carlos, o Calvo, do ano 860,post reliquiis sanctorum manus imponens, et fidelitatem
reditum a Confluentibus, art. 3, ed. de Baluze, pág. promisit Pippino. Parecería haver, aí, uma homena­
145. (N. do A.) gem e um juramento de fidelidade. Vede, na pág. 90,
92 7 Ibid., art. I. (N. do A.) a nota 3. (N. do A.)

Capítulo XXXIV

Continuação do mesmo assunto

Quando os feudos eram amovíveis ou vitalí­ mas um avô, um tio-avô tériam sido maus vas­
cios, quase que só diziam respeito às leis políti­ salos para dar ao senhor: destarte, essa regra
cas; é por isso que, nas leis civis dessas épocas, só foi válida para os feudos, como nos informa
faz-se tão pouca menção às leis dos feudos. Boutillier933.
Porém, quando eles se tornaram hereditários, Tendo-se os feudos tornado hereditários, os
quando puderam ser dados, vendidos ou lega­ senhores, que deviam velar para que o feudo
dos, disseram respeito às leis políticas e às leis fosse servido, exigiram que as filhas, que de­
civis. O feudo, considerado como uma obriga­ viam suceder no feudo93 4 e, creio, algumas
ção ao serviço militar, relacionava-se ao direi­ vezes os varões, não pudessem casar sem seu
to político; considerado como um gênero de consentimento; de sorte que os contratos de
bem que estava no comércio, dependia do casamento se tornaram para os nobres uma
direito civil. Isso originou as leis civis sobre os disposição feudal e uma disposição civil. Num
feudos. ato semelhante, feito sob os olhos do senhor,
Tendo se os feudos tornado hereditários, as estabeleceram-se disposições para a sucessão
leis concernentes à ordem das sucessões tive­ futura, de modo que o feudo pudesse ser servi-
ram que ser relativas à perpetuidade dos feu­
dos. Assim se estabeleceu, apesar da disposi­ 933 Somme Rurale, liv. 1, tít. LXXVI, pág. 447.
ção do direito romano e da lei sálica931932 , ésta (N. do A.)
regra do direito francês: Propres ne remontent 93 4 Segundo uma ordenança de São Luís, do ano
point332. Cumpria que o feudo fosse servido; 1246, para comprovar os costumes de Anjou e do
Maine, os que tiveram o arrendamento de uma filha
herdeira de um feudo, darão garantia ao senhor que
931 No título dos alódios. (N. do A.) ela só se casará com o seu consentimento. (N. do
932 Liv. IV, Defundis, tít. LIX. (N. do A.) A.)
DO ESPÍRITO DAS LEIS VI 547

do pelos herdeiros. Assim, só os nobres tive­ Italiam, Italiam3 3 7. . . Termino o tratado


ram inicialmente a liberdade de dispor das dos feudos, onde a maioria dos autores o
sucessões futuras pelo contrato de casamento, começou938.
como observaram Boyer93 5 e Alfrério93 6.
É inútil dizer que o retrait lignager, baseado 93 7 Eneida, liv. III, verso 522. (N. do A.)
938 “Quando Montesquieu proclamou altivamente
no antigo direito dos pais, que constitui um esse preceito, passado hoje à situação de axioma, de
que é necessário esclarecer a História pelas leis e as
mistério de nossa antiga jurisprudência france­ leis pela História, desvendou novo horizonte para a
sa, que não tenho tempo de desenvolver, não ciência. Quando disse, ao terminar sua obra: Termi­
no o tratado dos feudos onde a maioria dos autores
tenha podido ocorrer com relação aos feudos, começou, oferece o primeiro exemplo da aplicação e
senão quando eles se tornaram perpétuos. da oportunidade de sua doutrina. Fazendo essa
observação, Montesquieu não se limitava a uma
questão de cronologia. Sabia que essas matérias
93 6 (Boyer ou Boerius, jurisconsulto francês do sé­ nunca tinham sido tratadas por qualquer juriscon­
culo XVI.) Decisão 155, número 8; e 204, número sulto segundo o método histórico que acabara de
38. (N. do A.) adotar, e queria fixar a data dessa feliz inovação.
93 6 (Alfrério comentou o estilo do parlamento de Ninguém ousará contestar-lhe o direito.” (Nota de
Toulouse.) In Capei. Thol., decisão 453. (N. do A.) Sclopis, reproduzida por Laboulaye.)
Índice

INTRODUÇÃO — MONTESQUIEU E O ESPÍRITO DAS LEIS

Montesquieu — LA vida.— II. O homem. — III. O pensador e o escri­


tor. — IV. A influência e a glória.................................................................... 9
O Espírito das Leis — I. Sua composição. — II. Seu conteúdo. — III.
Sua publicação. — IV. Seu alcance ................................................................ 16

DO ESPÍRITO DAS LEIS


Prefácio ............................................................................................................ 27
Advertência do Autor .................................................................... 29

PRIMEIRA PARTE
LIVRO PRIMEIRO — Das leis em geral

Cap. I — Das leis em suas relações com os diversos seres ........................ 33


Cap. II — Das leis da natureza ................................................................... 34
Cap. III — Das leis positivas ....................................................................... 35

LIVRO SEGUNDO — Das leis que derivam


diretamente da natureza do governo

Cap. I — Da natureza de três diferentes governos .................................... 39


Cap. II — Do governo republicano e das leis relativas à democracia .... 39
C ap. III — Das leis relativas à natureza da aristocracia ........................... 42
Cap. IV — Das leis em sua relação com a natureza do governo monár­
quico ......................................................................................... 43
C ap. V — Das leis relativas à natureza do Estado despótico .................... 44
550 ÍNDICE

LIVRO TERCEIRO — Dos princípios dos três governos

C ap.I — Diferença entre a natureza do governo e seu princípio ............. 49


Cap. II — Do princípio dos diversos governos .......................................... 49
C ap.III — Do princípio da democracia .............................. 49
Cap. IV — Do princípio da aristocracia ................................................... 51
Cap. V — De como a virtude não é o princípio do governo monárquico 51
Cap. VI — Como se supre a virtude no governo monárquico .................. 52
C ap.VII — Do princípio da monarquia..................................................... 53
Cap. VIII — De como a honra não é o princípio dos Estados despóticos 53
C ap.IX — Do princípio do governo despótico ........................................ 53
Cap. X — De como a obediência é diferente nos governos moderados e
nos governos despóticos .......................................................... 54
Cap. XI — Reflexão sobre tudo isso .......................................................... 55

LIVRO QUARTO — De como as leis da educação


devem ser relativas aos princípios do governo

Cap. I — Das leis da educação .................................................................. 59


Cap. II — Da educação nas monarquias ................................................... 59
Cap. III — Da educação no governo despótico ........................................ 61
Cap. IV — Dos diferentes efeitos da educação entre osantigos e nós ... 61
Cap. V — Da educação no governo republicano ...................................... 62
Cap. VI — De algumas instituições dos gregos ........................................ 62
Cap. VII — Em que caso essas instituições singulares podem ser boas . . 64
Cap. VIII — Explicação de um paradoxo dos antigos com relação aos
costumes .................. 64

LIVRO QUINTO — De como as leis decretadas pelo


legislador devem ser relativas aos princípios do governo

Cap. I — Idéia deste livro ........................................................................... 69


Cap. II — O que é a virtude no Estado político ........................................ 69
Cap. III — O que é o amor pela república na democracia ......................... 69
Cap. IV — Como se inspira o amor pela igualdade e pela frugalidade ... 70
Cap. V — Como as leis estabelecem a igualdade na democracia ............. 70
Cap. VI — Como as leis devem manter a frugalidade na democracia ... 72
Cap. VII — Outros meios de favorecer o princípio da democracia ......... 73
Cap. VIII — Como as leis devem relacionar-se com o princípio do gover­
no na aristocracia ..................................................................... 74
Cap. IX — Como as leis são relativas a seu princípio na monarquia .... 77
Cap. X — Da presteza da execução na monarquia ................................... 77
Cap. XI—Da excelência do governo monárquico ................................... 78
Cap. XII — Continuação do mesmo assunto ...................... 79
ÍNDICE 551

Cap. XIII — Idéia do despotismo ............................................................. 79


Cap. XIV — Como as leis são relativas ao princípio do governo despó­
tico ........................................................................................................ 79
Cap. XV — Continuação do mesmo assunto ........................................... 82
Cap. XVI — Da comunicação do poder .................................................. 83
Cap. XVII — Dos presentes ...................................................................... 84
Cap. XVIII — Das recompensas que o soberano oferece ....................... 84
Cap. XIX — Novas consequências dos princípios dos três governos .... 85

LIVRO SEXTO — Consequências dos princípios dos diversos


governos em relação à simplicidade das leis civis e criminais,
à forma dos julgamentos e ao estabelecimento das penas

Cap. I — Da simplicidade das leis civis nos diversos governos ............... 89


Cap. II — Da simplicidade das leis criminais nos diversos governos .... 90
Cap. III — Em que governos e em que casos se deve julgar segundo os ter­
mos precisos da lei .............................................................................. 91
Cap. IV — Da maneira de formar os julgamentos ................................... 91
Cap. V — Em que governos pode o soberano ser juiz ............................... 92
Cap. VI — De como, na monarquia, os ministros não devem julgar .... 94
Cap. VII — Do magistrado único .............................................................. 94
Cap. VIII — Das acusações nos diversos governos ................................. 94
Cap. IX—Da severidade das penas nos diversos governos .................... 95
Cap. X — Das antigas leis francesas .......................................................... 96
Cap. XI — De como, quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas 96
Cap. XIII — Impotência das leis japonesas .............................................. 97
Cap. XIV — Do espírito do senado de Roma ......................................... . 99
Cap. XV—Das leis romanas em relação às penas ........................ 99
Cap. XVI — Da justa proporção das penas com o crime ........................ 100
Cap. XVII — Da tortura ou da questão contra os criminosos .................. 101
Cap. XVIII — Das penas pecuniárias e das penas corporais .................... 101
Cap. XIX — Da lei de Talião ..................................................................... 102
Cap. XX — Da punição dos pais em lugar dos filhos ............................... 102
Cap. XXI — Da clemência do príncipe ..................................................... 102

LIVRO SÉTIMO — Consequências dos diferentes


princípios dos três governos em relação às leis
suntuárias, ao luxo e à condição das mulheres

Cap. I — Do luxo ............... 107


Cap. II — Das leis suntuárias na democracia ............................................ 108
Cap. III — Das leis suntuárias na aristocracia .......................................... 108
Cap. IV — Das leis suntuárias nas monarquias ........................................ 109
552 ÍNDICE

Cap. V — Em que casos as leis suntuárias são úteis numa monarquia ... 110
Cap. VI — Do luxo na China ..................................................................... 110
Cap. VII — Fatal consequência do luxo na China .................................... 111
Cap. VIII — Da continência pública .......................................................... 111
Cap. IX — Da condição das mulheres nos diferentes governos ................ 112
Cap. X—Do tribunal doméstico entre os romanos ................................. 112
Cap. XI — Como as instituições, em Roma, transformaram-se com o
governo ..................................................................................... 113
Cap. XII — Da tutela das mulheres entre os romanos ............................. 114
Cap. XIII — Das penas estabelecidas pelos imperadores contra a devassi­
dão das mulheres ........................................................................ 114
Cap. XIV — Leis suntuárias entre os romanos .......................................... 115
Cap. XV — Dos dotes e das vantagens nupciais nas diversas constitui­
ções ........................................................................................... 116
Cap. XVI — Belo costume dos samnitas ................................................... 116
Cap. XVII — Da administração das mulheres .......................................... 117

LIVRO OITAVO — Da corrupção dos princípios nos três governos

C ap. I — Idéia geral deste livro .................................................................. 121


C ap. II — Da corrupção do princípio da democracia ............................... 121
C ap. III — Do espírito de igualdade extrema ............................................ 122
Cap. IV—Causa particular da corrupção do povo ................................. 123
C ap. V — Da corrupção do princípio da aristocracia ............................... 123
C ap. VI — Da corrupção do princípio da monarquia ............................... 124
Cap. VII—Continuação do mesmo assunto ............................................ 124
Cap. VIII — Perigo da corrupção do princípio do governo monárquico . 125
Cap. IX — Até que ponto a nobreza é levada a defender o trono ............. 125
Cap. X — Da corrupção do princípio do governo despótico .................... 125
Cap. XI — Efeitos naturais da bondade e da corrupção dos princípios . . 126
C ap. XII — Continuação do mesmo assunto 127
C ap. XIII — Efeito do juramento num povo virtuoso ............... '.............. 127
Cap. XIV — Como a menor modificação na constituição acarreta a ruína
dos princípios ....... .’................. 128
Cap. XV— Meios muito eficazes para a conservação dos três princípios 128
Cap. XVI — Propriedades distintivas da república ................................. 128
Cap. XVII — Propriedades distintivas da monarquia ............................... 129
Cap. XVIII — De como a monarquia espanhola era um caso particular . . 129
Cap. XIX — Propriedades distintivas do governo despótico .................... 130
Cap. XX — Consequência dos capítulos precedentes ................. 130
C ap. XXI — Do império da China ............................................................ 130

SEGUNDA PARTE
LIVRO NONO — Das leis, em sua relação com a força defensiva
ÍNDICE 553

Cap. I — Como as repúblicas garantem sua segurança ............................. 135


Cap. II — De como a constituição federal deve ser composta de Estados
da mesma natureza, sobretudo de Estados republicanos .................. 136
Cap. III — Outras coisas necessárias na república federativa .................. 136
Cap. IV — Como os Estados despóticos garantem sua segurança ........... 137
Cap. V — Como a monarquia garante sua segurança ............................... 137
Cap. VI—Da força defensiva dos Estados em geral ............................... 137
Cap. VII — Reflexões .................................................................................. 138
Cap. VIII — Caso em que a força defensiva de um Estado é inferior à sua
força ofensiva ............................................................................ 138
Cap. IX — Da força relativa dos Estados ................................................. 139
Cap. X — Da fraqueza dos Estados vizinhos ............................................ 139

LIVRO DÉCIMO — Das leis, em suas relações com a força ofensiva

C ap. I — Da força ofensiva ......................................................................... 143


Cap. II — Da guerra ..................................................................................... 143
Cap. III — Do direito de conquista ............................................................ 143
Cap. IV — Algumas vantagens do povo conquistado ............................... 145
Cap. V — Gelon, rei de Siracusa ................................................................ 145
Cap. VI — Da república que.conquista ..................................................... 146
Cap. VII — Continuação do mesmo assunto ............................................ 146
Cap. VIII—Continuação do mesmo assunto .......................................... 147
C ap. IX — Da monarquia que conquista em torno de si .......................... 147
Cap. X — De uma monarquia que conquista outra monarquia ............... 148
C ap. XI — Dos costumes do põvo vencido .............................................. 148
Cap. XII — De uma lei de Ciro ................................................................ 148
Cap. XIII — Carlos XII .............................................................................. 148
Cap. XIV — Alexandre .............................................................................. 149
Cap. XV—Novos meios de conservar a conquista ................................. 151
Cap. XVI — De um Estado despótico que conquista ............................... 151
Cap. XVII — Continuação do mesmo assunto .......................................... 152

LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO — Das leis que formam a


liberdade política em sua relação com a constituição

C ap. I — Idéia geral .................................................................................... 155


Cap. II — Diversas significações dadas à palavra liberdade .................... 155
Cap. III — O que é a liberdade ...................................... 155
Cap. IV—Continuação do mesmo assunto ............................................... 156
Cap. V — Do objetivo dos diversos Estados ............................................ 156
Cap. VI — Da constituição da Inglaterra ................................................... 156
Cap. VII—Das monarquias que conhecemos .......................................... 162
Cap. VIII — Por que os antigos não tinham uma idéia bem clara da
monarquia ................................................................................... 163
554 ÍNDICE

Cap. IX — Maneira de pensar de Aristóteles ............................................ 163


Cap. X — Maneira de pensar dos outros políticos .................................... 164
Cap. XI — Dos reis dos tempos heróicos entre os gregos ......................... 164
Cap. XII — Do governo dos reis de Roma e de como os três poderes
foram distribuídos ..................................................................... 165
Cap. XIII — Reflexões gerais sobre o Estado de Roma depois da expulsão
dos reis ....................................................................................... 166
Cap. XIV — Como a distribuição dos três poderes começou a mudar de­
pois da expulsão dos reis .......................................................... 166
Cap. XV — Como, no florescente Estado da república, Roma perdeu,
subitamente, sua liberdade .................. 168
Cap. XVI — Do poder legislativo na república romana ........................... 168
Cap. XVII — Do poder executivo na mesma república ........................... 169
C ap. XVIII — Do poder de julgar no governo de Roma ........................... 170
C ap. XIX — Do governo das províncias romanas .................................... 173
Cap. XX—Fim deste livro ....................................................................... 174
LIVRO DÉCIMO SEGUNDO — Das leis que formam a
liberdade política na sua relação com o cidadão

Cap. I — Idéia deste livro ........................................................................... 177


Cap. II—Da liberdade do cidadão ............................................................ 177
Cap. III — Continuação do mesmo assunto................................................. 178
Cap. IV — Como a liberdade é favorecida pela natureza das penas e pela
proporção delas ....................................................................... 178
Cap. V — De certas acusações que necessitam especialmente moderação
e prudência ................ 179
Cap. VI—Do crime contra a natureza ..................................................... 180
Cap. VII—Do crime de lesa-majestade ................................................... 181
Cap. VIII — Da má aplicação do nome do crime de sacrilégio e de lesa-
majestade .......................................... 181
Cap. IX — Continuação do mesmo assunto ............................. 182
Cap. X—Continuação do mesmo assunto ............................................... 183
Cap. XI — Dos pensamentos ..................................................................... 183
Cap. XII — Das palavras indiscretas ....................................................... 183
Cap. XIII — Dos escritos ........................................................................... 184
Cap. XIV — Violação do pudor na punição doscrimes ............................ 185
Cap. XV — Da libertação do escravo para acusar o senhor .................... 185
Cap. XVI — Calúnia no crime de lesa-majestade ...................................... 185
Cap. XVII — Da revelação das conspirações ....................................... 186
Cap. XVIII — Como é perigoso, nas repúblicas, punir muito severamente
o crime de lesa-majestade ........................................................ 186
Cap. XIX — Como se suspende o uso da liberdade na república ........... 187
Cap. XX — Das leis favoráveis à liberdade do cidadão na república . . . 188
Cap. XXI— Da crueldade das leis para com os devedores na república 188
ÍNDICE 555

Cap. XXII — Das coisas que afetam a liberdade na monarquia.............. 189


Cap. XXIII — Dos espiões na monarquia ............................................... 189
Cap. XXIV — Das cartas anônimas ........................................................ 190
Cap. XXV — Da maneira de governar na monarquia ...................... 190
Cap. XXVI — De como, na monarquia, o príncipe deveser acessível ... 191
Cap. XXVII — Dos costumes do monarca ............................................. 191
Cap. XXVIII — Das considerações que os monarcas devem a seus súdi­
tos .............................................................................................. 191
Cap. XXIX — Das leis civis capazes de introduzir um pouco de liberdade
no governo despótico ................................................................. 192
Cap. XXX — Continuação do mesmo assunto ........................................ 192

LIVRO DÉCIMO TERCEIRO — Das relações que a arrecadação


dos tributos e a grandeza das rendas públicas têm com a liberdade

Cap. I — Das rendas do Estado .................................................................. 197


Cap. II — De como é raciocinar mal dizer que a grandeza dos tributos é
boa por si mesma ..................................................... 197
Cap. III — Dos tributos nos países em que uma parte do povo é escrava
da gleba ..................................................................................... 198
Cap. IV — De uma república em caso semelhante ................................... 198
Cap. V — De uma monarquia em caso semelhante ................................... 198
Cap. VI — De um Estado despótico em caso semelhante ........................ 198
Cap. VII — Dos tributos nos países onde a escravidão da gleba não está
estabelecida .................................... :. ■..................................... 199
Cap. VIII — Como se conserva a ilusão ................................................... 200
Cap. IX — De uma má espécie de imposto .............................................. 200
Cap. X — De como a grandeza dos tributos depende da natureza do
governo ...................................................... . ........................... 201
Cap. XI—Das penas fiscais ....................................................................... 201
Cap. XII — Relação da grandeza dos tributos com a liberdade ............. 202
Cap. XIII — Em que governos os tributos são suscetíveis de aumento .. 202
Cap. XIV — Como a natureza dos tributos é relativa ao governo ........... 202
Cap. XV — Abuso da liberdade ........... ,................................................... 203
Cap. XVI — Das conquistas dos maometanos .................... 204
Cap. XVII — Do aumento das tropas ....................................................... 204
Cap. XVIII — Da isenção de tributos ........................................................ 204
Cap. XIX — O que é mais conveniente ao príncipe e ao povo: a arrecada­
ção por contrato ou a cobrança oficial dos tributos ? ............ 205
Cap. XX — Dos contratadores ................................................................... 206

TERCEIRA PARTE
LIVRO DÉCIMO QUARTO — Das leis, na relação
que elas têm com a natureza do clima
556 ÍNDICE

Cap. I — Idéia geral .................................................................................... 209


Cap. II — Como os homens são diferentes nos diversos climas ................ 209
Cap. III — Contradição nos caracteres de certos povos do sul ................ 211
Cap. IV — Causa da imutabilidade da religião, dos costumes, das manei­
ras, das leis, nos países do Oriente ........................................... 211
Cap. V — De como os maus legisladores aí são os que se opuseram .... 212
Cap. VI — Da cultura das terras nos climas quentes .............................. 212
Cap. VII— Do monaquismo ................................................................. 212
Cap. VIII — Bom costume da China ......................................................... 213
Cap. IX — Meios de encorajar a indústria ................................................ 213
Cap. X — Das leis relacionadas com a sobriedade dos povos ................. 213
Cap. XI — Das leis que têm relações com as moíéstias do clima .......... 214
Cap. XII — Das leis contra os que se suicidam ...................................... 215
Cap. XIII — Efeitos que resultam’do clima da Inglaterra ....................... 216
Cap. XIV — Outros efeitos do clima .......................................................... 216
Cap. XV — Da diferente confiança que as leis depositam no povo, segun­
do os climas .............................................................................. 217
LIVRO DÉCIMO QUINTO — Como as leis da
escravidão civil relacionam-se à natureza do clima

Cap. I — Da escravidão civil ..................................................................... 221


Cap. II — Origem do direito de escravatura entre os jurisconsultos roma­
nos .............................................................................................. 221
Cap. III — Outra origem do direito de escravidão .................................... 222
Cap. IV — Outra origem do direito de escravidão ................................... 222
Cap. V—Da escravidão dos negros .......................................................... 223
Cap. VI — Verdadeira origem do direito de escravidão ........................... 223
Cap. VII — Outra origem do direito de escravidão .................................... 224
Cap. VIII — Inutilidade da escravidão entre nós ...................................... 224
Cap. IX — Das nações em que a liberdade civil está geralmente estabele­
cida ................................................... 225
Cap. X — Diversos tipos de escravidão ..................................................... 225
Cap. XI — O que as leis devem fazer com relação à escravidão ............. 225
Cap. XII—Abuso da escravidão ................... 226
Cap. XIII — Perigo do grande número de escravos ................................. 226
Cap. XIV — Dos escravos armados ......................................................... 227
Cap. XV — Continuação do mesmo assunto ........... 227
Cap. XVI — Precauções a tomar no governo moderado ............... 227
Cap. XVII — Regulamentos a serem feitos entre o senhor e os escravos 228
Cap. XVIII — Das alforrias ....................................................................... 229
Cap. XIX — Dos forros e dos eunucos ..................................................... 230

LIVRO DÉCIMO SEXTO — Como as leis da escravidão


doméstica relacionam-se com a natureza do clima
ÍNDICE 557

Cap. I — Da servidão doméstica ................................................................ 235


Cap. II — De como, nos países do sul, há nos dois sexos uma desigualdade
natural ....................................................................................... 235
Cap. III — De como a pluralidade das mulheres depende muito de sua
manutenção ........ 236
Cap. IV—Da poligamia; suas diversascircunstâncias ........................... 236
Cap. V — Motivo de uma lei do Malabar .................................................. 237
Cap. VI — Da poligamia em si mesma ...................................................... 237
Cap. VII — Da igualdade do tratamento no caso da pluralidade de mulhe­
res .............................................................................................. 238
Cap. VIII — Da separação entre as mulheres e os homens ...................... 238
Cap. IX — Relação do governo doméstico com o político ............. '. . . . 238
Cap. X — Princípio da moral do Oriente ................................................... 239
Cap. XI — Da servidão doméstica independente da poligamia ............... 240
Cap. XII — Do pudor natural ....................... '............................................ 240
Cap. XIII — Do ciúme ....................................... •........................................ 241
Cap. XIV — Do governo da casa no Oriente ............................................ 241
Cap. XV — Do divórcio e do repúdio ....................................................... 241
Cap. XVI — Do repúdio e do divórcio entre os romanos ........................ 242

LIVRO DÉCIMO SÉTIMO — Como as leis da servidão


política se relacionam com a natureza do clima

Cap. I — Da servidão política ..................................................................... 247


Cap. II — Diferenças dos povos com relação à coragem ........................ 247
Cap. III — Do clima da Ásia . . ................................................................. 247
Cap. IV — Consequência de tudo isso ....................................................... 249
Cap. V — De como, quando os povos do norte da Ásia e os do norte da
Europa conquistaram, os efeitos da conquista não eram os mesmos 249
Cap. VI — Nova causa física da servidão da Ásia e da liberdade da Euro­
pa ................................................................................................ 250
Cap. VII — Da África e da América .......................................................... 251
Cap. VIII — Da capital do império ................. 251

LIVRO DÉCIMO OITAVO — Das leis, em suas


relações com a natureza do terreno

Cap. I — Como a natureza do terreno influi sobre as leis ........................ 255


Cap. II — Continuação do mesmo assunto ............................................... 255
Cap. III — Quais são as regiões mais cultivadas ...................................... 256
Cap. IV — Novos efeitos da fertilidade e da esterilidade da região ......... 256
Cap. V—Dos povos das ilhas .................................................................. 256
Cap. VI — Das regiões formadas pela indústria dos homens .................. 257
Cap. VII:—Das obras dos homens ............................................................ 257
558 ÍNDICE

Cap. VIII — Relação geral das leis.............................................................. 258


Cap. IX — Do solo da América ................................................................ 258
Cap. X — Do números dos homens em relação com a maneira pela qual
provêem à subsistência ............................................................. 258
Cap. XI — Dos povos selvagens e dos povos bárbaros ............................. 259
Cap. XII — Do direito das gentes entre os povos que não cultivam as ter­
ras .............................................................................................. 259
Cap. XIII — Das leis civis entre os povos que não cultivam as terras . . . 259
Cap. XIV — Do estado político dos povos que não cultivam as terras . . 260
Cap. XV — Dos povos que conhecem o uso da moeda ............................. 260
Cap. XVI — Das leis civis entre os povos que não conhecem o uso da
moeda ......................................................................................... 260
Cap. XVII — Das leis políticas entre os povos que não utilizam a moeda 261
Cap. XVIII — Força das superstições ........................................................ 261
Cap. XIX — Da liberdade dos árabes e da servidão dos tártaros ........... 261
Cap. XX — Do direito das gentes dos tártaros .......................................... 262
Cap. XXI — Leis civis dos tártaros ............................................................ 262
Cap. XXII — De uma lei civil dos povos germânicos ...................... 7. . . 263
Cap. XXIII — Da longa cabeleira dos reis francos ................................. 265
Cap. XXIV — Do casamento dos reis francos .......................................... 266
Cap. XXV — Childerico ............................................................................. 266
Cap. XXVI — Da maioridade dos reis francos ........................................ 266
Cap. XXVII — Continuação do mesmo assunto ...................................... 267
Cap. XXVIII — Da adoção entre os germanos ........................................ 268
Cap. XXIX — Espírito sanguinário dos reis francos ............................... 268
Cap. XXX — Da assembléia da nação entre os francos ........................... 268
Cap. XXXI — Da autoridade do clero na primeira raça ........... 269

LIVRO DÉCIMO NONO — Das leis, em suas relações


com os princípios que formam o espírito geral,
os costumes e as maneiras de um povo

Cap. I — Do assunto deste livro ................................................................ 273


Cap. II — Como, para as melhores leis, é necessário que os espíritos este­
jam preparados .......................................................................... 273
Cap. III — Da tirania ................................................................................. 273
Cap. IV — O que é o espírito geral ........................................................... 274
Cap. V — Como se deve estar atento para não modificar o espírito geral
de uma nação ............................................................................ 274
Cap. VI -— Como não se deve tudo corrigir ............................................... 275
Cap. VII — Dos atenienses e dos lacedemônios ........................................ 275
Cap. VIII — Efeitos do temperamento sociável ........................................ 275
Cap. IX — Da vaidade e do orgulho dos povos ........................................ 275
Cap. X — Do caráter dos espanhóis e dos chineses ........... 276
ÍNDICE 559

Cap. XI — Reflexão .................................................................................... 277


Cap. XII — Das maneiras e dos costumes no Estado despótico ............. 277
Cap. XIII — Das maneiras dos chineses ........................."......................... 277
Cap. XIV — Quais são os meios naturais de mudar os costumes e as
maneiras de uma nação ............................................................ 278
Cap. XV — Influência do governo doméstico na política ......................... 278
Cap. XVI — Como alguns legisladores confundiram os princípios que
governam os homens ................................................................. 279
Cap. XVII — Propriedade particular ao governo da China .................... 279
Cap. XVIII — Consequência do capítulo precedente ............. 280
Cap. XIX — Como se efetuou entre os chineses a união da religião, das
leis, dos costumes e das maneiras ............................................. 280
C ap. XX — Explicação de um paradoxo sobre os chineses ...................... 281
Cap. XXI — Como as leis devem ser relativas aos costumes e às manei­
ras .............................................................................................. 282
Cap. XXII — Continuação do mesmo assunto ........................................ 282
Cap. XXIII — Como as leis seguem os costumes ...................................... 282
Cap. XXIV — Continuação do mesmo assunto ........................................ 282
Cap. XXV — Continuação do mesmo assunto ........................................ 283
Cap. XXVI — Continuação do mesmo assunto ........................................ 283
Cap. XXVII — Como as leis podem contribuir para formar os costumes,
as maneiras e o caráter de um povo ........................................ 284

QUARTA PARTE

LIVRO VIGÉSIMO — Das leis, na relação que têm com o comércio considerado em sua
natureza e em suas distinções

Invocação às musas ...................................................................................... 291

Cap. I — Do comércio ................................................................................ 291


Cap. II — Do espírito do comércio ............................................................ 292
Cap. III — Da pobreza dos povos ........................ 292
Cap. IV — Do comércio nos diversos governos ........................................ 292
Cap. V — Dos povos que fizeram o comércio de economia .................... 293
Cap. VI — Alguns efeitos de uma grande navegação ............................... 294
Cap. VII — Espírito da Inglaterra quanto ao comércio ............................. 294
Cap. VIII — Como algumas vezes se perturbou ocomércio de economia . 294
Cap. IX — Da exclusão em questão de comércio ............................ 295
Cap. X — Estabelecimento próprio do comércio de economia ................ 295
Cap. XI — Continuação do mesmo assunto ............................................... 296
Cap. XII — Da liberdade de comércio ........................................................ 296
Cap. XIII — O que destrói esta liberdade ................................................. 296
Cap. XIV — Das leis do comércio que implicam o confisco das mercado-
5w Índice

rias ..................................... 297


Cap. XV — Da ordem de prisão por dívida ............................................... 297
Cap. XVI — Bela lei .................................................................................... 297
Cap. XVII — Lei de Rodes ....................................................... 298
Cap. XVIII — Dos juizes para o comércio ............................................... 298
Cap. XIX — De como o príncipe não deve comerciar ............................. 298
Cap. XX — Continuação do mesmo assunto ............................................ 299
Cap. XXI — Do comércio da nobreza na monarquia ............................... 299
Cap. XXII — Reflexão particular .............................................................. 299
Cap. XXIII — A que nações é desvantajosa a prática do comércio ......... 300

LIVRO VIGÉSIMO PRIMEIRO — Das leis, na relação


que têm com o comércio, considerado nas revoluções
que teve no mundo

Cap. I — Algumas considerações gerais ................................................... 305


Cap. II — Dos povos da África .................................................................. 305
Cap. III — De como as necessidades dos povos do sul são diferentes das
dos povos do norte ................................................................... 306
Cap. IV — Principal diferença entre o comércio dos antigos e o de hoje . . 306
Cap. V — Outras diferenças ....................................................................... 306
Cap. VI — Do comércio dos antigos .......................................................... 307
Cap. VII — Do comércio dos gregos .......................................................... 310
Cap. VIII — De Alexandre. Sua conquista ............................................... 311
Cap. IX — Do comércio dos reis gregos depois de Alexandre .................. 313
Cap. X — Do périplo da África ............................................ '..................... 315
Cap. XI — Cartago e Marselha .................................................................. 317
Cap. XII — Ilha de Delos. Mitridates ....................................................... 319
Cap. XIII — Do gênio dos romanos para a marinha ............................... 320
Cap. XIV — Do gênio dos romanos para o comércio ............................... 320
Cap. XV—Comércio dos romanos com os bárbaros ............................... 321
Cap. XVI — Do comércio dos romanos com a Arábia e as índias ......... 322
Cap. XVII — Do comércio após a destruição dos romanos no Ocidente . . 323
Cap. XVIII — Regulamento particular ..................................................... 324
Cap. XIX — Do comércio depois do enfraquecimento dos romanos no
Oriente ................................................................................................. 324
Cap. XX — Como o comércio surgiu na Europa através da barbárie .... 324
Cap. XXI — Descoberta de dois novos mundos; estado da Europa a esse
respeito ................................................................................................. 325
Cap. XXII — Das riquezas que a Espanha extraiu da América ............. 328
Cap. XXIII — Problema ........................................................................... 330

LIVRO VIGÉSIMO SEGUNDO — Das leis, em sua relação


com o uso da moeda
ÍNDICE 561

Cap. I — Razão do uso da moeda ................................................................ 333


Cap. II—Da natureza da moeda ................................................................ 333
Cap. III — Das moedas ideais ....................................... 334
Cap. IV—Da quantidade de ouro e de prata ........................................... 335
Cap. V — Continuação do mesmo assunto ............................................. 335
Cap. VI — Por que razão a taxa da usura diminuiu da metade quando da
descoberta das índias ............................................................... 335
Cap. VII — Como os preços das coisas se fixam na variação das riquezas
de símbolo ................................................................................. 336
Cap. VIII —Continuação do mesmo assunto .......................................... 337
Cap. IX—Da raridade relativa do ouro e da prata ................................. 337
Cap. X — Do câmbio .................................................................................. 338
Cap. XI — Das operações que os romanos efetuaram sobre as moedas .. 342
Cap. XII — Circunstâncias nas quais os romanos fizeram suas operações
sobre a moeda ............................. :............................................ 343
Cap. XIII — Operações sobre as moedas no tempo dos imperadores . . . 344
Cap. XIV — Como o câmbio incomoda os Estados despóticos ............. 344
Cap. XV — Usos de algumas regiões da Itália .......................................... 345
Cap. XVI — Do auxílio que o Estado pode auferir dos banqueiros ......... 345
Cap. XVII — Das dívidas públicas ............................................................ 345
Cap. XVIII — Do pagamento das dívidas públicas ................................. 346
Cap. XIX — Dos empréstimos a juros ..................................................... 347
Cap. XX — Das usuras marítimas ............................................................ 347
Cap. XXI — Do empréstimo por contrato e da usura entre os romanos. . . 347
Cap. XXII — Continuação do mesmo assunto ........................................ 348

LIVRO VIGÉSIMO TERCEIRO — Das leis, na relação


que têm com o número de habitantes

Cap. I — Dos homens e dos animais em relação à multiplicação de sua


espécie ....................................................................................... 353
Cap. II — Dos casamentos ...................................................................... • 353
Cap. III—Da condição dos filhos ............................................................ 354
Cap. IV — Das famílias .............................................................................. 354
C ap. V — Das diversas ordens de mulheres legítimas ............................... 354
Cap. VI — Dos bastardos nos diversos governos ...................................... 355
C ap. VII — Do consentimento dos pais para o casamento ...................... 355
Cap. VIII — Continuação do mesmo assunto .......................................... 356
Cap. IX — Das moças ................................................................................ 356
Cap. X — O que determina o casamento ................................................... 356
Cap. XI — Da severidade do governo ........................................................ 357
Cap. XII — Do número de moças e rapazes nos diferentes países ........... 357
Cap. XIII—Dos portos de mar ................................................................ 357
Cap. XIV — Dos produtos da terra que demandam maior ou menor nú-
562 ÍNDICE

mero de homens .................................................................................. 358


Cap. XV — Do número de habitantes em relação às artes ...................... 358
Cap. XVI — Dos desígnios do legislador acerca da propagação da espé­
cie ........................................................................................................ 359
Cap. XVII — Da Grécia e do número de seushabitantes ........................ 359
Cap. XVIII — Do estado dos povos antes dosromanos ........................... 360
Cap. XIX — Despovoamento do universo ................................................ 360
Cap. XX — De como tornou-se necessário aos romanos fazer leis para a
propagação da espécie ............................................................... 361
C ap. XXI — Das leis dos romanos sobre a propagação da espécie ......... 361
Cap. XXII — Da exposição dos filhos ....................................................... 366
Cap. XXIII — Do estado do universo depois da destruição dos romanos 367
Cap. XXIV — Transformações ocorridas na Europa em relação ao núme­
ro de habitantes ................. 367
Cap. XXV — Continuação do mesmo assunto ........................................ 368
Cap. XXVI — Consequências ..................................................................... 368
Cap. XXVII — Da lei feita na França para estimular a propagação da
espécie ....................................................................................... 368
Cap. XXVIII — Como se pode remediar o despovoamento ..................... 369
Cap. XXIX — Dos hospitais ......................................... 369

QUINTA PARTE

LIVRO VIGÉSIMO QUARTO — Das leis, na relação


que têm com a religião estabelecida em cada país,
considerada em suas práticas e em si mesma

Cap. I — Das religiões em geral .................................................... 373


Cap. II — Paradoxo de Bayle ..................................................................... 373
Cap. III — De como o governo moderado convém melhor à religião cristã
e o governo despótico à maometana ... ......................•.............. 374
Cap. IV — Consequências do caráter da religião cristã e do da religião
maometana ...................................... .'........................................ 375
Cap. V — De como a religião católica convém melhor a uma monarquia
e a protestante se adapta melhor a uma república ............................. 375
Cap. VI — Outro paradoxo de Bayle ......................................................... 375
Cap. VII — Das leis de perfeição na religião ............................................ 376
Cap. VIII — Do acordo das leis da moral com as da religião .................. 376
Cap. IX — Dos essênios ............................................................................. 377
Cap. X — Da seita estóica ......................................................................... 377
Cap. XI — Da contemplação .................................................................... 377
Cap. XII — Das penitências ....................................................................... 378
Cap. XIII — Dos crimes inexpiáveis .............................................. 378
Cap. XIV — Como a força da religião se aplica à das leis civis ....... 378
ÍNDICE 563

Cap. XV — Como as leis civis corrigem, às vezes, as falsas religiões . . . 379


Cap. XVI — Como as leis da religião corrigem os inconvenientes da cons­
tituição política .......................................................................... 380
Cap. XVII — Continuação do mesmo assunto .......................................... 380
Cap. XVIII — Como as leis da religião têm o efeito das leis civis ........... 381
Cap. XIX — De como é menos a verdade ou a falsidade de um dogma que
o torna útil ou pernicioso aos homens, no estado civil, do que o uso
ou o abuso que dele se faz ........................................................ 381
Cap. XX — Continuação do mesmo assunto ............................................ 382
Cap. XXI — Da metempsicose .................................................................. 382
Cap. XXII — De como é perigoso que a religião inspire horror por coisas
indiferentes ................................................................................ 382
Cap. XXIII — Das festas ........................................................................... 383
Cap. XXIV — Das leis locais de religião ................. 383
Cap. XXV — Inconveniente do transporte de uma religião de um país a
outro ......................................................................................... 384
Cap. XXVI — Continuação do mesmo assunto ........................................ 384

LIVRO VIGÉSIMO QUINTO — Das leis, na relação


que têm com o estabelecimento da religião de cada país,
e sua política exterior

Cap. I — Do sentimento pela religião ....................................................... 387


Cap. II — Dos motivos de afeição pelas diversas religiões ...................... 387
Cap. III — Dos templos ............................................................................. 388
Cap. IV — Dos ministros da religião .......................................................... 389
Cap. V — Dos limites que as leis devem estabelecer às riquezas do clero. . 390
Cap. VI — Dos mosteiros ........................................................................... 390
Cap. VII—Do luxo da superstição ............................................................ 391
Cap. VIII—Do pontificado ....................................................................... 391
Cap. IX—Da tolerância em matéria de religião ...................................... 392
Cap. X — Continuação do mesmo assunto .............................................. 392
Cap. XI — Da mudança de religião ............................................................ 392
Cap. XII — Das leis penais ......................................................................... 393
Cap. XIII — Muito humilde exortação aos inquisidores da Espanha e de
Portugal .............................................................. 393
Cap. XIV — Por que a religião cristã é tão odiosa ao Japão .................... 395
Cap. XV — Da propagação da religião ..................................................... 395

LIVRO VIGÉSIMO SEXTO — Das leis, na relação que devem


ter com a ordem das coisas sobre as quais estatuem

C ap. I — Idéia deste livro ........................................................................... 399


C ap. II — Das leis divinas e das leis humanas .......................................... 399
564 ÍNDICE

Cap. III — Das leis civis que são contrárias à lei natural ......................... 400
Cap. IV — Continuação do mesmo assunto ............................................... 400
Cap. V — Caso em que se pode julgar pelos princípios do direito civil
modificando os princípios do direito natural ........................... 401
Cap. VI — De como a ordem das sucessões depende dos princípios do
direito político ou civil, e não dos princípios do direito natural .... 401
Cap. VII — De como não se deve decidir pelos preceitos da religião quan­
do se trata dos da lei natural .................................................... 403
Cap. VIII — De como não se deve regulamentar pelos princípios do direi­
to que se chama canônico as coisas reguladas pelos princípios do
direito civil ................................................................................ 403
Cap. IX — De como as coisas que devem ser reguladas pelos princípios
do direito civil raramente podem sê-lo pelos princípios das leis da
religião ....................................................................................... 404
Cap. X — Em que caso se deve seguir a lei civil que permite, e não a lei
da religião que proíbe ............................................................... 405
Cap. XI — De como não se deve regulamentar os tribunais humanos
pelas máximas dos tribunais que concernem à outra vida ...... 405
Cap. XII — Continuação do mesmo assunto ............................................ 405
Cap. XIII — Em que caso deve-se seguir, em relação aos casamentos, as
leis da religião e em que caso deve-se seguir as leis civis ........ 406
Cap. XIV — Em que casos, nos casamentos entre parentes, deve-se regu­
lamentar pelas leis da natureza; em que casos deve-se regulamentar
pelas leis civis ............................................................................ 407
Cap. XV — De como não se deve regulamentar pelos princípios do direito
político as coisas que dependem dos princípios do direito civil .... 409
Cap. XVI — De como não se pode resolver pelas regras do direito civil,
quando se trata de resolver pelas do direito político .............. 410
Cap. XVII — Continuação do mesmo assunto .......................................... 410
Cap. XVIII — De como se deve examinar se as leis que parecem contradi­
zer-se são da mesma ordem ...................................................... 411
Cap. XIX — De como não se deve decidir pelas leis civis as coisas que
devem sê-lo pelas leis domésticas ............................................. 411
Cap. XX — De como não se deve decidir pelos princípios das leis civis as
coisas que pertencem ao direito das gentes ...................... . . . 412
Cap. XXI — De como não se deve decidir pelas leis políticas as coisas
que pertencem ao direito das gentes ..................................... . 412
Cap. XXII — Destino infeliz do inca Ataualpa ........................................ 412
Cap. XXIII — De como, quando, por alguma circunstância, a lei política
destrói o Estado, deve-se decidir pela lei política que o conserva, que
se torna às vezes um direito das gentes .................................... 413
Cap. XXIV — De como os regulamentos de polícia são de ordem dife­
rente dos de outras leis civis ...................................................... 413
Cap. XXV — De como não se deve seguir as disposições gerais do direito
ÍNDICF 565

civil, quando se trata de coisas que devem ser submetidas a regras


particulares tiradas de sua própria natureza ...................................... 414

SEXTA PARTE

LIVRO VIGÉSIMO SÉTIMO — Da origem e das transformações


das leis dos romanos sobre as sucessões

Capítulo único ............................................................................................ 417

LIVRO VIGÉSIMO OITAVO — Da origem e das revoluções


das leis civis dos franceses

C ap. I — Do caráter diferente das leis dos povos germânicos .................. 425
Cap. II — De como todas as leis dos bárbaros foram pessoais ............... 426
Cap. III — Diferença capital entre as leis sálicas e as leis dos visigodos e
dos borguinhões ........................................................................ 427
Cap. IV — De como o direito romano se perdeu no país de domínio dos
francos e se conservou no país de domínio dos godos e dos borgui­
nhões ........................................................ 428
Cap. V — Continuação do mesmo assunto .............................................. 429
Cap. VI — Como o direito romano se conservou no domínio dos lombar­
dos .............................................................................................. 430
C ap. VII — Como o direito romano se perdeu na Espanha ...................... 430
C ap. VIII—Falsa capitular ............................. :....................................... 431
Cap. IX — De como os códigos das leis dos bárbaros e as capitulares
decaíram ..................................................................................... 431
Cap. X — Continuação do mesmo assunto .............................................. 432
Cap. XI — Das outras causas da decadência dos códigos das leis dos bár­
baros, do direito romano e das capitulares .............................. 433
Cap. XII — Dos costumes locais; revolução das leis dos povos bárbaros
e do direito romano ................................................................... 433
Cap. XIII — Diferença entre a lei sálica ou dos francos sálios e a dos
francos ripuários e dos outros povos bárbaros ....................... 434
Cap. XIV — Outra diferença .............................................. 435
Cap. XV — Reflexão .................................................................................. 436
Cap. XVI — Da prova pela água fervente estabelecida pela lei sálica . . . 436
Cap. XVII — Maneira de pensar de nossos antepassados ........................ 436
Cap. XVIII — Como a prova pelo duelo difundiu-se ............................... 438
C ap. XIX — Nova razão do esquecimento das leis sálicas, das leis roma­
nas e das capitulares ................................................................. 440
C ap. XX — Origem do ponto de honra ..................................................... 441
Cap. XXI — Nova reflexão sobre o ponto de honra entre os romanos . . . 442
Cap. XXII — Dos costumes relativos aos combates ............................... 442
566 ÍNDICE

C ap. XXIII — Da jurisprudência do duelo judiciário ............................... 443


Cap. XXIV — Regras estabelecidas no duelo judiciário ........................... 443
Cap. XXV — Dos limites que se impunham ao uso do duelo judiciário. . . 444
Cap. XXVI — Do duelo judiciário entre uma das partes e uma das teste­
munhas ....................................................................................... 445
Cap. XXVII — Do duelo judiciário entre uma parte e um dos pares do
senhor. Apelação contra falso julgamento .............................. 446
Cap. XXVIII — Da apelação de falta de direito ........................................ 449
Cap. XXIX — Época do reinado de São Luís .......................................... 451
Cap. XXX — Observações sobre as apelações ........................................ 453
C ap. XXXI — Continuação do mesmo assunto ........................................ 453
Cap. XXXII — Continuação do mesmo assunto ...................................... 453
Cap. XXXIII — Continuação do mesmo assunto .................................... 454
Cap. XXXIV — Como o processo se tornou secreto ............................... 454
Cap. XXXV — Das custas ......................................................................... 455
Cap. XXXVI — Da parte pública .............................................................. 456
Cap. XXXVII — De como os Estabelecimentos de São Luís caíram no
esquecimento ............................................................................ 457
Cap. XXXVIII — Continuação do mesmo assunto ................................. 458
Cap. XXXIX — Continuação do mesmo assunto .................................... 459
Cap. XL — De como foram adotadas as formas judiciárias das decretais . 460
Cap. XLI — Fluxo e refluxo da jurisdição eclesiástica e da jurisdição
leiga ........................................................................................... 461
Cap. XLII — Renascimento do direito romano e o que dele resultou.
Modificações nos tribunais .............................................................. 462
Cap. XLIII — Continuação do mesmo assunto ........................................ 463
Cap. XLIV — Da prova por testemunhas ................................................. 464
Cap. XLV — Dos costumes da França ..................................................... 464

LIVRO VIGÉSIMO NONO — Da maneira de compor as leis

Cap. I — Do espírito do legislador ............................................................ 469


Cap. II — Continuação do mesmo assunto ............................................... 469
Cap. III — De como as leis que parecem afastar-se dos desígnios do legis­
lador frequentemente se lhes conformam ................................ 469
Cap. IV — Das leis que contrariam os desígnios do legislador ............... 470
Cap. V — Continuação do mesmo assunto .............................................. 470
Cap. VI — De como as leis que parecem as mesmas nem sempre têm o
mesmo efeito .............................................................................. 470
Cap. VII — Continuação do mesmo assunto. Necessidade de bem compor
as leis ............................. 471
C ap. VIII — De como as leis que parecem as mesmas nem sempre tiveram
o mesmo motivo ..... 471
Cap. IX — De como as leis gregas e romanas puniram o homicídio de si
ÍNDICE 567

mesmo, sem terem o mesmo motivo ................................................... 472


Cap. X — De como as leis que parecem contrárias derivam algumas vezes
do mesmo espírito ..................................................................... 472
Cap. XI — De que maneira duas leis diferentes podem ser comparadas . . 473
Cap. XII — De como as leis que parecem as mesmas são na realidade
diferentes ................................................................................... 473
Cap. XIII — De como não é necessário separar as leis do objetivo para o
qual são feitas. Leis romanas sobre o roubo ........................... 474
Cap. XIV — De como é preciso não separar as leis das circunstâncias nas
quais foram feitas ..................................................................... 475
Cap. XV — De como é bom, algumas vezes, que uma lei se corrija a si
própria ....................................................................................... 475
Cap. XVI — Coisas a observar na composição das leis ........................... 475
Cap. XVII — Maneira prejudicial de fazer leis .......................................... 478
Cap. XVIII — Das idéias de uniformidade ............................................... 478
Cap. XIX — Dos legisladores ..................................................................... 479

LIVRO TRIGÉSIMO — Teoria das leis feudais entre os francos


na relação que têm com o estabelecimento da monarquia

C ap. I — Das leis feudais ........................................................................... 483


Cap. II—Das origens das leis feudais ....................................................... 483
Cap. III — Da origem da vassalagem ....................................................... 484
Cap. IV — Continuação do mesmo assunto ............................................... 484
Cap. V — Da conquista dos francos .......................................................... 485
Cap. VI — Dos godos, dos borguinhões e dos francos ............................. 485
Cap. VII — Das diferentes maneiras de partilharas terras ....................... 486
Cap. VIII — Continuação do mesmo assunto .......................................... 486
Cap. IX — Justa aplicação da lei dos borguinhões e da dos visigodos
sobre a partilha das terras ............. . 487
Cap. X — Das servidões .......................................... 487
Cap. XI — Continuação do mesmo assunto ............................................... 488
Cap. XII — Como as terras da partilha dos bárbaros não pagavam tribu­
tos .............................................................................................. 490
Cap. XIII — Quais eram os tributos dos romanos e dos gauleses na
monarquia dos francos ............................................................. 491
Cap. XIV — Do que denominavam census ............................................... 493
Cap. XV — Como o que se denominava census era arrecadado apenas
dos servos, e não dos homens livres ........... 493
Cap. XVI — Dos leudos ou vassalos .......................................................... 495
Cap. XVII — Do serviço militar dos homens livres ................................. 496
Cap. XVIII — Do duplo serviço ................................................................ 497
Cap. XIX — Das composições entre os povos bárbaros ........................... 499
C ap. XX — Do que se chamou depois a justiça dos senhores .................. 501
568 ÍNDICE

Cap. XXI — Da justiça territorial das igrejas .......................................... 503


Cap. XXII — De como as justiças eram fixadas antes do fim da segunda
raça ........................................................................................... 504
Cap. XXIII — Idéia geral do livro do estabelecimento da monarquia fran­
cesa nas Gálias, pelo senhor Abade Dubos .............................. 506
Cap. XXIV — Continuação do mesmo assunto. Reflexão sobre a essência
do sistema .................................................................................. 506
Cap. XXV—Da nobreza francesa ............................................................ 508

LIVRO TRIGÉSIMO PRIMEIRO — Teoria das leis feudais entre


os francos, na relação que têm com a revolução de sua monarquia

Cap. I — Transformações nos ofícios e feudos .......................................... 515


Cap. II — De como o governo civil foi reformado .................................... 517
Cap. III — Autoridade dos prefeitos do paço ............................................ 518
C ap. IV — Qual era o espírito da nação a respeito dos prefeitos ............. 519
Cap. V — De como os prefeitos obtiveram o comando dos exércitos .... 520
C ap. VI — Segunda época do declínio dos reis da primeira raça ............. 521
Cap. VII — Dos grandes ofícios e dos feudos sob os prefeitos do paço . . 522
Cap. VIII — Como os alódios foram transformados em feudos .............. 522
Cap. IX — Como os bens eclesiásticos foram convertidos em feudos . . . 524
Cap. X — Riquezas do clero ....................................................................... 525
Cap. XI — Estado da Europa no tempo de Carlos Martelo .................... 525
Cap. XII — Estabelecimento dos dízimos ................................................. 527
Cap. XIII — Das eleições nos bispados e abadias .................................... 529
Cap. XIV — Dos feudos de Carlos Martelo ............................................... 529
C ap. XV — Continuação do mesmo assunto ............................................ 529
Cap. XVI — Confusão da realeza e da prefeitura. Segunda raça ............. 530
Cap. XVII — Coisa particular na eleição da segunda raça ...................... 531
Cap. XVIII— Carlos Magno ..................................................................... 532
Cap. XIX — Continuação do mesmo assunto .......................................... 532
Cap. XX — Luís, o Bonacheirão ................................................................ 533
Cap. XXI — Continuação do mesmo assunto .......................................... 534
Cap. XXII— Continuação do mesmo assunto .......................................... 535
Cap. XXIII — Continuação do mesmo assunto ........................................ 535
C ap. XXIV — De como os homens livres foram tornados capazes de pos­
suir feudos ................................................................................ 537
Cap. XXV — Causa principal do enfraquecimento da segunda raça.
Modificação nos alódios .................................................................... 537
Cap. XXVI — Modificação nos feudos ..................................................... 539
Cap. XXVII — Outra modificação sobrevinda nos feudos ...................... 539
Cap. XXVIII — Modificações ocorridas nos grandes ofícios e nos feu­
dos ....... 540
ÍNDICE 569

Cap. XXIX — Da natureza dos feudos desde o reinado de Carlos, o


Calvo ......................................................................... ......................... 541
Cap. XXX — Continuação do mesmo assunto ........................................ 542
Cap. XXXI — Como o império saiu da casa de Carlos Magno ............. 542
Cap. XXXII — Como a coroa da França passou para a casa de Hugo
Capeto .................................................................................................. 543
C ap. XXXIII — Algumas consequências da perpetuidade dos feudos . . . 543
Cap. XXXIV — Continuação do mesmo assunto ................................... 544
Este livro integra a coleção
OS PENSADORES — HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DO MUNDO OCIDENTAL
Composto e impresso nas oficinas da
Abril SA. Cultural e Industrial, caixa postal 2372, São Paulo

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