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A Nau do Leão

Volume 3

Tradução
Rejane Janawitzer

2
Copyright © 2003, Éditions Flammarion

Título original: Graal – La nef du Lion

Capa e ilustração: Olivier Nadei

Editoração: DFL

2007
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M781 n Montella, Christian de, 1957-


A nau do leão/Christian de Montella; tradução Reja- ne Janowitzer. - Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007. 272p. : - (Graal; v. 3)

Tradução de: Graal: La nef du lion


Seqüência de: A neve e o sangue
Continua com: A revanche das sombras
ISBN 978-85-286-1239-4

1. Romance francês. I. Janowitzer, Rejane. II. Título. III. Série

Todos os direitos reservados pela:


EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.
Rua Argentina, 171 — 1o
andar — São Cristóvão
20921-380 — Rio de Janeiro — RJ
Tel.: (0xx21) 2585-2070 — Fax: (0xx21) 2585-2087

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Para meu cavaleiro Bayard,
meus reis Arthur e Marc.
Para Cécile, sem a qual nada teria acontecido.
E para meu “fã-clube”, David e Alban.

“A imagem recua como os castelos de


Morgana; o pincel se torna de chumbo
na mão do pintor; tantas coisas,
que eu gostaria de fixar por descrição ou
definição, se ocultam, se tornam vagas
e esvoaçam em brumas...
Não me lembro mais do que veio depois,
se por acaso algo aconteceu depois dessas palavras
dilacerantes e desses acontecimentos...”

Jean Ray, Malpertuis

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PRÓLOGO
A Aventura de Aguingueron

O nevoeiro se dissipou, e a ilha, que as ondas quebradas sobre os escolhos já


anunciavam ao longe, apareceu-lhe tão assustadora que, agarrado à barra do esquife,
Aguingueron começou a gritar de pavor.
Isso se passou no ano de quatrocentos e oitenta e sete. No primeiro dia de janeiro.
Aguingueron navegava no norte da Escócia, no setentrião 1 do mundo conhecido.
Montanhas de gelo flutuavam no seu caminho. Ele não dormia mais há dias. Procurava entre
os escolhos e as grandes ondas seu senhor e seu mestre, Perceval o galês.
Alguns meses antes, no equinócio de outono, Perceval, no seu castelo de Beau
Repaire, onde vivia em perfeito entendimento com Blancheflor, a suserana, tinha sido
acometido, como lhe acontecia todos os anos na mesma época, de uma profunda
melancolia. Dentro em breve iria fazer dez anos que o rei Arthur e seus cavaleiros da Távola
Redonda tinham morrido na praia de Carduel, em confronto com as tropas desleais
comandadas por Mordred. Em breve faria dez anos que Perceval, à época um jovem galês
ingênuo e temerário, entrara no castelo de Corbenic, acolhido pelo rei Pellès, o Rei
Pescador. Dez anos que, por bobagem, calara as Duas Perguntas que deveria ter feito ao
lhe serem apresentados a Lança que sangra e o Graal. Dez anos também que o reino de
Logres estava entregue aos bandos de malfeitores e de saxões 2 — antigo reino onde
restavam apenas Camelot3, a capital de Arthur que passara a ser defendida por Lancelot, e
Beau Repaire, cuja independência era bravamente defendida por Perceval e sua apaixonada
amiga Blancheflor.
Naquele outono, Perceval parecia mais triste do que nunca. Era visto percorrendo as
muralhas, com a expressão sombria, mastigando palavras incompreensíveis. Não aparecia
mais às refeições. A própria Blancheflor não podia falar com ele; ele a evitava e, no final do
dia, não ia ao seu encontro no quarto. Uma manhã, pouco antes da aurora, selou um rocim 4,
aparelhando-o para uma longa viagem. Aguingueron, que ele havia feito seu senescal,
velava por ele há muito tempo. Ele entrou nas cavalariças do castelo e perguntou ao amo:
— Está nos deixando, Senhor?
— Tenho uma busca a realizar — replicou Perceval.
— Se me permite uma observação, o senhor tem Beau Repaire a defender.
Perceval lançou ao gigante Aguingueron um olhar exaltado.
1
setentrião: o conjunto das regiões do Norte.
2
saxão: por volta da metade do século V, os saxões, vindos da Germânia, e os anglos, vindos da
Dinamarca, empreendem a Invasão da Grã-Bretanha. Arthur e seus cavaleiros são celtas, povo
autóctone.
3
Camelot: ao mesmo tempo cidade e castelo principal (com Carduel) do rei Arthur. Em geral, um
castelo se ergue perto de uma cidade ou de uma aldeia, garantindo a proteção delas.
4
rocim: o rocim é um cavalo que serve para qualquer uso e para qualquer terreno. O cavalo de
batalha é um cavalo usado em combate; o palafrém, um cavalo de cerimônia. Existe também o cavalo
de caça, e o de trabalho na lavoura, grande e forte.
6
— Só posso defendê-lo melhor se retomar a busca que a minha idiotice impediu de
completar.
Aguingueron compreendeu, naquela manhã, que não poderia reter seu senhor e
mestre. Correu para acordar Blancheflor, a fim de informá-la das intenções de Perceval,
depois se precipitou nas cavalariças, onde escolheu um possante rocim. Após o quê, partiu
atrás do cavaleiro.
Perceval aceitou sua presença, sem, contudo, jamais lhe dirigir uma palavra. Parecia
inteiramente absorto em si mesmo. Em alguma reflexão para a qual sua natureza simples e
ingênua não o havia preparado. Subiram para o norte. Atravessaram o Muro de Adrien.
Entraram na Escócia. O gigante Aguingueron, depois daquele dia longínquo em que o jovem
Perceval o vencera e humilhara sob as muralhas de Beau Repaire, tornara-se devotado a ele
com toda a sua alma. Seu braço e sua espada foram capazes de ajudar Perceval a abater os
inimigos e os obstáculos que surgiram em seu caminho.
No dia do solstício de inverno, alcançaram o cabo mais setentrional da Escócia. Uma
nau de velas vermelhas, sem piloto nem tripulação, esperava a umas poucas centenas de
metros da margem. Sem hesitar, Perceval saltou do cavalo e entrou no mar. Apesar de
Aguingueron chamá-lo, suplicar-lhe que voltasse, Perceval não o escutou. Subiu a bordo da
nau de velas vermelhas como um sol de crepúsculo, que, empurrada por um vento destinado
só a ela, afastou-se na direção do largo, desaparecendo à noitinha.
Aguingueron montou um bivaque perto da praia. Durante dias esperou. Angustiado.
Esperou que seu senhor, seu amo abordasse a margem. Que ele voltasse. Mas nada disso
aconteceu, a não ser um frágil esquife de vela negra que, uma tarde, apareceu perto da
praia. Aguingueron, gigante de corpo, era uma criança no espírito: temia os prodígios, as
feiticeiras e as fadas; qualquer acontecimento inexplicável o apavorava.
Mas gostava de seu amo e senhor mais do que de si mesmo. Fingiu esquecer seus
próprios medos e embarcou no estranho esquife. Pela sua lógica simples, a embarcação o
conduziria a Perceval — e era a única coisa que contava.
Foi assim que, no primeiro dia do ano de 487, depois de por diversas vezes ter
esbarrado em pálidas montanhas de gelo e em negros recifes acidentados, chegou diante de
uma ilha que se erguia do mar como mil fragmentos de pedras desafiando o céu.
Cedendo ao terror, encolheu-se no fundo do esquife, certo de que iria naufragar.
Não foi o que aconteceu.
Os ventos se acalmaram. Reinou subitamente um silêncio extraordinário. Aguingueron
ergueu-se com precaução e olhou à sua volta: o esquife havia pousado a proa em uma praia
de areia negra. Sua vela estava caída.
Armado de nova coragem, Aguingueron saltou em terra firme. Alguns passos na areia,
e ele se deparou com um homem estirado no chão, ou melhor, um homem deitado de lado,
com os joelhos dobrados contra o peito, os punhos cerrados junto do rosto. Como uma
criança no ventre da mãe.
Aguingueron reconheceu o perfil de Perceval, seu amo e senhor. Chamou-o pelo nome.
Nenhuma reação. Tocou no seu ombro. Pareceu-lhe estar tocando em pedra. Então o
segurou nos braços, suspendeu-o e o levou até o esquife. Mal o tinha colocado na
embarcação, os ventos recomeçaram a soprar, enfunando a vela negra.

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Aguingueron foi então acometido por um sono de chumbo. Tentou lutar. Adormeceu.
Quando despertou, achava-se sobre a margem onde havia instalado o bivaque. Não
havia mais esquife no mar. Um sol de aurora nórdica iluminava a paisagem sem aquecê-la.
Perceval, a alguns passos, se espreguiçava, como um homem que dormiu por muito tempo.
Aguingueron se precipitou alegremente para ele.
— Como está se sentindo, Senhor? Está melhor?
Franzindo os olhos, Perceval olhou para ele pensativamente.
— Quem é você? — perguntou.
— Mas... — disse Aguingueron, desconcertado. — Sou eu, Senhor! Seu senescal...
Perceval sorriu.
— Senescal? ... É o seu nome? ...
— Eu me chamo Aguingueron. Lembre-se, eu...
— Aguingueron? Que nome mais engraçado!
Perceval desatou a rir. Logo depois se ergueu, olhando em volta como se descobrisse
a existência do mundo. Um raio do sol nascente clareou de repente uma grande poça de
chuva na cavidade de um rochedo. Perceval, aparentemente encantado com aquele
espetáculo, inclinou-se sobre a poça.
Viu o reflexo de sua própria imagem. Reflexo que ele considerou por um momento,
antes de perguntar a Aguingueron — ou a si mesmo:
— Mas diga-me, senescal: e eu, quem sou?

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A Mensageira

Na véspera do Pentecostes, dia em que se comemora a descida do Espírito Santo aos


apóstolos de Cristo e em que os reis cristãos têm o costume de fazer cavaleiros os varletes 5
que cresceram a seu serviço, uma moça a cavalo se dirigiu à entrada de Camelot. Estava
vestida e coberta de branco. Ninguém podia ver seu rosto. Sua égua também era branca,
como a neve de janeiro.
Quando ela se apresentou diante da ponte levadiça suspensa, os guardas a
interpelaram:
— O que quer, estrangeira? Quem é você?
— Diga a Lancelot, seu amo, que o rei Pellès me mandou!
Nenhum dos homens de prontidão sobre as muralhas jamais escutara esse nome.
Desde a morte de Arthur, não havia mais reis: somente cavaleiros — e duques, chefes de
guerra saxões, inimigos. Eles escrutaram através das muralhas, tentando descobrir uma
tropa, um bando de Guerreiros Ruivos prontos a investir contra Camelot assim que tivessem
baixado a ponte levadiça. Não viram nada nem ninguém.
— Não conhecemos nenhum rei Pellès!
— Lancelot conhece. Vá! E depressa!
A moça coberta de branco tinha tanta autoridade que os guardas não fizeram mais
perguntas. Um sargento galgou os degraus de pedra da muralha, saltou no cavalo e galopou
pelas ruas despovoadas do burgo, até o castelo. Irrompeu correndo na sala 6. Lancelot estava
sentado à mesa, cercado pela rainha Guinevere, seu fiel amigo Galehot e pela dezena de
jovens que ele escolhera, formados e armados para ser seus cavaleiros.
— O que está acontecendo? — perguntou Lancelot. — Por que tanta pressa?
— Senhor — respondeu o sargento —, uma mulher toda branca, e seu cavalo também,
estão na porta principal. Ela quer ver o senhor.
— Você acha que é uma armadilha?
— Não vi ninguém nas proximidades. Mas o que ela me disse... é estranho...
O sargento hesitava.
— O que ela lhe disse?
— Que tinha sido enviada por um rei.
Houve um rumor de surpresa e de divertimento em volta da mesa.
— Ela deu o nome desse... pretenso rei?
— Sim: Pellès.
Lancelot empalideceu. Guinevere, que estava a sua direita, percebeu e pousou sua

5
varlete: adolescente a serviço de um senhor, junto do qual faz o aprendizado antes de ser por sua
vez cavaleiro (dizia-se valete ou vallet).
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sala: peça principal do castelo, onde tem lugar as atividades sociais: refeições, recepções,
cerimônias etc.
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mão sobre a do cavaleiro. Ele a retirou imediatamente, fechou os dedos; suas falanges
embranqueceram. Seu olhar cruzou o de Galehot, no qual leu a mesma incredulidade que a
sua. Desviou os olhos.
— O que ela quer?
— Ignoro, Senhor. Ela disse apenas que o Senhor conhecia o rei Pellès e que devia
recebê-la.
Lancelot sacudiu lentamente a cabeça.
— Eu o conheço, de fato — disse. E, dirigindo-se a Galehot, acrescentou: — Você
também, não?
Galehot deu de ombros.
— Você viveu uma aventura, cavaleiro, que nós achávamos que não teria
desdobramentos.
— Pelo visto, estávamos enganados — murmurou Lancelot.

+++
Ladeada por dois sargentos em armas, a donzela do véu branco entrou na sala onde
esperavam Lancelot, Guinevere, Galehot e os jovens cavaleiros. Ela não fez nenhuma
reverência; nem sequer inclinou a cabeça. Aproximou-se do estrado onde estava instalada a
mesa do banquete e se colocou de frente para Lancelot.
O véu branco escondia perfeitamente seu rosto. Mal se podia perceber o brilho muito
intenso de um olhar azul.
— Pode falar — disse Lancelot.
— Não lhe peço nenhuma outra coisa — ela replicou. — É o seguinte: pegue
imediatamente seu melhor cavalo e siga-me. Alguém está a sua espera, e o senhor deve vê-
lo hoje.
Ela falava com a voz firme e tranqüila de quem está habituada a ser obedecida.
Lancelot franziu os olhos, como se pudesse divisar o rosto dela por trás do véu. Antes que
ele respondesse, Guinevere interveio:
— A senhorita chegou mascarada. O que tem a esconder?
— Mascarada, eu sou como a verdade. A verdade só se esconde para melhor
aparecer.
— Então apareça — replicou Guinevere. — Suspenda seu véu.
— A verdade de que falo não está sob o meu véu.
— E sob o seu véu, qual é a verdade?
— Senhora, antes de suspender o meu véu, suspenda o seu. Por trás de seu belo
rosto, o que está dissimulando?
Guinevere empalideceu. Seus lábios se contraíram, seus olhos faiscaram de irritação e
desprazer.
— Quem lhe permite me falar dessa maneira?
A jovem de branco esboçou uma reverência.
— Sou apenas uma mensageira. Perdoe-me. Que Sire Lancelot escute minha
mensagem. Não ousarei mais nada.
Furiosa, Guinevere ia responder quando Lancelot pousou a mão sobre a dela. Era um

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gesto que ele nunca fazia. A rainha se calou, com o coração palpitando.
— Todo mundo aqui — disse pausadamente Lancelot — acha que a senhorita está me
preparando uma armadilha. Mas a minha opinião é de que essa armadilha seria muito
grosseira.
— Portanto, o senhor me segue? — perguntou a donzela de branco.
Os dedos de Guinevere fecharam-se de novo com força sobre os de Lancelot. Ele
desprendeu a mão e respondeu:
— Estou pronto para a aventura. Vamos.
Enquanto ele se punha de pé, Guinevere agarrou-o pelo punho.
— Você não vai seguir essa moça!
Ele colocou docemente a mão sobre a da rainha, cujas unhas entraram na sua pele.
— Quando voltar, eu lhe explicarei. Qual é o seu temor, na verdade?
— Perdê-lo.
Ele roçou-lhe o rosto com a ponta dos dedos, com uma ternura que surpreendeu a
ambos. Havia tanto tempo — dez anos! — que não trocavam gestos simples como esse.
— Eu voltarei — ele disse — Ninguém vai me matar.
Ela baixou os olhos e murmurou:
— Eu sei. Não é isso que eu temo.

+++
Pouco depois, Lancelot deixou as muralhas de Camelot atrás da donzela de branco e
seu cavalo. Escolhera o melhor rocim, cobrira-se somente com uma cota com as cores de
seu escudo, vermelho e branco, e carregava apenas a espada. Ia com a cabeça descoberta.
Lancelot era um homem mais de instinto do que de reflexão: decidira confiar naquela
mensageira, pressentindo confusamente que estava entrando em uma nova aventura.
Dez anos de combates, dez anos sustentando numerosos cercos não tinham sido para
ele uma aventura, simplesmente a repetição monótona de uma situação insuportável, sem
saída e sem trégua, e ainda viriam outros combates, outros cercos, que se perpetuariam, ele
pensava, até a velhice e a morte. Cavalgando a trote a alguns passos da donzela de branco,
ele se dizia que alguma coisa nova, finalmente, iria acontecer.
Há quase dez anos, Camelot, que tinha sido o castelo e a cidade do rei Arthur até sua
morte, sofria assaltos de hordas de bandidos e ataques dos saxões que haviam invadido o
antigo reino de Logres. Dos jardins e pomares que fizeram sua reputação de calma e
tranqüilidade nada sobrara. Camelot vivia como uma cidade sitiada. Se ainda resistia, se
perpetuava a cavalaria celta e cristã, era porque um homem, um cavaleiro, após a morte de
Arthur, soubera organizar sua defesa e sua sobrevivência: Lancelot, filho órfão de Ban de
Bénoïc e de Helena, criado por Vivian, a Dama do Lago.
Dez anos de guerra tinham se passado desde a morte do rei Arthur. Depois da batalha
na orla de Carduel, onde quase todos os cavaleiros da Távola Redonda tinham caído,
combatendo na proporção de um contra dez as tropas de saxões e os pérfidos cavaleiros
sob as ordens de Mordred, o filho de Morgana, ao mesmo tempo filho e sobrinho 7 de Arthur,

7
sobrinho: na Idade Media, o tio freqüentemente tinha uma importância maior do que o pai no
aprendizado e, mais tarde, na carreira de um jovem nobre.
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que lhes prepararam uma armadilha mortal. Mortal ela tinha sido, evidentemente, mas para
quase todos. Na proporção de um contra dez, os cavaleiros da Távola Redonda tinham, cada
um, vencido seus dez homens. E Arthur e Mordred, o pai e o filho, tinham se enfrentado no
meio dos agonizantes e dos cadáveres — e um matara o outro. Únicos sobreviventes da
batalha, Lancelot e o jovem Galehot tinham acompanhado seu rei até o barco que o havia
conduzido à ilha de Avalon, onde os mortos se encontram.
Fiel ao juramento que havia feito ao rei moribundo, Lancelot voltara a Camelot para
cuidar de Guinevere, a rainha. Fora uma rainha duplamente viúva que ele encontrara. Viúva
de Arthur, primeiramente; viúva também do amor proibido que ela sentia por Lancelot.
Daquele momento em diante, Lancelot e ela iriam permanecer um ao lado do outro em
Camelot, mas esse amor, ao qual não tiveram direito enquanto Arthur estava vivo, se tornara
impossível depois da morte dele. Teriam podido — o amor que sentiam era muito forte —
enganar um marido e um rei; somente as intrigas de Morgana seguidas da intervenção do
Mago Merlin haviam-no impedido. Mas enganar um morto era impensável. Ao menos para
Lancelot.
A provação, para ele, era atroz: permanecer dia após dia junto da única mulher que ele
sempre amara e proibir-se o mínimo gesto, a mínima palavra, o mínimo olhar de ternura ou
de desejo. Talvez, nessa infelicidade íntima, ele tivesse buscado a força e a atividade
extraordinárias que lhe permitiram repelir todos os assaltos inimigos, de saxões ou de
bandos bárbaros, organizar no estreito espaço do castelo e da cidade de Camelot um novo
reino de Logres, um lugar inexpugnável e sagrado. Ele dava ordens, batia-se à frente de
suas magras tropas, procurava, entre os filhos dos servos, os que possuíam a força e a
coragem para se tornar cavaleiros, formava-os, duramente, e os sagrava quando tivessem
merecido. Do despertar até a hora de dormir, seu objetivo era um só: instaurar uma nova
cavalaria que, um dia, fosse suficientemente poderosa para vencer e rechaçar os invasores
saxões e as hordas sem fé nem lei que pilhavam as terras do antigo reino de Logres.
Mas Guinevere, durante esses dez anos, não tinha podido, como Lancelot, esquecer,
na violência dos combates e no sonho de organizar um novo reino ideal, o desejo e o amor
que sentia por ele. Ela era a Rainha Viúva. Recebia demonstrações de grande respeito. E,
embora tivesse a sorte de não parecer envelhecer — talvez porque o Mago Merlin, o “filho do
Diabo”, antes de seu batismo, tivesse pousado a mão sobre sua fontanela —, era tratada
com a distância respeitosa devida as velhas senhoras que perderam o marido, portanto seu
sustentáculo e razão de ser.
Guinevere, contudo, sabia que sua juventude perpetua não era somente a do rosto e do
corpo, mas também a do coração e do espírito. Guinevere sentia necessidade de amar e de
ser amada. E por um único ser: Lancelot. Esse Lancelot que não parava de dar ordens, de
andar a cavalo, de ir lutar contra os Guerreiros Ruivos — esse Lancelot que só sabia agir
com todo ímpeto, ou dormir como uma pedra, entre duas ações.
Em dez anos, ela não pudera vê-lo mais do que alguns instantes a sós. Ele sempre
dava um jeito para que muitos de seus cavaleiros estivessem presentes durante seus
encontros, ou então, caso ela conseguisse surpreende-lo sem companhia, ele concluía a
conversa com algumas palavras e se eclipsava. “Fugia”, pensava ela. Nos últimos dez anos,
quantas vezes ela chorara, se refugiara — sozinha, sozinha, sozinha — no seu quarto?

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Por que, ela se perguntava há dez anos, por que não consegui deixar de amá-lo? Teria
sido tão mais simples.

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2
O Menino

Sem trocar uma palavra, Lancelot e a mensageira branca atravessaram uma floresta
que cheirava a verão e desceram ao longo de um pequeno vale cujos prados já estavam
cobertos de papoulas. Na hora em que o crepúsculo se aproximava, transpuseram uma
pequena colina. Sobre o flanco sul, Lancelot viu as paredes de uma muralha e as
construções de pedra nua de um convento.
— Eu achava que esse local tinha sido há muito tempo destruído e incendiado pelos
saxões.
A donzela de branco não respondeu. Fez o cavalo seguir com um breve galope que a
conduziu até a porta da muralha. Esporeando o rocim, Lancelot alcançou-a. A porta se abriu
imediatamente. Enquanto a moça se afastava rapidamente na direção da cavalariça, um
criado se aproximou da montaria do cavaleiro e a segurou pela brida.
— Bem-vindo, bem-vindo! Está sendo aguardado!
Lancelot viu a moça desaparecer dentro da cavalariça, ao mesmo tempo irritado e
inquieto por ela tê-lo deixado assim, sozinho. O serviçal, um velho atarracado, segurava as
rédeas do cavalo com uma força inesperada.
— Entregue-me seu rocim, Sire Lancelot. Eu cuido dele. A noite vai cair, preciso fechar
de novo a porta. A vida não anda segura, nestes dias...
Após um momento de hesitação — como aquele serviçal sabia o seu nome? —, o
cavaleiro desceu do rocim. Já que fora até ali por gosto pela aventura, era preciso ir até o
fim. Saber por que o esperavam e o que esperavam dele.
Mal tinha dado uns poucos passos pela aléia de carvalhos que conduzia a entrada do
convento, três outros empregados apareceram não se sabe de onde, cercaram-no, cobriram-
lhe as costas com um leve manto de seda branca e o escoltaram. Apesar do calor daquele
verão precoce e da proteção daquele traje de acolhida, ele sentiu um arrepio.
O sol se punha, jogando sobre a fachada da construção uma luz oblíqua e vermelha.
No interior, ele teve de transpor diversas grades que iam sendo destrancadas uma de
cada vez por uma religiosa baixa e corcunda, cujo rosto, sob o manto, ele não distinguia. Ela
dava passinhos curtos ao seu lado, com o enorme molho de chaves tinindo na sua minúscula
mão. Penetraram finalmente em uma sala de abóbada baixa, iluminada com tochas, onde
Lancelot, um pouco embaraçado, contou doze freiras. De pé, todas parecidas nos trajes
cinzentos de sua ordem, formavam um semicírculo diante do qual ele se imobilizou. Os
serviçais e a pequena corcunda que o haviam conduzido ali desapareceram por uma porta
lateral.
— Seja bem-vindo, Lancelot do Lago — disse então a freira que estava no centro do
semicírculo. — Estamos felizes pôr o senhor ter consentido em vir nos visitar.
Ele inclinou a cabeça, sem uma palavra. A freira que havia falado em primeiro lugar, e
que ele supôs ser a madre superiora do convento, deu um passo na direção dele, parou e
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deslizou as mãos pelas amplas mangas de seu hábito.
— O senhor — prosseguiu — veio até aqui para encontrar um menino. Um menino de
que cuidamos e que educamos dia após dia à espera deste momento. Ele é bonito, ele é
bem-feito, seu coração é puro. Ele nunca nos decepcionou.
Calou-se por um momento, como se para deixar a Lancelot a oportunidade de
responder. Mas ele não disse nada.
— Lancelot do Lago — prosseguiu ela —, nós achamos, nós sabemos que está na
hora de esse menino se tornar cavaleiro. E nós achamos, nós sabemos que nenhum outro
homem, nestes tempos difíceis e conturbados, é tão bom quanto o senhor para lhe conceder
a pancada8.
Lancelot olhou calmamente as freiras, uma após a outra. Achou-as ao mesmo tempo
enigmáticas e pacificas. Elas pareciam uma espécie de tribunal — mas, ele dizia a si mesmo,
elas não estão me acusando de nada, e, no entanto, tenho a impressão de estar sendo
acusado. De que? Incapaz de encontrar uma resposta ao que talvez não fosse senão uma
pergunta inútil, voltou os olhos para a madre superiora.
— Senhora — disse —, é uma grande honra que a senhora está me fazendo.
Entretanto, não posso sagrar um varlete que eu mesmo não tenha formado, ou que não
tenha crescido no serviço de um de meus vassalos.
— O senhor irá sagrar esse menino — replicou calmamente a madre superiora. —
Depois que o vir, não terá nenhuma dúvida a respeito de seu valor.
Lancelot pousou a mão sobre o punho de sua espada.
— Tudo que quero é acreditar na senhora. Apresente-me o rapaz.
Foi a vez de a madre superiora inclinar ligeiramente a cabeça.
— Nós lhe agradecemos sua indulgente paciência.
Descruzando lentamente os braços, ela tirou as mãos das mangas e bateu palmas
duas vezes. Na mesma hora a porta lateral se abriu, dando passagem aos serviçais. Eram
sete, todos idosos e atarracados, vestidos de vermelho. Eles formaram uma coluna de honra,
três de um lado, três do outro, enquanto o sétimo, erguendo orgulhosamente a cabeça,
declarou:
— Eis Galahad!
E então entrou, não um garoto como esperava Lancelot, mas um rapaz de seus
dezoito anos, de porte alto e esguio, ombros largos e peito sólido, vestindo uma cota
vermelha. Com alguns passos, ele apareceu na luz das tochas. Os traços de seu rosto eram
finos como os de uma mocinha. Mas o vigor de seu queixo e o azul mineral e escuro de seus
olhos anunciavam um rapaz de caráter forte. Ele atravessou a coluna de honra dos serviçais
e veio se colocar no centro da sala, diante de Lancelot.
— É, com efeito, um belo varlete, Madre.
O rapaz baixou os olhos com uma modéstia que o cavaleiro não esperava dele.
Lancelot, há dez anos, vinha formando muitos jovens. Mesmo os mais dotados dentre eles
frustravam sempre sua esperança de excelência e perfeição — seguros demais de sua força,
eles desconheciam a humildade. Ele teve a revelação imediata, ao ver aquele, de que nunca
8
pancada: golpe que o padrinho dava no lado do pescoço ou no rosto do que era feito cavaleiro na
cerimônia de sagração. O gesto expressava a maturidade do rapaz, sua capacidade de permanecer
senhor de si.
16
mais iria encontrar um mais bonito, mais forte, mais bem-educado no orgulho temperado com
os próprios talentos.
— A senhora deseja — prosseguiu, dirigindo-se a madre superiora — que eu faça
desse jovem um cavaleiro?
— Somente o senhor tem o poder e o direito.
— Bem. Mas é ele, deseja ser feito cavaleiro?
Galahad então ergueu os olhos, fixou-os em Lancelot e respondeu com uma voz clara:
— Sim.
Lancelot aproximou-se dele. Eram da mesma altura. O cavaleiro examinou longamente
o jovem, em silêncio. Alguma coisa o perturbava, alguma coisa que ele não conseguia
compreender. Deu um passo de lado, de repente tomado por uma intuição, e disse a madre
superiora:
— Tenho toda a confiança na educação que deram a esse rapaz. Mas... Permitam-me
lutar com o bastão com esse... menino. Quero conhecer, além das aparências, seu
verdadeiro valor.
— À vontade. Aliás, eu já esperava tal exigência de sua parte.
A velha freira fez um gesto na direção de seus empregados. Um deles deixou a sala
enquanto Lancelot continuava a examinar Galahad, que logo baixou os olhos e se manteve
assim, fechado e imóvel, até o serviçal voltar com dois bastões.
Lancelot estendeu o braço.
— Traga-os.
O serviçal entregou, primeiro nas mãos de Lancelot, depois nas do rapaz, um bastão
de cinco côvados9 de comprimento.
Lancelot recuou alguns passos, segurou firme sua arma e declarou:
— Mostre-me o que sabe fazer.

+++
O combate começou sem que uma palavra tivesse sido pronunciada pelo jovem
Galahad. Era, aliás, mais um jogo ancestral do que um combate. Todos os meninos de
Logres, de Gales ou da Escócia o tinham praticado: segurava-se o bastão pelo meio e
assestavam-se os golpes à direita e à esquerda. Bem antes de obter o direito de possuir uma
espada, qualquer criança devia saber dominar esse exercício.
Se, no começo, Lancelot evitou atacar de verdade, querendo avaliar as capacidades
de seu adversário, muito depressa teve de empregar toda a sua ciência de combatente e
todo o seu ardor para se defender dos assaltos de Galahad. A cada uma de suas fintas,
respondia uma contra finta do moço. A cada um de seus golpes, um golpe equivalente.
Lancelot teve a impressão de que todas as suas tentativas eram previstas por seu jovem
adversário — e de que ele próprio previa cada ataque de Galahad. Como se cada um deles
se batesse contra si mesmo, ou sua imagem num espelho.
Logo estavam suando, sem que nem um nem outro ficasse em vantagem. Eles
recuavam, avançavam, mas nunca mais de três passos, embora o combate ocorresse dentro

9
côvado: medida de comprimento equivalente a distância que separa o cotovelo da extremidade do
dedo mais longo.
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de um círculo do qual não chegavam a sair.
— Perfeito! — disse de repente Lancelot, afastando-se do círculo e pousando a ponta
do bastão no chão. —Você sabe lutar.
Galahad, que ia goleá-lo, imobilizou imediatamente seu gesto.
— E também se controlar — acrescentou Lancelot, vendo o bastão de seu adversário
parado no meio do caminho, a menos de um palmo do seu rosto. — Você vai receber a
grande ordem da cavalaria amanhã de manhã, durante a festa de Pentecostes.
— É do seu agrado, Senhor? — perguntou a madre superiora.
Lancelot examinou de novo o rapaz que acabara de enfrentar.
— Será uma honra encarregar-me dele — replicou.
Galahad devolveu o bastão ao serviçal e, depois de ter lançado um olhar para
Lancelot, afastou-se, passando pela coluna de honra. A porta se fechou atrás dele.
— Seu varlete — disse Lancelot — tem bela aparência e sabe lutar. Ele sabe falar?
Dizer outra coisa que não seja “sim”? Teria gostado de ouvir o som de sua voz.
— Ele é tímido — respondeu a madre superiora. — O senhor o impressiona.
Lancelot deu um sorriso de dúvida.
— Tímido? Na verdade, não foi o que pareceu. Por Deus, se eu não o tivesse
“impressionado”, ele teria me batido?
— Ele não poderia batê-lo, Senhor — disse tranquilamente a madre superiora.
— Por quê?
— Não era o que ele queria.
Lancelot foi conduzido a um quarto. A cama era confortável e larga. Cansado, ele
adormeceu bem depressa, sonhando com aquele moço de cota vermelha que manuseava
tão bem o bastão...
Sobre o que foram seus sonhos, não temos idéia. De manhãzinha, um raio de sol lhe
tocou as pálpebras; ele acordou. Dois criados entraram no quarto. Trouxeram-lhe frutas e
caça, que ele devorou. Trouxeram-lhe em seguida uma bacia de água fria, onde se lavou. Os
criados esfregaram suas costas com vigor. Ajudaram-no a vestir seu traje vermelho e branco
e cobriram-no com uma capa de arminho. Depois o conduziram a sala onde deveria ocorrer a
sagração.
As doze freiras estavam lá, silenciosas. A madre superiora, com um gesto, mostrou-lhe
onde ele deveria se colocar: no próprio centro do círculo que elas formavam, juntas. Lancelot
obedeceu. Pouco depois, o jovem Galahad entrou na sala, sozinho. Como na véspera,
estava vestido de vermelho tirante a sangue vivo. Ele veio se colocar diante de Lancelot.
O cavaleiro lhe disse:
— Incline-se.
O jovem colocou um joelho no chão. Lancelot pôs a mão na sua testa e murmurou, de
maneira a que só ele ouvisse:
— Varlete, ignoro quem você é, de onde vem e por que fui conduzido até aqui. Saiba
que, se me trair, eu o matarei.
Galahad levantou os olhos para o cavaleiro e respondeu com uma voz alta, estridente,
mas tranqüila, de criança:
— Senhor, será seu direito.

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Espantado, Lancelot meditou um tempo sobre essa frase, depois perguntou em voz
baixa:
— Quem é você? O que procura?
— A mesma coisa que o senhor.
— O que é que eu procuro?
— O que eu vou encontrar.

Lancelot evitou fazer outras perguntas. Levantou a mão e pronunciou a fórmula ritual:
— Em nome de Deus, eu o faço cavaleiro.
Em seguida, com o punho fechado, atingiu o rapaz no ângulo entre o pescoço e o
queixo. Com toda a sua força. Como nunca tinha batido em ninguém durante a pancada —
mas como o rei Arthur lhe batera no dia de sua própria sagração.
Galahad mal estremeceu sob o golpe que recebeu. Ele levantou os olhos para
Lancelot.
— O que você procura? — murmurou-lhe novamente o cavaleiro.
— Ignoro, Senhor.
Lancelot bateu-lhe uma segunda vez, mas no rosto.
— O que procura? — repetiu.
— O que o senhor jamais descobrira.
Lancelot ergueu de novo o punho. Encontrou o olhar azul-escuro e sem medo do
rapaz. Escutou a madre superiora exclamar:
— A pancada, Lancelot! Comporte-se como Arthur teria feito!
Lancelot relaxou o punho e baixou a mão até o quadril.
— O que procura? — perguntou uma última vez a Galahad.
— Olhe em si mesmo, Senhor.
Lancelot, perturbado, pouco à vontade — sem conseguir determinar o porquê —,
anunciou:
— Você agora é cavaleiro. Pela Távola Redonda e por Arthur, nosso finado rei.
— E por Cristo — acrescentou o rapaz, erguendo-se.
Observou Lancelot, olhos nos olhos, enquanto a madre superiora exclamava:
— Por Cristo!
E as religiosas repetiam a uma só voz:
— Por Cristo!
Lancelot pousou a mão no ombro de Galahad.
— Então, que Cristo lhe dê prudência, pois, quanto ao resto, habilidade, beleza e
coragem, você não tem que invejar ninguém.
O rapaz nem sequer piscou os olhos com esse elogio.
— Agora — acrescentou Lancelot — vamos juntos a Camelot. É necessário que eu o
apresente a meus cavaleiros. E à rainha.
— Se o senhor permitir — interveio a madre superiora —, nosso menino ira encontrá-
lo mais tarde. Volte em paz para Camelot. Nós temos, o senhor compreende, alguns últimos
conselhos a dar a Galahad.
Aborrecido, Lancelot deu um passo atrás.

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— Eu o fiz cavaleiro. Ele não tem outros conselhos a receber a não ser de mim.
— Não nos leve a mal. Nossos conselhos, como pode bem imaginar, nada tem a ver
com a cavalaria.
Dito isso, a madre superiora aproximou-se, dando a entender a Galahad com um
simples movimento de cabeça que estava na hora de ele se retirar; e, enquanto o rapaz saia
da sala, ela segurou as mãos de Lancelot.
— Sem o senhor — ela disse —, este país pertenceria aos bárbaros. Doravante, seu
lugar é em Camelot. Quanto ao que não conseguiu consumar, seu sangue o obterá.
Ela retirou as mãos das mãos de Lancelot, que procurou retê-las.
— Explique-me, Madre.
— Seja paciente. Volte para sua casa. Lá irá ouvir o que deve saber.

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3
A Pedra de Mármore Vermelho

Lancelot voltou sozinho para Camelot. A viagem foi rápida, sem maus encontros. O
cavaleiro quase lamentava: o que havia visto e vivido no convento o pusera num estado de
espírito raivoso. Quatro ou cinco bandidos na estrada o teriam distraído. Teria transferido
para eles aquela raiva e também aquela frustração cuja causa não compreendia exatamente.
Tão logo entrou em Camelot, nem sequer teve o prazer de relatar sua aventura.
Galehot o aguardava na ponte levadiça e lhe gritou:
— Venha ver o prodígio!
Levou Lancelot até o castelo, recusando-se a responder às suas perguntas. Conduziu-
o até a sala, no alto do torreão, onde ficava a Távola Redonda.
— Olhe!
De imediato, Lancelot nada viu de particular. A mesa estava instalada no centro de
uma imensa sala quadrada. Talhada diretamente em um carvalho milenar, tinha em volta
cadeiras onde haviam se sentado, em um outro tempo, os cavaleiros e seu rei Arthur.
Depois, aproximando-se, Lancelot percebeu uma cintilação inabitual em toda a volta da
mesa. Deu rapidamente um passo até seu próprio assento — onde o destino nunca lhe dera
a oportunidade de se sentar — e notou, na beirada do grande círculo de carvalho, uma
inscrição em letras douradas: Lancelot do Lago, filho de Ban de Bénoïc. Estupefato,
constatou que, à sua direita, uma outra inscrição dizia: Yvain, cavaleiro do Leão. À sua
esquerda: Garvain, paradigma de cavalaria. Começou rapidamente a dar a volta à mesa.
Diante de cada assento, as mesmas letras de ouro, gravadas profundamente na madeira,
designavam cada cavaleiro a quem pertencia o lugar.
— Quem fez isso? — exclamou ele, virando-se para Galehot.
— Não tenho idéia. Os nomes estavam aí esta manhã, quando entrei na sala.
— O que isso significa?
— Continue, cavaleiro. Olhe o resto.
Lancelot recomeçou a volta à mesa. Ali, diante do lugar que lhe pertencia,
encontravam-se, designados também com letras de ouro, os lugares de Perceval, o galês,
depois o de Arthur, filho de Uther-Pendragon e rei de Logres.
E, finalmente, o Assento Arriscado.
Era um assento mais alto e mais largo do que os outros, no qual ninguém jamais se
sentara sem ser mortalmente punido no mesmo instante, e do qual se dizia que seria o do
Eleito — o cavaleiro puro e sem mácula que consumaria a Busca do Graal. Muitos homens
tinham tentado a aventura de sentar-se ali: tinham sido imediatamente engolidos por um
abismo de chamas infernais. Apenas dois cavaleiros, muitos anos antes, tinham, por suas
aventuras, quase obtido o direito supremo de sentar-se ali: Perceval e o próprio Lancelot.
Este último, tomado por uma estranha apreensão, aproximou-se do Assento Arriscado.
Se o nome de cada cavaleiro foi inscrito com letras de ouro na mesa, dizia para si mesmo,
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aqui deve estar também o nome do Eleito.
Com efeito, ele conseguiu decifrar o seguinte:

Quatrocentos e cinqüenta e quatro anos


Depois da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Este assento vai receber seu ocupante.

Lancelot, ao mesmo tempo decepcionado e aliviado por nenhum nome ter sido citado,
perguntou:
— O que acha disso? Faz algum sentido para você? Alguém conseguiu entrar nesta
sala durante a noite?
Galehot deu de ombros.
— Você bem sabe que ninguém teria conseguido fazer esse trabalho numa só noite.
Trata-se de um prodígio, cavaleiro, temos de reconhecer. E, se me permitir expressar o que
penso, mais do que um prodígio, é o anúncio de novos tempos.
— Novos tempos! — enfureceu-se Lancelot. — Vá contar isso aos saxões e aos
bandidos que mantém o país a ferro e fogo!
— Cavaleiro, se a Busca for consumada, tudo então se tornara possível. Deus estará
conosco.
— Deus! Ele nos abandonou na praia de Carduel, onde morreram Arthur e toda a fina
flor da cavalaria de Logres!
— Não blasfeme, cavaleiro — disse Galehot, aproximando-se de Lancelot. E,
pousando-lhe a mão no ombro, acrescentou: — Sei como se sente. Você poderia, você
deveria ter concluído a Busca. Mas não fez as Duas Perguntas quando a ocasião se lhe
apresentou. Você não foi o Eleito. Não é o Eleito. Teria o reino de Logres sobrevivido, se
você tivesse sido menos orgulhoso em sua juventude? Se não tivesse amado... aquela que
não deveria ter cobiçado...? Pouco importa, cavaleiro. Aquilo que é, aqui e agora, aconteceu.
Você não pode fazer mais nada a respeito. Pense no futuro.
Lancelot baixou a cabeça, tentando se acalmar. Por que essa cólera, afinal? Por estar
habituado a idéia de que não haveria um Eleito, já que ele próprio não pudera sê-lo? Por ser
obrigado, após lutar durante anos para conservar Camelot e o espírito da Távola Redonda, a
ceder o passo a um desconhecido que tomaria seu lugar, suas prerrogativas, sua influência e
seu poder? Não, ele sentia no fundo de si mesmo que não eram essas as razões. Não
compreendia o verdadeiro motivo de sua cólera.
— Tem razão, Galehot. A cavalaria e a Busca são mais importantes que minha
insignificante pessoa.
Lançou um último olhar para as inscrições em letras de ouro que haviam passado a
ornar a Távola Redonda.
— Mesmo assim, mantenhamos a prudência — disse ele. — Somos os únicos a saber
o que está inscrito diante do Assento Arriscado. Que mais ninguém venha a saber. Se a
notícia se espalhasse, seriamos assaltados por uma multidão de intrigantes tentando se
passar pelo Eleito.
Galehot aquiesceu com um meneio de cabeça.
Lancelot afrouxou sua capa e a despiu.

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— Assim sendo, sou da opinião de que devemos ocultar essa inscrição.
Colocou a capa sobre a enigmática mensagem em letras de ouro gravada diante do
Assento Arriscado. Tão logo anunciou: “É melhor assim”, um varlete de dezesseis anos, ruivo
e com as faces afogueadas, irrompeu sala adentro.
— Meus senhores! Venham! Venham depressa! Um prodígio! Um prodígio!
— Meu Deus — suspirou Galehot. — De novo...

+++
Era uma pedra. Na verdade, um bloco de pedra. Larga e grossa como uma pedra de
muralha. E vermelha. Portanto, mármore. Dentro do rio. O rio passando diante da muralha de
Camelot. Ou melhor: sobre o rio. Um bloco de mármore vermelho flutuando na superfície da
água.
Toda a população da cidade tinha se reunido sobre as muralhas. Homens, mulheres,
crianças, velhos, todo mundo assistia ao milagre: uma grande pedra vermelha flutuando
preguiçosamente sobre a água. E não apenas um bloco de mármore: todos viam ali, fincada
até o cabo, uma espada cujo punho de prata cintilava.
Lancelot, chegado até o alto da muralha na companhia de Galehot, também teve de
constatar o prodígio.
— Dois prodígios no mesmo dia — soprou-lhe Galehot. — Talvez eu não esteja errado:
é o anúncio de novos tempos.
— Antes de falarmos em prodígio — replicou Lancelot —, vejamos se essa pedra é
verdadeiramente uma pedra.
— Você é incrédulo demais, cavaleiro.
— Sou desconfiado. É meu papel de chefe de guerra. Vamos!
Desceram até a grande porta, deram a ordem para baixar a ponte levadiça e
atravessaram o rio até a outra margem. Lancelot chamou os varletes.
— Apanhem um barco. Recolham essa pedra.
Eles lhe obedeceram com reticência. Não tinham vontade de se aproximar demais de
um bloco de mármore vermelho que flutuava — uma diabrura. Mas Lancelot era
suficientemente imperioso para que eles não seguissem suas ordens; e Galehot, sempre
curioso — e para tranqüilizá-los —, subiu com eles no barco.
Aproximaram a embarcação do bloco de mármore. Galehot não teve nenhuma
dificuldade em segurar a empunhadura da espada, e, com umas poucas remadas, trouxeram
o mármore vermelho para a margem. Porém, apesar de flutuar na água como se fosse
cortiça, a pedra era excessivamente pesada para um único homem. Foram necessários a
ajuda e o suor de três outros sargentos que vieram para ajudar, a fim de finalmente içá-la
para a terra firme.
Enquanto Galehot saltava para a margem, Lancelot se aproximou. Depois que os
sargentos se afastaram, ele permaneceu um momento em silêncio junto do bloco de
mármore vermelho. Galehot, antes de todos, distinguiu a inscrição em letras de ouro que
ornava a empunhadura da espada. Curvou-se e decifrou-a em voz alta:
— Nenhum homem conseguirá me tirar daqui a não ser aquele que terá o direito de me
manejar, e que será o melhor cavaleiro do mundo. Muito bem — acrescentou —, eis alguém

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com o mérito da simplicidade. E que esclarece provavelmente o recente prodígio da Távola
Redonda.
Pálido, estranhamente nervoso, Lancelot, fascinado, não tirava os olhos da espada.
Apesar disso, não pode deixar de dar alguns passos até a pedra.
— Provavelmente, estou errado — murmurou. — Mas estou com vontade de tentar a
prova.
— Senhor — disse Galehot com uma voz surda —, tenho a sensação de que estaria
errado...
— Sempre se está errado ao correr um risco. Mas o que foi a minha vida, Galehot,
senão uma série de riscos aceitados, enfrentados?
— Senhor! Eu lhe peço! Eu o conjuro a não...
Sem escutar, Lancelot punha o pé esquerdo sobre o bloco de mármore e segurava com
as duas mãos a empunhadura da espada, quando ressoou uma voz grave e forte.
— Largue essa espada, Acriança! Imediatamente!
Um homem de estatura alta, enrolado numa vestimenta de burel enegrecida pelo uso,
avançou, afastando a multidão. Tinha uma grande barba embaraçada, longos cabelos
agrisalhados. Um nariz de bico de águia. E olhos flamejantes e negros. Lancelot, saído do
delírio, reconheceu-o na hora.
— Merlin? Eu acreditava que você estivesse morto...
— No que você acreditou não tem importância — disse o mago pousando a mão sobre
o ombro do cavaleiro. — Estou aqui.
Apesar da barba, da cabeleira e de seus andrajos de eremita, ele era alto, empertigado,
e transmitia uma impressão de força e autoridade.
— Você e os outros que tem a sorte de envelhecer ignoram os inconvenientes da
imortalidade. Saiba que precisei dormir dez anos para obter o privilégio de me encontrar
aqui, entre vocês, e impedi-lo de cometer as bobagens que o seu orgulho lhe insufla. Você
me esgota. Por enquanto — acrescentou, apontando o indicador para Lancelot —, afaste-se
dessa pedra. E depressa.
O cavaleiro tratou de obedecer. Merlin. Merlin, o filho do Diabo, cuja lembrança era
sempre evocada nas horas de conversa, e que se acreditava desaparecido para sempre ao
mesmo tempo que o poder de Arthur sobre o reino de Logres, Merlin estava de volta.
O mago virou-se para a assembléia de jovens cavaleiros, de varletes, de sargentos e
de homens de armas que formavam um círculo compacto e atento em volta do bloco de
mármore vermelho.
— Escutem o seguinte. Não vou repetir, e pior para os surdos e para os imbecis. Foi
dito: “Aquele que tentar pegar esta espada e não conseguir, receberá um grave ferimento.”
Mudando de tom, com a voz quase baixa, anunciou a Lancelot:
— Na verdade, eu acabo de lhe salvar a vida. Acredite-me.
— Devo agradecer-lhe?
— Não haveria razão.
Merlin prosseguiu, falando a toda a audiência:
— Repitam a todos: estão começando hoje as últimas aventuras do Santo Graal! E
essa espada, essa espada... será a do Eleito!

24
— Então não vou deixá-la para nenhum outro, ela é minha e de mais ninguém! —
declarou resolutamente Lancelot.
E, sem esperar, plantou o pé esquerdo sobre a pedra, agarrou a espada pela
empunhadura e contraiu todos os seus músculos.
— Louco! — gritou Merlin. — Louco de orgulho!
Era tarde demais. Lancelot, agarrado a espada com as duas mãos, tentava, com toda a
força, arrancá-la do mármore.
Merlin, furioso, precipitou-se sobre ele e bateu violentamente no seu ombro, obrigando-
o a soltá-la.
— Por que está fazendo isso, imbecil?
Sem fôlego, Lancelot recuou alguns passos.
— Eu tinha sido escolhido — resmungou. — Eu devo ser o Eleito.
— Um direito que você perdeu há vinte anos, e você sabe como e por quê!
Com um gesto inesperado, Merlin roçou-lhe a face.
— Nunca lhe disseram que, por causa de meu pai, eu tenho o assustador dom de
conhecer o passado e de prever o futuro? Por que você nunca me escuta?
Lancelot afastou rapidamente o rosto, como se a carícia de Merlin o queimasse.
— Não acredito em mais nada. Ou então somente no Mal!
— O Mal! Você não sabe que ele carrega as duas faces de uma mesma verdade?
— Que verdade?
Merlin sacudiu dolorosamente a cabeça.
— Você não devia ter tentado a prova, Lancelot. Essa espada, um dia, vai lhe fazer
tanto mal que você daria tudo o que lhe é mais caro para jamais tê-la tocado.

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4
O Assento Arriscado

Conduzidos por Merlin, Lancelot e Galehot entraram na grande sala do alto do torreão.
Com um simples gesto, ele lhes fez sinal para que fossem para seus lugares na Távola
Redonda. Obedeceram. Pousaram os dedos sobre as inscrições em letras de ouro que os
designavam:
Lancelot do Lago, filho de Ban de Bénoïc
Galehot de Sorelois
Merlin estendeu os braços, como um fantasma negro dentro de sua roupa de burel.
Pronunciou algumas palavras em uma língua desconhecida — uma língua de feiticeiros
celtas que ele passara a ser o último a conhecer. A luz das dezenas de candelabros que
iluminavam a sala começou a vacilar. Contudo, não havia nem um sopro de ar.
Galehot foi o primeiro a distinguir o estranho fenômeno. Na penumbra dos candelabros
que se extinguiam, outras chamas, pálidas e frias, tremeram em torno dos assentos vazios
da Távola. E essas chamas de gelo bem depressa se pareceram com corpos, formando algo
parecido com fantasmas, ou talvez almas — formas que se tornaram cada vez mais precisas
e claras, tão claras que seu brilho atenuou o brilho dos candelabros moribundos, e Galehot
reconheceu, nas aparências indecisas e brilhantes, os cavaleiros que conhecera no passado,
antes que toda a cavalaria de Logres tivesse morrido na praia de Carduel.
Yvain, Erec, Lucain le Bouteiller... E Béduier, o condestável... E essa forma, rabugenta,
de barba grisalha: sim... Ké, o senescal...
— Garvain, meu mestre!
Era um grito de Lancelot. Ele também reconhecera um dos espectros. Paradigma de
cavalaria, diziam as letras de ouro diante do assento: Garvain, o sobrinho do rei, o preferido
das damas, o modelo de proeza10 e de cortesia — ele estava ali, parecia estar ali, no lugar
dele, mais bonito, mais sedutor e mais brincalhão do que nunca.
Depois foi a vez de Galehot soltar um grito:
— O rei Arthur!
Sim, ele o via, ele o via, o rei Arthur, ali, sentado a Távola Redonda, imagem trêmula,
mas luminosa, trêmula, mas com a luz de seu sorriso, que parecia dizer: “Estou aqui. Com
vocês. Não os esqueço.”
Durante um tempo de que eles não conseguiram estimar a duração, Galehot e Lancelot
viram-se cercados de seus pares e senhores. Como se o tempo tivesse sido abolido. Como
se eles não tivessem ficado sozinhos durante dez anos defendendo a lembrança de Logres e
de suas leis. Como se a batalha mortal de Carduel nunca tivesse ocorrido. Como se eles não
estivessem cercados de espectros suscitados por alguma magia negra, mas dos próprios
cavaleiros, finalmente de volta — De qual guerra? De qual caça? De qual aventura? De qual
morte? — para tomar seus lugares a Távola Redonda.
10
proeza: neste caso, o conjunto das qualidades de bravura do cavaleiro.
26
Então, ouviram um bater de palmas. Eram palmas de Merlin, de pé, afastado. A chama
dos candelabros retomou vida e luz, e as sombras — os espectros — desfizeram-se. Quase
na mesma hora, outras batidas se seguiram. Das portas e das janelas da sala se fechando
todas juntas. Isso produziu uma espécie de ventania que soprou todos os candelabros. Ficou
escuro.
Pouco depois, quando Lancelot e Galehot ainda não ousavam se mover em seus
lugares, um surpreendente clarão dourado elevou-se do Assento Arriscado. Ali não havia
nenhuma vela, nenhum candelabro, nenhuma lâmpada de sebo, mas ainda assim uma luz
suave e amarela apoderava-se pouco a pouco da sala.
Merlin bateu mais uma vez as mãos.
A grande porta se abriu, sozinha, sem intervenção humana. Os dois cavaleiros voltaram
os olhos e viram entrar um homem alto e magro, de porte ágil, numa túnica vermelho-escura.
Lancelot reconheceu-o: era o jovem Galahad. Galehot ficou surpreso com a beleza plácida
do recém-chegado, com sua tez muito pálida, e notou que ele não trazia espada na bainha
nem escudo suspenso ao pescoço. Cavaleiro sem armas 11.
Merlin avançou para acolhê-lo. Deu-lhe a mão e conduziu-o até a grande sala.
— Senhores — anunciou —, eu lhes apresento o descendente de José de Arimatéia.
Largando a mão do impassível jovem, lançou um longo olhar em torno de si, para a
Távola Redonda, para os dois cavaleiros sobreviventes que estavam sentados, e para
aqueles cuja lembrança e nomes estavam gravados na madeira e nas memórias, depois
prosseguiu:
— Como vocês sabem, José de Arimatéia, depois de recolher o sangue de Cristo sobre
a Cruz, teve de deixar a Palestina. Ao final de uma longa navegação, aportou as margens de
Logres. Sua primeira precaução foi ocultar o prato, o graal no qual Jesus jantara por ocasião
da Ceia e no qual o próprio José recolhera o sangue de Cristo, conservando para sempre o
Milagre. Sua segunda precaução consistiu em estabelecer uma cavalaria cristã da qual
Arthur foi o último rei, e da qual você, Lancelot, é o último afiançador. José mandou talhar
esta Távola Redonda em um carvalho milenar. Atribuiu a cada um de seus cavaleiros um
assento, que, a morte deles, outros cavaleiros, após terem feito suas provas, poderiam por
sua vez ocupar. Um único desses assentos, o que passou a ser chamado de “arriscado”,
ficou sem ocupante.
Merlin tocou o ombro do rapaz vestido de vermelho. Eles começaram a dar a volta em
torno da Távola Redonda.
— Houve, vocês sabem, muitos orgulhosos, loucos e ambiciosos que ocuparam esse
assento. Vocês sabem também qual a sorte funesta e rápida que lhes foi reservada. Mas é
preciso que um dia a lenda e a história se juntem. Combater e sonhar não bastam. É preciso
saber combater como se sonha, sonhar como se combate.
Merlin e o rapaz tinham se aproximado do Assento Arriscado. O mago olhou um por um
dos dois últimos cavaleiros da Távola Redonda presentes na sala — faltava Perceval. Sua
voz anuviara-se com uma tristeza inabitual.
— Vivi a vida de diversos homens. Amei apaixonadamente, enganei e fui enganado

11
armas: trata-se tanto de armas defensivas (armadura, elmo, loriga e escudo) quanto de armas
ofensivas (lança, espada). Por armas entende-se também o brasão.
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com arte. Creio conhecer tudo que é humano. Possuo mais poderes mágicos do que um
único homem tem o direito de possuir. Tentei me servir deles com discernimento — algumas
vezes, me enganei. Senhores, eu sou aquele, o último, creio, que pode ainda ligá-los ao
antigo mundo, o Merlin dos prodígios e dos malefícios postos nas minhas mãos por minha
natureza diabólica e meu saber de druida. Enfim, Senhores, eu reconheço diante de vocês —
sem me submeter — que o mundo novo reclama uma religião nova, cujos milagres são
parábolas, as parábolas revelações, e eu trouxe aqui aquele através do qual esse novo
mundo vivera — aquele que, um dia, dentro em breve, se ele levar a termo sua busca, tirara
de mim o direito de ainda viver. Havia tanta emoção na voz de Merlin que os dois cavaleiros
ficaram com lagrimas nos olhos. Lancelot ergueu-se um pouco de seu assento, quis
exclamar: “Nós sempre vamos precisar de você.” Merlin levantou a mão para fazê-lo se calar
e respondeu ao que Lancelot não chegara a ter tempo de dizer:
— Esqueça-me. Eu também sou um espectro. O fantasma do seu passado, como todos
os que você viu aparecerem ainda agora em torno desta mesa. Só tenho ainda um pouco de
existência e de poder para que você e alguns outros continuem acreditando em mim. Isso
não vai durar.
Segurou o encosto do Assento Arriscado, puxou-o para trás e fez um ligeiro sinal de
cabeça para o rapaz de cota vermelha, que se aproximou até a borda da mesa. E, enquanto
empurrava o assento sob o rapaz, declarou:
— Este é o Assento Arriscado. E este é o assento do Eleito.
Os olhos de Galahad, azul-oceano, não tinham sombra de tempestade. Quantos
orgulhosos haviam morrido instantaneamente, aspirados pelo inferno, por terem
imprudentemente ocupado aquele assento? Lancelot e Galehot olharam-no se sentar com
uma espécie de sentimento de horror.
Nada aconteceu.
Ocorreu simplesmente que o burel negro de Merlin desapareceu entre as trevas e se
volatilizou. E que Galahad, rapaz alto de rosto branco de donzela, de roupa cor de sangue
vivo, agora instalado no Assento Arriscado, pousou o queixo em cima de suas mãos juntas,
observou um de cada vez, Lancelot e Galehot, e disse-lhes com doçura:
— Não se preocupem, meus amigos. O Graal me foi destinado. É assim. Vocês não
podem fazer nada, nem eu.

28
5
O Puro, o Predestinado

Galahad se levantou e convidou os dois cavaleiros a descerem até a margem do rio.


— Alguém deve arrancar essa espada de seu bloco de mármore. Não?
Bateu no ombro de Lancelot.
— Você tentou, não foi?
Lancelot se afastou, como se tivesse sido atacado por uma serpente, e não respondeu.
Aquele moço o deixava pouco à vontade. Era parecido demais com o que ele mesmo tinha
sido; e, no entanto, parecia representar tudo o que ele não tinha sabido ser. Era insuportável.
Todos três deixaram juntos a sala da Távola Redonda.
No final da escada, Guinevere os aguardava. Cercada por suas serviçais, o cenho
franzido, ela encarou Lancelot.
— O que está acontecendo, Senhor? Parece que grandes acontecimentos estão se
passando e eu estou sendo deixada de fora. Esquecem-se de que sou a rainha?
— Senhora, perdoe-me esse erro. Tudo aconteceu tão depressa e tão...
surpreendentemente, que não tive tempo de avisá-la.
Ele falara com um tom conciliador. Ela se acalmou.
— Admitamos. Agora, esclareça-me. Para que eu possa “me surpreender” também.
Lancelot segurou Galahad pelo braço e o apresentou a Guinevere.
— Ocorreram diversos prodígios, Senhora. Inclusive este: este moço, que eu sagrei
cavaleiro hoje pela manhã, ainda agora ocupou o lugar no Assento Arriscado.
— Impossível!
A exclamação escapara a rainha. Suas maçãs do rosto ficaram rosadas de emoção; ela
levou a mão ao peito.
— Mas é a exata verdade — afirmou Lancelot. — Vi-o com meus próprios olhos. Assim
como Galehot.
Incrédula, ela olhou para Galahad. Aquela estatura sólida e delicada ao mesmo
tempo... A forma daquele rosto... O olhar azul e firme... Algo indefinível no seu jeito... Teve
de fazer um grande esforço para dominar a perturbação provocada pelas lembranças que de
repente a assaltaram: vinte anos antes, um outro rapaz, naquele mesmo castelo, não
sabendo o próprio nome nem o do pai e o da mãe — e, algum tempo mais tarde, seu ciúme e
seu desespero quando Baudemagus a obrigara a olhar em um espelho de pedra negra...
— Quem é você, jovem?
Ele inclinou a cabeça.
— Senhora, meu nome é Galahad.
— Quem são seus pais? Quem são seus tios? Qual é sua linhagem?
— Proibiram-me de falar sobre isso.
Ela deu um sorriso amargo:
— Claro... Bem — suspirou —, fico feliz que Aquele-que-era-esperado finalmente tenha
29
se sentado no Assento Arriscado. Isso anuncia, suponho, profundas perturbações nestes
tempos já perturbados. Fico contente, repito, mas também triste.
— Por quê, Senhora? — perguntou Lancelot.
— Porque eu admirei suas proezas, cavaleiro. Eu lhe dei meu am... minha amizade
quando você era o melhor cavaleiro do mundo. O que não é mais o caso.
Lancelot, duplamente ferido — em seu orgulho de guerreiro e em seu amor pela rainha
—, quis replicar: “Isso era tudo que havia entre nós?” Mas eles não estavam sozinhos. Ele
não tinha o direito de pronunciar tais palavras em público. Disse simplesmente:
— Está retirando sua amizade por mim?
Ela se aproximou e lhe roçou a face com a ponta dos dedos.
— Não se trata disto, mas olhe a realidade de frente: ela tem o claro e sedutor rosto
desse rapaz, Galahad. Você não é mais o melhor cavaleiro do mundo. Quem afirmasse isso
seria um mentiroso. E espero que você mesmo tenha deixado de acreditar nisso.
— Saiba, Senhora, que nunca acreditei ser o melhor cavaleiro do mundo...
— Contudo — ela replicou com uma estranha emoção —, você era. E ainda é.
Deixou escorregar o dorso da mão pelo rosto enrugado de Lancelot.
— Você permanece e permanecera sendo o melhor cavaleiro dentre todos os que
cometeram erros, pecados e faltas.
Virou-se de repente e voltou o olhar para Galahad.
— Eu o saúdo, “melhor cavaleiro do mundo”. Não duvido que vá ilustrar esse título e
trazer para ele inúmeras provas.
Galahad inclinou-se mais uma vez.
— Muito obrigado, Senhora.
Nada transparecia em seu rosto — “nenhum sentimento humano”, pensou Guinevere.
Com um gesto um tanto rápido demais, ela dispensou Lancelot, Galehot e suas próprias
acompanhantes:
— Deixem-me um instante a sós com esse cavaleiro novo. Por favor.
Obedeceram-lhe. Quando a porta foi fechada atrás de Lancelot e dos outros, ela se pôs
a examinar Galahad dos pés à cabeça. Ele permaneceu impassível.
— Por que — recomeçou ela, finalmente —, por que você dissimula o que, com um só
olhar, eu adivinhei? Por que não pronuncia o nome do seu pai?
Para sua surpresa, Galahad enrubesceu e baixou os olhos.
— Senhora, não me compete dizê-lo.
— Ao menos conhece as circunstâncias que o fizeram nascer?
O rapaz limitou-se a murmurar, como quem recita uma lição aprendida:
— Eu sou o que estava sendo esperado. Eu sou o que obterá o Graal. Isso justifica,
Senhora, tudo o que ouviu e ouve ainda de mentiras e sortilégios.
— Foi essa a lição que lhe ensinaram?
— Senhora, uma vez que meu pai é tão importante para a senhora, e que a senhora o
conhece, diga a senhora mesma o nome dele.
— Com todo o prazer. Seu pai é Lancelot do Lago.
— Se isso é verdade, Senhora, nos logo saberemos.
— Não brinque comigo! — ela se exasperou. — Sou a única a reconhecê-lo? Que novo

30
sortilégio, que nova intriga sua mãe inventou para que um homem tão clarividente quanto
Galehot e até seu próprio pai não o tenham reconhecido?
— Meu pai me reconhecerá quando chegar a hora. Não veja nisso nem sortilégio nem
intriga. Os acontecimentos seguirão o curso que a Busca decidir.
— E se eu chamasse Lancelot agora e lhe dissesse a verdade?
— Eu não a impediria, Senhora.
Ele se inclinou uma última vez.
— Agora, tenho que descer até o rio. Uma espada, creio, me espera.
Ele deixou o local. Guinevere ficou muito tempo de pé, sozinha, depois da partida dele.
Lágrimas molharam sua face. Ela ignorava a razão de sua tristeza. Seria ciúme? Viu-se no
grande espelho suspenso na parede.
— Eu conservei minha beleza — disse para si mesma. — Para que ela serve? É um
engodo... Estou velha, estou velha, eu sou velha... Esse filho que Lancelot teve com Ellan e o
que jamais — jamais! — teremos juntos...

+++
Uma multidão esperava Galahad na beira do rio. Lancelot e Galehot estavam junto do
bloco de mármore com uma espada enterrada. E, quando o rapaz se aproximou para
alcançá-los, todos notaram que o vermelho da pedra e o vermelho de sua cota eram
exatamente do mesmo tom de escarlate.
Galahad fez com simplicidade o que tinha de ser feito. Estava ali para retirar uma
espada fixada dentro do mármore. Sem uma palavra, foi até o bloco de pedra, segurou a
empunhadura da espada com o punho de sua mão direita e puxou. A lâmina deslizou com
um barulho de metal atritado. Galahad levantou a espada acima do ombro, permaneceu
impávido sob as aclamações do público, depois enfiou-a na bainha vazia à altura de seu
quadril.
Foi aplaudido. Todos tinham consciência de ter assistido a um acontecimento
extraordinário, como não ocorria desde o dia em que o jovem Arthur retirara Excalibur da
bigorna em que estava presa. Tantos anos tinham se passado desde aquele prodígio, que a
maior parte das pessoas não acreditava mais nele a não ser como uma lenda que e relatada,
à noite, ao pé de um fogo se extinguindo na lareira. Mas entre eles havia um homem que
tinha visto Excalibur, que a havia carregado, manuseado, que a havia atirado dentro da água
perto de Carduel, quando Arthur estava morrendo: Galehot. Quando a arma foi brandida por
Galahad, ele empalideceu. Inclinou-se ao ouvido de Lancelot e cochichou:
— É a espada de Arthur...!
— Tem certeza?
— Creia-me, Lancelot: é Excalibur.
O cavaleiro bateu-lhe sonhadoramente no ombro:
— Então é verdade: nós veremos se consumar a Busca... O reino de Logres será
restabelecido dentro em breve.
Galehot balançou dolorosamente a cabeça.
— Temo, cavaleiro, que não seja assim tão simples...
— O que quer dizer?

31
Galehot não tirava os olhos daquele jovem de cota vermelha que aceitava as
aclamações da multidão com uma tranqüilidade perfeita.
— Não sei. Tenho a impressão de que você e eu já pertencemos a um mundo
esquecido... Não me sinto pronto para aceitá-lo.
Lancelot segurou-o pelo braço e apertou-o amistosamente contra si.
— Você tem um defeito, Galehot: você pensa. Pare de refletir. Somos cavaleiros, você
e eu, e devemos agir. É só está a questão. Você não acha esse homem impressionante?
— Certamente... Mas tenho a lembrança de ter conhecido e acompanhado um outro —
que eu não achava menos impressionante. Era você, cavaleiro.
— Obrigado, Galehot. Mas tenho quarenta anos, sou quase um velho. Combati tanto
que todos os meus ossos doem hoje. Vi o Graal, há vinte anos, e não soube fazer as Duas
Perguntas. Pois, no fundo, eu não era o Eleito, não é?
— Foi você que decidiu não sê-lo.
— Você acha?
Galehot encolheu os ombros.
— Você preferiu o amor, cavaleiro. Preferiu Guinevere. Ela poderia ter sido o seu graal,
se...
— Se...?
Galehot afastou-se.
— Lembre-se: eu penso, eu reflito demais...
— Mas é o que me diverte em você.
— Então, permita-me diverti-lo mais uma vez. A última.
Apontou para Galahad.
— Cavaleiro, quem é esse menino?
— ... Não compreendo... Galahad...?
— Olhe para ele. Olhe para ele com os meus olhos. Meus olhos de vinte anos atrás.
Lancelot examinou o rapaz de cota vermelha que apertava mãos no meio da multidão,
o rapaz a quem as mulheres apresentavam seus bebês para que ele os benzesse — o rapaz
em cuja direção estendiam-se mãos que pareciam querer tomar dele um pouco de sua força
e de sua serenidade.
— E então...? — perguntou Lancelot.
— E então, o que vejo nele é você mesmo. A parte mais penosa de você, a que você
abandonou ao amar Guinevere.
— E então?
— Então, eu não gostaria que aquele que vai apanhar o Graal fosse maçante como um
dia de chuva, ou como um Galahad.
— Ele é o Eleito, Galehot. O Puro, o predestinado. Todos os sinais estão a favor dele.
— Esqueça os sinais. E pegue o Graal.
— Por quê? Como?
— Volte a ser você mesmo.

32
6
O Escudo

De madrugada, Galahad foi às cavalariças, mandou aparelhar um rocim jovem, rápido e


flexível e deixou Camelot. Pouco depois, Lancelot montou um cavalo de forte constituição e
partiu no seu encalço.
Da mais alta janela do torreão, Guinevere viu-o desaparecer no horizonte. Ela chorava.

Na noite da véspera, um último prodígio acontecera.


Lancelot mandara organizar um banquete na grande sala em honra a Galahad. Na
verdade, Camelot, há muito tempo, vivia como uma cidade sitiada. Os viveres eram
racionados. O abastecimento dependia das caçadas na floresta — sempre arriscadas, pois,
em vez de javalis ou cabritos monteses, arriscava-se a cair em uma emboscada de bandidos
ou nas mãos de uma tropa de saxões — e da cultura dos campos em volta da muralha que,
pelas mesmas razões e apesar da guarda que era montada lá, eram insistentemente
destruídas ou saqueadas. Lancelot desculpara-se antecipadamente com Galahad:
— Nós somos pobres, cavaleiro. Só podemos festejá-lo com um caldo de legumes e de
galinha.
Ao que o rapaz simplesmente respondera:
— Não tenha medo. Deus provera tudo.
Depois que a rainha Guinevere veio se sentar, cada um se instalou, por sua vez, em
volta da imensa mesa sobre o estrado. Lancelot convidara para o banquete todos os jovens
cavaleiros que ele tinha formado e todas as donzelas. Os varletes estavam prontos para
executar suas tarefas.
À noite, que é tardia nessa época do ano, começava a cobrir um céu de verão sem
nuvens. De repente, um trovão ressoou, acompanhado de um raio cuja luz cegante
atravessou as janelas e veio iluminar a grande sala como se fosse pleno dia. E pareceu que
o tempo tinha sido suspenso.
O clarão ardente do relâmpago persistiu, ofuscando os convivas. Ninguém mais se
mexeu, ou fez sequer um movimento. Os que estavam falando emudeceram, a boca
entreaberta com sons que não podiam mais sair. Os que estavam gesticulando viram-se
paralisados em pleno movimento.
Apareceu então, no meio da mesa muito longa, algo com a forma de um grande prato
coberto com um pano vermelho. Uma sílaba, uma palavra — cantante como uma nota
desconhecida — percorreu a sala, embora todos os ocupantes estivessem privados da
palavra: “Graal... Graal...”
O prato oculto sob o tecido vermelho elevou-se acima da mesa e a atravessou,
lentamente, em um sentido, depois no outro. A sua passagem, os perfumes mais suaves e
mais apetitosos encheram as narinas dos convivas. Sob seus olhos, a mesa se cobriu das
mais finas iguarias. Eles não lhes encostaram a mão, mas cada um teve a sensação
33
deliciosa de experimentá-las, de comê-las, de se saciar. Nunca tinham conhecido refeição
mais suculenta. De repente, o prato e seu pano desapareceram; a estranha e fulgurante luz
se extinguiu. O tempo recomeçou a correr.
Os convivas recuperaram, então, a fala. E logo ocorreram exclamações de surpresa.
Depois, alguém pronunciou a palavra: “O Graal...” E todos acompanharam, como em uma
litania:
— O Graal... O Graal... O Graal...
Sobre a grande mesa, as iguarias maravilhosas haviam se volatilizado. Mas ninguém
tinha mais fome. Aquela refeição milagrosa parecia ter alimentado para sempre Lancelot,
Guinevere e sua gente.
O cavaleiro inclinou-se ao ouvido de Galehot:
— Creio que neste momento não há mais dúvida. O Graal está destinado a Galahad.
— Está querendo dizer que o senhor mesmo renuncia a ele?
Lancelot não respondeu. Relanceando o olhar límpido de Galahad, que não piscou,
levantou-se e declarou solenemente:
— Jovem cavaleiro, nossos votos, e particularmente os meus, o acompanharão na
Busca! Que o Céu esteja com você!
Então todos os homens se ergueram e, por sua vez, repetiram a uma só voz:
— Que o Céu esteja com você!
Naquela mesma noite, Guinevere convocou Lancelot ao seu quarto. Com o rosto tenso,
o olhar febril, ela deu alguns passos nervosos até a janela, fingindo observar a noite clara de
verão.
— Eu adivinhei o que você quer — disse.
— Adivinhou o quê?
— Eu o conheço. Não vai se contentar em desejar o sucesso desse rapaz. Vai querer
ajudá-lo.
— Você sabe perfeitamente que um cavaleiro só pode partir para a busca sozinho.
Ela se virou bruscamente para Lancelot. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Então me jure que amanhã de manhã eu vou encontrá-lo aqui, neste quarto! Que
você não terá partido com ele!
Ele baixou a cabeça.
— Não posso fazer esse juramento.
— Por quê? Por que quer ajudar esse Galahad a consumar um destino que não é o
seu?
— Farei o que devo fazer — limitou-se ele a responder com uma voz firme.
Não mais se dominando, ela se atirou contra ele, apertando-o nos braços. Mas ele
permaneceu assim, frio na aparência, com as mãos soltas.
— Lancelot! Lancelot, você não compreende que não quero perdê-lo?
— Não vai me perder.
— Vou sim! — exclamou ela, afastando-se dele. — Eu sinto, eu pressinto: você não vai
voltar dessa aventura que não é sua!
Ele a contemplou por um momento, sério, atento e calmo. Estendeu a mão e tocou-lhe
a face.

34
— Guinevere — disse docemente —, nunca amei ninguém a não ser você.
E, enquanto ela caía em prantos, ele se virou e deixou o quarto.
No dia seguinte, ao nascer do sol, ele cavalgava sobre as pegadas de Galahad.

+++
No quinto dia de viagem, o jovem cavaleiro chegou diante de uma abadia de pedra
branca. Ela se erguia, imaculada, diante da folhagem de uma densa floresta de carvalhos.
Ele se apresentou à entrada. Após quatro noites acampando a luz das estrelas, desejava ter
um pouco de conforto e de companhia.
Os monges o acolheram solicitamente. Vestiam hábitos vermelhos, e Galahad se
perguntou a que ordem pertenceriam, que ele não conhecia. Mas, por discrição, não fez a
pergunta. Enquanto seu cavalo de batalha era levado a estrebaria, ele foi introduzido em
uma sala baixa, que estreitos vitrais em camaïeu 12 escarlate mal chegavam a iluminar.
Naquela penumbra de sol poente, teve a surpresa de distinguir a alta silhueta de um
homem armado. Com a mão na empunhadura de sua espada, ele deu ainda alguns passos.
Sim, era exatamente o que suspeitara: o homem era um saxão — um Gigante Ruivo.
Galahad esboçou o gesto de puxar a espada. O monge que o acompanhava segurou-
lhe o punho com uma mão firme.
— Aqui ninguém luta, cavaleiro — murmurou. — Aliás, o escudeiro do duque Ordic não
comprará briga com o senhor. Venha.
O monge o levou até o gigante saxão. Galahad, a luz da chama carregada pelo monge,
viu um homem estendido em um colchão de palha solto no chão. Cabelos louros
avermelhados, olhar pálido como gelo, ele era também um saxão. Sua cota grosseira estava
toda molhada de sangue, correndo de uma grande ferida no ventre. Com um rápido olhar,
Galahad compreendeu que o homem estava morrendo.
Interrogou o monge com o olhar, e este se limitou a murmurar, enigmático:
— Nós avisamos o duque. Ele não quis ouvir.
Pendurou a tocha em um anel preso na parede e se afastou sem mais uma palavra.
Desconcertado, Galahad hesitou, depois decidiu acocorar-se a cabeceira do moribundo.
— O que lhe aconteceu?
O homem baixou por um instante as pálpebras, sob o efeito de uma violenta dor.
Quando as reergueu, seus olhos de gelo brilhavam de febre.
— Quem é você? — perguntou com uma voz rouca. — Um celta, não é?
— Um cavaleiro da Távola Redonda.
Um sorriso irônico passou furtivamente pelo rosto pálido do moribundo.
— Quer dizer que eles ainda existem? ... Escute...
Ele deu um longo suspiro que terminou com um gemido. Seus lábios se moveram no
vazio; depois, com uma respiração entrecortada, repetiu:
— Escute...
Com uma mão fraca, fez um sinal para que ele aproximasse o ouvido:
— ... Escute bem... Eu vou morrer, mas você... você é um fantasma...
— Por que?

12
Pintura em que se utilizam apenas os vários tons de uma mesma cor. (N.T.)
35
— Seu mundo... não existe mais... Nós destruímos todos os sinais dele... Até a lenda...
Hoje eu perdi, mas...mas nós somos os vencedores...
Os olhos de gelo fixaram-se em um ponto inacessível e, enquanto sua última faísca se
apagava, ele repetiu:
— ... Os vencedores...
Galahad permaneceu por um momento com o joelho no chão, perto daquele duque
saxão que até o último instante tinha se declarado seu inimigo. Não sentia nem raiva nem
rancor. Numa prece silenciosa, recomendou a Deus a alma que havia deixado aquele corpo.
Ergueu-se e afastou-se até o fundo da sala, onde o monge o esperava. Antes de atravessar
a porta, virou-se: o gigantesco Guerreiro Ruivo, escudeiro do duque Ordic, levantara nos
braços o cadáver de seu chefe e o carregava chorando.

+++
— O senhor vai me explicar?
Galahad tinha sido convidado a se sentar à mesa comum da abadia. Sob os capuzes
vermelhos, os monges faziam silenciosamente uma refeição frugal de pão preto e legumes.
Ao cavaleiro serviram caça e vinho clarete. O monge que presidia a cabeceira da mesa
estendeu o dedo diante dele. Galahad virou a cabeça. Um magnífico escudo branco ornado
com uma cruz escarlate estava pendurado na parede.
— O duque Ordic, que você viu morrer, chegou aqui esta manhã. Ele entrou a força em
nossa abadia. Tinha escutado falar desse escudo. Decidira roubá-lo. Apesar de todas as
minhas advertências, ele o apanhou, pendurou no próprio pescoço, subiu novamente no
cavalo, rindo da peça que achava estar nos pregando, e foi-se embora.
O monge se interrompeu para mastigar um pedaço de pão.
— E depois? — impacientou-se Galahad.
— Esta noite, ele voltou. As entranhas traspassadas. Nós recolocamos o escudo no
lugar. Quanto a Ordic, você sabe, ele morreu.
Galahad balançou lentamente a cabeça, lançou de novo um olhar para o escudo
suspenso na parede e, esperando inutilmente outras explicações, resolveu finalmente pedi-
las.
— Devo compreender que há uma relação entre esse escudo e o ferimento mortal de
Ordic?
— Acertou, jovem. Esse escudo está aqui há mais de quatrocentos anos. A abadia foi
construída para abrigá-lo, e nossa ordem fundada para garantir a sua guarda.
— Fundada por quem?
O monge sorriu.
— Vejo que você sabe ir ao essencial. Vou lhe responder: por José de Arimatéia. Já
ouviu falar desse homem santo?
— Claro. José de Arimatéia despregou Nosso Senhor Jesus Cristo da cruz da infâmia.
Recolheu seu sangue no Graal. E, muitos anos e muitas aventuras mais tarde, aportou nas
margens do antigo reino de Logres.
O monge franziu as sobrancelhas e ergueu um indicador meticuloso:
— Ele fundou o reino de Logres, jovem. E esse escudo foi dele. Quer escutar sua

36
história?
— Por favor.
O monge inspirou profundamente, fechou os olhos e começou:
— Quando José chegou às terras que se tornaram o reino de Logres, teve que
enfrentar numerosos chefes de clãs. Ele era um grande cavaleiro e não teve nenhuma
dificuldade em vencê-los e em submetê-los. Um único, que se chamava Pellès, ofereceu-lhe
resistência por muito tempo. Por tanto tempo e tão duramente que José decidiu ir encontrá-
lo, não só para convencê-lo de que aquela guerra era inútil e mortífera, mas sobretudo para
fazê-lo compreender o Santo Mistério da Crucificação e da Ressurreição de Cristo.
“Pellès aceitou o encontro em seu castelo de Corbenic. E José falou tão bem que Pellès
pareceu se render aos argumentos. Na realidade, ele não retivera senão uma única coisa do
longo discurso de José: aquele prato maravilhoso que estava em poder dele, o Graal, podia
realizar todos os prodígios, e principalmente o de conceder a imortalidade a quem ficasse
com ele.
“Pellès, sob pretexto de mostrar sua submissão, foi até Camelot, a cidade que José
acabara de fundar. Prestou juramento a José, que, como recompensa da fidelidade recente,
lhe ofereceu o próprio escudo: ‘Este escudo branco, livre de toda mácula’, disse-lhe
solenemente, ‘o protegera de qualquer ferimento em combate’. Na mesma noite, enquanto
todas as pessoas no castelo dormiam, Pellès entrou furtivamente na sala da Távola Redonda
onde estava guardado o Graal, oculto sob um tecido vermelho. Aproximou-se, e sentiu o que
todo homem sente a proximidade do Graal: o sentimento de uma completude, de uma
felicidade perfeita. Ele segurou a beira do tecido e suspendeu-o. Perfumes sem igual o
embriagaram. A imortalidade, dizia para si. A imortalidade estava ali, à espera de um único
gesto apenas: que ele experimentasse o Alimento que repousava dentro do Graal. ‘Não
envelhecerei mais, não morrerei mais’, pensava, exaltado. Não estava completamente
errado.”
O monge interrompeu o relato, tossiu de leve e mastigou cuidadosamente um pedaço
de pão preto.
— E depois? — perguntou Galahad com impaciência.
— Nosso Senhor não aprova o orgulho — disse sentenciosamente o monge. — Quanto
a José, ele era mais do que um santo: era um homem prudente. Desconfiara da conversão
fácil demais de Pellès. Seguira-o até a sala do Graal. E, no instante em que o traidor
suspendia o pano vermelho, ele o atingiu com um golpe de lança. O ferro atravessou o
quadril de Pellès de um lado ao outro. A haste se partiu nas mãos de José.
“Depois disso, mandou transportar o ferido para o quarto. Ali, ele mergulhou os dedos
na chaga e traçou uma cruz sobre o escudo branco que oferecera algumas horas antes.
‘Está cruz de sangue’, disse, '’marcará para sempre a sua deslealdade. Você não morrerá,
Pellès: você tocou o Graal e, conseqüentemente, roubou uma parte de imortalidade. Mas
esse milagre será seu castigo. Você não morrerá, Pellès, mas viverá doente, no seu castelo
de Corbenic, numa terra para sempre estéril. De hoje em diante, você se tornou, para a sua
desgraça, o guardião do Graal. Viverá no sofrimento de suas pernas mortas, na esperança
de que alguém o livre de uma vida miserável, sempre igual e sem fim, hora após hora,
repetida. Pois, saiba, Pellès, doravante você só terá um objetivo na vida: escapar da sua

37
maldição. Obter o direito de morrer para se juntar a comunidade dos homens, obter o direito
de chegar à direita de Deus, para esperar o Juízo Final!”
O monge fora se exaltando à medida que o relato avançava. Na última silaba, ele bateu
com o punho na mesa. Todos os monges encapuzados pararam de comer. Galahad,
calmamente, apontou para o escudo branco com a cruz vermelha pendurado na parede.
— Então esse é o escudo de Pellès? Por que ele está aqui?
O monge encolheu os ombros, como se a resposta aquela pergunta fosse evidente:
— Porque nós esperamos o melhor cavaleiro do mundo.
Por pouco Galahad não respondeu: “Sou eu.” Mas as freiras de sua infância o tinham
educado bastante bem para que ele conseguisse calar essas palavras de orgulho. Ele disse
simplesmente:
— Explique-me.
— José fundou esta abadia e nossa ordem a fim de que guardássemos esse escudo
até que ele viesse a pertencer ao melhor cavaleiro do mundo, aquele que reencontraria o
Graal e livraria Pellès da maldição.
— Como os senhores poderiam reconhecê-lo?
O monge deu um risinho de mofa.
— De todo modo, nós reconhecemos facilmente os que não são o “melhor cavaleiro do
mundo”: todos voltam aqui devidamente estripados, como o duque Ordic!
Galahad sorriu.
— Muito bem. Amanhã de manhã, eu pendurarei esse escudo no meu pescoço e
retomarei a estrada.
— Não cometa essa loucura, cavaleiro! Não viu o que aconteceu com Ordic?
— Era um saxão, não um cavaleiro.
Pela primeira vez, o monge observou Galahad.
— Restam tão poucos cavaleiros... Eu os conheço todos, agora. Lancelot, Perceval,
Galehot... Mas você, quem é você? De onde vem?
— Pouco importa de onde eu venho. Amanhã partirei com o escudo. E não voltarei.

+++
Galahad levantou-se antes da aurora. Tinha dormido como uma criança. Contudo,
assim que se viu de pé, sentiu um ardor como nunca tinha experimentado. Vestiu-se às
pressas, colocou na cinta a espada e desceu para a grande sala onde, na véspera, tinha
visto morrer o duque saxão Ordic. Encontrou sem dificuldade a porta que conduzia ao
cômodo onde tinha jantado em companhia dos monges.
O escudo branco com a cruz vermelha estava lá, e parecia brilhar tenuemente na
penumbra. Galahad retirou-o da parede. No momento em que ia pendurá-lo no pescoço,
escutou uma voz as suas costas:
— Compreende bem o risco que está correndo?
Galahad virou-se para o monge que, de braços cruzados, as mãos escondidas nas
mangas, o observava com um ar ao mesmo tempo severo e intrigado.
— Não tenha medo — replicou. — Terminaram os tempos em que os senhores tinham
que guardar este escudo.

38
O monge inclinou a cabeça.
— Acredito em você — murmurou.

Algumas horas mais tarde, o cavalo de Galahad descia tranquilamente na direção de


um vale florido onde corria um riacho, quando um homem a cavalo surgiu. Vestia uma
armadura completa, do elmo as perneiras, e brandia uma lança grossa e longa como o
tronco de um carvalho jovem. Sem uma palavra, sem sequer um desafio, ele galopou, com a
lança em riste, direto para Galahad.
Galahad teve tempo apenas de aprontar o escudo. Com a mão esquerda, segurou a
empunhadura de couro e, esporeando o cavalo, colocou-o resolutamente à frente. Depois,
com a mão direita, arremetendo seu cavalo de batalha, puxou a espada da bainha.
Lança contra espada: suas chances de vencer o assalto eram bastante escassas. Mas
ele não se preocupava. Galahad fora educado na certeza da própria valentia e
invencibilidade.
Contudo, no instante precedente ao choque, experimentou uma ligeira apreensão.
Agarrou-se com mais firmeza ainda ao escudo. Instintivamente, fechou os olhos e contraiu as
pálpebras, pronto para aparar o formidável golpe do cavaleiro desconhecido.
Mas não aconteceu nada.
No momento em que o choque deveria ter ocorrido, ele reabrira os olhos, e assistira a
este estranho fenômeno: a ponta da lança do cavaleiro tocou seu escudo, mas sem que ele
apresentasse o menor estremecimento, a menor vibração. A arma grossa como um carvalho
jovem pareceu, ao contato do escudo, se desagregar como um ligeiro nevoeiro. E a lança foi
desaparecendo em todo o seu comprimento, fazendo com que o escudo alcançasse o corpo
do homem a cavalo e, num surpreendente silêncio, o atravessasse inteiramente, como se ele
fosse uma imagem.
Aturdido, Galahad puxou o freio, diminuiu o galope de seu cavalo, forçou-o a fazer
meia-volta. Ao longe, atrás dele, a algumas dezenas de passos, só o que restava era a
silhueta cada vez mais fluida do cavaleiro desconhecido e sua montaria. Em alguns
segundos, ela se desfez, deixando no ar somente uma espécie de fumaça avermelhada se
dissipando muito depressa.
Durante muito tempo, Galahad ficou ali, com o escudo em uma mão, a espada na outra,
se perguntando o que, diabos, poderia ter acontecido. Claro, durante sua infância, tinham-lhe
dito e repetido à exaustão que ele iria enfrentar muitos prodígios. Ele começava a
compreender que eles seriam bem mais surpreendentes do que tudo que pudera imaginar na
época.

39
7
O Louco de Beau Repaire

Durante todos aqueles dias, Lancelot seguiu as pegadas de Galahad. Poderia ter
apressado o passo, alcançá-lo: sequer cogitava de fazê-lo. Lancelot conhecia a regra de
ouro da Busca: o cavaleiro que a efetua deve fazê-lo só, sem aliado e sem ajuda. E, mesmo
que Lancelot tivesse partido com a intenção principal de levar seu apoio a Galahad em caso
de perigo muito sério, sua segunda intenção, velada, era mais profunda, mais essencial: a
Busca, que ele não conseguira realizar enquanto fora o Eleito. O Graal, que ele não
conseguira descobrir. Queria ao menos assistir ao triunfo de Galahad. Ver e saber. Tornar-
se, se não o cavaleiro eleito que não podia mais ser, ao menos a primeira testemunha do
Milagre do Graal.
Durante todos aqueles anos, tinha se sentido culpado pela ruína do reino de Logres,
persuadido de que, se ele tivesse consumado o que deveria, nada teria acontecido, Arthur
ainda estaria vivo, e todos os seus cavaleiros. Possivelmente nisso residia a verdadeira
razão da frieza com que ele passara a tratar Guinevere: culpava-se por tê-la amado, por
amá-la sempre, e por saber que esse amor não havia engendrado, pensava, senão o
desmoronamento do reino.
Alcançou a abadia com um dia de atraso em relação a Galahad. Lá, um monge o
acolheu e lhe contou o que se passara, primeiro com o duque saxão Ordic, em seguida com
o jovem cavaleiro que tinha tomado o escudo de José. Lancelot não se demorou. Após uma
refeição frugal, partiu de novo, vagamente inquieto com a sorte de Galahad, mas
secretamente seguro de que o rapaz estava certo em ter apanhado aquele escudo, que lhe
era destinado, e de que, no lugar dele, teria feito exatamente o mesmo.
No vale cujo córrego ele acompanhava, parou devido a pegadas estranhas. Desceu do
rocim, ajoelhou-se e passou lentamente os dedos pelo mato e pela terra queimados. Aquilo
não poderia ter sido feito por um simples fogo de acampamento. Aliás, não havia nem cinzas
nem carvão de madeira naquela área.
Perplexo, montou de novo no rocim e se afastou lentamente, sem perder de vista o
curioso local de mato e terra queimados. Alguns metros adiante, ele compreendeu. Ou, pelo
menos, sem verdadeiramente compreender do que se tratava, ele viu. Viu que aqueles
“vestígios” desenhavam exatamente as silhuetas de um cavaleiro armado com uma lança e
de seu cavalo.
Consumidos no local. Desintegrados no ar. Sem deixar em sua passagem pela terra
nada além daquela marca de incêndio no mato próximo do córrego.
Ele estremeceu. Esporeou a montaria. O céu, à direita, escurecia; e se avermelhava, à
esquerda, com o sol que se punha. Estava na hora de descansar. Registrou as pegadas de
Galahad, que parecia se dirigir para o cruzamento dos caminhos, depois do vale.
Decidiu que voltaria ali no dia seguinte e que retomaria o caminho atrás de Galahad.
Antes disso, devia uma visita a um de seus pares. O último deste mundo. Cuja cidade e
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castelo ficavam a não mais do que uma hora, na direção do mar.

+++
— O que está acontecendo aqui?
— Estamos de luto, Senhor — respondeu Aguingueron.
— Alguém morreu? Perceval?
— A alma dele, Senhor. A alma dele...
Lancelot entrara sem problemas em Beau Repaire. Os sargentos de guarda na ponte
levadiça o haviam imediatamente reconhecido. Não pudera deixar de notar suas expressões
fúnebres, assim como o pano preto que velava seus escudos. Perguntara-lhes para quem
era o luto. Arrasados, tinham se limitado a responder que, no castelo, ele saberia mais.
As ruas da cidade estavam desertas, embora a noite ainda não tivesse caído
inteiramente. Em cima das portas das casas, panos pretos tinham sido pregados. Inquieto,
Lancelot acelerara o trote do cavalo para chegar ao castelo. Lá, dois varletes o haviam
acolhido no pátio. Enquanto um conduzira seu cavalo às estrebarias, o outro lhe colocara
sobre os ombros um manto de seda negra e, sem uma palavra, levara-o até a entrada da
sala.
Ela estava vazia. Fracamente iluminada por duas tochas que projetavam duas longas
sombras sobre as paredes altas. Sozinho, sentado perto da lareira, Aguingueron triturava
distraidamente as brasas do fogo com a ponta de sua espada. O gigante parecia ter
encolhido, de tanto que uma mágoa, visivelmente, o acabrunhava.
Animara-se muito pouco ao reconhecer Lancelot e levantar-se para acolhê-lo.
— A alma dele? — repetiu Lancelot, quando Aguingueron respondeu às suas
perguntas. — A alma de Perceval morreu? O que você quer dizer?
— Não sei, Senhor. Ninguém sabe. Perceval, meu amo, não é mais do que uma
sombra de si mesmo. E nós mesmos — acrescentou com uma voz trêmula — não somos
mais do que uma sombra dessa sombra...
Lancelot segurou-o firmemente pelo braço.
— O que você está me dizendo não faz sentido. Leve-me até ele. Vamos!

+++
Um cenário de miséria esperava Lancelot no quarto onde o gigante o introduziu.
Nenhum leito com cobertura de arminho e baldaquim bordado a ouro e seda. Nenhum
assento confortável diante do fogo. E, aliás, não havia fogo na lareira. Nenhuma tapeçaria
colorida sobre as paredes e em volta das janelas.
Não. Apenas uma enxerga desconjuntada atirada em um canto. Paredes úmidas,
escorrendo água. Trapos de panos rasgados acima das janelas, como se tivessem sido
arrancados em um acesso de fúria. Na lareira, cinzas frias.
E, encolhida sobre um banco de pedra da lareira, uma silhueta pálida, ausente,
balançando-se para a frente e para trás, cantarolando.
Lancelot se aproximou da lareira, reconheceu naquele homem de barba grisalha e
embaraçada, envolto em um grosseiro pano marrom, o famoso e já legendário Perceval, o
galês. Virando-se rapidamente para Aguingueron, exclamou:

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— Como pode deixar seu amo viver neste...?
Não encontrou uma palavra para expressar o que o cenário daquele quarto lhe
inspirava. Aguingueron baixou a cabeça.
— É escolha dele, Senhor... Ele destroçou as tapeçarias, destruiu a cama a golpes de
machado e atirou os pedaços pela janela. Ele nos proibiu de acender o fogo no quarto...
— Pelo Sangue de Cristo, qual a razão?
— Nós adoraríamos saber, Senhor.
— Mas você, você, não tem idéia?
Aguingueron levantou lamentosamente os ombros.
— Foi... depois da viagem que ele fez...
— Que viagem?
— Lá, no setentrião, quando aquela nau o levou...
— Do que está falando, pelo diabo e por todos os Santos?
Aguingueron não se deu ao trabalho de responder. De repente, a sombra marrom
surgiu da lareira sem fogo e se atirou sobre Lancelot, agarrando-o pelas abas de seu manto.
— O mundo vai morrer! — vociferou. — O mundo morreu! Fuja! Fuja para o mais longe
possível!
— Perceval... Perceval, sou eu, Lancelot. Não me reconhece?
— Que importância tem seu nome? Que importância tem tudo o mais? Eu vi! Eu vi...
Lancelot agarrou Perceval pelos ombros e o sacudiu.
— O que foi que você viu? Diga-me!
— As conseqüências do meu erro...
Perceval, repentinamente, perdeu toda a energia. Lancelot se sentiu segurando um
boneco de pano. Levou-o, praticamente carregado, até a enxerga, onde o deitou.
— Qual foi o seu erro? Quais foram as conseqüências? O que foi que você viu?
Os olhos de Perceval não conseguiam se fixar nos de Lancelot. E, se os encontrassem,
seria como se não fossem capazes de enxergar.
— Os mortos voltam... Os mortos nos esperam... Eles estão aqui... Aqui, quando eu
velo o Graal... Eles me odeiam... Morreram por mim... E eu... eu...
— Que mortos, Perceval? Você viu o Graal? E quem? E o quê?
— Minha mãe... meu pai, meus irmãos... Minha mãe, sobretudo... E Morgana, e
Mordred... Morgana. Mordred!
— Morgana e Mordred morreram, Perceval.
— Sim... Eles morreram. Minha mãe também, e meu pai, e meus irmãos. E eles
estavam lá. Tanto ódio...
Os olhos de Perceval se reviraram. Brancos. Todo o seu corpo se enrijeceu.
— Perceval, Perceval!
Não adiantava nada. Perceval desmaiara.

+++
— Perdoe-me, Senhora — disse Lancelot. — Eu ignorava que ele estivesse tão mal.
O quarto era enfeitado com tapeçarias de cor violeta e branca. A própria Blancheflor
estava vestida de violeta e branco.

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— O senhor pode fazer alguma coisa por Perceval? — perguntou.
— Ignoro do que ele está sofrendo.
Ela replicou, com um tom de ironia:
— Da mesma coisa que o senhor, Lancelot. Ele se sente culpado e cheio de desânimo.
— Senhora... — protestou Lancelot.
— Vamos, cavaleiro, para que esconder? Vocês nasceram e foram educados para
obter o Graal. Perceval também, à sua maneira. Todos dois fracassaram. Ora, para homens
como vocês, o fracasso é impossível. Durante dez anos, bravamente defenderam Camelot, e
Perceval me ajudou a preservar a independência de Beau Repaire. Mas esses combates
cotidianos não são para vocês, nunca os satisfizeram. Quando se teve a oportunidade de
poder salvar o mundo, de realizar proezas e um sonho, torna-se difícil envelhecer lutando
pela sobrevivência de um simples castelo e sua aldeia. Estou errada, cavaleiro?
— Não — reconheceu a contragosto Lancelot.
— Então, faça-me um favor. Leve Perceval com o senhor. Fiquei sabendo que muitos
prodígios aconteceram em Camelot nestes últimos tempos. E que um jovem partiu em busca
do Graal. Esses acontecimentos, suponho, estão relacionados diretamente com a sua
presença aqui, não? Queria encontrar um antigo Eleito, como o senhor. Acabou encontrando
um louco. Parta com ele.
— Por quê?
— Porque esse louco não está louco, tenho certeza. Não sei o que ele viu quando a
nau o levou, e antes que Aguingueron o encontrasse nessa ilha do diabo. Mas creio que o
senhor vai precisar dele.
Lancelot repetiu:
— Por quê?
Ela fez um gesto de irritação.
— Vai saber antes de mim. Se houver alguma coisa para saber.
Lancelot meneou a cabeça diversas vezes, refletindo. Depois, disse:
— E a senhora, vai ficar aqui? Sozinha?
— Sempre soube lutar sozinha. E...
Ela hesitou. Caminhou até uma janela. Contemplou o céu cinzento.
— Talvez — murmurou —, talvez Perceval tivesse conseguido fazer o que lhe era
destinado se, uma noite, eu não lhe tivesse mentido.
Ela se virou bruscamente, enfrentando Lancelot, olhos nos olhos.
— É preciso desconfiar das mulheres e do amor, cavaleiro. Mas não estou lhe
ensinando nada de novo, não é?

+++
Montaram os melhores cavalos de Beau Repaire. Lancelot ia à frente. Aguingueron
permanecia ao lado de seu amo, Perceval. A aurora de verão se embranquecia por trás da
floresta do Leste; as árvores pareciam negras contra o céu.
— Para onde partimos? — perguntou Aguingueron.
— Ignoro — disse Lancelot. — Seguiremos as pegadas.
— Quais pegadas, Senhor?

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Antes que Lancelot pudesse responder, Perceval gritou, levantando a cabeça para o
céu:
— Corramos! Corramos! Vamos para a morte!
Aguingueron aproximou seu cavalo do cavalo de Perceval. Pousou a mão no ombro
dele.
— Vamos, meu amo... Acalme-se.
Perceval começou a rir. Um riso assustador. Então urrou:
— Você não viu o futuro! VOCÊ NÃO SABE!

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1
Sete

Galahad viajou dois dias inteiros sem transtornos. Na manhã do terceiro dia, avistou um
castelo com altas e fortes muralhas, ao pé do qual corria um rio tumultuoso. O tempo estava
bom e claro; o céu resplandecia; uma cotovia cantou. Galahad esporeou a montaria.
Atravessou o vale que o separava do rio e do castelo. Aproximava-se de uma mata de
salgueiros plantados sobre a margem, quando escutou alguém o chamando:
— Senhor!
Era a voz de uma moça. Ele a procurou com os olhos em toda a volta, mas não viu
ninguém. Atrás dele, uma outra voz, ainda de uma moça, chamou-o, por sua vez:
— Senhor!
Ele se virou rapidamente. Mas também não havia ninguém.
— Senhor!
Terceira voz, que, dessa vez, lhe pareceu provir da mata. Irritado, conduziu o rocim
naquela direção.
— Senhor!
A quarta voz parecia saída diretamente da água barulhenta do rio.
— Senhor! Senhor! Senhor!
Cada uma das vozes o chamava de um lugar diferente. Eram sete. De tanto virar sobre
si mesmo, ele teve uma vertigem — e seu cavalo também, que ele sentiu como se sumisse
debaixo dele. Ele o imobilizou, recuperou-se e gritou sem se dirigir a ninguém:
— Quem está me chamando, afinal? Quem são vocês? Tem um corpo, um rosto? Se
são espíritos, saibam que não me metem medo!
— Por quê? — perguntaram juntas as sete vozes.
— Não acredito em espíritos: como poderia ter medo deles?
Essa lógica paradoxal as fez refletir. As vozes não responderam. Galahad esperou um
momento, segurando a rédea do rocim, tomado por um estranho nervosismo que o fazia
patear.
— Ninguém mais tem o que dizer? — perguntou, com um tom de desafio zombeteiro.
— Adeus, então!
Ele puxou o freio; o cavalo deu a volta, pronto para partir no trote.
— Espere, cavaleiro!
Com um seco movimento do punho, fez o cavalo voltar mais uma vez. E se viu diante
da mata de salgueiros. Ou melhor: diante do que já não eram, de forma alguma, árvores. Sob
seus olhos, em alguns instantes, os salgueiros se metamorfosearam. Seus longos galhos
curvados quase até o chão se transformaram em cabeleiras. Seus troncos maciços afinaram
e se redesenharam em graciosos corpos jovens. Enfim, suas raízes se arrancaram do solo
para se tornarem longos pares de pernas de pele de seda branca. Três das moças assim
surgidas eram louras, três morenas, e a sétima, ruiva como o fogo.
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Foi ela quem tomou a palavra:
— Cavaleiro, temos um favor para lhe pedir.
Galahad olhou as sete moças, cada uma mais bonita do que a outra, mas todas
partilhando a mesma expressão sombria e o mesmo olhar velado por uma profunda tristeza.
— Estou escutando.
— Você foi o primeiro que não se assustou com as nossas vozes. O primeiro que
zombou do sortilégio que nos aprisionava. Você está vendo: isso nos libertou.
Galahad inclinou galantemente a cabeça.
— Vocês me encantam, Donzelas. Mas não tenho nenhum mérito. Creio em Deus; não
posso, pois, acreditar nos espíritos da antiga superstição.
A moça ruiva o examinou com seus olhos de um verde intenso, onde parecia flutuar
uma espécie de clarão de chama.
— E no Espírito do Mal, você acredita?
Galahad fez o sinal-da-cruz.
— Acredita — ela prosseguiu — em Lúcifer?
— Cale-se! — ele rugiu. — Não pronuncie o nome do Inimigo!
As pálpebras da moça baixaram-se lentamente. Pouco depois, ela reabriu-as: a chama
que havia parecido brilhar em seus olhos apagara-se.
— Cavaleiro, escute o favor que lhe pedimos: livre esse castelo dos que o tomaram e
ocupam há sete anos. Você nos libertou do sortilégio; liberte-nos da escravidão.
— Quem são os que as mantêm presas?
— Vá ao castelo, cavaleiro. Logo saberá.
Com essas palavras, a moça se voltou para as companheiras e as levou para a
margem do rio.
Galahad não tinha escolha senão obedecer-lhe.
Rapidamente chegou a um vau que lhe permitiu atravessar a correnteza sem
dificuldade. Começara a percorrer a larga pradaria que precedia a ponte levadiça quando, do
castelo, saíram sete cavaleiros. Tinham vestido as couraças de guerra e cada um deles
carregava uma lança. Quando chegaram a cem passos de Galahad, pararam, flanco a
flanco, e o que estava no meio da fileira gritou:
— Afaste-se desse castelo! Ou vai encontrar somente a morte!
Antes mesmo de responder, Galahad puxou a espada da bainha. A lâmina de Excalibur
cintilou ao sol da manhã.
Em seguida segurou o escudo branco com a cruz escarlate. Ao verem aquilo, os sete
cavaleiros baixaram juntos suas lanças, apontando-as para o cavaleiro.
— A morte! — clamaram a uma só voz.
E seus pesados cavalos de batalha estremeceram. Galahad, por sua vez, esporeou seu
rocim:
— Por Cristo!
Teria sido estúpido e suicida chocar-se de frente contra aquela falange de sete
cavaleiros armados com lanças. Galahad tirou proveito da rapidez e da maleabilidade de seu
jovem rocim, muito mais leve, mais rápido e mais esperto que os poderosos cavalos de
batalha de seus adversários. No momento em que não se encontrava a mais de vinte passos

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de suas lanças, Lancelot virou a brida para a esquerda e galopou tão rápido que alcançou a
extremidade da falange, chegando até o último cavaleiro. A lança estalou como um
pedacinho de madeira contra o escudo branco, e a lamina da Excalibur assoviou: a cabeça
com capacete do cavaleiro volteou nos ares.
Na mesma hora, Galahad fez seu cavalo voltar. A falange de cavalos de batalha muito
pesados ainda tentava retornar, desordenadamente. O cavaleiro escolheu o homem que
estava mais próximo e o fez sofrer a mesma sorte do primeiro. Dois outros se precipitaram
sobre ele, juntos. As pontas de suas lanças atingiram o escudo: Galahad não estremeceu,
mesmo sob o assalto. As lanças se partiram com um golpe seco, e um instante depois
Excalibur fez seu trabalho, cortando em dois um dos cavaleiros, arrancando o braço do
segundo.
— Onde está a morte que vocês tinham me prometido? — gritou Galahad, forçando seu
cavalo na direção dos três últimos cavaleiros.
Eles tinham parado seus cavalos, flanco contra flanco. Apontaram as lanças formando
um feixe de aparência intransponível. Urraram:
— A morte!
— A vida! — respondeu-lhes Galahad.
E, sem hesitar, lançou o rocim a galope, com o escudo branco com a cruz vermelha
firmemente apertado contra o corpo.
Três lanças.
Um escudo.
— A vida!
Então, no instante em que ia sofrer o choque do assalto, no instante em que, por
instinto, fechou os olhos, as três lanças, os três cavalos de batalha, seus três cavaleiros se
desagregaram como estatuas de areia, e uma grande chama amarela os envolveu — eles
desabaram no solo numa chuva de cinzas incandescentes. Correndo a toda a velocidade,
Galahad e sua montaria os atravessaram, os traspassaram, como um milagre. Depois que o
cavaleiro interrompeu a corrida de seu cavalo e olhou para trás, não viu nada além de
algumas fracas chamas se extinguindo no meio das plantas da pradaria.
Passou um tempo pendurando de novo o escudo ao pescoço e recolocando a espada
na bainha. Mal pode se espantar com o que tinha sob os olhos: nos lugares onde vencera
cada um dos sete cavaleiros, havia apenas sete imagens de cavaleiros desenhadas no mato
queimado. Como três dias antes, no vale próximo da abadia.
Galahad fora educado para não se espantar com nada que teria assustado um simples
mortal. Disse a si simplesmente que os “sinais”, as “pegadas” na sua estrada para o Graal se
repetiam, e que isso era ao mesmo tempo um bom sinal — ele seguia o caminho justo — e
inesperado: tinham lhe informado que ele teria de vencer inimigos e prodígios; começava a
compreender que deveria enfrentar malefícios e o Inimigo. O Diabo, Satã e seus demônios,
Lúcifer e seus anjos negros.
Com esse pensamento, estremeceu. Não conseguiu evitar. O caminho, e os combates,
seriam bem mais difíceis do que tudo que havia imaginado.

+++

48
Quando acabou de transpor a ponte levadiça e entrou no pátio do castelo, crianças
acorreram ao seu encontro. Nenhuma se parecia com nenhuma. Havia uma ruiva, uma loura,
um menino de cabelos negros e olhos azuis; havia dois cuja pele, de um, era de um marrom-
claro, a do outro, marrom-escura; havia um de rosto chato e olhos negros que quase não
eram vistos através da fenda das pálpebras; um último, de cabelos crespos, dentes brancos
e sorridentes, de tez escura. Pareciam não ter mais de sete anos.
— A vida! A vida! A vida! — gritavam e cantavam, saltitando em torno do rocim.
Galahad olhou-os cercando seu cavalo, depois desmontou. Na mesma hora eles se
precipitaram para ele.
— Galahad, cavaleiro, nós esperávamos por você há sete anos!
— Ei! Calma, calma... Há sete anos estavam mamando na mãe de vocês e eu não tinha
nem o dobro da idade de vocês hoje...
— Mas você já era você! — disse o menino de rosto chato e olhos apertados.
— Certamente... Mas vocês já eram vocês?
— E nós sabíamos que você viria! — exclamou o menino de cabelo ruivo.
— Como assim?
— Porque era você! — replicou o menino marrom-claro.
— Explique-me.
— É o seguinte — continuou o menino de cabelos crespos e dentes brancos. —
Adivinhe de onde viemos!
— Eu... tenho medo de não saber, não...
— Nós viemos... — começou o menino de cabelos crespos.
Mas, cutucado, teve de se calar e foi o menino louro quem disse:
— Nós viemos do Paraíso terrestre!
— Do...? Do Paraíso terrestre? ...
— Sim — interveio o menino marrom-escuro. — Era lá que vivíamos. Salvo estes
últimos sete anos.
— Vocês viviam no... no Paraíso terrestre?
— Ah! Era melhor do que aqui! — disse o garoto de cabelo crespo.
— Graças a você, nós vamos voltar para lá — acrescentou o menino de olhos
apertados.
— Ah, é?... Então, será que vocês são... são...
— Exatamente! — disse o garoto moreno de olhos azuis.
— Nós somos anjos! — exclamou o menino marrom-claro.
— Anjos?
— Oh! — disse o menino ruivo. — Anjos de um nível inferior.
— Mas anjos, mesmo assim! — exclamou orgulhosamente o menino marrom-escuro.
— Bem... E o que estão fazendo aqui?
Os sete meninos — os sete anjos — se entreolharam. Deram-se cotoveladas, fizeram
mímicas, caretas. Finalmente, um deles, o de cabelo crespo, se decidiu a falar:
— Bom cavaleiro, eis o caso. Eu lhe explico. Você está no castelo dos Sete. Mas é um
castelo engraçado...
— Em que sentido?

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— Não é verdadeiramente um castelo — respondeu o menino ruivo.
O de cabelo crespo empurrou-o com o ombro e se adiantou:
— De fato, é um... como direi? Um domínio do Inferno.
— Como?
— Os sete cavaleiros que você enfrentou...
— Ele os fez passar vergonha! — gritou o menino marrom-escuro, e todos repetiram:
VERGONHA!
O de cabelo crespo franziu as sobrancelhas.
— Vocês não sabem de nada! Anjos de terceira categoria! Calem a boca e deixem que
eu conto.
— Continue — disse Galahad.
— Aqueles sete cavaleiros eram os sete pecados capitais 13. Os que reinam sobre o
comportamento dos homens quando eles não escutam Deus. Você os venceu. E, como eles
também eram os Sete Anjos Negros de Lúcifer, isso quer dizer que você venceu o Diabo.
Galahad balançou a cabeça muito tempo, refletindo.
— E quem — perguntou finalmente — são as sete moças que eram salgueiros na beira
do rio?
Os meninos trocaram novamente olhares. Finalmente, foi o anjo louro que respondeu.
— A tentação.
— A tentação?
— Sim, exatamente — disse o menino moreno de olhos azuis. — Quando elas não
eram árvores, eram como?
— Não sei... Moças?
— Provavelmente — disse, impaciente, o de cabelo crespo. — Mas, moças como?
Galahad refletiu por um instante. Depois deu de ombros.
— Sedutoras — respondeu.
Os meninos caíram na gargalhada.
— Qual é a graça? — perguntou Galahad.
— Você é mais “anjo” do que nós! — exclamou o menino ruivo.
— Ora! — prosseguiu o menino de olhos apertados. — Você não viu? Elas estavam
nuas!
Nova explosão de riso geral. Vexado, Galahad perguntou:
— É tão cômico assim que eu não tenha percebido?
— É que você resistiu à maior das tentações — disse sentenciosamente o garoto
marrom-escuro.
Galahad estalou os dedos, como que tomado por uma iluminação:
— E então, a nudez delas... Era também uma armadilha?
— Na qual você não caiu. Parabéns.

13
sete pecados capitais: a Avareza, a Cólera, a Inveja, a Gula, a Luxúria, o Orgulho e a Preguiça. Foi
Santo Agostinho que fez a lista dos pecados capitais. São chamados de “capitais” não por serem os
mais graves, mas por estarem na origem de todos os outros. Eles são sete, porque o 7, número
perfeito e símbolo da abundância divina, é também, segundo a Bíblia, o número do castigo, da
purificação e da penitência. É também o número do Diabo, que se esforça para copiar Deus: a besta
infernal do Apocalipse tem sete cabeças.
50
Caíram todos na gargalhada de novo.
— Bem — disse Galahad, sentindo-se um pouco idiota. — E agora?
O de cabelo crespo estendeu o indicador para a porta do castelo.
— Agora, vá embora. Pegue o caminho da direita. E siga em frente.
— E...
Galahad não pôde dizer mais nada. Sob seus olhos estupefatos, asas cresceram sobre
as frágeis omoplatas dos meninos, e, numa última explosão de riso, eles voaram,
desaparecendo por trás do torreão.
Ele ficou um momento ali, no pátio daquele castelo deserto, rememorando o que
acabara de escutar. Depois, subiu a sela.
Ia sair do pátio quando sentiu, naquele dia de junho, um vento glacial lhe roçar os
ombros. Virando-se de repente, percebeu uma grande sombra desaparecendo na parede da
muralha do Leste.
O Inimigo. Lúcifer e seus demônios.
A sombra ressurgiu, cobrindo-o um instante com sua asa gelada, depois atravessou
novamente o pátio. Mal alcançou a muralha do Oeste, ela voou novamente, como um
pássaro da noite, em direção ao outro lado do castelo.
Galahad não se mexeu mais. Apertou as abas de sua capa em volta dos ombros;
estava com frio. A sombra passou assim outras cinco vezes. Depois se desvaneceu.
Sete.
Sete vezes a sombra passou.
Seus anjos maus talvez tivessem sido derrotados, mas não o chefe deles.
Galahad levantou os olhos para o céu claro e gritou, como um desafio:
— Por Cristo, a vida!
Golpeou com os calcanhares o flanco de seu cavalo. Lentamente, calmamente,
afrontosamente, o rocim e seu cavaleiro deixaram o recinto do castelo dos Sete.

51
2
A Encruzilhada dos Caminhos

— O futuro! Você não sabe! VOCÊ NÃO SABE DE NADA!


— Chega — grunhiu Lancelot. — Paremos por aqui. Eles seguiam há três dias uma
estrada serpenteando entre as florestas. Tinham visto ao longe a silhueta de um castelo que,
apesar da claridade do céu de junho, parecia recoberto por uma sombra imensa e negra.
“Vamos nos manter no nosso caminho”, dissera Lancelot. “Tudo que nos parece estranho ou
enigmático não é para nós.”
Aguingueron jamais poria em dúvida uma ordem — ou um simples desejo — de
Lancelot. Quanto a Perceval, apenas cochilava, a maior parte do tempo, em cima do cavalo.
Era impossível arrancar dele a menor frase coerente.
Salvo nos momentos, imprevisíveis, em que começava a esbravejar:
— O futuro! Você não sabe! Você não sabe de nada!
Aguingueron reteve a montaria de Perceval. Lancelot fez seu cavalo se aproximar.
— Segure-o. Domine-o, pelo Sangue de Cristo! Ele me enerva.
O gigante, para quem tocar no seu amo era pior do que uma injúria, replicou:
— Não fique nervoso, Sire Lancelot. Ele vai se calar. Logo. Eu lhe garanto. Logo...
Exasperado, Lancelot puxou a espada e bateu com o lado da lâmina no ombro de
Aguingueron.
— Você vai me obedecer, não?
— Senhor...
— Se não me obedecer, vai voltar imediatamente para Beau Repaire. Não preciso de
você.
Aguingueron baixou humildemente a cabeça.
— Mas, ele, o meu amo, sim... Ele precisa de nós... Do senhor.
— Então, amarre-o no cavalo. E amordace-o. Não suporto mais seus gritos.
— Senhor...
— VOCÊ NÃO SABE! — berrou então Perceval.
Com uma careta, Lancelot afastou seu cavalo e disse, secamente:
— Obedeça, Aguingueron. Faça-nos este favor.

Uma hora mais tarde, os três homens chegaram a um cruzamento. O caminho se


dividia em dois: uma estrada para o nordeste, a outra para o noroeste. No ponto que
separava as duas estradas possíveis, um mendigo estava sentado no chão, de cócoras, um
manto marrom e sujo sobre as costas. Um capuz escondia seu rosto. Lancelot gritou-lhe:
— Ei! Você! Ei!
O mendigo ergueu lentamente o rosto. Lancelot fez menção de recuar: o homem, muito
velho, de rosto marcado por mil rugas, a pele acinzentada, fixou sobre ele uns olhos
vermelhos como brasa.
52
— Quem é você, você que está me interpelando?
A voz do velho mendigo era ao mesmo tempo profunda e murmurante. Um murmúrio
que parecia a Lancelot se insinuar dentro do seu ouvido, como se o homem tivesse colado
nele os lábios.
— Um viajante — replicou. — Você teria visto passar um jovem cavaleiro,
recentemente? Sabe que estrada ele tomou?
O velho se ergueu com uma agilidade surpreendente. Com um amplo movimento dos
braços, recolocou no lugar o manto — cujas dobras caíram sobre ele como se fosse um traje
real. Baixou o capuz. Seu crânio era calvo. Brilhante e cinzento como uma pedra polida.
Entre suas pálpebras, via-se apenas uma vermelhidão, como um fogo interior.
— Quem é você? — repetiu.
Então Lancelot percebeu que, embora escutasse a voz murmurando no seu ouvido, os
lábios do velho permaneciam fechados e imóveis.
— E você? — perguntou.
— O barqueiro14. Eu indico a quem me pede o caminho que deve tomar.
— Estou pedindo.
— Você é um simples viajante ou é um cavaleiro?
— Se você tivesse olhos para ver, não faria essa pergunta! Trate de me indicar o
caminho, está me deixando impaciente!
O velho balançou mansamente a cabeça e fechou os olhos.
— Você tem o tom e o orgulho de um cavaleiro — disse finalmente, sem que seus
lábios se mexessem. — Então me escute.
Estendeu os braços em cruz, revelando, na ponta das grandes mangas de seu manto,
mãos descarnadas como garras, cinzentas.
— Cavaleiro errante — enunciou com uma voz grave que não era a sua —, eis duas
estradas que se oferecem a você. Há uma que não deve ser tomada. Ninguém consegue
chegar ao seu término se não for virtuoso e digno cavaleiro.
Aguingueron, nervoso, agitava-se sobre seu cavalo.
— Senhor — disse — esse... boneco que fala sem abrir a boca... essa voz dentro da
minha cabeça... Acredite-me, deveríamos desistir...
— Cale-se! — disse Lancelot secamente.
— Cavaleiro errante — prosseguiu o ancião —, se escolher o caminho da esquerda,
saiba que não lhe será fácil superar as dificuldades, pois logo será posto à prova.
Ditas essas palavras, o mendigo levantou as pálpebras. Seus olhos não mais faiscavam
como um fogo se extinguindo, mas simplesmente tinham se tornado novamente os de um
mendigo qualquer, lacrimosos e cansados. Ele abriu bruscamente a boca, como que a
procura de um pouco de ar, vacilou, cambaleou e desabou sobre as nádegas. Aparvalhado,
olhou um a um os três cavaleiros: Lancelot, o gigante Aguingueron e Perceval, amarrado e
amordaçado em sua montaria. Ele umedeceu os lábios.
— Ah, bem... Senhores... Não teriam uma moedinha?
Aguingueron esfregou os olhos, as maçãs do rosto, depois as bochechas.

14
Referência a Caronte, personagem da mitologia grega que transportava em seu barco as almas
rumo ao Hades, o reino dos mortos. (N.T.)
53
— Evidentemente — resmungou com fatalismo. — Era um sortilégio...
— Tanto melhor — recomeçou a andar Lancelot. — Eis a prova de que estamos no
caminho certo.
Aguingueron suspirou.
— Sim, Senhor! Mas qual, ao certo? A direita ou à esquerda?
Lancelot encolheu os ombros com desprezo.
— Você não o ouviu? A esquerda é a das provas difíceis. Portanto, é a estrada certa.
Vamos!
Fez seu cavalo avançar pelo caminho da esquerda.
— Espere, Senhor! — disse Aguingueron. — Isso quer dizer que o caminho da direita é
o mais fácil?
— Evidentemente! É por isso que vamos pegar o outro!
— Desculpe-me, Senhor, mas não estou entendendo... Imagino que tenhamos que
andar depressa...? Não? ... Por que se lançar no caminho mais difícil, portanto — presumo
— o mais lento?
— Porque eu sou cavaleiro! Porque eu sou Lancelot! Porque eu sou eu! E porque o
caminho de um cavaleiro, o caminho de Lancelot, o meu caminho e necessariamente
calçado de provas! Não vê que é lógico?
— Lógica mais esquisita — murmurou Aguingueron.
— O quê?
— Há? Nada, Senhor. Nós... Nós o seguimos.
O gigante, puxando pela brida o cavalo sobre o qual seu amo Perceval estava
amarrado, tomou, de má vontade, a estrada que Lancelot escolhera. Enquanto cruzava com
o velho mendigo, este, de repente, ergueu os braços para o céu; seus olhos se
avermelharam. E uma voz murmurou nos ouvidos de Aguingueron e de Lancelot:
— Ah... O orgulho... O orgulho... O orgulho...

+++
Uma hora mais tarde, Galahad se apresentou na mesma encruzilhada. O mesmo velho
mendigo estava lá, sentado, no ângulo das duas estradas. Quando Galahad se aproximou,
observando-o com curiosidade, ele se levantou, fez voarem as mangas de seu manto, e seus
olhos se tornaram vermelhos como brasa.
— Quem é você, você que está me interpelando?
Surpreso com aquela voz que lhe murmurava no ouvido, Galahad sacudiu com força a
cabeça, como quem espanta um mosquito e seu zumbido.
— Ora! — disse ele, rindo. — Quem é você que... na verdade, nem cheguei a
interpelar?
— O barqueiro. Eu indico a quem me pede o caminho que deve tomar.
— Muito bem, você vem a calhar. Indique-me: a direita ou à esquerda?
— Você é um simples viajante ou é um cavaleiro?
— Ah, é cego! Você escuta o que lhe falo? Quem acredita que eu seja?
— Você tem o tom e o orgulho de um cavaleiro. Então me escute.
— Acertou.

54
— Cavaleiro errante, eis duas estradas que se oferecem a você. Há uma que não deve
ser tomada. Ninguém consegue chegar ao seu término se não for virtuoso e digno cavaleiro.
Se escolher o caminho da esquerda, saiba que não lhe será fácil superar as dificuldades,
pois logo será posto à prova.
Galahad apoiou os cotovelos no pescoço do cavalo, refletindo.
— Portanto — disse finalmente —, no caminho da esquerda, deverei vencer muitos
adversários?
— Ah... O orgulho...
— E no caminho da direita, o que vai me acontecer?
A essa simples pergunta, o velho mendigo começou a crescer, crescer, crescer... O
cavalo de Galahad teve medo, mas não seu cavaleiro, que o dominou e ficou ali, assistindo
ao que aconteceria em seguida.
Aconteceu que o mendigo, quando ficou mais alto e mais largo do que dois homens,
desabou de repente sobre si mesmo, como uma bola cheia de ar picada por um alfinete.
E, com uma voz ao mesmo tempo moribunda e estridente, o velho começou a guinchar,
enquanto se abatia sobre si mesmo:
— À direita... À direita... À direita! Ele não deve seguir à direita!
Foi, entretanto, o que fez, na mesma hora, Galahad. Ele escutou um último grito:
— À direita não!
Depois um suspiro muito, muito longo.
Ele não se voltou.

55
3
Encontros Com o Diabo

Durante dias, o caminho seguido por Galahad passou tranqüilamente ora ao longo de
vales avermelhados pelas papoulas, ora através de bosques de carvalhos onde caía uma
doce luz filtrada pelas folhagens. Ele não encontrou ninguém. Nenhum saxão, nenhum grupo
de bandidos, mas também nenhuma cidadezinha, nem casa, nem castelo. Parecia-lhe estar
percorrendo uma região anterior ao tempo dos homens.
A caça era abundante e sem temor. Cervos, perdizes, lebres, nenhum animal fugia à
sua aproximação. E, como era preciso se alimentar, acontecia-lhe de matar mais de um, mas
nunca tinha a impressão de caçá-los. Eles estavam ali, numerosos, e, mesmo que uma
flecha abatesse um deles, os outros não se mexiam.
Pensou no que lhe tinham dito os sete anjinhos: o Paraíso terrestre. Mas ainda assim
tinha dificuldade em acreditar que, através de sabe-se lá qual prodígio — ou simplesmente
pela escolha que fizera da estrada da direita da encruzilhada —, ele tivesse entrado lá. Não,
era ao mesmo tempo mais simples e mais complicado do que isso. Tinha a ver com a Busca
do Graal e sua eleição de “melhor cavaleiro do mundo”. A estrada em direção a seu objetivo
supremo se abria larga e calma diante dele.
Essa idéia, contudo, o decepcionava um pouco: se seu caminho prosseguisse assim,
ele não teria que exibir suas qualidades de coragem, de proeza e de habilidade. Não gostava
de imaginar que sua vitória seria assim tão fácil.
Estava errado em se preocupar.

Na tarde do sétimo dia, ele encontrou uma longa e alta muralha barrando o horizonte de
leste a oeste. Quando chegou suficientemente perto, percebeu que ela havia sido deixada ao
abandono há muito tempo. Algumas partes do muro estavam parcialmente demolidas. Ervas
daninhas cresciam entre as pedras. Nenhuma sentinela circulava por trás das seteiras roídas
por um musgo cinzento.
Soube que tinha alcançado a metade de seu percurso.
Durante sua infância, no convento onde o haviam educado as freiras e a madre
superiora, Galahad havia sido educado para se tornar quem ele deveria ser. Aprendera a ler
e a contar, claro, aprendera o manuseio do bastão, depois o da espada, da lança e da maça
de armas; aprendera a montar e a dominar um cavalo. Também aprendera certos segredos,
que deviam lhe permitir lutar vitoriosamente contra as magias negras e brancas do Antigo
Mundo, o de Merlin, Vivian e Morgana, o dos druidas, dos magos e dos feiticeiros. Tinha
também estudado, sobre um grande pergaminho de magníficas iluminuras, o mapa dos
reinos de Logres, de Gales, da Escócia e da Irlanda. A madre superiora lhe dissera: “Você
deve conhecer este mapa melhor do que as linhas da palma das suas mãos, melhor ainda do
que os traços do seu rosto. Este mapa é um espelho. Graças a ele, você se reconhecerá nas
ilhas de nossos reinos como você se reconhece quando se inclina na direção do seu próprio
56
reflexo na água.” E acrescentara: “Você foi Eleito pela Providência, mas isso não basta: tem
que merecer sua eleição, deve trabalhar e aprender. Desses reinos, um dia, se Deus quiser e
se você seguir fielmente Suas vias, você será o salvador e o rei.”
Foi, portanto, sem especial emoção que Galahad caminhou ao longo da alta e estranha
muralha até descobrir uma passagem que lhe permitisse atravessá-la. Pois aquela muralha,
para ele, nada tinha de estranha: era, ele soubera ao estudar o pergaminho do mapa, o que
se chamava de Muro de Adrien. Uma longa muralha elevada séculos antes por antigos
invasores, que eram chamados de “romanos”, e destinada a proteger a Inglaterra das
incursões selvagens das tribos caledonianas que viviam ao norte. Galahad sabia também
que, atravessada aquela muralha, entraria em um mundo desconhecido.
Inclinou-se sobre o pescoço do cavalo e lhe acariciou o focinho.
— Vamos — disse. — Ainda falta percorrer metade do caminho.

+++
Depois do Muro de Adrien, a paisagem mudou. Aos vales verdejantes e às florestas de
carvalhos sucederam largas extensões planas de charneca e fragmentos de pedra. Depois,
um dia de caminhada mais tarde, elevaram-se colinas sem árvores, onde soprava um vento
surpreendentemente frio, apesar do verão.
Galahad avançava. Escalava encostas às vezes escarpadas de montes caledonianos.
Tornava a descer em direção ao que se parecia com vales, porém estreitos, de difícil acesso,
onde se agitavam córregos gelados como torrentes.
Foi ao transpor um deles que de repente o cavalo tropeçou. Apesar de toda a sua
ciência de cavaleiro, Galahad não conseguiu impedir sua queda. Caíram pesadamente. O
jovem cavaleiro rolou entre as urzes e as pedras, que lhe arranharam o rosto. Quando se
levantou, compreendeu na hora que o acidente era grave. O cavalo, estendido sobre o
flanco, relinchando de dor, tentava em vão se erguer.
Galahad, ajoelhando-se perto dele, falou-lhe baixinho ao ouvido. O cavalo se acalmou.
O jovem cavaleiro examinou cada uma de suas pernas e teve que se render às evidências: a
dianteira direita tinha se partido na queda.
O cavalo não andaria nunca mais. Um cavalo que não anda mais é simplesmente um
fantasma de cavalo. Galahad ficou ali, por um momento, cheio de tristeza. Sabia o que lhe
restava fazer, mas sua ligação com aquele companheiro que o havia carregado durante
semanas o impedia de agir imediatamente, com frieza. Ergueu-se, olhando à sua volta: havia
apenas a charneca, a terra árida, e um vento que turbilhonava, invisível, porém presente, em
volta deles. Tirou o punhal do cinto. Acocorou-se junto da cabeça do seu cavalo. Com a mão
esquerda, acariciou-lhe ternamente as narinas.
— Perdoe-me. Mas devemos nos separar.
O cavalo descansou a cabeça no mato, como se tivesse compreendido, como se
tivesse se resignado com o inelutável. Galahad respirou profundamente, depois, com um
gesto rápido e preciso, enfiou a lâmina do punhal no pescoço do animal. Cortou
profundamente sua garganta.
Alguns instantes mais tarde, o cavalo estava morto. O sangue que escorria aos
borbotões de seu pescoço avermelhava a charneca. Galahad, com um movimento de raiva,

57
atirou o punhal dentro da água trepidante do córrego. Em seguida, recolheu o escudo,
pendurou-o no pescoço, recuperou seu arco e as flechas na bolsa do cavalo morto e, com
lágrimas nos olhos, recomeçou a andar, a pé, em direção ao norte.

+++
Caminhou durante muito tempo. À noite, naquele fim de mês de junho, caía tarde. Mas,
apesar do cansaço, não quisera fazer uma parada mais cedo. Detestava aquela paisagem
sempre igual, aquele vento que não parava de açoitá-lo, e esperava, contra toda lógica,
chegar a um lugar menos difícil, algum vale coberto de plantas carnudas ou entre as árvores
tranqüilizadoras de uma floresta.
Com a noite, ele teve que parar. A lua se escondia por trás de grossas nuvens: ele não
enxergava mais do que cinco passos adiante. Deu-se conta então de que, inteiramente
tomado pelo sofrimento de ter perdido sua montaria, se esquecera de caçar. Não tinha nada
para comer.
Em um córrego lavou o rosto e as mãos, depois bebeu longamente para enganar a
fome. Estendeu-se na charneca. E bem depressa adormeceu.
Um sonho tomou conta imediatamente de seu sono.
Ele está em uma aldeia devastada por um incêndio. Todas as casas se queimaram. De
pé só restam ruínas enegrecidas. Ele erra pelas ruas, à procura de alguém, um sobrevivente.
Não encontra ninguém.
A aldeia foi construída sobre uma colina. As casas — suas ruínas, de agora em diante
— elevam-se nas encostas. No cume, ele descobre uma herdade. Pequeno castelo sem
torreão, que o incêndio parece ter poupado. A ponte levadiça está baixada sobre o fosso.
Galahad, no seu sonho, dirige-se para lá.
Quando alcança a entrada dessa passarela, nota à sua direita a longa pedra de uma
tumba. Aproxima-se. Uma voz, gemendo, distorcida, sai de dentro dela: “Liberte-me”, ela
geme, “liberte-me...”
Galahad inclina-se para a frente. Desliza os dedos sob a pedra da tumba. Ela é tão
pesada que quatro homens não poderiam fazê-la deslizar. Contudo, ele a suspende sem
esforço — ela não lhe parece pesar mais do que uma pluma. Ele à solta de lado, abrindo a
tumba.
Uma sombra jorra de lá. De negra que era a princípio, ela passa a dourada. Ela brilha
na noite, como um metal na forja. Tem forma humana. De seu ventre corre sangue, de um
vermelho luminoso.
— Quem é você? — pergunta-lhe Galahad.
— Primeiro me informe quem você é — replica-lhe o espectro de ouro.
Galahad vê então no fundo da tumba um caixão cuja tampa traz uma inscrição
reluzente em letras de prata. Ele lê:
“Aqui repousará um leopardo
Que engendrou um leão...”
Ele ergue os olhos. O espectro dourado se atira sobre ele. Uma mandíbula de dentes
parecidos com adagas de aço se abre para degolá-lo. Surpreso, Galahad afasta os braços.
Com um grito de despeito, o espectro fecha as mandíbulas e recua.

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— Anjos o cercam e o protegem — ele profere. — Eu esperarei. Esperarei o dia em que
você tiver cometido a falta após a qual eles o abandonarão.
— Quem é você?
— Mordred! Meu nome é Mordred!
— Você está morto!
— Pois saiba que alguns mortos voltam de Avalon: eles só precisam querer!
O espectro coloca a mão sobre a ferida de seu ventre, como que para conter o sangue
que corre sem cessar.
— Lancelot cometeu a falta! Perceval cometeu a falta! Você vai fazer a mesma coisa...
Eu espero... Eu espero...

Galahad despertou com um sobressalto. Estava suando. Contudo, na madrugada


cinzenta das charnecas escocesas, fazia frio. Ergueu-se, esfregando o rosto.
Quando afastou as mãos, viu, a alguns passos de onde estava, um magnífico cavalo de
batalha negro bebendo no córrego.
Era a primeira vez que tinha a oportunidade de admirar um cavalo tão bonito, tão nobre.
Sob o pêlo de um negro tão negro que a luz nascente da aurora fazia vibrar reflexos azuis,
os músculos das pernas, dos flancos e do peitoral eram tensos como linhas de força.
Galahad foi até a beira do córrego, aspergiu o rosto com a água para expulsar as últimas
imagens do seu sonho — seu pesadelo? — e se aproximou do cavalo. Tocou-lhe o flanco.
O cavalo espantou-se, mas sem se afastar. Pareceu apreciar a carícia de Galahad em
seu pescoço.
— E então — disse ele —, quem foi que me enviou você?
O animal esfregou amistosamente as narinas no ombro do jovem cavaleiro.
— Não se trata de um inimigo, parece.
Galahad foi recolher suas armas, pendurou o escudo no pescoço, passou o arco e a
aljava sobre o ombro e cingiu a espada.
— Bem — disse ao cavalo preto, aproximando-se dele —, você não tem sela nem
brida, mas creio que vamos nos entender bem, você e eu.
Colocou as duas mãos sobre o garrote do animal.
— Ainda temos um bocado de caminho a percorrer. Com um impulso, saltou sobre as
costas do cavalo. Que, imediatamente, empinou. Galahad só teve tempo de agarrá-lo pela
crina para não cair.
— Upa!
Nenhum grito, nenhuma ordem servia para nada. O cavalo levantou de repente a
cabeça para o céu — e então Galahad viu seus olhos, que eram vermelhos como o fogo.
Sentiu os flancos do cavalo vibrarem entre suas pernas, como uma força que ele não podia
domar.
E o cavalo negro partiu a galope.
Galahad nunca experimentara uma sensação como aquela, de poder. Agarrava-se
como podia à longa crina. E, enquanto sua montaria de olhos de fogo transpunha os
córregos e atravessava a charneca como um cavalo selvagem, um cavalo louco, ele não
tinha mais do que um único pensamento na cabeça: não cair.

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Mas caiu.
No limite da charneca, um lago surgiu. Um lago de águas negras como a noite. Dentro
do qual o cavalo mergulhou, negro como a água era negra.
Galahad sufocou. Abriu os olhos: não via nada. Teve a presença de espírito de largar a
crina do cavalo. Viu-se então flutuando entre duas águas — ou melhor: lentamente,
irresistivelmente atraído para o fundo, de tanto que pesavam suas armas.
Vou me afogar.
Livrou-se do arco e da aljava e desfez-se da cota de malha. Estava cada vez mais leve,
mas continuava a afundar na direção do fundo do lago.
Dentro de suas águas negras, cegas.
Uma única solução: abandonar também... o quê? Sua espada, Excalibur, ou seu
escudo, o de José de Arimatéia? Os dois? Mas então ficaria nu, sem mais armas para
completar a Busca...
O ar lhe faltava.
Vou me afogar... Estou me afogando...
O escudo de José?... A espada de Arthur?
Desesperado, passou-lhe pela cabeça que era melhor afogar-se do que abandonar
suas armas. Com os pulmões privados de ar, começou a sufocar.
Como tomou a decisão? Não saberia jamais. Ela se fez sozinha. Sentia, quase
inconsciente, que estava mergulhando cada vez mais fundo no lago negro. Sua mão,
apertada no punho de Excalibur, arrancou-a de sua bainha e brandiu-a. Num último esforço,
ele estendeu o braço para a superfície do lago — o céu.
A espada teve uma espécie de sobressalto na sua mão. Simultaneamente, uma onda
percorreu-lhe o braço, alcançando-o em pleno peito.
Ele perdeu a consciência.

Quando acordou, jazia sobre a margem do lago. Excalibur, pousada do seu lado,
cintilava suavemente. Ele abriu toda a boca e aspirou um bocado de ar, enorme.
Era bom... Respirar. Simplesmente respirar...
Pouco depois, virou de lado. Vomitou o que lhe pareceu tonéis e tonéis de água.
Pouco importava: estava vivo. Salvo por sua espada — forjada, há séculos e séculos,
pelas Fadas da Água.
Tentou ficar de pé, despencou. Vomitou mais uma vez — um pouco de saliva.
Desmaiou.

+++
A noite caía. Um vento fresco descia do Norte, poderoso, regular. Galahad recobrou a
consciência.
Levantou-se penosamente. A cabeça ainda girava. As pernas mal o sustentavam. Isso
o deixou furioso. Seu corpo de jovem, aguerrido em todas as provas, nunca o havia traído
desse jeito. Jamais sentira uma fraqueza assim.
Sacudiu-se como um cachorro. Uma aparência de vigor voltou-lhe aos membros, ao

60
coração. Sentiu-se nu: não tinha mais espada nem escudo. Com uma espécie de angústia,
examinou com os olhos a charneca à sua volta, tornando-se violeta devido ao sol poente.
Avistou Excalibur, largada a alguns passos. E o escudo de José, um pouco mais longe. Com
alívio, recolocou a espada na bainha e pendurou de novo o escudo no pescoço.
Deu-se conta então de que estava com frio. Estava tremendo. Suas roupas não tinham
secado. O lago estava alguns passos atrás dele, com suas águas mais escuras do que uma
noite sem estrelas. Deu alguns passos para se afastar e subir de novo a encosta.
Ali, percebeu a sombra alta e inquietante de um castelo. Era um castelo como ele
nunca tinha visto antes. Todo de torres estreitas, de alturas diferentes, recortadas em forma
de ameias. Ele contou sete dessas torres. Apertadas umas contra as outras a ponto de
parecer não existir nenhuma muralha. A leste, em uma orgia de vermelho cor de sangue, o
sol desaparecia.
Galahad tomou o caminho do castelo.
Alcançou-o em pouco tempo e verificou que de fato não estava cercado por nenhuma
muralha. Compunha-se simplesmente daquelas sete torres desiguais. Também não havia
fosso. Não havia obstáculos, defesas a transpor. Galahad se viu diante da porta da primeira
das torres, a mais central, a mais elevada. Empurrou o batente.
No interior, uma luz suave, de um amarelo dourado, clareava uma grande sala sem
móveis e sem ornamentos. Entrou, com um passo hesitante. À esquerda, uma lareira
suficientemente larga para caber um espeto com três javalis, na qual crepitavam belas
chamas. De um lado e do outro da lareira, duas figuras estavam esculpidas, de um homem e
de uma mulher, pareceu-lhe — mas talvez fossem dois pássaros noturnos, duas aves de
rapina. O artista que as havia cinzelado na pedra tinha feito tão bem seu trabalho que era
difícil decidir-se por uma aparência ou por outra. Seres humanos? Monstruosas corujas?
Impossível determinar.
— Boa-noite, cavaleiro.
Galahad virou-se de repente para a voz que acabara de interpelá-lo às suas costas.
Descobriu uma moça que vinha ao seu encontro. Não compreendeu por que não a tinha visto
assim que entrara na sala.
Depois, não se perguntou mais nada.
Pois ela lhe pareceu de uma incrível beleza. Descrevê-la com palavras não lhe
prestaria homenagem à altura do que a vista captava com um único olhar. Loura, seus
cabelos pareciam ouro misturado aos tons ensolarados do trigo maduro. Olhar altivo, mas
zombeteiro e sério. Os olhos verdes, risonhos, amendoados. O nariz tão reto e tão delicado
de proporções que um ínfimo movimento em falso do escultor divino que o havia formado
teria podido quebrá-lo. A tez era branca e perfeita, e as maçãs do rosto sombreadas de um
tom de rosa que as realçava. Finalmente, um corpo esguio e ágil num leve vestido que não
chegava a dissimular as curvas do peito e dos quadris.
— O senhor deve estar exausto, depois de uma viagem tão longa — ela lhe disse com
uma voz que combinava perfeitamente com sua beleza.
Caminhou até ele e envolveu seus ombros com um manto de seda branca. Contudo,
ele pensou vagamente, ainda há pouco ela não tinha nada nas mãos... Ela retirou o escudo
que ele carregava no pescoço e o encostou numa parede.

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Roçou-lhe o braço.
— Venha. Precisa recuperar as forças.
Conduziu-o na direção do fogo, onde ele viu dois assentos, uma mesa e, sobre a mesa,
uma refeição completa com caça, carnes e vinhos. Tudo aquilo tinha aparecido? Ou ele
estava tão fraco ao entrar na torre que não tinha visto na hora? Para esta pergunta, ele não
procurou mais a resposta por muito tempo. Deixou-se guiar até uma das cadeiras e, quando
ela lhe roçou o ombro, murmurando: “Jante, belo cavaleiro”, ele se sentou.
O calor do fogo lhe fez bem. Suas roupas molhadas secaram em um instante. A moça
instalou-se na outra cadeira, na frente dele. Ele tinha dificuldade em não devorá-la com os
olhos, de tão bela que ela era. Ela lhe sorriu como quem sorri para um amigo de longa data,
e despejou um vinho escuro no seu copo.
— Beba, cavaleiro. Vai se sentir melhor.
Ele obedeceu, sem desviar o olhar dela. Com efeito, o vinho pareceu correr
imediatamente em suas veias, aqueceu-o e acalmou-o. Ele estendeu a mão para um faisão
assado, arrancou a coxa e a asa e enfiou-lhes os dentes com prazer. Balançando a cabeça,
a moça o aprovava, o encorajava.
— Quem é a senhorita? — perguntou ele.
— A dama deste castelo. Sua anfitriã.
— Está sozinha aqui?
— A maior parte do tempo.
— Não tem medo? Sem muralhas nem guarnição para protegê-la?
Ela riu.
— Do que eu teria medo? Do senhor, cavaleiro?
— A senhorita não sabe quem eu sou.
— O senhor é quem é. E eu sou quem sou. Em seguida, nos apresentaremos.
Ela lhe serviu outro copo de vinho. Ele enxugou os lábios com as costas da mão e
bebeu, até a última gota. Depois disso, sentiu-se ainda de melhor humor.
— Meu nome é Galahad — disse. — E o seu?
Sorridente, os olhos verdes faiscando, ela brandiu o indicador diante da boca, pequena,
vermelha e fresca como uma cereja.
— Psiu... Para que ficar dando nomes? Para mim o senhor está aqui, na minha frente, e
isso basta.
A voz da moça tinha tanta doçura, nobreza e persuasão que ele se julgou um tosco por
ter ousado perguntar seu nome. Como ela lhe servia mais um copo de vinho, ele bebeu.
— Quantas vezes lhe disseram que é bela? — perguntou. — Todos os senhores da
região devem querer desposá-la!
— A região, cavaleiro, é bastante deserta. E, de todo modo, eu não me caso.
Ele riu, descobrindo no fundo de si mesmo um sentimento que até então nunca tinha
experimentado: a vaidade. Mergulhou os lábios no novo copo de vinho que ela acabara de
completar.
— É que a senhorita ainda não tinha me encontrado — disse.
— Talvez — ela respondeu, sorrindo com graça e inclinando a jarra de vinho para o
copo já vazio.

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Galahad segurou-o e bebeu-o de um único trago. Uma estranha euforia percorreu-lhe o
corpo. Sentia-se pronto para todas as loucuras e, ao mesmo tempo, não pensava em mais
nada a não ser naquela mulher muito bonita que estava diante dele; esquecera quem ele era,
o porquê de haver percorrido todo aquele caminho até o castelo, qual era sua missão. Estava
abobalhado de tão feliz, abobalhado de tão bêbado e quase já apaixonado.
— A senhorita se casaria comigo? — perguntou.
Ela deu levemente de ombros, inclinando adoravelmente a cabeça para o lado.
— O senhor é bonito. É cavaleiro... Por que não?
Essa resposta bastou à novíssima vaidade de Galahad. Ele se levantou de repente — a
cabeça rodava um pouco — e estendeu a mão à moça.
— Nós agradamos um ao outro — disse. — Seria uma pena nos deixarmos sem...
A moça observou a mão estendida, sem pegá-la, e ergueu as sobrancelhas:
— Sem o quê?
— Sem que tenhamos nos apresentado.
Ela pareceu refletir. Serviu-lhe um novo copo de vinho.
— O senhor mal comeu. Beba, ao menos.
— Com prazer.
Galahad segurou o copo, ergueu-o: “À senhorita!” e bebeu. Ao colocá-lo sobre a mesa,
desajeitadamente, ele se quebrou. A moça tomou-lhe a mão.
— Venha — ela murmurou. — Vamos nos conhecer.
Pôs-se a conduzi-lo. Subiram uma escada em caracol. Ela não largava a mão dele.
Era a escada? Seu desejo por ela? A bebida vermelha escura que ela o havia feito
beber e que ele havia provado pela primeira vez? Atordoado, ele vacilava.
De repente, um corredor se abriu no alto da escada. A moça começou a correr, sempre
levando-o. Empurrou uma porta: estavam em um quarto onde um grande leito de baldaquim
ocupava a maior parte do espaço.
Ela o tomou nos braços. Ele nunca tinha sentido a presença e o calor de um corpo
feminino contra o seu. Sensação que o atordoou mais ainda. Inclinou o rosto sobre ela, quis
lhe dar um beijo. Ela virou a cabeça.
— Espere — sussurrou. — Primeiro você precisa tirar sua espada...
— Sim... Sim, tem razão...
Ele se afastou. Ia retirar o cinto onde a espada batia, quando, impaciente, ela encostou
seus dedos ali.
— Espere... Vou retirá-la para você...
Subitamente, ele ouviu uma voz de criança no seu ouvido — a voz de um menino, ou
de um anjo.
— Você está bêbado e é bobo... Não se deixe enganar!
Ele sobressaltou-se.
— Quem falou?
Ele recuou. Soltou-se. O quarto, em torno dele, começou a turbilhonar. E a mudar de
aspecto: o magnífico leito de baldaquim se transformou numa pavorosa enxerga fervilhando
de baratas; as paredes do quarto, em pedras em ruínas. E a bela jovem, quando a olhou
enquanto ela tentava retirar-lhe a espada, em uma imensa ave de rapina noturna, coruja de

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olhos móveis e amarelos, de nariz adunco. A visão do horror durou apenas um instante.
Ele soltou um grito de terror. Jogou-se para trás.
— A sua espada! — murmurou-lhe a voz de criança, ou de anjo.
Ele segurou Excalibur pela empunhadura. Tirou-a da bainha. Brandiu-a diante de si.
Diante de si e na frente da bela moça.
Foi como se ele tivesse lhe aplicado um golpe violento. Ela pulou para trás. Seu sorriso
— tão atraente — se transformou em um esgar atroz. Seus cabelos, finos e dourados,
estalaram como um estandarte — e se metamorfosearam em um ninho de serpentes, de
víboras e de áspides assoviando de raiva. Os olhos, de um verde tão sedutor, ficaram
amarelos. O nariz, tão delicado, se tornou um bico.
Em pânico — e ainda bêbado—, Galahad recuou, estremeceu, caiu sentado. Diante
dele, a mulher mudava de rosto de um instante para o outro.
O primeiro — o agradável, o bonito — lhe dizia:
— Você me ama, cavaleiro...
O segundo — a cabeça de ave de rapina noturna:
— Você vai morrer...
E, ao seu ouvido, a vozinha de criança ou de anjo repetia:
— Sua espada, sua espada!
Então Galahad compreendeu: encostou-se na parede, segurou Excalibur afastada do
punho — seus dedos, retalhados, começaram a sangrar ao tocarem a lâmina — e a brandiu
da maneira como ela o protegia: representando uma cruz. A cruz do suplício de Cristo para
salvar os homens.
A jovem, a coruja — o monstro —, soltou um uivo dilacerante. Agitando a cabeça em
todos os sentidos, procurava um modo de poder escapar daquela cruz formada pela
empunhadura da espada. Não havia escapatória.
A mulher-ave-de-rapina incendiou-se de repente. Mesmo se atirando contra todos os
cantos do quarto, não conseguiu escapar ao fogo que nascia de si mesma, ou seja, de sua
própria natureza de diabo. Desabou uivando sobre a cama e terminou de se consumir, em
meio a atrozes convulsões.
Quando Galahad se levantou e se aproximou dela, não restava mais sobre a cama do
que um montinho de cinzas. E, no quarto, um abominável fedor de enxofre.
Ele caiu de joelhos e vomitou, com grandes soluços, todo o vinho maléfico que o
haviam feito beber. O vinho, tudo o que ele vomitou escorreu como um fluido pelo quarto.
Formou poças no chão, alcançando a base das paredes.
A sala, depois a torre, depois o castelo, desapareceram. Tudo se desvaneceu como se
jamais tivesse existido. Galahad se viu, de joelhos, as entranhas lhe doendo, no meio da
charneca e da noite. Seu escudo branco com a cruz vermelha jazia no mato do seu lado. Ele
o apanhou e o pendurou ao pescoço.
— Falhei — murmurou.
Ao que a voz de criança ou de anjo replicou no seu ouvido:
— Não, você ganhou. Ou quase cometeu o erro de seu pai, Lancelot: amar quem não é
para você. Levante-se, Galahad. Você tem que chegar até o fim da Busca.
O jovem cavaleiro apertou as mãos contra os ouvidos e berrou, de joelhos, olhando

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para o céu negro da noite caledoniana:
— Deixem-me em paz! Não quero mais saber de anjos em torno de mim! Sou um
cavaleiro! Sou o Eleito! Se tenho que realizar a Busca — e vou conseguir —, eu o farei
sozinho e sem ajuda!
— Você tem razão. Você disse o que esperávamos que dissesse Galahad levantou a
cabeça. Diante dele, na charneca, viu um cavalo branco como a flor da macieira, que um
menino segurava pela rédea. Pôs-se de pé e se aproximou. O menino era o anjo ruivo que
ele havia encontrado na companhia de seus semelhantes, os anjos, no castelo dos Sete. O
anjo ruivo estendeu-lhe a rédea do cavalo branco.
— Tome.
Galahad sacudiu a cabeça.
— Não obedeço. Nem aos anjos de Nosso Senhor.
— O que você quer?
— Ir até o fim da Busca. Mas contando apenas comigo.
— Isso é orgulho.
— Não. É assim que tem de ser, só isso. O Cavaleiro Eleito não tem necessidade de
ajuda.
— Por quê?
— Se lhe facilitarem a tarefa, ele não terá conseguido nada. Só há um estado e uma
palavra para designá-lo: sozinho.
— Pretende dispensar nossa ajuda?
— Pretendo encontrar o Graal.
— Sozinho?
— Sozinho.
O anjo ruivo — que falara com a voz de todos os anjos de seu conjunto de anjos —
largou a rédea do cavalo branco. Recuou para a bruma que se formara durante aquela
conversa. Antes de desaparecer dentro dela, acrescentou:
— Vejamos... Vejamos se você é o Eleito...

O nevoeiro ficava mais denso. Galahad, com a espada na mão, procurou, à direita, à
esquerda, ao sul, ao norte, se havia um inimigo — ou um anjo. Terminou admitindo que
estava sendo ridículo ao golpear sombras no meio da bruma. Recolocou Excalibur no lugar e
segurou o cavalo branco pela brida.
Preto. Branco. Quais são as cores do Diabo? O Diabo pode tudo, e, principalmente,
enganá-lo. Mas esse cavalo, afinal, lhe havia sido apresentado por um anjo.
Galahad verificou seus arreios: sim, ele tinha uma sela, ornamentada talvez com
excesso de riqueza, mas uma sela de cavaleiro de Logres. A brida e o freio eram iguais aos
que teriam sido colocados em Camelot ou em qualquer outro lugar proibido aos demônios e
aos diabos.
— Eu sou o Eleito — rosnou, como que para persuadir-se.
E, de um salto, montou no cavalo branco.
Foi o tempo exato de empunhar a brida e o animal disparou como uma flecha, a todo o
galope, rápido e ritmado. A charneca passava a grande velocidade. Um vento suave os

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empurrava, homem e cavalo, direto para o norte.
O animal só parou quando o mar proibiu-o de ir mais longe.
Altas ondas cinzentas e frias se atiravam contra altos rochedos cinzentos sob um céu
cinzento. Galahad tinha alcançado o setentrião das ilhas. Do outro lado, ninguém sabia o que
esperava o viajante — o navegador.
Suando, o cavalo branco imobilizou-se. Galahad desceu. Deu alguns passos em uma
praia de rochedos pontudos. Apesar da bruma de um céu eternamente baixo e nublado,
distinguiu, ao longe, exatamente antes do horizonte, o recorte negro de uma ilha.
Quando se virou, o cavalo branco não estava mais lá.
Não se espantou. Nada mais podia surpreendê-lo.
Era no que acreditava.
Tratou de se instalar naquela praia para uma longa temporada. Catou madeira morta
para o fogo, e recolheu feixes de plantas e plantas mais altas para com elas construir uma
cabana onde poderia dormir abrigado dos ventos gélidos do Norte.
Em seguida, pôs-se a esperar.

66
4
O Caminho do Orgulho

Enquanto isso, Lancelot, seguido de má vontade por Aguingueron e, à força, por


Perceval amarrado à montaria, tomara o caminho da esquerda.
O caminho, pavimentado em certos trechos, provavelmente tinha sido uma via romana,
do tempo da invasão de César, alguns séculos antes. Ia dar diretamente numa floresta.
— Sire Lancelot — suplicou Aguingueron —, voltemos à encruzilhada. Esta floresta não
está me cheirando nada bem.
Lancelot não respondeu. Dava-se conta perfeitamente de que ele mesmo nunca
percorrera em sua vida floresta mais tenebrosa, mais densa, de folhagem mais espessa e de
um verde tão escuro que mais parecia negro. Em qualquer outra circunstância, teria feito o
caminho de volta, por elementar prudência. Mas achava que recuar, agora, seria renunciar.
Tinha a sensação de reviver a mesma aventura de vinte anos antes, quando era o Eleito —
ou deveria ter sido. Mas, vinte anos antes, ele ia direto ao perigo e ganhava sempre. Não
podia admitir que o tempo passara, que seu tempo passara. Esporeou raivosamente o
cavalo. Entrou na floresta.
A marcha foi difícil. À medida que avançavam, os troncos das árvores ficavam mais
juntos, mal deixando lugar para a montaria passar. Pouco tempo depois, o caminho
desapareceu, como que absorvido pelo mato fechado. Aguingueron tinha cada vez mais
dificuldade em seguir Lancelot, pois seu cavalo e ele eram, muitas vezes, largos demais para
se introduzirem pelas estreitas passagens entre as árvores.
— Cavaleiro, vamos desistir, eu lhe peço! Logo, logo, não vamos mais conseguir seguir
nem para a frente nem para trás.
— Cale-se! Se continuar a gemer, eu lhe...
Lancelot pusera raivosamente a mão na espada. Aguingueron permitiu-se pousar sua
mão enorme sobre o ombro do cavaleiro.
— Vamos — disse com uma voz conciliadora. — Seja razoável. Voltemos para Beau
Repaire.
— Retire sua mão!
— Cavaleiro, o senhor tem outras responsabilidades hoje em dia. O que resta de
Logres só sobrevive graças ao senhor. Imagine se os saxões atacarem Camelot na sua
ausência... E Beau Repaire. Tenho certeza de que Blancheflor saberá se defender. Mas por
quanto tempo? Quanto tempo a lembrança de Logres poderá sobreviver à sua ausência?
Assim que souberem que o senhor não está mais lá, os saxões avançarão sobre Camelot.
Até o presente, eles hesitaram. Porque têm medo, cavaleiro. Medo do senhor. Sem o senhor,
Logres cairá.
Aguingueron nunca falara tanto antes. Nunca, há vinte anos, Lancelot admitira e
tampouco recebera conselhos — salvo, vez por outra, de Galehot, seu amigo. Acariciando
maquinalmente seu cavalo entre as orelhas, ele refletiu. Claro, Aguingueron podia ter razão.
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O que aconteceria com Camelot sem ele? E, claro, era apenas o orgulho que o obrigava a
querer seguir o caminho de Galahad em direção ao Graal. Se fosse honesto consigo mesmo,
deveria reconhecer que não esperava apenas seguir aquele novo Eleito, mas, na verdade,
ultrapassá-lo. Chegar antes dele ao final da Busca. Suspirou.
— Tenho quarenta anos, Aguingueron. Dentro de alguns anos, serei um velho. Hoje,
todos os ferimentos e todos os golpes que recebi, todas as minhas cicatrizes doem tanto que
me acho debilitado como um homem de oitenta anos. E tudo isso para quê? Fracassei no
cumprimento do meu destino, Aguingueron. Não fui quem deveria ter sido.
— O senhor é o cavaleiro mais respeitado e mais adulado a milhares de léguas à sua
volta.
Lancelot balançou dolorosamente a cabeça.
— Não. Eu sou o que traiu o rei. Se Logres não existe mais, é por minha culpa.
— Então, Perceval, meu amo, é tão culpado quanto o senhor! Ele também foi o Eleito, e
ele também falhou na sua missão divina.
— E olhe só para ele! — retorquiu Lancelot. — Hoje está louco.
— Não terá sido, Senhor, por ter conhecido o que ao senhor nunca foi permitido?
— O quê?
— Ele obteve uma segunda chance. Eu, que o segui neste inverno até as margens do
setentrião, que fui encontrá-lo em uma ilha assustadora, posso afirmar — tenho a convicção
— que ele viu o Graal. E foi por ter chegado tão próximo, quando tinha perdido o direito a
ele, que agora ele se encontra nesse estado lamentável.
— E daí? O que está insinuando?
Aguingueron levou um tempo escolhendo as palavras que empregaria. Não queria ferir
Lancelot, mas devia-lhe a verdade, ao menos a verdade da qual estava intimamente
convencido.
— Não cometa o mesmo erro de meu amo. Se ele enlouqueceu por retomar, dez anos
depois, a Busca que não completou, acho que...
— Que...?
— Que o senhor se arrisca à mesma sorte.
— Está querendo dizer que vou perder a cabeça?
Aguingueron baixou humildemente os olhos sob o olhar furioso de Lancelot.
— Não me queira mal por lhe falar com sinceridade: para mim, o fato de ter seguido
Galahad e se embrenhado nesta floresta do diabo é um sinal de que o senhor não está no
seu juízo normal...
— Bobagens!
A cólera de Lancelot se transmitiu a seu cavalo, que logo começou a patear. Ele teve
grande dificuldade em dominá-lo, mas isso lhe deu tempo suficiente para poder refletir.
Aproximou-se de Perceval sempre amarrado e amordaçado em cima da montaria.
— Escute, Aguingueron: somente Perceval poderá nos dizer se você tem razão. Vou
libertá-lo. Veremos para onde ele conduzirá seu cavalo. Se ele sair desta floresta e voltar à
encruzilhada, eu o seguirei. Se não...
— Eu lhe suplico! — gritou o gigante. — Não!
Era tarde demais. Com um golpe de adaga, Lancelot cortou as cordas que amarravam

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Perceval à montaria. Depois lhe arrancou a mordaça.
— Não! — berrou mais uma vez Aguingueron.
Tão logo se viu liberado, Perceval se ajeitou sobre a sela e clamou:
— Você não vê o futuro! VOCÊ NÃO SABE!
E partiu a galope. Evitou como por milagre as passagens muito estreitas entre as
árvores. E desapareceu na penumbra sob a copa das árvores.
— Não devia ter feito isso, cavaleiro...
— Sigamos suas pegadas! — replicou Lancelot.
A contragosto, Aguingueron seguiu o cavaleiro que se embrenhava rapidamente no
labirinto da floresta.
Galhos muito baixos o esbofeteavam à sua passagem. Lancelot não se incomodava.
Apenas galopava. Aguingueron, atrás, tentava como podia não perdê-lo de vista.
E, de repente, quando os troncos pareciam mais densos do que nunca, mais
intransponíveis, desembocaram numa grande clareira inundada de sol.
Ofuscados por aquela luz repentina, piscaram com força os olhos e pararam os
cavalos. Sobre uma espécie de altar, no centro da clareira, repousava uma coroa de ouro e
rubis. Ela cintilava tão violentamente ao sol que terminou ofuscando-os. Mas entreviram
mesmo assim Perceval que, escorregando para o lado da sela, inclinava-se para apanhar a
coroa. Ele a brandiu em triunfo e, de repente, jogou-a para Lancelot, gritando:
— Você não sabe nada! Aprenda!
Com um gesto reflexo, Lancelot agarrou a coroa. Era pesada e magnífica.
— Perceval!
Não adiantava chamá-lo. Perceval esporeou o cavalo e embrenhou-se na floresta.
— Cavaleiro — disse Aguingueron —, o que significa essa coroa?
— Não sei. Não se parece com nada que eu conheça.
Essas palavras tinham acabado de ser pronunciadas quando, de lugar nenhum, surgiu
um cavaleiro. Seu elmo, sua armadura e seu escudo eram brancos. Seu cavalo, ajaezado da
mesma cor. Tinha no punho uma enorme clava, que até o gigante Aguingueron teria
dificuldade para manejar.
— Uma armadilha! — exclamou Aguingueron. — Largue essa coroa, cavaleiro e
fujamos!
Lancelot deu um risinho de mofa. Colocou a coroa de ouro e rubis debaixo do braço
esquerdo, depois segurou o escudo.
— Você não sabe nada — escarneceu. — A aventura continua! E ninguém jamais me
venceu!
Enquanto o enigmático cavaleiro branco sacudia o cavalo de batalha e levantava bem
alto a clava, Lancelot puxou a espada.
— Pela Távola Redonda! — rugiu. — E por Deus!
Os adversários precipitaram-se um contra o outro. Os cascos de seus cavalos batiam
num ritmo infernal sobre o solo da clareira. No instante de atingir o cavaleiro branco, Lancelot
berrou:
— À morte!
Golpeou. Sua espada assoviou no ar, acertou o escudo branco, e se espatifou. Não

69
teve tempo de se surpreender. Recebeu um golpe de clava que partiu seu escudo em dois e
o atirou no chão.
Atordoado, rolou sobre si mesmo. Quando se levantou, meio tonto devido à queda, só
tinha na mão direita uma espada quebrada e, na esquerda, um escudo partido. Não viu
chegar o segundo assalto do cavaleiro branco: a clava o atingiu no ombro. Com um grito de
dor, caiu de costas, largando o escudo fendido.
E foi assim, estendido de costas, vencido, humilhado, que ele viu o cavaleiro branco
galopar na sua direção, inclinar-se de lado e lhe arrancar a coroa de ouro e de rubis que ele
pendurara no antebraço.
Em silêncio, o misterioso cavaleiro colocou a coroa dentro da bolsa da sela, instalou a
clava dentro da outra bolsa e suspendeu a viseira de seu elmo, lançando um último olhar
para a clareira. Com estupor, Lancelot acreditou reconhecer no rosto dele a claridade azul-
escuro dos olhos, os traços fortes e delicados ao mesmo tempo, a expressão de orgulho de
um outro Lancelot, vinte anos mais moço.
Um instante mais tarde, o cavaleiro tornava a baixar a viseira do elmo e desaparecia,
como um espectro, na orla das árvores.
Lancelot, esgotado por aquele combate perdido, perturbado pela visão de seu próprio
rosto no vencedor, deixou-se ficar ali, de costas. Olhou o céu acima dele, pelos espaços
entre as árvores.
— Fui vencido — murmurou. — Estou velho...

+++
Aguingueron montou um acampamento na clareira. Fez um fogo, cortou galhos e
construiu um simulacro de cabana para proteger o sono de Lancelot; de uma só flechada,
matou um faisão solto entre as árvores, depenou-o, eviscerou-o e assou-o no espeto.
Lancelot recusou-se a experimentá-lo. Virou-se sobre seu colchão de ervas e
adormeceu.
Um sonho, logo em seguida, veio atormentá-lo.
Primeiro surge uma capela. Simples e pequena. Lancelot se vê, no sonho, dormindo a
alguns passos. Da floresta surge uma liteira carregada por sete homens. Eles a depositam
na entrada da capela.
Um cavaleiro está estendido nela. Lancelot tenta, em seu sonho, levantar-se, ir falar
com o cavaleiro em cima da liteira. Em vão. Seu corpo não lhe obedece mais.
O cavaleiro se levanta da liteira. E Lancelot o reconhece. É ele mesmo, porém vinte
anos mais jovem.
O jovem Lancelot entra na capela. Segue até o altar, sobre o qual brilham as sete
chamas de um candelabro de prata. E, atrás das sete velas, um prato coberto por um pano
vermelho brilha também.
No seu sonho, Lancelot sabe que se trata do Santo Graal.
Ele faz um grande esforço para despertar. Não consegue.
Ele se vê — quer dizer, vê o Lancelot de dezoito anos, que tanto se parece com ele,
mas que, contudo, não é ele — se aproximar do altar e do Graal e pousar-lhe os lábios. E se
erguer, como que movido por uma nova energia.

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— Deus, Meu Senhor — exclama —, muito obrigado! Estou agora mais jovem e mais
forte do que nunca fui!
Saindo da capela, despede-se com um gesto dos sete homens que carregaram sua
liteira. Volta os olhos para o velho Lancelot que dorme. Esboça um esgar de desdém.
— É preciso — murmura — que esse cavaleiro tenha cometido erros imperdoáveis para
não lhe ser permitido acordar, levantar-se e saudar o Santo Graal. Que morra com sua
vergonha...
Depois disso, o jovem Lancelot apanha o escudo fendido do velho Lancelot — e ele se
solda imediatamente. Pega a espada quebrada, que recupera na hora uma lâmina longa e
afiada. Um cavalo de batalha cinza-pálido sai da floresta. Ele o monta e, com o escudo e a
espada nas mãos, desaparece.
— Minha espada! Meu escudo!
Lancelot, finalmente, conseguira escapar de seu sonho. De gatinhas, atravessou a
clareira, à procura de suas armas.
Não as encontrou.
Uma voz lhe soprou então no ouvido:
— Lancelot, mais duro do que a pedra, mais amargo do que a madeira, mais nu do que
a figueira, como você ousou partir novamente em busca do Graal? Vá embora. VÁ
EMBORA! Este caminho não é seu!
O cavaleiro caiu de joelhos, tapando com as mãos os ouvidos. Mas isso não adiantou
nada: a voz lhe falava do mais fundo de si mesmo.

+++
De manhã, Lancelot sacudiu Aguingueron, que ainda dormia.
— Levante-se.
O gigante gemeu, espreguiçou-se, sacudiu-se.
— Sim?... Senhor?...
— Eu refleti a noite inteira. Você tem razão.
Aguingueron, preso nas brumas do sono, esfregou desajeitadamente o rosto.
— Quer dizer, Senhor?...
Lancelot segurou-o pelo braço e o obrigou a ficar de pé.
— Quer dizer que você vai pegar o caminho de volta e chegar o mais depressa possível
a Camelot. Lá, transmitirá a rainha...
— Só um momento, Senhor! Lembre-se do que se passou ontem: eu perdi meu amo,
Perceval. Tenho de reencontrá-lo.
— Se alguém deve reencontrá-lo, este alguém sou eu, Aguingueron. Confie em mim.
O gigante o observou com uma expressão dividida: respeito, sem dúvida, mas também
muita incerteza. Lancelot compreendeu-o e perguntou:
— Do que tem medo, exatamente?
— Bem... Cavaleiro... Que a loucura do meu amo seja contagiosa...
— Não se preocupe. Tive um sonho esta noite. E compreendi.
— Compreendeu o quê?
— Que estou vivendo minha última aventura. Ajude-me, Aguingueron. Preciso de você.

71
Por favor.
Isso foi pronunciado com tanta humildade, que o gigante ficou embaraçado.
— Pode falar — grunhiu, constrangido.
— Quero que você volte a Camelot, que vá ver a rainha e que diga a ela isto... Você
tem boa memória?
— Terei, se for preciso.
— Então escute e decore: “Guinevere, minha rainha, não me espere mais. Não voltarei
a Camelot. O erro que cometemos juntos deve ser reparado. E saiba, saiba que jamais
deixei de amá-la.” Compreendeu?
Aguingueron enrubescia à medida que a mensagem que devia transmitir se tornava
mais pessoal. Ele limpou a garganta.
— Há... sim... Eu acho...
— Então, repita.
— Senhor, eu...
— Repita, é uma ordem!... E uma prece...
Baixando os olhos, Aguingueron repetiu palavra por palavra a mensagem que Lancelot
lhe confiara.
— Muito bem — disse este último. — Se gosta de mim, se tem estima por mim, suba
imediatamente no seu cavalo e não faça nenhuma pergunta.
Aguingueron obedeceu. Saltou sobre a montaria. Antes de se embrenhar na floresta,
perguntou, com uma voz bem baixinha:
— Então... Não vamos mais vê-lo?
— Só Deus sabe. Quanto a você, saiba que detém um segredo cuja revelação causaria
um grande mal à rainha. Sabe disso, não é?
— Acredite, Senhor, na minha fidelidade e no meu silêncio.
— Eu acredito.
Lancelot bateu na anca do cavalo, que teve um sobressalto e partiu a galope. O animal
e seu cavaleiro desapareceram por entre as árvores, sob as folhagens negras.

72
5
Cavaleiros Brancos, Cavaleiros Negros

Lancelot retomou seu caminho algum tempo depois.


Sentia-se perseguido pelas imagens de seu sonho. Às vezes, como quem espanta
moscas, agitava a mão diante do rosto. Mas não espantamos tão facilmente um sonho que
percebemos esclarecer tudo a nosso próprio respeito.
As árvores da floresta lhe pareceram menos coladas, menos densas, menos inimigas.
Ele ia direto para o norte. Muito depressa deixou as árvores e se viu novamente numa
paisagem de vales sem árvores, acinzentados, onde o verão nunca chegava. Os córregos
corriam como torrentes.
Nunca se sentira tão cansado na vida. Ainda rememorava o enfrentamento com o
cavaleiro branco, sua humilhação. Por que não estivera à altura daquele primeiro assalto?
Por que sua espada e seu escudo tinham se partido ao primeiro choque? A resposta a esta
pergunta ele adivinhava sem admitir: estava vivendo uma aventura que não era para ele.
Mas, dizia para si, ele tinha sido “o melhor cavaleiro do mundo”. Por que não sou mais? Por
que de agora em diante tantas derrotas? Perdi o direito a uma última vitória, ao triunfo em
uma última aventura?
Ruminando esses pensamentos, chegou a uma capela edificada no alto de uma colina
cercada por duas torrentes.
Desmontou, examinou o local — que lembrava o sonho que tivera — e, embora suas
mãos começassem a tremer — ou porque suas mãos começassem a tremer —, entrou na
capela.
Ela era simples e nua. Paredes de pedra lisa sem ornamento. Uma simples rosácea de
vitral azul iluminava o coro. Um altar mais despojado do que uma mesa de camponeses.
Diante do qual, com as mãos em prece, um padre de sobrepeliz salmodiava cantos
incompreensíveis.
Lancelot avançou até o altar e se ajoelhou ao lado do padre.
— Você chegou, Lancelot — disse o padre, com os olhos fechados e as mãos juntas.
— Como me reconhece? Não está me vendo...
— Eu estava à sua espera, Lancelot, e você está aqui. Vou lhe contar uma história.
Ouça.
“Um rei distribuiu um dia a seus cavaleiros o que guardava em seu tesouro. Ao
primeiro, deu mil moedas de ouro. Ao segundo, duas mil. E cinco mil ao terceiro.
“Este último bem depressa chegou junto ao rei: ‘Eis outras cinco mil moedas de ouro
que ganhei graças às que você me ofereceu. Elas são suas.’
“O segundo, por sua vez, voltou à corte, de posse de suas duas mil moedas de ouro.
Ele também as ofereceu ao seu rei dizendo: ‘Destas duas mil moedas de ouro, eu não soube
fazer nada de melhor. É justo que as devolva.’
“O primeiro, que tinha recebido apenas mil moedas de ouro e se sentira lesado na
73
partilha, enfiou-as em um esconderijo secreto e não tocou mais nelas. Nunca mais
reapareceu diante de seu rei, uma vez que não ganhara nada e nada queria devolver.”
O padre abriu finalmente os olhos e olhou para Lancelot.
— Vocês foram três a receber, de Nosso Senhor, o tesouro da Eleição. Você foi o
primeiro deles, Lancelot, aquele que obteve, por certo, o pedaço mais mesquinho. O que fez
dele?
“Escondeu-o dentro de si mesmo. Essa força indestrutível que devia lhe permitir obter o
Graal, você a utilizou para fins egoístas. Só pensou em si — ou no seu amor pela rainha
Guinevere, mas privilegiar esse amor era, ainda e sempre, só pensar em si. E, pior do que
tudo, você passou meses procurando, não como encontrar o Graal, mas como encontrar a
morte em um combate inútil. Você traiu Deus, Lancelot. Você traiu a si mesmo.”
Lancelot caiu de joelhos.
— Meu padre — disse —, eu reconheço todos os meus erros.
— Todos?
— Todos...
— Mesmo o de ter amado indevidamente a rainha?
Lancelot desabou, com a cabeça entre as mãos. O padre prosseguiu, implacável:
— Reconhece que amou indevidamente a rainha Guinevere?
Lancelot se levantou. Tinha os punhos fechados. De repente, bateu no próprio peito.
— Eu reconheço — exclamou —, eu reconheço não ter feito o que devia para que o
reino de Logres vivesse e se perpetuasse...
O padre o agarrou pelo ombro.
— Não tente subtrair-se à confissão! Mais uma vez eu lhe pergunto: reconhece ter
indevidamente amado Guinevere?
O cavaleiro empurrou o padre, que caiu junto do altar.
— Não! — gritou Lancelot. — Não!
Inclinou-se para o padre, imobilizando-o no chão e bradando no seu ouvido:
— Ninguém jamais amará essa mulher como eu amei, nem como essa mulher me
amou! Não posso renegá-la, eu me recuso a renegá-la! Eu a amo mais do que tudo! Um
sentimento que está além do pecado, da maldição, da minha própria vida!
— Acalme-se, cavaleiro... Acalme-se.
Lancelot se levantou, deixando assim o padre recuperar o domínio de si — e uma certa
segurança que ele devia sobretudo ao seu hábito e à sua ordem.
— Cavaleiro — ele perguntou, com uma voz um pouco trêmula —, você não encontrou
um cavaleiro que o derrotou e recuperou uma coroa de ouro e de rubis?
— De fato...
O padre limpou nervosamente as abas de seu hábito e de sua sobrepeliz.
— E ele o venceu com uma facilidade que você mesmo não compreende?
— Sim...
— É — prosseguiu o padre com um pouco mais de segurança na voz — que você
escolheu, na encruzilhada, a via da esquerda. A da cavalaria terrestre, na qual sempre
triunfou: inimigos, provas, era só o que você queria, na sua juventude, pelo simples prazer de
vencê-los. Você se recusa a envelhecer: você escolheu esse caminho. Ora, o caminho da

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direita, que você recusou, é o da cavalaria celeste. Nele, pouco importam os combates:
ninguém ganha, nessa estrada, a não ser vencendo a si mesmo. Poderia tê-lo escolhido:
preferiu um outro.
— Por quê?
— Por orgulho. O tempo e as responsabilidades não conseguiram modificá-lo: você só
sonha com a glória. Como se a glória de ter salvado o que restou de Logres não bastasse...
Você quer mais, Lancelot, quer sempre mais...
“A coroa de ouro e rubis na clareira da floresta não tinha nenhum significado, nada
representava na Busca. Era apenas um engodo diante de seu orgulho. Mas você a quis.
Precisava dela. Apanhou-a sem se perguntar o que ela representava. Ela brilhava, você a
apanhou. E Deus lhe enviou um de seus anjos sob a forma de um cavaleiro branco parecido
com você para punir seu orgulho.”
Com raiva, Lancelot apertou os punhos. Bateu na parede mais próxima. Suas falanges
sangraram.
— O senhor quer dizer, padre, que foi Deus quem me puniu por eu ser, admitamos...
corajoso, bravo e forte? E a voz que me soprou ao ouvido que eu era mais duro do que a
pedra, mais amargo do que a madeira e mais nu do que uma figueira?
Ele sacudiu o padre, que tropeçou e bateu na quina do altar.
— Explique-me isso, se puder!
— É... é tão simples que você mesmo poderia ter imaginado...
Lancelot brandiu o punho.
— Não me tome por um idiota...
— Ao contrário... Ao contrário... Eu lhe explico... Comecemos pela pedra... Ela é dura,
por natureza. Mas também foi ela que, quando o povo de Israel fugia do Egito conduzido por
Moisés, deu a água que permitiu a todos os fugitivos beber. Portanto, da pedra por vezes
vem a doçura da vida... Foi nesse sentido que a voz o acusou de ser duro como a pedra.
Você recusa a doçura que tem em si, está cheio de amargura por não ter executado sua
missão de Eleito. Então se tornou amargo como madeira morta, como vigas que são
talhadas para sustentar poderosos edifícios, mas que por não serem empregadas por
nenhum carpinteiro terminam apodrecendo largadas na terra.
— Mas por que a figueira?
— Lembre-se deste episódio dos Evangelhos: Nosso Senhor Jesus entrou em
Jerusalém, foi acolhido por uma multidão que celebrava a Páscoa, mas quando, cansado,
quis encontrar uma casa para dormir, ninguém consentiu em acolhê-lo. Então ele saiu da
cidade e parou debaixo de uma figueira. Essa figueira era grande, bonita e sólida, carregada
de galhos e de folhas. Contudo, não carregava nenhum fruto. Você é como essa figueira,
Lancelot. Tem todas as seduções e todas as forças, mas seu coração está seco. De todos os
frutos que você poderia ter trazido para o reino de Logres, você foi avaro, a ponto de não ter
nenhuma descendência. Salvo aquela que lhe foi roubada, uma noite, pela filha do Rei
Pescador.
— Ellan... — murmurou Lancelot.
— Sim. Ellan. Dela, que você maldisse e condenou por ter lhe enganado, você tem um
fruto, um filho que salvará sua estirpe.

75
Lancelot, perturbado, agarrou o padre pelas abas da sobrepeliz.
— Quem é? Onde está esse filho que supostamente tenho?
— Lancelot... Pare de cegar a si mesmo. Você sabe quem é esse filho.
O cavaleiro soltou o padre e recuou, dando alguns passos desvairados pela capela.
— Está querendo dizer que...?
— Sim. Deixe falar seu coração.
Lancelot segurou a cabeça entre as mãos e murmurou:
— Galahad...
— Você compreendeu.
O cavaleiro virou-se brutalmente para o padre. Com o olhar enlouquecido.
— Está tentando me enganar! Se Galahad é meu filho, por que não o reconheci
imediatamente, assim que o encontrei?
— O orgulho, Lancelot, sempre o orgulho... A recusa de seu fracasso. Aprenda a
envelhecer, aprenda a ter idade para ser pai.
— Eu ainda não estou velho! — rugiu Lancelot. — Quem ainda pode me bater?
O padre ergueu os ombros.
— Você sabe, Lancelot, você viu: um cavaleiro branco igual ao que você era há vinte
anos tomou-lhe a coroa na clareira. E, quando você enfrentou Galahad no bastão, foi por
respeito que seu filho não o humilhou.
Lancelot, sentindo subitamente uma fraqueza extrema, se sentou — ou melhor,
desabou num canto da capela.
— O que devo fazer agora?
O padre se aproximou e, furtivamente, tocou-lhe a testa, como quem acaricia uma
criança chorando.
— Aceitar a realidade.
— Como assim?
— Envelhecer em paz consigo mesmo.

+++
Lancelot despertou. Não se lembrava de ter dormido. Esfregou os olhos, ergueu-se
penosamente e olhou à sua volta: estava dentro de uma capela em ruínas. Teto desabado,
paredes destruídas, vitral partido em mil pedaços. Nenhum padre nas proximidades.
Simplesmente a lembrança, desagradável, do que ele havia falado. Era a realidade ou um
sonho? Não tinha idéia.
Envelhecer... Que estranho e doloroso conselho... Lancelot saiu da capela
cambaleando. Diante da entrada, no meio das ervas daninhas, achou uma espada e um
escudo. A espada, quando a segurou na mão, sopesando-a, lhe pareceu sólida e bem
equilibrada. Quanto ao escudo, era cinzento, e parecia sólido também. Lancelot, armado,
montou no cavalo.
Ainda não tinha recuperado toda a sua capacidade de pensar. Deixou à montaria a
liberdade de encontrar seu caminho. Desceram para o sopé da colina e seguiram um atalho
fácil, que hesitava todo o tempo entre os vazios dos vales e suas encostas.
Uma hora mais tarde, desembocou em uma comprida e larga pradaria. Sentia-se

76
melhor e teve o reflexo de reter o cavalo: ali, no prado, sete cavaleiros brancos estavam
diante de sete cavaleiros negros. Seus chefes soltaram juntos um grito de guerra. Atiraram-
se uns contra os outros.
Muito depressa, Lancelot compreendeu que os cavaleiros negros não tinham nenhuma
chance contra os cavaleiros brancos. Já no primeiro assalto, quatro deles tinham sido
derrubados pelos adversários. Sem que nenhum cavaleiro branco tivesse tocado o chão.
O segundo assalto se desenrolou como deveria ser: sete cavaleiros brancos contra três
cavaleiros negros — os negros tinham pouca chance de ganhar. Mais outros dois caíram. E
um único cavaleiro branco.
“Você está velho demais... Você tem que envelhecer...” Lancelot rememorava o que o
padre lhe dissera — ou que ele sonhara. Puxou a espada, esporeou o cavalo e escolheu
deliberadamente seu campo: o dos cavaleiros negros — o dos mais fracos. Queria sua última
aventura, sua última proeza, sua última vitória.
Atirando-se a galope contra seus adversários, acertou no primeiro que encontrou uma
estocada certeira sob o elmo. Para sua surpresa, a lâmina de sua espada ricocheteou. Como
se ele tivesse atingido uma rocha. Furioso, precipitou-se no meio da confusão. Normalmente,
teria derrubado tantos inimigos quantos golpes de espada tivesse acertado.
Mas, ali, nenhum deles pareceu se abalar com a sua intervenção. Pior: ele escutou
alguns dos cavaleiros brancos caçoando, no momento de aparar um golpe que em outras
circunstâncias os teria decapitado na hora. Compreendeu que seu braço perdera a força que
tinha feito sua reputação. Compreendeu que enfrentava gente mais forte do que ele.
Compreendeu que não estava mais à altura de nenhum combate no caminho do Graal.
No terceiro assalto, todos os cavaleiros negros acabaram no chão. Só Lancelot insistia
em lutar, volteando a espada, contra seis cavaleiros brancos. Sua arte de combate,
espetacular, era maravilhosa: mesmo assim, não chegava a tocar em ninguém.
Com um único golpe de clava, quase sem esforço, um dos cavaleiros brancos fez sua
espada saltar da mão. Em seguida, um outro enfiou a ponta da lâmina na sua garganta.
Lancelot, vencido, humilhado, triste, rendeu-se.
Foi amarrado a seu cavalo. Não ofereceu nenhuma resistência. Levaram-no. Depois
que a noite caiu, os cavaleiros brancos montaram um acampamento, fizeram um fogo e
assaram lebres que haviam caçado na estrada. Não disseram sequer uma palavra.
Foi posto diante do fogo do acampamento. Deram-lhe carne para comer. Ninguém
falava com ele.
Quando consentiram que retirasse as armaduras e se deitasse sobre um leito
improvisado em volta do fogo, um dos cavaleiros brancos se aproximou de Lancelot, retirou
seu elmo e lhe sorriu.
Lancelot reconheceu o rosto do padre da capela.
— Por que não me escutou? Por que lutou contra gente mais forte e mais numerosa do
que você?
— Porque pertenço à Távola Redonda. Porque sou cavaleiro.
— Você perdeu, mesmo assim. Reconheça.
Lancelot ergueu o queixo e, de repente, cuspiu no rosto do padre-cavaleiro.
— Reconheço que você trapaceou para me vencer. Reconheço que Deus lhe deu

77
poderes que Merlin, meu padrinho, não consegue neutralizar. Reconheço estar duplamente
velho: por minha idade, e por meu pertencimento ao Antigo Mundo.
De repente, Lancelot segurou com a mão a lâmina da espada do padre-cavaleiro
branco e colocou a ponta sobre sua própria garganta.
— Mate-me. O que está esperando? Ouse... Faça-me este favor.
Enfrentaram-se por um instante com o olhar. Depois, o padre-cavaleiro abriu os dedos,
largando a empunhadura da espada.
— Você é uma lenda, Lancelot. Não quero ser aquele que o degolou.
— Tem medo de mim? Por quê? Estou à sua mercê...
O padre-cavaleiro meneou lentamente a cabeça. Sorriu, tristemente.
— Não preciso matá-lo, Lancelot: você não existe mais. Você mesmo falou: dentro em
breve, não será mais do que uma lembrança. Uma lembrança de um mundo antigo sem
futuro.

+++
Uma nova aurora despontou na charneca.
Lancelot abriu os olhos. Afastou o tecido de lã que o cobria e se sentou. O fogo do
bivaque não era mais do que cinzas fumegantes. Em volta, a charneca cintilava de orvalho.
Os cavaleiros brancos e o padre, chefe deles, não estavam mais lá. Será que tinham mesmo
existido? Lancelot esfregou o rosto coberto pela barba. Ainda estava vivo? Ou, há dias, nada
fazia além de atravessar sonhos e pesadelos? Levantou os olhos para o céu baixo, cinza-
ardósia. Um sopro de vento frio o fez estremecer. A umidade da manhã tinha revelado todas
as dores de seus velhos ossos, de seus velhos músculos, de suas velhas cicatrizes de
guerreiro.
Estou vivo, admitiu. Tenho um corpo, e ele me dói.
Ficou de pé e massageou os quartos. Tinha fome, tinha sede. Conseguiu descobrir uma
minúscula fonte, mais abaixo, onde matou a sede e lavou as mãos e o rosto. Voltou para
junto do fogo morto e, no meio das cinzas frias, encontrou um pouco de carne de caça. Foi
limpá-la na água da fonte e comeu, lentamente, sentado em cima de uma pedra. Sem parar
de mastigar, observou um cavalo de batalha baio que se aproximava dele, tranqüilamente.
Pouco depois, descobriu, sem surpresa, uma sela, um freio e uma brida abandonados
não longe dali. Selou o cavalo e montou.

+++
A montaria o levou assim durante muitas horas, em direção ao norte. Até que chegaram
a um rio largo. A água rápida e fria espumava contra as pedras de um vau.
O que havia do outro lado? Normalmente, Lancelot teria se perguntado. Teria
respondido: uma nova aventura. De agora em diante, ele não se importava. Desiludido de
tudo e de si mesmo, só seguia adiante ainda porque seu cavalo seguia adiante.
Mas, mal o cavalo mergulhara os cascos na água gelada do vau, sete arqueiros
apareceram na outra margem. De onde vinham? Como tinham aparecido? A Lancelot pouco
importava. Nada mais parecia ter importância para ele. Estou velho. Nunca mais viverei
aventuras.

78
Não despendurou o escudo do pescoço. Não puxou a espada. Sarcástico, estendeu os
braços e gritou:
— Lancem suas flechas, arqueiros! Eu sou o seu alvo!
Estranhamente, aquelas poucas palavras pareceram desconcertar os arqueiros. Eles se
entreolharam, depois baixaram os arcos.
— Vamos! — disse-lhes Lancelot. — Acabemos com isso, por favor!
No meio da tropa dos sete arqueiros, houve um dar de ombros, caretas de
incompreensão, um conciliábulo. Ao fim do qual um deles foi designado. E, enquanto os
comparsas, com as armas aos pés, assistiam ao fato como a um espetáculo, ele brandiu o
arco, fechou um olho e disparou a flecha.
Ela entrou profundamente no peitoral do cavalo baio que, com um relincho de dor,
desabou de lado.
Lancelot caiu junto com ele. Rolou sobre a margem, mas não fez nenhum esforço para
se proteger nem, em seguida, para se levantar. Ficou ali, estendido de costas no mato e na
greda. Não se preocupou com o que os arqueiros iriam fazer em seguida. Braços em cruz,
fixou os olhos no céu onde as nuvens cinzentas e densas como uma floresta lúgubre se
abriam para dar lugar a uma estreita clareira azul. Um raio de sol iluminou o cavaleiro no
chão.
— Finalmente você se tornou sensato? — perguntou uma voz que parecia jorrar do raio
de luz.
Lancelot começou a rir baixinho.
— Nunca... Eu me chamo Lancelot e não sou sensato. Jamais serei.
— Mas renuncia ao Graal?
— Renuncio...
— Bem.
— ...renuncio à velhice e à derrota. Vou partir em busca de meu próprio Graal, uma vez
que o verdadeiro, o divino, me foi proibido.
— Não existe um outro Graal! — rosnou a voz.
Lancelot ficou de pé lentamente.
— Ainda assim — declarou calmamente —, eu tenho o meu.
— Qual?
— Há em algum lugar, bem ao sul destas regiões, passado um outro mar, duas
mulheres que deixei à própria sorte, apesar de lhes dever a vida: Vivian, que me educou, e
Helena, minha mãe. Há um reino, chamado Bénoïc, de que meu pai, o rei Ban, foi espoliado
por um traidor. Está na hora, antes da minha própria morte, de vingar a dele. Está na hora,
antes de aceitar que eu esteja velho, de dar um pouco de alegria à velhice de Vivian e de
Helena.
Fez-se um grande silêncio no céu. As nuvens não paravam de mudar de aspecto e de
forma, como se submetidas à turbulência de um grande vento. Afinal, a voz disse:
— Sua vida, ou os anos que restam dela, lhe pertencem, Lancelot. Tem razão de
consagrá-la ao restabelecimento da justiça conspurcada e a levar a felicidade àquelas que
lhe fizeram ser o que você foi, o que é e o que será. Aprecio que tenha escolhido este último
desafio. Mas devo mais uma vez lhe perguntar e você deve responder sem rodeios: renuncia

79
ao Graal?
Lancelot caiu de joelhos. Bateu com os punhos no chão. Deu um longo grito de raiva e
de decepção.
— Sim! — exclamou. — Sim, eu renuncio! Não que eu queira — nada, no fundo de
mim, deseja renunciar —, mas eu renuncio ao Graal!
— Renuncia definitivamente ao amor de Guinevere?
— Vocês nunca vão me deixar em paz... Sim... Sim, eu renuncio ao amor de
Guinevere... Mas nada, nem mesmo minha traição, poderá tirar de mim este milagre: nós nos
amamos mais do que tudo, mais do que a nós mesmos, mais do que a vida!
— Se você não tem remorso, não posso perdoá-lo.
— Por que você me perdoaria? Pois se eu mesmo não me perdôo!
— Lancelot... reconheça seu erro.
— O amor não é um erro. O amor é. E ponto final. Estou velho, talvez, mas ainda não
suficientemente covarde para negar as evidências.
O céu se fechou de repente em uma massa de nuvens negras, carregadas de chuva.
Lancelot ficou um momento ali, com os braços levantados, esperando que alguma coisa
— uma trovoada, o raio, alguma manifestação brutal da cólera divina — o alcançasse e
punisse sua insolência.
Nada aconteceu.
O cavaleiro ficou quase decepcionado. Depois recolheu o escudo, pendurou-o ao
pescoço, verificou que uma espada estava encostada em seu quadril, e partiu, a pé, para o
sul.
A viagem seria longa e, provavelmente, cheia de emboscadas. Mas duvidava que ainda
fosse encontrar invencíveis cavaleiros de essência divina ou diabólica — provavelmente
toparia com bandidos famintos dispostos a explorar o humilde viajante. Iriam conhecer
algumas surpresas, caso o atacassem...
Ele recuperara as forças morais. Sim, tinha renunciado à Busca do Graal e ao amor de
Guinevere. Mas os dois eram impossíveis. Caminhando com passos largos pela charneca
escocesa, imaginava-se a centenas de léguas dali, num país onde conhecera uma
inigualável infância. Retornar ao Lago, rever Vivian, abraçá-la... E realizar finalmente o que
todo filho de rei traído deve ao pai: recuperar o reino de Bénoïc do usurpador...
E Lancelot deixou de se sentir velho. Tinha projetos. E combates a ganhar.

80
81
1
As Lendas Morrem

Sobre a margem do setentrião, o tempo passou. Galahad vivia do que encontrava nas
proximidades: peixes que ele pescava na ponta do cabo, aves que matava no interior das
terras, plantas que colhia e que as freiras que o tinham educado lhe ensinaram a reconhecer.
O verão e seus intermináveis crepúsculos também passaram. O outono começou, e de
repente o dia ficou menor: o sol se levantava cada vez mais tarde e se punha cada vez mais
cedo. Ficou frio. Sentiam-se o inverno e suas noites chegando. Galahad cortou outras
plantas para consolidar sua cabana, na qual os ventos do Noroeste batiam cada dia um
pouco mais forte.
Uma manhã — uma dessas terríveis manhãs do Norte em que tudo é cinza, mar e céu
—, ele foi até a margem e encontrou um barco. Que balançava tranqüilamente sobre a onda
da maré crescente, flutuando a uma certa distância da praia de rochedos. Sua vela principal
tremulava com uma brisa mais clemente e suave do que habitualmente. Um turbilhão do
Noroeste enfunou a vela: Galahad reconheceu, pintada com alguns traços, a forma de um
leão.
— Finalmente!
Correu até o bivaque, recolheu o essencial de sua bagagem (um escudo e uma
espada) e foi de novo para a margem. Entrou no mar com um sentimento de alegria: a
aventura, finalmente, recomeçava! Subiu a bordo da nau.
Pouco depois, um vento soprou, enchendo a vela pintada com um leão: o barco
afastou-se em direção ao largo.
Galahad precipitou-se para a parte de trás. Se tinha o desejo de conhecer o capitão e o
piloto, ficou decepcionado. Ninguém segurava o longo remo que servia de leme. O rapaz
colocou a mão nele, com a intenção de dirigir ele mesmo a embarcação. Mal o tocou, uma
força invisível atirou o grosso cabo de madeira para o lado, e Galahad foi parar no chão.
Prudente, e com o ombro dolorido, Galahad não procurou mais tomar nas mãos o
destino da nau. Deixou-se guiar.

A navegação, sempre à vista das costas escocesas, prosseguiu durante todo o dia, em
um mar surpreendentemente calmo. Galahad visitou o interior do barco, que estava vazio, à
exceção de um grande e pesado pano escarlate dobrado com cuidado sobre uma mesa. E,
sobre o pano, repousava a haste partida de uma lança. Galahad passou a mão na madeira.
Letras de sangue apareceram desenhadas, dizendo:
“Ninguém pode me empunhar, a não ser aquele que me devolverá meu ferro.”
O rapaz, sem hesitar, fechou os dedos sobre a haste partida. As letras sangrentas se
apagaram para dar lugar a esta outra mensagem, em letras de ouro:
“Quem me devolver meu ferro devolverá a honra a sua linhagem.”
O enigma não impressionou Galahad. Ele passou o toco de haste pelo cinto e soube
82
que estava seguindo o caminho correto.
Enquanto a breve tarde de outono caia, a vela se abateu e a embarcação se dirigiu
rapidamente para a margem.
O local, no crepúsculo, assustava: uma floresta de árvores mortas parecia mergulhar
até dentro das ondas, de um cinza de prata, que se formavam e quebravam sem cessar.
Galahad teve a breve vontade de segurar o leme, mas, prudente, não se mexeu. A nau se
imobilizou a poucas braças da margem coberta de mata.
Então saiu de lá um cavaleiro. Que saltou precipitadamente de sua montaria e, sem
hesitar, correu na direção do mar, agarrou-se na amurada do barco e, suspendendo-se de
costas, saltou a bordo. Caiu de pé, batendo com os calcanhares no convés da nau, mas, de
repente, com um breve assovio, uma flecha de ouro irrompeu dentre as árvores e veio se
enterrar no seu flanco. Ele caiu, sem um grito.

+++
— Quem é você?
A nau, desde que o homem subira a bordo, tinha retomado sua rota marítima.
Anoitecera. Galahad acendeu o pavio de uma lâmpada e passeou a claridade trêmula sobre
o rosto do desconhecido estendido de costas, com a boca entreaberta, os olhos esgazeados.
— Você não sabe... A morte, a morte... Sempre recomeçada... Você não viu...
— O que eu deveria ter visto? — perguntou Galahad, baixinho.
— Ajude-me... Ajude-me a levantar...
O jovem cavaleiro suspendeu o desconhecido pelas axilas e encostou-o contra o
mastro. O homem respirou profundamente, com os olhos fechados. Quando os reabriu, tinha
recuperado um pouco de força e de lucidez. Inclinou a nuca para trás, examinando a vela
branca com a insígnia do leão.
— Naveguei em um barco destes — disse. — A vela dele era vermelha...
— De onde você vem? Como se chama?
O desconhecido olhou para Galahad com uma estranha curiosidade misturada com
amizade. Em vez de responder aquelas perguntas muito precisas, disse:
— Claro... Só podia ser você. Você se parece com ele de tal maneira! É filho dele, não?
— Sim, sou filho dele — respondeu Galahad, que não precisava que o nome de
Lancelot fosse pronunciado para compreender.
O desconhecido deu palmadinhas nas pranchas do convés.
— Sente-se. Vou lhe contar uma história.

+++
— No dia do solstício de inverno, eu subi em uma nau de velas vermelhas. Foi no
inverno passado? Não sei mais. Durante um tempo de que ignoro a duração, perdi o juízo e
a memória, vivi num sonho — ou melhor, num pesadelo... Mas retomemos minha aventura
desde o começo...
“Foi no tempo em que eu tinha a sua idade. No tempo em que deixei a floresta da
minha infância para me tornar cavaleiro. Um tempo em que nada nem ninguém me fazia
medo. A ignorância, para mim, tomava o lugar da coragem.

83
Ela me protegeu, mais tarde me perdeu.
“Meu nascimento fazia de mim, sem que eu me importasse, sem mesmo saber, o Eleito
que deveria retomar a Busca que seu pai teve que abandonar. Como seu pai, mas por outras
razoes, eu fracassei.
“Mas jamais admiti esse fracasso. Durante anos ele me consumiu como uma pavorosa
melancolia. Uma mulher me amava, eu a amava também. Tinha que defender um domínio e
um castelo, e os defendi. Tudo isso você sabe, uma vez que seu pai conheceu os mesmos
deveres e o mesmo mal interior.
“Uma noite, tive um sonho. Eu me via cavalgando até o extremo norte da Escócia.
Embarcava em seguida em uma nau de velas vermelhas. Ela me conduzia para uma ilha.
Nessa ilha, um castelo me acolhia, com a ponte levadiça baixada. Nesse castelo, uma
grande luz imaculada me cercava e eu via, de repente, diante de mim... Você sabe bem do
que estou falando: eu via o Santo Graal. Eu reparava meu erro de juventude e fazia as Duas
Perguntas. Depois...”
Perceval se calou um instante. Tomou a mão de Galahad. Em torno deles, o navio
perseguia sua corrida dentro da noite. Não se sentia a menor brisa. Contudo, a vela com a
cabeça de leão continuava enfunada.
— Eu acordei. O sonho continuava no meu coração com uma surpreendente precisão.
Li nele um sinal: o da minha nova eleição. Enfim, eu disse a mim mesmo, vou poder reparar
minha falta inicial, meu erro. A Providência está me dando uma segunda chance.
“A aurora ainda não tinha despontado. Eu me vesti, armei, desci as cavalariças e selei
meu melhor cavalo de guerra. Meu senescal, Aguingueron, um gigante que me ama com um
amor quase feminino, quis me impedir. Não o escutei. Autorizei-o a me seguir.
“Deixamos Beau Repaire e, em duas semanas, atingimos o setentrião da Escócia. Lá,
diante da praia, a nau de velas vermelhas me aguardava. Embarquei, sem nenhuma
hesitação. Abandonei Aguingueron, meu senescal e minha consciência, sobre a margem.
“Não vou lhe contar os detalhes da minha travessia. Digamos apenas que foi muito
menos pacífica do que a nossa. Desde as primeiras braças em direção ao largo, vagalhões
mais altos do que uma espinha de dragão sacudiram, balançaram, varreram a nau a tal
ponto que acreditei cem vezes que ia me afogar. Mesmo em pleno dia estava escuro como a
noite. Ainda assim, as ondas, que logo se tornaram altas como colinas, eram cor de ouro. E,
quando quebravam contra a nau, pareciam imensas aves noturnas, de asas abertas... Ignoro
quanto tempo se passou até o momento em que me vi encalhado na areia negra de uma
praia minúscula, encravada entre duas falésias.
“O navio tinha desaparecido. Pensei que ele tivesse afundado. Todos os meus
membros doíam, todos os ossos também. Eu me levantei. Caminhei.
“Logo encontrei um caminho escarpado que ia dar no alto de uma falésia. Estava
esgotado, mas alguma coisa me obrigava a avançar, avançar, avançar sempre...”
Perceval passou a mão na testa. Estava suando. Galahad o fez beber alguns goles de
água.
— Obrigado... Onde eu estava?... Ah, sim... Quanto tempo caminhei entre os rochedos
negros? Não sei. Finalmente, cheguei às proximidades de um castelo.
“Reconheci-o na mesma hora, pela grande torre de pedra cinzenta ladeada por duas

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torres menores. Era Corbenic, o castelo do rei Pellès, do Rei Pescador. O castelo do Graal.
“Não fiquei surpreso que se erguesse ali, naquela ilha ao largo do setentrião das terras
conhecidas. Seu pai, jovem, encontrou Corbenic na fronteira de Logres. Quando eu tinha a
sua idade, também o descobri perto de Logres — mas numa outra fronteira. Corbenic é um
domínio ao mesmo tempo maldito e sagrado: fica onde aquele que o procura e o merece o
faz reviver.
“Como você pode imaginar, entrei no castelo. Meu coração palpitava. Esquecera as
dores do meu corpo, esquecera os dez anos passados no arrependimento, no remorso pelo
meu fracasso. Sim, eu iria finalmente dar ao mundo o Graal. Faria as Duas Perguntas. Eram
tão simples...
“Como na minha primeira visita, dez anos antes, encontrei o rei Pellès estendido no seu
grande leito no centro da sala. Deitado de lado, ele fez um sinal para que eu me
aproximasse. Ele sorria. Ele me estendia a mão. Eu disse a mim mesmo: ele está me
acolhendo, ele perdoou meu primeiro mau passo, ele me escolheu.”
Perceval agarrou o braço de Galahad, curvou-se para ele e sussurrou:
— Eu sou um idiota, eu sou um estúpido, eu sou um asno. Pellès não escolhe, eu teria
sabido se eu fosse o Eleito. Pellès, há séculos, espera. Só isso.
“Mas, sempre cheio de orgulho por ter obtido uma nova oportunidade, não vi nada, não
compreendi nada. Não consegui enxergar que aquele rei inválido estirado no seu colchão era
uma ilusão do meu espírito, não compreendi que havia caído numa armadilha.
“Irresistivelmente atraído por aquela mão que ele me estendia, fui até ele. Embora
tivesse a impressão de que ele se embaçava, como uma imagem, como uma miragem...”

Uma brisa suave e perfumada percorreu o convés, da proa a popa, sem que a vela
parasse de se enfunar, sem que a nau deixasse de mergulhar na noite. Perceval pediu mais
um pouco de água. Galahad a derramou nos seus lábios rachados.
— Assim que ele fechou a mão sobre a minha, compreendi que tinha sido ludibriado.
Enganado. Engabelado. Tarde demais... A ilusão dissipara-se. Aquele cuja mão eu segurava
— ou que retinha a minha — não se parecia mais em nada com Pellès. Era jovem, pálido,
desdenhoso, inteiramente coberto por uma armadura cor de ouro: Mordred.
“— Você está morto! — eu lhe gritei.
“— Talvez, ele replicou. Mas você, por que ainda está vivo? Este mundo ainda não o
cansou?
“Eu queria livrar minha mão do domínio dele. Em vão. Ele era forte demais.
“— O que você veio procurar aqui? — perguntou. — Uma segunda oportunidade? Isso
não existe.
“— Então por que você está aqui, se está morto? Não é a sua segunda chance?
“Ele começou a rir.
“— Você não muda nada, Perceval! Tão forte, tão cheio de capacidades — e tão
idiota...
“Ele apertou mais os dedos: acreditei que ia me triturar as falanges. Impossível escapar
do seu domínio.
“— Sabe o que nos diferencia, Perceval? É que você obedece ao seu destino e ao seu

85
deus. Já eu tomei o partido do Diabo, e nós negociamos longamente, avidamente, uma
aliança bem compreendida de nossos interesses mútuos... Você é um santo, ou quase,
Perceval. E eu sou um maligno, um maligno associado ao Maligno. Até mesmo minha morte
eu soube negociar!
“Ele apertava cada vez mais os dedos nos meus. Um frio glacial tomava conta do meu
braço, do meu ombro, do meu peito.
“— Venha comigo, Perceval... Junte-se a mim. Junte-se a nós. Deixe de ser o único a
lutar contra a terrível e malvada realidade do mundo... Venha... Venha para o reino dos
mortos...
“— Eu sentia tanto frio que acreditei que meu coração ia parar de bater. Então, não sei
por quê, gritei:
“— A vida!
“Mordred teve um sobressalto de horror, e afrouxou o aperto da minha mão. Contudo,
não o suficiente para que eu libertasse meus dedos.
“— A vida? — rosnou, atraindo-me para o seu rosto, e seu bafo fedia a enxofre. — A
vida é um erro que corrige a morte. Olhe para mim, Perceval, você que me perseguiu durante
semanas com a intenção de me matar: tenho mais poderes do que nunca!
“— Os poderes do Diabo!
“— Só o Diabo é real! — gritou ele. Olhe...”
Perceval suspirou, fechou os olhos e descansou a nuca contra o apoio do mastro.
— Teria sido melhor que eu tivesse me calado... Ele colocou minha mão, que segurava
com toda a força, sobre a própria testa. Então, um bilhão de imagens se precipitaram dentro
da minha cabeça.
“Elas se chocavam a toda a velocidade. Todas se pareciam: pelo sangue. Sangue,
sangue, sangue por toda parte, sempre... Minha palma encostada na testa de Mordred
captava todos os crimes, todos os assassinatos, todos os massacres, todas as guerras
passadas, presentes e por acontecer... E todos aqueles crimes, todos aqueles assassinatos,
todos aqueles massacres, todas aquelas guerras se pareciam pela razão mais simples do
mundo: um assassinato se parece sempre com um assassinato, um massacre, com um
massacre, uma guerra, com outra. E só sangue, dor e luto. O Graal, jovem, não mudará
nada.”
Perceval respirava com dificuldade. Galahad umedeceu-lhe a testa, as faces, o
pescoço.
— E em seguida, cavaleiro...?
— Em seguida? Eu não tinha mais coragem nem inconsciência para suportar o que a
memória demoníaca de Mordred me mostrou. Vi milhões de homens correndo na lama
ceifados pelo fogo e pela explosão de armas que outros homens inventaram. Vi mulheres,
crianças e velhos humilhados, nus, empilhados em salas e assassinados por sua própria
respiração envenenada. Vi cidades inteiras arrasadas por imensos incêndios jogados do alto
do céu. Vi irmãos matando os próprios irmãos, filhos denunciando os pais, mães queimando
vivas suas filhas, amigos assassinando amigos. Vi armas cujo poder de destruição você não
poderia imaginar. Vi tantos horrores que não tenho palavras para lhe contar...
— Não é possível... Mordred o enganou, cavaleiro. Não é a verdade. Isso não pode ser

86
o futuro!
— Você não é obrigado a acreditar em mim... Aliás, se acredita em mim ou não, não vai
fazer diferença...
De repente, Perceval começou a tossir, como se alguma coisa o sufocasse. Deslizou
molemente para o lado. Galahad inclinou-se sobre ele.
— Levante-se, cavaleiro! Você não tem o direito de... de me abandonar assim...
Num fio de voz, Perceval murmurou:
— Encontre o Graal... Eu sei que você vai encontrá-lo... Mas...
Segurou Galahad pelo ombro. Com uma força inesperada, obrigou-o a enfrentá-lo cara
a cara, seus rostos a poucos centímetros um do outro.
— ...Mas... Mordred me contou uma última coisa, naquele dia, antes que eu perdesse
os sentidos...
Perceval afrouxou de repente a mão que segurava o ombro de Galahad. Seus olhos se
reviraram.
— O que foi que ele lhe contou? — perguntou o jovem cavaleiro, tentando segurar o
corpo de Perceval, que escorregava para trás, sem força.
— Escute bem...
Galahad curvou-se sobre ele, encostando o ouvido na sua boca. Perceval sorriu e
disse:
— As lendas não morrem, se alguém as realiza...
Foram, com um último suspiro, suas últimas palavras. Um ciclo se encerrava. Partido
da floresta das infâncias e da ignorância de si mesmo, feito cavaleiro para trazer o Último
Conhecimento ao mundo, tendo perseguido sua Busca vã pondo em risco sua própria razão,
Perceval morria sobre o mar primordial, de onde vem toda a vida, e para onde ela deve
retornar.
Galahad desceu para o interior da nau. Apanhou o pano vermelho dobrado sobre a
mesa. Subiu de novo ao convés e enrolou com cuidado o corpo de Perceval. Carregou-o nos
braços. Colocou-o por um momento sobre a amurada e olhou a onda, cinza-prateada, que
acalentava suavemente o casco. A aurora surgia.
— Que o mar o conduza a Avalon, a última estada de seu povo!
E empurrou o corpo por cima da borda.
Galahad seguiu-o muito tempo com os olhos. Coberto de vermelho, ele flutuava,
indeciso. Até que uma corrente, como que destinada somente a ele, de repente o segurasse
e o levasse para o horizonte.

87
2
A Lança e o Escudo

A ilha se formou por dentro do nevoeiro. Era alta e lúgubre. A nau não mudou de
direção. Seguiu direto para a margem. Suas velas, perdendo o apoio do vento, caíam,
inertes, contra o mastro. O navio diminuiu pouco a pouco a velocidade e, sem um barulho, a
proa tocou a areia de uma praia. A nau se imobilizou, ligeiramente inclinada para o lado
direito.
Galahad prendeu no pescoço o escudo branco com a cruz vermelha, verificou se
prendera bem no cinto a espada e a empunhadura quebrada da lança misteriosa e saltou em
terra. A noite caía.
Descobriu sem dificuldade um atalho que escalava o flanco da falésia escura. Foi por
ele, com um passo rápido. Não tinha comido nada durante o dia inteiro. Mas não chegava a
se dar conta disso. Sentia em si uma força que nada tinha em comum com qualquer outra
que conhecera. Isso se chama exaltação. Tinha a intuição alegre de estar chegando ao
objetivo sagrado para o qual nascera e fora educado.
No cume da falésia, a paisagem não oferecia nenhuma surpresa. Uma charneca plana,
cinzenta, cujo mato parecia nunca ter florido, se estendia a perder de vista. Como um
deserto. Galahad voltou a caminhar. As urzes mortas estalavam sob seus passos. Uma
poeira fina se elevava, levada por um discreto noroeste.
Logo em seguida, a noite se instalou completamente. Por felicidade, no céu limpo a lua
e as constelações difundiam luz suficiente para que o jovem cavaleiro não se sentisse
perdido nas trevas. Depois de uma hora de caminhada, ele distinguiu, a sua direita, a
silhueta de uma enorme torre quadrada ladeada por duas torres menores.
— Corbenic!
Teve que se conter para não correr.

+++
Depois de atravessar a passarela por cima do fosso, entrou num pátio cujo calcamento
estava coberto de cinzas. Esperava que varletes viessem acolhê-lo e aquecer seu ombro
com o manto de boas-vindas. Mas ninguém apareceu. Experimentou, pela primeira vez, um
começo de inquietação. Levantou a cabeça: nenhuma luz transparecia nas janelas e nas
seteiras do torreão quadrado. Expulsando suas dúvidas, atravessou o pátio. Encontrou uma
porta principal com os batentes escancarados.
No interior, a sala era maior, mais alta e larga do que a torre parecia poder conter,
mesmo sendo está muito grande, alta e larga. Foi acometido por uma angustiante impressão
de déjà-vu. Como se já tivesse estado naquele castelo, naquela sala, uma outra vez, e não
conseguisse se lembrar. Em uma lareira gigantesca, cujo interior era sustentado por quatro
colunas, quatro cabritos monteses estavam sendo assados simultaneamente. O cozimento
da carne desprendia um cheiro que reavivou em Galahad a sensação de fome. Mas o
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momento não era para ágapes. O que o trouxera ali, do sul ao norte dos antigos reinos
celtas, depois sobre o mar setentrional, era aquele homem repousando em um grande leito
quadrado que ocupava o centro exato da sala. Um velho de barba grisalha, embrulhado
numa capa de arminho, e que, erguendo-se penosamente sobre um cotovelo, lhe fez sinal
para se aproximar.
— Até que enfim você chegou...
Galahad avançou pela imensidão deserta da sala. Cada passo seu ressoava em
múltiplos ecos. Chegando ao pé do leito, inclinou-se em sinal de respeito.
— Venha! Venha para perto de mim — disse o ancião. — Venha aqui e fique à vontade.
Bateu com a mão na beira do leito, perto dele. Galahad obedeceu. Sentou-se. O velho
homem lhe confiscou a mão: uma refém entre as suas. Que estavam geladas. Como as
mãos de um cadáver. Galahad fez um grande esforço para não recusar aquele contato.
— Então, é você... Você que eu espero desde... Oh! Eu não conto mais os anos — nem
os séculos...
Largou a mão do jovem e, com um gesto teatral, afastou a aba de seu manto de
arminho, descobrindo suas pernas. Pernas mortas, atrofiadas. Como pernas de criança
enxertadas no corpo de um ancião que se percebia ter sido de estatura poderosa — há muito
tempo.
— Preciso lhe explicar por que perdi o uso de minhas pernas?
— Não. Nem tem que me dizer seu nome. O senhor é Pellès, o rei inválido, o Rei
Pescador.
— Bem! Bem! — aprovou o ancião, encantado.
— E eu sou aquele que obterá o Graal.
Pellès riu, nervosamente.
— Ah, meu menino, você não sabe como rezei para finalmente encontrar um jovem
cavaleiro como você!
Galahad replicou friamente:
— O senhor se esquece de que sei tudo a seu respeito. Deveria sentir vergonha de se
queixar de seu estado, já que está assim só por causa de seu perjúrio.
O sorriso se apagou do rosto devastado de Pellès.
— Você é bem insolente...
Tornou a segurar a mão de Galahad, prendendo-a entre seus dedos deformados,
tortos, cor de chumbo, como os de uma múmia.
— Você sabe, não é tudo assim tão simples... Se eu não tivesse tentado roubar o
Graal, você não existiria, Galahad... Sua existência não teria nenhum sentido... Reflita sobre
isso. Sem a traição de Judas, Cristo não teria sido morto na cruz e os homens não teriam o
direito a salvação de seus erros... Sem minha traição, Arthur e todos os seus cavaleiros e
você — você também, você sobretudo — seriam apenas homens de guerra, de violações e
rapinas. Homens de poder. O poder do mais forte...
Ele apertou mais os dedos.
— Olhe para mim...
No seu rosto, quatro séculos de maldição tinham marcado profundamente seus traços:
o tom da pele de Pellès era o de um cadáver de carnes ressecadas, de olhos líquidos e

89
glaucos como lodo marinho.
— Eu sou a pavorosa realidade do mundo, Galahad. Você é a sua ilusão, eternamente
jovem, mas vã. Você está por cima. Aproveite enquanto ainda pode...
Repugnado, Galahad levantou-se de um salto e soltou a mão. Ele disse, quase sem
conseguir respirar:
— Acabemos com isso. Vou fazer as Duas Perguntas. Eu vim para isso!
Pellès o examinou por um momento, sorrindo.
— Não... Não, não é assim que funciona... As Duas Perguntas... seria muito fácil para
você: foi educado para saber quais eram. Onde estaria o desafio? Pois você procura
desafios, não é?...
— Acabemos com isso, estou lhe dizendo!
— Um pouco de calma, meu rapaz. Você está aqui para me livrar da maldição.
— E o Graal?
— Ah, sim... O Graal... Muito bem, você o obterá como um bônus, como um presente.
— Por quê? Por que esse favor?
— Não é um favor, é o seu destino, Galahad. Uma mulher o concebeu para me libertar.
E você nasceu para consumar sua obra.
— Não é verdade! Estou aqui por causa do Graal!
Pellès apontou com um dedo deformado para uma porta da imensa sala.
— Ei-la, a mulher. Saúde-a.
A porta se abriu. Uma Dama coberta com véus brancos se apresentou.
— É a minha filha — acrescentou Pellès. — É Ellan. É sua mãe.

A Dama coberta com véus brancos... Foi com essas palavras que Galahad, durante
toda a sua infância no convento, designara a mulher que aparecia uma vez por ano, no
Pentecostes, e, depois de conversar com a madre superiora, passeava na sua companhia
pelo claustro. Ela tinha uma voz doce. Fazia-lhe sempre as mesmas perguntas: O que ele
aprendera de novo? Ganhava de seus mestres na espada? Dominava seus cavalos?
Compreendia que ia se tornar o melhor cavaleiro do mundo?
Ele sentia uma ternura estranha por aquela Dama da qual nunca via o rosto. Tinha
vontade, às vezes, de se aconchegar contra ela. No recinto do convento, a madre superiora
e suas freiras cuidavam bem dele, mas jamais, jamais ele tivera direito a um gesto meigo, um
carinho, uma palavra de amor. Ele respondia com aplicação a todas aquelas perguntas, da
mesma forma como se esforçava, o ano inteiro, entre duas festas de Pentecostes, duas de
suas visitas, para vencer todas as provas que as freiras lhe impunham. Na esperança,
sempre decepcionada, de que tanta aplicação, tanta excelência, tanta vontade de fazer bem-
feito fossem recompensadas pelo mais simples dos gestos: os dedos finos, translúcidos, da
Dama branca lhe roçando o rosto, ou percorrendo delicadamente seus cabelos. Ou, por
milagre, que ela o convidasse a se aconchegar contra si, e que o apertasse nos braços,
apertasse, apertasse...
Esse sonho jamais se realizou. Com uma voz controlada, um pouco seca, a Dama
branca lhe dava parabéns pelos progressos, depois o incitava a fazer mais esforços ainda.
— Contamos com você — ela lhe dizia invariavelmente, antes de se separarem.

90
Ele desejava que ela lhe dissesse: “Conto com você.” Ou, mais simplesmente: “Gosto
de você.” Ela não parecia conhecer, ou querer pronunciar, essas palavras mágicas.

E o coração de Galahad pulou no peito quando ouviu aquelas outras palavras, caídas
da boca feia, dos lábios negros e retorcidos de Pellès: “É a sua mãe.”
O rapaz avançou alegremente para a Dama branca.
— Eu queria tanto revê-la... Nunca tive dúvidas de que a senhora...
Ela levantou bruscamente a mão, com a palma aberta, na sua direção.
— Pare! Não se aproxime mais!
Ele se imobilizou imediatamente. Não compreendia.
— Estou tão feliz de...
— Por favor — ela o interrompeu —, controle-se. Eu não o mandei educar para você se
conduzir assim. Está feliz? Melhor para você. E esqueça imediatamente esse sentimento
imbecil.
— Mãe...
— Não me chame assim! Sou sua mãe pelo ventre e pela linhagem. Nada mais.
— É isto, então, ser mãe... Não é?
— Cale-se!
Ela avançou em direção a ele. Estendeu a mão. Ele acreditou que ela o estava
convidando a segura-la. Ela empurrou a mão dele para o lado. Foi direto ao cinto e a
empunhadura quebrada, brandindo-a sob o nariz dele.
— Eis por que você está aqui. Para reparar os estragos de tempos antigos. Para
prestar homenagem a sua linhagem.
Colocou a empunhadura quebrada nos dedos dele, com força.
— Volte para junto do rei. Para junto do seu avô.
Galahad baixou a cabeça. Nunca tivera a experiência da tristeza. Nem do sofrimento.
Descobriu que era como um golpe de espada na barriga, lhe tirando todas as forças. E a
vontade de viver. Sua educação de Eleito o havia preparado para todas as provas, menos
para essa.
— Mãe — repetiu, mesmo compreendendo que essa palavra estava definitivamente
proibida para ele.
— Obedeça-me — ela replicou. — Não temos tempo a perder. O Diabo e Mordred
seguem suas pegadas.
Ele voltou para junto do leito onde Pellès estava estendido. Aquele velho lhe era
insuportável, com sua pele escurecida pelos séculos e as conseqüências de seu perjúrio.
Deixou que ele lhe tomasse a mão que segurava a empunhadura partida.
— Não fique tão melancólico, jovem... Você veio buscar o Graal? Você o terá. Basta me
fazer um último serviço. Concorda?
Com os olhos fechados, Galahad aquiesceu com um movimento de cabeça.
— Bem... Então se aproxime... Venha... Não tenha medo... Não tem nada a temer.
Tudo a ganhar...
Galahad reabriu os olhos. Pellès dirigiu a extremidade quebrada da madeira da
empunhadura contra seu quadril invalido.

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— Sim... Sim — sussurrava o velho rei. — Eu sinto... Eu sinto chegar a libertação...
De repente apareceu, atravessando o quadril de Pellès, de um lado a madeira
quebrada, do outro o ferro ensangüentado de uma lança. Com um clarão, os dois pedaços
da empunhadura se colaram. Pellès soltou um grito assustador. Sua pele mudou de cor,
tornando-se em alguns instantes branco-rosada e flexível. Sua barba grisalha voltou para
dentro das faces, revelando um rosto jovem e firme. A cabeleira se tornou mais densa, e
castanha.
— Por Cristo, eu me arrependo de minha traição! — berrou.
Empunhou a lança, agora já inteira, que lhe transpassava o quadril e, com um ululo de
animal ferido, arrancou-a.
No ponto onde o sangue deveria jorrar, Galahad viu uma chaga cujas bordas rosadas
se fechavam, se suturavam, desapareciam. Assustado, recuou.
Pellès enfiou violentamente a lança no centro de seu leito. Ele tinha recuperado a
juventude, a força — e suas pernas. Saltou sobre os pés e clamou, com os braços afastados
para o céu:
— Livre!
Então, num terrível silêncio, as paredes da sala desabaram. Por cima do leito quadrado,
onde Pellès rejuvenescido gritava sem parar: “Livre! Livre! Livre!”, só havia agora o céu
noturno constelado de estrelas. Estrelas que, de repente, se agitaram, voltearam em
desordem contra o tecido negro da noite, depois se juntaram em uma única bola de luz fria.
— Livre!
Não se via mais uma nuvem. Mas um trovão rugiu. Um raio, de uma brancura
ofuscante, rasgou o céu.
— Livre! LIVRE!
Na segunda trovoada, o raio atingiu Pellès em cheio. Ele desapareceu como se nunca
tivesse existido.

92
3
A Ilha

— Siga-me!
A Dama branca, Ellan, arrastou Galahad atrás de si. O castelo de Corbenic tinha se
evaporado como um sonho ao despertar. E a charneca, o mato morto que Galahad
pisoteara, crescia a olhos vistos, florescia, lançava em toda a volta seu perfume. Depois
foram árvores, árvores inteiras, que jorraram da terra, elevando seus troncos, estendendo
seus galhos, exibindo suas folhas como se fossem palmas abertas para o céu.
— Vá! Vá! Mais depressa!
Galahad tropeçou em um pé de urze. Recuperou o equilíbrio e bateu com a testa em
um carvalho que, num instante, crescera bem diante dele. Não compreendia mais nada do
que lhe estava acontecendo. Atordoado, procurou com os olhos Ellan, que corria na frente
dele, sem jamais se deixar prender por aquela vegetação que ressuscitava em profusão e
em excesso, após séculos de maldições e de deserto.
Bem depressa chegaram a um atalho, cuja inclinação levou-os a uma praia de areia
negra. Lá, Galahad viu um navio que as ondas faziam jogar tranqüilamente.
— Suba a bordo! — disse-lhe Ellan. — E vá embora!
— Venha comigo.
Ela sacudiu a cabeça.
— Você não entende nada, Galahad. Você é uma criança.
— Sim. A sua criança. O seu filho.
Com um gesto de ternura, aproximou suas mãos dos ombros de Ellan. Com as palmas
das mãos, ela o repeliu. Ele esperava tão pouco aquele gesto que tropeçou para trás, e
quase caiu. Ela falou com raiva, com os dentes cerrados:
— Escute-me, Galahad: eu amei seu pai, ele não me amou. Você é o filho da mentira,
do despeito e do ciúme.
Como a criança enganada que era, Galahad gemeu:
— É impossível... Você é a filha do Rei Pescador... Meu pai era o maior cavaleiro do
mundo... Eu sou filho de vocês, filho de vocês, de todos dois. Vocês têm que ter se amado!
Pela primeira — e última — vez, Ellan acariciou a face de Galahad.
— Responda a minha pergunta: quando ele encontrou você, Lancelot, seu pai, ele o
reconheceu?
— ... Não...
— Está vendo?
Ela percorreu a praia, parou no limite das ondas que, num último sopro de espuma,
lambiam a areia negra. Voltou-se: Galahad a seguia de má vontade.
— Vamos! Seu destino o aguarda! É a única coisa que conta.
O jovem chegou até onde ela estava. A última onda morria a seus pés. Ellan disse:
— Há quanto tempo você carrega esse escudo?
93
Galahad baixou os olhos para o escudo que transportava suspenso ao pescoço.
— Desde que o tomei do monastério que o mantinha guardado.
— Ah?... Tem certeza de que é sempre o mesmo?
— Evidentemente!
— De uma olhada...
Ele encolheu os ombros. Despendurou o escudo. Colocou-o diante de si. E teve que
reconhecer:
— A cruz... A cruz vermelha desapareceu...
Com efeito, o escudo estava imaculado. Branco como a alma ou a asa de um anjo.
— Por quê? — perguntou a Ellan.
— Você bem sabe. Viu morrer seu avô... A cruz vermelha desse escudo tinha sido
traçada com o sangue de sua ferida nos quadris. Você reuniu as duas partes da lança,
salvou a alma de meu pai. O escudo voltou a ser como era quando José o ofereceu a ele...
— E agora?
— Agora? Seja você mesmo: um cavaleiro errante, invencível e solitário. Você irá até o
fim?
— Como assim?
Ela lhe apontou o horizonte marinho que um sol tímido clareava.
— Você é o único a sabê-lo. E foi por isso que eu o pus no mundo.
— Por que se recusa a ser minha mãe?
Lentamente, ela recuava dentro do nevoeiro que se adensava sobre a ilha. Ela ia se
apagando. Murmurou:
— Você não precisa de mim...
Logo, ele não a distinguia mais. Ela desapareceu como uma sombra.
Galahad subiu a bordo daquela nova nau. As velas eram vermelhas. A figura de proa,
possivelmente esculpida pelo melhor dos artesãos, reproduzia a cabeça de um leão rugindo,
caninos prontos para o ataque, lábios arreganhados, bigodes nervosos, focinho franzido de
furor, orelhas recolhidas, rentes ao crânio.
Durante um dia inteiro, a nau com a proa de leão traçou sua rota em um mar calmo.
Quando a noite caiu. Galahad levantou os olhos para as estrelas — conhecia o nome e o
lugar de todas as constelações. E compreendeu que a nau se dirigia para o norte.

+++
Na terceira manhã da travessia, quando Galahad já se desesperava por não chegar a
lugar nenhum, o sol nascente descortinou lhe um espetáculo extraordinário. Uma grande
muralha translúcida barrava todo o horizonte.
A aurora refletia-se nela com longas chamas cor de laranja e escarlate. Parecia um
gigantesco espelho de cristal erguido acima de ondas cor de mercúrio.
Fazia um frio terrível. Galahad cobrira-se com dois casacos, mas ainda tiritava.
A nau, com todas as velas enfunadas, navegava diretamente para a muralha que,
quanto mais se aproximava, mais alta parecia.
De repente, estalou um trovão. Contudo, o céu não carregava nenhuma nuvem. Era
como uma tempestade invisível, sem nuvens e sem raios. Depois de um instante de

94
descanso, o trovão recomeçou a ribombar, com um estrondo de tremor de terra. Sob os
olhos perplexos de Galahad, um espectro surgiu das ondas, o espectro gigantesco de um
cavaleiro em armadura de ouro cavalgando um cavalo de batalha cor de espuma.
Ele reconheceu naquele ser monstruoso o cavaleiro de seu sonho, o que ele havia
libertado de sua própria tumba. Mordred. Compreendeu que o Inimigo o havia investido de
um poder desmedido. Compreendeu que era aquela a derradeira e mais terrível prova que
teria de enfrentar.
Com um salto, o colossal cavalo de espuma propulsou seu cavaleiro nos ares. Mordred
brandiu uma espada flamejante e, com um urro que parecia conter todo o ódio do mundo,
abateu-a sobre a muralha de gelo. Ela se partiu de alto a baixo, como um espelho. Fendida,
rasgou-se com um estrondo de desabamento que se confundia com o longo e atroz rugido
do fantasma dos Infernos.
Galahad sentiu que uma chuva lhe chicoteava o rosto. Enxugou os olhos com um lado
da manga e olhou acima da muralha de gelo cada vez mais alta, cada vez mais próxima. Sob
um outro golpe de Mordred, ela se rachou em um segundo lugar, de onde jorraram milhões
de minúsculas gotas geladas.
O cavaleiro soube desde logo o que ia se passar. Não imaginava poder sair daquilo
vivo. Precipitou-se para o fundo da nau. Agarrou a barra do leme.
O milagre se consumou: ela lhe obedeceu. Deixou-se guiar. Agarrando-se a ela com
todo o seu peso, obrigou a nau a mudar de direção. As velas vermelhas se desviaram do
vento, estalaram no vazio; o navio traçou no mar uma longa curva. Então o vento retomou a
posse das velas, inflou-as, enfunou-as. A nau deslizou para o sul, fugindo da muralha de
gelo.
Tarde demais.
Quando a segunda rachadura alcançou a primeira, no cume, tudo rachou, em um
estrondo ensurdecedor. E, enquanto o monstro de espuma mergulhava novamente nas
vagas, arrastando seu cavaleiro de armadura de ouro, foi uma montanha, uma montanha de
gelo, que se soltou, vacilou e de repente desabou, interminavelmente, dentro do mar.
No momento em que ela se chocou contra a superfície com todo o seu enorme volume,
Galahad agarrou-se com as duas mãos na barra do leme, pronto para receber o choque.
Com efeito, um vagalhão gigantesco, da altura de uma colina, porém rápido como a
corrida de uma lebre, se elevou e rolou em perseguição a nau. Nenhum vento, nenhuma
manobra de marinheiro teria conseguido salva-la. A massa de água espumosa a alcançou
como um raio, tomou-a, submergiu-a, virou-a e revirou-a como um brinquedo na mão de um
gigante, e, para terminar, atirou-a, quebrada, triturada, no sulco de água que se formara.
Quase afogado, Galahad ainda encontrou forças para se agarrar a um pedaço de
mastro boiando não longe dele. O mar estava gelado. Transido, achou que ia morrer, depois
perdeu a consciência.

+++
Branca, a luz.
Tão branca que transpassava suas pálpebras.
Galahad abriu os olhos, mas precisou fechá-los de novo imediatamente, ofuscado.

95
Recuperou pouco a pouco a consciência de seu corpo e de si mesmo. Estava estendido de
costas. Encostou as mãos no chão, de um lado e de outro dos quadris. A superfície que
tocava era dura, e inacreditavelmente lisa. Apoiando-se nela, ergueu-se. Constatou com
espanto que não estava sofrendo. Que suas roupas estavam secas. Com precaução, reabriu
os olhos, protegendo-os com a mão como viseira.
De início, não viu nada além de uma intensa ofuscação. Piscou os olhos uma porção de
vezes, bem depressa, até que as pupilas se acostumaram. Pode finalmente olhar a volta
dele.
A margem dava a impressão de estar uniformemente coberta de gelo. Ela se elevava
em uma colina suave e regular, sem a menor aspereza. Galahad tateou mais uma vez o solo:
tépido como uma pedra aquecida pelo sol. Uma pedra translúcida e branca. Diamante?
Perturbado, pôs-se de pé. A alguns passos, o mar cor de mercúrio batia suavemente, quase
estático. O horizonte estava vazio, o céu de um azul muito pálido, o sol lívido.
Nenhum sinal do espectro de Mordred, nenhum destroço da nau.
Depois de uma última olhada nas vizinhanças desertas, Galahad resolveu caminhar.
Subiu ao longo da encosta, em direção ao desconhecido.
Muito depressa, atingiu o cume. A ilha (mas era uma?) estendia-se a perder de vista,
cintilando sob um sol, contudo, bem pálido. Barrando o horizonte, erguia-se uma pequena
capela branca, de proporções bem pequenas. Galahad foi para lá. Quando chegou mais
próximo, distinguiu sua entrada, uma abertura sem porta sob um arco quebrado. Parou por
um instante. Uma claridade rósea palpitava como um coro no interior da capela.
Depois de um último momento de hesitação, Galahad deu os últimos passos que o
separavam dela. Entrou.
As paredes eram nuas. Ao fundo, um vitral de rubis difundia uma luz repousante. Sobre
um altar de madeira se encontrava um objeto coberto por um tecido escarlate.
Galahad se sentiu cheio de uma grande alegria serena, pois soube que chegava ao
termo de sua Busca. Inclinou a cabeça, pôs um joelho no chão e persignou-se. Depois se
aproximou do altar. Suas mãos tremiam. Ele as estendeu na direção do Objeto oculto sob o
pano vermelho.
Então, uma voz ressoou atrás dele:
— Galahad, você conseguiu o direito de se sentar finalmente no seu lugar, entre nós!
Quando ele se virou, o que viu não o surpreendeu. Agora, mais nada conseguia
assombrar seu coração. Em vez da capela, elevavam-se as paredes de uma vasta sala
redonda. E, no centro daquela sala redonda, uma mesa quase tão grande quanto, e redonda,
claro.
Eles eram... quantos? Cem, quinhentos, mil? Uma multidão de cavaleiros em armas
estava de pé em volta da Távola Redonda. Como se os tivesse conhecido desde sempre,
Galahad podia dizer o nome de cada um: Erec, Yvain, Ké o senescal, Calogrenant, Aiglin des
Vaux, Agloval, Béduier o condestável, Carmaduc, Bliobéris, Mélior de l’Épine. E Garvain, o
paradigma de cavalaria. E Perceval, Perceval, que tinha morrido nos seus braços e lhe
sorria. E dezenas, dezenas de outros, que tinham se tornado ilustres durante quatro séculos
nos combates de Logres.
Na primeira fila, ele reconheceu o rei Arthur e quis se prosternar diante dele. Um outro

96
homem, de alta estatura, vestido simplesmente com um burel grosseiro, interpôs-se e,
segurando-o pelos ombros, forçou-o a permanecer de pé.
— Se alguém aqui deve se ajoelhar, é cada um de nós. Para lhe agradecer por ter se
juntado a nós e por nos trazer a Esperança.
— Quem é o senhor? É o único que não consigo reconhecer.
O homem lhe segurou a mão e, fixando-o diretamente nos olhos, apresentou-se:
— Meu nome é José de Arimatéia. Você é o último homem da minha linhagem. Aquele
que devia completar a minha obra.
— José... — balbuciou Galahad. — Eu sou... eu sou seu descendente?
— Sim. Por Lancelot, que é o seu pai, e que é o filho de um filho de um filho de um filho
de meu próprio filho. Por Ellan, sua mãe, você é também da linhagem de Pellès, o traidor, o
novo Judas. Graças a você, todas as maldições de Logres foram absolvidas.
José conduziu amavelmente Galahad até o altar.
— Agora — disse —, chegou a sua hora de completar o que deve ser feito.
Apontou-lhe o Objeto que repousava sobre o altar, coberto com o pano vermelho.
— Nós o estamos escutando. Faça a primeira das Duas Perguntas.
Galahad, nervoso, fechou os olhos. Sabia, por intermédio da educação que lhe haviam
dado as freiras, que o grande mistério das Duas Perguntas residia em sua simplicidade
extrema. Reabriu os olhos, respirou e perguntou:
— Que Objeto é esse?
— É o Graal, cavaleiro — respondeu José. — O prato sagrado onde o Messias fez sua
primeira refeição e onde eu recolhi Seu sangue sobre a cruz.
Depois disso, José o pegou pelo braço e o fez voltar para a sala onde os mil cavaleiros
esperavam, com a respiração suspensa. Um deles saiu das fileiras. Adiantou-se. Era
Perceval. Tinha nas mãos a Lança que sangra. De seu ferro, gota a gota, um sangue
vermelho brotava, inexoravelmente.
— Agora, faça a segunda das Duas Perguntas.
Galahad pronunciou com lentidão:
— De quem é o sangue?
— De Nosso Senhor sobre a cruz quando Longino, o romano, feriu-lhe a costela.
Na mesma hora o ferro da lança parou de sangrar. Perceval, com um grito de alegria,
quebrou-a sobre seu joelho e jogou fora os dois pedaços. Mal tocaram o chão, desfizeram-se
e transformaram-se em poeira.
— A Vontade de Deus foi consumada! — exclamou José.
A assembléia dos cavaleiros da Távola Redonda aplaudiu.
— Resta o último ritual! — disse José.
Sem que houvesse necessidade de lhe explicar, Galahad voltou para o altar. Segurou
uma ponta do tecido vermelho e, com um gesto, descobriu o Prato Sagrado. O Graal.
Exalaram-se perfumes inigualáveis, perfumes de flores e de frutas, perfumes de primavera e
de verão, odores de outono, aromas de caça e de vinho, fragrâncias de madeira, fragrâncias
de inverno ao abrigo, tranqüilizadoras e calorosas, e tudo aquilo formava no ar imagens
alegres, serenas e saborosas, as imagens de uma vida no paraíso terrestre. Todos os
cavaleiros reconheceram nelas os momentos de felicidade de suas próprias existências, e

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encontraram uma plenitude como nunca tinham experimentado.
Depois, a capela se abriu para o céu. Uma mão sem corpo, derramando em volta de si
uma imensa paz de espírito, recolheu o Graal e levou-o consigo.
Todos os cavaleiros, e José, e Arthur, e Galahad caíram de joelhos.

+++
Assim que o teto se fechou e que a mão celeste desapareceu, Galahad foi o primeiro a
se levantar. Atravessando as fileiras de cavaleiros prosternados, saiu da capela.
Do lado de fora, o deserto de diamante branco tinha dado lugar a uma paisagem
disposta em vales onde corriam córregos de água clara, onde crescia uma erva espessa
salpicada de botões-de-ouro, de centáureas e de papoulas. As árvores de um pomar, a
alguns passos, estavam carregadas de frutas do mundo todo. Passarinhos cantavam nos
galhos de uma floresta de carvalhos.
Uma mão pousou amistosamente bem no ombro de Galahad. Ele se virou: era
Perceval.
— Onde estamos? — perguntou o jovem cavaleiro.
— Na ilha de Avalon — respondeu Perceval. — A ilha onde se encontram os mortos de
Logres.
— E o...
Baixando os olhos, Galahad conteve a pergunta que lhe queimava os lábios. Perceval a
fez por ele:
— E o seu pai está entre nós? Não, Lancelot não está aqui.
— Então ele está...? — disse Galahad, sem dissimular seu alívio.
— Está vivo, sim. E talvez um dia venha a precisar de você.
— Eu vou deixar esta ilha?
— Seu lugar não é em Avalon. Ainda não.

Arthur, Garvain, Perceval e José acompanharam Galahad até a beira do mar. A nau
com a cabeça de leão o aguardava, com as velas dobradas. Brancas.
— Está na hora de você ir embora — disse José.
— Mas, Senhor... Eu queria lhe fazer uma última pergunta.
— Pode falar.
— Como... Como vou encontrar o mundo?
— O que está querendo dizer?
— Bem, é que durante toda a minha infância me repetiram, me educaram na crença de
que, se eu obtivesse o Graal, mil anos de felicidade reinariam sobre o mundo...
José trocou um olhar com Arthur. Embaraçado, pousou a mão sobre o ombro do rapaz.
— Como explicar a você...? Quando certas coisas, essenciais, devem ser executadas,
não é raro que a lenda tome conta delas. E, quando essa lenda é propagada por magos,
filhos do Diabo, às vezes eles... mentem.
— O que está querendo dizer? Que Merlin inventou esses “mil anos de felicidade sobre
o mundo”?
— Não é assim tão simples — interveio Arthur. — Eu conheci Merlin bem. Ele não

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mentiria deliberadamente. Apenas... apenas era um homem do Antigo Mundo, o mundo dos
feiticeiros e dos prodígios. Para ele, o Graal era apenas um objeto mágico, de uma magia
mais poderosa e mais sutil do que ele era capaz de compreender.
— Fui eu — prosseguiu José — quem disse, depois de ter subtraído o Graal à cobiça
dos guerreiros primitivos de Logres: “Aquele que o encontrar fará Nosso Senhor reinar mil
anos sobre este mundo.” Merlin interpretou minhas palavras à sua maneira.
Perturbado, Galahad virou-se para Perceval:
— Então o que você viu, quando Mordred pousou a mão do Diabo na sua testa... é
verdade? Aquelas guerras, aqueles massacres, aqueles crimes abomináveis...? É verdade?
Perceval baixou a cabeça.
— Mordred, por intermédio do Diabo, conhece o futuro — murmurou.
— Mas então... — exclamou Galahad. — Então... Tudo o que eu fiz não serviu para
nada!
José segurou-o firmemente pelos ombros:
— Acalme-se. Você realizou o que tinha de ser realizado. Agora, vai retornar ao mundo
dos vivos. Você continua sendo um cavaleiro, Galahad. E graças a homens como você, e a
outros no futuro, que este mundo não sucumbira inteiramente ao Inimigo! A felicidade sobre
a terra é a vitória, sempre contestada, nos combates travados por aqueles que se recusam a
se curvar as vontades do Maligno. Você entende?
Sacudindo os ombros, Galahad livrou-se do braço de José. Deu alguns passos pela
orla. Refletia. Terminou fazendo que sim longamente com a cabeça.
— Sim, entendo — disse. — Mesmo que não aceite.
— Mas não precisa aceitar, meu rapaz. É o que lhe permitirá lutar, ainda e sempre.
Sem uma palavra, Galahad aquiesceu com um movimento de cabeça.
— Agora — disse José acompanhando-o até a nau —, retorne para o lugar de onde
veio. E viva com honra. Um lugar na Távola Redonda — o melhor! — esperará sua volta para
nós. Não o desmereça.
Galahad saltou com desenvoltura a bordo do navio. As velas se desdobraram. Içadas
até o alto do mastro, elas acolheram a brisa, enfunando-se.
— Adeus! — ele gritou, enquanto a nau se afastava da orla.
— Até um dia! — responderam José, Arthur e Perceval, apagando-se suavemente,
como fantasmas que eram.

+++
Mais tarde, pedaços de gelo começaram a boiar sobre a água cinza. O céu estava
baixo, pesado como chumbo. Fazia muito frio.
Galahad compreendeu que havia atravessado a fronteira das águas de Avalon.
Acabara de voltar para o mundo real. Outras aventuras, e toda uma vida, o esperavam. Esse
pensamento bastou para esgotá-lo.
Foi para o interior da nau. Havia uma cama e diversas cobertas de arminho. Deitou-se,
enrolou-se e adormeceu.
Um cavaleiro de armadura de ouro e olhos de fogo o espiava de algum lugar, bem no
fundo dos seus sonhos.

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Biografias

CHRISTIAN DE MONTELLA
Nascido em 1957, o autor estudou Letras e Filosofia. Pai de três filhos, exerceu
diferentes ofícios, tão numerosos quanto variados, antes de escolher a escrita: trabalhador
agrícola, ator, instrutor de esporte, empregado administrativo... Até o momento, já publicou
romances nas editoras Seuil, Gallimard, Fayard e Stock. Escreve também para crianças na
École des Loisirs, Je Bouquine, Bayard e Livre de poche jeunesse.

OLIVIER NADEL
Pintor e ilustrador, aprecia o óleo de linho polimerizado, a sanguina (peróxido de ferro
empregado na fabricação de lápis vermelho) e a água-forte.
Campo de atuação: Mitos, História, aventura e didática multimídia.
Ensina ilustração na Arts-Décoratifs de Estrasburgo.

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